«AS ALMAS HERDEIRAS». Fundação de capelas fúnebres e ... · do primeiro século XVI, desde que...
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MARIA DE LURDES PEREIRA ROSA
AS ALMAS HERDEIRAS.Fundao de capelas fnebres e afirmao da alma
como sujeito de direito (Portugal, 1400-1521)
Tese de Doutoramento em Histria Medieval apresentada cole des Hautes tudes en Sciences Sociales, Paris,
e Faculdade de Cincias Sociais e Humanas daUniversidade Nova de Lisboa
LISBOA2005
Ao Z e Carminho
A minhas irms e irmos
Em memria do Professor Pe. Antnio Domingues de Sousa Costa,OFM
Posible, pero no interesante respondi Lnrot. Ustedreplicar que la realidad no tiene la menor obligacinde ser interessante. Yo le replicar que la realidadpuede prescindir de esa obligacin, pero no lashiptesis.
Jorge Lus Borges, La muerte y la brjula, p. 149,Ficciones, 4 ed., Madrid, Alianza Ed., 1993
No vazes tantas vezes vozes rente ao ventoe no escutes os pssaros nem mesmo o marno oias sequer o vento se soprarouve o tempo passar escuta a sua vozpois o tempo tem voz o tempo fala
Ruy Belo, Um dia uma vida, in Todos os poemas, p.547,Lisboa, Assrio & Alvim, 2000 (de: Toda a Terra)
NDICE
Introduo................................................................................................................................. 1
Cap. I- As almas herdeiras: tpicos para uma anlise, em torno de duas narrativas...... 9
Cap. II Fit et facit ad vitam et salutem animam: a construo teolgica e canonsticada propriedade das almas..................................................................................22
1. A constituio do direito das pias causas no Baixo Imprio...............................26
2. O Decreto de Graciano e coleces legislativas anexas .........................................30
3. Transformaes tardo-medievais............................................................................32
4. As almas dos reis mortos contra os reis vivos: as respostas de um outroDireito......................................................................................................................67
Cap. III A majestade e a misericrdia: a construo do papel do rei na salvao dasalmas (das leis jacobinas reforma manuelina)..........................................................109
1. D. Joo I e Prncipes de Avis (entre teorizao da interveno rgia e resistnciaeclesistica)...........................................................................................................111
2. D. Afonso V (a consolidao da interveno rgia).............................................136
3. D. Joo II e D. Manuel (a concluso da reforma).................................................151
4. Um estudo de caso: o tribunal rgio e a capacidade sucessria das almas emglria (1472- c.1542)...........................................................................................202
Cap. IV As capelas de leigos na Lisboa tardo-medieval: enquadramentos devocionais e
caractersticas do processo de instituio das almas herdeiras....................................238
1. A fundao de capelas na capital do reino, 1400-1521.........................................238
1. Fontes .......................................................................................................2382. Tempo, espao e homens...........................................................................2483. Um projecto de vida..................................................................................2694. Em torno do perfil dos fundadores............................................................2845. Contextos devocionais...............................................................................300
a) Devoo culta e piedade interiorizada...........................................3001. Afirmar-se como devoto..........................................................300
2. Confessores e pais espirituais...............................................3043. Pertena a irmandades de leigos .............................................3084. Pertena a movimentos confraternais......................................3115. Cultura litrgica e doutrinal.....................................................315
b) A privatizao da religio..............................................................3441. A posse e o uso de livros de horas...........................................3492. As doaes de livros litrgicos e devocionais.........................3723. Ambientes e objectos...............................................................383
2. Espiritualizar o corpo : o funeral e o ciclo comemorativo anual..........................4001. O funeral....................................................................................................4072. O ciclo anual..............................................................................................422
3. Corporizar a alma: a constituio da capela em instituio................................ 4261. Uma instituio com caractersticas especiais...........................................426
a) A vontade do fundador como lei interna....................................428b) Uma reproduo institucional especfica: a capela ancorada em
estruturas sociais informais...........................................................440c) Uma instituio baseada em imperativos religiosos e ticos.........460d) Uma instituio funcionando para o sobrenatural.........................474
2. A casa material da alma.........................................................................4833. A capela e a comunidade...........................................................................509
Concluso...............................................................................................................................527
Apndice de quadros e grficos...........................................................................................532
ndice do Apndice de Quadros e Grficos........................................................................533
Apndice documental............................................................................................................632
Fontes.....................................................................................................................................636
Bibliografia............................................................................................................................647
Siglas.......................................................................................................................................708
Agradecimentos.....................................................................................................................710
1
INTRODUO
Nas disposies relativas instituio de capelas fnebres contidas na lei de 7 de
Setembro de 1769, o Marqus de Pombal, pela boca do rgio legislador, apresentava,
como principal razo para as medidas tomadas, a necessidade de evitar uma catstrofe
iminente: se chegar ao caso de serem as almas do outro Mundo senhoras de todos os
Predios destes Reinos1. Inserida num documento trespassado por uma impacincia
flagrante contra a irracionalidade de um mundo que se procura iluminadamente
organizar, a expresso situa-se na fronteira da ironia com a descrena. E, no entanto, por
mais absurda que a sentisse, e exprimisse, o Marqus de Pombal sabia estar a referir-se
a uma realidade bem real. As almas eram senhoras, isto , proprietrias de pleno
direito, de bens terrenos, vastas parcelas do reino do Senhor D. Jos... O legislador
iluminado situava-se ainda no limiar de um mundo regido pela lgica que colocava,
com toda a naturalidade, as almas dos mortos a par dos vivos, com eles comungando
direitos e privilgios jurdicos. Ou seja, num sistema como o que ele procurava destruir,
a instituio das capelas fnebres tinha limpidamente aquela funo. Por detrs de cada
uma delas, estava um proprietrio do Outro-Mundo, a que aquele instituto possibilitava
continuar, neste mundo, a deter bens e direitos. Assim, ainda que formulado com ironia,
o diagnstico era certeiro, e apenas por via legislativa, ao nvel supremo, era possvel
alterar, com a legalidade que se impunha, uma situao de iure.
Sebastio Jos saberia ainda, com toda a probabilidade, que a sua lei era mais
uma na longa coleco de actos rgios que tinham tentado interferir nas duas esferas
legais em que se moviam as capelas: as vinculaes e as disposies pro anima. Desde
o sculo XIII que os reis de Portugal, semelhana dos outros soberanos europeus,
legislavam sobre o tema. certo, porm, que a legislao de Pombal marcou uma
viragem decisiva: no se inseria j na aceitao do planeta scio-legal onde as capelas
tinham lugar natural, e onde ao legislador rgio cabia apenas a funo de evitar abusos
aceitando que a natureza do instituto envolvia uma outra esfera legislativa, a cannica,
dotada de autoridade sobrenatural (o que no se discutia), e com a qual se construa uma
convivncia caso a caso. Antes, fazia tbua rasa dessa realidade e afirmava o poder
supremo do soberano iluminado para acabar com os vestgios de um passado que, se se
1 Lei de 7 de Setembro de 1769, 12 (p. 9), in Colleco de leis, decretos e alvars que comprehende ofeliz reinado dEl Rei Fidelissimo D. Jos desde o anno de 1766 athe o de 1770, vol. II, Lisboa, Off. deMiguel Rodrigues, 1770. O estudo mais recente e completo sobre esta lei, e a legislao pombalina afim,
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apresentava como irracional e desorganizado, devia tal, precisamente, ao poder que
nele tinha o sobrenatural. Ou seja, o ambiente perfeito das almas do Outro-Mundo,
entendidas e queridas como um parceiro em tudo semelhante aos homens de carne e
osso deste... A legislao pombalina , assim, o incio em grande do processo de
dissoluo de uma realidade cuja compreenso se tornou progressivamente mais difcil
porque a natureza profunda deste processo foi a de, aos poucos, mas sem recuos,
tornar o sobrenatural uma realidade irracional...
Devolver a racionalidade ao mundo das capelas pr-absolutista e pr-liberal na
sua fase tardo-medieval-, e explicar a lgica do seu funcionamento: eis os objectivos
deste trabalho.
Se comeou por ser a parte inicial de um primeiro projecto visando construir uma
sntese sobre a religiosidade dos leigos, no Portugal da Baixa Idade Mdia, o interesse
e a vastido do tema acabaram por conduzir sua explorao exclusiva. Para tal
contriburam, ainda, dois outros factores. Em primeiro lugar, a constatao que existia
um campo de estudos quase oculto, ou mesmo j perdido, votado ao desinteresse pela
voga das abordagens sociolgicas: a dimenso legal das capelas, afinal aquilo que
mais certeiramente com conhecimento vivencial criticava o Marqus de Pombal.
Uma legalidade porm especfica, prpria do mundo antigo e medieval. A explorao
deste campo de estudos, e a deciso de localizar e analisar as fontes histricas que ele
sugeria e implicava, veio provocar um primeiro grande alargamento do enfoque
primitivo. O segundo foi causado pela constatao de que, atravs das capelas, era
tambm possvel alcanar o mundo devocional, e de que, sem o seu enquadramento,
elas simplesmente no tm explicao.
Vejamos agora como se articula o nosso trabalho. No captulo I procuraremos,
atravs da narrao explicativa de duas histrias de fundao de capelas fnebres,
colocar a problemtica a que o resto do trabalho quer responder, de forma mais
analtica. A ideia que presidiu a estes relatos foi a de tentar reconstituir esta especfica
prtica fundadora de uma forma complexa e integrada, referindo ainda os principais
problemas que ela coloca ao historiador. A virtude da abordagem narrativa parece-nos
na perspectiva que nos interessa, encontra-se em Ana Cristina Arajo, A morte em Lisboa. Atitudes erepresentaes 1700-1830, pp. 273-280, Lisboa, Ed. Notcias, 1997.
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ser a de permitir expor a problemtica analtica sem operar um distanciamento ainda
maior em relao s fontes, afinal apenas vestgios de uma realidade longnqua,
encoberta e infinitamente mais rica do que aquilo que chegou at ns. A voz do
passado, reabilitada por algumas correntes da historiografia contempornea, muito para
alm da velha perspectiva romntica, chega-nos talvez mais conforme complexidade
do real, se escutarmos com a ateno do colector de histrias, tentando reconstruir a sua
mensagem, antes de a comear a analisar friamente, com as categorias do historiador
profissional.
Assim, sob a epgrafe da espiritualizao dos corpos , procuraremos explicar
como, atravs da fundao de uma capela fnebre, se constri sobre o corpo fsico
do fundador uma outra realidade tambm corprea, mas desta vez um corpo formal,
institucional, ou ainda, num certo sentido, como veremos, ficcional. A histria que nos
servir de fio condutor a da fundao de Pedro Eanes Lobato, cidado de Lisboa que,
julgando-se perto da morte no ano de 1438, prepara cuidadosamente a vida futura que o
espera.
