As Aventuras de Sherlock Holmes

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Sherlock Holmes em: A coroa de Berilos Por Sir Arthur Conan Doyle PDF por ZOHAR ([email protected]) CPTurbo.org

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PDF por ZOHAR ([email protected]) CPTurbo.org Por Sir Arthur Conan Doyle Enquanto Holmes falava, o homem chegou ofegante, e à porta puxou tanto a campainha que esta ecoou na casa inteira. Sherlock Holmes empurrou-o para uma poltrona e, sentando-se a seu lado, afagou-lhe a mão e falou-lhe no tom amável e calmo que tão bem sabia — Creio que vem para cá! — disse Holmes, esfregando as mãos. — Que terá ele? — perguntei. — Está olhando para os números das casas. — Para cá?

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Sherlock Holmes

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A coroa de Berilos Por Sir Arthur Conan Doyle

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— Holmes — disse eu um dia, quando me encontrava de pé próximo da janela olhando para a rua —, ali vem um louco. É lamentável que os parentes o deixem sair sozinho.

Meu amigo levantou-se vagarosamente da sua poltrona e ficou olhando por cima do meu ombro, de mãos enfiadas nos bolsos do roupão. Era uma manhã fria de fevereiro; a neve do dia anterior ainda jazia no chão, brilhando ao sol invernal. Alguns carros já haviam passado pela rua, mas, à beira das calçadas, ela tinha sido varrida e até raspada, e estava escorregadia e perigosa, tanto que havia muito menos transeuntes que de costume. Dos lados da estação do metro não vinha ninguém, a não ser o tal cavalheiro cuja atitude excêntrica me chamara a atenção. Era um homem de cerca de cinqüenta anos, alto, de porte imponente, com um rosto

grande denunciando caráter forte e resoluto. Usava roupa escura mas elegante, com casaco, cartola, polainas castanhas e impecáveis calças de cor cinza-pérola. Todavia, seus modos contrastavam absurdamente com a dignidade da sua figura e do seu vestuário, porque corria muito, dando pequenos pulos, como quem está exausto e pouco habituado a exercício forçado. Enquanto corria, atirava as mãos para trás e para cima e contorcia o rosto horrivelmente. — Que terá ele? — perguntei. — Está olhando para os números das casas. — Creio que vem para cá! — disse Holmes, esfregando as mãos. — Para cá? — Sim, parece-me provável que venha me consultar; conheço os sintomas... Ah, não lhe disse? Enquanto Holmes falava, o homem chegou ofegante, e à porta puxou tanto a campainha que esta ecoou na casa inteira. Momentos depois entrou na sala, ofegante e gesticulando, mas com tão fixo e doloroso olhar de desespero que nosso sorriso se transformou num instante em horror e piedade. Por uns momentos não pôde articular uma palavra, apenas se agitava e puxava os cabelos como pessoa que pelo peso da dor parece enlouquecer. Levantando-se de repente, bateu com a cabeça contra a parede com tanta força que ambos corremos e o levamos para o meio da sala. Sherlock Holmes empurrou-o para uma poltrona e, sentando-se a seu lado, afagou-lhe a mão e falou-lhe no tom amável e calmo que tão bem sabia

empregar. — O senhor vem para me contar a sua história, não é verdade? Cansou-se com a pressa. Descanse um pouco e depois terei prazer em examinar qualquer problema que quiser confiar-me. O homem esforçou-se por controlar a emoção, enxugou a testa, firmou a boca e virou-se para nós. — Com certeza pensam que enlouqueci — disse ele. — Vejo que está em grande aflição — respondeu Holmes. — Deus o sabe! Uma aflição suficiente para desequilibrar o cérebro de uma pessoa, tão repentina e terrível é. Poderia enfrentar a vergonha pública, embora eu seja um homem cujo caráter não teve qualquer mancha até agora. Aflições particulares também todos têm; mas as duas coisas juntas, e de forma tão terrível, quase me enlouquecem. Além disso, não só a mim. Os nobres deste país podem vir a sofrer, a não ser que se descubra uma saída para o problema. — Bem, acalme-se — aconselhou Holmes —, e depois me diga claramente quem é o senhor e o que lhe aconteceu. — Talvez o senhor já tenha ouvido o meu nome — disse o nosso visitante. — Sou Alexander Holder, da Casa Bancária Holder & Stevenson, da Threadneedle Street. O nome era bem conhecido por nós ambos, pois era o segundo grande banco da City de Londres. O que poderia ter acontecido então para que um dos cidadãos mais acatados ficasse naquele estado de nervos? Esperamos, curiosos, até que finalmente, depois de mais um esforço, ele se concentrou e nos contou a sua história. — Sinto que tempo é dinheiro, e por isso me dirigi para cá assim que o inspetor da polícia me aconselhou a buscar a sua cooperação. Vim pelo metro, e de lá a pé, porque os carros andam muito devagar devido à neve, e por isso é que estou ofegante, pois não sou habituado a muito exercício físico. Sinto-me melhor agora, e vou contar-lhe tudo depressa, mas o mais claramente possível. "O senhor, naturalmente, sabe que um banco em franco progresso depende muito da obtenção de investimentos remunerativos para o seu dinheiro, bem como do aumento de suas relações e do número de seus depositantes. Um dos meios mais lucrativos de aplicar o dinheiro é o empréstimo, quando a segurança é completa. Durante os últimos anos temos feito muito nesse setor. Há muitas famílias nobres a quem temos adiantado grandes somas, aceitando como garantia seus valiosos quadros, bibliotecas ou pratas. "Ontem, estava no meu gabinete, no banco, quando um dos funcionários me trouxe um cartão de visita.

"Estremeci quando vi o nome, porque não era outro senão... bem, acho que nem ao senhor devo revelá-lo. Basta dizer que é um nome pronunciado em todas as casas e no mundo inteiro, um dos mais nobres, mais exaltados na Inglaterra. Fiquei profundamente comovido com a honra e esforcei-me por dizê-lo quando ele entrou, mas ele atirou-se logo ao negócio, como um homem que tem pressa de liquidar um assunto desagradável. "— Sr. Holder — começou ele —, disseram-me que o senhor costuma fazer adiantamentos de dinheiro.

"— A firma faz isso quando a garantia é boa — respondi. "— É absolutamente essencial que eu tenha cinqüenta mil libras imediatamente. É claro que eu poderia pedir um empréstimo aos meus amigos dez vezes maior que essa quantia, mas prefiro que seja em forma de negócio, e que eu próprio o trate pessoalmente. O senhor deve compreender que na minha posição não é muito recomendável criar obrigações. "— Por quanto tempo, posso perguntar, V. Exa. vai precisar dessa soma? — perguntei. "— Segunda-feira próxima devo receber uma soma enorme que me é devida, e então poderei devolver o que o senhor me adiantar, com a percentagem que julgar justa. Mas é essencial que receba já essa quantia. "— Teria muito prazer em lhe fazer o empréstimo, mas meus fundos particulares não seriam suficientes; entretanto, se tem de ser feito em nome da firma, devem-se, com justiça, usar todas as formalidades necessárias para a segurança, como precaução. "— Prefiro que seja assim — disse ele, pegando um enorme porta-jóias de marroquim preto, que havia posto a seu lado na cadeira. — O senhor com certeza já ouviu falar da coroa de berilos. "— Um dos bens mais preciosos do império — disse eu. "— Precisamente. — Nisto ele abriu o porta-jóias, e ali, deitada em veludo macio, cor da pele, estava a magnífica peça de joalheria de que falou. — Há trinta e nove enormes berilos — disse ele —, e o preço do engaste de ouro é incalculável. A mais baixa avaliação daria à coroa duas vezes a quantia que lhe peço. Estou pronto a deixá-la como garantia. "Tomei a preciosidade entre as mãos e olhei primeiro para ela e depois para o meu ilustre cliente. "— Duvida do seu valor? — perguntou.

"— Absolutamente. Só duvido... "— Do direito de eu a deixar. Pode ficar descansado quanto a isso. Não sonharia em fazê-lo se não tivesse a certeza de que dentro de quatro dias poderei resgatá-la. É uma questão de praxe. Chega esta garantia? "— Muito bem. "— O senhor compreende, Sr. Holder, que estou lhe dando uma forte prova de confiança. Confio no senhor, não só por saber que é discreto, e que portanto não falará a ninguém sobre o assunto, mas, acima de tudo, para guardar essa coroa com toda a precaução, porque é desnecessário dizer-lhe que, se lhe acontecer qualquer coisa, isso seria causa de grande escândalo público. Qualquer arranhão seria quase tão sério quanto a sua perda completa, porque não há berilos no mundo que se comparem com estes, e seria impossível repô-los. Deixo-a com o senhor, com plena confiança, e virei buscá-la na segunda-feira de manhã. "Vendo que meu cliente estava ansioso por ir embora, não disse mais nada, mas, chamando o caixa, mandei-o pagar as cinqüenta mil libras em notas. Ao ficar sozinho outra vez, com a preciosidade na minha frente sobre a mesa, não pude deixar de pensar na grande responsabilidade que pesava sobre mim. Não havia dúvida de que, como objeto pertencente à nação, haveria um escândalo horrível se qualquer contratempo ocorresse. Arrependi-me de ter ficado com ela, mas era tarde demais para retroceder; fechei-a no meu cofre particular e voltei ao trabalho. "Chegou a tarde e achei imprudente deixar tão precioso valor no escritório. Os cofres dos outros bancos já tinham sido forçados; por que não o meu? E se fosse arrombado, em que posição terrível estaria eu! Resolvi, portanto, que durante esses três ou quatro dias carregaria o embrulho para casa e no regresso o traria sempre comigo. "Com essa intenção, chamei um carro e nele segui para minha casa em Streatham, levando a jóia comigo. Não respirei livremente enquanto não a levei para o meu quarto de vestir e a coloquei na secretária, fechando-a à chave. "Agora, Sr. Holmes, uma palavra quanto ao meu lar, porque é preciso que o senhor compreenda perfeitamente as condições gerais. Meu cocheiro e o pajem dormem fora, nem se precisa falar neles. Tenho três empregadas que estão comigo há um bom número de anos e cuja conduta está acima de suspeitas. Outra, Lucy Parr, está em minha casa apenas há alguns meses. Veio com uma carta de apresentação excelente e tem sido satisfatória. É uma jovem bonita e atrai admiradores, que às vezes rondam a casa. É a única coisa que tenho contra ela, mas acreditamos que seja boa moça sob todos os pontos de vista. Quanto a empregados, é só. "Minha família é tão pequena que não é preciso muito para descrevê-la. Sou viúvo e tenho um único filho, que se chama Arthur. Ele é um desapontamento

para num, Sr. Holmes, um grande desapontamento. Com certeza sou eu o único culpado. Dizem que o estraguei. Quando minha boa esposa morreu, ele era a única pessoa que eu tinha para amar, e não podia ver seu rostinho perder o sorriso, não lhe negava nenhum desejo. Talvez fosse melhor para nós dois se eu tivesse sido mais severo, mas o que fiz foi com a melhor intenção. "Era, naturalmente, meu desejo que me sucedesse no banco, mas ele não gosta de negócios. É desmiolado, tem mau gênio e, para falar a verdade, não pude confiar nele para manipular grandes somas de dinheiro. Quando era mais jovem, entrou para um clube de aristocratas onde, devido aos seus modos cativantes, se tornou amigo íntimo de diversas pessoas que têm os bolsos cheios e hábitos dispendiosos. Aprendeu a jogar cartas e a apostar em corridas no turfe, até que, por diversas vezes, teve de recorrer a mim, pedindo-me que lhe adiantasse a mesada. "Mais de uma vez quis afastar-se dos companheiros, mas seu amigo, Sir George Burnwell, conseguia sempre influenciá-lo e, por fim, ele voltava. "Não admira muito que Sir George Burnwell o cativasse, porque, apesar de serem poucas as vezes em que ele o trouxe a nossa casa, não pude deixar de gostar dos seus modos. É mais velho do que Arthur, homem do mundo até as pontas dos dedos; já esteve em toda parte, viu tudo, é um conversador brilhante e homem de bela fisionomia. Todavia, quando penso nele calmamente, longe da atração da sua presença, fico convencido do cinismo da sua conversa, e o olhar esperto que se vislumbra faz pensar que ele é uma pessoa em quem não se deve confiar. Essa é também a opinião da minha pequena Mary, que tem o instinto perspicaz de mulher. "Agora, só falta falar dela. É minha sobrinha; quando o pai dela faleceu, há cinco anos, e a deixou sozinha no mundo, adotei-a, e tenho-a considerado como minha filha. É como um raio de luz na minha casa — dócil, amável, bela e perfeita dona-de-casa, mas calma e delicada como só uma mulher pode ser. Ela é a minha mão direita. Não sei o que faria sem ela. Só numa coisa me contrariou. Por duas vezes meu rapaz a pediu em casamento, pois ama-a como um devoto, mas ela o recusou. "Penso que, se existe alguma pessoa capaz de conduzi-lo ao caminho do bem, é ela, e que se estivessem casados ele melhoraria. Mas, agora, ai de mim! É tarde demais — para sempre! "Agora, Sr. Holmes, que o senhor já sabe tudo a respeito das pessoas que moram comigo, debaixo do meu teto, vou continuar minha triste história. "Quando, naquela noite, estávamos tomando café na sala depois do jantar, contei a Arthur e Mary a minha experiência e falei do tesouro precioso que tínhamos em casa, só não dizendo o nome do meu cliente. Lucy Parr, que havia trazido o café, tinha saído, tenho a certeza, mas não posso jurar que a porta estivesse fechada. Mary e Arthur mostraram-se interessados e quiseram ver a famosa coroa, mas achei melhor não tocar nela.

"— Onde a guardou? — perguntou Arthur. "— Na minha própria secretária. "— Bem, queira Deus que a casa não seja visitada hoje pelos ladrões — disse ele. "— Está trancada — respondi.

"— Oh, qualquer chave velha serve naquela secretária. Quando era garoto, eu próprio a abri com a chave do armário do quarto das malas. "Ele exagerava muito às vezes quando falava, e, assim, nem fiz caso do que disse. Seguiu-me até o quarto com um olhar muito sério. "— Olhe, pai — disse, cabisbaixo —, pode adiantar-me duzentas libras? "— Não posso — respondi rapidamente. — Tenho sido por demais generoso com você quanto a dinheiro. "— O senhor tem sido muito bondoso — disse ele —, mas preciso desse dinheiro, senão nunca mais poderei entrar no clube. "— E seria uma boa coisa — ripostei. "— Sim, mas o senhor não haveria de gostar que eu o deixasse desonradamente — disse ele. — Eu não agüentaria a vergonha, preciso levantar esse dinheiro de qualquer forma, e se o senhor não quer me ajudar, tenho de procurar outros meios de obtê-lo. "Eu estava zangadíssimo, porque aquele era o terceiro pedido do mês. "— Você não terá nem um centavo meu! — gritei; então ele se inclinou e saiu do quarto sem dizer uma palavra. "Depois que ele saiu, abri a secretária, para ter a certeza de que meu tesouro estava seguro, e tranquei-a de novo. Depois dei uma volta à casa para ver se tudo estava bem fechado — um dever que sempre deixava para Mary, mas que julguei melhor ser eu próprio a cumprir naquela noite. Quando desci, vi Mary à janela lateral do vestíbulo, que ela fechou quando cheguei. "— Diga-me, pai — disse ela —, deu licença a Lucy para sair à noite? "— Certamente que não. "— Ela entrou agora mesmo pela porta dos fundos. Com certeza esteve apenas ao portão falando com alguém, mas acho isso perigoso e deve-se acabar com tal costume. "— Fale com ela amanhã, ou, se preferir, falarei eu. Tem certeza de que está

tudo bem fechado? "— Sim, pai. "— Então, boa noite. "Beijei-a, fui para o meu quarto e adormeci imediatamente. Estou me esforçando por lhe contar tudo o que possa ter alguma relação com o caso, Sr. Holmes, mas peço que me faça perguntas sobre qualquer ponto que não esteja bem claro." — Pelo contrário, sua narrativa é extraordinariamente lúcida.

— Chego agora a uma parte da história em que desejo ser bem explícito. Tenho o sono leve, e a preocupação sem dúvida serviu para me torná-lo mais leve ainda. Cerca das duas horas fui acordado por um barulho dentro de casa, que cessou, porém, antes que eu despertasse de todo; deu-me, no entanto, a impressão de que era alguém fechando uma janela, e fiquei escutando atentamente. De repente, para meu horror, ouvi passos leves mas distintos no quarto anexo. Escorreguei da cama, tremendo de medo, e olhei na direção da porta do meu quarto de vestir. "— Arthur — gritei. — Você é um malandro, um ladrão! Como tem a ousadia de tocar nessa coroa? "O lampião estava meio aceso, como eu o havia deixado, e meu infeliz rapaz, apenas em mangas de camisa e calças, estava ao pé da luz, segurando a coroa nas mãos. Parecia que a estava esticando ou dobrando com toda a força. Ao meu grito, deixou-a cair e ficou pálido como a morte. Peguei nela e examinei-a. Faltava um dos cantos de ouro, com três berilos. "— Cruel! — gritei, fora de mim. — Você a destruiu! Desonrou-me para sempre! Onde estão as gemas que roubou? "— Que roubei?! — gritou ele. "— Sim, ladrão! — rosnei, sacudindo-o pelo ombro. "— Não falta nenhuma. Não podem faltar — disse ele. "— Faltam três. E você sabe onde estão. É preciso que o chame de mentiroso, além de ladrão? Não o vi pretendendo arrancar outro pedaço? "— O senhor já me ofendeu bastante — disse ele. — Não agüento mais. Não direi mais uma palavra sobre este assunto, já que me insulta assim. Deixarei sua casa amanhã, e seguirei meu próprio caminho no mundo. "— Sairá, mas nas mãos da polícia — gritei, meio louco de tristeza e raiva. —

Mandarei investigar este caso até o fim. "— De mim nada saberá — disse ele, com uma paixão que nunca pensei encontrar na sua natureza. — Se quiser chamar a polícia, deixe que ela descubra o que puder. "Toda a casa estava agora de pé, porque eu havia elevado muito a voz, na minha ira. Mary foi a primeira a correr para o meu quarto, e, à vista da coroa e do rosto de Arthur, percebeu o que se passava e, com um grito, caiu sem sentidos no chão. Mandei a criada chamar a polícia e deixei as investigações aos seus cuidados. "Quando o inspetor e o detetive entraram na casa, Arthur, que estava de braços cruzados, perguntou-me se ia acusá-lo de furto. "Respondi-lhe que o caso já não era particular, mas público, desde que a coroa danificada era propriedade da nação. Resolvera que a lei agisse em tudo. "— Pelo menos — disse ele —, não me mande prender agora; seria vantajoso para o senhor e para mim se eu pudesse sair de casa por cinco minutos. "— Para que você possa fugir ou esconder o que roubou? — afirmei eu. "E então, compreendendo a terrível situação em que eu estava, implorei-lhe, lembrando que não só a minha honra ficaria manchada, como também a honra de alguém mais importante do que eu; e que o escândalo que iria levantar convulsionaria a nação. Ele poderia evitar tudo isso se contasse o que tinha feito com as três gemas que faltavam. "— É melhor enfrentar as conseqüências — tornei eu. — Você foi apanhado em flagrante, e não confessando pode tornar a sua culpa mais hedionda. Basta confessar o que está em seu poder, dizendo-nos onde estão os berilos, e tudo será perdoado e esquecido. "— Guarde o seu perdão para quem o peça — respondeu ele, virando-se com escárnio. "Percebi que estava fora da minha influência, mas havia um remédio. "Chamei o inspetor, que o prendeu. Fizeram uma busca, não só em sua pessoa, como em seu quarto e na casa toda, onde ele poderia ter escondido as gemas; mas nem o menor vestígio foi encontrado, e o miserável rapaz não quis abrir a boca, por mais persuadido e ameaçado que fosse. "Hoje foi levado para uma cela, e eu, depois de passar por todas as formalidades com a polícia, apressei-me a vir ter com o senhor para lhe implorar que use sua grande habilidade para deslindar o assunto. A polícia já confessou que por ora não há meio de se descobrir coisa alguma. Pode despender quanto for preciso, já ofereci mil libras. Céus! Que farei? Perdi a

minha honra, as gemas e o meu filho numa só noite. Oh, que farei?" Colocou uma mão de cada lado da cabeça e balançou-se de um lado para o outro, choramingando como uma criança cuja tristeza não tinha limites. Sherlock Holmes ficou calado uns minutos, com a testa enrugada e o olhar fixo no fogo. — O senhor recebe muitas visitas? — perguntou. — Nenhuma, a não ser o meu sócio com sua família e um amigo ou outro de Arthur. Sir George Burnwell tem ido lá diversas vezes ultimamente. Ninguém mais. — E o senhor freqüenta a sociedade? — Só Arthur. Mary e eu ficamos em casa. Nem um nem outro gosta de sair. — As jovens quase nunca são assim. — Ela é de natureza calma; além disso, não é muito jovem. Já fez vinte e quatro anos. — Conforme o senhor disse, este caso foi um choque para ela também. — Terrível! Ela ficou pior do que eu. — Ambos estão certos da culpabilidade de seu filho? — Como poderemos duvidar, quando eu o vi com a coroa na mão? — Não considere isso prova conclusiva. O resto da coroa estava danificado? — Sim, estava torta. — Mas o senhor não acha que ele podia estar tentando endireitá-la? — Deus o abençoe. O senhor tenta ajudá-lo, a ele e a mim. Mas é muito difícil. O que ele estava fazendo ali, em primeiro lugar? E se seu propósito era inocente, por que não falou? — Precisamente. E, sendo culpado, por que não inventou uma mentira? Seu silêncio, segundo me parece, pode ser duplamente interpretado. Há diversos pontos esquisitos neste caso. O que disse a polícia a respeito do barulho que o acordou? — Acharam que poderia ser o ruído da porta do quarto de Arthur se fechando. — Uma história bonita! Como se um homem pronto para roubar fosse bater a porta para acordar a família inteira. E que disseram quanto à falta das gemas?

— Ainda estão retirando tábuas e inspecionando a mobília, na esperança de encontrá-las. — Não se lembraram de procurar fora da casa? — Sim, mostraram extraordinário interesse. Todo o jardim foi examinado minuciosamente. — Agora, meu senhor — disse Holmes —, não vê que nisso tudo há uma coisa muito mais profunda do que o senhor ou a polícia estão inclinados a pensar? Parecia um caso simples; a mim parece-me excessivamente complexo. Considere o que está envolvido na sua teoria. O senhor supõe que seu filho se levantou da cama e foi, com grande risco, ao seu quarto de vestir, abriu a secretária, tirou a coroa, quebrando uma parte, embora à força, tendo-se dirigido em seguida para outro lugar, onde escondeu três das gemas com tanta habilidade que ninguém as encontra, e depois voltou com as outras trinta e seis gemas para o quarto, onde se expôs ao grande perigo de ser descoberto. Pergunto-lhe: é sustentável tal teoria? — Mas pode haver outra? — exclamou o banqueiro com um gesto de desespero. — Se tem provas da sua inocência, por que não as apresenta? — Compete a nós descobri-lo — replicou Holmes. — Agora, Sr. Holder, iremos a Streatham juntos, para investigar mais de perto os pormenores que temos. Meu amigo insistiu para que eu fosse com eles nessa expedição, o que, aliás, eu desejava fazer, porque minha curiosidade e simpatia haviam sido profundamente despertadas pela história que ouvimos. Confesso que a culpabilidade do filho do banqueiro me parecia tão evidente como ao seu infeliz pai; todavia, tinha tanta fé no julgamento de Holmes, que achei que havia uma esperança, uma vez que ele não estava satisfeito com as explicações dadas. Não falou durante a viagem, nos subúrbios; manteve-se sentado, com o queixo apoiado sobre o peito, o chapéu cobrindo-lhe os olhos e perdido na mais profunda meditação. Nosso cliente parecia ter-se reanimado com aquele vislumbre de esperança que lhe havia sido apresentado e começou a falar-me um pouco sobre o seu trabalho. Uma viagem curta de trem, e outra menor, a pé, depressa nos levou a Fairbank, a modesta residência do banqueiro. Fairbank era uma casa de bom tamanho, de pedra branca, um pouco afastada da rua. Tinha uma entrada para carros com relvado, no momento coberta de neve, que se estendia na frente até os portões grandes, de ferro, que fechavam a propriedade. Ao lado direito alguns arbustos iam da rua até a porta da cozinha, que era a entrada de serviço. À esquerda passava uma viela que levava aos estábulos, e que estava separada do resto da casa, pois era uma passagem pública, embora pouco freqüentada. Holmes deixou-nos à porta e andou vagarosamente ao redor da

casa toda, atravessou a frente, passou pela viela e depois pelo jardim atrás dos estábulos. Tanto tempo levou, que o sr. Holder e eu entramos na sala de jantar e esperamos perto da lareira até que ele voltasse. Nisso abriu-se a porta e uma jovem entrou. Era de boa altura, magra, cabelos e olhos escuros, que a palidez do rosto parecia salientar mais ainda. Não me lembro de jamais ter visto palidez tão mortal. Os lábios também não tinham sangue, e os olhos estavam inchados de tanto chorar, demonstrando ainda mais pesar do que o próprio tio, o que era mais notável nela porque deu a impressão de ser uma mulher de temperamento forte e com imensa capacidade de se controlar. Não fazendo caso da minha presença, chegou-se perto do tio e alisou-lhe a cabeça com carinho. — Já deu ordem para que soltem Arthur, não é verdade, pai? — perguntou. — Não, não, filha, o caso precisa ser investigado até o fim. — Mas tenho certeza de que ele está inocente. O senhor sabe o que são os instintos femininos. Tenho certeza de que ele não fez mal nenhum e que o senhor se arrependerá de haver sido tão implacável. — Mas por que ele não fala, se de fato está inocente? — Quem sabe? Talvez esteja ofendido pelo fato de o senhor tê-lo acusado. — Como podia deixar de suspeitar dele, quando o vi com a coroa nas mãos? — Oh, mas ele só a pegou para examiná-la. Oh, faça o favor de acreditar na minha palavra, ele está inocente... Não diga mais nada a respeito do caso. É terrível pensar que o nosso caro Arthur esteja na cadeia. — Não ficarei descansado enquanto as gemas não forem encontradas; nunca, Mary. Seu amor por Arthur a faz cega quanto aos defeitos dele e às medonhas conseqüências para mim. Longe de abafar o caso, trouxe um senhor de Londres para investigar melhor as coisas. — Este senhor? — perguntou ela, virando-se para mim. — Não, o amigo dele. Quis ficar trabalhando sozinho, e está agora na viela dos estábulos. — Na viela dos estábulos! — Ela ergueu as sobrancelhas. — O que espera ele encontrar lá? Ah!, suponho que seja este. Espero, senhor, que seja bem sucedido em provar aquilo de que tenho a certeza; a verdade é que meu primo Arthur está inocente deste crime. — Participo inteiramente da sua opinião — replicou Holmes, voltando para junto do capacho a fim de limpar a neve dos sapatos. — Penso que tenho a honra de falar com a Srta. Holder. Posso lhe fazer algumas perguntas?

— Rogo que as faça, se é que posso ajudar a esclarecer este caso horrível. — A senhorita não ouviu barulho algum esta noite? — Nada, até que meu tio começou a falar alto; isso ouvi, e desci logo. — Foi a senhorita quem fechou as janelas e portas a noite passada. E fechou-as bem?

— Sim. — Estavam fechadas esta manha? — Estavam. — Uma das empregadas parece que tem namorado. Creio que a senhorita disse a seu tio que ontem à noite ela saiu para encontrá-lo. — Sim, é a mesma moça que serviu o café e que possivelmente ouviu as observações de meu tio a respeito da coroa. — Está bem. A senhorita crê que ela saiu para contar ao namorado e que os dois possam ter planejado o furto. — Mas qual é o propósito de toda essa conversa? — exclamou o banqueiro impacientemente. — Eu já lhe disse que vi a coroa na mão de Arthur.

— Espere um pouco, Sr. Holder. Devemos voltar a este ponto. Acerca dessa moça, Srta. Holder, presumo que a senhorita a viu voltar pela porta da cozinha. — Sim, quando fui ver se a porta estava fechada, encontrei-a como que deslizando para dentro. Vi também o homem na escuridão. — A senhorita o conhece? — Oh, sim, é o vendedor que nos traz os legumes. Chama-se Francis Prosper. — Estava à esquerda da porta, isto é, um pouco afastado? — perguntou Holmes. — Sim, estava. — E tem uma perna de pau? Uma expressão de medo apareceu nos olhos negros da jovem. — Mas o senhor é um mágico — afirmou ela. — Como sabe disso? — Ela

sorriu, mas não havia um sorriso correspondente no rosto magro e sério de Holmes. — Gostaria de subir agora aos quartos — disse ele. — Provavelmente, terei de dar outra volta à casa, e talvez seja melhor que observe as janelas antes de subir. Andou vagarosamente de uma para outra das janelas, parando somente quando chegou à maior delas, a do vestíbulo, que dava para a viela dos estábulos. Abriu-a e examinou bem o peitoril com sua lente poderosa. — Agora vamos subir — anunciou ele. O quarto do banqueiro era muito simples, com tapete cinzento, o armário e um espelho comprido. Holmes foi à secretária em primeiro lugar e olhou bem para a fechadura. — Qual a chave que foi usada para abri-la? — perguntou ele. — Aquela que meu filho indicou, a do armário do quarto das malas. — Está aqui? — É aquela que está em cima da mesa do toucador. Sherlock Holmes pegou-a e abriu o armário. — É uma fechadura silenciosa. Não me admiro que não tivesse acordado. É aqui que está a coroa. Vamos examiná-la. Abriu o porta-jóias e, tirando o diadema, colocou-o em cima da mesa. Era um espécime magnífico da arte de joalheria, e as trinta e seis pedras eram as mais belas que eu jamais havia visto. O lado da coroa de que fora arrancado o canto com as três gemas estava quebrado. — Agora, Sr. Holder — disse Holmes —, aqui está o canto que corresponde ao que infelizmente foi perdido. Peço que o tire. O banqueiro recuou, horrorizado. — Eu nem sonharia experimentar isso. — Então eu o farei. — E Holmes despendeu a maior força, mas sem resultado. — Sinto que está cedendo um pouco, mas, apesar de ter muita força nos dedos, seria difícil quebrá-lo. Um homem comum não poderia tê-lo feito. Ora vejamos, Sr. Holder, que é que acha que aconteceria se eu conseguisse quebrá-lo? Haveria um barulho como se tivessem dado um tiro, e o senhor quer me dizer que tudo isso aconteceu a poucos metros da sua cama e não ouviu nada?

— Nem sei o que pensar. É tudo tão obscuro para mim... — Mas talvez possa clarear enquanto andamos; e a Srta. Holder, o que acha? — Confesso que estou tão perplexa quanto meu tio. — Seu filho estava descalço quando o senhor o viu? — Estava só de camisa e calças. — Obrigado. Tivemos muita sorte durante esta investigação, e será nossa exclusiva culpa se não acabarmos por esclarecer tudo. Se me dá licença, Sr. Holder, voltarei lá para fora. Foi sozinho como pediu, porque explicou que pegadas desnecessárias poderiam tornar seu trabalho mais difícil. Por mais de uma hora esteve trabalhando por lá, mas finalmente voltou com os sapatos carregados de neve e a fisionomia tão impenetrável como sempre. — Creio que já vi tudo o que há para ver, Sr. Holder — disse ele —, e posso servi-lo melhor voltando para o meu apartamento. — E as gemas, Sr. Holmes? Onde estão? — Isso não sei. O banqueiro torceu as mãos. — Nunca mais as verei! — exclamou ele. — E meu filho? Há alguma esperança de que seja inocente? — Minha opinião quanto a ele continua inalterável. — Então, em nome de Deus, que mistério foi perpetrado em minha casa ontem à noite? — Se o senhor puder ir ao meu apartamento amanha entre as nove e as dez horas, ficarei satisfeito por esclarecer tudo melhor. Se compreendi bem, o senhor me dá toda a liberdade para representá-lo, contanto que lhe traga as gemas, e não há limite na quantia que posso gastar, sendo necessário. — Darei minha fortuna para recuperá-las. — Muito bem. Vou estudar o caso. Até mais; é muito possível que tenha de voltar aqui antes do anoitecer. Percebi que meu amigo já tinha tirado as suas conclusões, mas em que consistiam nem vagamente pude imaginar. Diversas vezes na viagem de regresso procurei sondá-lo sobre o caso, mas ele se esquivava sempre para outro assunto, até que desisti, desanimado.

Ainda não eram quinze horas quando chegamos a casa. Ele dirigiu-se rápido para o seu quarto e desceu poucos minutos depois, vestido como um vagabundo, com a gola levantada, casaco velho, gravata vermelha e sapatos gastos; era um mendigo perfeito. — Creio que isto deve servir — disse ele, olhando para o espelho colocado acima da lareira. — Gostaria que você pudesse me acompanhar, Watson, mas creio que não daria certo. Talvez esteja na pista correta deste caso, ou talvez seja apenas alarme falso; porém, daqui a pouco saberei o que é, e espero voltar dentro de poucas horas. Cortou um pedaço de carne assada e, com duas fatias de pão, fez um bom sanduíche, que colocou no bolso; depois, saiu para a sua expedição.

Eu já havia acabado o lanche quando ele voltou, alegre, agitando uma bota com elásticos. Atirou-a para um canto e serviu-se de uma chávena de chá. — Só entrei de passagem — disse ele. — Vou continuar a viagem. — Para onde? — Oh! Para o lado do West End. Pode ser que não volte cedo. Não precisa me esperar, caso volte tarde. — E como vai o caso? — Oh, assim, assim. Não há razão para queixas. Estive em Streatham depois que saí, mas não fui à casa. É um problema muito interessante, e não o teria perdido por coisa alguma. Em todo caso, não posso ficar aqui tagarelando, pois preciso trocar esta roupa pouco respeitável e regressar à minha nobre pessoa. Percebi que ele tinha inúmeras razões para estar satisfeito, mais pela sua fisionomia do que pelo que disse. Os olhos brilhavam, o rosto estava corado, em vez da habitual palidez. Subiu depressa para o quarto, e, poucos minutos depois, ouvi bater a porta da frente, o que foi sinal para mim de que havia saído outra vez para a sua genial caçada. Esperei-o até a meia-noite, mas, como ele não voltasse, fui para o meu quarto. Não era novidade o fato de ele ficar fora de casa noites e dias quando tinha uma boa pista, e por isso não me preocupei. Não sei a que horas voltou, só sei que, quando desci para o café da manhã, lá estava ele, com uma chávena de café numa mão e o jornal na outra, tão elegante e aprumado quanto era possível. — Desculpe-me não ter esperado, Watson — disse ele —, mas deve estar

lembrado de que nosso cliente tem um compromisso hoje muito cedo. — Já passa das nove horas, e estão tocando a campainha; não me admiraria se fosse ele. Era mesmo o banqueiro. Sofri um choque quando vi o rosto dele, porque, em vez de largo e cheio, estava magro e esquálido, e o cabelo parecia mais branco. Entrou com ar cansado e letárgico, pior que a atitude violenta do dia anterior. Sentou-se numa poltrona que eu lhe apontei. — Não sei o que fiz para ser tão duramente castigado — principiou ele. — Há dois dias apenas era um homem feliz e próspero, sem uma preocupação sequer. Agora estou sozinho e desonrado. A uma infelicidade, segue-se logo outra. Minha sobrinha deixou-me. — Deixou-o? — Sim, a cama dela não foi usada esta noite. O quarto está vazio, e havia um bilhete em cima da mesa do vestíbulo. Ontem à noite eu lhe disse que se ela tivesse se casado com o meu rapaz ele não teria feito essas coisas. Talvez tenha sido o egoísmo o que me fez falar. O bilhete dizia: "Meu caro tio: Sinto que é por minha causa que está sofrendo, e que se eu tivesse agido de outra maneira este infortúnio não teria acontecido. Não posso, portanto, por me lembrar constantemente disso, continuar em sua casa, e acho que devo ir embora para sempre. Não se preocupe quanto ao meu futuro, porque já está acertado; e, acima de tudo, não procure saber onde estou, porque será trabalho perdido e serviço mal-empregado. Na vida ou na morte,

sua sempre afeiçoada Mary".

— O que será que ela quer dizer com isso, Sr. Holmes? O senhor acha que indica suicídio? — Não, nada disso. É sem dúvida uma solução melhor. Espero, Sr. Holder, que o senhor esteja chegando ao fim das suas aflições. — Ah, o senhor diz isso! Já soube então de alguma coisa, Sr. Holmes? Onde estão as gemas? — O senhor não acharia demais pagar mil libras por cada uma? — Pagaria dez. — Não será necessário. Três mil cobrirão a despesa. E há também uma gorjeta, não? O senhor trouxe o seu talão de cheques? Aqui está uma caneta. É melhor assinar quatro mil.

Com o olhar fixo, o banqueiro assinou o cheque. Holmes foi para a sua escrivaninha, tirou uma peça triangular de ouro com três gemas incrustadas e atirou-a para cima da mesa. Gritando de alegria, o cliente agarrou-as: — O senhor as tem! Estou salvo! Estou salvo! A reação foi tão apaixonada quanto havia sido a sua aflição, e ele apertou as gemas contra o peito. — Há mais uma coisa que o senhor está devendo, Sr. Holder — disse Sherlock Holmes, um tanto severamente. — Devo? — Nisso pegou a caneta. — Diga a soma e pagarei. — Não, não é a mim que o senhor deve, mas deve pedir humildemente desculpas àquele nobre rapaz, seu filho, que se portou tão bem neste caso que eu ficaria orgulhoso se um filho meu se comportasse assim, caso viesse a ter um filho um dia! — Então, não foi Arthur quem as tirou? — Eu lhe disse ontem, e repito-o hoje, não foi ele. — O senhor tem certeza disso? Então deixe-me ir imediatamente ter com ele e contar-lhe que já se sabe a verdade. — Ele já sabe. Logo que terminei, fui ter com ele, e, vendo que não me contaria a história, vi-me obrigado a contá-la, e ele teve de confessar que eu tinha razão e adicionou alguns pormenores que não estavam bem claros. As novidades de hoje talvez lhe façam abrir a boca. — Pelo amor de Deus, então, conte-me que estranho mistério é este! — Eu o farei e lhe direi os passos que dei para descobri-lo. Todavia, deixe-me dizer-lhe primeiramente o que é mais difícil para mim contar-lhe. E para o senhor, ouvir. Houve uma combinação entre Sir George Burnwell e sua sobrinha Mary, e eles fugiram juntos. — Minha Mary? Impossível! — Infelizmente é mais do que possível, é certo; nem o senhor nem seu filho perceberam o verdadeiro caráter desse homem, a quem o senhor permitiu a entrada no círculo de sua família. É um dos mais perigosos da Inglaterra... jogador arruinado, vagabundo desesperado, homem sem coração nem consciência. Sua sobrinha não conhecia indivíduos assim. Quando ele soprou frases de amor aos ouvidos dela, como havia feito a centenas de outras, ela sentiu-se lisonjeada e julgou que era a única que lhe tocara o coração. Só o

diabo sabe o que ele disse, mas finalmente ela tornou-se um instrumento nas mãos dele, e via-o todas as noites. — Não posso, não quero crer nisso! — gritou o banqueiro com o rosto lívido. — Eu lhe contarei então o que aconteceu naquela noite. "Sua sobrinha, julgando que o senhor já estivesse deitado, desceu e foi falar com o namorado pela janela que abre para a viela dos estábulos. As pegadas dele estavam marcadas na neve, tanto tempo ali esteve. Ela contou-lhe o caso da coroa. Sua cobiça pelo ouro foi atiçada, e ele conseguiu manejá-la à sua vontade. Não

duvido de que ela fosse afeiçoada ao senhor, mas há mulheres para quem o amor ao namorado suplanta o amor aos outros, e parece-me que ela era uma dessas. Mal tinha ouvido o que ele lhe disse para fazer, quando viu o senhor descer as escadas; então fechou rapidamente a janela e contou a história da empregada e do namorado, que, aliás, é verdadeira. "Seu filho Arthur foi para a cama depois da entrevista com o senhor, mas tão perturbado estava por causa das dívidas no clube que não pôde dormir. À meia-noite ouviu passos leves no corredor, levantou-se, abriu a porta, olhou para fora e ficou surpreso ao ver a prima deslizando silenciosamente ao longo do corredor até entrar no seu quarto de vestir. Petrificado de admiração, o rapaz vestiu a roupa e esperou ali no escuro para ver o que aconteceria. Ela saiu logo em seguida do quarto, e pela luz do corredor ele a viu levando a coroa nas mãos. Ela desceu a escada, e ele, horrorizado, correu e escondeu-se atrás da cortina perto da sua porta, de onde pôde ver o que acontecia embaixo, no vestíbulo. Viu-a abrir devagarinho a janela, entregar a coroa a alguém na escuridão e apressar-se a voltar para o quarto, passando muito perto de onde ele estava escondido. Enquanto ela estava em cena, ele não pôde agir sem expor escandalosamente a mulher que amava. Mas no momento em que ela desapareceu, ele lembrou-se da fatalidade esmagadora que isso seria para o senhor e como era importante remediar as coisas. Desceu às pressas como estava, descalço, abriu a janela e pulou para a neve; desceu a viela, na qual pôde ver, à luz da lua, uma figura escura a caminhar. "Sir George Burnwell tentou fugir, mas Arthur segurou-o e houve luta entre eles, seu filho puxando de um lado a coroa e o antagonista, do outro. Na luta, o rapaz golpeou Sir George e feriu-o num olho; nisso alguma coisa estalou, e seu filho, vendo que tinha a coroa nas mãos, voltou correndo, fechou a janela e subiu ao quarto. Mal acabara de ver que a coroa estava torcida pela luta e se esforçava por endireitá-la, quando o senhor apareceu em cena." — Será possível? — murmurou o banqueiro. — O senhor o irritou, ofendendo-o com palavras injustificáveis no momento em que ele se sentia digno da sua gratidão.

