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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X A/R/TOGRAFIAS DE SI: CAMINHOS E PERCALÇOS DA EXPERIÊNCIA DE CRIAR-SE POETICAMENTE ATRAVÉS DA SELF Caroliny Cristiny Trajano 1 Resumo : Partindo do pressuposto de que “não há estrada senão na sensação e é só através de nós que caminhamos”, me aventurei na jornada artística com o obje tivo de criar-me e (re)criar-me, contar-me e recontar-me através de expressões poéticas distintas. Tendo como movimentos metodológicos as a/r/tografias de si, trago para o encontro a imagem, a palavra, o corpo e seus simbolismos numa dança mestiça e híbrida, o que me oferece, enquanto pesquisadora, processos de questionamentos, reflexão, e fazer contínuos. Acredito que é preciso penetrar a fissura da concepção racionalista em si da arte e entender que as estéticas são instrumentos que dialogam com o corpo que a produz. Nesse sentido, reforço que a mão que produz é animada é a mão que opera, mão sensível e inteligente, é o corpo que aprende, fala e sente. O processo das a/r/tografias de si gerou uma criação instintiva que otimizou o apaziguamento de tumultos emocionais e reinvenção dos “Eus”, possibilitando que a experimentação artística provocasse o contato direto com as minhas sombras, luzes, faces e fases, vivenciadas através deste corpo feminino. Dessa forma, me revelo ao mundo conforme meu acúmulo teórico, político e de vivências a partir de leituras feministas, dançando sinfonias distintas, com passos que levaram a entrar e sair da luz e escuridão que imerge de mim, refletindo que “Ir é ser”. Esta dança de grandes encontros me possibilitou plantar uma nova subjetividade performática. Agora é hora de florir. Palavras-chave : a/r/tografias de si; self ; criar-se. Movimentos de escrita de si São 20:00 hrs e eu estou em frente a uma tela em branco, não com pincéis e outros materiais mais palpáveis, mas diante de uma página em branco que pede para ser preenchida com signos facilmente lidos, um a um, entre espaços vagos e juntos, uma página que pede para ser escrita. São 22:10 hrs, transitei entre páginas já preenchidas com ou sem sentido, digitei uma frase ou outra e a apaguei com vergonha do dito e do não dito. São 00:17 hrs, começo a sentir minhas pulsações acelerarem, a dor no peito a acompa nha. Estou com medo, não pela dor não ser suportável, ela é, mas por conhecê-la, ou melhor, reconhecê- la como um sintoma. Eu sei que vai passar e começo a bater sobre as teclas, uma a uma, como se eu tivesse caminhando, um passo atrás do outro. A pouca força física e mental que possuo no momento exerce sobre meus dedos para que pressionem estes minúsculos quadrados de signos 1 Graduada em direito pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), Maringá -PR, Brasil.

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th

Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

A/R/TOGRAFIAS DE SI: CAMINHOS E PERCALÇOS DA EXPERIÊNCIA DE CRIAR-SE

POETICAMENTE ATRAVÉS DA SELF

Caroliny Cristiny Trajano1

Resumo: Partindo do pressuposto de que “não há estrada senão na sensação e é só através de nós

que caminhamos”, me aventurei na jornada artística com o objetivo de criar-me e (re)criar-me, contar-me e recontar-me através de expressões poéticas distintas. Tendo como movimentos metodológicos as a/r/tografias de si, trago para o encontro a imagem, a palavra, o corpo e seus

simbolismos numa dança mestiça e híbrida, o que me oferece, enquanto pesquisadora, processos de questionamentos, reflexão, e fazer contínuos. Acredito que é preciso penetrar a fissura da

concepção racionalista em si da arte e entender que as estéticas são instrumentos que dialogam com o corpo que a produz. Nesse sentido, reforço que a mão que produz é animada – é a mão que opera, mão sensível e inteligente, é o corpo que aprende, fala e sente. O processo das a/r/tografias de si

gerou uma criação instintiva que otimizou o apaziguamento de tumultos emocionais e reinvenção dos “Eus”, possibilitando que a experimentação artística provocasse o contato direto com as minhas

sombras, luzes, faces e fases, vivenciadas através deste corpo feminino. Dessa forma, me revelo ao mundo conforme meu acúmulo teórico, político e de vivências a partir de leituras feministas, dançando sinfonias distintas, com passos que levaram a entrar e sair da luz e escuridão que imerge

de mim, refletindo que “Ir é ser”. Esta dança de grandes encontros me possibilitou plantar uma nova subjetividade performática. Agora é hora de florir.