Um outro fundador, Gonalo Loureno de Gomide, lega posteridade, em transe
semelhante, desta vez no ano de 1410, uma rica reflexo sobre o enquadramento
material que prev dar, aps a sua morte, parte espiritual do seu ser. Jogando com a
ideia das duas moradas do homem, a espiritual e a temporal, este alto funcionrio
rgio elabora um discurso onde se vislumbra claramente toda a complementaridade que
estas duas realidades revestiam, para o homem medieval. Ele permite-nos pr o
problema da funo dos bens materiais e daquilo a que hoje chamaramos recursos
humanos , desta pequena empresa criada para levar a alma ao Cu : o que
tentaremos na 2 parte deste texto, intitulada a corporalidade das almas .
Todas as questes evocadas deste modo sero depois desenvolvidas analiticamente
no resto do trabalho. Assim, no captulo II, procuraremos explicitar os fundamentos
cannicos e teolgicos da propriedade das almas, a partir da reflexo teolgico-
jurdica que a Igreja construiu sobre o tema, e da forma como depois ela foi
recepcionada pelos leigos. Nesta parte interessa-nos visualizar o problema a partir de
dentro: crucial perceber-se a argumentao relativa s funes das heranas por
alma, e propriedade eclesistica em geral, bem como as formas de que revestiu a
reclamao dos direitos (da batalha jurdica manipulao da emoo e da tradio,
revelando a grande maleabilidade institucional que permitiu Igreja a sua plurissecular
4
hegemonia). Tentaremos apresentar uma sntese sobre a histria da constituio das
piae causae, na evoluo da propriedade da Igreja, a partir dos trabalhos existentes.
Trataremos depois em particular das capelas, espcie daquele gnero global, com
problemticas especficas que vinham sobretudo da sua grande insero na esfera
laical. A base emprica ser a normativa cannica, e as obras dos seus principais
comentadores, no campo das pias causas. Ser dada natural enfse a algumas obras da
literatura jurdica ibrica dos sculos XIV-XV (complementadas com obras idnticas
do primeiro sculo XVI, desde que tal se revele pertinente). Tentar-se- nunca perder de
vista os fundamentos teolgicos da construo jurdica, de modo a enquadrar todo o
tema dentro da proposta metodolgica de Paolo Grossi, a concepo da Igreja como um
planeta jurdico de base religiosa.
Terminaremos este captulo com uma abordagem preliminar, construda a partir de
dois estudos de caso, do que definimos acima como segunda forma de reclamao dos
direitos, por parte da Igreja: o recurso manipulao da emoo e da tradio. Tendo
em vista a defesa dos interesses eclesisticos perante a Coroa precisamente em matria
de bens da igreja, dois dos mais importantes santurios rgios do sculo XV, Santa
Cruz de Coimbra e Santa Maria da Oliveira, vo desenvolver narrativas de milagres
envolvendo o castigo dos oficiais rgios e dos prprios reis narrativas em que o papel
de justiceiro divino assumido por reis bons, j mortos. No caso mais tardio, resta-
nos mesmo o testemunho de uma invocao pblica da narrativa sacra dos poderes do
Santurio, sob a forma de arenga feita aos funcionrios encarregues de executar os
bens daquele que nos permite avaliar do impacto emocional que tinham estas armas
sacrais. importante salientar, porm, que mais do que o interesse de cada um, estes
estudos de caso se referem sempre ao problema central da tese: os diferentes caminhos
da reificao das almas, trilhados de forma diversa pelos dois poderes oficialmente
legais da sociedade medieval: a Igreja e a Coroa.
Estudada a relao entre as almas e a Igreja, passaremos, no captulo III, ao
estudo do relacionamento daquelas com o outro grande poder medieval, a Coroa. Os
bens dos pia corpora pertenciam s almas e o seu objectivo dependia da vontade
dos defuntos. Almas e defuntos: dois, ou o mesmo, grande ausente, presente porm
atravs de um extraordinrio poder sobre os vivos, e cuja representao, na vida
terrestre, foi fortemente disputada pelos poderes. J no direito romano, o respeito pela
vontade dos defuntos constitua um dos pilares da ordem poltica e social; a decadncia
5
do poder civil arrastara para a esfera eclesistica este dever para com os mortos, afinal
enorme poder sobre os vivos. Na poca medieval, a constituio dos Estados acendeu a
rivalidade, aqui como em tantos outros campos. A propriedade que a Igreja acumulara
ao longo dos sculos, a partir do seu papel de dispensadora de salvao, bem como a
proeminncia generalizada que assim adquirira, eram demasiado fortes para o poder
rgio.
importante explicitar aqui a inexistncia de qualquer paralelo entre a aco da
Coroa portuguesa tardo-medieval e a ofensiva do Estado liberal sobre a propriedade
eclesistica, no processo de desmantelamento do Antigo Regime. De facto, o modelo
deste processo histrico demasiadas vezes projectado sobre a Baixa Idade Mdia,
impossibilitando a correcta percepo da posio da Coroa. A salvao da alma, prpria
e dos sbditos, eram uma real preocupao do Rei, integrada com o papel de
centralizao da ordem pblica que pretende assumir, e que se traduz tambm na
reforma da Igreja. Se tal passa muito claramente pela drstica limitao da posse de
bens Igreja, no pela descrena do papel desta na salvao das almas, atravs da
intercesso ritual. A afirmao do domnio rgio sobre os bens temporais do seu reino
colidiu com o facto de, depois de sculos de doutrina e prtica neste sentido, boa parte
daqueles bens estarem afectos a fins espirituais; e com a realidade de ser a
monopolizao dos cuidados com estes fins, por seu lado, que alimentava a fora do
poder eclesistico. As lutas pela hegemonia foram portanto inevitveis, e no podem
ser escamoteadas. Mas a Coroa no se poderia nunca afirmar atravs de mecanismos
estranhos ao horizonte mental da poca, sendo reais as balizas impostas por conceitos
como a libertas ecclesiae ou por armas menos tericas mas talvez at mais actuantes,
como as que resultavam de um mau relacionamento prolongado com o clero. Por outro
lado, a racionalidade do Estado contemporneo era algo alheio aos reinos medievais. O
sistema que a Coroa portuguesa da Baixa Idade Mdia montou para fiscalizar e regular
os corpos pios no foi um sistema rentvel, para utilizar um conceito que perpassa
por muitos estudos sobre o tema, em especial os que defendem a modernizao da
assistncia medieval (apesar do anacronismo que ele representa, quanto s intenes
dos agentes). Esto a demonstr-lo a histria das instituies pias na poca Moderna,
bem como a catica situao a que se chega, em meados do sculo XVIII, e a que a
prpria Igreja tenta obviar. O objectivo tardo-medieval foi o de gerir, dentro de um
sistema de redistribuio e sempre em negociao com o poder eclesistico,
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propriedades e pessoas fortemente condicionadas por barreira de natureza religiosa, mas
que o rei aceitava e por sua vez tambm implementava.
Procuraremos reconstituir esta complexa rivalidade complementar atravs do
estudo de dois aspectos. Em primeiro lugar, faremos um percurso estrutural sobre a
aco legislativa e poltica rgia quanto aos bens das almas e vontade dos
defuntos. Procuraremos demonstrar como, do reinado de D. Joo I ao de D. Manuel, a
Coroa foi progressivamente ganhando p neste campo, por duas vias pouco estudadas: a
negociao e a assuno do carcter religioso da funo rgia. Ao mesmo tempo,
veremos como a aco da monarquia, pela via legislativa e institucional, resulta na
consagrao definitiva das almas como mais um corpo de sbditos, com a sua
normatividade prpria, com o qual a Coroa instaura mecanismos de relacionamento.
Esta parte terminar com o estudo do mais emblemtico de todos eles, o Juzo das
Capelas de Lisboa, que representa alis o corolar do processo iniciado por D. Duarte.
Fazendo ligao com esta instituio, mas na lgica do estudo de caso, encerraremos
o captulo com a anlise de um curioso processo, imperceptvel que no luz da
subjectividade jurdica da alma. Trata-se do reconhecimento efectivo pelos tribunais
rgios, da vida da alma que est em glria, por morte em martrio, para efeitos de
sucesso hereditria.
No IV e ltimo captulo da dissertao, analisaremos as prticas que tudo o atrs
exposto enquadra. Ou seja, a fundao de capelas pelos leigos na Lisboa tardo-
medieval, entendida como um processo de instituio das almas como herdeiras, no
sentido pleno da palavra - processo que incompreensvel sem a reconstituio do seu
contexto devocional. A existncia real dos pia corpora, a fora da vontade dos
defuntos, a aco da Coroa e da Igreja sobre este universo, engendram o sistema de
que fazem parte as capelas fnebres. Existncia legal, propriedade, instituies e
homens trabalhando para as manter: escamotear tais elementos equivale a uma
percepo muito simplista deste peculiar fenmeno histrico. Tentando ser fiis
inteno de reconstituio de um universo complexo, defenderemos a ideia de que estas
prticas fundadoras obedecem a dois estmulos, inextrincavelmente ligados: a salvao
espiritual e a distino social. Como demonstram os exemplos de Pedro Eanes Lobato e
Gonalo Loureno de Gomide, as duas moradas do Homem complementam-se, se
orientadas para a salvao: a casa espiritual superior material, e a sua construo
que permite atingir de modo mais seguro a vida eterna; mas a correcta configurao da
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casa material, em bens e em recursos humanos, que garante o prolongamento da
intercesso at esse momento crucial que o fim dos tempos.
O conjunto de comportamentos existentes em torno de uma fundao fnebre
ser assim analisado em funo desta perspectiva. Os preparativos da morte encenam
uma preparao ritual para a entrada em cena de uma vida nova, a da alma. Os
sufrgios preconizados so a herana espiritual do novo ente, que se ancora em
devoes bem reais e que materializa atravs de um corpo de especialistas da orao e
da celebrao. O edifcio da capela e os bens a ela adstritos formam a herana material
da alma: conferem-lhe uma existncia legal, enquanto que a sua prpria existncia como
propriedade est enformada pelo fim a que se destinam. Por fim, os administradores
nomeados, e a respectiva continuao ad aeternum, constituem a ltima pea deste
sistema, que alimentam e do qual tambm vivem. fundamental analisar a questo das
formaes familiares que proporcionam a sucesso das capelas, que se encontram face a
elas em posies vrias. De um lado, temos uma inegvel aquisio de estatuto e de
poder simblico; do outro, h os constrangimentos de gesto de uma propriedade
condicionada. Por fim, mas no menos importante, estudar-se-o os modelos que
permitem pensar a relao entre mortos e vivos a partir do conjunto familiar, e que
fazem dela uma pedra importante na autonomia do corpo domstico face aos poderes
eclesistico e civil. Procurar-se-, em suma, caracterizar de forma diversa, consentnea
com os fundamentos de uma sociedade de Antigo Regime, a instituio capela.
Este estudo ser precedido pela reconstituio do universo devocional dos
fundadores. Como se ver, a base documental e o campo hermenutico alargar-se-o
significativamente em relao ao documento testamento/ instituio de capela.