"Não podia explicar a verdade sem trair quem não merecia nenhuma consideração da sua parte. Portou-se de modo cavalheiresco guardando o segredo dela." — Então foi por isso que ela gritou e desmaiou quando viu a coroa — exclamou Holder. — Oh, meu Deus, que pobre cego tenho sido! E ele pediu licença para sair por cinco minutos! Queria ver se o pedaço quebrado estava no local da luta. Como fui cruel com ele! — Quando cheguei a sua casa, andei imediatamente ao redor dela para ver se havia quaisquer sinais na neve, pois sabia que não voltara a nevar desde ontem; além disso tinha geado, o que serviu para acentuar qualquer impressão. Por onde andaram os fornecedores estava tudo indecifrável, porém, adiante e perto da porta da cozinha, uma mulher estivera conversando com um homem durante muito tempo, e uma impressão redonda mostrava que ele tinha uma perna de pau. Percebi até que eles estiveram perturbados com qualquer coisa, porque a mulher tinha corrido para a porta. Isso foi provado pela pegada funda da ponta dos pés e pelo fato de o calcanhar quase não ter deixado sinal. O perna-de-pau tinha esperado um pouco, depois fora embora. Julguei que poderia ser a empregada de quem o senhor me falou. Passei para o jardim sem ver nada, a não ser rastos desconexos que pensei serem da polícia, mas, quando cheguei à viela, uma história longa e complexa estava escrita na neve, diante de mim. Havia pegadas duplas, umas eram de um homem de botas, e as outras, que me alegraram ao vê-las, eram de um homem descalço. Fiquei convencido de que eram de seu filho, conforme o senhor tinha dito. O primeiro apenas andara, mas o segundo tinha corrido; em certos lugares, chegara mesmo a pisar por cima dos sinais das botas, prova de que seguira o outro. Acompanhei as pegadas e vi que levavam à janela do vestíbulo onde "Botas" havia pisado a neve enquanto esperava. Uns cem metros adiante, vi que Botas se voltara; parecia ter havido uma luta, e finalmente vi uns pingos de sangue que comprovaram a suposição. Botas correra, continuara correndo pela viela, e mais adiante, vi outro sinal de sangue, o que provava que era ele que tinha sido ferido. Quando, ao fim da viela, começava a estrada, vi que a calçada tinha sido varrida, não deixando mais sinais. Tinha se acabado aquela pista. Examinei depois o peitoril da janela do vestíbulo com minha lente, e vi que alguém tinha saído por lá. Também distingui o sinal de um pé úmido que havia entrado por ali, e comecei a formular idéias quanto ao que tinha acontecido. Um homem esperara do lado de fora da janela e alguém lhe trouxera as gemas; o ato fora visto por seu filho, que perseguira o ladrão, e lutara com ele. Puxando ambos pela coroa, causaram-lhe estragos que nem um nem outro poderiam ter feito sozinhos. Seu filho voltou com o prêmio, mas tinha deixado um pedaço na mão do adversário. Até aí estava claro, e a questão agora era: quem seria o homem, e quem trouxera a coroa? É provérbio meu que, tendo excluído tudo o que é impossível, aquilo que fica, por mais improvável que pareça, é a verdade. Sabia, naturalmente, que não era o senhor que tinha trazido a coroa para baixo, e por isso restavam só sua sobrinha e as empregadas. Mas se fosse uma das empregadas, por que haveria seu filho de se deixar acusar no lugar dela? Não havia razão nenhuma. Como ele amava a prima, havia ali uma excelente explicação para que ele guardasse um

segredo... muito mais um segredo de caráter degradante. Quando me lembrei de que o senhor a tinha visto àquela janela e de que ela desmaiara ao ver de novo a coroa, minha conjectura transformou-se em certeza. Mas quem era o cúmplice? Amante, sem dúvida, pois quem melhor podia sobrepujar o amor e a gratidão que ela sentia pelo senhor? Sabia que saíam pouco e que tinham poucos amigos, mas que um deles era Sir George Burnwell. Tinha ouvido falar dele como sendo um homem de reputação vil entre as mulheres. "Devia ser ele o homem de botas que levara as gemas. Embora soubesse que Arthur o tinha descoberto, ainda podia se gabar de que estava fora de perigo, porque o rapaz não poderia abrir a boca sem

comprometer a própria família. "O bom senso sugeriu-me o que tinha a fazer em seguida. Fui vestido como um vagabundo até a casa de Sir George Burnwell, conversei com o lacaio e soube que o patrão tinha ferido a cabeça na noite anterior. Finalmente, por cinco xelins, consegui comprar um par de sapatos velhos dele. Levei-os a Streatham e verifiquei que eram exatamente iguais às pegadas que lá havia." — Eu vi um vagabundo maltrapilho ontem na viela — disse o Sr. Holder. — Precisamente, era eu. Vi que tinha o homem seguro, voltei para casa e mudei de roupa. As coisas agora tornavam-se muito delicadas: não podia haver processo, pois o escândalo devia ser evitado a todo custo; também sabia que um velhaco tão astuto veria que tínhamos as mãos atadas, e decidi ir vê-lo. A princípio, naturalmente, ele negou tudo, mas quando lhe repeti como os fatos tinham acontecido, ele tentou fazer bravata e tirou um cacete, mas eu lhe apontei um revólver à cabeça antes que ele pudesse mover-se. Tornou-se mais razoável. Disse-lhe que pagaria um bom preço pelas pedras que tinha... mil libras cada uma. Isso lhe trouxe os primeiros sinais de arrependimento. "— Ora bolas — disse ele —, já as vendi por seiscentas libras as três! "Depois que lhe prometi que não haveria processo, ele logo me revelou o endereço da pessoa que as tinha comprado. Lá fui eu, e, depois de muita discussão, obtive as pedras por mil libras cada uma. Depois fui visitar seu filho para dizer-lhe que estava tudo bem. Finalmente cheguei a casa e fui para a cama às duas horas, depois daquilo que se pode chamar um dia cheio." — Um dia que salvou a própria Inglaterra de um escândalo público — disse o banqueiro, levantando-se. — Senhor, não tenho palavras para lhe agradecer, mas não me há de achar ingrato por tudo quanto fez. Sua habilidade ultrapassa tudo quanto eu jamais ouvi dizer. Agora vou ver meu filho, pedir-lhe desculpas por tê-lo acusado tão injustamente e por lhe ter feito tanto mal. Quanto à minha pobre Mary, lamento profundamente, mas nem sua habilidade me poderá informar onde ela está agora?

— Julgo que, com toda a segurança, podemos dizer que, onde ela está, também está Sir George Burnwell. É igualmente certo que, quaisquer que sejam os seus pecados, depressa serão suficientemente punidos.

Sherlock Holmes

em:

A faixa malhada

Por Sir Arthur Conan Doyle

PDF por ZOHAR ([email protected])

CPTurbo.org

Ao fazer uma revisão das minhas anotações sobre os setenta e tantos casos nos quais, durante estes últimos oito anos, tenho estudado os métodos de meu amigo Sherlock Holmes, encontro alguns trágicos, outros cômicos, e um grande número de casos apenas estranhos, mas nenhum comum, porque, trabalhando como ele o faz, mais por amor à arte do que para enriquecer, sempre se recusou a associar-se a qualquer investigação que não apresentasse coisas fora do comum e até fantásticas. De todos esses casos, não posso recordar nenhum que apresente características mais singulares do que aquele que teve relação com a conhecida família dos Roylott, em Stoke Moran, em Surrey. Os acontecimentos em questão ocorreram nos primeiros tempos da minha amizade com Holmes, quando alugamos uns aposentos, como solteiros que éramos, na Baker Street. Eu já podia tê-los contado, mas uma promessa de mante-los em segredo havia sido exigida, e só no mês passado fiquei livre dela, pela inesperada morte da senhora a quem fora feita a promessa. Talvez seja bom que os fatos agora se tornem conhecidos, porque tenho razões para pensar que há rumores a respeito da morte do dr. Grimesby Roylott que tendem a tornar o assunto mais terrível do que é na verdade. Foi em abril de 1883. Ao acordar, encontrei Sherlock Holmes de pé, vestido, ao lado de minha cama. Geralmente ele se levantava tarde, e, quando olhei para o relógio e vi que eram apenas sete e quinze, olhei-o surpreso, e talvez um pouco aborrecido, porque eu era sempre pontual nos meus hábitos. — Sinto muito acordá-lo, Watson — disse ele —, mas é a sorte de todos hoje. A sra. Hudson foi acordada cedo, chamou-me, e agora sou eu que o chamo. — O que é então? Um incêndio? — Não, uma cliente. Chegou há pouco uma jovem, muitíssimo nervosa, e insiste em ver-me. Está esperando na sala de estar. Suponho que, quando as jovens começam a vaguear pela cidade a estas horas da manhã e a acordar os que dormem ainda, algo de muito importante têm a comunicar. Se provar ser um caso interessante, tenho a certeza de que você quererá segui-lo desde o começo. Em todo caso, pensei que devia chamá-lo para lhe dar esta oportunidade. — Meu caro amigo, fez muitíssimo bem. Meu maior prazer era acompanhar Holmes nas suas investigações profissionais e admirar as deduções e intuições rápidas, sempre baseadas na lógica, com as quais ele deslindava os problemas que lhe eram submetidos. Vesti-me apressadamente e pouco depois estava pronto para acompanhar meu amigo até a sala. Uma moça vestida de preto, o rosto coberto por um véu espesso, estava sentada à janela, mas, quando chegamos, levantou-se. — Bom dia, senhorita — disse Holmes alegremente.— Meu nome é Sherlock Holmes. Este é meu íntimo amigo e companheiro, dr. Watson; pode falar francamente na sua presença como se fosse para mim só. Ah! Vejo que a sra. Hudson teve o bom senso de acender o fogo. Peco-lhe o favor de se aproximar

mais dele, e vou mandar vir uma chávena de café bem quente para a senhora, porque vejo que está tiritando de frio. — Não é de frio — disse ela em voz baixa e mudando de lugar, conforme fora convidada. — O que é então? — É medo, sr. Holmes. É medo.

Levantou o véu ao falar, e pudemos ver que estava realmente num estado doloroso de agitação, o rosto descorado, os olhos irrequietos e amedrontados como os de um animal preso. Parecia ter uns trinta anos, porém já tinha alguns cabelos grisalhos prematuros; sua expressão demonstrava cansaço e seu semblante estava desfigurado. Sherlock Holmes examinou-a com um dos seus olhares rápidos e abrangentes. — Não deve ter medo — disse ele calmamente, inclinando-se para ela e pousando-lhe a mão no braço. — Depressa resolveremos o assunto, sem dúvida. Vejo que hoje veio de trem. — Então o senhor me conhece? — Não, mas notei o bilhete de regresso na palma da sua luva. Deve ter saído cedo, mas também viajou de charrete, por estradas ruins, até a estação. A jovem ficou atônita e olhou alarmada para o meu companheiro. — Não há mistério nisso, senhorita — disse ele sorrindo. — A manga esquerda do seu casaco está salpicada de lama nuns sete lugares, e é lama fresca; não há como uma charrete para nos encher de lama, e a senhora sentou-se à esquerda do cocheiro. — Sejam quais forem suas razões para dizer essas coisas, é mesmo verdade — disse ela. — Saí de casa às seis horas, cheguei a Leatherhead às seis e vinte, e vim no primeiro trem para Waterloo. Senhor, não posso aguentar mais esta tensão nervosa, e, se continuar, ficarei doida. Não tenho ninguém a quem possa apelar... ninguém a não ser uma pessoa que gosta de mim, e ele, pobre rapaz, não pode fazer nada. Ouvi falar do senhor, sr. Holmes, por intermédio da sra. Farintosh, a quem o senhor ajudou numa ocasião em que ela necessitava de auxílio. Foi por intermédio dela que obtive seu endereço. Oh!, senhor, será que pode também ajudar-me ou pelo menos esclarecer um pouco a escuridão que me cerca? Atualmente não posso recompensá-lo pelo seu trabalho, mas dentro de uns dois meses vou me casar, e então terei o controle pessoal do que é meu. A essa altura, pelo menos, o senhor não me considerará ingrata. Holmes virou-se para a sua escrivaninha e, abrindo-a, tirou uma caderneta de notas e consultou-a.

— Farintosh — disse ele. — Ah!, sim, lembro-me do caso; tratava-se de um diadema de opalas. Foi antes de você vir morar aqui, Watson. Só tenho a dizer, senhorita, que terei prazer em dar a seu caso a mesma atenção que dediquei à sua amiga. Quanto à recompensa, minha profissão traz por si mesma uma compensação; no entanto, a senhorita terá a liberdade de me reembolsar de qualquer despesa que houver quando lhe for conveniente. E agora, peco-lhe que nos conte tudo o que nos possa ajudar a formar uma opinião sobre o assunto. — Ai de mim! — respondeu a nossa visitante. — O próprio horror da minha posição está no fato de que meus temores são muito vagos e minhas suspeitas dependem inteiramente de uns pequenos fatos, que podem parecer tão triviais aos outros, que até a pessoa de quem, acima de todos, tenho o direito de esperar algum apoio e conselho considera tudo o que vou lhe contar fantasia de mulher nervosa; não o diz, mas sinto-o, quando desvia os olhos e me dá respostas calmas. Mas sei, sr. Holmes, que o senhor perscruta as coisas mais profundas dos corações humanos, descobrindo a sua perversidade. O senhor talvez possa aconselhar-me como agir em meio aos perigos que me circundam. — Sou todo atenção, senhorita. — Meu nome é Helen Stoner, e moro com meu padrasto, que é o último representante de uma das famílias saxônicas mais antigas da Inglaterra, os Roylott, de Stoke Moran, na margem ocidental do Surrey. Holmes acenou com a cabeça. — O nome me é familiar — disse ele. — A família era, antigamente, uma das mais ricas da Inglaterra. A herdade estendia-se sobre os limites dos condados de Berkshire, ao norte, e Hampshire, a oeste. No século passado, todavia, quatro dos herdeiros foram homens dissolutos e de disposição esbanjadora, e a ruína da família finalmente ocorreu com um jogador nos dias da Regência. Nada restou, senão alguns lotes de campo e a casa secular, e essa, sob o encargo de uma pesada hipoteca. O último dono arrastou literalmente sua existência ali, levando uma vida horrível de aristocrata pobre; seu único filho, meu padrasto, vendo que tinha de adaptar-se às novas condições, pediu um empréstimo a um parente, que o habilitou a formar-se em medicina, e foi para Calcutá, onde, pela sua aptidão e força de caráter, se estabeleceu com grande clientela. Enraivecido, porém, por uns furtos que haviam sido feitos na sua casa, agrediu o copeiro, causando-lhe a morte, e por pouco escapou de uma sentença capital. Mesmo assim ficou preso durante muito tempo e voltou para a Inglaterra transformado num homem desapontado e melancólico.

"Quando o dr. Roylott foi para a Índia, casou-se com minha mãe, sra. Stoner, viúva do major-general Stoner, da artilharia de Bengala. Minha irmã e eu éramos gémeas e tínhamos apenas dois anos quando nossa mãe se casou pela segunda vez. Ela tinha bastante dinheiro, umas mil libras anuais, que legou ao dr. Roylott durante todo o tempo que morássemos com ele, com prescrição de que certa soma anual fosse concedida a cada uma de nós no caso de nos casarmos. Logo após nosso regresso à Inglaterra, minha mãe morreu num desastre ferroviário perto de Crewe. Isso foi há oito anos atrás. O dr. Roylott abandonou a clientela que começara a adquirir em Londres e levou-nos para viver com ele na casa ancestral de Stoke Moran. O dinheiro que minha

mãe deixara era suficiente para todas as necessidades, e parecia não haver impedimento à nossa felicidade. A essa altura, meu padrasto transformou-se completamente; em vez de cultivar amizades e trocar visitas com as famílias da vizinhança, que no começo se regozijaram ao ver de novo um sucessor dos Roylott morando na velha herdade, fechava-se em casa e raras vezes saía, a não ser para discutir ferinamente com todos aqueles que encontrasse. O temperamento violento, aproximando-se da loucura, é hereditário nos homens da família, e no caso de meu padrasto, creio, foi agravado pelo fato de ele ter vivido num país de clima tropical. Houve uma série de brigas vergonhosas, duas das quais terminaram no posto policial, até que por fim ele se tornou o terror da aldeia e as pessoas voavam para longe quando ele se aproximava, porque é homem de grande físico e absolutamente descontrolado na sua ira. Na semana passada, lançou o ferreiro local de cima do parapeito para dentro do riozinho, e somente com o pagamento de todo o dinheiro que pude arranjar consegui evitar que outro escândalo viesse a público. Não tinha amigos, senão os ciganos ambulantes. A estes, dava licença para levantarem acampamento nos terrenos da herdade, e às vezes aceitava a hospitalidade das suas tendas, acompanhando-os semanas seguidas. Tem paixão também por animais selvagens da Índia, que recebe, mandados por um amigo, Atualmente tem um leopardo e um macaco, que andam livremente e são temidos pelo povo tanto quanto o dono. O senhor deve imaginar, pelo que estou lhe contando, que minha irmã e eu não tínhamos qualquer prazer na vida. Nenhuma empregada ficava conosco, e durante muito tempo nós é que fazíamos todo o trabalho da casa. Ela tinha apenas trinta anos quando morreu, mas, apesar disso, seu cabelo já estava um pouco grisalho, como o meu." — Então sua irmã morreu? — Morreu há dois anos, e é da sua morte que lhe quero falar. Deve compreender que, levando a vida que tenho descrito, era difícil estar em contato com pessoas da nossa idade e posição. Tínhamos, todavia, uma tia solteirona, sra. Honoria Westphail, que mora perto de Harrow, e ocasionalmente tínhamos permissão para lhe fazer uma visita breve. Julia esteve lá no Natal, há dois anos, e encontrou um major da marinha, de quem ficou noiva. Meu padrasto soube do noivado quando ela voltou para casa; não

fez nenhuma objeção; porém, duas semanas antes do dia fixado para o casamento, deu-se um acontecimento terrível, que levou minha única companheira. Sherlock Holmes estivera sentado na sua poltrona descansadamente, com os olhos fechados e a cabeça numa almofada, mas nesse momento entreabriu os olhos e fitou a visitante. — Conte-me todos os pormenores. — É-me muito fácil fazê-lo, porque tudo o que aconteceu então está gravado na minha memória. A casa, como já disse, é muito velha, e agora só se usa uma das alas. Os quartos ficam nessa ala, no andar térreo, e as salas, no centro do edifício. Desses quartos, o primeiro é do dr. Roylott, o segundo, de minha irmã, e o terceiro, meu. Não há comunicação entre eles, mas todos se abrem para o mesmo corredor. Compreende? — Perfeitamente. — As janelas dos três quartos abrem-se para o relvado. Na noite de Natal, o dr. Roylott foi para o seu quarto cedo, embora soubéssemos que ele ainda não estava deitado, porque minha irmã ficou incomodada com o cheiro de um tabaco forte que ele costumava usar, de charutos indianos. Ela deixou o quarto dela e veio para o meu, onde ficamos conversando sobre os preparativos para o casamento. Às vinte e três horas, quando já ia se deitar, parou à porta, olhou para trás e perguntou: "— Diga-me, Helen, tem ouvido um assobio a altas horas da noite? "— Nunca — respondi. "— Bem, não creio que você seja capaz de assobiar quando está dormindo. "— Certamente que não. Mas por quê? "— Porque durante estas últimas noites ouço sempre, por volta das três horas, um assobio baixo, mas muito claro. Tenho o sono leve, e isso me tem acordado. Não sei de onde vem. Talvez do quarto ao lado, talvez do relvado. E simplesmente lembrei-me de lhe perguntar se também tem ouvido. "— Não, não tenho. Devem ser aqueles ciganos. "— Talvez. Mas, se vem do relvado, fico admirada por você também não o ter ouvido. "— Ah, mas tenho o sono mais pesado do que você. "— Bem, não tem importância, em todo caso — disse ela, sorrindo-me. Fechei a minha porta, e poucos momentos depois ouvi-a dar a volta à chave na porta do seu quarto."

— Ah, sim? — disse Holmes. — Era costume fechar as portas à chave durante a noite? — Sempre. — Por quê? — Parece-me que já lhe contei que o doutor

tem um leopardo e um macaco. Não nos sentíamos seguras enquanto nossas portas não estivessem fechadas à chave. — Está certo. Continue, por favor. — Não pude dormir naquela noite. Um pressentimento vago de que alguma desgraça ia acontecer impressionou-me muito. Minha irmã e eu éramos gêmeas, e o senhor sabe como são sutis os laços que ligam duas almas tão unidas. O vento uivava lá fora, e a chuva batia com toda a força nas janelas. Era uma noite tempestuosa. Subitamente, em meio ao barulho da tormenta, ouvi o grito horrível de uma mulher aterrorizada. Reconheci a voz de minha irmã. Pulei da cama, atirei um xale às costas e corri para o corredor. Quando abri a porta, pareceu-me ouvir um assobio baixo, como minha irmã havia descrito, e um momento depois um som, como a queda de um pacote de metal. Corri até a porta do quarto de minha irmã, que se abriu vagarosamente. Olhei, horrorizada, não sabendo o que ia suceder. Pela luz do candeeiro do corredor vi minha irmã aparecer à porta, o rosto branco como a morte, aterrorizada, as mãos estendidas como que pedindo socorro, o corpo cambaleante como o de um bêbado. Corri para ela e lancei-lhe meus braços ao redor do corpo; mas naquele momento seus joelhos dobraram-se e ela caiu no chão. Torcia-se como quem estivesse com dores horríveis, os braços e as pernas tremendamente convulsionados. A princípio pensei que não me reconhecia, mas quando me inclinei para ela, gritou num tom de voz de que nunca me esquecerei: "— Oh, meu Deus! Helen! Foi a faixa malhada! A faixa malhada! "Havia outra coisa que queria dizer, e apontava com o dedo no ar em direção ao quarto do doutor, mas uma nova convulsão abafou-lhe as palavras. Saí correndo, chamando meu padrasto em voz alta, e encontrei-o saindo do quarto, com o roupão vestido. Quando chegou ao lado de minha irmã, ela já estava inconsciente, e, embora lhe despejasse conhaque na garganta e mandasse chamar um médico, tudo foi em vão; ela morreu vagarosamente, sem recuperar os sentidos. Assim foi a morte horrorosa de minha amada irmã." — Um momento — disse Holmes. — A senhora tem certeza quanto ao assobio e ao som de metal? Podia mesmo jurar que os ouviu? — Essa pergunta me foi feita também pelo inspetor na investigação que se seguiu. Tenho a convicção de os ter ouvido; todavia, com o estrondo da tempestade e o guinchar da casa velha, é possível que me houvesse

enganado. — Sua irmã estava vestida? — Não, estava de camisola; na mão direita tinha um fósforo queimado, e na esquerda, uma caixa de fósforos. — Prova de que havia acendido uma luz para ver ao redor quando o alarme começou. Isso é importante. E quais foram as conclusões do inspetor? — Investigou o caso com muito cuidado porque a conduta do dr. Roylott tornara-se notória em toda a localidade, mas não encontrou qualquer dado satisfatório sobre a morte de minha irmã. Meu testemunho demonstrou que a porta fora trancada do lado de dentro, e as janelas estavam fechadas com portas de madeira, do sistema antigo, e atravessadas com barras de ferro, como se fazia todas as noites. As paredes não tinham buracos nem fendas, eram sólidas, e o soalho foi bem examinado, com o mesmo resultado. A chaminé é larga, mas está coberta por quatro grandes barras de madeira. É certo que minha irmã estava sozinha quando sobreveio a morte. Além disso, não havia sinais de violência no corpo. — E envenenamento? — Os médicos examinaram-na nesse sentido, mas não encontraram nada. — De que pensa, então, que a infeliz jovem morreu? — Creio que morreu de medo e choque nervoso, embora não possa imaginar o que lhe meteu medo. — Havia ciganos nos terrenos naquele tempo? — Sim, há alguns quase sempre. — Ah! E o que foi que deduziu da alusão a uma faixa malhada? — Às vezes penso que era a linguagem estranha do delírio; outras, que quisesse referir-se a um bando de pessoas, talvez a esses mesmos ciganos. Não sei se o lenço pintado que eles usam na cabeça poderia ter sugerido o termo que ela usou. Holmes meneou a cabeça como um homem que está longe de se considerar satisfeito. — São águas bem fundas — disse ele; — peço que continue a sua narrativa. — Passaram-se dois anos desde então, e minha vida tornou-se mais solitária do que nunca. Faz um mês, um caro amigo, que conheci há poucos anos, deu-me a honra de me pedir em casamento. Chama-se Armitage, Percy Armitage, segundo filho do sr. Armitage, de Crane Water, perto de Reading. Meu

padrasto não se opôs ao casamento, e pretendemos casar-nos na primavera. Há dois dias começaram alguns consertos na ala oeste da casa e furaram a parede do meu quarto, tanto que tive de mudar-me para o quarto onde morreu minha irmã e dormir na mesma cama onde ela dormia. Imagine, então, como tremi de horror quando ontem à noite, estando acordada e lembrando-me do seu triste fim, ouvi repentinamente, no silêncio da noite, o assobio que precedeu a sua morte. Levantei-me, apressada, e acendi a lâmpada, mas não havia nada no quarto; fiquei demasiadamente assustada e, não podendo dormir mais, vesti-me e daí a pouco era dia. Desci silenciosamente, arranjei uma charrete na Taberna da Coroa, que fica em frente, e fui a Leatherhead, de onde vim esta manhã com o único objetivo de falar com o senhor e de lhe pedir o seu conselho. — Fez muito bem — disse o meu amigo. — Mas contou-me tudo? — Sim, tudo. — Srta. Stoner, digo-lhe que não contou, porque está querendo poupar o seu padrasto. — Como? Que quer dizer com isso? Por resposta Holmes puxou para trás um debrum de renda preta cobrindo a mão que jazia sobre o joelho da nossa visitante. Cinco pontos azuis, marca de quatro dedos e um polegar, estavam impressos naquele pulso branco. — Foi tratada brutalmente — disse Holmes. A jovem corou e cobriu o pulso maltratado. — É um homem, e talvez nem imagine a sua força. Houve um longo silêncio, durante o qual Holmes descansou o queixo sobre as mãos e ficou olhando para as chamas. — Este caso é muitíssimo sério — disse ele. — Há muitas coisas que eu gostaria de saber antes de traçar o nosso plano de ação. Todavia, não temos um momento a perder. Se fôssemos a Stoke Moran hoje, seria possível visitarmos os quartos sem o conhecimento de seu padrasto? — Ouvi-o falar em vir à cidade hoje para tratar de um negócio importante. É provável que esteja fora o dia inteiro, e não haverá nada para atrapalhar. Temos agora uma empregada, mas é velha e caduca, e eu poderia facilmente pô-la de lado. — Excelente. Você não se importa se eu lhe pedir para ir comigo, Watson? — Claro que não. — Então iremos os dois. O que a senhorita vai fazer agora?

— Há uma ou duas coisas que desejo fazer, visto estar na cidade, mas volto no trem do meio-dia, pronta para recebê-los. — Pode esperar-nos à mesma hora. Eu também tenho algumas coisas a fazer. Mas a senhorita não quer esperar o café da manhã? — Não, preciso ir. Meu coração está mais aliviado desde que lhe contei minha aflição. Esperá-los-ei com ansiedade esta tarde. E a jovem saiu. — O que pensa disto tudo, Watson? — perguntou Sherlock Holmes, recostando-se na cadeira. — Parece-me um caso obscuro e sinistro. — Contudo, se a jovem não mentiu ao dizer que as paredes e o soalho estão intactos e que a porta, as janelas e a chaminé são impenetráveis, então a irmã dela, sem dúvida, estava sozinha quando morreu tão misteriosamente. — De acordo. — O que significam então aqueles assobios noturnos e as palavras esquisitas da irmã? — Não posso imaginar. — Quando se alia a idéia de assobios noturnos à presença de um bando de ciganos que têm intimidade com o velho doutor, e também ao fato de que ele tem interesse em frustrar o casamento da enteada, mais ainda, à alusão a uma faixa e, finalmente, ao fato de a srta. Stoner ouvir um baque metálico, que podia ter sido causado por uma barra daquelas que seguram a janela, ao ser recolocada, penso que há um fundamento para que o mistério seja descoberto nesses fatos. — Mas que fizeram então os ciganos? — Não tenho idéia. — Vejo muitas objeções a tal teoria. — Eu também, e é por isso que vamos a Stoke Moran hoje. Quero ver se as objeções estão certas ou se podem ser excluídas por algumas explicações. Mas que diabo é isto? A exclamação foi arrancada ao meu companheiro pela violência com que nossa porta foi aberta. Um homem enorme estava postado à entrada. Sua roupa era uma mistura singular de notário e de agricultor, com cartola preta, casaco comprido, polainas altas e um chicote de caçador na mão. Tão alto era

ele que o chapéu tocava na verga da porta e parecia ter a largura desta de um lado ao outro. Rosto grande, muito enrugado, queimado pelo sol, com traços de todas as paixões malévolas; virou-se primeiro para um e depois para o outro de nós. Seus olhos fundos e biliosos, o nariz grande e pontudo, faziam-no assemelhar-se a uma velha e cruel ave de rapina. — Qual de vocês é Holmes? — perguntou a aparição. — É esse o meu nome, senhor, mas não sei o seu — disse o meu amigo. — Sou o dr. Grimesby Roylott, de Stoke Moran,

— Deveras, doutor? — disse Holmes suavemente. — Queira sentar-se. — Não farei tal coisa. Minha enteada esteve aqui. Segui-a. O que foi que ela lhe contou? — Está um pouco frio para esta época do ano — disse Holmes. — O que foi que ela lhe disse? — gritou o velho, furioso. — Todavia, ouvi dizer que as tulipas prometem ser abundantes — continuou o meu amigo imperturbavelmente. — Ah, você se faz de desentendido, hem? — disse o nosso visitante, dando um passo à frente e sacudindo a cabeça. — Conheço-o, patife! Já ouvi falar de você. Você é Holmes, o mexeriqueiro. Meu amigo sorriu. — Holmes, o intrometido! O sorriso alargou-se. — Holmes, o "tira" da Scotland Yard! Holmes riu-se deveras. — Sua conversa é muito divertida — disse ele. — Quando o senhor sair, tenha a bondade de fechar a porta. Há uma forte corrente de ar com ela assim aberta. — Vou quando houver dito tudo quanto quero dizer. Não se atreva a se intrometer nos meus assuntos. Sei que a srta. Stoner esteve aqui, segui-a! Sou um homem perigoso para que alguém se ponha contra mim. Veja isto. Adiantou-se e, pegando o atiçador do fogão, dobrou-o com suas grandes

mãos queimadas do sol. — Cuidado para não cair nas minhas garras — rosnou ele, e, atirando o atiçador na lareira, saiu da sala. — Parece ser uma pessoa amistosa — tornou Holmes rindo. — Não tenho um corpo tão grande, mas se ele tivesse continuado, poderia demonstrar-lhe que minhas garras não são menos fracas que as dele. Enquanto falava, pegou o atiçador de aço, e, com um esforço repentino, endireitou-o. — Imagine ele me confundir com a força oficial dos detetives! Este incidente dá mais sabor às nossas investigações. Todavia, espero que nossa amiguinha não sofra com sua imprudência de deixar este bruto segui-la. E agora, Watson, vamos comer, depois irei à Doctors' Commons, onde espero encontrar alguns dados que nos possam ajudar neste caso. Eram quase treze horas quando Sherlock Holmes voltou da sua excursão, tendo na mão um papel azul, todo rabiscado com anotações de algarismos. — Vi o testamento da falecida esposa — disse ele —, e, para determinar o seu sentido exato, fui obrigado a calcular os preços atuais dos investimentos a que está ligado. O rendimento, na ocasião da morte dela, era de pouco menos de mil libras, e está agora, devido à queda de preços, mais ou menos em setecentas e cinquenta libras. Cada filha pode requerer uma renda de duzentas e cinquenta libras em caso de casamento. É evidente, portanto, que, se ambas tivessem se casado, o belo homem ficaria com um bocadinho apenas, e, mesmo que fosse uma só, seria bastante prejudicado. Meu trabalho não foi perdido, pois prova que ele tem bom motivo para tentar frustrar qualquer coisa do género. E, agora, Watson, o caso é muito sério, e não devemos demorar mais, especialmente em vista de o velho saber que estamos interessados na sua vida; portanto, se está de acordo, vamos chamar um carro e tomar o trem de Waterloo. Agradeço-lhe se colocar seu revólver no bolso. Um Eley's número 2 é um excelente argumento para cavalheiros que conseguem torcer atiçadores de aço. Isto e uma escova de dentes será tudo de que precisaremos, creio. Fomos felizes em Waterloo, pois chegamos em tempo de tomar um trem para Leatherhead, onde alugamos um carro e fomos conduzidos por mais de sete ou oito quilômetros através da paisagem maravilhosa de Surrey. Estava um dia lindo, de sol brilhante e algumas leves nuvens no céu. As árvores e sebes desabrochavam e o ar impregnava-se do perfume vindo da terra úmida. Para mim, pelo menos, parecia haver grande contraste entre a natureza em plena primavera e o sinistro caso que nos havia levado ali. Meu amigo ia na frente, com os braços cruzados e o chapéu puxado sobre os olhos, o queixo caído sobre o peito, em profunda meditação. De repente, ergueu-se, deu-me uma palmada no ombro e apontou para os prados. — Olhe para além — pediu ele.

Via-se um parque cheio de árvores que cresciam na encosta de uma pequena colina, e a espessura das árvores aumentava até o cume; era uma verdadeira mata fechada. Por entre os ramos das árvores viam-se as pontas triangulares da água-furtada de uma velha mansão.

— Stoke Moran — disse ele. — Sim, senhor, aquela é a casa do dr. Grimesby Roylott — respondeu o cocheiro. — Estão fazendo obras ali, e é para lá que nós vamos — disse Holmes. — A vila é esta — disse o cocheiro, apontando para alguns telhados à esquerda. — Mas para chegar à casa é melhor pular a cancela e seguir o caminho a pé através dos campos. É ali, de onde vem aquela senhora. — Creio que é a srta. Stoner — observou Holmes. — Sim, vamos fazer o que você sugere. Descemos, pagamos a viagem, e o carro voltou para Leatherhead. — Achei melhor — disse Holmes, enquanto pulávamos por cima da cerca — que este homem pensasse que viemos como arquitetos ou para algum negócio definido. Pode ser que assim evite dar com a língua nos dentes. — Boa tarde, srta. Stoner. Veja que cumprimos a nossa palavra. Nossa cliente apressara o passo para vir ter conosco. — Esperava-os ansiosamente — exclamou ela, apertando-nos as mãos. — Tudo corre bem. O dr. Roylott foi para a cidade e creio que não voltará até a tardinha. — Tivemos o prazer de conhecer o dr. Roylott — disse Holmes, e, em poucas palavras, fez um relato do que acontecera. A srta. Stoner ficou branca até os lábios. — Céus! — exclamou ela. — Ele me seguiu então? — Parece que sim. — É tão astuto que nunca sei quando estou em segurança. Que dirá ele no regresso? — Ele terá de se acautelar, pois pode descobrir que há alguém tão astuto

quanto ele. É preciso que a senhora se feche hoje à noite aonde ele não possa ir. Se se tornar violento, nós a levaremos para casa de sua tia em Harrow, Agora, precisamos aproveitar o tempo, e por isso peco-lhe para nos levar aos quartos que devemos examinar. O edifício era de pedras cinzentas e, em certos lugares, havia moitas de musgo junto às paredes; na parte central era alto, com duas alas curvas como as garras de um caranguejo. Numa dessas alas, as janelas estavam quebradas e cobertas com tábuas, assim como o teto, que estava também caído, autêntica prova de ruína. A parte central estava reformada, e a ala à direita fora modernizada, com cortinas nas janelas e fumaça que saía das chaminés, demonstrando que era ali que a família residia. Alguns andaimes se erguiam contra as paredes dos fundos, onde havia uma abertura, mas sem o menor sinal de pedreiros que trabalhassem à hora da nossa visita. Holmes andou de cima para baixo no relvado e examinou com muita atenção as janelas do lado de fora. — Esta, presumo, pertence ao quarto que a senhora ocupava, o do centro era de sua irmã e o ligado ao edifício principal é o do dr. Roylott. — Exatamente, mas agora durmo no quarto do meio. — Por causa das reformas. Mas não vejo assim tanta necessidade de reparação naquele lado da parede. — Nem havia, e acredito que foi uma desculpa para me obrigar a mudar de quarto. — Ah, é uma idéia. Do outro lado desta ala está o corredor para o qual dão estes três quartos. Há janelas no corredor, com certeza, não? — Sim, mas muito pequenas. Estreitas demais para que alguém possa passar por elas. — Visto que trancavam as portas de seus quartos pelo lado de dentro, não era possível a aproximação por aquele lado. Tenha a bondade de entrar no seu quarto agora e de trancar as janelas. Assim fez a srta. Stone, e Holmes, depois de examiná-las bem, esforçou-se por abri-las, sem resultado, pois não havia sequer uma fenda por onde se pudesse introduzir a lâmina de um canivete. Pegou a lente de aumento e examinou as dobradiças, mas eram de ferro sólido, embutido na parede. — Hum! — disse ele coçando o queixo, perplexo. — Minha teoria apresenta algumas dificuldades. Ninguém poderia passar por estas janelas, uma vez trancadas. Bem, vamos ver se o interior nos revela qualquer pista. Uma porta estreita dava entrada a um corredor em ruínas, para onde se abriam os três quartos. Holmes recusou examinar o terceiro quarto, e assim passamos para o segundo, aquele em que a srta. Stoner dormia agora e no qual sua irmã

encontrara a morte. Era simples, com teto baixo e lareira larga, conforme o costume nas casas de campo antigas. Uma cômoda acastanhada estava num canto, uma cama coberta com uma colcha branca no outro, e uma mesa de toalete do lado esquerdo da janela. Esses móveis, com mais duas cadeiras, completavam a mobília do quarto, além de um pequeno tapete ao centro. As vigas e as tábuas que forravam as paredes eram de carvalho castanho, já bichadas e tão velhas que pareciam ser tão antigas quanto o próprio edifício. Holmes puxou uma das cadeiras para o canto e sentou-se, muito quieto, enquanto seus olhos corriam em redor repetidas vezes, para baixo, para cima, examinando todos os pormenores do quarto. — Com que aposento se comunica aquela campainha? — perguntou ele por fim, apontando para uma corda grossa que estava pendurada ao lado da cama, com a borla em cima do travesseiro. — Com o quarto da empregada. — Parece mais nova do que as outras coisas. — Sim, foi colocada somente há dois anos. — Foi sua irmã que a pediu? — Não, nem nunca ouvi dizer que ela a usasse. Nós mesmas íamos buscar aquilo de que precisávamos. — Deveras, parece desnecessário colocar uma corda tão bonita ali. Desculpe-me um instante, vou examinar o assoalho. — Depois fez o mesmo a todos os painéis de madeira, e finalmente chegou perto da cama, olhando-a bem, assim como à parede que ficava perto. Nisto pegou o cordão da campainha e deu-lhe um puxão. — Oh! É apenas uma imitação — disse ele. — Não toca? — Não, nem está ligada ao fio. Isto é deveras interessante. Veja, está ligada a um gancho logo acima da abertura que serve apenas para a ventilação. — Que absurdo! Nunca reparei nisso antes. — É muito estranho!—murmurou Holmes, puxando a corda. — Há um ou doispontos esquisitos neste quarto. Por exemplo, que louco devia ser o construtor, que fez uma abertura para a ventilação de um quarto para o outro, quando afinal com o mesmo trabalho podia obter uma comunicação com o exterior. — É também recente — disse a jovem. — Foi aberta mais ou menos na ocasião da instalação do cordão? — indagou Holmes.

— Sim, houve diversas reformas naquela época. — E parece que tiveram um propósito muito interessante: cordões inúteis, aberturas que não ventilam. Com a sua permissão, agora vamos fazer nossas

pesquisas no quarto central. O quarto do dr. Grimesby Roylott era maior que o da enteada, mas simples. Uma cama de campanha, uma prateleira cheia de livros, a maioria de ordem técnica, uma poltrona perto da cama, uma cadeira comum de madeira junto à parede, uma mesa redonda e um cofre enorme de ferro eram as principais coisas que se viam. Holmes examinou tudo com o maior interesse. — O que há aqui dentro? — perguntou ele, dando uma palmada no cofre.

— Os documentos de meu padrasto. — Ah, então examinou o interior? — Uma vez, há alguns anos atrás. Lembro-me de que estava cheio de papéis. — Não haverá um gato no meio deles, por acaso? — Que idéia estranha! — Bem, mas olhe para isto! E pegou um pequeno pires de leite que estava em cima do cofre. — Não, não temos nenhum gato. Mas há um leopardo e um macaco. — Oh, sim, claro. Bem, o leopardo é como um gato grande, mas um pires de leite não é bastante para satisfazê-lo, penso eu. Há um ponto que desejo esclarecer. Nisto, curvou-se diante da cadeira de madeira e examinou o assento com a maior atenção. — Muito obrigado. Está bem — disse ele, levantando-se e colocando a lente no bolso. — Ah! Aqui há uma coisa interessante. O objeto que olhava era um pequeno chicote usado por quem tem cães, pendurado a um canto da cama. Estava enrolado e amarrado com uma presilha.

— Que pensa disto, Watson? — É bastante comum, mas não posso perceber por que está enrolado. — Isso é que não é comum, hem? Hum! Há tanta malvadeza no mundo, e quando um homem inteligente volta o cérebro para o crime, torna-se mil vezes pior do que é realmente. Penso que já vimos bastante, srta. Stoner, e, se nos dá licença, iremos para o relvado. Nunca vi o rosto do meu amigo tão carregado como quando deixou o cenário de suas investigações. Ficou muito tempo em silêncio, e nem eu nem a srta. Stoner quisemos perturbar seus pensamentos antes que ele próprio terminasse seus devaneios. — É essencial, srta. Stoner — volveu ele —, que siga meticulosamente minhas instruções. — Certamente que o farei. — O assunto é demasiado importante para haver hesitações. Sua vida depende de sua obediência. — Estou em suas mãos. — Em primeiro lugar, eu e meu amigo devemos passar a noite no seu quarto. Ela e eu olhamo-nos estupefatos. — Sim, é preciso que assim seja. Deixem-me explicar-lhes. Creio que aquilo lá é a hospedaria da vila. — Sim, chama-se A Coroa. — Muito bem, sua janela será vista de lá? — Certamente que sim. — É preciso que a senhorita permaneça no quarto pretextando uma forte dor de cabeça, à hora em que seu padrasto voltar. Depois que ele for para o quarto dele, a senhorita deve abrir a janela, pôr o candeeiro lá como sinal para nós, depois retirar-se para o quarto que ocupava antes; apesar das obras, com certeza poderá acomodar-se lá por uma noite. — Oh, sim, facilmente. — Quanto ao resto, deixe nas nossas mãos. — Mas o que farão?

— Passaremos a noite no seu quarto e investigaremos a causa do barulho que a tem incomodado. — Creio, sr. Holmes, que o senhor já chegou a alguma conclusão — disse a srta. Stoner, pondo sua mão sobre o braço do meu companheiro. — Talvez. — Então, por caridade, diga-me o que foi que matou minha irmã. — Preferia ter melhores provas antes de falar. — O senhor pode me dizer, pelo menos, se a morte foi causada por algum susto medonho e repentino.