Palavras-chave: a/r/tografias de si; self; criar-se.

Movimentos de escrita de si

São 20:00 hrs e eu estou em frente a uma tela em branco, não com pincéis e outros materiais

mais palpáveis, mas diante de uma página em branco que pede para ser preenchida com signos

facilmente lidos, um a um, entre espaços vagos e juntos, uma página que pede para ser escrita.

São 22:10 hrs, transitei entre páginas já preenchidas com ou sem sentido, digitei uma frase

ou outra e a apaguei com vergonha do dito e do não dito.

São 00:17 hrs, começo a sentir minhas pulsações acelerarem, a dor no peito a acompa nha.

Estou com medo, não pela dor não ser suportável, ela é, mas por conhecê- la, ou melhor, reconhecê-

la como um sintoma. Eu sei que vai passar e começo a bater sobre as teclas, uma a uma, como se

eu tivesse caminhando, um passo atrás do outro. A pouca força física e mental que possuo no

momento exerce sobre meus dedos para que pressionem estes minúsculos quadrados de signos

1 Graduada em d ireito pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), Maringá -PR, Brasil.

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resultando em sons. Este fato me causa uma sensação de passagem, uma música de composições,

sinto o ar faltando, mas ouço a música e sei que vai passar.

São 01:23 hrs, a página não está mais em branco. Apesar do tom confessional, uma verdade

a preencheu. Agora eu escolho deixá- la como nasceu, a entendo como uma parte importante dos

processos desta trilha e é ela que introduz meu texto, a fim de quem vier a me ler possa encontrar

veracidades, além de muito mais dúvidas do que certezas.

A cidade já dorme e eu sou só mais uma amante da madrugada. A percepção da solitude, do

silêncio, me agradam. Enquanto boa parte das pessoas do meu cotidiano sonham para que o

inconsciente desperte, aqui estou eu tentando lidar com os símbolos que já despertaram e é só no

silêncio da noite que encontro colo para esse encontro, onde o silêncio abre lugares para estes

outros sons que passam despercebidos.

Agora, já depois destes primeiros passos, me sinto encorajada a lançar alguns adjetivos para

minha pessoa, não por uma lógica narcisista ou solopsista, mas para que quem ler esta narração

argumentativa possa compreender a perspectiva de quem a escreve. Sou bacharel em direito, fui

cotista social e, apesar de, no atual momento, estar num infinito processo de conciliação com a

minha formação acadêmica, sempre fui uma amante confessa da arte em seu todo, uma aventureira

que arrisca e por vezes ousa dizer sobre as aflições humanas em técnicas diversificadas, e é por isso

que meu coração tanto pulsa e ainda (r)existe. No entanto nunca tive condições financeiras e

estudos específicos sobre técnicas e conceitos de arte, conto sim com grandes inspirações mas não

tenho a segurança de uma orientação.

Dentro dos diversos caminhos possíveis para a realização de uma pesquisa, escolhi me

movimentar entre imagem e texto, onde encontrei na a/r/tografia uma metodologia que "privilegia

tanto o texto (escrito) quanto a imagem (visual) quando eles encontram-se em momentos de

mestiçagem ou hibridização." (DIAS, 2013, p.24).

Roberta Stubs Parpinelli (2015, p. 32- 33) transcreve o que é a a/r/tografia, citando os

autores IRWIN e BRITZMAN:

“... uma metodologia que se desdobra da PBA e que incorpora o método cartográfico para

tratar de um conhecimento situado, parcial e corporificado, procedendo de modo rizomát ico

para criar circunstâncias e produzir novos conhecimentos, significados, sentidos e

visualidades. A palavra A/R/Tography ou A/R/Tografia é uma metáfora para A= art ist

(artista), R= researcher (pesquisador), T= teacher (professor) e graphy | grafia=

escrita/apresentação. Trata-se de uma metodologia comprometida com a "criação de

circunstâncias que produzam conhecimento e compreensão através de processos artísticos."