Embora a explorao dos dados devocionais deste continue a organizar toda a
exposio, recorreu-se aqui a um conjunto amplo de documentao, e estudaram-se,
pontualmente, casos alheios amostra central. Este procedimento visou apenas
complementar os dados daquela, de forma a reconstruir, do modo mais completo
possvel, o referido universo devocional. Inicimos a abordagem pela apresentao das
fontes, a caracterizao do universo das fundaes e dos fundadores (segundo diferentes
parmetros), e a apresentao da capela como um projecto de vida. Foram depois
contemplados dois grandes temas, candentes no tema das instituies de sufrgio
fnebre. Em primeiro lugar, a natureza da devoo e da piedade dos fundadores: era ela
culta e interiorizada, como as principais linhas historiogrficas tm defendido? De
que modo tal se exprimia? Ou, mais profundamente: tais distines tm real sentido, no
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universo em estudo? Em segundo lugar, tentmos analisar de que modo a fundao de
capelas se insere num processo que a historiografia tem considerado central
religiosidade dos leigos tardo-medievais, relacionando-o insistentemente com elas - a
privatizao da religio. Atravs de dois dos campos tidos como mais relevantes no
processo a autonomia religiosa individual que revelaria o uso de livros nas prticas
devocionais e a constituio de espaos privados de religiosidade procurmos aferir
da realidade daquele processo, e da relao que com ele tm as capelas fnebres.
Na Concluso que termina o trabalho, procurmos expor os principais pontos
de chegada do inqurito, assim como a lista das pistas a prosseguir... Reunimos no final
os diferentes quadros e grficos, uma verso abreviada, mas completada com
bibliografia e fontes acessrias, da base de dados dos fundadores, e um pequeno
apndice documental.
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CAPTULO 1
As almas herdeiras: tpicos de anlise, em torno de duas narrativas.
1. A espiritualizao dos corpos.
Em 1438, ao fundar a capela privada destinada a albergar o seu corpo e o da sua
mulher, aps as respectivas mortes, Pedro Eanes Lobato, cidado de Lisboa, conselheiro
e homem de confiana dos dois primeiros monarcas de Avis, poderoso regedor da Casa
do Cvel1 e, segundo Alguns autores, tradutor de clssicos da literatura blica2,
esqueceu um pouco as sua ocupaes temporais e elaborou uma longa reflexo sobre a
fraqueza da condio humana. Esta reflexo chega-nos atravs do seu testamento, que
nos permite saber tambm que ele estava velho e doente, e que aguardava a morte para
breve3.
medida que avanamos na leitura do texto e que tentamos compreender bem o seu
autor, o principal efeito que sentimos o esvair da sensao, um pouco macabra, que o
leitor contemporneo - mesmo que historiador medievalista experimenta face aos
testamentos. Com efeito, percebe-se que Pedro Lobato estava a fazer algo de
completamente diverso do que a preparao para desaparecer em breve e para sempre,
num ambiente de medo e desespero. No apenas julgou o momento oportuno para
apresentar a sua viso particular de temas religiosos fundamentais, como a Criao, a
expulso do Paraso ou a Encarnao, como se considerou - e apresentou como enfim
preparado para servir o Senhor, a partir dos seus bens materiais4.
1Sobre a carreira burocrtica e poltica de Pedro Eanes Lobato cfr. JF, II, 501-503, que rene asprincipais referncias bibliogrficas e documentais; sobre a insero cortes da famlia, RCG, 107, 130,131, 144, 150, 168, 220, 229. Rui de Pina, na Crnica de D. Afonso V, refere-o como homem de grandeautoridade e bom cavalleiro, ao qual como quer que de grande condyam de sangue nom fosse, El ReyDom Joam por conhecer delle ser bom, e discreto e em armas homem esforado, deu a governana da (...)Casa do Cyvel (cit. in JF, II, p. 502). Foi alm disso escolhido para ser um dos conselheiros da RainhaD. Leonor, durante a regncia (JF, II, 503, e RCG, 229).2 Em Livro dos Ofcios de Marco Tullio Ciceram o qual tornou em linguagem o Ifante D. Pedro, ed. crt.Joseph Piel, p. XVIII, nt.2, Coimbra, Por Ordem da Universidade, 1948, o editor refere que CarolinaMichalis de Vasconcelos em Geschichte der portugies. literatur (p. 246, n.2), admite ser o tradutor[dos Epitoma Rei Militaris, de Vegcio] um certo Pedro Annes Lobato. Acrescenta que a Autora sefirma em Retratos e Elogios, ed. de 1817. Tentmos em vo encontrar esta obra de Carolina M.Vasconcelos, pelo que indicamos a referncia deste modo. Note-se que esta traduo seria primeira emlngua verncula, em toda a Europa, de uma obra que conheceu larga difuso na poca medieval emoderna (Sebastio Tavares de Pinho, O Infante D. Pedro e a escola de tradutores da corte de Avis,pp. 143-44, Biblos, vol. LXIX (1993), pp. 129-153, sem porm fazer aluso hiptese de C. M. deVasconcelos).3 Reg. 164.4 Reg. 164, fl. 117v: [Deus] me guardou de tempo en tempo athe esta idade em que sou desejando de oservir com aquelles bens temporaes de que me proveo pois que o no servi pelo corpo o que bem podera
10
Ouamo-lo ento, por mais um pouco. Diz que poderia ter servido o Senhor com
o seu corpo, se tivesse querido. Deus tinha-lhe dado avultados bens materiais, apesar
dele no os merecer... certo que, sendo escrito num momento crucial, no fim da vida5,
este discurso tem forosamente muitos traos convencionais. No entanto,
suficientemente longo, pessoal e explcito para nos permitir estender a viso para l do
manto das declaraes pias. O Regedor sabia perfeitamente o que estava a fazer,
conhecia bem as circunstncias do momento em que o fazia, e delimitara j os
horizontes de que dispunha para avaliar uma longa vida. Optara, assim, por instituir
uma capela fnebre muito rica e solene, com todas as formalidades do direito. Para o
fazer, precisara com mincia a forma como o seu corpo deveria ser sepultado e a sua
alma, sufragada fosse num tempo mais curto, fosse na perpetuidade. Previra um
sistema de fiscalizao da capela, para o qual nomeara expressamente um oficial rgio;
concebera tambm um sistema de administrao perptua, confiada a seis confrades
leigos da Confraria de Nossa Senhora da igreja paroquial onde se situava a capela.
Nomeara em pormenor os seus numerosos bens, pois fora preciso afect-los
formalmente ao destino que lhes atribura: deveriam ser consagrados manuteno da
capela, depois da morte da mulher, pois o casal no tinha herdeiros6.
Ou melhor: no tinha herdeiros fsicos. que Pedro Lobato trabalhava com
afinco, no momento em que o surpreendemos, em benefcio da sua mais importante
herdeira, prestes a entrar em cena, para desempenhar o papel principal. Ou seja a sua
alma. Eis o elemento em torno do qual tudo adquire sentido, a pea que nos permitir
compreender aquilo que necessrio interpretar como uma aco ritual precisa, baseada
numa crena profunda. Os gestos deste velho senhor so feitos com uma viso muito
larga do futuro: a da eternidade. Pedro Lobato est a criar algo de novo, algo destinado a
uma vida muito longa. todo um programa de vida, e no de morte, que se inaugurou
com as reflexes que fez, e que se concretizara de uma maneira muito particular: a
instituio da alma como herdeira atravs da fundao de uma capela fnebre7.
Enquanto alto funcionrio da administrao rgia, Pedro Lobato estava
certamente ao corrente do enquadramento mais vasto que assim dava sua alma. Com
fazer se quisera fao meu testamento e minha postomeira vontade por guisa digo por esta guisa que seadiante segue (...).5 Para a afirmao documental, cfr. nota anterior; na realidade, viver ainda mais quatro anos (BSS II,171).6 Reg. 164, fls. 119 r/v; 120v-121.7 Reg. 164, fl117v: usada explicitamente a expresso fao minha Alma herdeira pera todo o sempre emtodos os meus bens moveis e de raiz por onde quer que os tenha (...).
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efeito, ao longo de todo o sculo XV, a Coroa disputou permanentemente, com a Igreja,
a jurisdio sobre os bens das almas. Do mesmo modo, o rei foi com frequncia
interpelado sobre os deveres que tinha para com os defuntos, nas cortes quatrocentistas,
sede em que se exigiram melhores desempenhos dos oficiais encarregues das obras
pias, que sobretudo se respeitasse mais a vontade dos defuntos8. Pela sua formao
jurdica e pela prtica do seu ofcio9, Pedro Lobato sabia tambm que o seu testamento e
a sua fundao, pelo simples facto de dizerem respeito a obras pias, possuam um vasto
conjunto de privilgios jurdicos, em particular a dispensa de formalidades, uma
diminuio do tempo de execuo10, etc. Se Pedro Lobato estivesse tambm
familiarizado com o direito cannico (coisa que j nos mais difcil de saber),
conheceria igualmente o estatuto conferido s instituies pias, no conjunto das
instituies eclesisticas. Proprietrias dos seus bens, estas instituies estavam dotadas
de uma grande autonomia patrimonial e administrativa relativamente s autoridades
eclesisticas. Esta autonomia nascia do elemento fundacional a vontade do fundador
que, segundo a maior parte dos canonistas, apenas o Papa podia alterar (e, mesmo
assim, apenas em determinados casos e obedecendo a vrias regras). A nova fundao
vinha assim fazer parte de um vasto conjunto de instituies para os quais a reflexo
cannica tinha, ao longo dos sculos, construdo o conceito de pessoa jurdica. Muito
influenciada pela teologia, esta ideia, enraizada em ltima instncia sobre a auto-
identificao da Igreja como corpo mstico, fornecia desde h sculos e, de forma
decisiva, desde o sculo XIII, um formidvel utenslio conceptual para pensar a mirade
de instituies que se tinham formado durante os sculos anteriores, na falta de uma
legislao global, mas como resultado da enorme vitalidade da Igreja na sociedade11.
Com a instituio que acabara de fazer, Pedro Eanes Lobato colocava a sua alma
numa esfera especfica: a da jurisdicidade. Tinha-a desejado e concebido como uma
proprietria perptua, passvel de proteco legal, enquadrada do ponto de vista judicial
e administrativo. Este gesto no teria sido possvel na sociedade ps-liberal, na qual o
elemento transcendental foi excludo da fundamentao do direito, e onde apenas o
indivduo vivo sujeito de direito, direito igual para todos a partir do Estado. Pelo
contrrio, a sociedade ibrica da Baixa Idade Mdia possua caractersticas que
8 Cfr. infra, pp. 48, 123-124, 152-153.9 Sobre esta cfr. as obras cit. nt. 1.10 Cfr. infra, pp. 60 ss..
12
tornavam possvel a fundao de Pedro Lobato, nos moldes exactos em que tinha sido
feita. Por um lado, em funo do processo de constituio das monarquias ocidentais e
do carcter orgnico da organizao poltica, era uma sociedade de pluralismo
jurdico12. Desse modo, diversas esferas dotadas de um sui iuris co-existiam em, e com,
os dois grandes plos de aglutinao poltica que eram a Igreja e a Coroa. Por outro
lado, e na continuidade da societas christiana sada do triunfo do Cristianismo, o
religioso penetrava aqui profundamente o direito: como tal, os sujeitos de direito
podiam ser fortemente espiritualizados ou antes, o sujeito de direito por excelncia era
a alma, a parte espiritual, a melhor parte, do homem13.