— Penso que não. Acho que houve uma causa mais concreta. E agora, srta. Stoner, precisamos ir, porque se o dr. Roylott voltasse e nos visse aqui, nossa viagem seria em vão. Adeus, seja corajosa, e, se fizer o que lhe disse, pode ficar descansada, depressa afastaremos os perigos que a ameaçam. Sherlock Holmes e eu não tivemos dificuldade em alugar um quarto e uma sala na hospedaria. Ficavam no andar superior, e da nossa janela podíamos ver o portão da alameda que levava à ala habitada da mansão Stoke Moran. Ao escurecer, vimos o dr. Roylott passar de carro, com o corpo enorme ao lado do rapaz que o acompanhava e que demorou a abrir os pesados portões. Ouvimos o rosnar rouco da sua voz e vimos a fúria com que fechou os punhos e os mostrou ao rapaz. O carro continuou, e, uns minutos depois, vimos surgir uma luz entre as árvores, quando foi acesa a lâmpada numa das salas. — Sabe, Watson? — disse Holmes quando estávamos sentados juntos na semi-obscuridade. — Estou indeciso se devo levá-lo hoje à noite ou não. Há indícios positivos de grande perigo. — Posso ajudá-lo? — Sua presença pode ser de alto valor. — Então certamente irei. — É muita bondade da sua parte. — Você fala em perigo. É evidente que viu naqueles quartos mais do que eu pude ver... — Não, mas talvez tenha deduzido mais. Creio que você viu o mesmo que eu. — Não vi nada de estranho, a não ser o cordão da campainha; para que serve aquilo? Não posso imaginar.

— Viu também a abertura? — Sim, mas não penso que seja assim tão raro haver uma pequena abertura entre dois quartos, tão pequena que mal daria passagem a um rato. — Eu tinha a certeza de que encontraríamos uma abertura de ventilação antes de virmos para Stoke Moran. — Caro Holmes... — Oh, sim. Lembra-se de ela ter dito que a irmã sentia o cheiro dos charutos do dr. Roylott? Isso por si só sugere que havia uma comunicação entre os dois quartos. Só podia ser uma abertura pequena, senão as autoridades policiais teriam dado com ela, e por isso deduzi que devia servir para ventilação. — Mas que mal poderá haver nisso? — Bem, há pelo menos uma coincidência de datas. Fez-se uma abertura, pendurou-se uma corda comprida, e uma moça dorme na cama e morre. Não lhe parece estranho? — Por ora não vejo relação nenhuma. — Não viu nada de estranho naquela cama? — Não. — Pois estava fixada ao chão. Já viu alguma cama fixada ao chão? — Nunca. — A jovem não podia arrastar a cama, devia ficar sempre na mesma posição em relação à abertura e à corda. — Holmes — exclamei —, estou percebendo o que você quer dizer. Estamos no momento exato de evitar um sutil e horrível crime. — Muito sutil e bastante horrível. Quando um médico se desvia do bem, torna-se o pior dos criminosos. Tem nervos e conhecimentos. Esse homem ultrapassa Palmer e Pritchard, mas creio, Watson, que conseguiremos mais ain da. Teremos de passar por muitos horrores antes que a noite finde. Vamos apaziguar nossos nervos fumando um pouco, e, durante alguns instantes, pensar em coisas mais agradáveis. Cerca das vinte e uma horas, a luz entre as árvores extinguiu-se e tudo ficou escuro na mansão. Passaram-se duas horas vagarosamente, e, então, repentinamente, justamente quando o relógio da igreja batia vinte e três horas, brilhou a luz bem à nossa frente.

— Aquele é o nosso sinal — disse Holmes, pulando —, está na janela do meio. Quando saímos, Holmes trocou algumas palavras com o hoteleiro, dizendo que íamos fazer uma visita, embora tarde, a um velho conhecido e talvez passássemos a noite lá. Um momento depois estávamos nas ruas escuras, com um vento frio que soprava em nosso rosto e uma luz amarela que piscava à nossa frente através das sombras para nos guiar na nossa sombria missão. Houve pouca dificuldade em entrar na herdade, porque havia muitos vãos no velho paredão do parque. Adiantando-nos debaixo das árvores, alcançamos o relvado, atravessamo-lo, e íamos entrar pela janela, quando, de dentro de uns arbustos de louro, pulou uma coisa que parecia uma criança aleijada e que se lançou sobre a relva com o corpo todo retorcido e depois desapareceu rapidamente na escuridão. — Meu Deus! — cochichei. — Você viu? Holmes estava tão surpreso quanto eu. Sua mão fechou-se sobre meu pulso como um torniquete, devido à agitação. Então riu baixinho, e aproximou a boca do meu ouvido. — É uma família bonita — murmurou ele —, aquilo é o bugio. Tinha me esquecido dos bichos de estimação do doutor. Havia um leopardo também, talvez o sentíssemos nos ombros a qualquer momento. Confesso que me senti aliviado quando, seguindo o exemplo de Holmes ao tirar os sapatos, me vi dentro do quarto. Sem fazer qualquer ruído, meu companheiro fechou as janelas, colocou o candeeiro em cima da mesa e olhou ao redor do quarto. Tudo estava como havíamos visto durante o dia. Então, chegando-se junto a mim e dobrando a mão em forma de concha, Holmes cochichou ao meu ouvido tão baixo que mal pude distinguir as palavras: — O menor barulho pode ser fatal aos nossos planos. Acenei com a cabeça para mostrar que havia entendido. — Temos de ficar no escuro. Ele veria a luz pela abertura. Acenei de novo. — Não durma. Talvez sua própria vida dependa disso. Tenha o revólver à mão. Talvez precise dele. Ficarei sentado na beira da cama, e você, naquela cadeira. Tirei o revólver do bolso e coloquei-o em cima da mesa. Holmes tirou uma bengala curta e flexível e colocou-a em cima da cama a seu lado, e, junto dela, uma caixa de fósforos e um toco de vela. Depois apagou a vela e ficamos no escuro. Nunca me esquecerei daquela noite de vigília. Não se ouvia som nenhum,

nem mesmo o da nossa respiração; contudo, eu sabia que meu companheiro estava sentado ali, de olhos abertos, na mesma tensão nervosa que eu. As janelas de madeira não deixavam passar o menor raio de luz, e esperamos numa escuridão total. Lá de fora vinha o grito ocasional de uma ave noturna, e em certo momento, na nossa própria janela, ouvimos um gemido como o miar de gatos, o que nos deu a certeza de que o leopardo andava à solta. À distância ouvíamos as badaladas profundas

do relógio da igreja, que marcavam cada quarto de hora que passava. E quão compridos pareciam aqueles quartos de hora! Meia-noite, uma hora, duas e três, e continuávamos em silêncio, esperando o que ocorresse. De repente, surgiu uma luz na direção da abertura, que se extinguiu quase imediatamente mas foi sucedida por um forte cheiro de óleo queimado e de metal quente. Alguém no quarto próximo havia acendido uma lamparina. Ouvi um movimento leve, e depois seguiu-se de novo o silêncio, mas o cheiro continuou e aumentou. Durante meia hora forcei a vista. De repente ouviu-se outro som suave como o de vapor saindo de uma chaleira. No mesmo instante em que ouvimos esse som, Holmes pulou da cama, acendeu um fósforo e bateu furiosamente com a bengala na corda da campainha. — Você o viu, Watson? — gritou ele. — Você o viu? Mas eu não tinha visto. No momento em que Holmes riscou o fósforo, ouvi um assobio baixo, mas distinto, porém o brilho repentino nos meus olhos cansados impossibilitou-me de discernir o objeto ao qual meu amigo se atirara e que açoitara com tanta fúria. Todavia, pude ver que seu rosto estava pálido como a morte e revelava horror e repugnância. Parou de bater e estava olhando para a abertura quando de repente, quebrando o silêncio da noite, veio o grito mais horroroso que jamais ouvi, que cresceu até se tornar um bramido de dor, de medo e ira, tudo misturado num tremendo uivo estridente. Dizem que na vila, e até na casa paroquial, aquele grito acordou e fez levantar os que dormiam. Nossos corações gelaram, e fiquei olhando para Holmes, e ele para mim, até os últimos ecos cessarem a pouco e pouco. — Que pode ser isso? — perguntei, ofegante. — Quer dizer que tudo acabou — respondeu Holmes. — E, finalmente, talvez para melhor. Pegue seu revólver e vamos entrar no quarto do dr. Roylott. Com a fisionomia grave, acendeu o candeeiro e saiu para o corredor. Bateu na porta duas vezes, sem receber resposta. Depois virou a maçaneta e entrou;

eu vinha logo atrás, com o revólver automático. Foi uma cena singular a que vimos. Em cima da mesa, havia uma lamparina com um dos lados meio aberto, lançando um raio de luz sobre o cofre de ferro, cuja porta estava aberta. Ao lado da mesa, sentado, encontrava-se Grimesby Roylott, vestido com

o roupão, os pés metidos em chinelos turcos. No colo, atravessando-lhe as pernas, estava o açoite em que havíamos reparado durante o dia. Seu queixo estava caído, os olhos fixos, num olhar rígido, hediondo, dirigidos a um canto do teto. Ao redor da testa tinha uma faixa amarela esquisita, com pintas castanhas, que parecia estar amarrada com força ao redor da sua cabeça. — A faixa! A faixa malhada! — cochichou Holmes. Dei um passo à frente. Nesse instante, o ornamento da cabeça começou a mover-se, e, de dentro do cabelo, levantou-se a cabeça chata, de forma triangular, e o pescoço inchado de uma serpente nojenta. — É uma cobra do brejo! — disse Holmes. — A cobra mais venenosa da Índia. Ele morreu em menos de um minuto depois de ser mordido; a violência, na verdade, recai sempre sobre os violentos; e o assassino cai sempre na cova que preparou para outro. Vamos obrigar esta criatura a voltar para o seu lugar, e então poderemos levar a srta. Stoner para algum abrigo seguro e contar à polícia o que aconteceu. Enquanto falava, retirou o chicote do colo do morto e, deitando o laço ao redor do pescoço do réptil, arrancou-o do seu poleiro macabro e, levando-o de braço estendido, atirou-o para dentro do cofre, cuja porta fechou cuidadosamente. Esses são os fatos verdadeiros a respeito da morte do dr. Grimesby Roylott, de Stoke Moran. Não é necessário que se prolongue a narrativa, que já se estendeu demais, para dizer como contamos a triste notícia à jovem aterrorizada, e como a levamos de trem pela manhã e a deixamos em Harrow. Também não contarei o progresso vagaroso das investigações oficiais, que enfim decidiram que o doutor fora morto quando brincava descuidadamente com um bicho perigoso. O pouco que ainda me faltava saber do caso foi-me relatado no nosso regresso no dia seguinte. — Eu havia chegado a uma conclusão completamente errônea, que demonstra, meu caro Watson, como é perigoso raciocinar com dados insuficientes. A presença dos ciganos, bem como a palavra "faixa", que a pobre jovem usou, sem dúvida para explicar a visão horrível que teve à luz do fósforo, bastaram para me despistar. "Meu único mérito foi reconhecer o meu erro, quando percebi a evidência de que qualquer perigo que tivesse ameaçado a dona do quarto não poderia ter

vindo da janela nem da porta. Chamaram a minha atenção a tal abertura e a corda da campainha tão perto da cama. Achei também esquisito que a cama fosse fixa e a campainha, somente um disfarce, cuja corda vinha diretamente da abertura para a cama; tudo isso me deu a ideia de que era para a descida de qualquer coisa de um ponto ao outro, e pensei logo numa cobra, ainda mais sabendo que o doutor possuía vários animais da Índia. Assim, pensei que estava na pista certa. A ideia de uma forma de envenenamento que não pudesse ser descoberta por testes químicos era justamente o que serviria para um homem astuto e cruel, que aprendera essas coisas no Oriente. A rapidez com que tal veneno faria efeito era considerada por ele uma vantagem. O médico-legista teria de ser muito perspicaz para dar com os dois pontinhos escuros onde os dentes da cobra haviam picado, introduzindo o veneno. Depois lembrei-me do assobio. Era preciso recolher a cobra antes que chegasse a luz do dia, para que a vítima não a visse. Ele tinha treinado a cobra, talvez com o uso do leite que vimos. Introduzia-a pela abertura, tendo a certeza de que ela desceria pela corda e chegaria à cama, podendo ou não morder a ocupante. Talvez ela escapasse todas as noites, durante uma semana inteira, porém, mais cedo ou mais tarde, seria vitimada. Já havia formulado essas ideias antes de entrarmos no quarto do doutor. Quando o inspecionei, vi que ele tinha o hábito de subir na cadeira, o que era necessário para poder alcançar a abertura. "Quando vi o cofre e o pires de leite, o laço feito com a corda do chicote, tudo isso fez desaparecer qualquer sombra de dúvida. O som de metal que a srta. Stoner ouviu foi, com certeza, causado pelo bater da porta do cofre sobre sua terrível ocupante. Uma vez convencido de que estava na pista certa, você deve estar lembrado dos passos que dei para pôr à prova as ideias. Ouvi o bicho assobiar, suponho que você também ouviu, e imediatamente acendi a luz e o ataquei." — Com o fito de impeli-lo a voltar pela abertura. — E também com o intuito de fazê-lo revoltar-se contra o próprio dono do outro lado. Algumas das pancadas acertaram nele e despertaram-lhe a fúria, e por isso se lançou sobre a primeira pessoa que viu. Assim, sou indiretamente responsável pela morte do dr. Grimesby Roylott, mas não posso dizer que isso me pese muito na consciência.

Sherlock Holmes

em:

A liga dos ruivos

Por Sir Arthur Conan Doyle

PDF por ZOHAR ([email protected])

CPTurbo.org

Fui visitar meu amigo Sherlock Holmes, num dia de outono do ano passado, e encontrei-o numa séria conversa com um senhor idoso, muito corpulento, de rosto corado e cabelos vermelhos. Pedindo desculpas pela minha intrusão, ia retirar-me quando Holmes me puxou abruptamente para dentro da sala e fechou a porta. — Não podia ter vindo em melhor hora, caro Watson — disse-me ele cordialmente. — Receei que estivesse ocupado. — De fato. E muito. — Então devo esperá-lo na outra sala. — Nada disso. Este cavalheiro, sr. Wilson, tem sido meu companheiro e auxiliar em muitos dos meus casos mais bem-sucedidos, e não duvido de que venha ainda a ser útil no seu também. O cavalheiro gordo levantou-se da cadeira e cumprimentou-me com uma expressão interrogativa nos pequenos olhos meio fechados pela gordura. — Sente-se no sofá — disse Holmes, ajeitando-se de novo na poltrona e juntando as pontas dos dedos como era seu costume quando estava pensativo. — Eu sei, meu caro Watson, que você é como eu, gosta de tudo o que é bizarro e foge à rotina monótona do convencionalismo da vida cotidiana. Você já demonstrou esse gosto no entusiasmo com que escreve, e, desculpe-me dizê-lo, até no embelezamento de muitas das minhas próprias aventuras. — Seus casos têm sido realmente do maior interesse para mim — observei. — Lembra-se de eu ter dito outro dia, quando começamos a estudar o problema apresentado pela srta. Mary Sutherland, que, devido a estranhos efeitos e combinações de circunstâncias extraordinárias, precisávamos nos convencer de que a própria vida tem muito mais ousadia do que se possa imaginar? — Uma proposição da qual tomei a liberdade de duvidar. — Sim, doutor, mas mesmo assim tem de aceitar meu ponto de vista, ou continuarei a aborrecê-lo com uma grande quantidade de fatos até que fique desorientado e admita que tenho razão. O sr. Jabez Wilson fez-me o favor de vir aqui hoje e começou uma narrativa que promete ser um dos mais singulares casos de que tenho conhecimento desde há muito tempo. Você já me tem ouvido dizer que as coisas mais estranhas e esquisitas geralmente têm relação não com os maiores crimes, mas com os menores, e, ocasionalmente, há mesmo razão para duvidar se houve crime ou não. Portanto, pelo que ouvi até agora, é-me impossível decidir se o caso atual foi crime perpetrado ou não;

todavia, o curso que tomam os acontecimentos é certamente dos mais curiosos. Talvez o sr, Wilson queira ter a bondade de recomeçar sua narrativa. Não lhe faço esse pedido apenas porque meu amigo, o dr. Watson, não a ouviu; mas também porque a natureza peculiar da história faz-me ansioso por não perder o mínimo pormenor. Quase sempre, quando ouço as primeiras notícias de um caso, sigo-lhes o fio devido à experiência de milhares de outros semelhantes e dos quais vou me lembrando. Mas neste caso, sou obrigado a admitir que os fatos

são, segundo creio, únicos no gênero. O cliente corpulento aprumou-se com visível orgulho e tirou do bolso do sobretudo um jornal sujo e amarrotado. Enquanto lia a coluna da primeira página, com o jornal estendido sobre o joelho, olhei bem para o homem e esforcei-me, seguindo o hábito do meu companheiro, por ler as indicações que pudessem estar contidas em seu vestuário e aparência geral. Não lucrei muito, no entanto, com minha inspeção. Nosso visitante tinha apenas as características de um negociante britânico comum, obeso, pomposo e lento. Vestia calças cinza axadrezadas e largas, como as usadas pelos pastores de ovelhas nos campos; a sobrecasaca estava desabotoada na frente e não muito limpa, e do colete escuro pendia uma pesada corrente de ouro com uma medalha como ornamento. Uma cartola gasta e um sobretudo castanho com uma gola de veludo enrugada jaziam numa cadeira a seu lado. Ao todo, pelo que pude observar, não havia nada de extraordinário nem de estranho no homem, a não ser a cabeça flamejante e uma expressão de extrema mortificação e descontentamento no rosto. O olhar perscrutador de Sherlock Holmes percebeu minha preocupação, e ele sacudiu a cabeça, sorrindo perante o meu olhar inquiridor. — Além dos fatos evidentes de que já foi operário, tomava rapé, é maçom, esteve na China e tem escrito muito ultimamente, não deduzi mais nada O sr. Jabez Wilson pulou da sua cadeira com o dedo indicador sobre o jornal, porém com os olhos fixos no meu amigo. — De que modo mágico descobriu tudo isso, sr. Holmes? — perguntou ele. — Como adivinhou por exemplo que fui operário? É verdade como o Evangelho, e comecei como carpinteiro a bordo de um navio. — Suas mãos, meu caro senhor. Sua mão direita é muito maior do que a esquerda. Usou-a muito, e os músculos estão mais desenvolvidos. — Bem, e o rapé, e a maçonaria? — Não quero insultar sua inteligência dizendo-lhe como notei tudo isso, principalmente porque, contra as regras da sua ordem, o senhor usa um arco e um compasso no alfinete da gravata.

— Ah! é certo, esqueci-me disso. Mas, e os inúmeros escritos? — O que se há de pensar quando se vê a manga direita tão brilhante e gasta na extensão de umas cinco polegadas, e a manga esquerda puída perto do cotovelo que o senhor apoia na secretária? — Bem, e a respeito da China? — O peixe que o senhor traz tatuado logo acima do pulso direito só pode ter sido feito na China. Estudei

um pouco a respeito de tatuagem e até contribuí com alguma literatura sobre o assunto. Aquele truque de colorir as escamas de peixe com um delicado cor-de-rosa é peculiar da China. Quando, ainda por cima, vejo uma moeda chinesa pendurada na corrente do seu relógio, torna-se fácil descobrir tudo. Jabez Wilson riu-se a bandeiras despregadas. — Bem, nunca vi! — declarou. — Pensei que o senhor tivesse feito uma coisa de muito valor, mas vejo, enfim, que não houve nada de extraordinário. — Estou pensando, Watson — disse Holmes —, que cometi um erro explicando tudo. Omne ignotum pro magnifico, você bem sabe, e minha pobre e pequena reputação soçobrará se eu continuar a ser tão ingênuo. Não encontrou o anúncio, sr. Wilson? — Sim, já o tenho — respondeu ele, com o dedo vermelho e grosso colocado no meio da coluna. — Aqui está. Foi isto o que deu início a tudo. Leia-o, senhor. Tirei-lhe o jornal da mão e li o seguinte: "Liga dos Cabeças Vermelhas Devido ao recente falecimento de Ezequias Hopkins, da Pensilvânia, EUA, está aberta uma vaga que dá direito a outro membro da liga a receber o salário de quatro libras semanais por serviços puramente nominais. Todos os homens de cabelos vermelhos que estejam em perfeita saúde mental e física, com mais de vinte e um anos, são elegíveis. Tratar pessoalmente na segunda-feira, às onze horas; falar com Duncan Ross, nos escritórios da liga, em Pope's Court, Fleet Street". — Que vem a ser isso? — exclamei, depois de ler duas vezes o extraordinário anúncio. Holmes riu e mexeu-se na cadeira, como era seu costume quando estava entusiasmado.

— Nada comum, não é verdade? E agora, sr. Wilson, deixe de brincadeiras e conte-nos tudo sobre sua vida, sua família, e o efeito deste anúncio sobre suas posses. Doutor, tenha a bondade de tomar nota da data do jornal e do nome do mesmo.

— É o Morning Chronicle de 27 de abril de 1890, justamente há dois meses passados. — Muito bem. E agora, sr. Wilson? — Bem, foi como acabei de lhe contar, sr. Sherlock Holmes — disse Jabez Wilson, enxugando o suor da testa. — Tenho um pequeno negócio de penhores na Saxe-Coburg Square, perto da City. É pequeno, e ultimamente mal dá para me sustentar. Antigamente podia pagar a dois ajudantes, mas agora tenho um só, e teria dificuldade em pagar mesmo a esse se não aceitasse metade do ordenado, visto a outra metade custear a aprendizagem do negócio. — Qual é o nome desse jovem tão compreensivo? — perguntou Holmes.

— Chama-se Vincent Spaulding, e não é tão jovem como pensa. É difícil dizer a idade dele. Não podia desejar ajudante mais ativo, sr. Holmes; e eu sei que ele poderia ganhar duas vezes mais do que lhe posso pagar. Mas, em todo caso, se está satisfeito, por que haveria eu de lhe encher a cabeça com outras idéias? — Claro! O senhor parece ter sorte; um empregado que não exige ordenado além do regulamentar não é muito comum nestes tempos. Não sei se seu ajudante não será tão estranho como este anúncio. — Oh, ele tem também as suas falhas — disse o sr. Wilson. — Nunca houve outro igual para bater fotos. Bate fotos quando devia estar trabalhando, e desce logo em seguida para a adega, como um coelho que procura a toca, para revelar os negativos. É a principal falha dele, mas em geral trabalha bastante. Não tem vícios. — Continua em serviço, suponho? — Sim, senhor. Ele e uma mocinha de treze anos, que cozinha um pouco e faz a limpeza. É só o que tenho em casa, porque sou viúvo; somos só os três, e nos arranjamos para pagar o aluguel, sem contrairmos dívidas, mesmo que não façamos mais nada. A primeira coisa que nos chamou realmente a atenção foi este anúncio. Spaulding desceu para o escritório justamente há dois meses com este jornal na mão e disse: "Gostaria que Deus me tivesse dado cabelos vermelhos, sr. Wilson".

"— Por quê? — perguntei-lhe. "— Porque há outra vaga na Liga dos Cabeças Vermelhas, e creio que há mais vagas do que homens para ocupá-las; por isso os depositários estão preocupados, sem saber onde encontrar as pessoas que devem receber o dinheiro. Se o meu cabelo fizesse o favor de mudar de cor, aqui estaria um bom negociozinho para mim. "— Mas de que se trata? — perguntei eu. O senhor compreende, sr. Holmes, sou um homem caseiro, e como o meu negócio vem ter comigo e não é necessário eu procurá-lo, passam-se semanas sem que eu saia de casa; e, assim, gosto de ouvir as notícias. "— O senhor nunca ouviu falar da Liga dos Cabeças Vermelhas? — perguntou ele, abrindo muito os olhos. "— Nunca. "— Admiro-me, porque o senhor próprio é elegível para uma das vagas. "— E quanto valem? — perguntei. "— Oh, apenas umas duzentas libras por ano, mas o trabalho é pequeno, e pouco tempo é necessário roubar às suas outras ocupações. — Bem, como deve calcular, aquilo me interessou, porque meu negócio não corre bem há alguns anos, e umas duzentas libras extras seriam bem-vindas. "— Conte-me tudo a respeito disso — pedi eu. "— Bem — continuou ele, mostrando-me o anúncio —, como vê, há uma vaga na liga, e está aqui o endereço onde obter as informações. Por tudo o que pude descobrir, a liga foi fundada por Ezequias Hopkins, milionário americano, que tinha idéias muito esquisitas. Ele próprio tinha cabelos vermelhos e sentia grande simpatia por todos aqueles que o tinham da mesma cor. Assim, quando morreu, descobriram que deixara sua enorme fortuna nas mãos de depositários, com instruções para empregarem os juros na criação de empregos para homens que tivessem o cabelo daquela cor. Pelo que ouvi dizer, o trabalho é pouco e bem pago. "— Mas — retruquei — devem inscrever-se multidões de homens. "— Não tantos como pensa — respondeu. — Bem vê que o negócio é limitado aos londrinos que sejam adultos. O tal americano saiu de Londres quando jovem, e queria deixar um benefício à sua cidade. Ouvi dizer também que o cabelo não pode ser apenas ruivo ou mesmo vermelho carregado. Tem de ser vermelho mesmo. Como fogo brilhante, como fogo. Se pretende o lugar, sr. Wilson, creio que o conseguiria, mas talvez nem valha a pena incomodar-se por causa de duzentas libras. — Como os senhores podem ver, meu cabelo é, de fato, de cor exuberante, e pareceu-me que, se houvesse realmente alguma

concorrência, teria tanta possibilidade como qualquer outro homem, e talvez mais. Vincent Spaulding parecia saber tanto a respeito do assunto, que achei que me poderia ser útil. Mandei-o fechar a loja naquele dia, para que fosse comigo imediatamente. Gostou de ter um feriado. Fechamos tudo e saímos à procura do endereço que vinha no anúncio. Espero nunca mais ver semelhante horror outra vez, sr. Holmes. De norte, sul, leste ou oeste, qualquer homem que tivesse um fio de cabelo vermelho na cabeça tinha vindo para a cidade em resposta ao anúncio. Nem se podia passar na Fleet Street por causa deles, e Pope's

Court mais parecia a carroça de um vendedor de laranjas. Nunca imaginei que houvesse tantos em todo o país como os que se reuniram por causa daquele anúncio. Havia cabelos de todas as tonalidades. Cor de palha, de limão, de laranja, tijolo, cor de bílis e de barro, mas, como observou Spaulding, poucos com cabelos vermelhos, cor de terra. Quando vi tanta gente à espera, quis desistir, desanimado, mas Spaulding não concordou. Como ele o conseguiu, não sei, mas empurrou alguns e puxou outros, dando cotoveladas, até que atravessamos a multidão e subimos os degraus que levavam ao escritório." — Sua experiência foi divertida — disse Holmes enquanto o cliente fazia uma pausa e, para refrescar a memória, tomava uma pitada de rapé. — Tenha a bondade de continuar. — Não havia nada no escritório, a não ser duas cadeiras de madeira e uma mesa de pinho atrás da qual estava sentado um homem com cabelos ainda mais vermelhos do que os meus. Dizia poucas palavras a cada candidato que subia e depois encontrava alguns defeitos que o desclassificavam. Obter uma vaga não parecia assim tão fácil; enfim, quando chegou a nossa vez, o homenzinho tratou-me melhor do que aos outros, e fechou a porta quando entramos para que pudesse falar-nos em particular. "— Este é o sr. Jabez Wilson — disse o meu ajudante —, e ele quer preencher uma vaga na liga. "— É admiravelmente adequado ao lugar — respondeu o outro. — Nunca vi nada tão perfeito. — Deu um passo para trás, inclinou a cabeça de lado, e olhou meu cabelo até que fiquei embaraçado. De repente adiantou-se, sacudiu-me a mão e deu-me parabéns pelo êxito. — Seria uma injustiça hesitar. Com certeza o senhor me desculpará por tomar uma precaução óbvia. — Dito isto, agarrou-me pelos cabelos e puxou-os até que gritei de dor. — Há lágrimas nos seus olhos — disse ele, soltando-me. — Vejo que tudo está em ordem, mas temos de tomar cuidado, porque fomos duas vezes enganados com chinos e uma vez com tintas. Podia contar-lhe histórias de farsas que enojariam sua natureza humana. — Deu um passo até a janela e gritou que a vaga já estava preenchida. Um gemido de desapontamento subiu lá de fora, e todos se dispersaram em diversas direções, até que não ficou ninguém. Quanto a cabeças vermelhas à vista, só a do agente e a minha.

"— Meu nome — disse ele — é Duncan Ross, e eu próprio sou um dos beneficiários do dinheiro deixado pelo nosso benfeitor. É casado, sr. Wilson? Tem família? "Disse-lhe que não, e sua fisionomia modificou-se. "— Deveras — disse ele com voz grave. — Isso é muito sério! E custa-me ouvi-lo declarar tal coisa. O auxílio em dinheiro tem como objetivo a propagação dos cabelos vermelhos, tanto quanto possível. É uma infelicidade ser solteiro. "Fiquei desanimado quando ele disse aquilo, sr. Holmes, pois pensei que não obteria a vaga; porém, depois de pensar no caso um instante, ele disse que não fazia mal. "— No caso de outro qualquer, a objeção poderia ser fatal, mas devemos ser tolerantes no caso de um homem com a cabeça coberta de cabelos como os seus. Quando é que poderá começar suas novas obrigações? "— Bem, é um pouco difícil, porque já tenho um negócio — disse-lhe eu. "— Oh, não se incomode com isso, sr. Wilson — respondeu Vincent Spaulding —, posso substituí-lo. "— Qual seria o horário? — perguntei. "— Das dez às catorze horas. "Agora os negócios nas casas de penhores são feitos mais à noite, especialmente às quintas e sextas à tarde, pouco antes dos dias de pagamento. Sendo assim, seria bom para mim poder ganhar um pouco de manhã; além disso, sabia que meu ajudante era um homem correio e resolveria qualquer problema que aparecesse. "— Para mim, está bem — disse eu. — E o pagamento? "— É de quatro libras por semana. "— E o trabalho? "— É puramente nominal. "— O que quer dizer puramente nominal? "— Bem, o senhor terá de estar no escritório, ou pelo menos no edifício, durante todo o tempo. Se sair, perderá para sempre todas as vantagens, O testamento é muito claro quanto a este ponto. Se sair durante o horário de trabalho, estará faltando a suas obrigações. "Como eram apenas quatro horas, eu não precisaria sair antes.

"— Nenhuma desculpa terá valor — disse o sr. Duncan Ross. — Nem doença, nem negócios, nem qualquer outra coisa. Terá de ficar aqui ou perderá a colocação. "— E o trabalho? "— É copiar a Encyclopædia Britannica. O primeiro volume está dentro daquele armário. Tem de trazer sua própria tinta, penas e mata-borrão, mas nós lhe fornecemos esta mesa e esta cadeira. Pode vir amanhã? "— Certamente — respondi. "— Então adeus, sr. Jabez Wilson, e permita-me que lhe dê os parabéns mais uma vez pela feliz aquisição deste importante cargo. "Conduziu-me para fora do escritório e segui para casa com meu ajudante, mal sabendo o que dizer e fazer, tão satisfeito estava com a minha sorte. Pensei no caso o dia inteiro, e à tarde já estava de novo triste porque me convencera de que tudo aquilo não passava de mistificação ou fraude, embora não pudesse imaginar qual o objetivo. Parecia incrível que alguém pudesse dedicar tal soma para se fazer uma coisa tão simples como copiar a Encyclopædia Britannica. Vincent Spaulding fez o que pôde para me animar. Mas à hora de me deitar já tinha esquecido tudo. De manhã, todavia, resolvi ir ver do que se tratava, e por isso comprei um vidro de tinta, uma pena de ganso, sete folhas de papel almaço e fui para Pope's Court. Fiquei alegre ao ver que tudo se achava em ordem. A mesa estava à minha espera, e o sr. Duncan Ross permaneceu até verificar que eu tinha começado o trabalho. Fez-me iniciar com a letra A e depois deixou-me, vindo de vez em quando para ver se tudo corria bem. As catorze horas disse-me adeus, perguntando quanto já copiara, e fechou a porta do escritório. "Isto aconteceu dia após dia, sr. Holmes, e no sábado o chefe entrou e atirou para cima da mesa as quatro libras de ouro que eu havia ganho naquela semana. Na semana seguinte e na outra aconteceu a mesma coisa. Todas as manhãs chegava às dez horas e todas as tardes saía às catorze horas. A pouco e pouco o sr. Duncan Ross foi deixando de aparecer. Vinha somente uma vez de manhã, e por fim deixou mesmo de comparecer. Todavia, nunca ousei sair do escritório por um só instante, porque não tinha certeza se ele viria ou não e o emprego era tão bom que não podia arriscar-me a perdê-lo. "Passaram-se oito semanas assim. Eu já havia copiado 'abade', 'arma', 'arqueiro', 'arquitetura' e 'ática', e esperava que, com diligência, pudesse passar à letra B dentro de algum tempo. "Gastei um bom bocado de papel almaço, e já quase um terço da prateleira estava cheio das minhas cópias, quando de repente todo o negócio se desvaneceu."

— Como se desvaneceu? — Vai ouvir. Hoje de manhã fui para o trabalho como de costume, às dez horas, mas a porta estava fechada à chave e tinha um cartão afixado no centro do painel com um preguinho. Aqui está ele, e o senhor pode lê-lo. Mostrou um pedaço de cartolina, do tamanho mais ou menos de um memorando, sobre o qual estava escrito:

A LIGA DOS CABEÇAS VERMELHAS ESTÁ DISSOLVIDA

9 DE OUTUBRO, 1890

Sherlock Holmes e eu examinamos o lacônico aviso e o rosto triste do homem. Ao lado cômico do caso acrescentei qualquer outra consideração, e ambos desatamos a rir.

— Não vejo nada de engraçado — exclamou o nosso cliente, corando até a raiz dos cabelos. — Se não puderem fazer melhor do que rir de mim, terei de procurar outra pessoa. — Não, não — disse Holmes, fazendo-o sentar-se de novo na cadeira de onde se havia levantado. — Eu não perderia o seu caso por nada deste mundo. É uma original novidade, mas permita-me que lhe diga que tem qualquer coisa de cômico. Diga-me que passos deu quando encontrou o cartão pregado à porta. — Fiquei atônito e vacilei, não sabendo o que fazer. Depois fui aos escritórios da vizinhança, mas não pareciam saber de coisa alguma. Finalmente fui falar com o senhorio, que é funcionário e mora no andar térreo, e perguntei-lhe se podia informar-me para onde tinha ido a Liga dos Cabeças Vermelhas. Disse-me que nunca ouvira falar de tal liga. Perguntei-lhe quem era o sr. Duncan Ross e ele respondeu-me que nunca ouvira falar nesse nome. "— Bem — disse-lhe eu —, e o cavalheiro da sala número 4? "— Oh! Aquele homem de cabeça vermelha? "— Sim. "— Ah! Segundo me informou, o nome dele é William Morris. É advogado e ocupou aquela sala temporariamente, até que seus escritórios ficassem prontos. Mudou-se ontem. "— Onde é que eu o poderia encontrar? "— Só nos escritórios novos. Ele deu-me o endereço. É no número 17 da King Edward Street, perto da Catedral de São Paulo. "Saí, sr. Holmes, mas ao chegar àquele endereço deparei com uma fábrica de protetores artificiais para joelhos, e ninguém lá conhecia William Morris, nem

tampouco Duncan Ross." — E que fez o senhor então? — perguntou Holmes. — Voltei para minha casa na Saxe-Coburg Square e consultei meu ajudante. Mas ele não pôde auxiliar-me. Disse apenas que, se eu esperasse, talvez recebesse qualquer coisa pelo correio. Mas aquilo não era suficiente, sr. Holmes. E eu não queria perder semelhante emprego sem lutar por ele. Por isso, ouvindo dizer que o senhor atende aos pobres que necessitam do seu auxílio, vim falar-lhe diretamente. — E fez muito bem — disse Holmes. — Seu caso é deveras extraordinário, e terei muito prazer em investigá-lo. Pelo que o senhor me contou, penso que se trata de coisa mais séria do que à primeira vista pode parecer. — Séria a valer! Pois perdi quatro libras por semana — disse Jabez Wilson. — Quanto a isso, não vejo muita razão para se queixar dessa liga extraordinária. Pelo contrário, o senhor ganhou mais umas trinta libras, para não falar dos grandes conhecimentos que adquiriu de todos os assuntos mencionados sob a letra A. Por isso não teve prejuízo. — Não, senhor, mas desejo descobrir quem eles são, e qual foi o objetivo ao pregarem-me essa peça, porque foi uma armadilha, e só para mim. Custou-lhes caro a brincadeira, porque tiveram de gastar umas trinta e duas libras. — Vamos nos esforçar por lhe esclarecer todos os pontos. Mas, primeiramente, uma ou duas perguntas, sr. Wilson. Há quanto tempo estava no emprego esse seu ajudante, quando lhe chamou a atenção para o anúncio? — Cerca de um mês. — Como foi que ele apareceu? — Em resposta a um anúncio. — Era o único candidato? — Não, entrevistei pelo menos uma meia dúzia. — Por que o escolheu? — Porque tinha boa aparência e estava disposto a me servir por um ordenado baixo. — Meio ordenado até. — Sim. — Que espécie de pessoa é esse Vincent Spaulding?

— É pequeno, gordo, ligeiro nos seus movimentos, não tem pelos no rosto, embora tenha quase trinta anos de idade, e tem na testa uma mancha branca que parece ter sido produzida por algum ácido. Holmes endireitou-se na cadeira, nervoso. — Já calculava isso — ripostou ele. — O senhor também me disse que as orelhas eram furadas como para colocar brincos? — Sim, senhor, contou-me que um cigano lhe fez aquilo quando era pequeno. — Hum! — Holmes recostou-se de novo na cadeira, pensativo. — Ele esteve com o senhor até agora? — Oh, sim. Foi agora mesmo que o deixei. — E seus negócios correram bem enquanto o senhor esteve ausente? — Não posso me queixar, senhor. Nunca há muito o que fazer de manhã. — Basta, sr. Wilson, terei a satisfação de lhe dar mais algumas informações sobre o caso dentro de um ou dois dias. Hoje é sábado, e espero que até segunda-feira tenhamos chegado a alguma conclusão. — Bem, Watson — disse Holmes quando nosso visitante saiu. — O que você pensa de tudo isso? — Não sei o que pensar, é um caso misterioso. — Em regra, e por mais estranho que pareça, o caso é menos misterioso quando evidente, e os crimes comuns é que são verdadeiramente difíceis de decifrar, assim como um rosto comum é mais difícil de se identificar. Mas preciso andar depressa com este assunto. — Que vai fazer então? — Fumar — respondeu ele. — Vou precisar de três boas pitadas antes de chegar a uma conclusão. Espero que você não fale comigo durante uns cinqüenta minutos. Enroscou-se na poltrona, os joelhos quase tocando o nariz pontudo como o de um gavião, fechou os olhos e pôs o cachimbo de barro na boca, de forma a parecer o bico de um pássaro exótico.

Eu estava certo de que ele tinha caído no sono, e cheguei a dormitar quando de repente ele se levantou da cadeira com a gesticulação de um homem que já decidiu o que fazer, tirou o cachimbo e o atirou na pedra da lareira. — Sarasate está se apresentando no St. James's Hall esta tarde — disse ele. — O que é que acha, Watson? Seus doentes poderão dispensá-lo por algumas horas? — Não tenho quase nada que fazer hoje, e minha clientela nunca me absorve muito tempo. — Então, ponha o chapéu e vamos até lá. Vou passar pela City e podemos almoçar no caminho. Reparei que há bastante música alemã no programa, que aprecio mais do que a italiana ou a francesa. É introspectiva, e preciso de

introspecção. Vamos! Fomos pelo metro até Aldersgate; um breve passeio levou-nos à Saxe-Coburg Square, ao lugar onde tinham ocorrido os fatos da singular história que ouvíramos de manhã. Era um largo pequeno, medíocre e maltratado; havia quatro carreiras de casas de tijolos de frente para um terreno cercado, onde um conjunto de arbustos se esforçava por viver numa atmosfera carregada de fumaça e poluição. Três bolas douradas e uma tábua castanha com "Jabez Wilson" escrito em letras brancas numa casa de esquina indicavam que era ali que nosso cliente tinha o seu negócio. Sherlock Holmes postou-se diante da casa, olhando, a cabeça de lado e os olhos brilhando entre as pálpebras. Subiu a rua vagarosamente e depois desceu-a até a outra esquina, examinando as casas. Finalmente, voltou à casa de penhores e, depois de bater três vezes com força na calçada, foi até a porta e bateu. A porta foi imediatamente aberta por um rapaz bem-barbeado e esperto, que o convidou a entrar. Obrigado — disse Holmes —, desejava apenas perguntar-lhe como é que se vai para o Strand. — Vire na terceira esquina à direita, e depois na quarta à esquerda — respondeu prontamente o empregado, fechando a porta. — Rapaz vivo, aquele — observou Holmes quando saímos. — A meu ver, é a quarta pessoa mais esperta de Londres, e pela sua ousadia talvez mereça o terceiro lugar. Já sei alguma coisa a seu respeito. — Claro que é o ajudante do sr. Wilson, e tem grande importância nesse mistério da Liga dos Cabeças Vermelhas. Tenho certeza de que você pediu a informação apenas para que pudesse vê-lo. — Não a ele. — Então o quê? — Os joelhos das calças dele.