(IRWIN, 2013, p. 144). Circunstâncias que possam dar passagem para as coisas que vibram

nos entre-lugares, nas brechas e margens; situações, encontros e acontecimentos com algum

coeficiente art ístico que possa ser intensificado; pequenos blocos espaço -temporais

engajados com a resignificação do presente. Para a a/r/tografia a teoria está viva n a

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experiência praticada no dia a dia, nos valores, crenças e convicções que se afirmam na

prática diária. Sendo o a/r/tógrafo alguém que, com a consciência de um conhecimento

encarnado, teoriza sobre a própria experiência e se compromete com a p rópria capacidade

reflexiva para então ser um(a) autor(a) dessa experiência (BRITZMAN, 2003, p. 64 -65).”

(PARPINELLI, 2015, p. 32- 33)

A ciência tradicional ocultou as mulheres, negando seus históricos. A eclosão dos

feminismos e seus desenvolvimentos, a partir de 1970, fez emergir a necessidade de construção de

uma memória sobre esses movimentos, acontecimentos e sujeitos que marcaram o surgimento

feminista e, principalmente, como as mulheres têm transformado o mundo e transformado si

mesmas. Margareth Rago (2011) traz, em seu livro a Aventura de Contar-se: escrita de si e

invenções da subjetividade, um relevante fato político e historiográfico, por tonar a público a

reconstrução da trajetória de luta das mulheres brasileiras nas quatro últimas décadas, agregando um

importante legado à historiografia feminista.

Rago (2011, p.4), em seu artigo A aventura de contar-se: Foucault e a escrita de si de Ivone

Gebara, ainda afirma que:

“À primeira v ista, poderia parecer paradoxal dar destaque a uma autobiografia, discurso

que privilegia o próprio eu como objeto de reflexão, ao mesmo tempo escrita por uma

militante feminista, voltada para as questões sociais e para a luta contra a violência de

gênero. Contudo, nessa perspectiva de análise, está em jogo desfazer as barreiras

estabelecidas pelo pensamento binário entre privado e público, pessoal e coletivo, razão e

emoção, o eu e o outro, subjetividade e polít ica, acenando para outras possibilidades de

compreensão das múlt iplas dimensões das práticas individuais e culturais”. (RAGO, 2011,

p. 4)

Margareth Rago (2011, p. 4) também conclui que:

“A escrita autobiográfica, nesse sentido, assume a forma de uma tecnologia femin ista de si,

que visa tanto a elaboração do próprio eu, escapando dos dispositivos biopolíticos de

produção das individualidades, recusando a normativ idade insistentemente imposta sobre

nossos corpos, quanto a construção de uma nova relação com o outro, já que narrar a

própria vida é também uma forma de abrir-se a um outro, ao contrário do que ocorreria com

o diário íntimo”. (RAGO, op. cit.)

Nesse sentido, tendo como território criativo as minhas sensações, experiências e afetações,

encontrei na a/r/tografia de si um método para colecionar afetações, que abrem espaços para novas

significações e sentidos para (re)contar-me.

Eu não cogito aqui, neste ensaio, apenas um mero encontro comigo mesma pela escrita ou

efetuar um reconhecimento por um trabalho de memorização e exame do passado. Não se trata de

um relato confessional, não busco purificar-me diante do olhar de um outro, de um julgamento

social. Não estou aqui para reiterar discursos normalizadores que ligam o “eu” à própria identidade.

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Abuso desta tecnologia para elaborar e constituir minha própria subjetividade, a experimento com

liberdade e não com sujeição. Não estou aqui para afirmar nada sobre mim, mas justamente o

oposto, estou arriscando demonstrar transformações de um trabalho de construção subjetiva na

experiência da escrita em que se abre a possibilidade do devir, de ser outro do que se é.

O que busco no meu texto, portanto, é ir muito além de um individualismo exacerbado e

autocentrado, o que busco é cuidar de mim mesma enquanto nesse movimento de voltar-se para

minha própria obra, essa resultante das minhas dores e prazeres, da experiência com o meu corpo,

um corpo de mulher cis, branca, da classe trabalhadora e artvista que ocupa espaços de vazios,

memórias de encontros e resistências.