Alguma insistncia na reconstruo do acto ser-nos- perdoada pelo facto de se
tentar assim reagir s imagens mais difundidas da historiografia da morte. Com
efeito, parece-nos estar a em presena de uma singular distoro do olhar. Com
grande frequncia, a opo pelo objecto historiogrfico da morte obscurece o facto de
que a vida da alma era afinal o objectivo das instituies pias e elemento de base de
todo o sistema criado volta destas: que a morte fsica de cada fiel cristo alimentava
um sistema vivo, ou antes, baseado em vidas sobrenaturais mas nem por isso menos
reais. Esquecer esta dimenso obliterar da cena histrica esse novo sujeito que, afinal,
para o personagem de quem se analisa a atitude perante a morte, era uma outra forma
dele mesmo, a forma mais nobre e duradoura, aquela que j existia e continuaria a
existir. E ainda esquecer que, ao conferir uma dimenso institucional e patrimonial
memria fnebre e ao sufrgio por alma, os fundadores estavam a criar um ente dotado
de existncia prpria que claramente possvel historicizar. que a matria-prima de
base de todo este sistema das almas eram, indiscutivelmente, realidade institucionais
pese embora toda a ambiguidade de que se revestiram as realidades institucionais na
Idade Mdia, como recentemente relembrou de forma magistral Paolo Grossi14.
11 Cfr. infra, pp. 39 ss..12 Estado da questo sobre esta abordagem em A. M. Hespanha, Poder e instituies no Antigo Regime.Guia de Estudo, pp. 20 ss., Lisboa, Cosmos, 1992; caracterizao em Paolo Grossi, Lordine giuridicomedievale, 2 ed., pp. 223 ss, Roma-Bari, Laterza, 1996; Jesus Vallejo, Power hierarchies in medievaljuridical thought. An essay in reinterpretation, Ius Commune. Zeitschrift fr EuropicheRechtsgeschichte, XIX (1992), pp. 1-29; Pedro Cardim, O poder dos afectos. Ordem amorosa e dinmicapoltica no Portugal do Antigo Regime, pp.24-31, Lisboa, diss. de doutor. apres. FCSH da UNL, 2000.13 Cfr. discusso infra, pp. 22 ss..14 Paolo Grossi, Lordine giuridico pp. 9 ss, e passim. Tentaremos caracterizar as instituies em anlise apartir destes pressupostos, infra, pp. 426 ss..
13
Uma ltima ideia. Para compreender bem o acto que, atravs do exemplo de
Pedro Eanes Lobato, tentamos reconstruir, imprescindvel situar os actuantes no
contexto religioso e devocional da poca. Insistimos no carcter de aco ritual que
tinha esta constituio da alma em herdeira de bens, com vista a alcanar a salvao.
Apenas a devoluo desta dimenso s atitudes perante a morte nos permitir sair das
aporias historiogrficas em que a anlise daquelas caiu. Da, a importncia da
reconstituio, da forma mais alargada possvel a partir dos dados de testamentos e
instituies, mas por vezes com exemplos exteriores a eles dos contextos
devocionais que tornaram possvel o acto de Pedro Eanes Lobato.
2. A corporalidade das almas.
Assim, a alma antes de tudo... Mas, no entanto, havia tambm numerosos
elementos materiais na obra de Pedro Eanes Lobato... : os bens e os homens encarregues
da gesto destes. Tentemos tambm traz-los a lume, pondo ainda em campo os
problemas de interpretao que nos levantam.
A. Os bens
Desde logo, h todos os bens que Pedro Lobato doara sua alma, e que
deveriam ser marcados com o sinal especfico de bem das almas - seno por
indicao expressa do fundador, certamente por ordem do servio rgio encarregue do
assunto15. O mais importante de todos estes bens era a prpria capela. Uma espcie de
casa da alma, prolongava a casa que abrigara os corpos fsicos dos seus fundadores.
Desde logo, seria construda sobre os seus cadveres, cuja presena condicionava o
local onde as missas de sufrgio eram obrigatoriamente celebradas, numa espcie de
sacralizao que o direito consagra, emprestando toda a sua fora a esta exigncia16.
Depois, a capela ostentaria as marcas da casa dos vivos, sejam as armas nos edifcios,
seja a presena simblica dos corpos dos seus proprietrios, atravs dos monumentos
fnebres que mandam construir. Por fim, a capela tinha tambm bens mveis, j que os
15 Cfr. infra, pp. 184-185, 458.16 Cfr. infra, pp. 49-50.
14
paramentos e as alfaias sacras eram de seu servio exclusivo (e podiam, elas tambm,
ser marcadas com os brases dos fundadores)17.
De forma ainda mais elucidativa do que o caso de Pedro Lobato, a reflexo de
um outro fundador, feita poucos anos antes, permitir-nos- compreender melhor o papel
das noes de morada e de casa na concepo que os fundadores tinham do
enquadramento material da parte espiritual do seu ser. Referimo-nos a Gonalo
Loureno de Gomide, um outro alto funcionrio rgio que, em 1410, institui para a sua
linhagem uma capela fnebre no convento dos Agostinhos de Lisboa18.
Personagem poderosa, pois era escrivo da puridade do Rei, Gonalo tinha, alm
disso, acumulado uma vasta fortuna19. Ao longo da sua vida, tinha tentado, com
sucesso, ultrapassar o meio social de origem, a pequena nobreza de servio. Na velhice,
a capela fundada nos Agostinhos era, de certo modo, o smbolo do seu sucesso.
Conseguira obter dos Frades a casa do captulo, exclusivamente para a sua linhagem, e
alcanara licena para abrir uma porta de comunicao directa entre aquele espao e a
igreja do convento. Entre outras coisas, esta ligao estreita conferiria decerto um
impacto acrescido s vrias procisses que mandava custear, e que deviam
obrigatoriamente passar pela sua capela, durante o circuito igreja - funcionando assim
como uma manifestao visvel da ligao entre os defuntos e o templo que os
albergava20. A capela veio a tornar-se um verdadeiro panteo linhagstico, atingindo o
seu auge pouco mais de cem anos depois, com a refundao operada pelo primeiro
Vice-Rei da ndia, Afonso de Albuquerque, bisneto de Gonalo21. Entre estes dois
marcos, foram sepultadas no local pessoas oriundas dos vrios ramos da linhagem, bem
como alguns servidores, devidamente autorizados22. imagem de outros pantees
familiares, a capela foi marcada com os smbolos da linhagem, nos seus diferentes
ramos, e foi sendo cheia, ao longo dos anos, por diversas sepulturas, decerto ornadas
com epitfios e letreiros ainda que todas em campa rasa, pois o Gonalo Loureno
proibira a construo de outro monumento fnebre alm do que guardaria os corpos do
17 Exemplos infra, pp. 271, 506 ss..18 Reg. 83.19 Sobre o fundador e a famlia, cfr. ALCH, p. 321; RCG, pp. 144-146; Maria de Lurdes Rosa, Quadrosde organizao do poder na Baixa Idade Mdia, Estrutura familiar, patrimnios e percursos linhagsticosde quatro famlias de Portalegre, A Cidade, n 4 (Maio 1991), pp. 47-65; Manuela Santos Silva,Gonalo Loureno (de Gomide), escrivo da puridade de D. Joo I, alcaide e senhor de Vila Verde dosFrancos: trajectria para a constituio de um morgado, Poder e sociedade. Actas das Jornadasinterdisciplinares, org. Maria Jos Tavares, vol. 1, pp. 363-380, Lisboa, U. Aberta, 1998.20 Cfr. infra, pp. 301 e 512.21 Cfr. infra, pp. 486-487.22 Cfr. infra, id..
15
casal fundador, reforando assim visivelmente o simbolismo da sua tutela sobre os
corpos e almas da linhagem23. Deste modo, em toda esta materialidade, tornou-se
verdadeiramente um lugar de memria da linhagem, um smbolo da riqueza material e
da importncia que esta revestia, para manter a memria e a intercesso.
A julgar pela carta de fundao da capela, Gonalo Loureno tinha uma
conscincia aguda da conexo entre estes dois campos. Evocou-a, no entanto, nos seus
efeitos perversos, uma vez que estava a fazer uma reflexo moral. O enquadramento que
preparara para a sua alma era bem o de uma casa, mas uma que se opunha s
numerosas habitaes de que frua, na sua vida temporal. O prprio facto de ter muitas
casas temporais relembrara-lhe a urgncia de construir uma casa espiritual. Toda a
metfora das casas se desenrola no sentido da oposio entre as duas realidades,
valorizando-se a espiritual. Tal no deve fazer esquecer, porm, que o conceito serviu
para pensar ambas, e que a capela que abrigaria os corpos foi expressamente designada
como casa espiritual. A morte de Gonalo era assim pensada, tambm, como uma
mudana de local, e a casa afirma-se como o elemento de ligao, a fronteira entre
os dois mundos em presena: o do corpo e o da alma. Este ltimo desenvolve-se em
torno do local que abriga o primeiro, e o fundador auto-representa-o como a sua
prxima casa
(...) porque todos geralmente os que se salvar quyser se dev b de caminhar
esta presente vida e cuydar como naer pera morer segdo que faz casas e
moradas pera tvito e governana das fedorentas carnes que somos criados
que despois h de ser tornadas avite [a niente] e soo n ha hi de ficar cousa
salvo a cria da alma a qual todo bom christo deve deseiar seu partimento
pera viso de deus que he gloria celestrial de spre e asi per obras meritorias
dev obrar neste preste mdo per que posa receber a dita salva e porque eu
tenho muytas casas pera morada tporalmente e devo de fazer edyfica de casa
espritual a qual meu corpo e meu acabamento seia sepultado por por aver
por meu orador e roguador o muyto precioso padre sto Augustinho e guardar
meu acabamento escolhi pera minha presente morada a seu sto moesteyro que
esta nesta cidade de lixboa (...)24
23 Reg. 83, p. 87.24 Reg. 83, p. 88.
16
Esta casa espiritual de seguida descrita em toda a sua materialidade,
pois tratava-se tambm, afinal, de delimitar o espao fnebre num contrato a celebrar
com os Frades. No entanto, esta casa bem aquela onde Gonalo se v abrigando-se,
tentando fugir segunda morte, a morte espiritual de que falara no incio da carta
de fundao, aquela que atingir os homens que tinham apenas pensado na morte
temporal:
Por que todolos homs vivente naturalmente s obriguados aa morte e porque
as mortes s duas ha tporal e outra de senpre e porque da tenporal ninh n he
escusado e da de spre a qual he haqueles que mal viv ser pera spre cdenados e
padecer de spre morte sem vida da qual me deus guardee porque todo christo o qual
he por tal nome obrdo segdo deus he feito seu mbro por eu dito Gonalo loureno
(...) [fao capela, etc]25.