— E o que foi que você viu? — O que esperava ver. — Por que bateu na calçada? — Meu caro doutor, é hora de observação, não de prosa. Somos espiões na terra do inimigo. Já conhecemos a Saxe-Coburg Square, vamos agora explorar as ruas que ficam por trás dela. A rua em que entramos depois que viramos a esquina da praça fazia um perfeito contraste com a outra, tal como a frente de um quadro em relação ao verso. Era uma das principais artérias por onde passava o tráfego da cidade para norte e oeste. Estava bloqueada por uma imensa fila dupla de veículos comerciais, em ambos os sentidos, e as calçadas estavam escuras devido à multidão de passantes. Era difícil crer que os fundos daquelas lojas e daqueles majestosos edifícios dessem na feia praça onde tínhamos desembocado. — Deixe-me ver — disse Holmes parando na esquina e olhando a fila de prédios —, gostaria de fixar a ordem destas casas. É um passatempo meu este de obter um conhecimento exato das ruas de Londres. Mais adiante fica a loja de Mortimer, o vendedor de tabaco, a lojinha de jornais, o restaurante vegetariano, o depósito de McFarlane, o fabricante de carros. Isso nos leva até o outro quarteirão. E agora, doutor, que já acabamos nosso trabalho aqui, vamos nos divertir um pouco. Vamos tomar uma chávena de café e comer um sanduíche, e depois seguir para a terra dos violinos, onde tudo é doçura, delicadeza e harmonia, e onde não há clientes de cabeça vermelha a nos incomodar com suas histórias. Meu amigo era um músico entusiástico, e não só sabia tocar instrumentos como também era um compositor de mérito, acima do comum. Ficou toda a tarde sentado, perdido na mais perfeita alegria, agitando os dedos ao compasso da música, enquanto o rosto sorridente e os olhos lânguidos e sonolentos não pareciam ser os mesmos do Holmes caçador, do impiedoso, do esperto agente criminal. No seu temperamento a natureza dupla alternava-se, e sua extrema exatidão e astúcia representavam, como muitas vezes tenho pensado, uma reação contra a tendência poética e contemplativa que ocasionalmente predominava nele. A transição rápida de sua natureza levava-o do extremo langor a uma energia devorante, e eu sabia que nunca era tão temível como quando, durante alguns dias sem interrupção, ficava na poltrona rodeado pelas suas pesquisas e notas. Era então que, repentinamente, suas faculdades arrasadoras demonstravam um tão, alto nível de intuição que aqueles que não estavam habituados aos seus métodos o olhavam, atônitos, considerando quase sobre-humanos seus conhecimentos. Quando o vi naquela tarde, tão entretido com a música no St. James's Hall, senti que aqueles que ele resolvera caçar corriam perigo. — Com certeza quer regressar a casa, não, doutor? — perguntou ele ao sairmos do St. James's Hall.

— Sim, seria bom. — E eu tenho um assunto que me ocupará algumas horas. Este caso da Saxe-Coburg Square é coisa séria. — Por que séria? — Um crime hediondo está sendo planejado. Tenho os melhores motivos para crer que estamos a tempo de o impedir. Como hoje é sábado, isto complica um pouco os movimentos. Esta noite precisarei do seu auxílio. — A que horas? — Às vinte e duas horas seria conveniente. — Estarei na Baker Street a essa hora, então. — Muito bem. E olhe, doutor! Pode ser que haja um certo perigo, é bom prevenir-se levando seu revólver do exército no bolso. — Agitou a mão, rodou nos calcanhares e desapareceu rapidamente no meio da multidão. Espero não ser menos inteligente que os demais homens, porém, fiquei oprimido com a consciência da minha própria insensatez em comparação com Sherlock Holmes. Tinha ouvido e visto o mesmo que ele, e pelas suas palavras era evidente que ele sabia não só o que acontecera, mas até o que ia acontecer, ao passo que para mim tudo era apenas confusão. Pensava no assunto enquanto ia de carro para a minha residência, em Kensington, na história esquisita do copiador da Encyclopædia, na Saxe-Coburg Square e nas palavras sinistras com que ele se despedira de mim. Que expedição noturna seria essa, e por que haveria eu de ir armado? Onde iríamos e o que teríamos de fazer? Calculei, pela atitude de Holmes, que o sujeito insinuante, ajudante do homenzinho da loja de penhores, era um indivíduo temível, capaz de tudo. Quis desvendar qualquer coisa, mas parei descoroçoado, e deixei de pensar no caso até que a noite trouxesse alguma explicação. Eram vinte e uma e quinze quando saí de casa e me dirigi através do parque e da Oxford Street à Baker Street. Havia dois carros à porta, e quando entrei no corredor ouvi o som de vozes lá em cima. Ao entrar no aposento, vi Holmes numa animada conversa com dois homens, um dos quais reconheci ser Peter Jones, o agente da polícia; o outro era um homem de rosto comprido e magro, com um chapéu lustroso e metido numa respeitável sobrecasaca. — Oh! Nosso grupo agora está completo — disse Holmes, abotoando sua jaqueta e pegando seu chicote de cabo grosso de caçador que estava pendurado no bengaleiro. — Watson, creio que você já conhece o sr. Jones, da Scotiand Yard. Deixe-me apresentar-lhe o sr. Merryweather, que vai nos acompanhar nas aventuras desta noite. — Vamos caçar dois a dois outra vez, doutor, como está vendo — disse Jones. — Nosso amigo é muito bom para inventar uma caça. Só precisa de mais um

cão para ajudá-lo a farejar. — Espero que nossa caçada não seja em vão — observou tristemente o sr. Merryweather. — Pode confiar inteiramente no sr. Holmes — disse o policial arrogantemente. — Ele tem os seus próprios metodozinhos, os quais são a meu ver um pouco teóricos e fantásticos demais, mas tem jeito para detetive. Não é demais admitir isso uma ou duas vezes, como no caso do assassino de Sholto e no do tesouro de Agra, em que os seus cálculos foram mais exatos do que os da polícia. — Oh, se fala assim, então está tudo bem, sr. Jones! — disse o estranho com deferência, — Todavia, confesso que sinto perder hoje o meu joguinho. Nos últimos dois anos, é a primeira noite de sábado que não vou jogar. — Creio que hoje achará as apostas mais importantes do que jamais o fez, e de maior interesse — exclamou Holmes. — Para o sr. Merryweather, as apostas valerão mais do que trinta mil libras, e para o sr. Jones, será um homem a quem deseja deitar as mãos. — John Clay, o assassino, ladrão, estrangulador e falsário, é jovem, sr. Merryweather, mas é perito na sua profissão; eu gostaria mais de lhe pôr as algemas do que a qualquer outro criminoso de Londres. É extraordinário esse tal Clay; o avô era um duque da casa real, e ele próprio estudou em Eton e Oxford. Tem um cérebro tão agudo como os dedos, e, embora encontremos sinais dele a cada passo, nunca sabemos onde se encontra. Faz um roubo na Escócia numa semana e na outra já está arranjando dinheiro para fundar um orfanato na Cornualha, no extremo sul. Há anos que o persigo, mas nunca o vi. — Espero ter o prazer de apresentá-lo ao senhor esta noite. Eu também já andei atrás dele uma ou duas vezes e concordo que é perito na profissão. Já se passaram duas horas e devíamos estar a caminho. Vocês dois seguem no primeiro carro, e Watson e eu seguimos no outro. Sherlock Holmes manteve-se calado durante o longo percurso e encostou-se para trás, cantarolando baixo as músicas que havia escutado à tarde. Atravessamos o labirinto de ruas iluminadas a gás até desembarcarmos na Farringdon Street. — Agora estamos pertinho — disse o meu amigo. — Aquele sujeito chamado Merryweather é diretor de um banco e está pessoalmente interessado no assunto. Achei melhor trazer o Jones conosco, não é mau rapaz, embora absolutamente imbecil quanto à sua profissão. Tem uma virtude: é tão corajoso como um buldogue e teimoso como uma lagosta, desde que põe a mão a alguém. Aqui estamos, e lá estão eles à nossa espera. Tínhamos chegado às mesmas ruas onde estivéramos de manhã. Despachamos os coches e, seguindo no encalço do sr. Merryweather, passamos por um estreito corredor e por uma porta lateral, que ele nos abriu.

Dentro havia outro pequeno corredor, que terminava num enorme portão. Merryweather parou para acender a lanterna e então conduziu-nos através de uma passagem escura e úmida e, depois de abrir a segunda porta, entramos num porão onde estavam empilhados caixotes gradeados e grandes caixões. — Não são vulneráveis lá de cima — disse Holmes, enquanto suspendia a lanterna e olhava em redor. — Nem de baixo — disse Merryweather, dando uma leve pancada com sua bengala nas lajes que forravam o chão. — Ora essa, então não é que parece oca? — disse ele, surpreso. — Peco-lhe que fique calmo — disse Holmes severamente. — O senhor está pondo em risco o êxito da nossa expedição. Peco-lhe o favor de se sentar sobre um daqueles caixotes e de não interferir. Com a expressão de quem fora humilhado, o sr. Merryweather sentou-se solenemente em cima de um caixote gradeado, enquanto Holmes, de joelhos e com a lanterna na mão e uma lente de aumento, começou a examinar cuidadosamente as frestas entre as lajes. Poucos segundos depois ficou satisfeito, porque se pôs de pé novamente e colocou a lente no bolso. — Temos pelo menos uma hora de espera — disse ele. — Não podem trabalhar enquanto o bom penhorista estiver na cama. Depois não perderão um instante, porque, quanto mais depressa fizerem o trabalho, mais tempo terão para fugir antes de serem descobertos. Nós, como talvez tenha adivinhado, doutor, estamos nos subterrâneos de um dos principais bancos de Londres. O sr. Merryweather é um dos diretores, e explicará as razões por que os ousados criminosos devem ter atualmente grande interesse por este porão. — É por causa do nosso ouro francês... — cochichou o diretor. — Fomos avisados diversas vezes de que iam tentar um assalto. — Ao ouro francês? — Sim. Tivemos ocasião, há poucos meses atrás, de aumentar nossos recursos, e fizemos um empréstimo de trinta mil napoleões ao Banco de França. Sabem que ainda não tivemos necessidade de desempacotar o dinheiro e que ele continua aqui no porão. Este caixote onde estou sentado contém dois mil napoleões encerrados entre duas chapas de chumbo. Nossas reservas de dinheiro são atualmente muito maiores do que as que costumamos guardar em qualquer agência do banco, e os diretores já estão receosos. — E esses receios são muitos justificados — observou Holmes. — E agora devemos executar nossos planos. Penso que dentro de uma hora as coisas chegarão ao auge. Entretanto, sr. Merryweather, devemos cobrir a luz daquela lanterna.

— E ficaremos sentados no escuro? — Temo que seja necessário. Eu tinha trazido um baralho de cartas para que o senhor não perdesse o seu joguinho, visto que somos quatro, mas vejo que os preparativos do inimigo estão adiantados demais para nos arriscarmos a ter luz. E, em primeiro lugar, devemos escolher nossas posições. Aqueles homens são ousados e, embora estejam em desvantagem, podem ferir-nos, a não ser que tomemos todas as precauções. Ficarei atrás deste caixote e você fica atrás daquele. Quando eu os focar com a luz, rodeiem-nos depressa, e se eles fizerem fogo, Watson, não tenha receio de abatê-los a tiro. Coloquei meu revólver automático em cima de um dos caixotes gradeados atrás dos quais estava escondido. Holmes fechou a chapa escura de um dos lados da lanterna e deixou-nos em escuridão completa. O cheiro de metal quente permaneceu e assegurou-nos que a luz ainda estava acesa, pronta para brilhar de um momento para outro. Para mim, cujos nervos já estavam excitados, havia algo de deprimente nessa escuridão e no ar frio e úmido do porão. — Eles só têm uma saída — cochichou Holmes —, através da casa da Saxe-Coburg Square. Espero que faça o que pedi, Jones. — Tenho um inspetor e dois policiais à espera na porta da frente. — Então as saídas estão fechadas e agora devem ficar quietos e esperar. Quanto tempo parecia passar! Mais tarde, ao comparar minhas anotações, descobri que esperamos apenas uma hora e quinze minutos, todavia pareceu-me que a noite acabara e o dia estava prestes a raiar por cima de nós. Fiquei com as pernas hirtas e cansadas porque receei mudar de posição, e tinha os nervos na mais alta tensão e o ouvido tão atento que não só pude ouvir o respirar dos meus companheiros, como pude discernir o respirar mais forte do obeso Jones em contraste com o fino suspirar do diretor do banco. Da minha posição, pude olhar de cima do caixote em direção ao sol, e subitamente meus olhos perceberam um raio de luz. Pareceu-me primeiramente uma faixa lúgubre sobre a laje, depois alastrou-se até se tornar uma linha amarela, e então, sem aviso nem ruído, abriu-se um vão por onde uma mão branca que parecia de mulher surgiu no centro da área iluminada. Por um minuto, a mão de dedos retorcidos ficou por cima da laje, e depois desapareceu tão ligeiramente como veio e tudo ficou no escuro, a não ser a faixa lúgubre que marcava uma brecha entre as lajes. A mão voltou logo, e houve um som de quebrar e partir. Uma das largas lajes brancas caiu para o lado e deixou um buraco quadrado através do qual brilhou a luz de uma lanterna. Por ele surgiu o rosto liso de um rapaz, que olhou ansiosamente em redor e depois, com uma mão em cada lado da abertura, suspendeu-se até a cintura e com um joelho atingiu a borda; mais um instante e ele deu um salto, colocando-se ao lado do buraco para ajudar o companheiro a subir, um homem

ligeiro e pequeno como ele, de rosto pálido e abundante cabelo vermelho. — Está ok — murmurou ele. — Trouxe o formão e os sacos? Céus! Suba, Archibald, suba que eu me responsabilizo! Sherlock Holmes deu um pulo e pegou o intruso pela gola. O outro ergueu-se pela abertura, e ouvi o rasgar de roupa quando Jones o agarrou. A luz brilhou sobre a coronha de um revólver, mas o cabo do chicote de Holmes caiu sobre o pulso do homem, fazendo a pistola rolar na laje. — Não adianta, John Clay — disse Holmes suavemente. — Já não pode fugir. — Estou vendo — disse o outro com a maior calma —, creio que meu companheiro está bem, embora estejam aqui as costas do casaco. — Há três homens à espera dele à porta — disse Holmes. — Oh, deveras! Você parece ter preparado tudo muito bem. Devo dar-lhe os parabéns. — E eu a você — respondeu Holmes. — Sua idéia do cabelo vermelho é nova e de grande efeito. — Verá seu companheiro em outra ocasião — disse Jones. — Ele é mais ágil para passar buracos do que eu. Estenda as mãos enquanto lhe ponho as algemas. — Espero que não me toque com suas mãos imundas — disse o prisioneiro no momento em que lhe ajustavam as algemas nos pulsos. — Pode ser que o senhor não saiba, mas tenho sangue real nas veias. Tenha a bondade, quando falar comigo, de dizer "sir" e "faça o favor". — Muito bem — disse Jones com um olhar de escárnio. — Então queira fazer o favor, sir, de marchar e de subir a escada, para arranjarmos um carro que leve Vossa Alteza até o posto policial. — Assim está melhor — disse John Clay serenamente. Fez-nos uma profunda vênia e avançou. — Realmente, sr. Holmes — disse Merryweather quando os viu presos fora do porão —, não sei como o banco lhe poderá agradecer ou recompensá-lo. Não há dúvida de que descobriu e derrotou, da maneira mais completa, um dos mais audaciosos e bem-arquitetados roubos de banco de que até agora se ouviu falar. — Eu também tenho uma ou duas coisas a resolver com este sr. John Clay — disse Holmes. — Tive muitas despesas com o caso, que espero que o banco me reembolse, mas além disso estou satisfeito por ter tido uma experiência tão rara e por ter ouvido a extraordinária narrativa da Liga dos Cabeças Vermelhas.

— Como vê, Watson — explicou-me ele de madrugada, enquanto tomávamos um uísque com soda na Baker Street —, era evidente desde o princípio que o único objetivo possível desse fantástico negócio de copiar a enciclopédia era afastar o penhorista durante algumas horas todos os dias. Foi um modo curioso de arranjar as coisas, mas seria difícil sugerir melhor. Com certeza foi produto da mentalidade de Clay, sugerido pela cor do cabelo do seu companheiro. As quatro libras por semana eram a isca para o atrair, e o que representava isso para aqueles que tinham milhares de libras em jogo? Publicam o anúncio, o outro malandro incita o homem a ir candidatar-se ao lugar, e juntos conseguem que ele se ausente durante algumas horas todas as manhãs. Desde que ouvi o penhorista dizer que o empregado trabalhava por metade do salário, convenci-me de que tinha forte motivo para conservar o emprego. — Mas como pôde descobrir qual era o motivo? — Se houvesse mulheres na casa, eu suspeitaria de uma intriga comum. Mas isso estava fora de questão. A casa de penhores era pequena, e não tinha nada que justificasse tão grandes preparativos e tantas despesas. Devia então ser alguma coisa alheia à casa. O que seria? Lembrei-me da grande paixão que o rapaz tinha por fotografias e do seu hábito de se meter na adega. A adega! Era ali que estava o fulcro deste caso intrincado. Fiz algumas indagações a respeito do ajudante e descobri que lidava com um dos criminosos mais frios e audazes de Londres. Estava portanto querendo fazer qualquer coisa na adega, coisa que levava horas durante dias, meses sem fim. Que podia ser? Ocorreu-me que estaria abrindo um túnel até outro edifício. Tinha chegado a esta conclusão, quando fomos visitar o local da ação. Surpreendi-o quando bati na calçada com a bengala. Tentava saber se a adega ficava na frente ou fundos da casa. Toquei a campainha e, como esperava, foi o empregado que veio abrir a porta. Já tivemos os dois algumas lutas, mas indiretamente, e mal olhei para ele. Queria ver os joelhos dele, e até você deve ter reparado como as calças estavam rotas e sujas justamente nos joelhos. Falavam daquelas horas passadas cavando o chão. Só restava descobrir o motivo por que cavavam. Virei a esquina e percebi que o City and Suburban Bank se ligava à casa do nosso amigo. Achei que estava ali a solução do meu problema. Quando você foi para casa depois do concerto, procurei a Scotland Yard e o presidente da diretoria do banco, obtendo o resultado que já conhece. — E como adivinhou que iam tentar o assalto hoje? — perguntei-lhe. — Bem, quando fecharam o escritório da liga, era sinal de que já não se incomodavam com a presença do sr. Jabez Wilson. Em outras palavras, tinham completado o túnel, mas era essencial que o utilizassem logo, porque podia ser descoberto ou o dinheiro ser transferido de lugar. Sábado seria melhor que qualquer outro dia, porque proporcionava dois dias para a fuga. Foi por todas essas razões que os esperei hoje. — Calculou maravilhosamente — exclamei eu cheio de admiração. — A corrente é longa, mas todos os elos se ligam fielmente. — Serviu para me divertir — respondeu ele, bocejando. — Sinto chegar o

aborrecimento. Passo a vida procurando escapar às coisas vulgares e corriqueiras, e estes problemas ajudam-me a consegui-lo. — E é um benfeitor da raça — comentei. Encolheu os ombros. — Bem, no fim talvez seja de alguma utilidade — disse ele. — "L'homme c'est rien — l'oeuvre ces't tout", [1] como escreveu Gustave Flaubert a George Sand. [1] "O homem não é nada — a obra é tudo." Em francês no original. (N. do E.)

Sherlock Holmes

em:

As cinco sementes de laranja

Por Sir Arthur Conan Doyle

PDF por ZOHAR ([email protected])

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Quando consulto minhas notas e recordações dos casos de Sherlock Holmes entre os anos 1882 e 1890, encontro tantos que se apresentam como estranhos e interessantes que não é fácil saber qual deles escolher ou qual deixar de lado. Alguns, entretanto, alcançaram publicidade através dos jornais, ao passo que outros não oferecem campo apropriado para salientar aquelas qualidades peculiares que meu amigo possuía em tão alto grau e cuja demonstração é o objetivo destas páginas. Alguns também frustraram seu raciocínio analítico, e seriam uma espécie de narrativa com começo, mas sem fim, enquanto outros foram apenas parcialmente esclarecidos com explicações, mas baseiam-se mais em conjecturas do que em provas absolutamente lógicas, como era tanto do seu gosto. Há, todavia, um desses últimos casos que se apresentou tão estranho nos seus pormenores e tão surpreendente nos seus resultados, que sou tentado a relatá-lo, a despeito de haver alguns pontos, relacionados com ele, que nunca foram e provavelmente nunca serão esclarecidos. O ano de 1887 trouxe-nos uma longa série de casos de maior ou menor interesse, dos quais tenho os pormenores. Entre os cabeçalhos desse ano, encontro a história da aventura Paradol Chamber e da Sociedade dos Mendicantes Amadores, que possuía um clube luxuoso no porão de um depósito de móveis; os fatos referentes à perda do barco britânico Sophy Anderson; as aventuras singulares do Grice Patersons na ilha de Uffa, e, finalmente, o caso de envenenamento em Camberwell. Neste último, como devem estar lembrados, Holmes conseguiu, ao dar corda ao relógio do defunto, provar que a corda já havia sido dada umas duas horas antes e que, portanto, fora àquela hora que o falecido se deitara — dedução que era da maior importância para o esclarecimento do caso. De todos estes, hei de fazer um resumo qualquer dia; porém, nenhum deles apresenta feições tão singulares como a corrente de estranhas circunstâncias que agora me proponho descrever. Em fins de setembro as tempestades equinociais haviam começado com violência excepcional. O vento zumbia o dia todo e a chuva tanto batia nas janelas que, mesmo aqui, no coração desta grande cidade de Londres, éramos forçados a afastar nossos pensamentos da rotina cotidiana e reconhecer a presença das grandes forças da natureza que atemorizam os homens, apesar de toda a sua civilização, como animais selvagens dentro de uma jaula. À medida que a tarde avançava, a tempestade aumentava mais e mais, e o vento gritava como uma criança na chaminé. Sherlock Holmes estava sentado tristemente ao lado da lareira, revendo suas anotações sobre crimes, enquanto eu, do outro lado, lia com interesse uma das velhas histórias marítimas de Clark Russell, a ponto de o grito da tempestade lá fora se confundir com a leitura e o barulho da chuva na janela se assemelhar ao clamor das ondas do mar. Minha mulher fora visitar uma tia, e durante alguns dias eu voltara a instalar-me nos meus aposentos da Baker Street. — Ouça — disse eu, olhando para o meu companheiro —, parece-me que ouvi a campainha! Quem viria numa noite destas? Talvez algum amigo seu?

— Exceto você, não tenho nenhum — respondeu ele. — Não gosto de visitas. — Um cliente, então? — Se for, é um caso sério. Nada faria um homem sair de casa numa noite e numa hora destas. Parece-me mais provável que seja algum amigo da proprietária. Sherlock Holmes enganava-se nas suas conjecturas, porque ouvimos passos no corredor e uma pancada na nossa porta. Ele estendeu seu comprido braço para dar volta ao interruptor do candeeiro que estava junto da sua cadeira e fez incidir a luz sobre a cadeira vazia onde deveria sentar-se o recém-chegado.

— Entre — exclamou ele. O homem que entrou era jovem, de uns vinte e dois anos no máximo, bem-vestido, de aspecto distinto e cavalheiresco. O guarda-chuva molhado que trazia na mão e a capa impermeável provavam a violência da chuva. Olhou em volta ansiosamente e, devido à luz do candeeiro, pude notar que seu rosto estava pálido, os olhos cansados como os de um homem oprimido por grande preocupação. — Devo pedir-lhes desculpas — lamentou ele, colocando o pincenê de ouro. — Espero não os incomodar; receio ter trazido alguns sinais da tempestade e da chuva para dentro da sua confortável sala. — Dê-me sua capa e o guarda-chuva — pediu Holmes. — Podem ficar aqui no bengaleiro para irem secando. Vejo que veio do sudoeste. — Sim, de Horsham. — Essa mistura de barro e gipsita que vejo nas pontas dos seus sapatos é muito característica. — Vim pedir-lhe um conselho. — É fácil de obter. — E auxílio. — O que não é tão fácil. — Já ouvi falar a seu respeito, Sr. Holmes. Contou-me o major Prendergast como o salvou do escândalo do Tankerville Club.

— Ah, decerto. Fora acusado injustamente de ter roubado no jogo. — Disse-me que o senhor poderia resolver qualquer problema. — Ele exagerou. — E que nunca foi vencido. — Fui vencido quatro vezes... três vezes por homens, e uma por uma mulher. — O que é isso em comparação com o número dos seus êxitos? — É verdade que, geralmente, tenho sido bem sucedido. — Então que o seja também comigo. — Peço-lhe que puxe sua cadeira para mais perto da lareira e faça-me o favor de dar alguns pormenores do seu caso. — Que não é comum. — Nenhum dos casos que vêm ter comigo o são. Sou sempre o último a que recorrem. — Em todo caso, duvido que, durante sua longa experiência, tenha ouvido relatar uma série de fatos mais misteriosos e inexplicáveis do que os que ocorreram na minha própria família. — O senhor deixa-me curioso — disse Holmes. — Dê-nos os fatos essenciais desde o princípio, para que depois eu lhe possa perguntar sobre os pormenores que a mim pareçam de maior importância. O jovem puxou a cadeira e estendeu os pés para a lareira. — Meu nome — começou ele — é John Openshaw, mas minha vida, tanto quanto posso avaliar, pouco tem a ver com esses horríveis acontecimentos. É um caso de herança; quero poder dar-lhe uma idéia dos fatos que vou contar desde o início. "É preciso que o senhor saiba que meu avô tinha dois filhos: meu tio Elias e meu pai, Joseph. Meu pai possuía uma pequena fábrica em Coventry, a qual cresceu com o tempo, devido à invenção da bicicleta. Tirou a patente do pneu inquebrável Openshaw, e seu negócio prosperou, tanto que conseguiu vendê-lo e aposentar-se com uma boa soma. Meu tio Elias emigrou para a América, jovem ainda, e tornou-se fazendeiro na Flórida, onde dizem que ganhou bastante dinheiro. Por ocasião da guerra civil, combateu no exército de Jackson, e depois sob o comando de Hood, chegando a ser coronel. Quando Lee depôs as armas, meu tio voltou para a fazenda, onde ficou durante três ou quatro anos. Cerca de 1869 ou 1870, voltou para a Europa e comprou uma

pequena herdade do Sussex, perto de Horsham. Havia ganho uma grande fortuna nos Estados Unidos, e a razão de ter saído de lá fora a grande aversão que tinha aos negros e o desgosto pela política republicana ao tornar extensivo aos negros o direito de voto. Era solteiro, esquisito, bravo e impulsivo, usava uma linguagem de baixa condição quando estava irado, mas era retraído. Possuía um grande jardim e prados ao redor da casa, e ali se movimentava, fazia exercícios, embora às vezes, durante semanas inteiras, nem sequer saísse do quarto. Bebia muito conhaque e fumava demais, não recebia visitas e não queria saber de muitos amigos, nem mesmo do próprio irmão. "A mim não ligava muito, mas apreciava-me porque quando me viu pela primeira vez eu era um garoto de uns doze anos apenas. Isso foi no ano de 1878, oito ou nove anos depois de sua volta à Inglaterra. Pediu a meu pai que me deixasse viver com ele e foi muito bondoso para mim, a seu modo. Quando não estava embriagado, gostava de jogar gamão comigo. Dava-me os recados para serem transmitidos aos empregados e aos negociantes; portanto, quando eu tinha uns dezesseis anos, era uma espécie de patrão da casa. Todas as chaves eram guardadas por mim, podia fazer o que bem quisesse, contanto que não entrasse nos seus aposentos particulares. Havia uma única exceção, uma água-furtada que estava sempre trancada e onde ele nunca permitiu a entrada a ninguém. Com a natural curiosidade de rapaz, eu espreitava pelo buraco da fechadura, mas nunca pude ver mais do que uma coleção de baús velhos e embrulhos, como era natural num quarto de despejo. "Um dia, foi em março de 1883, apareceu uma carta com selo do estrangeiro em cima da mesa, perto do prato do coronel. Ele raras vezes recebia correspondência, porque todas as contas eram pagas à vista e não tinha amigos que lhe escrevessem. "— Da Índia! — disse ele, olhando a carta. — Carimbo de Pondicherry! O que poderá ser isto? "Abriu apressadamente a carta e dela caíram para dentro do prato cinco sementes secas de laranja. Ri, mas a risada morreu-me nos lábios quando vi o rosto dele. A boca estava aberta, os olhos, esbugalhados, a pele adquiriu a cor da terra. Ele olhou espantado para o envelope que ainda segurava na mão trêmula. "— K. K. K. — gritou e gemeu: — Meu Deus! Meu Deus! Meus pecados deram cabo de mim. "— O que é, tio? — bradei eu. "— A morte — disse ele, e, levantando-se da mesa, retirou-se para o seu quarto, deixando-me palpitante de horror. Peguei o envelope e vi rabiscada a tinta vermelha, do lado de dentro da dobra e logo acima da goma, a letra "k" em maiúscula, repetida três vezes. Não havia mais nada senão as cinco sementes. Qual seria a razão do terror que tanto o acabrunhara? Levantei-me da mesa, e, quando subia a escada, encontrei-o descendo com uma chave velha e enferrujada, que era antigamente da água-furtada, numa das mãos, e

na outra uma caixinha, semelhante a um cofrezinho. "— Podem fazer o que bem entenderem, mas continuarei a resistir — disse ele, soltando uma praga. — Diga a Mary que hoje quero fogo na lareira do meu quarto e mande chamar Fordham, o advogado de Horsham. "Fiz o que me havia sido ordenado, e, quando o advogado chegou, convidou-me a subir ao quarto. O fogo estava bem aceso e na lareira havia um monte de cinzas pretas e fofas, como se fossem de papel queimado, ao passo que a caixa de bronze se encontrava aberta ao lado. Olhei a caixa e reparei, com um sobressalto, que na tampa estavam impressas as três letras "k", iguais às que pela manhã vira no sobrescrito.

"— Desejo que você, John — disse meu tio —, seja testemunha do meu testamento. Deixo a minha herdade, com todas as suas vantagens e desvantagens, a meu irmão, seu pai, de quem sem dúvida você herdará, podendo gozá-la em paz e muito bem! Se não puder, ouça o meu conselho, rapaz, deixe-a ao seu maior inimigo. Sinto deixar-lhes uma coisa tão complicada, mas o mundo pode dar muitas voltas. Faça o favor de assinar o documento que o Sr. Fordham lhe apresenta. "Assinei o papel indicado e o advogado levou-o. Esse incidente singular, como devem calcular, deixou uma profunda impressão no meu cérebro. Pensava e estudava o caso sem entretanto deduzir qualquer coisa que o

elucidasse. Não podia, porém, livrar-me do pressentimento de que ia acontecer algo de horrível. Mas, à medida que as semanas passavam e nada de extraordinário ocorria, a impressão foi se desvanecendo; contudo, notei grande mudança em meu tio. Bebia mais ainda e não queria a companhia de ninguém. Passava a maior parte do tempo no quarto, de porta trancada por dentro; às vezes saía dali num frenesi de ébrio e corria para o jardim com um revólver na mão, gritando que não tinha medo de homem algum e que não ia ficar encurralado feito carneiro, nem pelos homens, nem sequer pelo demônio. Depois que esses ataques de raiva passavam, entrava tumultuosamente pela porta, fechava-a e trancava-a como um homem que já não tinha coragem para enfrentar o terror que jazia no fundo de sua alma. Em tais ocasiões, seu rosto, mesmo num dia frio, brilhava com tanto suor como se o tivesse molhado numa bacia de água. "Bem, para terminar a história, Sr. Holmes, e para não abusar da sua paciência, chegou uma noite em que saiu numa dessas excursões ébrias, da qual não mais voltou. Quando fomos procurá-lo, encontramo-lo de bruços numa lagoazinha coberta de liquens que ficava ao fundo do jardim. "Não havia sinal de violência, a água tinha pouca profundidade, apenas uns

dois pés; por isso o júri, lembrando-se de sua excentricidade, deu o veredicto do caso como tratando-se de suicídio. Mas eu, que sabia como ele se esquivava até mesmo a pensar na morte, tive muita dificuldade em persuadir-me de que a tivesse procurado por si próprio. O testamento foi executado e meu pai entrou na posse da herdade e de umas catorze mil libras que estavam a seu crédito no banco." — Um instante — interpelou Holmes. — Afirmo-lhe que suas declarações são das mais estranhas

que jamais ouvi contar. Dê-me a data de quando seu tio recebeu a carta e a data do seu suposto suicídio. — A carta chegou a 10 de março de 1883. A morte ocorreu sete semanas depois, na noite de 2 de maio. — Obrigado, Continue, por favor. — Quando meu pai tomou posse da propriedade de Horsham, pedi-lhe que fizesse um exame minucioso na água-furtada que estava sempre fechada. Encontramos a caixa de bronze, embora o conteúdo tivesse sido destruído. Dentro da tampa estava um papelzinho com as iniciais K. K. K. e com as palavras "Cartas, memorandos, recibos e registro", escritas por baixo. Presumimos que indicavam a natureza dos papéis que haviam sido destruídos pelo coronel Openshaw. O resto que ali se encontrava era de pouco valor, exceto muitos papéis avulsos e carteirinhas que diziam respeito à vida de meu tio na América. Alguns eram do tempo da guerra civil e demonstravam que ele havia cumprido o seu dever e possuía reputação de bom soldado. Outros narravam a constituição dos Estados do sul e falavam a respeito da sua política, dando a impressão de que ele havia tomado parte ativa, opondo-se aos políticos que tinham sido mandados do norte. "Bem, do começo de 1884, quando meu pai veio para Horsham, até janeiro de 1885, tudo correu bem para nós. No dia 4 desse mês ouvi meu pai emitir um grito de surpresa quando estávamos à mesa, ao almoço. Tinha um envelope aberto numa das mãos e cinco sementes de laranja na palma estendida da outra. Sempre troçara da minha história a respeito do coronel, que considerava exagerada, mas agora ficara intrigado e amedrontado, visto que lhe acontecera a mesma coisa. "— Que será que isto quer dizer, John? — balbuciou ele. "Meu coração tornou-se pesado como chumbo. "— É a K. K. K. — respondi. "Ele olhou para dentro do envelope.

"— É mesmo — disse ele. — Aqui estão as mesmas letras. Mas o que é que está escrito aqui acima delas? "— 'Coloque os papéis sobre o relógio de sol' — li, olhando por cima do ombro de meu pai. "— Que papéis? Que relógio de sol? "— O relógio de sol que está no jardim, não há outro — exclamei. — Porém, os papéis devem ser aqueles que foram destruídos. "— Que disparate! — volveu ele. — Estamos num país civilizado e não podemos admitir coisas como esta. De onde veio o envelope? "— De Dundee — respondi-lhe, olhando para o carimbo. "— Alguma brincadeira de mau gosto — disse ele. — Que tenho eu a ver com o relógio de sol ou com os papéis? Não me incomodo com tais tolices. "— Eu com certeza avisaria a polícia — exclamei. "— Para rirem de mim? Nada disso. "— Então permita-me que eu o faça. "— Não, proíbo-o. Não quero que se levante celeuma por causa de tal coisa. "Não adiantou argumentar com ele, porque era um homem obstinado. Andava, contudo, com o coração oprimido. No terceiro dia após a chegada da carta, meu pai foi visitar um velho amigo, o major Freebody, comandante de uma das fortalezas sobre a colina de Portsdown. Fiquei contente com sua ida, pois parecia-me que fora de casa estaria mais resguardado do perigo. Enganei-me. Dois dias depois da sua partida, recebi um telegrama do major implorando-me que partisse imediatamente. Meu pai havia caído numa das profundas minas de greda que são numerosas naquela região e estava sem sentidos, com o crânio partido. Apressei-me a ir ao seu encontro, mas ele faleceu sem recuperar os sentidos. Pelo fato de regressar de Fareham, ao crepúsculo, de o caminho não lhe ser familiar e a mina não estar cercada, o júri não hesitou em dizer que fora 'morte por acidente'. Considerei cuidadosamente os fatos em relação à sua morte e não pude descobrir qualquer coisa que sugerisse assassinato. Não havia sinais de violência nem de pegadas no chão, nem de assalto, e também não havia notícias de terem sido vistas pessoas estranhas por lá, mas devo confessar que fiquei perturbado, pois tinha quase certeza de que algum plano diabólico havia sido bem preparado para apanhá-lo. "Foi dessa maneira sinistra que entrei na posse da minha herança. Poderá perguntar-me por que não a vendo, e responder-lhe-ei que tenho quase a certeza de que nossa infelicidade se relaciona com algum incidente na vida de meu tio, e que o perigo continuaria tanto numa casa como noutra. Foi em janeiro de 1885 que meu pobre pai encontrou a morte, e já se passaram dois

anos e oito meses. Durante todo esse tempo vivi feliz em Horsham, com a esperança de que essa maldição da família tivesse passado e que houvesse terminado na última geração. Mas era cedo demais; ontem o golpe veio para mim, da mesma forma que para meu pai." O jovem tirou do bolso do colete um envelope amarrotado e, virando-se para a mesa, sacudiu sobre ela cinco pequenas sementes secas de laranja. — Este é o envelope — continuou ele —, e o carimbo é de Londres, região leste. Dentro encontram-se as mesmas palavras que estavam na mensagem para

meu pai: "K.K. K. Ponha os papéis sobre o relógio de sol". — Que foi que o senhor fez? — perguntou Holmes. — Nada. — Nada? — Para dizer a verdade — e escondeu o rosto nas mãos brancas e magras —, senti-me desamparado e fraco. Senti-me como um pobre coelho quando a cobra está se aproximando. Parece que estou nas garras de uma irresistível, inexorável maldição, da qual nenhuma precaução nem previsão pode resguardar-me. — Basta! Basta! — exclamou Sherlock Holmes. — Deve reagir como homem ou estará perdido. Nada, a não ser a força moral, pode salvá-lo. Não é momento para desesperar. — Já procurei a polícia. — Ah! — Ouviram minha história com um sorriso. Estou convencido de que o inspetor já formulou a opinião de que as cartas são brincadeiras e que as mortes de meus parentes foram verdadeiros acidentes, como o júri decidiu, e nada tiveram a ver com os avisos. Holmes ergueu as mãos, espantado, e exclamou: — Imbecilidade incrível! — Designaram um policial para ficar em casa comigo. — Ele está com o senhor agora? — Não, as ordens que recebeu são para ficar em casa.

Mais uma vez Holmes se enraiveceu. — Por que o senhor não veio falar comigo — disse ele —, e, acima de tudo, por que não veio logo? — Eu não sabia. Só hoje, quando contei minha aflição ao major Prendergast, é que ele me aconselhou a vir falar com o senhor. — E já se passaram dois dias desde que recebeu a carta. Devíamos ter-nos encontrado antes disso. Suponho que não possui mais nada, nenhum pormenor que nos possa ajudar. — Há uma coisa — disse John. Procurou então no bolso do casaco, e, tirando um pedaço de papel azul descorado, colocou-o sobre a mesa. — Tenho uma vaga lembrança — disse ele — de que no dia em que meu tio queimou os papéis, eu reparei que os pedacinhos que não estavam queimados e que jaziam entre as cinzas eram desta cor. Achei esta única folha no chão do quarto dele, e sinto-me inclinado a pensar que seja um dos papéis que talvez se tenha desprendido dos outros, escapando assim à destruição. Além do fato de se referir às sementes, não sei em que nos possa ajudar. A meu ver, julgo que fazia parte de um diário particular. A caligrafia é, sem a menor dúvida, de meu tio. Holmes virou o candeeiro e inclinamo-nos sobre a folha de papel, que tinha a margem desigual, como se tivesse sido arrancada de algum livro. Trazia a data "março de 1869" e embaixo achavam-se as seguintes anotações enigmáticas: "Dia 4 — Hudson veio mesmo. Mesmo programa de costume. Dia 7 — Mandei as sementes para MacCauley, Paramore e John Swain, de St. Augustine. Dia 9 — MacCauley foi-se. Dia 10 — John Swain foi-se. Dia 12 — Visitei Paramore. Tudo bem." — Obrigado — disse Holmes, dobrando o papel e devolvendo-o ao nosso visitante. — Agora, de modo algum deve perder um só instante. Não perca tempo nem a discutir o que me contou. Vá para casa e mexa-se. — E o que devo fazer? — Há unicamente uma coisa a fazer, mas precisa ser feita já. Deve colocar o papel que me mostrou dentro da caixa de bronze de que falou. Ponha também

um bilhete dizendo que todos os outros papéis foram queimados por seu tio, só restando este. Escreva isto com firmeza e de modo conveniente. Coloque logo a caixa no lugar indicado. Compreendeu? — Perfeitamente. — Não pense em vingar-se ou em qualquer outra coisa, por ora. Isso obteremos nós pela justiça, mas precisamos tecer uma rede, como eles já o fizeram. Em primeiro lugar, é preciso remover o perigo iminente que o ameaça. Em segundo, é necessário desvendar este mistério e punir os culpados. — Fico-lhe muito grato, senhor — disse o moço, levantando-se e vestindo a capa. — O senhor deu-me vida e esperança novamente. Farei tudo o que me aconselhar. — Não perca um instante. E, além de tudo, tome cuidado, pois não há dúvida de que o senhor está sendo ameaçado por um perigo real e iminente. Como é que vai para lá? — No trem de Waterloo. — Não são vinte e uma horas ainda. As ruas estão cheias de gente, portanto espero que possa ir com segurança. Mesmo assim, não deixe de se acautelar.

— Estou armado. — Bem, amanhã começarei a trabalhar no seu caso. — Encontramo-nos em Horsham, então? — Não, seu segredo está aqui em Londres, e é onde irei procurá-lo. — Então voltarei daqui a um ou dois dias e trarei notícias da caixa e dos papéis. Seguirei seus conselhos em tudo. Deu-nos a mão e foi embora. Lá fora o vento uivante e a chuva batiam nas janelas. Aquela história estranha parecia ter vindo até nós por intermédio dos elementos convulcionados e ter sido soprada como um lençol de algas numa tempestade, sendo agora absorvida de novo pelos mesmos

elementos. Durante algum tempo Sherlock Holmes ficou em silêncio, a cabeça pendendo para a frente e os olhos fixos na cadeira, contemplando os caracóis azuis da fumaça que se seguiam uns aos outros, subindo até o teto.