Como diz Roberta Stubs Parpinelli, “cuidar de si mesma e escrever-se sob outro enredo diz,

portanto, de um gesto político que convoca a liberdade enquanto prática de si e aponta horizontes

para outras artes de viver.” ( PARPINELLI, 2015, p.91)

Self

Self é como intitulo uma coleção de composições de imagens, que começaram a ser criadas

no início de 2015 e ainda sem previsão de fechar o ciclo. Tem como técnicas: selfies (fotografia de

si), impressão, grafite, guache, nanquim, recortes, fotomontagem e bordado. É ela que escolho na

aventura de contar-me e (re)contar-me através de expressões visuais distintas. No decorrer da leitura

das peças, é possível visualizar um caminho percorrido deste corpo feminino e de como ele se

internaliza e externaliza ao mundo. É possível visualizar temas como aborto, sonhos, solidão,

afogamentos, gritos, prisão, ancestralidade, sexualidade, paixão, amores pelo outro e por si mesma.

O entrar e o sair da luz e escuridão que imerge de si.

A coleção foi exposta no evento Uma década de Lei Maria da Penha: percursos, práticas e

desafios, organizado pelo NUMAPE – UEM2, coordenado pela Proª Drª Isadora Vier Machado e

inserido no I Congresso Internacional do Núcleo de Estudos de Gênero e Direito (NEG) e do

Núcleo de Política Criminal (NUPOC), realizado entre os dias 01 e 03 de agosto de 2016, em

Maringá- PR. A exposição ficou no rall do auditório da Sede da Ordem dos Advogados de

Maringá onde aconteceram as palestras.

2 Projeto de Extensão sobre a Lei Maria da Penha destinado a prestar assistência jurídica gratuita a mulheres em

situação de violência. Para saber da programação completa do evento acesse: <

http://leimariadapenha.wixsite.com/10anoslmp>. 2016.

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Dividi espaço com quadros notórios, para não usar outros adjetivos, com fotos e bons

sobrenomes das pessoas que presidiram a OAB, em sua maioria quase absoluta, como era de se

esperar, homens. Apesar do espaço não ser receptivo, não me era um espaço estranho. Às vezes,

possuímos adjetivos que nos acompanharam pelo resto de nossas vidas, por mais que os sentidos

mudem., como já mencionado sou bacharel em direito, mas também é importante frisar que agi

como ativista feminista durante todo meu período de graduação. Os corredores do D34 ( Bloco de

direito na UEM - Universidade Estadual de Maringá) também nunca me foram receptivos.

Para montar a exposição apesar do rall oferecer um bom espaço, a melhor parede estava

reservada para os quadros dos então tão estimados Presidentes, não podia movê- los ou

simplesmente tocá- los. Eram intocáveis. Também não podia deixar vestígios de que algo passou por

ali. Ainda assim, as exposições resistiram, preenchendo vazios num espaço historicamente

dominado por homens.

Eu estive presente durante todo o evento. Brinquei com a possibilidade de ser uma “voyeur”

do meu próprio trabalho, assistir o que ele provocou. Às vezes, também fui “atriz”, quis entrar no

ato de observar junto a outros como se eu não o conhecesse, como se eu fosse outra além da

criadora.

Self é uma coleção muito íntima e reveladora. Me sentia nua diante de tantos olhares e

ameaçada pelo olhar da atriz, uma vez que me distanciava de minhas inspirações. As imagens

contam uma história, retratam um caminho da busca interior através de um processo espontâneo de

reorganização do inconsciente por experimentações estéticas e de técnicas expressivas distintas.

Uma criação instintiva que otimizou apaziguar tumultos emocionais e reinvenções dos Eu’s.

Por que Self? A intitulei com esse nome a fim de brincar com a denominação dada às fotos

de si mesma e com o conceito junguiano deste arquétipo. Segundo o Jung (2009), o self é o

arquétipo da ordem e totalidade, abrangendo o consciente e o inconsciente e que, embora polares,

não representam opostos ou conceitos binários, mas sim uma relação de complementaridade. O self

é um mediador e gestor dos recursos e conteúdos pessoais. O conceito de si mesmo é, na verdade,

potencialmente empírico em parte e por isso, um postulado, na mesma proporção. Ele engloba o

experimentável, o não experimentável e o ainda não experimentado. Essas qualidades ele tem em

comum com muitos conceitos das ciências naturais que são mais nomina is do que ideias. Na medida

em que a totalidade que se compõe tanto de conteúdos conscientes quanto de conteúdos

inconscientes for um postulado, seu conceito é transcendente, porque pressupõe, com base na

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experiência, a existência de fatores inconscientes e caracteriza, assim, uma entidade que só pode ser

descrita em parte e que de outra parte continua irreconhecível e indimensionável.