B. Os homens
Um outro elemento material de extrema importncia, que os documentos de
fundao nunca esquecem, o futuro administrador da capela. Este iria ter a seu cargo a
gesto dos bens e a verificao do cumprimento dos sufrgios. excepo de algumas
capelas muito pequenas, a administrao do conjunto das fundaes que estudmos era
confiada a leigos. A grande maioria destes era constituda pela descendncia do
fundador, seguindo em geral o modelo sucessrio muito difundido nas sociedades
ibricas tardo-medievais, ou seja, o morgadio26. As capelas mais ricas eram, alis,
anexadas ao morgadio familiar, e portanto o chefe da linhagem e cabea de morgadio
era tambm o administrador da capela fnebre. Em caso de inexistncia de famlia
natural, a administrao das capelas era confiada a essa famlia artificial que eram as
confrarias. Foi o caso da fundao de Pedro Eanes Lobato, como j referimos27.
25 Reg. 83, p. 87.26 Cfr. infra, pp. 448 ss..27 Segundo a carta de instituio, existiam duas modalidades possveis para a administrao da capela. Aprimeira, que era a que Pedro Eanes Lobato desejava e esperava concretizar, consistia em colocar acapela guarda da confraria de Santa Maria da igreja de S. Mamede, e devia ocorrer caso, como estavacombinado, a mulher do fundador juntasse os seus bens aos dele e fizesse uma s capela; caso isto no seviesse a dar (por razes que no refere), a administrao deveria ser entregue a um Pero Lobato, sobre oqual nada mais dito, a no ser que deveria ento vir morar para casa deles; morte deste, aadministrao passava ento para a mesma confraria (Reg. 164, fl. 122v-123). Os passos relativos a estas
17
Vemos assim como, entre os modelos disponveis para pensar o futuro destas
almas institucionalizadas - a espera, sem fim previsto, a que eram votadas
avultavam o da casa material e o da linhagem - muito em particular nos morgadios.
Este facto era alis quase inevitvel, dado a importncia, na sociedade que estudamos,
dessa clula que era a famlia. Realidade orgnica, corpo social, possua ainda uma
autonomia jurisdicional (a derivada da patria potestas), e compreendia dimenses
completamente desaparecidas com a implantao do Estado liberal, nomeadamente as
religiosas e morais. A famlia era um conjunto de pessoas e bens, e da extenso destes
dois elementos dependia a sua importncia 28. Assim, talvez um dos conceitos mais
fecundos para exprimir e descrever estas realidade seja o de casa, cobrindo tanto os
laos de parentesco como a sua base material, nomeadamente o local onde morava o
tramitaes contm vrios saltos e ms leituras, na cpia disponvel; admitimos assim que possa existirmodalidades da questo no totalmente percebidas. Sobre a identidade de Pedro Lobato, no temos outraspistas, alm da possibilidade que seja neto de Pedro Eanes Lobato, a crer nos dados de FG, VI, 387, queindica que o nosso fundador teria tido um filho, Joo, e este ltimo um filho s, Pedro; mas nada se diz notestamento sobre ambos, e pode estar aqui presente um problema de homonmia, pois em meados dosculo XV viveu um Pedro Lobato, alto funcionrio rgio, com um filho de nome Joo, cuja carreira foiestudada por Ana Paula Almeida, A chancelaria rgia e os seus oficiais em 1462, pp. 185-187, Porto,diss. de mestrado em Histria medieval apres. FLUP, 1996, Armando Borlido, A chancelaria rgia e osseus oficiais em 1463, pp. 199-202, Porto, diss. de mestrado em Histria medieval apres. FLUP, 1996, eLMD, II, pp. 15-16, p. 35, p. 63 e p. 92). Resta, claro, a possibilidade deste Pedro ser ele prprio filhode Pedro Eanes Lobato, mas os autores que acabmos de referir nada esclarecem sobre o tema). Sobre aadministrao de capelas por confrarias, cfr. infra, pp. 311 ss., 440-441.28 Do ponto de vista jurdico, mas muito til, cfr. Enrique Gacto, El marco juridico de la familiacastellana. Edad Moderna, Historia. Instituciones. Documentos, vol. 11 (1985), pp. 37-66; a novahistria do direito tem alargado muito as perspectivas tradicionais; cfr. entre outros, Daniela Frigo, IlPadre de famiglia. Governo de la casa e governo civile nella tradizione delleconomica tra cinque eseicento, Roma, Bulzoni Editore, 1985 e A. M. Hespanha, Carne de uma s carne: para umacompreenso dos fundamentos histrico-antropolgicos da famlia na poca moderna, Anlise Social,vol. XXVIII (123-124), 1993 (4-5), pp. 951-973; e Poder e instituies no Antigo Regime. Guia deestudo, pp. 55-57; B. Clavero, Beati dictum: derecho de linaje, economia de familia y cultura de orden,Anuario de Historia del derecho espaol, LXIII-LXIV (1993-94), pp. 7-148, e (ponto da situao): DelEstado presente a la familia passada, Quaderni fiorentini per la storia del pensiero giuridico moderno,XVIII (1989), pp. 583-605; a histria social e das mentalidades tem tambm conhecido significativasevolues neste campo; cfr., p.e., Family and inheritance. Rural society in Western Europe, dir. J. Goodye J. Thirsk, Cambridge, Cambridge U.P., 1976; Kate Mertes, The English noble household, 1250-1600.Good governance and politic rule, Londres, Basil Blackwell, 1988; Isabel Beceiro Pita e RicardoCordoba de la Llave, Parentesco, poder y mentalidad. La nobleza castellana. Siglos XII-XV, Madrid,CSIC, 1990; Christiane Klapisch-Zuber, Le corps de la parent, Micrologus, I (1993), pp. 43-60;Dominique Barthelmy, Parentesco, Histria da vida privada, t. 2, dir. G. Duby, pp. 96-161, Lisboa,Crculo de Leitores, 1990; Michel Nassiet, Parent, noblesse et tats dynastiques, XVe.-XVIe. sicles,Paris, d. de lEcoles des Hautes tudes en Sciences Sociales, 2000; interessante contrastar com o quese passou depois das revolues liberais, neste caso no campo concreto da autoridade real que existia nacasa, a partir do Pai: cfr. p.e. Bernard Schnapper, Autorit domestique et partis politiques, deNapolon De Gaulle, in Voies nouvelles en histoire du droit. La justice, la famille, la rpression penale(XVIe.-XXe. sicles), pp. 555-596, Paris, PUF, 1991.
18
chefe da linhagem e onde se encontravam os smbolos familiares29. Ora, precisamente,
o conjunto destas duas realidades que nos parece subjacente s capelas fnebres,
pensadas como casa da alma, e colocadas guarda da casa linhagstica, para
proteco contra as ameaas do futuro. No era por acaso que, nascena, as capelas
eram marcadas com os smbolos da linhagem, e que depois funcionavam como espao
de certificao oficial da verso pura destes mesmos smbolos, onde os armeiros rgios
se iam certificar, em caso de dvida30. No era igualmente por acaso que o chefe da
linhagem tinha o direito de fazer sepultar a sua descendncia na capela, ao mesmo
tempo que a abria, com muita frequncia, aos ramos secundrios, pois isso demonstrava
a amplido do grupo linhagstico31. Enfim, era em funo destes modelos que se deve
compreender todo um conjunto de direitos e deveres de presena do chefe de linhagem
nas cerimnias da capela familiar, do qual as capelas de morgadio nos apresentam os
exemplos mais acabados.32
O modelo do corpo familiar (linhagstico, na maior parte dos casos) a
famlia como casa, lugar material e rede de parentesco serve portanto tambm para
pensar a materialidade da capela familiar. Sobretudo, porque esta prolonga as
dimenses religiosas da famlia, e tambm porque funciona como elemento de prestgio
social da mesma. O modelo da sucesso familiar em morgadio como j sugerimos e
tentaremos demonstrar noutro local deste trabalho33 era o mais difundido, e tambm o
considerado mais conveniente pelos juristas34. Segundo estes, a propriedade vinculada e
a sucesso por primogenitura e masculinidade asseguravam da forma mais perfeita a
continuidade necessria existncia perptua das fundaes de missas. Ora, no caso da
sucesso em morgadio, existia ainda um mecanismo ficcional de continuidade,
29Sobre o tema veja-se, em especial, Christiane Klapisch-Zuber, La maison et le nom. Statgies et rituelsdans lItalie de la Renaissance, Paris, ditions de LEHESS, 1990; Michel Nassiet, Signes de parent,signes de seigneurie: un systme idologique (XVe.-XVIe. sicles), Mmoires de la Socit dHistoire etdArchologie de Bretagne, 68 (1991), 175-232, e Nom et blason. Un discours de la filiation et delalliance (XIVe.-XVIIIe. sicle, LHomme, 129 (Jan-Maro 1994), XXXIV (1), pp. 5-30.30 Maria de Lurdes Rosa, O morgadio em Portugal, scs. XIV-XV. Modelos e prticas de comportamentolinhagstico, pp. 195-196, Lisboa, Estampa, 1995; cfr. referncia a prticas semelhantes em Paul Binski,Medieval death. Ritual and representation, p. 105, Ithaca, Cornell U.P., 1996; e infra, pp. 497-498.31 Sobre as problemticas dos pantees nobilirquicos, cfr. p.e. Maria Antonietta Visceglia, Corpo esepoltura nei testamenti della nobilt napoletana (XVI-XVIII) secolo, Quaderni Storici, 50, ano XVII, n2 (Agosto de 1982), pp. 583-614.; Francesca Espaol Bertran, Sicut ut decet. Sepulcro y espaciofunerario en la Catalua bajomedieval, in Ante la muerte. Actitudes, espacios y formas en la Espaamedieval, eds. Jaume Aurell e Julia Pavon, pp. 95-156, Pamplona, EUNSA, 2002.32 Maria de Lurdes Rosa, O morgadio em Portugal, pp. 112 e ss., e infra, pp. 438 e 448 ss..33 Cfr. infra, pp. 448 ss..34 Cfr. infra, pp. 446-447.