— Penso, Watson — observou ele, afinal —, que, de todos os nossos casos, nenhum pareceu mais fantástico do que este. — Exceto, talvez, O signo dos quatro. — É verdade. Foi excepcional. Contudo, este John Openshaw parece-me caminhar entre grandes perigos, muito maiores do que os dos Sholtos. — Já sabe em que consistem esses perigos? — Não há dúvida quanto à sua natureza — respondeu ele. — Então quais são? Quem é essa K. K. K. e por que persegue esta pobre família? Sherlock Holmes fechou os olhos, colocou os cotovelos sobre os braços da poltrona e juntou as pontas dos dedos. — O raciocinador ideal — observou ele —, depois de observar um simples fato em todas as suas facetas, deduz não só o encadeamento dos acontecimentos, como também todos os resultados que se seguirão. Assim como Cuvier podia descrever corretamente o animal todo pela contemplação de um simples osso, assim também o observador que compreendeu perfeitamente um elo numa série de incidentes deve ser capaz de prever acertadamente todos os outros pontos relativos ao caso, tanto antes como depois. Ainda não alcançamos os resultados que só com a razão podem ser atingidos. Problemas que têm embaraçado quem procurava a sua solução por meio dos sentidos puderam ser resolvidos simplesmente pelo estudo e pela reflexão. Para praticar a arte de discernir até o mais alto grau, é necessário que o raciocinador possa utilizar-se de todos os fatos que lhe vieram ao conhecimento; isto, em si, implica que deve possuir um conhecimento de tudo o que possa ser útil ao seu trabalho, o que, mesmo nestes dias de educação livre e enciclopédica, é raro. Tenho procurado obter esses conhecimentos; todavia, se não me engano, você uma vez, nos primeiros dias da nossa amizade, definiu meus limites de sabedoria de um modo muito preciso. — Sim — disse eu, rindo —, era um documento singular. Filosofia, astronomia e política estavam marcadas com um zero. Botânica, variável; geologia, conhecimentos profundos quanto às manchas de lama da região num raio de noventa quilômetros da cidade. Química, excêntricos; anatomia, sem um sistema fixo; literatura à sensation e anotações de crimes, sem igual; violinista, pugilista, esgrimista e advogado. Esses, segundo penso, foram os principais resultados da minha análise. Holmes fez uma careta bem-humorada. — Bem — disse ele —, agora sei, como disse naquela ocasião, que devemos conservar o cerebrozinho em atividade, cheio de todos os elementos que nos possam ser úteis, e o resto podemos guardar na biblioteca, onde o iremos

procurar quando necessário. Agora, por essa mesma razão, e mais a que nos foi apresentada hoje, devemos juntar todos os nossos recursos. Tenha a bondade de tirar da estante a letra K da Enciclopédia americana, aí, perto de você. Obrigado. Agora vamos ver o que deduzimos da situação. Em primeiro lugar podemos presumir que o coronel Openshaw tinha alguma forte razão para deixar a América. Homens da idade dele não trocariam de boa vontade seus hábitos de vida e o clima maravilhoso da Flórida por uma cidadezinha provinciana da Inglaterra. Seu excessivo amor pela solidão, aqui na Inglaterra, sugere a idéia de que estivesse com medo de alguém ou de alguma coisa, e por isso formulamos essa hipótese sobre a razão de haver deixado a América. Quanto ao que ele temia, só o podemos deduzir ponderando o caso das iniciais medonhas recebidas por ele e seus sucessores. — Reparou nos carimbos daquelas cartas? — A primeira veio de Pondicherry, a segunda, de Dundee, e a terceira, de Londres. — São todos portos de mar, e a pessoa que as mandou estava a bordo. — Excelente, já temos uma indicação. Não pode haver dúvida alguma de que o remetente estava a bordo de algum navio. Vamos agora ver outro ponto. No caso de Pondicherry, passaram-se sete semanas entre a ameaça e o seu cumprimento; no de Dundee, apenas três ou quatro dias. Isso sugere alguma coisa? — Que havia maior distância a percorrer. — A carta também tinha maior distância a fazer. — É verdade! Então não vejo... — Pode-se presumir pelo menos que o navio em que o homem ou os homens estão é um veleiro. Parece que mandaram seu singular aviso ou sinal antes de encetarem a viagem para dar cumprimento à missão. Lembre-se da rapidez com que o ato se seguiu à ameaça, quando veio de Dundee. Se tivessem vindo de Pondicherry de barco, teriam chegado quase tão depressa quanto a carta, mas passaram-se sete semanas. Parece-me que estas sete semanas representam a diferença entre o tempo que leva o navio que trouxe a carta e o cargueiro que trouxe o remetente. — É muito possível. — Mais do que isso, talvez. E agora, veja a urgência deste novo aviso: foi por isso que insisti com o jovem Openshaw para que se acautele. O golpe tem sido dado sempre no fim do tempo necessário para os "remetentes" percorrerem o caminho. Porém, esta veio mesmo de Londres, e não podemos contar com qualquer demora. — Bondoso Deus! — exclamei eu. — Qual será a razão desta interminável

perseguição? — Os papéis que Openshaw guardava eram sem dúvida de importância vital para a pessoa ou as pessoas do cargueiro. Parece evidente que há mais de uma pessoa. Um homem só não podia ter praticado duas mortes de modo a enganar um júri. Devem existir vários homens no caso, e devem ser pessoas de recursos e de determinação. Resolveram recuperar os seus papéis. Desse modo, K. K. K. cessam de ser as iniciais de uma pessoa só, tornando-se o distintivo de uma sociedade. — Mas que sociedade? — Nunca ouviu falar na Ku Klux Klan? — perguntou Holmes em voz baixa. — Nunca. Holmes folheou o livro que tinha sobre os joelhos. — Aqui está — disse ele. "O nome Ku Klux Klan deriva da semelhança imaginária com o som produzido ao se carregar uma espingarda. Essa terrível sociedade secreta foi organizada por ex-soldados confederados nos Estados do sul, depois da guerra civil, ramificando-se rapidamente em diversas partes do país, nomeadamente no Tennessee, na Louisiana, na Carolina, na Geórgia e na Flórida. Era usada com fins políticos, principalmente para aterrorizar os eleitores negros com o assassínio ou expulsão do país daqueles que fossem contra os seus métodos. Suas atrocidades eram precedidas geralmente por um aviso ao homem marcado, de um modo fantástico, mas reconhecível: um ramo de folhas de carvalho, em algumas regiões, sementes de melão ou de laranja, noutras. Ao receber isso, a vítima podia abjurar abertamente as antigas idéias ou deixar o país. Se se mantivesse firme e recusasse dar atenção ao aviso, a morte era certa, e usualmente de modo estranho e imprevisto. Tão perfeita era a organização dessa sociedade e tão sistemáticos os seus métodos, que não há lembrança de um caso em que o homem a tivesse desprezado, escapando, ou que os autores de qualquer dos casos de ultraje tivessem sido descobertos. Por muitos anos, a sociedade foi forte, apesar dos esforços do governo dos Estados Unidos e da comunidade sulista para tentar eliminá-la. Finalmente, em 1869, rápida e quase totalmente, a sociedade desapareceu, embora tenham ocorrido casos esporádicos do mesmo tipo desde aquela data." — Repare — disse Holmes — que a repentina desaparição da sociedade coincide com a saída de Openshaw da América, levando seus papéis. Não é de admirar que ele e sua família tenham alguns dos mais aferrados adeptos a persegui-los. Você compreende que esse registro e diário podem indicar alguns dos homens mais importantes do sul, e existem muitos que não dormirão sossegadamente até que os papéis sejam recuperados. — Então, e a página que vimos?

— É o que se poderia esperar. Se não me engano, lemos: "Mandei as sementes para A, B e C", isto é, mandou o aviso da sociedade para eles. Depois há sucessivos apontamentos para mencionar que A e B desapareceram ou deixaram o país, e finalmente que C fora visitado, e temo um resultado sinistro para C. Bem, doutor, creio que podemos derramar um pouco de luz sobre esse caso obscuro, e acredito que a única chance do jovem Openshaw será, entretanto, fazer o que lhe aconselhei. Não há mais nada a fazer e a dizer por hoje, por isso dê-me o meu violino e vamos

tentar esquecer durante meia hora este tempo miserável e o procedimento ainda mais miserável dos nossos semelhantes. No dia seguinte, a manhã estava clara e o sol brilhava suavemente através do transparente véu de nuvens que pairava sobre a grande cidade. Sherlock Holmes estava tomando o seu café quando desci do quarto. — Desculpe-me não ter esperado por você — declarou ele —, tenho um dia de grande atividade à minha frente, com pesquisas no caso do jovem Openshaw. — Quais são os passos que vai dar? — perguntei-lhe. — Muito dependerá das minhas primeiras pesquisas. Talvez tenha de ir até Horsham, no fim. — Mas não irá lá primeiro? — Não, começarei aqui na cidade. Toque a campainha e a empregada trará o seu café. Enquanto esperava, peguei o jornal, abri-o e dei uma olhada nas manchetes. Li um cabeçalho que me fez gelar o coração. — Holmes — gritei —, tarde demais. — Ah! — disse ele, colocando a chávena sobre a mesa —, receava isso. Como foi? Falou calmamente, mas vi que estava profundamente comovido. Vi o nome de Openshaw, e o cabeçalho era: "Tragédia perto da Ponte de Waterloo". Aqui está a notícia: "Entre as vinte e uma e vinte e duas horas de ontem, o policial Cook, da Divisão H, sentinela da Ponte de Waterloo, ouviu um grito pedindo socorro e um barulho de mergulho na água. A noite, todavia, estava muito escura e tempestuosa; por isso, apesar do auxílio de diversos transeuntes, foi de todo impossível efetuar o salvamento. O alarme foi dado e, com o auxílio da polícia costeira, o corpo foi por fim encontrado. Ficou provado ser do jovem cujo nome,

como consta do envelope encontrado no seu bolso, era John Openshaw. Conjectura-se que talvez ele se apressasse para apanhar o último trem da Waterloo Station e que na pressa, sendo grande a escuridão, tenha perdido o rumo e caído da beira de uma das pequenas plataformas para barcaças. No corpo não foram encontrados sinais de violência e não pode haver dúvida de que o falecido tenha sido vítima de um trágico acidente, o qual deve ser aproveitado para se chamar a atenção das autoridades sobre as precárias situações das plataformas de embarque". Ficamos em silêncio por alguns minutos. Holmes estava mais abatido com o choque do que eu jamais o havia visto antes. — Isto humilha-me — disse ele por fim. — É um sentimento mesquinho, não há dúvida, mas fere o meu orgulho. Torna-se agora um assunto pessoal, e se Deus me der saúde, apanharei esses criminosos. Ele veio me pedir auxílio e eu o mandei embora de encontro à morte!... Pulou da cadeira e andou pela sala numa agitação incontrolável. O rosto sempre pálido corou, e ele ficou muito tempo fechando e abrindo as mãos longas e magras. — Devem ser demônios astuciosos — exclamou ele. — Como poderiam tê-lo atraído lá para baixo? O passeio ao lado do rio não é em linha reta para a estação. Com certeza havia muita gente na ponta, mesmo numa noite como a passada. Bem, Watson, veremos quem vencerá. Vou sair agora. — À polícia? — Não. Vou ser eu próprio a polícia. Quando tiver tecido a teia, podem levar as moscas, mas antes, não. Todo aquele dia estive ocupado com meu trabalho profissional e já era tarde quando voltei à Baker Street. Sherlock Holmes não chegara ainda. Eram quase vinte e duas horas quando entrou, pálido e cansado. Foi ao bufe, partiu um pedaço de pão, devorou-o apressadamente, fazendo-o descer com um grande gole de água. — Está com fome — observei. — Morrendo de fome. Nem me lembrava. Não comi nada desde o café. — Nada? — Não tive tempo de pensar nisso. — E foi bem sucedido? — Sim. — Tem alguma pista? — Tenho-os na palma da mão. O jovem Openshaw não ficará muito tempo sem ser vingado. Olhe, Watson, vamos imprimir a própria rubrica diabólica em cima deles. É muito bem pensado.

— O que quer dizer com isso? Tirou uma laranja do aparador e, cortando-a, espremeu as sementes para cima da mesa. Delas retirou cinco, pô-las num envelope e por dentro da dobra escreveu: "S. H. para J. C." Depois fechou-o e endereçou-o ao capitão James Calhoun, brigue Lone Star, Savannah, Geórgia. — Isto estará a sua espera quando seu navio chegar ao porto — disse ele, rindo baixinho. — Perderá o sono nessa noite e pressentirá um aviso do destino, como aconteceu ao jovem Openshaw. — E quem é esse capitão Calhoun? — O chefe do bando de assassinos. Há outros, e hei de agarrá-los a todos, mas ele será o primeiro. — Como conseguiu essa pista? — Passei o dia inteiro — disse ele — examinando os registros da Companhia Lioyd, seguindo o trajeto de cada embarcação que aportou em Pondicherry em janeiro e fevereiro de 1883. Havia trinta e seis embarcações de regular tonelagem que foram anotadas ali durante aqueles meses. Dessas, o Lone Star logo me chamou a atenção, visto que, embora fosse certo ter vindo de Londres, o nome é o mesmo dado a um dos Estados da União. — Texas, creio. — Não tenho a certeza de qual deles; mas sabia que o navio era de origem americana. — E então? — Procurei depois nos registros de Dundee, e quando vi que o Lone Star havia estado lá em janeiro de 1885, minhas suspeitas tornaram-se uma certeza. Pedi então informações quanto às embarcações que estão presentemente no porto de Londres. — Sim? — O Lone Star chegou a semana passada. Fui até as docas, mas o navio havia descido o rio, na maré desta manha, e estava a caminho de casa, para Savannah. Telegrafei para Gravesend e soube que o navio passara por lá havia poucas horas, e, como o vento era do leste, não tenho dúvida de que já passou por Goodwins, não muito longe da ilha de Wight. — O que fará você, então? — Oh, eu tenho-o seguro. Ele e os dois oficiais são os únicos americanos, os outros são finlandeses ou alemães. Também fiquei sabendo que, ontem à

noite, estiveram os três fora do navio. Soube disso pelo estivador que ajudou no carregamento. Até que chegue a Savannah, o vapor com a mala postal terá levado esta carta, e o cabograma terá informado a polícia de Savannah de que esses três cavalheiros estão sendo procurados sob a acusação de assassinato. Todavia, há sempre uma falha nos planos mais bem delineados: os assassinos de John Openshaw nunca chegaram a receber as sementes que lhes provariam que outro, tão esperto e tão decidido como eles, os perseguia. Longas e rigorosas foram as tempestades equinociais daquele ano. Esperamos muito tempo até ter notícias do Lone Star, de Savannah, mas não conseguimos saber nada. Ouvimos, após muito tempo, que em determinado local, no meio do Atlântico, foi visto um mastro quebrado de uma embarcação balouçando nos vagalhões, com as letras "L. S." nele esculpidas, e é só isso o que sempre saberemos do destino do Lone Star.

Sherlock Holmes

em:

As faias cor de cobre

Por Sir Arthur Conan Doyle

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— Para o homem que segue a arte por amor à própria arte, é freqüentemente das suas manifestações menos importantes e mais simples que deriva o maior prazer — observou Sherlock Holmes, pondo de lado a página de anúncios do Daily Telegraph. — É agradável para mim observar, Watson, que você compreendeu, tanto quanto possível, essa verdade naquelas pequenas narrativas dos nossos casos, que tão bondosamente vem colecionando e ampliando com um pouco

de fantasia. Você tem salientado não somente as causes célebres e julgamentos sensacionais em que tomei parte, como também aqueles incidentes em si mesmo triviais, mas que têm permitido o exercício das faculdades de dedução e de síntese lógica de que tenho feito o meu especial trabalho. "Todavia, talvez tenha errado", observou ele, pegando uma brasa viva com as tenazes e acendendo com ela o seu cachimbo de barro, como de costume quando estava pensativo e não queria discutir. "Você talvez tenha errado em se esforçar por colorir e avivar cada uma das suas narrativas, em vez de se limitar ao trabalho de anotar o raciocínio severo de causa e efeito, que é verdadeiramente o único ponto característico no assunto." — Parece-me que lhe fiz ampla justiça a esse respeito — observei friamente, porque me senti repelido pelo egoísmo e orgulho que reparei serem uma constante no caráter do meu amigo. — Não, não é egoísmo, nem presunção — disse ele, respondendo mais aos meus pensamentos do que às minhas palavras, como era seu costume. — Se exijo inteira justiça à minha arte, é por tratar-se, precisamente, de coisa impessoal... uma coisa à parte de mim. O crime é comum. A lógica é rara, e portanto você deve salientar mais a lógica do que o crime. Você põe ao nível de uma simples sucessão de historietas o que deveria ter sido uma série de conferências. Era uma manhã fria de primavera, e estávamos sentados, um de cada lado de um bom fogo, na velha sala da Baker Street. Uma neblina grossa rolava entre a fileira de casas escuras, e as janelas das casas em frente pareciam manchas sem forma. Nosso lampião a gás estava aceso e brilhava sobre a toalha branca e sobre os pratos e talheres que não tinham sido retirados ainda. Sherlock Holmes mantivera-se em silêncio toda a manhã, estudando as colunas de anúncios dos jornais, até que, desistindo finalmente, começara a censurar meus erros literários. Depois de uma pausa, observou: — Ao mesmo tempo, você não pode ser acusado de sensacionalismo, porque, desses casos que teve a bondade de relatar, uma boa porção não trata de crime, no sentido legal. Aquele, por exemplo, em que me esforcei por ajudar o rei da Boêmia; a experiência singular da Srta. Mary Sutherland; o problema do

homem da boca torta e o incidente do solteirão nobre, todos eram assuntos fora do alcance da lei. Mas, ao evitar o sensacionalismo, temo que tenha caído no trivial. — Pode ser que isso se aplique ao final das histórias, mas os métodos empregados têm sido invulgares e interessantes. — Ah... meu rapaz, que é que faz o público, o grande público distraído, que não distingue o tecelão pelo dente, nem um compositor pelo polegar esquerdo? Porém, se você é comum, não posso acusá-lo, porque os dias dos casos importantes já passaram. O homem, pelo menos o criminoso, perdeu o entusiasmo e a originalidade. Quanto à minha profissão, parece que vai degenerando numa agência para recuperar lápis perdidos e dar conselhos a estudantes estouvados. Parece-me que cheguei agora realmente ao cúmulo, e este bilhete que hoje recebi é o ponto zero, penso eu. Leia-o — disse ele, atirando-me um papel amarrotado. Trazia a data do dia anterior e vinha da Montague Place. "Caro sr. Holmes: Estou ansiosa por consultá-lo a fim de saber se devo ou não aceitar uma colocação que me foi oferecida como governanta. Irei aí às dez e trinta, amanha, se não lhe for inconveniente.

Sinceramente, Violet Hunter."

— Conhece essa moça? — perguntei. — Não. — Já são dez e trinta. — Sim, e com certeza é ela quem está tocando a campainha. — Pode ser que o caso seja de mais interesse do que imagina. Lembre-se da história do carbúnculo azul, que parecia apenas uma fantasia, mas que exigiu uma investigação séria. Talvez este seja assim também. — Bem, esperemos que seja! Nossas dúvidas depressa serão resolvidas, porque vem aí a pessoa em questão. Enquanto ele dizia isso, a porta se abriu e uma jovem entrou. Estava vestida com simplicidade, e seu rosto, coberto de sardas, denotava inteligência. Dava a impressão de ser pessoa habituada a ganhar a vida independentemente. — O senhor há de me desculpar por ter vindo incomodá-lo — disse ela quando meu companheiro se levantou para cumprimentá-la. — Tive uma experiência muito estranha, e, como não tenho nem pais nem parentes a quem consultar,

pensei que talvez o senhor quisesse ter a bondade de me aconselhar sobre o que devo fazer. — Sente-se, por favor, Srta. Hunter. Terei muito prazer em servi-la. Vi que Holmes estava impressionado pelas maneiras e conversação da sua nova cliente. Olhou-a com aquele seu modo perscrutador e depois acomodou-se na poltrona, com os olhos meio fechados e as pontas dos dedos unidas para escutar a história. — Fui governanta durante cinco anos — disse ela — em casa do coronel Spence Munro, mas há dois meses o coronel foi transferido para a América, para Halifax, na Nova Escócia, e levou consigo os filhos, ficando eu sem emprego. Pus um anúncio no jornal, respondi também a anúncios, mas sem resultado. O pouco dinheiro que tinha guardado estava acabando e eu sem saber o que fazer. "Há uma agência muito conhecida para governantas, no West End, chamada Westaway, e eu ia lá uma vez por semana para ver se havia alguma coisa que me servisse. Westaway é o nome do fundador da agência, mas agora é uma certa Srta. Sloper que, sentada no seu pequeno escritório, atende as pessoas à procura de emprego; os candidatos ficam na sala de espera e são recebidos cada um por sua vez. Então ela consulta os registros e vê se há algo que lhes sirva. "Bem, quando estive lá na semana passada, percebi que a Srta. Sloper não estava sozinha. Um homem muito gordo, de rosto sorridente e queixo grande, de óculos, estava a seu lado, olhando fixamente cada candidata. Quando entrei, ele saltou da cadeira e virou-se apressadamente para a Srta. Sloper: "— Chega — disse ele —, não podia encontrar coisa melhor. Esplêndido! "Parecia muito entusiasmado e esfregava as mãos com uma alegria que dava prazer ver. "— A senhorita está procurando emprego? — perguntou. "— Sim, senhor. "— Como governanta? "— Sim, senhor. "— E que ordenado pede? "— No último emprego, em casa do coronel Spence Munro, recebia quatro libras por mês. "— Oh, basta, uma insignificância! — gritou ele, levantando as mãos como quem está indignado. — Como poderia alguém oferecer tão pouco por uma

pessoa tão atraente e habilitada? "— Meus talentos, senhor, talvez sejam menores do que imagina — ripostei eu. — Um pouco de francês, alemão, música e desenho... "— Basta! — exclamou ele. — Tudo isso está além do necessário. O ponto essencial é se tem ou não uma boa formação. Isso é o principal. Se não tiver, não é digna de criar uma criança que poderá, um dia, desempenhar papel considerável na história do país. Tendo esse dom, como poderia um cavalheiro pedir-lhe para aceitar quantia inferior a três algarismos? Seu ordenado comigo, senhorita, começaria por cem libras anuais. "Deve imaginar, Sr. Holmes, que para mim, desempregada como estava, tal oferta parecia boa demais para ser verdade. Vendo um olhar de incredulidade no meu rosto, o cavalheiro abriu a carteira e dela tirou uma nota. "— É meu costume — disse ele, sorrindo com a maior amabilidade, e os olhos quase se fechavam entre as rugas da face — adiantar sempre meio salário, porque assim as jovens que emprego podem fazer qualquer despesa que lhes seja necessária para o seu guarda-roupa e viagem. "Parecia-me que nunca havia encontrado homem tão bondoso e encantador. Tinha já algumas dívidas, e aquele adiantamento vinha mesmo a propósito. Todavia, havia qualquer coisa tão fora do natural em toda a transação que decidi saber um pouco mais antes de me comprometer. "— Posso perguntar onde o senhor mora? "— Hampshire. Lugarzinho rural encantador. Na Vila das Faias Cor de Cobre, distante oito quilômetros do outro lado de Winchester. É um lugar lindo, e com uma casa de campo muito confortável. "— E os meus deveres, senhor? Gostaria de saber quais seriam. "— Uma criança, um garoto brincalhão de seis anos de idade. Oh, se pudesse vê-lo matar baratas com um chinelo! Plaque! Plaque! Plaque! E lá se vão três num piscar de olhos. — E ele recostou-se na cadeira e riu a valer. "Fiquei um pouco admirada com a natureza do divertimento da criança, mas a risada do pai me fez pensar que talvez ele estivesse fazendo graça. "— Meus deveres, então — disse eu —, seriam os de cuidar somente de uma criança? "— Não, não exclusivamente — exclamou ele. — Seu dever seria, como tenho certeza de que o seu bom senso já lhe sugeriu, obedecer a qualquer pedido feito por minha esposa, contanto que sejam da incumbência de uma jovem distinta. Não há dificuldade quanto a isso? "— Terei prazer em servi-la.

"— Muito bem. Roupa, por exemplo! Somos excêntricos, mas bondosos. Se lhe pedíssemos para usar certo vestido que lhe daremos, faria alguma objeção? "— Não — disse eu, atônita ante as palavras dele. "— Ou se lhe pedíssemos para se colocar aqui ou acolá, não se ofenderia? "— Oh, não. "— Ou para cortar seus cabelos bem curtos antes de ir para lá? "Mal pude acreditar no que estava ouvindo. Como vê, sr. Holmes, tenho cabelos longos e de uma cor castanho-clara. Dizem até que são de artista. Não podia nem sonhar em sacrificá-los dessa maneira, sem mais nem menos. "— Sinto, mas é impossível — volvi eu. "Ele me olhava atentamente, e vi uma sombra passar pelo seu rosto quando assim falei. "— Sinto, mas é essencial, é uma esquisitice de minha mulher. A senhorita sabe que as mulheres têm gostos estranhos, que precisam ser levados em consideração. Então não quer cortar os cabelos? "— Não, senhor, não posso — respondi com firmeza. "— Está muito bem; então está terminado o caso. É pena, porque de outro modo a senhorita serviria muito bem. Nesse caso, Srta. Sloper, devo entrevistar mais algumas das candidatas. "A agente estivera ocupada com seus papéis durante todo o tempo sem dizer palavra, mas agora olhava-me com tanto aborrecimento no rosto que eu não pude deixar de suspeitar de que tivesse perdido uma boa comissão devido à minha recusa. "— Quer que continue com o seu nome no registro? — perguntou ela. "— Sim, por favor, Srta. Sloper. "— Mas, realmente, parece inútil, já que recusa uma excelente oferta como esta — disse ela severamente. — Não pode esperar que nos esforcemos por arranjar outra oportunidade destas! Até logo, Srta. Hunter. "Sacudiu a sineta que estava em cima da mesa, e o contínuo levou-me para fora. "Quando cheguei ao meu quarto, Sr. Holmes, e vi tão pouca comida no aparador e duas ou três contas em cima da mesa, perguntei a mim mesma se não teria feito uma asneira. Afinal de contas, se aquela gente tinha uns gostos

estranhos e esperava obediência a coisas esquisitas, pelo menos estava pronta a pagar bem pelas suas excentricidades. Poucas são as governantas da Inglaterra que ganham cem libras por ano. Além disso, para que servia minha basta cabeleira? Muita gente fica melhor sem os cabelos compridos, e talvez fosse bom cortá-los. "No dia seguinte, achei que tinha cometido um erro e decidi remediá-lo. Combati o orgulho e pensava voltar à agência para saber se a vaga ainda não tinha sido preenchida, quando recebi esta carta daquele mesmo senhor; vou lê-la: "Faias Cor de Cobre, perto de Winchester. Cara Srta. Hunter: A Srta. Sloper deu-me o seu endereço, e escrevo-lhe para lhe perguntar se não quer reconsiderar sua decisão. Minha mulher gostaria muito que a senhorita viesse, pois ficou satisfeitíssima com a minha descrição. Estamos prontos a lhe pagar trinta libras por trimestre, ou seja, cento e vinte libras por ano, para compensá-la de qualquer pequena inconveniência que nossas excentricidades lhe possam causar. Afinal de contas, não somos muito exigentes. Minha mulher aprecia certo tom de azul e gostaria que a senhorita usasse um vestido assim, em casa, pela manhã. Não precisa comprá-lo, porque temos um que pertencia à minha querida filha Alice (agora em Filadélfia), que, penso, lhe serviria muito bem. Quanto a sentar-se aqui ou ali, ou distrair-se de qualquer outro modo indicado, não lhe causaria nenhuma inconveniência. Quanto aos seus cabelos, talvez seja uma pena cortá-los, não pude deixar de reparar quão belos são, mas preciso me manter firme nesse ponto e espero que o aumento de ordenado compense a sua perda. Seus deveres quanto à criança são leves. Se decidir vir, irei apanhá-la de carro em Winchester. Mande dizer em que trem chegará.

Sinceramente, Jefro Rucastle.'

"Recebi esta carta agora mesmo, Sr. Holmes, e decidi aceitar a oferta. Pensei, todavia, que antes de dar o passo final deveria submeter o assunto à sua consideração." — Bem, Srta. Hunter, se já resolveu, acabou-se — disse Holmes, sorrindo. — Mas o senhor acha que devo recusar? — Confesso que não gostaria que uma irmã minha aceitasse um emprego desses. — Que será que isto tudo quer dizer, Sr. Holmes?

— Não tenho dados. Não posso saber. Talvez a senhorita já tenha formado alguma opinião. — Bem, parece-me que há uma única hipótese possível. O Sr. Rucastle parece ser um homem de bom gênio. Será que sua esposa é maníaca e que ele não deseja publicidade, para evitar que ela seja levada a um asilo, e lhe faz as vontades para evitar ataques piores?

— É uma hipótese possível, de fato. As aparências tornam-na muito provável. Porém, em todo caso, não é um, lar agradável para uma jovem. — Mas o ordenado, Sr. Holmes, o dinheiro! — Bem, o pagamento é bom... bom demais. É por isso que estou preocupado: por que pagar cento e vinte libras à senhorita, quando poderiam escolher outra por quarenta? Há alguma razão muito forte por trás disso. — Pensei que, contando-lhe as circunstâncias, o senhor me ajudaria se eu viesse a precisar do seu auxílio. Assim eu me sentiria com mais coragem, sabendo que o senhor se interessava pelo caso. — Oh, então pode ficar descansada quando lá estiver. E digo-lhe que seu pequeno problema promete ser dos mais interessantes que tenho encontrado desde há alguns meses. Há qualquer coisa estranha ligada aos pormenores que descreve. Se se achar em dúvida ou perigo... — Perigo? Que perigo prevê o senhor? Holmes abanou a cabeça solenemente. — Cessaria de ser um perigo se pudéssemos defini-lo — disse ele. — Mas a qualquer hora, do dia ou da noite, um telegrama me levará em seu auxílio. — É o suficiente. Ela levantou-se rapidamente, com o rosto livre de toda a preocupação. — Irei para Hampshire sossegadamente agora. Escreverei logo mais ao Sr. Rucastle, sacrificarei o meu cabelo hoje à noite, e partirei para Winchester amanhã. E, com algumas palavras de gratidão a Holmes, disse-nos boa-noite e saiu. — Pelo menos — retorqui, quando ouvimos seus passos firmes e decididos descendo a escada —, ela parece ser uma jovem capaz de cuidar de si.

— E será necessário. Se não me engano, não passarão muitos dias antes que recebamos uma comunicação dela. Durante uns quinze dias meus pensamentos freqüentemente volviam na sua direção, e imaginava em que estranha experiência aquela pobre jovem tinha entrado. O ordenado, as condições impostas, os deveres tão leves, tudo demonstrava qualquer coisa de anormal, mas se era excentricidade ou conspiração, ou se o homem era filantropo ou malandro, estava fora do meu poder determinar. Quanto a Holmes, observei que ele freqüentemente ficava sentado durante uma meia hora, com a testa enrugada e abstraído, mas quando eu lhe falava no caso, irritava-se logo: — Dê-me dados, dados! — gritava ele, impaciente. — Não posso fabricar tijolos sem barro! Ao mesmo tempo, terminava sempre dizendo que nunca teria permitido que uma irmã sua aceitasse tal emprego. O telegrama que um dia recebemos chegou tarde, à noite. Eu já me preparava para ir dormir e Holmes para começar algumas pesquisas químicas que gostava de fazer. Ele abriu o envelope amarelo e, olhando o texto, atirou-me o papel. — Veja o horário dos trens. — E voltou para os estudos químicos. A chamada era breve e urgente: "Faça o favor de estar no Hotel Cisne Negro, em Winchester, amanhã ao meio-dia. Venha! Não sei o que fazer.

Hunter". — Quer ir comigo? — perguntou Holmes. — Gostaria muito. — Veja então a hora do trem. — Há um às nove e trinta. Deve chegar a Winchester às onze e trinta. — Esse é bom. Então talvez deva adiar estas minhas experiências com acetona, porque precisamos descansar para estarmos preparados para o dia de amanhã. Às onze horas do dia seguinte estávamos muito perto dessa antiga capital inglesa. Holmes passou todo o tempo lendo os jornais. A paisagem era linda e anunciava a entrada da primavera.

— Como está agradável! — exclamei, com o entusiasmo de um homem que se vê livre da neblina de Londres. Mas Holmes sacudiu a cabeça solenemente. — Sabe, Watson, que uma das maldições de uma mentalidade como a minha é não poder desviar a atenção do assunto especial com que está ocupada. Você olha para aquelas casas e impressiona-se com sua beleza. Eu as olho, e o único pensamento que me vem é o do isolamento e da impunidade com que o crime pode ser perpetrado ali. — Céus! — exclamei. — Quem associaria um crime àquelas lindas casas antigas? — Elas sempre me causam horror. Estou convencido, Watson, baseado na experiência, de que as vielas mais baixas e vis de Londres não apresentam maior número de pecados do que a mais linda e alegre paisagem do campo. — Você me horroriza. — Mas é óbvia a razão. A opinião pública pode mais numa cidade do que a própria polícia. Muitos crimes são cometidos nesses lugares retirados sem que

ninguém tome conhecimento deles. Se esta jovem que pede agora o nosso auxílio tivesse ido para Winchester, por exemplo, nunca me preocuparia a respeito dela. É a distância que se torna perigosa. Todavia, penso que não é ela que está sendo ameaçada. — Não, dado que pode vir a Winchester para nos encontrar. — Exatamente. Ela está livre. — O que pode ser então? Não sugere nada? — Tenho sete hipóteses, e cada qual explicaria os fatos como os conhecemos, mas só poderemos saber qual delas é a certa pelas informações que devem estar à nossa espera. Bem, lá está a torre da catedral. Logo saberemos o que a Srta. Hunter tem a nos contar.

O Hotel Cisne Negro ficava na High Street, pouco distante da estação, e lá encontramos a jovem à nossa espera. Tinha ocupado uma sala, e o almoço estava sobre a mesa. — Estou tão contente com a vinda dos senhores! Foi grande bondade dos dois. Seu conselho será de inestimável valor para mim. — Peço-lhe o favor de contar-nos o que lhe aconteceu.

— Sim, direi, mas depressa, porque prometi ao Sr. Rucastle voltar antes das três horas. Tive licença dele para vir à cidade esta manhã, mas ele nem imagina para o que vim. — Conte tudo. — E Holmes acomodou-se diante do fogo para escutar. — Em primeiro lugar, preciso dizer que não me têm maltratado. É justo que se diga isso, mas não os compreendo e estou perturbada a respeito deles. — O que é que não entende? — As razões da conduta deles, mas já conto tudo. Quando cheguei, o Sr. Rucastle encontrou-me aqui e levou-me de carro para as Faias. É uma casa linda, como ele disse, situada nos seus próprios terrenos e pouco distante da estrada para Southampton. "Há matas ao redor, pertencentes à herdade de lorde Southerton, e um renque de faias cor de cobre em frente à porta da entrada, que lhe dão o nome. Fui apresentada pelo patrão à sua esposa e à criança. Não há nada de verdade quanto à nossa conjectura, a Sra. Rucastle não está demente. Achei-a calma, pálida, muito mais jovem que o marido, uns trinta anos, penso eu, pois ele deve ter uns quarenta e cinco. Pela conversa deles, soube que estão casados há uns sete anos, que ele era viúvo, e que a filha que agora está em Filadélfia era a única filha do primeiro casamento. "O Sr. Rucastle disse-me em particular que a filha foi embora devido à aversão que sentia pela madrasta, e, como a moça deve ter uns vinte anos, calculo como devia ser desagradável estar sempre na companhia da jovem esposa de seu pai. "A sra. Rucastle pareceu-me mentalmente tão vaga quanto o seu rosto descorado. "Ela não me impressionou nem bem nem mal. É uma nulidade, mas é fácil notar que está apaixonada pelo marido e pelo filho. Examina tudo para que não falte nada, e ele é bondoso para com ela, apesar de seu tom impetuoso; em tudo, parecem formar um casal feliz. Todavia, ela tem uma tristeza secreta, chora freqüentemente. Tenho pensado que é a má disposição do filhinho que lhe pesa, porque nunca vi criança tão mimada e mal-educada. É pequeno para a idade, a cabeça desproporcionalmente grande. E passa a vida entre acessos de paixão desabrida e um grande mau humor, maltratando a todos os que são mais fracos do que ele; esse parece ser o seu único passatempo, e demonstra talento extraordinário para apanhar ratinhos, pássaros e insetos. Mas prefiro não falar nessa criatura, que aliás tem pouca ligação com a minha história." — Gosto de todos os pormenores — observou o meu amigo —, mesmo quando pareçam de pouco relevo. — Eu tentarei narrar o que é importante. A única coisa desagradável na casa,

que chamou logo a minha atenção, é a aparência e a conduta dos empregados. "São dois, marido e mulher. Toller é o nome do homem. É branco, tem cabelos e barba grisalhos, e cheira sempre a álcool. Por duas vezes, desde que lá estou, vi-o completamente bêbado; todavia, o sr. Rucastle parece não se incomodar com isso. "A esposa é uma mulher forte, muito alta e carrancuda, tão calma como a Sra. Rucastie, mas muito menos amável. Um casal desagradável, mas felizmente passo a maior parte do meu tempo entre o quarto do menino e o meu, que se comunicam a um canto do edifício. "Durante uns dois dias após a minha chegada, a vida decorreu calma, mas, no terceiro dia, a Sra. Rucastle desceu logo depois do almoço e cochichou qualquer coisa para o marido. "— Oh, sim — disse ele virando-se para mim —, estamos-lhe muito gratos, Srta. Hunter, por ter acedido aos nossos gostos quanto ao cabelo cortado, e digo-lhe francamente que não diminuiu em nada sua boa aparência. Agora vamos ver se o vestido azul lhe serve; já está estendido sobre sua cama, e se fizesse o favor de vesti-lo, ficaríamos extremamente agradecidos. "O vestido que encontrei à minha espera era de um tom especial de azul. Era de bom tecido, espécie de lã macia, e tinha sinais evidentes de ter sido usado. Caiu-me como se me tivessem tirado as medidas. Tanto o Sr. como a Sra. Rucastle expressaram alegria ao vê-lo, o que achei um tanto exagerado. "Estavam à minha espera na sala, que é grande e se estende por toda a largura na frente da casa, com três janelas compridas até o chão. Uma cadeira tinha sido colocada de costas para a janela do centro. Pediram-me que me sentasse ali, e então o sr. Rucastle começou a contar-me histórias tão cômicas como jamais ouvi. Não podem imaginar como ele era engraçado, e eu ri até me cansar. A sra. Rucastle parece não ter senso de humor, nem sequer sorriu; ficou com as mãos no colo, com um olhar triste e expressão ansiosa. "Passada uma hora mais ou menos, o Sr. Rucastle disse que era tempo de começar os afazeres do dia e que podia trocar o vestido e ir ao quarto do pequeno Edward. "Dois dias depois, repetiu-se a mesma cena, e em circunstâncias iguais. Depois das anedotas, ele me entregou um romance de capa amarela e, virando minha cadeira um pouco de lado, para que minha sombra não caísse sobre a página, pediu-me que fizesse o favor de ler em voz alta para ele. Li durante oito ou dez minutos, começando no meio do capítulo, e, de repente, ele ordenou que eu parasse e fosse trocar de vestido. O senhor deve calcular como fiquei curiosa por saber por que razão se fazia aquele extraordinário espetáculo; reparei que procuravam sempre virar-me o rosto para a sala, e por isso eu me consumia com o desejo de saber o que acontecia atrás de mim; arrisquei uma

olhadela, mas confesso que fiquei desapontada, pois não vi nada; porém, num segundo olhar, percebi que havia um homem na estrada para Southampton, de pequena estatura, barbado, olhando na minha direção. Há sempre gente naquela estrada, mas esse homem estava encostado à cerca que limita os nossos prados e olhava-me fixamente. "Abaixei o lenço, olhei para a Sra. Rucastle e vi que ela estava com os olhos fixos em mim, com um olhar penetrante. Nada disse, mas estou convencida de que ela adivinhou que eu tinha um espelho no lenço e havia visto o que se passava atrás de mim. Levantou-se imediatamente. "— Jefro — disse ela —, há um sujeito impertinente na rua que está olhando para a Srta. Hunter. "— É um amigo seu, Srta. Hunter? "— Não, não conheço ninguém por aqui. "— Ora, veja que impertinência! Tenha a bondade de se virar e de lhe acenar para que vá embora. "— Acho que seria melhor não lhe dar atenção. "— Não, não, ele acabaria por vir aqui. Faça o favor de mandá-lo embora, sim? "Fiz como me mandaram; no mesmo instante a Sra. Rucastle correu a cortina. Isso passou-se há uma semana, e desde então não mais me sentei junto à janela, nem pus o vestido azul. E nunca mais vi o homem na estrada." — Continue — disse Holmes. — Sua narrativa promete ser muito interessante. — O senhor há de achá-la um tanto desconexa, e pode ser que haja pouca ligação entre os diversos episódios de que falo. No dia da minha chegada, o Sr. Rucastle levou-me a uma cocheira que fica perto da porta da cozinha; ao aproximar-me, ouvi o barulho de uma corrente sendo arrastada, como se fosse um animal grande movendo-se. "— Ora, ora — disse o Sr. Rucastle —, não é bonito? "Olhei para dentro e vi dois olhos grandes numa figura enrolada a um canto. "— Não tenha receio — disse o meu patrão, rindo-se do susto que levei. — É Cario, meu cão de guarda. Eu disse meu, mas só Toller, meu velhaco cocheiro, é que pode com ele. Damos-lhe comida uma vez por dia, e mesmo assim não muita, para ele se manter esperto. Toller solta-o à noite, e Deus ajude o transgressor sobre quem ele pular e em quem enfiar os dentes. Não ponha o pé fora de casa à noite, seja qual for o motivo, pois pode lhe custar a vida. "O aviso não foi em vão, porque duas noites depois, por acaso, fui à janela do meu quarto mais ou menos às duas horas da manhã; era uma noite linda,

com luar, e a relva na frente da casa brilhava com o orvalho, tudo claro como de dia. De repente, vi um objeto movendo-se debaixo das faias, e, ao emergir, vi que era um cão gigante, tão grande como um bezerro, que atravessou vagarosamente o relvado e desapareceu do outro lado. Essa sentinela silenciosa fez-me gelar o coração. "E agora tenho uma experiência extraordinária para lhe contar. Como o senhor sabe, cortei o cabelo e guardava-o no fundo da minha mala. Uma noite, depois que a criança foi para a cama, ocupei-me a examinar a mobília do meu quarto e a arranjar meus

pertences. Há uma velha cômoda, da qual as duas gavetas superiores estavam vazias, mas a grande, de baixo, permanecia fechada. Enchi as duas com a minha roupa, mas ainda faltava lugar para o resto, e fiquei aborrecida por não poder usar a outra gaveta. Achei que talvez a fechadura estivesse quebrada ou que tivesse sido fechada por acaso; por isso, peguei minhas chaves e experimentei abri-la; a primeira chave que usei serviu. Havia uma só coisa dentro, e o senhor não pode imaginar o que era. A minha trança. Peguei-a e examinei-a bem. Era da mesma cor e grossura. Mas então lembrei-me de que era uma coisa impossível. Como podia meu cabelo estar guardado na gaveta? Com as mãos trêmulas, abri a mala e virei o conteúdo: lá no fundo estava o meu cabelo. Juntei as duas tranças e olhei: eram idênticas. Que coisa estranha! "Tornei a colocar o cabelo na gaveta e não disse nada aos Rucastles, julgando que tinha cometido um erro ao abrir a gaveta. "Sou observadora por natureza, e não me custou habituar-me à casa. Há uma ala, que parece não ser habitada, que tem uma porta que se abre para os aposentos dos Tollers; comunica-se também com a parte social da casa, mas permanece sempre fechada. No entanto, um dia, quando subia a escada, vi o Sr. Rucastie saindo por aquela porta, de chaves na mão e um olhar que o fazia parecer uma pessoa muito diferente do homem jovial a que eu estava habituada. Tinha as faces vermelhas, a testa franzida de raiva e as veias nas têmporas inflamadas pela cólera. Fechou a porta e passou por mim apressadamente, sem uma palavra ou um olhar sequer. "Isso despertou a minha curiosidade; portanto, quando fui passear com o menino, dei uma volta por aquele lado da casa. Havia quatro janelas em fila, três das quais estavam imundas e a quarta, tapada com tábuas. Aparentemente, estava tudo abandonado. Enquanto passeava de baixo para cima, o Sr. Rucastle veio ter comigo com os seus modos habituais, alegre e jovial. "— Viva! — disse ele. — Desculpe-me ter passado diante da senhorita sem lhe falar. Estava muito ocupado com certos negócios. "Asseverei-lhe que não levara a mal.