Dos caminhos e percalços de criar-se poeticamente

Quando comecei essa jornada, não sabia onde o

caminho me levaria, só levava comigo um pensamento,

como diria Fernando de Pessoa em um de seus

heterônominos: “Não há estrada senão na sensação / É

só através de nós que caminhamos... Quantos cabemos

dentro em nós? /Ir é ser. Não parar é ter razão.”

(PESSOA,1990, p -). E foi com está reflexão que segui

no meio de tempestades e dores agudas, com o mundo

de ponta cabeça, entre o céu e as águas.

Abro a coleção com a obra que anuncia que o

que vem a seguir é como enxergo o meu mundo. A

minha relação com as águas, seja em nuvens, mares,

rios, lágrimas, suor. A água como aquela que sacia a

sede e fonte primeira da vida.

Que possui mais de um estado corpóreo, que incita sobre ciclos, sobre mistérios, opacidades

e transparências. Começo com a vida, começo olhando para os caminhos percorridos no meu

interior e ao mundo que me circula.

Em seguida, apresento as imagens em sua ordem cronológica, assim como surgiram dentro

do processo criativo. O primeiro ato foi de dor. Surgiu de uma separação e de uma dúvida sobre

uma possível gestação: Abortei.

TRAJANO, C. 2016. Meu mundo. Técnicas :

desenho, fotomontagem. Bordado.

Imagem sem bordado.

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“Abortei a missão

Abortei tuas promessas

As juras de amor em vão.

Abortei o Nós,

a pequena sonhada nós

já desatei os nós.

Submersa nos chás de canela,

não sei mais se a assombração sou eu ou se é ela.

E peço perdão...

Perdão pela dúvida,

que paira sobre esta condição.

Há vazio no lugar do coração.

Há ecos de gritos de dor pungente no lugar do meu ventre.

Há tempos virei especialista em parir lágrimas.

Mas agora devo apreender para mim mesma parir o perdão.

Quem sabe assim,

invés de abortar a missão

eu venha a parir um Eu, sem TU, sem a com[fusão] do Nós.”

(TRAJANO, 2015)

Depois da dor, surge o grito, a vontade de falar,

mas, ao mesmo tempo, o sentimento de aprisionamento.

Percebo então como Clarice

Lispector transcreve em Água Viva que

"só no ato do amor – pela límpida

abstração de estrela do que se sente –

capta-se a incógnita do instante que é

duramente cristalina e vibrante no ar e a

vida é esse instante incontável, maior

que o acontecimento em si."

(LISPECTOR, 2012, p. -)

É um grito de silêncio, são as sombras e luzes surgindo, emergindo, de dentro para fora,

formando bolhas de ar, como quem diz que, apesar do afogamento, há ainda muito ar para respirar.

A vida é maior que o acontecimento em si.

TRAJANO, C. 2015. Dor. Técnica: Grafite e

guache sobre sulfite

TRAJANO, C. 2016 . Agua Viva. Técnicas: Fotografia pintada com guache,

recorte, fotomontagem, nanquim e bordado.

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Então me acalmo, me recolho.

O sono se fez meu refugio, pois há tempos em que acordava, via tudo nublado e por dentro

de mim passava um vendaval, tsunamis ... então eu

voltava a dormir.

Logo o sol se ia, anoitecia, e eu me forçava a

adormecer para a(dor)mecer os sentidos. Indo de

encontro com o sonho, com as fantasias, com o embalar

de uma rede, entre idas e vindas suaves que acalentam

uma criança, que pede colo e aconchego, mas no meu

caso em segredo. Torcendo para uma estrela cadente

atender minhas preces e, no outro dia, voltar a ver

sentido em sorrir. Deitando com Morfeu em sonhos,

reconheço que:

“Me movimento rastejando sobre a terra, como o ato de se sujar fosse ligado ao de

descobrir, do aprender pelo se construir. Ser lagarta , Ser potencial. Minha irmã Psique, a

personificação da alma, pergunta me quem esta aí dentro?