19
decalcado das sucesses dos reinos e dos feudos: era a representao do pai no filho
mais velho, no fio infinito das geraes. Esta ideia existia j no direito romano,
igualmente com fins sucessrios, mas conheceu um enorme desenvolvimento na
sociedade crist, sob influncia do modelo da continuidade do Pai pelo seu filho
primognito, Cristo, que era ele prprio Deus. Nos morgadios, a representao era uma
figura conhecida e utilizada por quase todos os instituidores; permitia a sucesso do
neto, filho de pai falecido antes do av, excluindo o tio paterno. Contrria ao direito dos
feudos, foi objecto de longos debates e de grandes batalhas centradas sobre a sua justia
intrnseca, mas acabou por ganh-las. Mesmo quando ausente, em certos casos
especficos, o filho conseguia deserdar o tio atravs de uma outra fico, tambm ela
baseada sobre uma perpetuao da vida extremamente curiosa, tambm ela ligada vida
real da alma35.
A linhagem, a casa nobre (e provavelmente a de outros estratos sociais, a que
pouco acedemos por dificuldade heursticas), possuam assim as suas armas para ocupar
um lugar neste mundo de corpos imaginados que tinha como objectivo o funcionamento
e a reproduo perptua da ordem social seja a do mundo terrestre, seja a do mundo
do Alm. Para o nosso estudo, que quer alcanar tambm os leigos nas suas prticas
religiosas e portanto, no s as teorias dos canonistas e telogos ou as construes dos
homens polticos da Monarquia preciso sobretudo tentar caracterizar os grandes
modelos disponveis para pensar as formas institucionais utilizadas pelos leigos para
defenderem o seu lugar. A tarefa tanto mais difcil quanto no dispomos de textos
como os dos juristas ou os dos telogos, sendo portanto necessrio encontrar lgicas e
princpios em actas da prtica. Parece-nos, apesar disto, que estes leigos no eram
ignorantes, e que existia toda uma cultura da linhagem, bem como uma recepo
generalizada, por aqueles leigos, das ideias institucionais e constitucionais da sua
sociedade. Em especial para o perodo e os grupos sociais com que maioritariamente
trabalhamos. Ser no entanto preciso recordar que os modelos culturais e
comportamentais eram quase sempre transmitidos oralmente e em mbito domstico, o
que aumenta a dificuldade do seu estudo36.
35 Cfr. infra, pp. 202 ss..36 Alguns estudos tm sido feitos neste sentido, em geral aproveitando fontes pouco usuais, comocorrespondncia familiar, livros de famlia ou memrias. Entre outros, so interessantes para o estudo do
20
No nos parece assim possvel fazer histria social ou religiosa sem a
compreenso destes enquadramentos reforando, por outro lado, as exigncias de
bases mais antropolgicas para esta compreenso. Esta antropologia histrica ganhar
ainda mais com uma extenso dos seus mtodos esfera do direito e das instituies. Os
princpios da autonomia e da fora prolongada da linhagem, baseados numa amlgama
de pessoas e bens, e prolongando-se no passado e no futuro, eram cruciais para os
nossos fundadores. A vontade dos defuntos toma aqui carcter de lei, que nem a Igreja
nem o Rei podiam alterar. Esta vontade tem uma expresso temporal na pessoa do
fundador da capela. Tal como a instituio do morgadio funcionava como criadora de
um verdadeiro ius maioratus, segundo a expresso de B. Clavero37, a instituio da
capela, enquanto vontade do defunto, funcionava como lei interna e externa38.
Atravs dos dois exemplos de Pedro Eanes Lobato e Gonalo Loureno de
Gomide, tentmos evocar as principais formas de compreenso que a poca tinha da
capela fnebre, em toda a sua densidade e capilaridade. Dois grandes grupos de ideias
davam sentido a esta prtica fundadora: o do direito das universitates, decerto muito
adaptado; e o da jurisdicidade domstica e linhagstica. Para a compreenso de uma e de
outra, parece-nos sobretudo importante no opor demasiado dimenses que, aos olhos
dos homens da poca, no se colocavam como radicalmente diferentes. preciso no
esquecer como, para eles, era tnue a fronteira entre elementos muito materiais, e
finalidade espirituais como as que referimos de incio, seguindo o pensamento de Pedro
Lobato. As ideias que tentmos apresentar como subjacentes fundao de capelas
fnebres, em particular a de casa e a de subjectividade jurdica da alma (num
ordenamento jurdico especfico), parecem-nos muito operativas a este respeito.
Permitem-nos entrar neste mundo, to familiar aos homens medievais, quanto
longnquo das pocas modernas...: o mundo das realidade com dupla natureza, com as
quais coabitavam todos os dias, e que a sua religio, nomeadamente, erigira em
tema da relao casa/ religio: Elisabeth Swain, Faith in the family: the practice of religion by theGonzaga, Journal of Family History, n 8 (Summer 1983), pp. 177-189; vrios dos trabalhos reunidospor Christiane Klapisch-Zuber em La maison et le nom; Diana M. Webb, Woman and home: thedomestic setting of late medieval spirituality, Women in the church, dir. W. J. Sheils, D. Webb, pp. 159-173, Oxford, Basil Blackwell, 1990.37 Bartolom Clavero, Apendice a la segunda edicion , in Mayorazgo. Propriedad feudal en Castilla,1369-1836, p.449, 2 ed., Madrid, Siglo Veintiuno Ed., 1989; para o caso portugus, Maria de LurdesRosa, O morgadio em Portugal, pp. 37 ss e pp. 233 ss.38 Cfr. infra, pp. 428 ss..
21
paradigmas antropolgicos: as relquias, a carne espiritual e a transubstanciao, o
corpo mstico, a ressurreio dos corpos39.
39 Nesta perspectiva, e por ordem de referncia aos assuntos, cfr. Patrick J. Geary, Le vol des reliques auMoyen-ge. Furta Sacra, pp. 23 ss., Paris, Aubier, 1993; Henri de Lubac, Caro spiritualis, in Corpusmysticum: leucharistie et lglise au Moyen ge. tude historique, pp. 139-161, Paris, Aubier, 1948, eMelchiorre Roberti, Il corpus mysticum di S. Paolo nella storia della persona giuridica, in Studi distoria e diritto in onore di Enrico Besta per il XL anno del suo insegnamento, vol. IV, pp. 37-82, Milo,Giuffr, 1939; Caroline Bynum, The ressurection of the body in Western Christianity, 200- 1336, NovaIorque, Columbia U. P., 1995; Francesco Santi, Un nome di persona al corpo e la massa dei corpigloriosi, Micrologus, I (1993), pp. 273-300; Jean-Claude Schmitt, Le corps en Chrtient, in Laproduction du corps, eds. Maurice Godelier e M. Pavioff, pp. 339-355, Amsterdam, ditions desArchives Contemporaines, 1998; Alain Boureau, The sacrality of ones own body in the Middle Ages,Yale French Studies, 86 (1994), pp. 5-17.
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CAPTULO IIFit et facit ad vitam et salutem animam1: a construo teolgica e canonstica
da propriedade das almas
No Portugal tardo-medieval, qualquer questo entre o rei e a Igreja relativa posse de
bens por esta envolvia discusses em torno de um tipo especial de propriedade, que aparece
designada de vrias formas, mas que se pode sem dvida abranger pela denominao de
causas pias. A seu respeito, os canonistas e os civilistas esgrimem argumentos, com base
num conjunto de normas de origem bastante variada, s quais acrescem os comentrios de
inmeros autores, citados como autoridades. Este campo discursivo, verdadeiro patrimnio
referencial, uma das componentes do funcionamento do sistema dos sufrgios fnebres.
Atravs dele, conferia-se vida legal e eterna s suas instituies. Sem o conhecer no
possvel compreender o sistema dos bens das almas. No presente captulo, tentaremos
apresent-lo, nas suas principais caractersticas e no seu processo de formao.
Impem-se, porm, algumas clarificao preliminares. Na raiz de toda a problemtica
em estudo estava a relao entre riqueza e salvao, entendida esta como alcanvel atravs
da mediao eclesistica. Do ponto de vista teolgico e cannico, esta equao no foi de todo
simples, no perodo medieval. Na mensagem evanglica estavam contidas mensagens
potencialmente delicadas, do ponto de vista da organizao social: para ganhar a vida eterna,
era necessrio tudo perder2; a planta s d fruto depois de morrer3. Construda sobre estas
linhas paradoxais- tenha-se em conta que os paradoxos, no pensamento cristo, eram
internalised epistemologies4 - alis continuamente reencenadas no sacrifcio eucarstico, em
que o prprio Deus morria para ressuscitar ( que conferia o prprio significado religio
crist)5, a relao com os bens materiais teria sempre de pautar-se, nas linhas mais puras da
1 Para a provenincia da expresso, cfr. infra, p. 23.2 Mt. 16, 24-28, Mc. 8, 35-36; Lc. 17, 33; Jo. 12, 25.3 Lc. 13, 18-19 (parbola do gro de mostarda).4 Precisamente a propsito da questo da relao entre pobreza e posse de bens materiais, refere Abigail Firey:In Christian thought, paradoxes were not merely verbal play, but were internalised epistemologies, for theywere rooted in the essential tenets of faith. Christians were accustomed to paradoxical constructions of reality,and could leave them unchallenged, confident that paradox signified a profoundly meaningful universe (AbigailFirey, For I was hungry and you fed me: social justice and economic thought in the latin patristic andmedieval christian traditions, p.334, in Ancient and medieval economic ideas and concepts of social justice, dir.S. Todd Lowry, Barry Gordon, pp. 333-370, Leiden/ Brill, 1998. Ainda sobre o paradoxo da relao entrepertencer ao mundo e, apesar disso, no ser do mundo (ponto teolgico fundamental para perceber a relaoda Igreja com a propriedade material), cfr. o estudo notvel de B. Thompson, Habendum et tenendum.Layand ecclesiastical attitudes to the property of the church, max. pp. 203 e 237-238 in Religious belief andecclesiastical careers in late medieval England, dir. Christopher Harper Bill, pp. 197-238, Woodbridge, TheBoydell Press, 1991.5 O que est no centro mesmo da comemorao fnebre: cfr. adiante e Clive Burgess, Longing to be prayedfor: death and commemoration in an English parish in the later Middle Ages, p. 44, in The place of the dead.
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argumentao teolgica, pela negao da possibilidade de realizar uma operao positiva de
converso de riqueza. Ou seja, de operar uma troca simples, comprando um bem espiritual, a
salvao, com os bens materiais. A propriedade obtida pela Igreja em funo das doaes dos
fiis tinha de entrar num circuito econmico especfico, no qual no se garantia um lucro
proporcional ao investimento. Era a propriedade das almas, que contribua para a salvao
de uma forma misteriosa e em conjunto com variveis bem mais delicadas, como a presena
do vnculo caritativo nos actos realizados para sufrgio das almas6. Era uma propriedade que
realmente circulava, e muito, mas de uma forma especfica, ao contrrio do que se
depreenderia da forma como era correntemente denominada, fora das esferas eclesisticas
corpo morto, terra amortizada. Com efeito, de novo numa esfera de realidades religiosas,
os meandros da sua circulao e da sua produtividade eram invisveis ao olhar
dessacralizado. Pelos parmetros da argumentao eclesistica contra as limitaes rgias ao
direito de recepo de dons piedosos pela Igreja, no se tratava de morte simples da
propriedade. Tratava-se, sim, de uma morte profcua, pois garantia a sobrevivncia da alma
do doador, que assim emula de algum modo o Divino Fundador, no seu sacrifcio redentor.