"— A propósito — disse eu —, parece haver ali umas salas que não são habitadas; uma está fechada com tábuas. "— A fotografia é o meu passatempo, e tenho ali o meu quarto escuro. Ora, veja só como a senhorita é observadora. Quem diria! "Falou como se estivesse brincando, mas não havia zombaria nos olhos dele quando olhou para mim. Vi suspeita e aborrecimento, mas nada de brincadeira. "Bem, Sr. Holmes, desde aquele momento compreendi que havia qualquer coisa a respeito daqueles quartos que eu precisava saber, e fiquei curiosa por ir lá. Não era simples curiosidade, embora, naturalmente, tenha o meu quinhão dela; senti como que um dever... que algum benefício adviria do fato de eu ir lá. Falam do instinto feminino; talvez tenha sido isso o que me encheu desse sentimento. Esperei, portanto, uma ocasião para passar pela porta proibida. "Só ontem me apareceu a oportunidade. Toller e sua mulher vão sempre lá, e uma vez vi-o carregar para lá um saco de roupa. Ultimamente ele tem estado sempre bêbado, e ontem também isso se deu. "Quando subia a escada, vi que a chave estava na porta: ele a havia esquecido. Os Rucastles estavam no andar térreo, e o garoto com eles. Girei a chave e entrei; havia um corredorzinho à minha frente, sem papel nas paredes e sem tapete no chão; esse corredor dava uma volta em ângulo para a direita. Virando o corredor havia três portas em fila; a primeira e a terceira estavam abertas, cada uma dando entrada para um quarto vazio, empoeirado e desconfortável; num desses compartimentos havia duas janelas, e no outro, uma só, tão sujas que mal permitiam a entrada da luz. "A porta do meio estava fechada, atravessada do lado de fora por uma larga barra de ferro e fechada a cadeado de um lado. Na outra extremidade estava amarrada por uma corda grossa. A porta estava trancada, mas não havia chave ali. Essa porta correspondia à janela tapada; todavia, percebi por uma fraca luz que vinha por baixo da porta que o quarto não se encontrava de todo às escuras. Evidentemente, havia uma clarabóia de onde vinha essa luz. Enquanto estava no corredor, imaginando que segredo havia atrás daquela porta sinistra, ouvi de repente passos no quarto e vi uma sombra que ia e vinha. Um terror enlouquecedor se apossou de mim ao constatá-lo, Sr. Holmes. Meus nervos, já abalados, falharam de repente, virei-me e corri como se a mão de alguém me segurasse por trás e me puxasse o vestido. Corri pelo corredor e pela porta diretamente para os braços do Sr. Rucastle, que estava à espera do lado de fora.

"— Ah, então era você — disse ele, sorrindo. — Foi o que pensei quando vi a porta aberta. "— Oh, estou com tanto medo! — murmurei, ofegante. "— Então! Então! — E o senhor não imagina como era carinhosa a sua voz. — O que foi que a assustou? "Mas a voz dele era adocicada demais, e fiquei prevenida contra ele. "— Eu, como uma tola, fui à ala vazia, mas é tão solitária e triste, com aquela luz fraca, que me assustei e saí de lá correndo. Oh, é tão silencioso ali! "— Só isso? — inquiriu, olhando-me com agudeza.

"— Por quê? O que é que o senhor está pensando? — perguntei-lhe. "— Por que razão acha a senhorita que fecho esta porta? "— Não sei dizer. "— É para evitar que pessoas que não têm esse direito entrem lá. Ouviu? "Ainda sorria do modo mais amável. "— Se eu soubesse... "— Bem, agora sabe, e se puser de novo os pés além do limiar dessa porta... — Então o sorriso transformou-se num arreganhar de dentes, e ele fitou-me com um olhar de demônio: — Eu a atiro ao cão de guarda. "Fiquei tão amedrontada que não sabia o que fazer. Arremessei-me para dentro do meu quarto, passando por ele sem olhá-lo, e não me lembro de mais nada até que me achei em minha cama, tremendo da cabeça aos pés. Depois lembrei-me do senhor; não podia continuar vivendo lá sem procurar um conselho. Tenho medo do homem, da mulher, dos empregados e até da criança. São horríveis, a meu ver. Se pudesse levar o senhor até lá, tudo estaria bem. É verdade que eu podia ter fugido da casa, mas minha curiosidade era quase tão grande quanto o medo. Logo, decidi-me e mandei-lhe um telegrama. Pus o chapéu e a capa, desci até a agência telegráfica que fica a menos de um quilômetro da casa, e no regresso senti-me muito aliviada. Um medo terrível me sobreveio quando me lembrei de que talvez o cão estivesse solto, mas também me lembrei de que Toller estava sem sentidos, de tão bêbado, e sabia que ele era o único que tinha o domínio sobre aquela besta selvagem, ou que se atreveria a soltá-la. Entrei sem problemas e fiquei acordada parte da noite, sentindo alívio só em pensar que o senhor viria. Não se opuseram a que eu viesse a Winchester agora de manhã, mas preciso voltar

antes das quinze horas, porque o Sr. e a Sra. Rucastle vão sair para fazer visitas. Estarão fora até tarde e tenho de ficar com a criança. Agora que lhe contei minhas aventuras, Sr. Holmes, daria muito para que o senhor me pudesse dizer o que significa tudo isto, e, acima de tudo, o que devo fazer." Holmes e eu ficamos boquiabertos com aquela história extraordinária. Meu amigo levantou-se e andou de um lado para outro na sala, de mãos nos bolsos e com uma expressão de gravidade no rosto. — Toller ainda está bêbado? — perguntou ele. — Sim, ouvi sua mulher dizer à Sra. Rucastle que não pode fazer nada com ele. — Está bem. Então os Rucastles sairão hoje à noite? — Sim. — Há uma adega com uma boa fechadura? — Sim, onde se guarda o vinho. — Agiu como uma jovem corajosa e ajuizada, Srta. Hunter. Seria capaz de fazer mais uma coisa? Não o pediria se não soubesse que a senhorita tem uma coragem excepcional. — Tentarei. O que é? — Chegaremos às Faias pelas dezenove horas. Os Rucastles terão saído, e Toller, esperamos, ainda estará incapaz de agir. Há só a Sra. Toller, que poderia dar o alarme. Se pudesse mandá-la para a adega sob qualquer pretexto e trancá-la lá, facilitaria muito as coisas. — Eu o farei. — Excelente. Então investigaremos o caso. Há só uma explicação. A senhorita foi trazida aqui para representar o papel de alguém, e essa pessoa está fechada naquele quarto. É evidente. Quanto a quem é esse prisioneiro, não tenho a menor dúvida de que se trata da Srta. Alice Rucastle, que dizem ter ido para a América. A senhorita foi escolhida por se parecer com ela na altura e na cor do cabelo. O dela havia sido cortado, talvez por causa de qualquer doença, por isso o seu devia ser sacrificado também. Foi um milagre que tenha encontrado a trança dela. O homem na estrada sem dúvida deve ser algum amigo dela, possivelmente noivo, mas como você usava o vestido dela e se lhe assemelhava tanto, ele deve ter se convencido, pelas suas risadas e pelos seus gestos, de que a Srta. Rucastie estava contente e já não queria suas atenções. O cão é solto à noite para que não possa haver qualquer comunicação com ela. Tudo isto está claro. A coisa mais séria é a disposição da criança.

— Que tem uma coisa a ver com a outra? — exclamei. — Meu caro Watson, você é médico, e constantemente adquire conhecimentos sobre uma criança estudando os pais... o reverso é igualmente válido. A disposição dessa criança é excessivamente cruel, e isso deriva do seu sorridente pai ou, como suspeito, da mãe, o que é um mal presságio para a pobre jovem que está em seu poder. — Tenho certeza de que o senhor tem razão, Sr. Holmes — exclamou a nossa cliente. — Mil coisas me fazem crer nisso. Oh, não percamos um momento em socorrer essa pobre criatura. — Mas precisamos ser prudentes, pois estamos lidando com um grande velhaco. Não se pode fazer nada até às dezenove horas. Então estaremos lá, e em pouco tempo resolveremos o mistério. Chegamos, como havíamos prometido, justamente às dezenove horas, tendo deixado a nossa carruagem na taberna da estrada. Pelas folhas das faias, que brilhavam como metal à luz do sol poente, teríamos reconhecido a casa mesmo que a Srta. Hunter não nos esperasse sorridente à porta. — Arranjou tudo? — perguntou Holmes. Ouviu-se uma pancada ruidosa, vinda de lá de baixo. — É a Sra. Toller, na adega; o marido dela está roncando no tapete da cozinha. Aqui estão as chaves dele, que são iguais às do Sr. Rucastle. — Muito bem! — exclamou Holmes com entusiasmo. — Agora mostre-nos o caminho, e depressa veremos o fim deste problema. Subimos, abrimos a porta e atravessamos o corredor até a porta que a Srta. Hunter indicou. Holmes cortou a corda e removeu a barra de ferro. Depois experimentou as várias chaves na fechadura, mas sem efeito. Não se ouvia um som sequer vindo de lá de dentro, e aquele silêncio provocou uma nuvem de desapontamento na fisionomia de Holmes. — Espero que não tenhamos chegado tarde demais — disse ele. — Julgo que devemos entrar antes que a jovem morra. Agora, Watson, ombros à porta, vamos ver se entramos já. Era uma porta velha, que cedeu logo à nossa força unida. Juntos, corremos para dentro do quarto. Estava vazio. A única mobília que ali havia era uma caminha, uma mesinha e uma cesta de roupa. O quarto estava vazio, a clarabóia, aberta, e a prisioneira tinha fugido.

— Houve algo de mau aqui. Aquele bruto adivinhou as intenções da Srta. Hunter e carregou sua vítima. — Mas como? — Pela clarabóia. Já veremos como ele o fez. E subiu para o telhado.

— Ah! Aqui está a ponta de uma escada, perto da calha. — Mas é impossível, a escada não estava aqui quando os Rucastles saíram — disse a Srta. Hunter. — Ele deve ter voltado para colocá-la. Digo-lhe que é astuto e perigoso. Não me surpreenderia se ouvisse seus passos subindo a escada. Creio, Watson, que deve ter o seu revólver preparado. Mal ele falou, apareceu à porta do quarto um homem gordo e abrutalhado, com um pau

pesado na mão. A Srta. Hunter gritou e encostou-se à parede ao vê-lo, mas Sherlock Holmes deu um pulo e enfrentou-o. — Canalha — disse —, onde está sua filha? O homem olhou ao redor e depois para a clarabóia. — Eu é que devo perguntar-lhe isso — gritou ele. — Ladrões! Espiões e ladrões! Apanhei-os em flagrante! Estão em meu poder. Hão de pagar por isto! Nisso, desceu as escadas ruidosamente e tão depressa quanto pôde. — Ele foi soltar o cão! — exclamou a Srta. Hunter. — Tenho o meu revólver — respondi. — É melhor fechar a porta — disse Holmes —, e vamos descer todos juntos.

Mal chegamos ao vestíbulo, ouvimos o ladrar de um cão e depois um grito de agonia e um horrível barulho de algo sendo rasgado. Um homem de idade, com o rosto vermelho e cambaleando, saía de uma porta lateral.

— Meu Deus! — gritou ele. — Alguém soltou o cão, e ele não come nada há dias. Depressa, depressa, ou será tarde demais. Holmes e eu saímos correndo até o ângulo da casa, com Toller atrás de nós. Lá estava o bruto esfomeado, com o focinho enterrado na garganta de Rucastle, que se torcia e gritava no chão. Quando cheguei perto, fiz saltar os miolos do cão; ele caiu, mas com os dentes ainda presos às dobras do pescoço do homem. Depois de algum trabalho, conseguimos livrá-lo e levá-lo para dentro de casa, deitando-o no sofá. Mandamos que Toller, cuja bebedeira já havia passado, fosse avisar a mulher. Fiz o que pude para aliviar as dores de Rucastle. Estávamos todos ao redor dele quando a porta se abriu, dando entrada a uma mulher alta e magra. — Sra. Toller! — exclamou a Srta. Hunter. — Sim, senhora. O sr. Rucastle soltou-me antes de subir atrás de vocês. Ah, senhorita, que pena não me ter contado o que planejava fazer, porque eu lhe diria que estava perdendo o seu tempo. — Ah! — exclamou Holmes olhando fixamente para ela. — É evidente que a Sra. Toller sabe mais deste caso do que qualquer outra pessoa. — Sim, senhor, sei e estou pronta a contar tudo. — Então faça o favor de se sentar e vamos ouvi-la! Há diversos pontos que, confesso, ainda não consegui compreender. — Já contarei, e tê-lo-ia feito antes se pudesse sair da adega. Se for caso de polícia, não se esqueça de que sou sua amiga e da Srta. Alice também. Ela nunca estava contente em casa, desde que o pai se casou de novo. Faziam pouco-caso dela e nunca lhe permitiam dizer nada, mas sua vida piorou muito depois que conheceu o Sr. Fowler em casa de uns amigos. Sei que a srta. Alice herdara alguma coisa com todos os direitos, mas era tão calma e paciente que nunca fez objeção alguma e deixava tudo nas mãos do Sr. Rucastle. Ele sabia que podia fazer o que quisesse do que lhe pertencia, mas quando apareceu um casamento e viu que o marido viria a exigir que tudo passasse para as suas mãos, achou melhor acabar com o assunto. Queria que ela assinasse um papel, para que, casada ou não, ele pudesse utilizar-se do dinheiro dela. Atormentou-a tanto com o assunto, até que ela teve uma febre que lhe atacou a cabeça e ficou às portas da morte durante umas seis

semanas. Finalmente melhorou. Estava magra como uma sombra e com os cabelos cortados, mas, apesar de tudo isso, o jovem não desistiu, continuando-lhe fiel. — Ah! — disse Holmes —, creio que o que nos acaba de contar esclarece bem as coisas, e já posso deduzir o resto. O Sr. Rucastle, então, empregou este sistema de prisão? — Sim, senhor. — E trouxe a Srta. Hunter de Londres para ver se acabava com a desagradável persistência do Sr. Fowler. — Foi isso mesmo, senhor. — Mas o Sr. Fowler, sendo homem perseverante, como todo marinheiro deve ser, bloqueou a casa e, tendo-se encontrado com a senhora, conseguiu com certos argumentos, em moeda sonante ou não, convencê-la de que seus interesses e os dele eram os mesmos. — O Sr. Fowler é um cavalheiro bondoso e generoso — disse a Sra. Toller calmamente. — E desse modo conseguiu que seu marido não bebesse mais e fosse arranjar uma escada para ser utilizada logo que o Sr. Rucastle saísse. — Sim, senhor, foi assim mesmo. — Estou certo de que devemos pedir-lhe desculpas, Sra. Toller — disse Holmes —, porque acaba de esclarecer muito bem tudo o que era enigmático para nós. E agora estão chegando o médico e a Sra. Rucastle. Portanto, Watson, creio que é melhor acompanharmos a Srta. Hunter até Winchester, pois julgo que nossa presença aqui torna-se desnecessária; o caso passou das nossas mãos para outras. E assim foi resolvido o mistério da casa sinistra das Faias Cor de Cobre. O Sr. Rucastle melhorou, mas ficou tão alquebrado que somente continuou a viver devido aos cuidados de sua devotada mulher. Moram ainda com os mesmos velhos empregados, que provavelmente sabem tanto da vida passada de Rucastie que ele acha melhor não os dispensar. O Sr. Fowler casou-se com a Srta. Rucastle em Southampton, no dia do rapto. Agora é representante do governo nas ilhas Maurício. Quanto à Srta. Violet Hunter, para meu desapontamento, meu amigo Holmes não se interessou mais por ela uma vez terminadas as investigações daquele caso. Ela agora é diretora de uma escola particular em Walsall, onde, creio, se sente muito bem.

Sherlock Holmes

em:

O carbúnculo azul

Por Sir Arthur Conan Doyle

PDF por ZOHAR ([email protected])

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Fui visitar o meu amigo Sherlock Holmes na segunda manhã depois do Natal, com a intenção de lhe apresentar meus cumprimentos. Ele estava recostado no sofá, envolto num roupão azul, o cachimbo do lado direito e, ao alcance da mão, um maço de jornais amarrotados, evidentemente consultados há pouco. Ao lado havia uma cadeira sobre cujo espaldar estava pendurado um chapéu de feltro, bastante velho, de aspecto repulsivo e até rasgado em diversos lugares. Uma lente e uma pinça encontravam-se no assento da cadeira, o que sugeria que o chapéu estava ali para ser mais cuidadosamente examinado.

— Vejo que está ocupado — disse eu; — talvez o incomode. — Nada disso. Gosto de ter um amigo por perto para poder discutir minhas pesquisas. O assunto é muito comum — e apontou com o polegar para o chapéu velho —, mas há alguns pontos relacionados com ele que possuem um certo interesse e são até instrutivos. Sentei-me na poltrona e aqueci as mãos junto da lareira, pois fazia tanto frio que havia cristais de gelo nas janelas. — Suponho — observei — que, embora pareça comum, este caso tenha algo de fatal de permeio, ou seja, a pista que vai guiá-lo na solução de um mistério e contribuir para a punição de algum culpado... — Não, não. Nenhum crime... — disse Sherlock Holmes rindo. — Somente um daqueles engraçados incidentes que surgem quando há quatro milhões de seres humanos acotovelando-se dentro do espaço de poucos quilômetros quadrados. Entre a ação e a reação de tão densa colmeia humana, pode-se esperar que aconteça a maior combinação de fatos possível e surjam muitos problemas estranhos e bizarros, que nem por isso são crimes. Disso já temos experiência.... — Tanta — ponderei —, que dos últimos seis casos que juntei às minhas anotações, três estavam isentos de qualquer resquício de crime legal. — Precisamente. Você se refere aos esforços que fiz no sentido de recuperar os documentos em poder de Irene Adler; ao singular caso da jovem Mary Sutherland e à aventura com o homem da boca torta. Bem, não duvido que o caso presente caia na

mesma categoria inocente. Conhece o comissário Peterson? — Conheço. — Este trofeu lhe pertence... — É o chapéu dele? — Não, não. Ele o encontrou. Não se sabe quem é o dono. Examine-o, não como a um chapéu velho, mas como um problema intelectual. Mas, em primeiro

lugar, deixe-me contar-lhe como veio parar aqui. Chegou no dia de Natal, juntamente com um belo ganso gordo, o qual, a estas horas, não duvido, está sendo bem assado no fogão, em casa de Peterson. Os fatos são estes: às quatro horas da manhã, mais ou menos, no dia de Natal, Peterson, que, como sabe, é um homem honesto, regressava de uma festa e dirigia-se para casa, passando pela Tottenham Court Road. À sua frente caminhava um homem de altura regular, cambaleando, à luz fraca do gás, e carregando às costas um ganso. Quando chegou à esquina da Goodge Street, deu-se um conflito entre o homem do ganso e um bando de vagabundos. Um desses derrubou o chapéu do homem, que, tentando defender-se, levantou a bengala e com esse gesto quebrou a vitrina da loja que estava às suas costas. Peterson tinha se adiantado para proteger o homem contra os assaltantes, mas ele, amedrontado por ter quebrado os vidros e vendo que alguém de uniforme se dirigia para ele apressadamente, largou o ganso e fugiu em disparada, sumindo no labirinto de ruelas que ficam atrás da Tottenham Court Road. Os vagabundos também correram, devido ao aparecimento de Peterson, e assim ele ficou de posse do campo de batalha e também dos trofeus da vitória, que se compunham deste chapéu maltratado e do ganso, um dos melhores que ele poderia esperar para o Natal. — Que com certeza restituiu ao dono... — Meu caro, aí está o problema. É verdade que havia um cartãozinho onde estava escrito "Para a sra. Henry Baker" amarrado à perna esquerda do ganso; é também verdade que as iniciais H. B. são ainda perceptíveis no forro do chapéu; mas como há milhares de pessoas com o sobrenome Baker, e algumas centenas de Henry Baker nesta nossa cidade, não é muito fácil restituir uma coisa perdida a qualquer um deles... — Que foi que Peterson fez, então? — Trouxe-me o chapéu e o ganso aqui para casa, na própria manhã do dia de Natal, sabendo que me interesso pelos menores e até mais insignificantes problemas. Guardou-se o ganso até hoje, mas havia sinais, apesar do frio, de que devia ser comido sem mais demora. Seu descobridor levou-o, portanto, para que suceda à referida ave aquilo que é o destino determinado de todos os gansos, enquanto eu fico aqui com o chapéu do cavalheiro que perdeu o seu especialíssimo jantar ou ceia de Natal. — Ele não pôs um anúncio no jornal? — Não.

— Então que pista você poderá encontrar para identificar o homem? — Somente o que pudermos deduzir. — Do chapéu dele? — Precisamente. — Está brincando. O que é que se pode colher deste velho chapéu amarrotado? — Aqui está a lente. Você conhece os meus métodos. Veja o que pode deduzir quanto às características do homem que usava este artigo! Tomei o objeto rasgado nas mãos e virei-o para um lado e outro, um tanto contrafeito. Era um chapéu preto comum, redondo e muito gasto. O forro era de seda vermelha, mas estava descorado. Não tinha o nome do fabricante, mas, como Holmes observara, viam-se bem as iniciais H. B. Na aba restara o nó do elástico que o segurava, mas do elástico, nem sinal. Estava coberto de pó e com algumas pequenas manchas; nos pontos descorados fora aplicada tinta preta. — Não vejo nada — ripostei, devolvendo-lhe o chapéu. — Pelo contrário, Watson, pode ver tudo. O que é preciso é raciocinar. Você é muito tímido e receia errar em suas conclusões. — Então diga-me o que você pode deduzir desse chapéu... Holmes segurou-o e olhou-o daquele modo introspectivo que lhe era tão peculiar. — Sugere menos do que se poderia esperar; contudo, há algumas coisas muito claras, e outras que nos dão apenas alguns indícios. O homem é um intelectual, é mais do que evidente; acha-se atualmente em péssimas condições de vida, o que acontece de uns três anos para cá, pois antes disso vivia bem. Anteriormente, era cuidadoso, mas seu cuidado diminuiu de uns tempos para cá, o que é sinal evidente de decadência moral, a qual, aliada ao declínio de seus bens, deve ter sido causada por alguma influência perniciosa, talvez a bebida, e essa pode ser a razão por que a mulher deixou de cuidar dele e talvez já não o ame. — Meu caro Holmes! — Ele ainda possui um pouco de brio — disse Holmes, sem fazer caso da minha exclamação —, é homem de vida sedentária, sai pouco, é de meia-idade, tem cabelos grisalhos (cortados há poucos dias) e usa brilhantina. Esses são os dados que se podem deduzir do chapéu. E é muito provável que ele não tenha gás em casa... — Você certamente está brincando, Holmes. — Nem pense nisso. Será possível que, mesmo depois de eu ter salientado esses pontos, você não descubra mais nada?

— Reconheço que sou muito lento, e tenho de confessar que não posso segui-lo. Por exemplo, como deduziu que o dono do chapéu é um intelectual? Em resposta, Holmes pôs o chapéu na cabeça, o qual lhe desceu pela testa até o nariz. — É uma questão de capacidade cúbica — disse ele. — Um homem de cabeça grande deve ter alguma coisa dentro dela. — E o declínio da fortuna? — Este chapéu é usado há três anos. Esta aba chata com o debrum virado para cima começou a ser usada naquela época, isto é, há três anos. É um chapéu da melhor qualidade. Veja a qualidade do forro e a fita de seda ao redor. Se o homem pôde comprar um chapéu desta qualidade há três anos e não comprou outro, é certamente porque as coisas não lhe correm bem. — Na verdade, parece claro. Mas, e quanto a seu cuidado e a sua moral? Sherlock Holmes riu-se. — Aqui está o cuidado — disse, colocando o dedo sobre a marca e o nó do elástico. — Nunca é vendido com o chapéu, mas colocado depois, a pedido do freguês. Trata-se de uma precaução contra o vento. Depois o elástico rebentou e ele não o renovou, o que é sinal de fraqueza. Por outro lado, ele procurou esconder as manchas cobrindo-as de tinta, o que demonstra um certo respeito pessoal. — Seu raciocínio é realmente plausível. — Os outros pontos notados, isto é, que o homem é de meia-idade, tem cabelos grisalhos cortados recentemente e usa brilhantina, podem ser claramente vistos pelo exame do forro. A lente mostra muitos pequeninos fios de cabelos, bem cortados pela tesoura do barbeiro. Grudam-se e cheiram a brilhantina. Este pó, repare, não é o pó arenoso da rua, mas o pó leve de dentro de casa, o que prova que o chapéu fica pendurado a maior parte do tempo, enquanto as marcas de umidade são provas de que o dono transpira muito e, portanto, não goza de perfeita saúde. — Mas, e a esposa que já não o ama, conforme você diz? — Este chapéu não é escovado há muitas semanas. Quando eu o encontrar com o pó acumulado no chapéu e sua esposa consentir em deixá-lo sair de casa nesse estado, receio ter de pensar que começa a perder a afeição de sua mulher. — Mas ele pode ser um solteirão! — Não, senhor. Ele levava um ganso para casa como uma oferta de paz para a esposa. Não se esqueça do cartão na perna da ave. — Você tem resposta para tudo. Mas por que diz que não há gás na casa dele? — Por causa de alguns pingos de vela aqui, repare. O indivíduo está habituado a subir a

escada com o chapéu numa das mãos e a vela na outra. Pelo menos, que eu saiba, não pingam gotas de velas das instalações de gás. Está satisfeito? — É tudo muito engenhoso! — respondi eu, rindo. — Mas, já que você afirma não haver crime e que nada aconteceu de grave, senão a morte de um ganso, não acha que está perdendo muita energia com suas investigações?

Sherlock Holmes abriu a boca para responder, mas nesse instante a porta escancarou-se e o comissário Peterson entrou correndo, as faces coradas e o rosto demonstrando que estava atordoado com qualquer surpresa. — O ganso, Sr. Holmes, o ganso... — exclamou, ofegante. — Hem? O ganso? O que foi feito dele? Ressuscitou e voou pela janela da cozinha? — E Holmes virou-se no sofá para ver melhor o rosto perturbado do homem. — Olhe aqui. Veja o que minha mulher encontrou no papo! Estendeu a mão, mostrando na palma uma bela pedra azul-cintilante, mais ou menos do tamanho de um feijão, mas de tal brilho que cintilava como uma lâmpada elétrica na penumbra da sua mão meio fechada. Sherlock Holmes sentou-se e assobiou. — Ora, Peterson, isto é um tesouro de grande valor! Suponho que você sabe o que tem aí. — Um diamante, Sr. Holmes! Uma pedra preciosa. Corta o vidro como se fosse massa. — É mais que pedra preciosa. É a pedra preciosa. — Não é o carbúnculo azul da condessa de Morcar? — explodi eu. — Precisamente. Devo conhecer o tamanho e a forma, visto que li os anúncios no Times durante estes últimos dias. É única no gênero, e seu valor não pode ser bem avaliado; a recompensa oferecida de mil libras não é sequer a vigésima parte do valor da pedra. — Mil libras! Deus do céu! — O comissário caiu na cadeira e olhou-nos, um após o outro, estupefato. — É a recompensa oferecida, e sei que há aspectos sentimentais envolvendo a pedra que poderiam induzir a condessa a oferecer metade de sua fortuna para recuperá-la. — Foi perdida, se não me engano, no Hotel Cosmopolitan — observei. — Justamente. No dia 22 de dezembro; portanto, há cinco dias. John Horner, um

encanador, foi acusado de ter tirado a pedra do porta-jóias da condessa de Morcar, e as provas são tão fortes que o caso vai ser levado ao tribunal. Creio que tenho aqui alguma coisa — procurou entre os seus jornais, olhando as datas, até que por fim tirou um, alisou-o, dobrou-o um pouco e leu o seguinte título: "ROUBO DE JÓIAS NO HOTEL COSMOPOLITAN John Horner, de 26 anos, encanador, foi acusado, no dia 22 do corrente, de ter subtraído do porta-jóias da condessa de Morcar a gema conhecida como 'carbúnculo azul'. James Ryder, guarda do andar superior do hotel, testemunhou, dizendo ter levado Horner ao quarto de vestir da condessa no dia do roubo para que ele soldasse a segunda grade da lareira, que se achava solta. O guarda permaneceu algum tempo no local e depois, atendendo a um chamado, foi-se embora, deixando Horner sozinho. Ao voltar verificou que Horner tinha saído, mas que o cofre tinha sido arrombado e que o porta-jóias da condessa estava vazio em cima da mesa. Ryder deu logo o alarme e Horner foi preso na tarde daquele mesmo dia, mas a pedra não foi encontrada nem nos bolsos nem no quarto do suspeito. Catherine Cusack, a empregada pessoal da condessa, disse que ouviu o grito angustioso de Ryder ao descobrir o furto e entrou no quarto às pressas, onde viu as coisas como a outra testemunha descreveu. O inspetor Bradstreet, da Divisão B, contou como prendeu Horner, o qual lutou desesperadamente e protestou inocência em altos brados. Havia mais uma acusação de furto contra ele; o magistrado recusou tratar do caso sumariamente e decidiu apresentá-lo ao tribunal. Horner, que demonstrara sinais de intensa emoção durante o processo, desmaiou no final e foi levado para fora do salão". — Hum! Essa é a versão da polícia — disse Holmes, atirando o jornal para um lado. — A questão para nós agora é estabelecer a seqüência dos fatos desde o porta-jóias arrombado até o fim, que é o papo de um ganso na Tottenham Court Road. Como vê, Watson, nossas pequeninas deduções assumiram repentinamente um aspecto muito mais importante e menos inocente. Aqui está a pedra; a mesma pedra que vem do ganso, do ganso que vem do Sr. Henry Baker, o cavalheiro que é o dono do chapéu velho com todas aquelas características com que o aborreci. Agora precisamos procurar muito seriamente esse senhor e descobrir o papel que ele representa neste mistério. Para isso, vamos primeiramente experimentar o método mais simples, e esse é sem dúvida um anúncio em todos os jornais vespertinos; se nada resultar, terei de recorrer a outros métodos. — Que vai fazer? — Dê-me um lápis e aquela tira de papel. Bem, vejamos: "Encontramos na esquina da Goodge Street um ganso e um chapéu de feltro. O Sr. Henry Baker pode reaver os ditos objetos procurando-os às 18:30 de hoje na Baker Street, 221 B". — Está claro e conciso, não? — Muito, mas será que ele vai lê-lo? — É provável que ele leia todos os jornais, visto que a perda foi pesada. Estava tão

amedrontado devido à sua infelicidade de ter quebrado a vitrina e à aproximação de Peterson, que só se lembrou de fugir; mas, depois disso, deve ter-se arrependido muito do ato impulsivo de ter largado o ganso. Outra coisa: verá o seu nome, e isso lhe despertará interesse, porque todos os que o conhecem também lhe chamarão a atenção. Olhe, Peterson, vá correndo até a agência de anúncios e mande pôr este anúncio nos jornais vespertinos. — Em quais deles? — Oh, no Globe, Star, Pall Mall, St. James's Gazette, Evening News, Standard, Echo e quaisquer outros que lhe ocorram. — Muito bem, Sr. Holmes. E esta pedra? — Ah! Sim, deixe-a aqui. Obrigado. E, outra coisa, Peterson: na volta compre outro ganso, e deixe-o comigo, porque precisamos ter um à mão para entregar ao cavalheiro em lugar daquele que sua família está comendo. Quando o comissário saiu, Holmes pegou a pedra e colocou-a contra a luz. — É uma pedra bonita, não é? — perguntou. — Veja como brilha e cintila. Serve de núcleo e foco ao crime. Toda pedra autêntica serve ao mesmo fim. É a isca predileta do Diabo. Nas pedras maiores, cada faceta pode representar um ato sangrento. Esta pedra não tem vinte anos. Foi encontrada às margens do rio Amoy, no sul da China, e é espantoso que tenha todas as características do carbúnculo, exceto a cor, que é azul em vez de vermelha. Apesar de seus poucos anos, já tem uma história sinistra: dois assassinatos, uma tentativa de envenenamento, um suicídio e vários furtos, todos por causa destes quatro gramas de carvão cristalizado. Quem diria que tão belo brinquedo seria o precursor da forca e da prisão? Vou fechá-lo na minha caixa-forte e escrever uma linha à condessa dizendo onde a pedra se encontra guardada. — Você pensa que o tal Horner está inocente? — Não posso dizer. — Mas acha que o outro, esse Henry Baker, teve alguma coisa a ver com o caso, não é? — Acho que é muito mais possível que esse Henry Baker esteja inocente, e que não tivesse a mínima idéia de que a ave que carregava tinha mais valor que seu peso em ouro. Isso, aliás, será esclarecido com um teste muito simples, se obtivermos resposta ao nosso anúncio. — E não pode fazer mais nada até lá? — Nada. — Nesse caso continuarei a fazer minhas visitas profissionais, mas voltarei à tarde, à hora que você mencionou, porque gostaria de ver a solução de tão emaranhado assunto. — Ficarei satisfeito em vê-lo. Janto às dezenove horas. Há uma galinhola, creio. É

verdade: em vista dos acontecimentos recentes devo pedir à Sra. Hudson para examinar o papo da ave! Demorei-me com um cliente, e já passava das dezoito horas quando cheguei de novo à Baker Street. Ao aproximar-me da casa vi um homem alto, de boné escocês, o sobretudo abotoado até o pescoço, à espera de que a porta se abrisse, no semicírculo de luz que havia por cima desta. No momento em que parei, a porta abriu-se, e juntos nos dirigimos aos aposentos de Holmes. — Sr. Henry Baker, creio — disse ele, levantando-se da sua poltrona e saudando o visitante com aquele ar de jovialidade que tinha tanta facilidade em assumir. — Peço-lhe o favor de se sentar nesta cadeira perto do fogo, Sr. Baker. A noite está fria, e vejo que sua circulação é mais adequada ao clima de verão do que ao de inverno. Ah! Watson, chegou na hora. É aquele o seu chapéu, Sr. Baker? — Sim, senhor, é sem dúvida o meu chapéu. Era um homem grande, de ombros curvos, cabeça enorme, rosto largo e olhar inteligente, e barba pontiaguda, castanha, com laivos grisalhos. O nariz e as faces estavam um tanto vermelhos, e a mão estendida tremia um pouco, o que me fez lembrar as conclusões de Holmes a respeito dos hábitos do homem. A casaca estava abotoada até o pescoço, a gola, levantada; os pulsos magros apareciam sob as mangas sem sinal de punhos de camisa. Falava de modo vacilante e baixo, escolhendo as palavras com cuidado, dando a impressão de ser um homem educado e letrado que tivera pouca sorte. — Guardamos estas coisas durante alguns dias — disse Holmes — porque esperávamos ver um anúncio seu dando-nos o endereço. Não percebo por que não as reclamou pelos jornais. Nosso visitante soltou uma risada, meio envergonhado. — Não tenho nadado em dinheiro ultimamente... — observou. — Estava convencido de que tinham sido os vagabundos que me assaltaram que haviam levado tanto o meu chapéu como a ave, e não queria gastar mais dinheiro na esperança inútil de recuperá-los. — Naturalmente. Por sinal, quanto à ave, fomos obrigados a comê-la. — Comê-la! — Nosso visitante fez menção de se levantar da cadeira, com a surpresa. — Sim, acabaria indo para o lixo, se não o tivéssemos feito. Mas presumo que aquele outro ganso que está em cima do bufe, e que é mais ou menos do mesmo tamanho e bem fresco, lhe servirá tão bem como o outro... — Oh, certamente — respondeu o Sr. Baker com um suspiro de alívio. — O certo é que ainda temos as penas, as pernas e o papo da ave, se ainda os quiser... O homem deu uma gargalhada.

— Talvez me servissem como lembrança da minha aventura — disse ele —, mas, fora isso, não vejo para que serviriam os disjecta membra, da minha última companheira. Não, senhor, com sua permissão, darei toda a atenção e cuidados à excelente ave que vejo ali. Sherlock Holmes lançou-lhe um olhar intenso e encolheu os ombros. — Ali está o seu chapéu, então, e a ave — disse ele. — A propósito, o senhor poderia nos dizer onde obteve o outro ganso? Interesso-me pela compra de aves, e raras vezes tenho visto ganso mais perfeito. — Sim, senhor — disse Baker, que se havia levantado e

colocara sua nova propriedade debaixo do braço. — Alguns de nós freqüentamos a Taberna Alpha, perto do museu. . . estamos mesmo dentro do museu durante o dia, compreende? Este ano o nosso hospedeiro, de nome Windigate, instituiu o Clube do Ganso, pelo qual, com a contribuição de alguns níqueis por semana, podemos receber um ganso no Natal. Paguei os meus pence, e quanto ao resto o senhor já sabe. Fico-lhe muito grato, pois um boné escocês não é adequado à minha idade nem à minha gravidade. Com um ar pomposo, fez uma vênia muito solene e foi-se embora. — Tudo resolvido a respeito do Sr. Baker — disse Holmes, depois de ter fechado a porta. — É mais que certo que ele não sabe nada do caso. Está com fome, Watson? — Não muita. — Então sugiro que do jantar façamos uma ceia, e vamos seguir esta pista enquanto está quente. — Certamente. Era uma noite de muito frio, e por isso vestimos as capas e enrolamos o cachecol ao redor do pescoço. Fora, as estrelas brilhavam friamente num céu sem nuvens, e o ar que aspirávamos saía-nos como fumaça das bocas. Em quinze minutos encontramo-nos em Bloomsbury, na Taberna Alpha, que é uma pequena casa de bebidas na esquina de uma das ruas que descem para Holborn. Holmes empurrou a porta do bar reservado e pediu dois copos de cerveja ao proprietário, que vestia um avental alvo ê tinha o rosto vermelho. — Sua cerveja deve ser excelente, se for tão saborosa como os seus gansos — disse Holmes. — Meus gansos! — O homem parecia surpreso. — Sim, ainda há meia hora estive conversando com o Sr. Henry Baker, que é membro do seu Clube do Ganso.

— Ah, sim, agora entendo. Mas, o senhor sabe, os gansos não são nossos. — Deveras? De quem são então? — Bem, eu encomendei duas dúzias a um vendedor do mercado de Covent Garden. — Ah, sim? Conheço alguns. A qual deles? — Breckinridge é o nome dele. — Ah! Não o conheço. Bem, à sua saúde, senhor, e prosperidade para a sua casa. Boa noite. "Agora vamos ao Sr. Breckinridge", continuou ele, abotoando o sobretudo, quando saíamos para o ar frígido. "Lembre-se, Watson, de que, embora tenhamos uma coisa tão doméstica como um ganso na extremidade de uma corrente, temos na outra um homem que pode merecer sete anos de prisão até que seja provada a sua inocência. É possível que nossas investigações aumentem a sua culpabilidade; todavia, temos uma pista que a polícia perdeu. Vamos para o lado sul, e depressa." Assim, atravessamos Holborn, descemos a Endell Street e entramos pelos cortiços do mercado de Covent Garden. Uma das maiores bancas tinha o nome de Breckinridge, e o proprietário, um homem grosseiro, de rosto pontudo e suíças, ajudava um rapaz a trancar as portas. — Boa noite. Está frio hoje — disse Holmes. O negociante confirmou com a cabeça e lançou um olhar rápido ao meu amigo. — Vejo que vendeu todos os gansos — continuou Holmes, apontando as mesas cobertas de mármore. — Posso vender-lhe quinhentos amanhã. — Isso não me adianta. — Bem, há ali alguns, na banca perto da lâmpada de gás. — Ah! Recomendaram-me que viesse ter com o senhor. — Quem? — O proprietário da Alpha. — Ah, sim, mandei-lhe duas dúzias. — Excelentes aves, aquelas. Onde as arranjou?

Para minha surpresa, a essa pergunta o homem ficou furioso e gritou: — Olhe, senhor! — Levantou a cabeça e pôs as mãos nos quadris, — O que é que o senhor quer saber? Diga-o diretamente. — Já disse. Gostaria de saber de quem comprou os gansos para a Alpha. — Não lhe respondo. Está perdendo tempo. — Oh, não é assim coisa de tanta importância; mas não sei por que o senhor ficou tão furioso. — Furioso! Você também ficaria furioso se tivesse tantos aborrecimentos como eu tenho tido. Quando pago bom dinheiro por um objeto, concluí um negócio e pronto. Mas ouvir a toda hora: "Onde estão os gansos?" "A quem vendeu os gansos?", e ainda "Quanto quer pelos gansos?" Até parece que são os únicos gansos do mundo, para se ouvir tanta conversa a respeito deles. — Bem, mas não tenho nada com as outras pessoas que lhe fizeram perguntas — disse Holmes desinteressadamente. — Se o senhor não quer dizer, desisto da aposta, é só isso, mas sempre aposto na minha própria opinião, e agora mesmo estava pronto a apostar que aquelas aves foram criadas no campo. — Bem, então o senhor perdeu sua aposta, porque foram criadas na cidade — rugiu o negociante. — Não acredito. — Digo-lhe que foram. — Não acredito. — O senhor pretende saber mais a respeito de galináceos do que eu, que cuido deles desde criança? Digo-lhe que todas aquelas aves vendidas para a Alpha foram criadas na cidade. — Nunca me convencerá disso. — Aposta, então? — É apenas para ganhar o seu dinheiro, porque sei que tenho razão, mas lá vai uma libra só para ensiná-lo a não ser tão obstinado. O vendedor riu-se. — Traga-me os livros, Bill — pediu ele. O rapazinho desenterrou um volume pequeno e outro maior, de capas ensebadas, e atirou-os ambos para debaixo da lâmpada.