E lhe respondo há muito sou Crisálida, entrei num encapsular para gestar me. Num

constante conectar com meus sentimentos e desejos, entre os sonos profundos pelo grande

chamado dos bocejos. Hipnos , como quem queira abençoar a uma união me convidou a

me deitar toda noite com Morfeu. Após os primeiros cortejos assim que as constelações se

fazem enxergar, no deitar-se sobre o céu, entregando-se a essa transa , esta lá eu e Morfeu.

Gerando novos sonhos, e aguardando o apogeu do despertar do EU. Crisálida estou , se

limpando da fase do amou. Crisálida estou, sou agora e vou ... Vou ao vôo, rumo á Futura

aurora.” (TRAJANO, 2015)

E é, passo a passo, depois de sair do casulo, que comecei a dar espaços para o despertar.

Depois do sonho, do refúgio, fui ao mundo. Afinal “... a esperança equilibrista / Sabe que o show

de todo artista / Tem que continuar.” (BOSCO & BLANC, 1978). Que se passem as fases da lua, as

tempestades e o abismos, sem pressa ou destino, apenas rumo a terra firme.

TRAJANO, C. 2016. Anoitecer adormercer a[dor]mecer.. Técnicas: fotografia pintada com guache, recorte, fotomontagem, nanquim e biscuit.

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Ao despertar, minha sexualidade, vem em erupção, ela viaja a outros planetas, busca

ancestralidades, se lembra do martelo das feiticeiras3, brinca com o fogo e com a terra, com os

contos dos livros na estante, com rostos e corpos desconhecidos, com reflexos e cortinas e convida

a uma leitura em braile.

“...Uma mente agitada pousa sobre um corpo inquieto

Onde deseja prolongar sua leitura em braile

Uma leitura que vibra ,

que geme, que sente

Uma v isita no país do estrangeiro

Onde a língua oficial é o peito

Entre os peitos , dentro do peito

Pulsações e suas codificações

Gesticulações e aproximações

Uma leitura que vibra,

que geme, que sente

De uma mente para outra mente

Sem mentir ou invadir

Um texto , um romance

Cujas anotações são lascivas

Sugestivas e sem economias de salivas

Uma leitura que vibra,

que geme, que sente

que quer que entre

que fique bem rente

entre o ventre

mes mo que vente

entre! Sente? Geme

Entre o ventre

Se for para ler-me

Leia me enquanto eu estiver quente.” (TRAJANO, 2014)

3 O Martelo das Feiticeiras' (Malleus Maleficarum) é um dos livros mais importantes da cultura ocidental, tanto para os

leitores que se interessam pela história quanto para aqueles que estudam a história do pensamento e das leis.. O Martelo

das Feiticeiras' (Malleus Maleficarum) é um dos livros mais importantes da cultura ocidental, Uma das consequências,

apontadas pelos especialistas, foi tornar dóceis e submissos os corpos das mulheres posteriormente.

TRAJANO, C. 2016. Caminho ... A esperança equilibrista /Sabe que o show de todo artista /Tem que continuar. Técnicas:

fotografia pintada com guache, recorte, fotomontagem, nanquim e bordado.

TRAJANO, C. 2016. Feitiço. Técnicas: fotografia pintada com guache, recorte, fotomontagem, nanquim e bordado.

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Depois de muita dor, descubro que posso amar novamente e amo com todas as forças

possíveis. A princípio, só conhecia as dúvidas e nada mudou nesse sentido.

“...Não sei se sou um cafuné. Não sei se posso te preparar um café. Não sei defin ir amor, só

sei permit ir que seja, o que ele simples mente é. Não sei nada nessa vida ao certo,

desconheço o entendimento completo. ...Conheço essa tortura implacável do silêncio após

uma confissão. Da incabível prisão, do limite de se doar improvável. Mas pouco sei de

medida, seja um d ia a cada dia ...” (TRAJANO, 2015.)

Afinal, onde mora o seu amor?

Reconheço que sempre estive de peito aberto ao outro, à figura masculina de afeição

romântica, ao coletivo que se instaura, às figuras de amizade e familiaridade, aos desemparados,

aos que pedem socorro e pouco dei amor e afeição a mim mesma. Até aqui, esse processo criativo

tem me provocado o contato direto com as minhas sombras, luzes, faces e fases.