Nos termos em que posta pelo jurista catalo Pierre Jame, em finais do sc. XIV, esta
relao clara:
Illi tamen vocant alienationem, quando sit in ecclesia, turpi nomine amortizationem,
& male: vt apparet ex supradictis. Immo deberet potius vocari aduiuatuio [sic] quia fit
& facit ad vitam & salutem animae7.
Esta relao conta com sculos de pensamento e elaborao doutrinais por trs, de
modo a explicar uma relao misteriosa: como que os bens materiais se tornam em ajuda do
princpio espiritual. A construo teolgica da propriedade, de Ambrsio a Agostinho, foi
fruto de uma poca de espiritualizao das relaes sociais, na qual, por outro lado, a caridade
Death and remembrance in late medieval and early modern Europe, ed. Bruce Gordon, P. Marshall, pp. 44-65,Cambridge, CUP, 1999.6 E. Duffy, The stripping of the altars. Traditional religion in England, 1400-1580, pp. 364-365, New Haven eLondres, Yale U. P., 1992: The notion that penances, prayers and good deeds performed on behalf of the deadshortened the pains of Purgatory depended for its coherence on the notion of a sharing of merit within themystical body of the Church, a bearinn of one anothers burdens, in which the debts of the dead could be paidby the living. But such an exchange, it was held, could only take place in charity. Only those who shared thedivine life of grace and love could give or receive in this transaction (...). It was for this reason that the damnedwere unable to benefit from the prayers of the living, and by the same token, the living could do no good to thedead if they themselves were in a state of mortal sin and so cut off from the divine life.7 Consultado a partir da referncia e do tratamento dado a esta afirmao no importante trabalho de BartolomClavero Amortizatio. Ilusin de la palabra, p. 320, Quaderni fiorentini per la storia del pensiero giuridicomoderno, vol. 17 (1988), pp. 319-358, Pierre Jame foi autor jurdico catalo do sculo XIV, autor da Aureapractica libelorum, que consultmos na edio de 1574 (Colonia Agripina, Apud Geruinum Calenium &haeredes Quintelios) (Roma, Bib. Naz. Vittorio Emanuele, Res. 13. 13 G. 3).
24
pblica formava a base essencial do poder episcopal8. Assim, no admira que os grandes
pensadores se tenham concentrado na busca de formulaes que traduzissem de forma
prescritiva e socialmente eficaz alguns desses princpios paradoxais a que nos referimos no
incio: a equiparao mstica evanglica de Cristo e dos pobres, a necessidade de tudo
abandonar para alcanar a salvao.
Que esta relao de tipo religioso tivesse sido com frequncia invertida pelos agentes
religiosos, no obstou ao facto de, na sua essncia, ela poder ser sempre reclamada como
verdadeira e fiel mensagem original. O grande dinamismo do Cristianismo medieval radica-
se no facto de que a instituio pde ser sempre confrontada com a exigncia de fidelidade s
mensagens paradoxais que estavam no corao do Evangelho e foi-o das mais diversas
formas, desde as formas de vivncia religiosa radical, aceites ou no, at s exigncias de
reforma dos leigos, passando pelas constantes barreiras da conscincia interior e da
consequncia do pecado. Durante longos sculos, as exigncias instituio no se fizeram
pela indiferena ou recusa religiosa, mas sim em nome da veracidade desta, e da fidelidade
daquela.
Nesta linha, no possvel aceitar que, para os contemporneos, o conjunto de
normas que protegiam e favoreciam os bens pios, tenham sido simplesmente encarados
como estratgias de obteno de riqueza material, pela venda de bens espirituais. A prpria
proibio da posse de bens de raiz pelo clero, da parte das monarquias ocidentais, a partir do
sculo XIII, deixou intacta a possibilidade de vinculao perptuas de bens com fins
sufragsticos, desde que ao clero fossem apenas entregues os seus rendimentos9. No Portugal
tardo-medieval, no foi esta forma de relao que foi posta em causa pelo poder rgio, que
alis a praticava tambm10, e que desenvolvia formas institucionais de proteco
propriedade vinculada para sufrgios11. Por um lado, a necessidade de fortalecer o poder
monrquico obrigou ao constrangimento das dimenses mundanas da Igreja; por outro, as
novas configuraes do poder rgio passavam pela auto-atribuio de deveres na esfera do
bem-estar espiritual dos sbditos12. No Portugal medieval, a jurisdio sobre os sufrgios
fnebres, em termos religiosos, no foi nunca disputada Igreja. O que a Coroa procurou
fazer foi, em primeiro lugar, estabelecer mecanismos de preveno do incumprimento, e
mesmo estes, como muitos avanos e recuos 13. Depois, tentou definir as regras de
funcionamento das bases materiais destes sufrgios, sendo que elas no foram nunca
8 Abigail Firey, op. cit., pp. 337 ss.9 Cfr. infra, pp. 122, 426.10 Cfr. infra, pp. 115 ss., para a construo da memria fnebre pela Dinastia de Avis.11 Cfr. infra, Cap. III.12 Cfr. infra, pp. 109-111, 113-115, e 167 ss..13 Cfr. infra, Cap. III.
25
tratadas como uma outra qualquer propriedade: nunca o rei retirou as obrigaes de sufrgios
a bens doados, antes pondo como condio de posse o seu cumprimento14. Nem mesmo a
Igreja, de resto, tinha tambm poder de o fazer: o prprio Papa no podia abolir os sufrgios
quanto sua finalidade ltima (o bem da alma), mas apenas comutar os seus aspectos
formais15. E se esta operao se fazia, era em nome do perigo de conscincia para quem no
cumpria os encargos16.
Ao colocarmos as questes desta forma, no pretendemos de forma alguma defender a
inexistncia de atritos entre o corpo eclesistico e o poder rgio, ou entre aquele e os fiis
leigos, quanto ao tema em apreo. Pelo contrrio, ele foi alvo de intensas negociaes, como
teremos ocasio de analisar em maior pormenor. Pretendemos apenas partir do pressuposto de
que s com elementos comuns de crena foi possvel manter o sistema das capelas a
funcionar durante sculos. Sem esquecer que ele alcanar, no perodo que nos ocupa e
durante quase mais duzentos anos, o auge da sua vitalidade - apesar do enorme assalto que, na
mesma poca, sofrera a mquina de administrao da salvao da Igreja, com a ruptura
protestante17. Em Portugal, ser precisamente no decorrer do sculo XV que a Igreja e o poder
real, depois de um complicado processo negocial, chegam a importantes consensos sobre as
instituies de sufrgio por alma, nomeadamente no que diz respeito aos privilgios jurdicos
das causas pias. Vejamos, ento, em que consistiam exactamente quer estas, quer os ditos
privilgios.
14 Cfr. infra, pp. 114-115 e 464 ss.. H aqui semelhanas e cruzamentos com os constrangimentos linhagsticos,outra limitao que o rei respeitava e era feito respeitar - cfr. infra, pp. 464 ss..15 Discusso alargada da temtica infra, pp. 45 ss..16 Idem, pp. 50 ss.. Estamos assim em desacordo com um certo cepticismo, para no dizer ironia, perante umaapresentao quase como planos premeditados por parte dos eclesisticos, que perspassa muito dahistoriografia sobre o tema, em especial a que se debrua sobre a poca Moderna, em que o sistema dascapelas foi atingindo a entropia (cfr. p.e. Laurinda Abreu, Memrias da alma e do corpo. A Misericrdia deSetbal na Modernidade, pp. 160-161, Viseu, Palimage Ed., 1999; Ana Cristina Arajo, Vnculos de eternamemria, p. 442, Actas do Colquio Internacional Piedade popular. Sociabilidades Representaes Espiritualidades, pp. 433-442, Lisboa, Terramar, 1999.17 Conflito histrico que contagiar a historiografia posterior, por vezes sem esta se dar conta. A viso da Igrejacomo simonaca e vendedora de indulgncias tem a ver com os escritos e o esprito anti-clerical o queprejudica a anlise de duas realidades que, de facto, estavam interligadas (indulgncias e sufrgios). A re-avaliao no anacrnica do sistema de perdes da Igreja tem vindo a ser feita por alguns autores, oriundosde diferentes quadrantes: por um lado, os renovadores da historiografia do direito cannico, como Paolo Grossi(Lordine giruridico, pp. 123-124; Aequitas canonica, Quaderni fiorentini per la storia del pensierogiuridico moderno, XXVII (1998), pp. 378-390); por outro, os estudiosos das instituies que administravamos perdes (L. Schmugge, Cleasing on consciences: some observations regarding the Fifteenth-century registersof the Papal Penitentiary, Viator, 29 (1998), pp. 345-61 e Female petitioners in the Papal Penitentiary, p. 685,Gender & History, vol. 12, n 3, Novembro 2000, pp. 685-703; sobre a renovao historiogrfica destainstituio, em geral, cfr. Maria de Lurdes Rosa, "Mariage et empchements canoniques de parent dans lasocit portugaise, 1455-1520" Mlanges de l'cole franaise de Rome - Moyen ge, t. 108/ (1996), nt. 4); porfim, as abordagens de histria social e religiosa ultimamente feitas implantao do protestantismo emInglaterra (cfr., por todos, Eamon Duffy, The stripping).
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Os sufrgios por alma, na Idade Mdia, nas diversas formas que revestiram, estavam
assentes num tipo de propriedade que era privilegiada, em termos patrimoniais e legais.
Entendia-se que esta propriedade estava destinada a propiciar a salvao das almas, pelo que
formava um corpo separado do conjunto de bens sociais, dentro do qual se operava segundo
determinadas regras. A grande garantia que oferecia era a da perpetuidade do objectivo inicial
da doao, pois o bem estava subtrado circulao, fosse por transaco que era proibida
desde a fundao18 fosse por morte do proprietrio era confiado a uma instituio que,
no morrendo nunca, assegurava a reproduo interna perptua - fosse, por fim, por desvio
de intenes a obrigao de realizao dos sufrgios estava colocada sob pena espiritual19.