— Agora, Sr. Presunçoso, vai ver que, além dos gansos, há muitas outras bestas neste mundo! Vê este livrinho? — Sim. — Aqui está a relação das pessoas de quem compro, está vendo? Bem, deste lado são pessoas do campo, e os números ao lado dos nomes são as contas do livro grande. Está vendo esta página a tinta vermelha!? Bem, são aqueles de quem

compro na cidade. Veja o terceiro nome. Leia-o para eu ouvir. — Sra. Oakshott, 117, Brixton Road... 249 — leu Holmes. — Muito bem. Agora abra o livro grande. Holmes abriu-o na página indicada. — Aí está, Sra. Oakshott, 117, Brixton Road, fornecedora de ovos e galináceos. — Agora, veja qual foi a última anotação. — Dezembro, 22. Vinte e quatro gansos, a sete xelins e seis pence cada. — Muito bem. E por baixo? — Vendidos ao Sr. Windigate, da Alpha, a doze xelins. — E agora que mais tem você a dizer? Sherlock Holmes parecia muito desgostoso. Tirou uma libra do bolso e atirou-a para cima do mármore, virando-se, como um homem aborrecido que não tinha mais nada a dizer. Uns metros adiante, parou debaixo do candeeiro da rua e riu-se a valer. — Quando vir um homem com uma barba daquelas e com um jornal sobre corridas no bolso, pode contar que ele aceitará uma aposta. Se eu lhe tivesse posto cem libras na mão, duvido que me tivesse dado informações tão completas quanto as que me forneceu só pela vontade de me vencer. Bem, Watson, creio que estamos chegando ao fim das nossas pesquisas. Resta decidir se devemos ir até a casa da sra. Oakshott hoje ou se é conveniente deixar isso para amanha. É evidente que, pelo que aquele malcriado disse, há outras pessoas ansiosas a respeito do mesmo assunto, e eu... Suas observações foram interrompidas por um tumulto que começou na banca de onde havíamos saído. Virando-nos, vimos um homem de cara fina como um rato, em pé, ao centro da claridade da luz amarela da lâmpada ali pendurada, enquanto Breckinridge, à porta da sua banca, o ameaçava com os punhos fechados. — Já estou farto de você e dos seus gansos — gritou ele. — O diabo os leve a todos! Venha outra vez com essa conversa fiada e solto o cão atrás de você. Traga a Sra.

Oakshott aqui e eu responderei a ela, mas a você? O que você tem com isso? Foi de você que comprei os gansos? — Não, mas um deles era meu, mesmo assim — choramingou o homem. — Então peça-o à Sra. Oakshott. — Ela mandou-me falar com o senhor. — Bem, pode pedir ao rei da Prússia, que não me incomodo. Já chega. Saia daqui. — E correu atrás do homem, que desapareceu na escuridão. — Ah, talvez este nos poupe uma viagem à Brixton Road — cochichou Holmes. — Vamos ver o que se pode saber deste camarada. A passos largos através da multidão, que ainda passeava no

meio das bancas, meu companheiro depressa alcançou o homenzinho e lhe tocou no ombro. Ele virou-se de repente, e notei à luz do gás que seu rosto ficou branco e sem um vestígio de sangue. — Quem é você? O que quer? — perguntou ele em voz trêmula. — Desculpe-me — disse Holmes suavemente —, mas não pude deixar de ouvir o que aquele vendedor lhe disse agora mesmo. Creio que posso ajudá-lo. — Você? Quem é você? Como pode saber qualquer coisa a respeito do negócio? — Meu nome é Sherlock Holmes, e é meu dever saber o que os outros não sabem. — Mas desse assunto não sabe nada. — Desculpe-me, mas sei de tudo. Pretende descobrir alguns gansos que foram vendidos pela Sra. Oakshott, da Brixton Road, a um vendedor chamado Breckinridge, e por sua vez ao Sr. Windigate da Alpha, e por ele aos membros do seu clube, de que o Sr. Henry Baker faz parte. — Oh! É justamente o senhor quem eu queria encontrar — disse o homenzinho com as mãos estendidas e os dedos trêmulos. — Não posso lhe dizer o grande interesse que tenho nesse assunto. Sherlock Holmes chamou um carro que ia passando e disse: — Nesse caso é melhor discutir o assunto numa sala quentinha, e não neste mercado frio. Diga-me, antes de mais nada, a quem tenho o prazer de ajudar? O homem hesitou um instante.

— Meu nome é John Robinson — respondeu ele com um olhar de soslaio. — Não, não, seu nome verdadeiro — disse Holmes afavelmente. — É sempre mais difícil conversar com alguém com um nome falso. O rosto dele enrubesceu. — Bem, então meu nome é James Ryder. — Precisamente. O guarda do Hotel Cosmopolitan. Tenha a bondade de subir para este carro e já lhe direi tudo quanto deseja saber. O homenzinho olhou de um para o outro de nós, entre assustado e esperançoso, como quem não sabe se está com sorte ou à beira de uma catástrofe. Pulou para dentro do carro e em meia hora estávamos de novo na sala da Baker Street. Não se falou durante a viagem, mas a respiração ofegante do nosso novo companheiro e o abrir e o fechar contínuo de suas mãos indicavam a tensão nervosa em que estava. — Aqui estamos! — disse Holmes alegremente. — Uma lareira é muito agradável neste tempo. Está com muito frio, Sr. Ryder. Por favor, sente-se naquela cadeira de verga. Vou calçar os chinelos antes que comecemos a tratar do seu assunto. Pronto. Então quer saber o que aconteceu àqueles gansos? — Sim, senhor. — Ou melhor, àquele ganso, não é? A ave em que, segundo penso, está interessado era branca, com uma lista preta no rabo. Ryder tremia de emoção. — Oh, senhor — gritou ele —, pode me dizer para onde foi? — Veio para cá. — Aqui? — Sim, era uma ave maravilhosa. Não me admira que o senhor tenha tanto interesse nela, visto que pôs um ovo depois de morta, o ovo mais bonito, brilhante e azul que jamais vi. Está aqui no meu museu. O homem cambaleou ao levantar-se e agarrou-se à lareira com a mão direita. Holmes abriu o cofre e ergueu o carbúnculo, que brilhava como uma estrela. Ryder olhava para a pedra estonteado, não sabendo se deveria reclamá-la ou fingir que não a reconhecia. — Não adianta, Ryder, acabou-se a farsa; levante-se ou cairá na lareira. Ajude-o a sentar-se de novo, Watson. Não tem sangue suficiente para enfrentar a prisão. Dê-lhe umas gotas de conhaque. Agora parece um pouco mais vivo. Vamos lá, seu medroso! O homem olhava para seu acusador com um olhar cheio de medo.

— Tenho todos os elos na mão, e todas as provas de que posso precisar, portanto já não há muita coisa que me possa contar. Contudo, será bom que me conte esse pouco já, para que eu possa completar o caso. Você sabia, Ryder, desta pedra azul da condessa de Mocar? — Foi Catherine Cusack quem me falou dela — disse ele numa voz esganiçada pelo terror. — Ah, sim, a aia da condessa. Bem, a tentação de ficar com uma riqueza facilmente obtida foi demais para você, como já foi para homens melhores. Mas você não foi escrupuloso no modo de obtê-la. Parece-me, Ryder, que há material bastante em você para um refinado patife. Você sabia que aquele

Horner, o encanador, já tinha algum delito anterior e que a suspeita cairia mais facilmente sobre ele. O que fez então? Você e sua aliada Cusack arranjaram um trabaIhinho para Horner nos aposentos da condessa, e conseguiram que ele fosse chamado e ficasse sozinho lá. Depois, quando ele já havia ido embora, você forçou o porta-jóias, deu o alarme e mandou prender o pobre homem. Então... Ryder atirou-se para o tapete e agarrou os joelhos do meu companheiro. — Pelo amor de Deus, tenha dó! — gritou ele. — Pense no meu pobre pai! Em minha mãe! Despedaçar-lhes-ia o coração. Nunca cometi um delito antes. E nunca mais o farei. Juro-o sobre a Bíblia. Oh, não me deixe aparecer no tribunal. Por amor de Deus, não! — Sente-se na cadeira! — disse Holmes severamente. — Está muito bem. Agora rebaixa-se, mas não se incomodou com o pobre Horner, que está preso por um crime com que nem sequer sonhou. — Irei embora, Sr. Holmes, sairei do país, e, então, a acusação que recai sobre ele será nula. — Hum! Falaremos sobre isso. Vamos agora ouvi-lo contar a verdade toda. Como a pedra foi parar no papo do ganso, e como foi que o ganso chegou ao mercado? Diga-nos a verdade, porque só assim lhe restarão esperanças de escapar ao castigo. Ryder molhou os lábios secos com a língua. — Eu lhe direi como aconteceu, senhor — disse ele. — Depois de Horner ter sido preso, pareceu-me que seria melhor esconder a gema imediatamente, porque não sabia se a polícia se lembraria de dar uma busca no meu quarto e na minha pessoa. Não havia lugar seguro no hotel. Saí como se fosse cumprir uma ordem e dirigi-me à casa de minha irmã. Ela é casada com um homem chamado Oakshott e mora na Brixton Road, onde cria galináceos para o mercado. Cada homem que eu encontrava no caminho parecia-me ser policial ou detetive, e, apesar de estar uma noite de frio intenso, suava copiosamente quando cheguei à Brixton Road. Minha irmã perguntou-me o que é que eu tinha, visto estar tão pálido; mas eu lhe disse que estava impressionado com o furto da jóia no hotel. Depois fui ao quintal, fumei o cachimbo e pensei no que de melhor se

poderia fazer. "Tive, há tempos, um amigo com quem perdi o contato e que recentemente acabou de cumprir pena na penitenciária de Pentonville. Encontrei-o um dia por acaso, e ele me contou como os ladrões se desfazem dos objetos que roubam. Eu sabia que ele não me entregaria à justiça, por eu saber demais da sua vida particular; por isso resolvi ir diretamente aonde ele mora e contar-lhe o ocorrido. Ele me ensinaria como melhor dispor da gema em troca de dinheiro. Mas como consegui-lo sem ser preso? Lembrei-me das agonias que havia sofrido desde que saíra do hotel; a qualquer momento poderia ser revistado, e ali estaria a pedra, no bolso do meu colete. Estava encostado ao muro, olhando os gansos que me rodeavam, e subitamente veio-me uma ideia que poderia desafiar o melhor detetive que houvesse. "Minha irmã tinha me dito, algumas semanas antes, que me daria um ganso dos melhores para o Natal, e eu sabia que a oferta era certa. Então levaria o meu ganso para a casa de Maudsley, meu amigo, em Kilburn, e, no papo dele, a pedra. Havia um pequeno alpendre no quintal, e para trás deste enxotei um dos gansos, um branco, grande, com lista no rabo. Peguei-o e, abrindo-lhe o bico, enfiei-lhe a pedra pela garganta até onde pude chegar com o dedo. Senti a pedra descer até chegar ao papo. A ave bateu as asas e lutou para se livrar. Minha irmã veio saber o que havia, e quando me virei para lhe falar, o bruto soltou-se e foi para o meio das outras aves. "— O que estava fazendo àquela ave, Jim? — disse ela. "— Bem — respondi. — Você disse que me daria uma para o Natal, e eu estava apalpando-as para ver qual era a mais gorda. "— Oh! — exclamou ela —, já escolhemos uma e a separamos para você. O pássaro, é como lhe chamamos. É aquele branco ali. Há vinte e seis ao todo: um para você, um para nós, e duas dúzias para o mercado. "— Obrigado, Maggie — disse eu —, mas se lhe for indiferente, preferiria aquela ave em que peguei agora mesmo. "— Mas a outra pesa pelo menos três quilos a mais — disse ela —, e engordamo-la de propósito para você. "— Não faz mal, quero a outra. Vou levá-la agora. "— Oh, como quiser — disse ela, ofendida. — Qual é a que você quer então? "— Aquela branca, com a lista no rabo, que está no meio do bando. "— Muito bem, pode matá-la e levá-la. "Bem, fiz o que ela disse, Sr. Holmes, e levei a ave para Kilburn. Contei ao meu amigo o que tinha feito, pois simpatizava com ele; ele riu até se engasgar. Pegamos numa faca e abrimos o ganso. Meu coração derreteu-se, pois não havia sinal da pedra. Compreendi logo que tinha havido um grande engano. Deixei a ave, regressei à casa de minha irmã 'e fui apressadamente ao quintal. Já não havia mais nenhuma.

"— Onde estão elas, Maggie? — perguntei eu. "— Foram para o vendedor. "— Qual vendedor? "— Breckinridge, de Covent Garden.

"— Mas havia outra ave com lista no rabo além daquela que escolhi? "— Sim, Jim, havia duas com lista no rabo, e eu não via diferença entre elas. "Claro, percebi tudo e corri tão depressa quanto as pernas me podiam levar até a banca de venda de Breckinridge. "Mas ele já tinha vendido todas e não quis me dizer a quem as tinha vendido. Os senhores ouviram-no há pouco. Ele sempre me respondeu assim. Minha irmã acha que estou enlouquecendo, e às vezes acredito que é verdade. E agora, que sou um ladrão marcado sem nunca ter tocado na riqueza pela qual perdi a honra, Deus me ajude! Deus me ajude!" E chorou convulsivamente, com o rosto entre as mãos. Houve um longo silêncio, quebrado só pelo bater dos dedos de Sherlock Holmes sobre a mesa. Então meu amigo levantou-se e abriu a porta. — Saia! — exclamou ele. — O quê, senhor? Oh! Deus o abençoe! — Nem uma palavra mais, saia daqui! E não foi preciso dizer mais nada. Houve uma corrida e um estardalhaço na escada, um bater ruidoso da porta e o som de correria na rua. — Afinal de contas, Watson — disse Holmes, pegando o cachimbo —, não sou empregado da polícia para suprir suas deficiências. Se Horner estivesse em perigo, seria outra coisa, mas este cavalheiro não testemunhará contra ele e o caso se desvanecerá. Estou cometendo um crime em deixá-lo ir, mas salvo-lhe a alma. "Não fará outra igual. Está apavorado. Mande-o para a gaiola e fará dele um bandido para o resto da vida. Além disso, estamos numa época própria para perdoar. O acaso pôs no nosso caminho o mais singular e caprichoso problema, e sua solução é sua própria recompensa. Se quiser ter a bondade de tocar a campainha, doutor, começaremos outra investigação em que também uma ave terá o principal papel."

Sherlock Holmes

em:

O homem da boca torta

Por Sir Arthur Conan Doyle

PDF por ZOHAR ([email protected])

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O falecido Elias Whitney, reitor do Colégio Teológico de St. George, tinha um irmão, Isa Whitney, que era muito dado ao uso do ópio. O hábito aumentou, e fiquei sabendo que, devido a um capricho extravagante quando estava no colégio, depois de haver lido a descrição que De Quincey dá dos seus efeitos e sensações, impregnou fortemente o tabaco que usava com láudano, para ver se conseguia o mesmo resultado. Verificou, como tantos outros têm feito, que a prática é mais fácil de se adquirir do que de deixar, e continuou durante muitos anos a ser escravo da droga, tornando-se alvo do horror e do pesar de seus amigos e parentes. Parece que o vejo agora, o rosto amarelo e inchado, sobrancelhas caídas e as pupilas miudinhas, encolhido numa cadeira, verdadeiro naufrágio e ruína de um homem honrado. Uma noite, foi em junho de 1889, tocaram a campainha de minha casa, mais ou menos à hora em que a gente começa a bocejar, olha para o relógio e quer recolher-se à cama. Estremeci na cadeira. Minha mulher largou a costura em que estava ocupada e olhou-me desapontada. — Um cliente! — disse ela. — Vai ter de sair. Suspirei com enfado, porque havia poucos minutos que chegara do trabalho, após um dia atarefado. Ouvimos abrir a porta, algumas palavras apressadas e depois uns passos ligeiros pelo corredor. A porta da sala abriu-se, e uma senhora de vestido escuro e véu preto entrou. — Hão de me desculpar por vir incomodá-los tão tarde — começou a dizer, mas depois, perdendo repentinamente o controle, correu para onde minha mulher estava sentada e lançou-lhe os braços em redor do pescoço, chorando sobre seu ombro. — Oh! Estou tão aflita! — exclamou. — Preciso tanto que me ajude! — Por quê? — perguntou minha mulher, erguendo o véu da outra. — É Kate Whitney! Como me assustou, Kate! Não tinha idéia de que fosse você quando entrou. — Não sabia o que fazer, por isso vim diretamente ter com vocês. Era sempre assim, as pessoas aflitas procuravam minha mulher como os pássaros buscam o farol. — Fez bem em ter vindo. Agora vai tomar um copo de refresco e sentar-se confortavelmente para nos contar tudo, ou prefere que eu mande James para a cama? — Oh, não, não. Preciso do conselho do doutor e do seu auxílio também. É a respeito de Isa. Não voltou para casa nestes dois últimos dias. E tenho muito receio quanto ao local onde deve estar.

Era a primeira vez que ela nos falava da desgraça de seu marido, a mim como médico e à minha mulher como amiga de sempre e colega de escola. Procuramos acalmá-la e mostramos a nossa simpatia por meio de palavras de conforto. Perguntamos se não sabia onde estava o marido e se não nos seria possível levá-lo para casa. Parecia que sim. Ela tinha a certeza de que ultimamente, desde que o vício o atacara, ele tinha o hábito de ir a uma adega chinesa na parte leste da cidade, para ali utilizar o ópio. Mas já haviam passado mais de quarenta e oito horas, e ele sem dúvida continuava lá, deitado entre os homens mais baixos das docas, respirando aquele terrível veneno e dormindo sob seus efeitos. Tinha a certeza de que ele estava no Golden Bar, na Upper Swandam Lane. Mas o que poderia ela fazer? Como poderia ela, mulher jovem e tímida, ir a um lugar daqueles arrancar o marido do meio dos bandidos que o freqüentavam? Era essa a dificuldade, e sem dúvida havia apenas um recurso. Não poderia eu acompanhá-la àquele lugar? Então perguntei-lhe por que haveria ela de ir. Eu era médico da família, e, como tal, tinha influência sobre ele. Certamente seria mais bem sucedido se fosse sozinho. Prometi-lhe que o mandaria para casa num carro dentro de duas horas, se de fato ele estivesse no endereço que ela me dava. E assim, dez minutos depois, deixei minha boa poltrona e minha confortável sala de estar, e corri num carro em direção à parte leste da cidade, para um estranho empreendimento, conforme me parecia ser, mas que só pouco depois revelaria quão estranha era toda aquela situação. Não surgiram grandes dificuldades na primeira parte da aventura. A Upper Swandam Lane é uma viela perto da Ponte de Londres. Entre uma loja de roupas feitas, baratas, e uma casa de bebidas, seguindo por uma escadaria íngreme que levava a uma abertura ou buraco lá embaixo, como se fosse a entrada de uma verdadeira caverna, achei-me dentro do antro onde estava a pessoa que procurava. Mandei o cocheiro esperar, desci a escadaria gasta pelos pés dos infelizes bêbados que continuamente ali entravam e, à luz fraca de uma lanterna suspensa na porta, avancei e entrei num salão comprido, de teto baixo, com uma atmosfera pesada e cheia de fumaça de ópio como o porão de um navio de imigrantes. Através da fumaça podia ver os corpos que jaziam em posições fantásticas, ombros curvos, joelhos dobrados, cabeças atiradas para trás, os queixos suspensos, os olhares amortecidos que espiavam o recém-chegado. Na penumbra luziam, ora brilhantes, ora fracos, pequenos círculos de luz vermelha, conforme o veneno aceso se tornasse mais vivo ou apagado no buraco dos cachimbos. Quase todas as pessoas jaziam ali quietas, algumas murmuravam para si

próprias e outras falavam em voz baixa e monótona, ninguém se importando com a conversa do vizinho. Na extremidade da sala havia um pequeno braseiro com carvão aceso, ao lado do qual, sentado num banco de três pés, estava um velho alto, com o queixo pousado nas mãos, cotovelos sobre os joelhos, olhando fixamente o fogo. Quando entrei, um empregado malaio aproximou-se apressadamente e ofereceu-me um cachimbo e um suprimento da droga, indicando-me um dos beliches. — Obrigado, não vim para ficar — disse-lhe. — Deve estar aqui um amigo meu, o Sr. Isa Whitney, e eu preciso lhe falar. Houve um movimento e uma exclamação à minha direita e, espiando através da obscuridade, vi Whitney, pálido, desfigurado e despenteado, olhando para mim. — Meu Deus! É Watson — disse ele. Estava num estado lastimável de reação, com todos os nervos agitados. — Diga-me, Watson, que horas são? — Quase vinte e três horas. — De que dia? — De sexta-feira, 19 de junho. — Céus! Pensei que fosse quarta-feira. É quarta-feira. Por que pretende assustar-me? Encostou o rosto a um dos braços e começou a chorar convulsivamente. — Estou lhe dizendo que é sexta-feira. Há dois dias que sua mulher o espera. Você devia ter vergonha. — E tenho. Mas está enganado, Watson, estou aqui apenas há algumas horas. Fumei três pitadas, aliás, quatro... Já não sei quantas. Mas irei para casa. Não quero assustar Kate. Minha pobre Kate! Dê-me suas mãos. Trouxe um carro? — Sim, está à espera. — Então irei nele. Mas devo ter feito despesas aqui. Veja quanto é. Não estou muito bem, Watson, não consigo fazer nada sozinho. Passei pela ala de beliches contendo a respiração, para não absorver a fumaça da droga, à procura do chefe. Quando passei perto do braseiro, o homem alto que ali estava sentado puxou-me o casaco e, num tom de voz muito baixo, cochichou:

— Passe perto de mim e depois olhe para trás. Ouvi essas palavras distintamente e baixei o olhar. As palavras só podiam ter sido ditas pelo velho a meu lado, mas ele permanecia tão absorto como dantes, muito magro, muito enrugado, arcado pela idade, um cachimbo de ópio tombado entre os joelhos, como se tivesse caído devido à fraqueza dos dedos. Andei dois passos, olhei para trás e quase não pude me controlar e evitar um grito de admiração. Ele virara-se para que ninguém o pudesse ver a não ser eu. Seu corpo cresceu, as rugas desapareceram, os olhos

baços retomaram o brilho e ali sentado, perto do fogo e rindo da minha surpresa, estava alguém que não era outro senão Sherlock Holmes. Fez um leve sinal para que me reaproximasse dele e, virando-se para os companheiros outra vez, transformou-se novamente no homem trêmulo, caduco, de lábio caído. — Holmes! — cochichei. — O que faz você nesta caverna? — Fale o mais baixo possível, ouço perfeitamente. Se me fizer o favor de mandar embora aquele seu amigo bêbado, gostaria de conversar com você depois. — Já tenho um carro lá fora, — Então faça o favor de mandá-lo embora. Pode deixá-lo ir sozinho, pois parece mole demais para estar em condições de fazer desordem pelo caminho. Seria bom mandar também um bilhete à sua mulher, avisando-a de que vai me ajudar. Espere-me lá fora, dentro de uns cinco minutos estarei lá. Era difícil recusar; os pedidos de Sherlock Holmes eram sempre definidos, como se fossem ordens. Senti, aliás, que, colocando Whitney no carro, minha missão estava praticamente terminada e, além disso, não podia desejar coisa melhor do que associar-me ao meu amigo numa daquelas singulares aventuras que constituíam a condição normal da sua existência. Em poucos minutos havia escrito um bilhete à minha mulher e pago a conta de Whitney, que levei até o carro e vi seguir para casa em meio da escuridão reinante. Logo depois, um vulto decrépito emergiu da caverna do ópio e eu acompanhei Sherlock Holmes, que pelas ruas próximas continuava a andar de costas curvas e passos irregulares. Então, depois de olhar para trás,

endireitou-se e deu uma grande gargalhada. — Evidentemente, Watson — disse ele —, você pensa que adquiri ò vício de fumar ópio, além das demais pequenas fraquezas a respeito das quais, como médico, já me tem dado sua opinião. — Certamente, admirei-me muito de vê-lo ali. — Mas não mais do que eu quando o vi chegar. — Vim à procura de um amigo. — E eu atrás de um inimigo. — Um inimigo? — Um dos meus inimigos naturais ou, melhor, uma vítima natural. Enfim, Watson, estou realizando uma investigação admirável, e tenho esperanças de poder encontrar uma pista no meio dos murmúrios incoerentes desses bêbados, como já fiz no passado. Se fosse reconhecido nessa caverna não teria vida por mais de uma hora, porque já utilizei esse estratagema mais de uma vez, e o ignóbil Lascar, dono do negócio, jurou que há de se vingar de mim. Há um alçapão atrás daquele edifício, perto da esquina do cais de St. Paul, que poderia contar algumas histórias estranhas sobre o que ali se tem passado nas noites escuras. — O quê! Não pretende insinuar que sejam corpos? — Sim, corpos, Watson. Seríamos homens ricos se ganhássemos mil libras por cada pobre-diabo que tem encontrado a morte naquela caverna. É a mais vil armadilha de todo o cais, e receio que Neville St. Clair tenha entrado para nunca mais sair. Mas deve estar aqui a nossa carruagem. Colocou dois dedos indicadores entre os dentes e assobiou; um assobio semelhante respondeu à distância, seguido pelo barulho das patas de cavalos e o girar de rodas. — Agora, Watson — disse Holmes, enquanto uma carruagem se aproximava lançando dois túneis de luz áurea das suas lanternas laterais —, virá comigo, não? — Se posso ser útil... — Oh, um companheiro fiel é sempre útil, e um cronista, mais ainda. O meu quarto nos Cedros tem duas camas. — Nos Cedros? — Sim, é a casa do Sr. St. Clair. Hospedei-me lá enquanto faço as pesquisas.

— Onde é que fica, então? — Em Lee, no Kent; temos uma viagem de onze quilômetros à nossa frente. — Mas não estou entendendo nada. — É natural, mas daqui a pouco saberá tudo a respeito do caso. Vá, suba! Está bem, John, não precisamos mais de você, tome esta gorjeta. Procure-me amanhã à uma hora. Largue a cabeça do animal. Até logo.

Estalou o chicote, e passamos apressadamente através da sucessão infinda de ruas sombrias e desertas, que se alargavam gradualmente, até que atravessamos uma ponte larga, com balaústres, sob a qual corria uma água suja e vagarosa. Em seguida, outra grande extensão de casas, onde o silêncio era violado apenas pelos passos irregulares do policial que fazia a ronda. Nuvens escuras atravessavam o céu, deixando entrever apenas uma ou duas estrelas. Holmes guiava o carro em silêncio, com a cabeça baixa e a fisionomia de quem está perdido em suas próprias meditações, enquanto, ao lado dele, eu me sentia curioso por

saber quais eram essas novas investigações que pareciam exigir toda a concentração dos seus pensamentos. Havíamos andado alguns quilômetros e estávamos chegando à beira das vilas suburbanas, quando ele encolheu os ombros e acendeu o cachimbo, como quem está satisfeito por agir do melhor modo possível e com bom resultado. — Você tem um dom formidável, Watson: o silêncio — disse ele —, o que faz de você um companheiro de inestimável valor. Palavra, é bom ter alguém com quem não seja obrigatório manter conversa, porque nem sempre os pensamentos são dos mais agradáveis. Estava pensando no que direi a essa mulherzinha tão boa quando ela me vir à porta. — Esquece-se de que não sei nada dos fatos! — Terei o tempo necessário para lhe contar tudo por alto antes de chegarmos a Lee. A simplicidade do caso parece ridícula, todavia não há forma de encontrar a menor pista. Há muitas constatações, sem dúvida, mas ainda não pude descobrir a ponta da meada; vou lhe contar o caso concisamente,

Watson, e talvez você vislumbre qualquer luz onde para mim é tudo escuro. — Conte então. — Há alguns anos atrás, precisamente em maio de 1884, veio para Lee um cavalheiro de nome Neville St. Clair, que parecia rico. Arranjou uma grande casa, cultivou muito bem os terrenos e vivia de maneira elegante. Travou relações na vizinhança e finalmente casou-se com a filha de um fabricante de cerveja local, com quem teve dois filhos. Não trabalhava, mas tinha interesses em diversas companhias, e por isso ia a Londres todas as manhãs, voltando da Cannon Street no trem das dezessete e catorze todas as tardes. O Sr. St. Clair tem agora trinta e sete anos de idade, é homem de hábitos temperados, bom marido, pai bondoso, e todos o apreciam. Suas dívidas, atualmente, não ultrapassam oitenta libras e dez xelins, e tem um capital a seu crédito de duzentas e vinte libras no Capital and Counties Bank. Não há razão, portanto, para se pensar que tivesse dificuldades financeiras que o oprimissem. "Na segunda-feira passada o sr. Neville St. Clair foi para a cidade um pouco mais cedo que de costume, alegando que tinha duas missões importantes a realizar e que no regresso traria uma caixa de jogos para os filhinhos. Acontece que, por mera coincidência, sua mulher recebeu um telegrama dizendo que um pacotinho de valor inestimável, que ela esperava, estava à sua disposição nos escritórios da Companhia de Navegação de Aberdeen. Ora, saiba que esses escritórios ficam na Fresno Street, que se ramifica com a Upper Swandam Lane, onde me encontrou esta noite. A Sra. St. Clair almoçou, foi à cidade, fez algumas compras e depois seguiu para os escritórios da companhia, onde apanhou o pacote e, justamente às dezesseis horas e trinta e cinco minutos, encontrava-se na Swandam Lane, a caminho da estação. Compreendeu bem?" — Sim, perfeitamente. — Não sei se se recorda que segunda-feira foi um dia excessivamente quente, e a Sra. St. Clair andava devagar, olhando de um lado para outro na esperança de arranjar um carro, porque não gostou nada do local onde se encontrava. Ao descer à Swandam Lane, ouviu de repente uma exclamação ou grito e gelou ao ver seu marido, que, ao que parecia, fazia-lhe sinais para que fosse ao segundo andar da casa onde ele se encontrava. A janela estava aberta, e pôde ver-lhe distintamente o rosto, que, diz ela, parecia estar muito agitado. Acenou-lhe freneticamente e depois desapareceu da janela tão rapidamente como se tivesse sido agarrado por trás por uma mão invisível. Numa coisa ela reparou com sua intuição de mulher: que, embora o marido estivesse vestido com o

terno escuro com que saíra de casa, estava sem colarinho nem gravata. Convencida de que algo havia acontecido, desceu rapidamente as escadas, porque a casa não era outra senão a caverna onde me encontrou, e, correndo pela sala da frente, experimentou subir as escadas até o primeiro andar, quando encontrou o canalha do Lascar, de quem já lhe falei, que a puxou para trás e, ajudado por um dinamarquês que é ali ajudante, empurrou-a para a rua. Cheia dos mais enlouquecidos receios, ela correu rua abaixo e, por sorte, na Fresno Street, encontrou um inspetor e diversos policiais que se dirigiam às suas rondas. "O inspetor e dois policiais acompanharam-na, e, apesar da resistência do proprietário, dirigiram-se ao lugar onde o Sr. St. Clair fora visto pela última vez. Não havia sinais dele. De fato, em todo aquele andar não havia ninguém, a não ser um aleijado de aspecto hediondo, que parecia lá morar. Tanto este como Lascar juraram que ninguém havia estado na sala da frente naquela tarde, e tão decisiva era sua negativa que o inspetor teve dúvidas e quase chegou a crer que a Sra. St. Clair tivesse se enganado. De repente, com um grito, ela apanhou uma caixinha de pinho que estava sobre a mesa e arrancou-lhe a tampa. Dela caíram cubinhos de brinquedo. Era a caixa que ele prometera levar para casa. "Esta descoberta e a confusão em que o aleijado ficou fez ver ao inspetor que a coisa era séria. Todos os aposentos da casa foram cuidadosamente examinados, e os resultados indicavam um crime abominável. "A sala da frente estava mobiliada como uma sala de estar e dava entrada para um pequeno quarto que se abria para os fundos de um dos cais. Entre o cais e a janela do quarto há uma estreita passagem, que na vazante fica seca, mas que se cobre de água na enchente, pelo menos com um metro e trinta de água. A janela do quarto era larga e abria-se por baixo. Quando o peitoril foi examinado, foram descobertos sinais de sangue no assoalho do quarto. Atiradas para trás de uma cortina na sala da frente, estavam todas as roupas do Sr. St. Clair, menos o casaco; a não ser isso, não havia outro sinal do homem. Ele passara pela janela, sem dúvida, porque não havia outra saída que se pudesse descobrir, e as numerosas manchas de sangue sobre o peitoril davam poucas esperanças de que pudesse ter escapado a nado, dado que a maré estava muito alta no momento da tragédia. "E, agora, vejamos os canalhas que parecem os mais implicados no caso. Esse Lascar era conhecido como um homem com os mais vis antecedentes, mas, pelas declarações da Sra. St. Clair, sabe-se que ele estava ao pé da escadaria momentos após a aparição de seu marido, sendo portanto provável que seja apenas um comparsa do crime. Defendeu-se, dizendo ignorar tudo, e

protestou que não sabia nada do que fazia seu inquilino Hugh Boone, e que não podia fazer declarações a respeito da roupa do cavalheiro desaparecido. "Quanto ao gerente Lascar, basta. Agora falemos do sinistro aleijado que mora no segundo andar e cujos olhos foram os últimos que viram Neville St. Clair. O nome dele é Hugh Boone, e seu rosto hediondo é conhecido por todos os que freqüentam a City. É mendigo profissional, embora, para evitar a violação dos regulamentos policiais, finja ser vendedor de velas de cera. A pouca distância da Threadneedie Street, do lado direito, há, como você já reparou, um pequeno ângulo no muro. Ali é que ele se senta todos os dias, de pernas cruzadas, com seu pequeno estoque de fósforos no colo, e, como se trata de uma criatura lastimável, uma pequena chuva de níqueis de caridade cai no boné sujo que jaz à sua frente, na calçada. Já tinha reparado naquele sujeito mais de uma vez, muito tempo antes de o ver como ajudante profissional, e fiquei surpreendido da colheita que faz em tão pouco tempo. Sua aparência, como verá, é tão extraordinária que ninguém pode passar sem o notar. Um tufo de cabelo amarelo, o rosto desfigurado por uma cicatriz horrível, que, pelas contrações, lhe fez subir o canto do lábio superior, queixo de buldogue, olhos escuros e penetrantes, que contrastam com a cor dos cabelos, tudo faz com que se destaque da multidão vulgar dos mendigos, bem como pela astúcia, porque tem sempre uma resposta pronta para qualquer pilhéria que se lhe diga ao passar. Eis o homem que era inquilino da caverna de ópio e a última pessoa que viu o cavalheiro que procuramos." — Mas, um aleijado? — perguntei eu. — O que poderia ele ter feito sozinho contra um homem no vigor da idade? — É aleijado porque coxeia, mas fora disso parece ser um homem forte e bem-constituído. Sua experiência de médico, Watson, com certeza lhe dirá que a fraqueza de um membro é freqüentemente compensada nos outros por uma força excepcional. — Peço-lhe o favor de continuar sua narrativa. — A Sra. St. Clair desmaiara ao ver o sangue no peitoril; um policial a acompanhou até o carro e ela foi para casa, porque sua presença em nada ajudaria as pesquisas. O inspetor Barton, a cuja responsabilidade foi entregue o caso, fez um exame minucioso do edifício, mas sem descobrir coisa alguma que elucidasse o caso. Foi um grande erro não terem prendido Boone naquela ocasião, porque houve uns minutos durante os quais pôde se comunicar com

seu amigo Lascar; porém o erro foi logo remediado: foi preso, embora não se tenha encontrado nada que possa incriminá-lo. "Havia, é verdade, algumas manchas de sangue na manga direita da camisa, mas ele apontou para o seu dedo anular, que fora cortado perto da unha, e explicou que o sangue viera dali, formando as manchas que vimos, pois, poucos momentos antes, estivera à janela. Negou ter visto Neville St. Clair e disse que o fato de a roupa deste estar no seu quarto era tão misterioso para ele quanto para a polícia. E, quanto ao fato de a Sra. St. Clair ter visto o marido à janela, ou estava doida ou sonhava. Levaram Boone, protestando em altos berros, para o posto policial, enquanto o inspetor permanecia no local para ver se a vazante traria alguma pista nova. E trouxe, porque, embora não tivessem encontrado na lama da margem do rio o que receavam encontrar, foi o casaco de Neville St. Clair e não o corpo dele que apareceu no baixar da maré. E o que foi que lhe encontraram nos bolsos?" — Não posso imaginar. — Não, não acertaria. Todos os bolsos estavam cheios de moedas, pennies e half-pennies... quatrocentos e vinte e um pennies e duzentos e setenta half-pennies. Não era de admirar que a maré não o tivesse levado. Mas um corpo é diferente. Há uma forte corrente entre o cais e o edifício. É possível que o casaco tenha permanecido enquanto o corpo era sugado pelo rio. — Disse-me que as outras roupas foram encontradas no quarto. Será que o corpo estava vestido somente com o casaco? — Não, mas os fatos podem ser explicados com um pouco de reflexão. Se esse homem, Boone, lançou Neville St. Clair através da janela, não haveria olhares humanos que pudessem ter visto o ato? Que fez ele então? "Lembrou-se imediatamente de fazer desaparecer as roupas comprometedoras. Pegou então o casaco, mas, quando ia atirá-lo fora, lembrou-se de que boiaria, em vez de se afundar. Teve pouco tempo, porque ouviu o barulho, quando a esposa se esforçava por subir, e talvez já tivesse sido avisado por Lascar da chegada da polícia. Não podia perder um instante. Foi ao depósito secreto de dinheiro que acumulara como resultado da sua mendicidade. Pegou tantas moedas quantas pôde e meteu-as no bolso para que o casaco afundasse. Lançou-o fora e teria feito o mesmo às roupas se a polícia não tivesse chegado, dando-lhe apenas tempo para fechar a janela." — É muito acertada essa idéia. — Bem, daí podemos formar uma hipótese, à falta de melhor. Boone foi preso, mas nada pôde ser provado contra ele. Há muitos anos é conhecido como mendigo profissional, cuja vida parece decorrer calma e inocente. "Aqui terminam as investigações, e o que falta saber é a razão pela qual Neville St. Clair estava ali, onde se encontra agora, e que papel teve esse Hugh Boone no seu desaparecimento. Tudo isso está, como no início, muito

longe de uma solução. Confesso que não me recordo de nenhum caso que no princípio se afigurasse tão simples e que no final apresentasse tantas dificuldades." Enquanto me narrava essas coisas, passamos rapidamente por uma cidade grande, e agora atravessávamos um caminho ladeado de sebes. No momento em que ele acabava de contar o caso, havíamos passado por duas aldeias. — Estamos nos limites de Lee — disse o meu companheiro. — Atravessamos três condados ingleses nesta curta viagem; começamos por Middlesex, cortamos Surrey e terminamos no Kent. Está vendo aquela luz entre as árvores? Ali ficam os Cedros, e ao lado daquela luz está sentada uma senhora cujos ouvidos aflitos já sentiram, sem dúvida, o tinir das ferraduras do nosso cavalo. — Mas por que não trata do caso na Baker Street? — perguntei-lhe. — Porque é preciso que se façam muitas investigações aqui. A Sra. St. Clair, amavelmente, pôs ao meu dispor dois quartos, e você pode estar certo de que ela dará cordiais boas-vindas a um amigo e colega meu. Temo encontrá-la sem ter notícias a dar-lhe a respeito do marido. Aqui estamos. Alto! Alto! Parou o carro em frente de uma casa de campo cercada pelos prados que lhe pertenciam. Um rapaz, ajudante de cocheiro, correu para pegar na cabeça do cavalo, e, de um pulo, segui Holmes pela estreita vereda que conduzia à casa. Ao chegarmos à porta, esta abriu-se, e apareceu uma senhora loura, trajando um vestido caseiro leve, enfeitado com filó cor-de-rosa na gola e nos punhos. Ficou ali, uma mão segurando a porta e a outra meio suspensa, aflita, o corpo inclinado, olhos vivos e lábios entreabertos. — Bem? — exclamou ela. — Está bem? E então, vendo que éramos dois, deu um grito de esperança, que terminou num gemido, quando reparou que meu amigo sacudia a cabeça e encolhia os ombros. — Não traz boas notícias? — Nenhuma. — E más? — Não. — Graças a Deus por isso. Mas entrem. Devem estar cansados, pois tiveram um dia longo e fatigante. — Este é o meu amigo, o Dr. Watson. Tem sido de vital utilidade em vários dos meus assuntos e, por um acaso feliz, fez o possível por me acompanhar e se associar às investigações.