Penso que, apesar da crescente vontade de rebaixamento, nivelamento e militarização da

vida humana, agenciada em escala planetária, as resistências se multiplicam e criam à fórceps

novas formas de subjetivação, de composição, de agir e de pensar em comum. Há uma forma

(possibilidade) coletiva em andamento com o intuito de nomear as lutas inauditas e informes que o

presente contexto suscita. Dada a urgência desta resistência, entre o esgotamento e o devir da vida,

TRAJANO, C. 2016. FLORESCENDO. Técnicas: fotografia pintada com guache, recorte, fotomontagem de

desenho original em tamanho A4, nanquim, impressão em A3, bordado com barbante.

Page 11: A/R/TOGRAFIAS DE SI: CAMINHOS E PERCALÇOS DA … · Margareth Rago (2011, p. 4) também conclui que: “A escrita autobiográfica, nesse sentido, assume a forma de uma tecnologia

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Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

é preciso carregar-se do pólen de "novos" valores e afetos e semear "novas" maneiras de relacionar-

se com as crises do mundo e com as crises do íntimo. Foi um tempo de plantar uma nova

subjetividade performática e, agora, é hora de florir.

Referências

BOSCO, João Bosco; BLANC, Aldir. O Bêbado e a Equilibrista.1978.

DIAS, Belidson. Preliminares: A/r/tografia como Metodologia e Pedagogia em Artes. DIAS,

Belidson e IRWIN, Rita. Pesquisa educacional Baseada em Arte: A/r/tografia. Santa Maria: UFSM,

p. 21-26, 2013.

JUNG, Carl Gustav. Tipos psicológicos. Petrópolis: Vozes, 2009.

LISPECTOR, Clarice. Água Viva : Relógio D’Água, Lisboa, 2012.

PARPINELLI, S. Roberta. A/r/tografia de um corpo-experiência: arte contemporânea, feminismos

e produção de subjetividade. 2015. 276 f. Tese (Doutorado em Psicologia). – Faculdade de Ciências

e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis-SP, 2015.

PESSOA, Fernando. Qualquer caminho leva a toda a parte. Em : Pessoa por Conhecer - Textos

para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990. 95p.

RAGO, Margareth. A AVENTURA DE CONTAR-SE: feminismos, escrita de si e invenções da

subjetividade. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2013. 341p.

RAGO, Margareth. A aventura de contar-se: Foucault e a escrita de si de Ivone Gebara .Termo In:

Michel Foucault : sexualidade, corpo e direito / Luiz Antônio Francisco de Souza, Thiago Teixeira

Sabatine e Boris Ribeiro de Magalhães, organizadores. – Marília. : Oficina Universitária; São

Paulo: Cultura Acadêmica, 2011. iv, 218 p.

TRAJANO, Caroliny Cristiny. Coleção de poesias. 2014-2016. Disponível em: <

http://minhavisaominhaarte.blogspot.com.br/ >. Acesso em: mar. 2017.

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A /R /Self-engraving: Paths and pitfalls of creating poetically through Self

Astract: Assuming that “there is no road if not into sensation and that is only through ourselves that

we walk” I adventured into the artistic journey aiming to create myself and [re] create myself,

telling and re-telling myself through different poetic expressions.

Considering methodological movements as A/R/Self-engraving of oneself, I attempt to bring the

image, the word, the body and its symbolisms into a hybrid, composite dance, which offers me, as a

researcher, unending processes of questioning, reflecting and accomplishing.

I believe it is necessary to penetrate the fissure of rationalist conception of art itself and to

understand that aesthetics are instruments that converse with the body that produces it. In that sense,

I reiterate that the productive hand is animated - is the hand that operates, sensible and intelligent

hand; is the body that learns, speaks and feels.

The process A/R/Self-engraving generated an instinctive creative process that optimized the

appeasement of emotional turmoil and the reinvention of the “I” (“Self”) allowing artistic

experimentation to provoke contact with my own shadows, lights, faces and phases, experienced

though the female body. In this way, I reveal myself to the world accordingly to my theoretical,

political and experiential accumulation from feminist readings, dancing distinct symphonies with

steps that led to the entrance of the light and darkness that immerses from me and reflecting that “to

go is to be”. This dance of great encounters allowed me to plant new performative subjective. It is

time to bloom.

Keywords : A/r/grafic; Self; Creating