Tornou-se difcil valorizar estas caractersticas como sendo fundamentais para a longa
vida deste sistema. Os princpios que a elas presidem so muito diversos dos modernos:
crena numa temporalidade sem fim previsto, mas na qual se jogava uma relao dinmica, a
salvao; crena na necessidade de inverter a relao com os bens materiais para obter a
verdadeira riqueza; crena no poder do sacrifcio ritual e da orao; crena, enfim, na eficcia
dos castigos divinos. Como temos insistido, tratava-se, globalmente, de uma relao
religiosa por excelncia, que s poder ser compreendida pela analtica prpria deste
campo. Foram as peculiares circunstncias histricas da afirmao do Cristianismo que
fizeram com que esta relao religiosa fosse acolhida no seio de um conjunto institucional
com a especificidade das instituies crists, que tm uma base espiritualizante fortssima e
que so regidas por um direito que visa a salvao da alma, e no a regulao de uma
sociedade terrena20. Ao longo dos dez sculos que so fundamentais para a compreenso deste
fenmeno da regulamentao sobre doaes a seres divinos, feita por Justiniano, at sua
reelaborao na teoria das piae causae, pelos autores jurdicos dos sculos XIV a XVI21 -
as instituies de sufrgio por alma tornam-se assim legalmente organismos vivos, embora
no humanos, e sobre os quais os humanos operam com fortes restries; organismos esses
que funcionavam para a sobrevivncia do princpio anmico.
1. A constituio do direito das pias causas no Baixo Imprio
18 No direito justinianeu, fonte de toda a legislao posterior sobre o tema, esta proibio foi derivada tanto dasacralidade dos bens, bebida da jurisprudncia clssica, como da fora da vontade do defunto, com a mesmaorigem (J.L. Murga y Gener, El testamento en favor de Jesus Cristo y de los santos en el Derecho romanopostclssico y justiniano, p. 392, Anuario de Historia del Derecho Espaol, XXXV (1995), pp. 357-420).19 Cfr. infra, pp. 47 ss., 460 ss..20 Paolo Grossi, Lordine giuridico, pp. 112 ss..21 Sobre os autores e a periodizao cfr. infra, pp. 33-34.
27
A origem de um direito das pias causas remonta a Justiniano22. As piae causae
nascem porque se torna necessrio dar um enquadramento jurdico s mltiplas instituies
fundadas pelos fiis com escopo de beneficncia e culto: de quem era a propriedade, quem as
regulava, qual era a relao com a hierarquia eclesistica. Ou seja: depois do reconhecimento
oficial da Igreja, o poder civil teve que enquadrar as realidades novas que ela fizera nascer
(instituies ordenadas para fins sobrenaturais)23; e o poder eclesistico foi dando forma
jurdica s ideias teolgicas e msticas com que at a se auto-representava como instituio.
Esta dupla gnese tem sido apontada pelos autores como especialmente importante. J
Melchiorre Roberti, no seu importante artigo sobre a influncia do pensamento teolgico na
histria do conceito de pessoa jurdica, ampliando percepes de autores como O. Gierke
ou E. Albertario, demonstrara como a doutrina do corpus mysticum de S. Paulo, atravs da
patrstica grega e latina, modelara de forma original a legislao de Justiniano24. Ao direito
civil romano, construdo sobre o direito do indivduo, vem sobrepor-se uma legislao
destinada a regular a societas christianorum, que se auto-representa como um corpo ligado
por laos sobrenaturais. Os bens materiais so apenas possudos em regime da administrao
temporria, e os seus frutos devem ser postos ao servio dos mais pobres, representantes
directos da divindade, no corpo mstico que a sociedade 25. E em funo desta base
doutrinal que as instituies pias, fruto da iniciativa dispersa dos fiis e que possuem
contornos autnomos, surgem porm na legislao de Justiniano como integradas na Igreja;
recebendo, em contrapartida, os mesmos privilgios concedidos a esta26.
Os estudos de tcnica jurdica conduzidos dcadas mais tarde por Jos Murga vieram
confirmar a importncia da influncia doutrinal, na formao do direito das causas pias
embora ponham tambm relevo nos contributos do direito romano clssico (a hereditas
iacens, nomeadamente). Com efeito, j na poca pr-constantiniana Muy posiblemente en
esa ecuacin [a equiparao entre Cristo e os pobres] se encuentre todo el fundamento
doctrinal religioso de todos los negocios inter vivos y mortis causa, que proliferan en esta
poca alredor de los grandes personajes eclesisticos 27. Posteriormente, face modificao
22 O tema foi controverso sobretudo quanto questo da personalidade jurdica j existir nas pias causasjustinianeias, hiptese sobre a qual existe actualmente um consenso negativo. Cfr. a bibl. principal: R. Saleilles,Les piae causae dans le droit de Justinien, in Mlanges Grardin, pp. 513-551, Paris, Larouse et Fermin,1907; L. Vignoli, Il favor piae causae nel diritto giustinianeo, pp. 45-55, Roma, An. Tipografica EditriceLaziale, 1938, com discusso bibliografia; J. Gaudemet, Lglise dans lEmpire romain, pp. 303-304, Paris,Sirey, [1958] (HDIEO, II); A. Barroso de Oliveira, Vontades pias, p. 4, Vila Real, s. n., 1959.23 Caroline Humfress, A new legal cosmos: late roman lawyers and the early medieval church, in The medievalworld, ed. P. Linehan, J. L. Nelson, pp. 557-575, Londres/N.Iorque, Routledge , 2001.24 Il corpus mysticum di S. Paolo nella storia della persona giuridica, cit..25 Idem, pp. 76-78.26 Idem, pp. 67-69.27 El testamento..., 361. Seria ainda de ter em conta influncias do direito romano clssico, como seja aaceitao da pietas como valor objectivo de actos jurdicos, que ter influenciado a considerao da salvao da
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da posio da Igreja na sociedade, esta preocupao religiosa recebe uma natureza legal, um
carcter de obrigatoriedade que no mais desaparecer do pensamento eclesistico, pesem
todas as concesses feitas ao poder civil (Constituio de 326: Opulentos enim saeculi subire
necessitates oportet, pauperes ecclesiarum divitiis sustentari)28. Nos sculos seguintes
prosseguir o aperfeioamento do enquadramento jurdico das doaes piedosas, destacando-
se a legislao promulgada a este respeito por Justiniano entre 528 e 54529. Nela se vo
sucessivamente estabelecendo os privilgios secularmente invocados, como a dispensa de
requisitos formais nas doaes super piis causa facta (C.1.2. 19)30. De forma mais
fundamental, a legislao de Justiniano contribui para atribuir uma capacidade jurdica
autnoma aos estabelecimentos pios, que podem receber doaes, aceitar heranas, legados
ou fideicomissos, adquirir frutos e bens, constituir-se como partes em litgio31, enfim, a
desligar-se em boa parte da tutela episcopal (originria das primeiras construes jurdicas
feitas em torno a este tipo de instituies32).
A designao jurdica de pias causas cobre portanto o campo do destino institucional
das doaes pro anima. Detenhamo-nos ento um pouco na relao estabelecida entre as
duas, uma vez que nos interessa especialmente essa apropriao jurdica do pensamento
teolgico que operada pelo direito cannico, e que lhe confere a sua especificidade33. Servir-
nos- de base o pensamento de Santo Agostinho sobre o problema das doaes por alma, dada
a importncia fundamental e perene que alcanou, ao longo de todo o perodo medieval.
Em termos doutrinrios, o problema dos cuidados com os mortos tinha vindo a formar-
se desde a Patrstica e recebeu do bispo de Hipona um avano decisivo34. Segundo alguns
autores, a influncia deste teria mesmo consequncias directas nas prticas jurdicas,
provavelmente algo muito alheio s intenes originais de Agostinho. Na sequncia do
estudos de Alfred Schultze, a mais famosa homilia de Agostinho sobre o tema, a LXXXVI,
alma como fundamento de prtica jurdica, na legislao justinianeia (S. Cugia, Il termine piae causae.Contributo alla terminologia delle persone giuridiche nel diritto romano, Studi giuridici in onore di CarloFadda pel XXV ano del suo insegnamento, vol. V, pp. 254-55, Npoles, 1906).28 J. L. Murga Gener, El testamento..., p. 361, sublinhando o carcter de dever jurdico conferido pelo uso deoportere.29 Idem, pp. 358-359 e, de forma completamente desenvolvida, em La continuidad post-mortem de lafundacn cristiana, esp. 538-551, Anuario de Historia del Derecho Espaol, t. XXXVIII (1968), pp. 481-551.30 J. L. Murga Gener, La continuidad..., p. 539; El testamento.., pp. 386-93; uma abordagem sistemticaencontra-se em L. Vignoli, op. cit..31 J. L. Murga Gener, La continuidad..., p. 542.32 Explicao do processo em J. L. Murga Gener, La continuidad..., pp. 510-12 e em El testamento, 375-382.33 Paolo Grossi, Lordine giuridico, pp. 114 ss., distanciando-se assim das vises instrumentalistas deste direito(ao insistir na obrigao moral que pendia sobre os seus implementadores).34 Sobre a importncia capital de Agostinho na viso crist das relaes com os mortos, cfr. Michel Lauwers, Lammoire des anctres, le souci des morts. Morts, rites et socit au Moyn ge (diocse de Lige, XIe.-XIIIe.sicles), pp. 69 ss, Paris, Beauchesne, 1996.
29
encarada como tendo aberto a porta a uma valorizao jurdica da herana devida alma35.
Com efeito, o conselho de Agostinho seria no sentido de defender uma co-herana de Cristo e
os herdeiros legtimos, conduzindo generalizao da quota por alma obrigatria. No
entanto, a releitura do texto proposta por Infantes Florido e a anlise deste sobre a recepo do
texto em Graciano (confirmada pelo estudo recente de Marta VanLandingham36), permitem
colocar a questo de um modo diverso e, a nosso ver, mais correcto e interessante.
Com efeito, Agostinho constri a sua homilia sobre duas situaes concretas. Se numa
famlia morre um filho, no se deve dar a sua parte aos outros, mas sim ao prprio, que na
realidade no morreu; para a enviar ao cu, onde ele est, o pai deve servir-se dos pobres, ou
seja de Cristo, por eles representado. A segunda situao inverte os termos da questo: em
cada famlia deve fazer-se nascer um herdeiro a mais, Cristo, que receber em partes iguais
com os outros. Esta ltima ideia, a que mais invocada no tpico do prejuzo aos herdeiros,
no pode ser vista como tal, luz dos outros escritos de Agostinho e do contexto religioso do
seu pensamento37. Como Graciano de resto bem compreendeu, equalizar a parte de Cristo s
restantes, pretende, pelo contrrio, proteger os herdeiros contra as excessivas liberdades pias
dos testadores, por vezes incitadas pelos clrigos38. Mais tarde, ao devolver uma herana a
filhos nascidos depois de uma doao universal de bens Igreja, Agostinho no deixa de
sublinhar que o faz no segundo a justia dos romanos, mas segundo as leis de Deus39.
A formulao de Agostinho no tinha um objectivo jurdico directo, mas fundava-se
numa antropologia em que a morte fsica no interrompe a existncia do sujeito de direito,
que depois daquela continua proprietrio e beneficirio dos bens que adquirira. Porm, a
eficcia destes no pode ser construda sobre pecado na sua disposio, aquele em que
incorreria a alma ao prejudicar os herdeiros legtimos em benefcio prprio40. S a existncia
de um universo prescritivo imbudo de noes msticas poderia conciliar os dois interesses em
presena: salvar a alma c