— Estou contente por vê-lo — disse ela, dando-me um aperto de mão caloroso. — O doutor há de desculpar qualquer falta aqui em casa, considerando o golpe que tão repentinamente sofremos. — Senhora — declarei eu —, sou um velho soldado, e mesmo que não o fosse, vejo que não há necessidade de desculpas. Se for possível ajudá-la, ou a este meu amigo, ficarei deveras contente. — Agora, Sr. Sherlock Holmes — disse a senhora enquanto entrávamos para a sala de estar, onde, sobre a mesa, já estava posta uma ceia fria —, gostaria de lhe fazer duas perguntas bem claras, e peco-lhe que me dê também respostas claras. — Certamente, senhora. — Não faça caso dos meus sentimentos, não sofro de histerismo nem costumo desmaiar, só quero ouvir sua verdadeira opinião. — Sobre que ponto? — No fundo do seu coração, acha que Neville esteja ainda vivo? Sherlock Holmes ficou embaraçado com a pergunta. — Honestamente — disse ela, pondo-se de pé e olhando para ele. — Então, senhora, francamente, não. — Pensa então que está morto? — Sim. — Assassinado? — Não digo tanto. Talvez. — Em que dia morreu ele? — Segunda-feira. — Então, Sr. Holmes, faça o favor de me explicar: como é que recebi esta carta dele hoje? Sherlock Holmes pulou da cadeira como se tivesse recebido um choque

elétrico. — O quê? — bradou. — Sim, hoje. E, rindo, agitou um pedaço de papel. — Posso vê-lo? — Certamente. Ansioso, pegou o, papel e, alisando-o sobre a mesa, puxou o candeeiro para mais perto e examinou-o bem. Abandonei minha cadeira e olhei para o papel por sobre o ombro do meu amigo. O envelope era comum e trazia o carimbo de Gravesend com a data daquele dia, ou, melhor, com a do dia anterior, porque já passava da meia-noite. — Caligrafia grosseira! — murmurou Holmes. — Certamente essa não é a letra do seu esposo, senhora. — Não, mas a que está dentro, é. — Seu nome, veja, está escrito com tinta muito preta, que secou. O resto é de cor cinzenta, o que demonstra que foi usado um mata-borrão. Se tivesse escrito tudo de uma vez e usado o mata-borrão, ficaria igual. A pessoa escreveu o nome e parou antes de escrever o endereço, o que quer dizer que não estava familiarizada com ele. É uma insignificância, claro, mas não há nada tão importante como as pequenas coisas. Vamos ver a carta agora. Ah, havia mais alguma coisa dentro? — Sim, havia um anel. O seu anel de sinete. — E a senhora tem a certeza de que essa letra é de seu marido? — Tenho. É a sua caligrafia quando escreve às pressas. É muito diferente da letra habitual; todavia, conheço-a bem. "Minha querida, não tenha medo. Tudo correrá bem. Tem havido um grande engano que levará algum tempo para ser retificado. Espere com paciência. Neville." Estava escrita numa folha branca de um livro, formato 8. — Hum! Foi colocada no correio hoje por um homem com o polegar sujo. Ah, passaram cola na dobra, e, se não me engano, foi um homem que masca tabaco. E a senhora não tem dúvidas de que a letra seja de seu marido? — Nenhuma dúvida. Neville escreveu essas palavras. — E foi posta hoje em Gravesend. Bem, Sra. St. Clair, as nuvens estão menos escuras, embora eu

não ache que o perigo já tenha passado. — Mas ele deve estar vivo, Sr. Holmes. — A não ser que isso seja um grande truque para nos fazer perder a pista. O anel, afinal de contas, não quer dizer nada. Pode ter sido roubado. — Não, não, a letra é mesmo dele. — Muito bem; ela deve ter sido escrita no domingo, mas foi enviada hoje. — Isso é possível? — Se for, muita coisa poderá ter acontecido desde então. — Oh, não deve desencorajar-me, Sr. Holmes. Estou certa de que tudo corre bem, pois existe tal afinidade entre nós dois, que eu logo saberia se algo de mau lhe acontecesse. No mesmo dia em que o vi pela última vez, ele cortou-se no quarto, mas eu saí da sala e subi às pressas, com a intuição de que havia acontecido qualquer coisa. O senhor acredita que eu, que me preocupei com uma coisa assim tão pequena, não haveria de sentir se ele tivesse morrido? — Minhas muitas experiências me impedem de desprezar as intuições femininas; são de mais valor do que as conclusões de um investigador analítico. E com esta carta, certamente a senhora tem fortes razões que corroboram o seu ponto de vista. Mas se seu marido está vivo e pôde escrever-lhe, por que permanece ausente? — Não posso imaginar o motivo. — Na segunda-feira não disse nada antes de sair? — Não, nada. — E a senhora ficou surpresa ao vê-lo na Swandam Lane? — Muitíssimo. — A janela estava aberta? — Sim. — Um grito de socorro, foi o que pensou? — Sim. Ele chamou com as mãos. — Mas poderia ter sido um grito de surpresa. A admiração por vê-la ali podia tê-lo feito levantar as mãos. — É possível.

— E pareceu-lhe que alguém o tivesse puxado para trás? — Desapareceu tão repentinamente!... — Podia ter pulado para trás. Não viu mais ninguém? — Não, mas aquele homem horrível confessou que se encontrava ali e Lascar estava ao pé da escada. — Muito bem. Pelo que pôde ver de seu marido, ele estava com a roupa habitual. — Menos a gravata e o colarinho. Vi distintamente o pescoço. — Ele jamais lhe falou na Swandam Lane? — Nunca. — Muito obrigado, Sra. St. Clair. São esses os pontos principais sobre os quais desejava estar bem esclarecido. Algumas vezes deu sinais de ter tomado ópio? — Nunca. — Bem, agora vamos comer qualquer coisa, depois, para a cama; é provável que amanhã tenhamos um dia cheio. Um quarto com duas camas estava à nossa disposição; meti-me logo entre os lençóis, pois estava fatigado após essa noite de aventuras. Sherlock Holmes, todavia, era um homem que, enquanto tinha um problema para resolver, passava dias, até semanas, sem descansar, reajustando os fatos, estudando o caso sob todos os pontos de vista, até que se convencesse de que os dados que possuía eram suficientes. Pareceu-me que ia ficar ali sentado a noite toda; tirou o casaco, o colete, vestiu um roupão e andou pelo quarto, tirando os travesseiros da cama e as almofadas do sofá e das cadeiras. Com estas, fez uma espécie de divã oriental sobre o qual se sentou, cruzando as pernas, com uma onça de tabaco e uma caixa de fósforos ao lado. À luz mortiça, vi-o sentado com o cachimbo na boca, olhando para o teto e fazendo subir os caracóis de fumaça azul. Caí no sono e acordei com o

sol de verão iluminando o apartamento. Estava tudo como quando adormeci, menos o tabaco, que ele havia consumido todo. — Está acordado, Watson? — perguntou. — Estou. — Com ânimo para um passeio matinal? — Certamente. — Então vista-se. Não há nenhum movimento ainda, mas sei onde dorme o cocheiro; num instante estaremos prontos. Riu para si mesmo enquanto falava, seus olhos brilhavam, e ele parecia outro, sem vestígios daquele homem sombrio da noite anterior. Ao vestir-me, olhei o relógio. Não era de admirar que ninguém estivesse de pé ainda, eram apenas quatro e vinte e cinco. Mal havia acabado de me vestir quando Holmes voltou dizendo que o rapaz estava atrelando o cavalo. — Quero experimentar uma teoria minha — disse, calçando as botas. — Creio, Watson, que você hoje se encontra na presença de um dos maiores idiotas da Europa. Mereço ser obrigado a voltar para Charing Cross a coices. Mas suponho que tenho agora a chave do problema. — E onde está ela? — perguntei, rindo. — No banheiro — respondeu ele. — É verdade, não estou brincando — disse, vendo o meu olhar de incredulidade. — Fui até lá agora, apanhei-a e coloquei-a na minha mala. Vamos, rapaz, e vejamos se serve para abrir a fechadura. Descemos tão depressa quanto era possível e saímos. Lá estava a nossa carruagem. Entramos e logo iniciamos a viagem para Londres. Algumas carroças, levando verduras para a cidade, já se movimentavam, mas as casas estavam fechadas e silenciosas como se fossem de sonho. — Sob alguns aspectos, este é um caso singular — disse ele enquanto fustigava o cavalo com o chicote, até fazê-lo galopar. — Confesso que tenho estado tão cego como uma toupeira, mas é melhor aprender tarde a ser sábio do que nunca o conseguir. Na cidade algumas pessoas sonolentas já olhavam pelas janelas, do lado de Surrey. Passando pela Ponte de Waterloo, atravessamos o rio e, subindo a Weilington Street, fizemos uma curva fechada e encontramo-nos na Bow Street. Sherlock Holmes era muito conhecido da força policial, por isso dois policiais que estavam à porta o saudaram; um deles segurou o cavalo enquanto o outro nos levou para dentro. — Quem está de serviço? — perguntou.

— O inspetor Bradstreet, senhor. — Olá, Bradstreet, como vai? Um oficial alto e forte vinha pelo corredor. — Quero falar-lhe, Bradstreet. — Pois não, Sr. Holmes. Venha até o meu gabinete. Era uma sala pequena, com um enorme arquivo e um telefone na parede. O inspetor sentou-se à secretária. — Em que lhe posso ser útil, Sr. Holmes? — Vim para lhe falar a respeito daquele mendigo, Boone, aquele que foi acusado de estar implicado no desaparecimento do Sr. Neville St. Clair, de Lee. — Sim, está detido até serem feitas mais investigações. — Assim ouvi dizer. Está aqui? — Na cela. — É calmo? — Oh, sim, não dá trabalho, mas está imundo, é difícil conseguir que lave as mãos e o rosto. Está tão sujo como um caldeirão; porém, quando o caso for resolvido, tomará um bom banho de prisão. Penso que o senhor concordaria comigo se o visse. — Gostaria muito de vê-lo. — É muito fácil. Venha por aqui. Deixe aí a sua pasta. — Não, prefiro levá-la. — Muito bem. Venha por aqui, faça o favor. — Levou-nos por um corredor, abriu uma porta, que estava trancada, desceu uma escada em espiral, e entramos por outro corredor, bem-caiado, com uma fila de portas de cada lado. — Aqui está — disse, enquanto puxava para trás um painel na parte superior da porta e olhava para dentro.

— Ele está dormindo, mas o senhor pode vê-lo muito bem.

Olhamos pela grade. O homem estava com o rosto virado para o nosso lado, dormindo e respirando pesadamente. Era de estatura mediana, estava malvestido e extremamente sujo. A cicatriz de uma velha ferida vinha do olho até o queixo, suspendendo assim o lábio superior num canto por onde apareciam três dentes, como se quisesse rosnar a toda hora. Um monte de cabelo avermelhado cobria-lhe quase totalmente a testa. — É bonito, não é? — perguntou o inspetor. — Certamente precisa se lavar — disse Holmes. — Tive uma idéia do que precisávamos e tomei a liberdade de trazer os aparelhos necessários para isso. — Abriu a mala e tirou, com grande surpresa minha, uma enorme esponja.

— Ah! Ah! O senhor é formidável — riu o inspetor. — Agora, se o senhor tiver a bondade de abrir essa porta devagarinho, depressa o faremos apresentar-se como gente. — Bem, não vejo por que não — disse o inspetor. — Ele não é grande recomendação para as celas da Bow Street. Meteu a chave na porta e todos nós entramos muito devagarinho na cela. O homem virou-se e caiu novamente em sono profundo. Holmes molhou bem a esponja no jarro de água e depois esfregou com força, de baixo para cima, todo o rosto do prisioneiro. — Deixem-me apresentar-lhes o Sr. Neville St. Clair, de Lee, no condado de Kent. Nunca vi tal coisa. O rosto do homem descascou-se sob a esponja como a casca de uma árvore. Foram-se a tinta, a cicatriz e a boca torta, que lhe davam

um ar tão repulsivo. Um puxão fez sair o cabelo vermelho, e, sentado na cama, apareceu um homem pálido, mas de fisionomia delicada e triste, de cabelos pretos e pele limpa, esfregando os olhos e olhando ao redor, desnorteado. Então, subitamente, compreendendo o escândalo, gritou e atirou-se para cima do leito, o rosto contra o travesseiro. — Céus! — gritou o inspetor. — É o homem que está sendo procurado. Conheço-o pelo retrato. O prisioneiro virou-se, como quem se abandona ao seu destino. — Que seja! — disse ele. — De que sou acusado? — Do desaparecimento do Sr. Neville St. Clair. Oh! Você não pode ser acusado disso, a não ser que digam que é tentativa de suicídio — disse o inspetor com um sorriso. — Bem, há vinte e sete anos que estou na força policial e nunca vi caso semelhante. É o cúmulo. — Se sou o Sr. Neville St. Clair, é óbvio que não se cometeu crime algum e que estou detido ilegalmente. — Nenhum crime, mas um grande erro — disse Holmes. — Teria feito melhor se confiasse em sua esposa. — Não era só a esposa, eram os filhos — gemia o prisioneiro. — Deus me ajude, não queria que eles ficassem envergonhados do pai. Deus meu! Que vergonha! Que posso fazer? Sherlock Holmes sentou-se a seu lado na cama e bateu-lhe levemente nos ombros. — Se deixar que o tribunal de Lee esclareça o caso, não pode evitar a publicidade. Por outro lado, se puder convencer as autoridades policiais de que não há crime contra o senhor, não vejo de que maneira os pormenores possam sair nos jornais. O inspetor Bradstreet, tenho a certeza, tomará nota das suas declarações e submetê-las-á às autoridades competentes. E o caso não irá a nenhum tribunal. — Deus o abençoe — exclamou o homem. — Eu agüentaria a prisão e até a execução para evitar que meu segredo miserável caísse como uma mancha sobre meus filhos. O senhor é o primeiro que ouve a minha história! Meu pai era professor em Chesterfield, onde recebi boa educação. Viajei durante a mocidade e trabalhei no palco. Finalmente, tornei-me repórter de um jornal

vespertino de Londres. Um dia meu editor precisou de uma série de artigos sobre a mendicidade na metrópole e eu me ofereci para a tarefa. E só tornando-me mendigo amador poderia obter os fatos em que basear meus artigos. Quando era ator, havia aprendido todos os segredos da maquilagem e fiquei famoso devido à minha habilidade. Procurei tirar vantagem disso; pintei o rosto e, para ficar tão deplorável quanto possível, arranjei uma boa cicatriz e entortei um dos lábios com o auxílio de uma tira de adesivo. Depois pus o cabelo postiço e vesti-me de acordo. Tomei então posição num dos lugares de maior movimento da City, como vendedor de fósforos, mas realmente era um mendigo. Durante sete horas fiquei no meu lugar, e quando voltava para casa, à tardinha, descobri, para minha surpresa, que já havia recebido nada menos que vinte e seis xelins e quatro pence. Escrevi os meus artigos e não pensei mais no ocorrido até que, dias depois, avalizei uma nota promissória para um amigo, que foi protestada. Teria de pagar vinte e cinco libras. Não sabia para onde me virar a fim de obter o dinheiro, quando me lembrei de repente de uma coisa. Pedi quinze dias de prorrogação aos credores e uma licença aos patrões, e passei o tempo mendigando na City, com o meu disfarce. Em dez dias obtive o dinheiro e paguei a dívida. "O senhor deve imaginar como era difícil voltar à rotina cotidiana do trabalho ganhando duas libras por semana, quando sabia que poderia ganhar isso num só dia com a minha máscara. Custou-me abater o orgulho, mas o dinheiro venceu e deixei o jornalismo; sentava-me dia após dia no canto que havia escolhido, com aquela cara medonha, causando dó, e enchia os bolsos de níqueis. Só um homem sabia do meu segredo. Era o dono da caverna de ópio onde eu me alojava na Swandam Lane, e de onde emergia todas as manhãs como mendigo sujo, transformando-me à tarde num homem de bem. Pagava-lhe regiamente como inquilino; assim, sabia que meu segredo estava seguro com Lascar. Bem, descobri logo que estava ganhando bastante dinheiro. Isso não quer dizer que um mendigo nas ruas de Londres possa ganhar setecentas libras por ano... mas eu tive vantagens excepcionais devido à minha maquilagem e também a uma facilidade de respostas prontas que melhorou com a prática e que me tornou conhecido na City. Continuava a ganhar uma chuva de moedas, e às vezes mesmo uma moeda de prata, e era um mau dia quando não recebia duas libras. "Enquanto enriquecia, a ambição aumentava. Consegui uma casa no campo e depois casei-me, sem que ninguém suspeitasse da minha verdadeira ocupação. Minha amada mulher sabia que eu trabalhava, porém mal poderia supor em que serviço. "Na segunda-feira passada, havia terminado o dia e estava me vestindo no meu alojamento por cima da caverna de ópio, quando olhei pela janela e vi, com horror e admiração, que minha mulher estava ali na rua, olhando fixamente para mim. Dei um grito de surpresa, ergui os braços para o rosto e, correndo para o meu confidente Lascar, roguei-lhe que não permitisse que ninguém subisse ali. Ouvi-lhe a voz lá embaixo, mas sabia que não podia subir. Novamente tirei a roupa e vesti as do mendigo, coloquei a cabeleira e pintei-me. Nem o olho penetrante de minha mulher poderia descobrir aquele disfarce. Lembrei-me de que talvez quisessem examinar o quarto e que a roupa me

trairia. Abri a janela e, com violência, reabri um corte que havia feito pela manhã no quarto. Peguei depressa o casaco, pesado devido às moedas que retirara do meu saco de couro onde levava os ganhos, e lancei-o pela janela, de onde caiu no Tamisa e logo desapareceu. O resto da roupa tê-lo-ia seguido, mas naquele momento houve uma correria de policiais pela escada e, poucos minutos depois, descobri para meu alívio que, em vez de ser identificado como Sr. Neville St. Clair, fui aprisionado como se fosse o assassino. "Não sei se há mais alguma coisa a explicar. Resolvi ficar com minha máscara o tempo que fosse possível, e por isso preferi continuar com o rosto sujo. Sabendo que minha mulher ficaria aflita, tirei o anel e confiei-o a Lascar num momento em que nenhum dos policiais estava olhando, juntamente com um bilhete, dizendo-lhe que não se preocupasse demasiado." — Esse bilhete só chegou às mãos dela ontem... — disse Holmes. — Santo Deus! Que semana horrível ela deve ter passado! — A polícia tem estado vigiando esse Lascar — disse o inspetor Bradstreet —, por isso imagino como lhe deve ter sido difícil enviar uma carta sem ser visto. Talvez a tenha entregue a qualquer freguês marinheiro, que a esqueceu durante alguns dias. — Foi isso — concordou Holmes. — Não tenho dúvidas. Diga-me, nunca foi multado por mendigar? — Muitas vezes, mas o que era uma multa para mim? — Contudo, terá de pagar agora — disse Bradstreet. — Se quer que a polícia não dê publicidade a este caso, Hugh Boone tem de acabar. — Já o jurei tão solenemente como um homem pode jurar. — Dessa forma, é provável que o caso não vá adiante. Mas se for encontrado outra vez, tudo terá de ser revelado. Estou certo, Sr. Holmes, de que não poderemos pagar os seus esforços no esclarecimento de todo o problema. Daria tudo para saber como chegou às suas conclusões. — Resolvi-o — disse o meu amigo — sentado sobre cinco travesseiros e fumando um pacote de tabaco. Calculo, Watson, que, se formos depressa para a Baker Street, encontraremos o almoço pronto.

Sherlock Holmes

em:

O mistério do Vale Boscombe Por Sir Arthur Conan Doyle

PDF por ZOHAR ([email protected])

CPTurbo.org

Estávamos almoçando uma manhã, eu e minha esposa, quando entrou a empregada trazendo um telegrama. Era de Sherlock Holmes e dizia: "Tem uns dois dias de que possa dispor? Recebi telegrama agora mesmo do oeste do país, sobre a tragédia do vale Boscombe. Gostaria que pudesse ir comigo. Clima e cenário perfeitos. Saio de Paddington às onze e quinze". — O que acha, querido? — perguntou minha esposa, que me olhava por cima da mesa. — Irá? — Não sei o que responder. Tenho uma grande lista de clientes no momento. — Ora! Anstruther poderá substituí-lo muito bem. Você tem andado muito pálido ultimamente. Uma viagem lhe faria bem, além do interesse que sempre lhe despertam os casos do Sr. Sherlock Holmes. — Seria uma ingratidão se eu não mostrasse interesse, dado o que ganhei com um desses casos — respondi —, mas, se tenho de ir, preciso fazer já a mala, pois só disponho de meia hora. Minha experiência como soldado no Afeganistão pelo menos produziu um bom resultado, que foi o de me tornar mais expedito e sempre pronto para viajar. Minhas necessidades pessoais eram poucas e simples nessa época, por isso, em menos tempo do que dispunha, peguei a mala, apanhei um carro e corri para a Estação de Paddington. Sherlock Holmes já se encontrava lá, andando de baixo para cima na plataforma, parecendo ainda mais alto devido à comprida capa cinzenta de viagem e ao boné apertado na cabeça. — Foi muita bondade da sua parte ter vindo, Watson— disse-me ele —, e é muito importante para mim o fato de ter por companhia uma pessoa da minha inteira confiança; o auxílio local é sempre fraco ou parcial. Se quiser reservar os dois lugares do canto, vou comprar os bilhetes. Viajamos sozinhos no compartimento, acompanhados apenas por um mundo de papéis que Holmes trazia e nos quais remexia, tomando notas nos intervalos da meditação, até que o trem parou em Reading. Então, de repente, ele enrolou os papéis todos, fazendo um enorme rolo, e atirou-os para cima do cabide. — Você já ouviu dizer alguma coisa a respeito desse caso? — perguntou ele. — Nem uma palavra. Não tive tempo de ler os jornais nestes últimos dias.

— A reportagem de Londres ainda não traz muitos pormenores; estive relendo os jornais para me pôr a par das particularidades e, a meu ver, é um daqueles casos simples mas que apresentam muitas dificuldades. — Isso parece um paradoxo. — Mas é a verdade pura e profunda. A singularidade é sempre uma chave. Os crimes mais comuns são os mais difíceis de se descobrir. Neste caso, porém, estabeleceram uma complicação gravíssima com o próprio filho do assassinado. — Foi assassinato, então? — Bem, é o que se conjectura. Não aceitaria nada como certo enquanto não tiver oportunidade de estudar pessoalmente o caso. Vou lhe explicar as coisas, segundo o que sei, em poucas palavras. "O vale Boscombe é um distrito rural não muito longe de Ross, no condado de Hereford. O maior proprietário da região é o Sr. John Turner, que ganhou dinheiro na Austrália e voltou há alguns anos para sua terra natal. Uma das fazendas que ele possui, a Fazenda Hatherley, estava arrendada ao Sr. Charles McCarthy, que era também um ex-australiano. Os homens haviam se conhecido nas colônias, por isso é natural que, ao deixarem de trabalhar, fossem residir perto um do outro, tanto quanto possível. Turner era o mais rico dos dois, por isso McCarthy tornara-se seu locatário, mas pareciam viver em grande harmonia, porque eram vistos freqüentemente juntos. McCarthy tinha um filho, rapaz de uns dezoito anos, e Turner, uma única filha da mesma idade, mas ambos eram viúvos. Parece que evitavam a companhia das famílias inglesas das vizinhanças, levando uma vida retirada, embora os dois McCarthy gostassem de esporte e fossem vistos muitas vezes por ocasião das corridas locais. McCarthy tinha dois empregados domésticos, um homem e uma moça. A casa de Turner vivia cheia, tinha pelo menos meia dúzia de empregados. É isso o que pude verificar a respeito das famílias. "Agora vamos aos fatos. Em 3 de junho, isto é, na segunda-feira passada, McCarthy saiu de casa, em Hatherley, cerca das quinze horas, e dirigiu-se ao pequeno lago Boscombe, formado pelo riacho que desce pelo vale do mesmo nome. De manhã havia saído com o empregado para ir até Ross, e dissera ao homem que estava com pressa porque tinha um compromisso às quinze horas. Daquele encontro não voltou vivo. A Fazenda Hatherley dista do lago Boscombe mais ou menos quinhentos metros; duas pessoas o viram passar por lá: uma delas é uma senhora de idade, cujo nome não disseram, e a outra, William Crowder, um guarda-caça ao serviço do Sr. Turner. Ambas as testemunhas disseram que o Sr. McCarthy estava sozinho. Disse ainda o guarda-caça que, uns minutos depois de haver visto passar o velho McCarthy, passou o filho, James McCarthy, caminhando na mesma direção, com uma espingarda debaixo do braço. Ele acredita mesmo que o filho seguia o pai e o vigiava a distância. Mas não pensou mais no caso até a noitinha, quando ouviu falar na tragédia que ocorrera. Os dois McCarthy foram vistos também por

outras pessoas. O lago Boscombe é rodeado de mato com apenas uma pequena margem de capim e juncos. Uma menina de catorze anos, Patience Moran, filha de um porteiro da Fazenda do Vale Boscombe e que estava colhendo flores no campo, disse que, quando lá se encontrava, viu-os primeiro na orla da mata e junto do lago, e que pai e filho pareciam empenhados em forte discussão. Ela ouviu mesmo o velho McCarthy usar uma linguagem pesada para com o filho, e este levantou a mão para bater no pai. Ficou com tanto medo do que viu, que correu para casa e, assim que chegou, contou à mãe que havia visto os dois McCarthy discutindo junto ao lago Boscombe e receou que fossem lutar. Mal acabou de contar isso, viu o rapaz correr em direção à casa, pedindo socorro ao porteiro e dizendo que seu pai estava morto na mata. Estava tremendamente excitado, sem chapéu e sem espingarda, e tinha a manga direita manchada de sangue fresco. Seguindo-o, encontraram o corpo inerte do pai estendido sobre a relva à beira do lago; sua cabeça fora partida por diversas pancadas dadas com instrumento pesado, não cortante. Podiam muito bem ter sido coronhadas da espingarda do filho, a qual descobriram no capim a poucos passos do corpo. Nessas circunstâncias, o jovem foi imediatamente detido, tendo o júri declarado o caso 'assassinato premeditado', e conduzido perante o juiz de Ross na quarta-feira, o qual deixou o caso à decisão do tribunal na sua próxima sessão. São esses os principais fatos do crime, como foram apresentados ao médico-legista no posto policial." — Não consigo imaginar caso mais condenatório — observei eu —, e se a prova circunstancial alguma vez apontou o criminoso, esta é uma delas. — Prova circunstancial é uma coisa ilusória — respondeu Holmes, pensativo; — pode demonstrar claramente determinado pormenor, mas se você alterar o seu ponto de vista, por pouco que seja, poderá notar que a prova aponta de modo comprometedor numa direção completamente oposta. Deve-se confessar, todavia, que os fatos contra o rapaz são muitíssimo graves; é possível que seja ele o culpado. Há diversas pessoas na vizinhança, entre elas a srta. Turner, filha do fazendeiro rico, que, mesmo assim, não acreditam na culpabilidade do rapaz e contrataram Lestrade, cujo nome talvez lhe lembre o caso de Um estudo em vermelho, para trabalhar a favor do rapaz. Lestrade está um pouco intrigado com as coisas e entregou-me o caso; é por isso que dois senhores de meia-idade viajam a caminho do oeste a cinqüenta milhas por hora, em vez de estarem calmamente almoçando em suas próprias casas. — Sinto — disse eu — que os fatos sejam tão óbvios, pois receio que você não vá ganhar grande prestígio neste negócio.

— Não há nada mais enganador do que os fatos óbvios — disse ele, rindo. — Além disso, podemos descobrir outros fatos óbvios que não foram notados pelo Sr. Lestrade. Você me conhece bastante bem para achar que não exagero quando digo que hei de confirmar ou destruir a teoria dele com meios que ele é incapaz de empregar ou mesmo de compreender. Para pegar o primeiro exemplo que tenho à mão, vejo claramente que a janela do seu quarto, meu caro Watson, se abre para o lado direito; todavia, duvido que o Sr. Lestrade pudesse notar uma coisa tão evidente para todos. — Como... — Meu caro rapaz, conheço-o bem, conheço seus métodos militares de asseio. Você se barbeia todas as manhãs e, nesta estação do ano, barbeia-se à luz do sol. Mas como sua barba fica menos bem-feita ao chegar ao lado esquerdo, em cima, até parece descuido, é mais do que evidente que aquele lado não está tão bem-iluminado como o outro. Tenho a certeza de que se você se olhasse com a luz bem de frente não haveria de ficar satisfeito com o resultado. Apenas cito isso como exemplo de observação e dedução. Nisso consiste o meu métier, e é possível que me possa servir na investigação do caso que temos em mãos. Há um ou dois pontos de menor importância apresentados no inquérito aos quais vale a pena dar alguma atenção. — Quais são eles? — Parece-me que o rapaz não foi preso logo; só depois de voltar a Hatherley é que o inspetor o informou de que estava preso; ele não ficou surpreso e apenas disse que merecia aquilo, nada mais. O fato de haver dito isso, naturalmente, removeu qualquer dúvida que pudesse ter ficado na mente do júri. — Foi uma confissão — exclamei. — Não, porque foi seguida de um protesto de inocência. — Vindo logo após uma série de provas tão condenatórias? — Pelo contrário — disse Holmes —, é a abertura mais brilhante que até agora posso imaginar surgida entre as nuvens. Por mais inocente que seja, ele não podia ser um imbecil tão grande que não visse quão negras eram as circunstâncias contra si. Se tivesse fingido surpresa ao ser detido, ou simulado indignação, eu o consideraria bastante suspeito, porque isso não seria natural em tais circunstâncias, embora parecesse a melhor política para um homem intrigante e maquinador. A aceitação franca da situação destaca-o como homem inocente ou com grande autodomínio e firmeza. Quanto à observação de que era o que merecia, não deixa de ser natural se nos lembrarmos que ele estava perto do corpo inerte do pai, e que naquele mesmo dia se havia esquecido dos seus deveres filiais, discutindo com o pai, e até, como diz a garota, cujo testemunho tem valor, levantara a mão para lhe bater. A repreensão e contrição íntimas são demonstradas pela sua observação, e quer

me parecer que revelam uma mentalidade sã e não uma pessoa culpada. Inclinei a cabeça. — Muitos homens têm sido condenados injustamente. — Qual é a versão do próprio rapaz sobre o caso? — Creio que não é muito animadora para seus amigos, embora haja um ou dois pontos sugestivos. Mas estão aqui, e você pode vê-los. Dizendo isso, tirou do pacote um exemplar do jornal de Hereford e, depois de dobrar a página e apontar o parágrafo onde estava o depoimento do infeliz rapaz, entregou-o a mim; encostei-me a um canto do banco para ler melhor. Dizia o seguinte: "O Sr. James McCarthy, único filho do falecido, foi então chamado e fez as seguintes declarações: — Estive viajando durante três dias por Bristol e voltei na manhã de segunda-feira passada, dia 3. Meu pai não estava em casa quando cheguei, e fui informado pela empregada de que havia ido para Ross com John Cobb, o cocheiro. Assim que regressou, ouvi o som das rodas do carro no pátio; olhando pela janela, vi-o descer e caminhar rapidamente para fora do pátio, embora não soubesse que direção ia tomar. Peguei minha espingarda e dirigi-me ao lago Boscombe, com a intenção de visitar a coelheira que há do outro lado. No caminho vi William Crowder, o guarda-caça, como ele próprio o declarou, mas que se enganou ao julgar que eu seguia meu pai. Não fazia a mínima idéia de que ele caminhava à minha frente. Quando cheguei a uns cem metros do lago, ouvi o grito 'Cuuiii', que era o sinal habitual entre mim e meu pai. Apressei-me e encontrei-o em pé, próximo do poço. Ele mostrou-se muito admirado ao ver-me e perguntou-me abruptamente o que estava fazendo ali. Houve uma discussão que quase chegou às vias de fato, pois meu pai era homem de temperamento violento. Vendo sua cólera e que ele começava a perder o controle, deixei-o e voltei para a Fazenda Hatherley, mas não andara ainda uns cento e cinqüenta metros quando ouvi um grito horrível atrás de mim, que me obrigou a regressar. E encontrei meu pai moribundo, estendido no chão, com a cabeça terrivelmente ferida. Larguei minha espingarda e segurei-o nos braços, mas ele expirou imediatamente. Ajoelhei-me ao seu lado alguns minutos e depois fui até a casa do porteiro do Sr. Turner, que era a mais

próxima, para pedir auxílio. Não vi ninguém perto de meu pai quando o encontrei, e não tenho a menor idéia de como pôde ter sido ferido. Não era um homem acessível, pois seu temperamento era um tanto frio e arredio, mas não tinha inimigos declarados. Não sei mais nada a respeito do caso. Coroner: — Antes de morrer seu pai lhe fez qualquer declaração? Depoente: — Murmurou algumas palavras, mas só pude perceber uma referência a um rato. Coroner: — O que depreendeu daí? Depoente: — Nada. Pensei que estivesse delirando. Coroner: — O que provocou a discussão com seu pai? Depoente: — Preferiria não ser forçado a dizer. Coroner: — Sinto-me obrigado a insistir. Depoente: — É de todo impossível dizer-lhe. Posso asseverar que nada tinha a ver com a triste tragédia que se seguiu. Coroner: — Isso cabe ao tribunal decidir. Não é necessário dizer-lhe que sua recusa em responder pode prejudicá-lo consideravelmente no futuro. Depoente: — Preciso persistir na recusa. Coroner: — É certo que o grito 'Cuuiii' era um sinal comum entre o senhor e seu pai? Depoente: — Sim, era. Coroner: — Então por que deu ele o grito antes de o ter visto, antes mesmo de saber do seu regresso de Bristol? Depoente (um tanto confuso): — Não sei. Um membro do júri: — O senhor não viu nada de suspeito quando se virou ao ouvir o grito e encontrou seu pai fatalmente ferido? Depoente: — Nada muito definido. Coroner: — Que quer dizer com isso? Depoente: — Estava tão perturbado e nervoso quando corri pelo caminho, que não pude pensar em coisa alguma a não ser em meu pai; todavia, tenho uma vaga impressão de que quando corri havia qualquer coisa no chão à minha esquerda. Parecia-me que era de cor cinzenta, um casaco ou uma capa, talvez. Quando saí de perto de meu pai, já não estava mais lá.

Coroner: — Quer dizer que desapareceu antes de o senhor ter procurado auxílio? Depoente: — Sim, desapareceu. Coroner: — Pode precisar do que se tratava? Depoente: — Não, mas tive um pressentimento de que ali havia alguma coisa. Coroner: — A que distância do corpo? Depoente: — Uns doze metros mais ou menos. Coroner: — E a que distância da mata? Depoente: — Mais ou menos a mesma. Coroner: — Então, se foi retirada, foi enquanto o senhor estava à distância de uns doze metros apenas? Depoente: — Sim, atrás de mim. E assim terminou o depoimento." — Estou vendo que o coroner foi um pouco severo com o jovem McCarthy — disse eu ao terminar a leitura. — Ele chama a atenção, e com razão, para a divergência do fato de o pai ter chamado o filho antes de o ter visto, sobre os pormenores da altercação entre ambos, bem como sobre a história singular das últimas palavras do pai. Tudo isso, como ele nota, são provas contra o filho. Holmes riu de mansinho e estendeu-se preguiçosamente sobre as almofadas. — Tanto você como o coroner tomaram muito cuidado em destacar os pontos mais fortes a favor do rapaz. Não vê que vocês lhe atribuem imaginação ora deficiente, ora excessiva? Deficiente, pois, se pudesse inventar o motivo da discussão, atrairia a simpatia do júri; e excessiva, caso saísse da sua consciência íntima qualquer coisa tão outrée como o fato de um moribundo fazer referência a um rato e o incidente da veste que desapareceu. Não, senhor, abordemos este caso sob o ponto de vista de que o rapaz disse a verdade, e veremos até onde nos leva essa hipótese. Agora, aqui está o meu Petrarca de bolso, e não direi nem mais uma palavra sobre tudo isto até chegarmos à localidade onde vamos trabalhar. Tomaremos um lanche em Swindon, pois que chegaremos lá dentro de uns vinte minutos. Eram quase dezesseis horas quando enfim chegamos, depois de passarmos pelo lindo vale Stroud, acima do largo e brilhante rio Severn, e nos encontrarmos na bonita cidadezinha de Ross. Um homem magro, de feições

frias como as de um furão, com um olhar furtivo e velhaco, esperavanos na plataforma. A despeito do seu guarda-pó cor de poeira, e das polainas que usava devido às circunstâncias do lugar, não tive dificuldade em reconhecer Lestrade, da Scotland Yard. Com ele fomos de carro até o Hereford Arms, onde reservara um quarto para nós. — Pedi um carro — disse Lestrade, enquanto tomávamos uma chávena de chá. — Conheço sua natureza enérgica, e sei que não ficará satisfeito enquanto não for ao local do crime. — Foi amável da sua parte; agradeço esse gesto complementar — respondeu Holmes; — é apenas uma questão de pressão atmosférica. Lestrade olhou-o admirado. — Não compreendo bem — disse ele. — Que diz o barômetro? Vinte e nove graus, pelo que vejo. Não há vento e nenhuma nuvem no céu. Tenho uma carteira de cigarros que vou fumar; este sofá é muito mais confortável do que as habituais acomodações nesses abomináveis hotéis rurais. Creio que não precisarei do carro esta tarde. Lestrade riu-se, complacente: — Com certeza já tirou suas conclusões pelas reportagens dos jornais — disse ele. — O caso é tão claro como a luz do dia, e quanto mais o estudamos, mais evidente se torna. Todavia, ninguém por certo pode recusar o pedido de uma senhorita, aliás bastante incisiva. Ela ouviu falar em você e queria por força a sua opinião, apesar de eu lhe ter dito repetidas vezes que neste caso não havia nada que você pudesse fazer além do que eu já fizera. Ora bolas! Lá está ela à porta. Mal havia acabado de falar quando entrou apressadamente na sala uma das jovens mais belas que eu jamais vira. Os olhos eram cor de violeta, tinha os lábios entreabertos, estava levemente corada pela excitação e esquecera toda a natural reserva ante a enorme aflição. — Oh! Sr. Sherlock Holmes! — exclamou ela, olhando-nos, e com a rápida intuição feminina, continuou dirigindo-se ao meu companheiro. — Estou tão contente com a sua vinda! Vim expressamente para lhe dizer isto. Sei que James não praticou o crime. Sei, e quero que o senhor comece suas investigações sabendo disso também. Não posso duvidar desse ponto. Conhecemo-nos desde crianças, sei dos seus defeitos mais do que qualquer outra pessoa; no entanto, ele é tão sensível que não maltrataria uma mosca sequer. Tal acusação é absurda para quem o conhece bem. — Espero que possamos livrá-lo, srta. Turner — disse Sherlock Holmes. — Pode estar certa de que farei todo o possível para conseguir isso. — Mas o senhor já leu o depoimento e deve ter chegado a alguma conclusão.

Não vê nenhuma falha, nenhum erro? O senhor não acha que ele está inocente? — Acho muito provável que esteja inocente. — Então? — exclamou ela, virando a cabeça e olhando para Lestrade: — Ouviu? Ele me dá esperança. Lestrade encolheu os ombros. — Receio que meu colega tenha formulado suas conclusões precipitadamente — ripostou ele. — Mas ele tem razão. Oh! Sei que tem razão. James está inocente. E a respeito da discussão que teve com o pai, estou certa de que a razão pela qual ele nada quis dizer ao júri é porque estou envolvida no caso. — De que maneira? — perguntou Holmes. — Bem, já não é tempo de se esconder seja o quer for... James e o pai tiveram muitas desavenças por minha causa. O Sr. McCarthy queria por força que nos casássemos. James e eu sempre nos amamos como irmãos. Ele é jovem, e pouco conhece a vida e... bem, é natural que não quisesse se casar ainda. Por isso houve discussões, e, nessa ocasião, tenho a certeza de que também foi por isso. — E seu pai? — indagou Holmes. — Ele também era a favor de tal união? — Não, era contra. Ninguém, a não ser o velho McCarthy, estava a favor. Um rápido rubor cobriu seu rosto jovem, enquanto Holmes lhe lançava um dos seus olhares penetrantes. — Muito obrigado por essa informação — agradeceu. — Poderei ver seu pai se for até lá amanhã? — Sinto muito, mas talvez o médico não o permita. — O médico? — Sim, o senhor ainda não soube?... Pobre papai!

Não tem tido saúde desde há alguns anos, e este caso abalou-o completamente. Está de cama, e o dr. Willows disse que agora não terá cura e que seus nervos estão esgotados. O Sr. McCarthy era o único homem vivo que conheceu meu pai nos tempos passados em Victoria. — Ah! Em Victoria! Isso é importante. — Sim, isto é, nas minas. — Perfeitamente, nas minas de ouro, onde soube que o sr. Turner, seu pai, fez fortuna. — Sim, é verdade. — Obrigado, Srta. Turner. A senhorita está sendo de grande utilidade para mim. — O senhor me avisará se houver alguma novidade amanhã? Com certeza há de ir à cadeia para visitar James. Oh! Se for, Sr. Holmes, diga-lhe que estou certa da sua inocência. — Direi, Srta. Turner. — Preciso voltar para casa agora, porque meu pai está muito doente e sente muito minha ausência. Até logo, e Deus o ajude em seu trabalho. Saiu apressada da sala, tão impulsivamente como havia entrado, e ouvimos as rodas do seu carro descendo a rua. — Tenho vergonha de você, Holmes — disse Lestrade com dignidade depois de uns minutos de silêncio. — Deu-lhe uma esperança que no fim vai ser um desapontamento. Não sou muito sentimental, mas acho isso cruel. — Creio que já vejo o caminho para livrar James McCarthy — disse Holmes. — Você tem licença para visitá-lo na cadeia? — Sim, mas somente para nós dois. — Então agora vou reconsiderar minha resolução quanto à saída. Haverá tempo para tomarmos o trem de Hereford e vê-lo ainda hoje? — Bastante. — Então vamos fazer isso. Watson, temo que vá achar tudo isto muito calmo, mas estarei fora apenas umas duas horas.

Fui à estação com eles, dei um passeio pelas ruas da pequena cidade e finalmente voltei para o hotel. Deitei-me no sofá e esforcei-me para ler algumas páginas de um romance de capa amarela. O enredo do crime era tão simples em comparação com o mistério profundo perante o qual nos encontrávamos, e a minha atenção desviava-se tantas vezes da ficção para a realidade, que por fim atirei o livro para um canto da sala e entreguei-me inteiramente ao pensamento dos fatos daquele dia. Supondo-se que a história do infeliz rapaz fosse brutalmente verídica, então, que coisa infernal, que tremenda calamidade fora aquela, ocorrida entre o momento em que deixou seu pai e aquele em que, atraído pelo grito, voltou correndo através da clareira! O golpe devia ter sido produzido por uma coisa terrível e mortal. Mas o que poderia ter sido? Os ferimentos não seriam capazes de dar uma indicação ao meu instinto de médico? Toquei a campainha e pedi o semanário local, que trazia o relato do inquérito. A declaração do médico-legista dizia que a terceira parte traseira do osso parietal esquerdo e a parte esquerda do occipital haviam sido esmagadas pela pancada de um instrumento pesado. Procurei imaginar a posição do golpe e concluí que a pancada fora dada por trás. Isso, até certo ponto, vinha em favor do acusado, porque, quando foi visto discutindo com o pai, estavam de frente um para o outro. Mas a verdade é que significava pouco, porque o velho podia ter-se virado antes de receber a pancada; todavia, achei que devia chamar a atenção de Holmes para o fato. Também havia aquela referência do moribundo a um rato. O que se poderia induzir daquilo? Certamente não era delírio. Um homem moribundo devido a pancadas geralmente não delira. Não teria sido uma tentativa de explicar como recebera o ferimento? Mas o que isso poderia indicar? Esforcei-me por descobrir qualquer explicação plausível. E depois havia o incidente da veste cinzenta vista pelo jovem McCarthy. Se isso era verdade, o assassino devia ter deixado cair uma peça de roupa, possivelmente o sobretudo, na pressa da fuga, e devia ter um coração duro para tê-lo ido buscar, no momento em que o filho estava ajoelhado de costas, a poucos passos de distância. Que sucessão de incidentes misteriosos e improváveis! Não me admirei da opinião de Lestrade, mas ao mesmo tempo tinha tanta fé na perspicácia de Sherlock Holmes que não pude deixar de ter esperanças, visto todos os fatos novos que se apresentavam parecerem reforçar sua convicção na inocência do jovem McCarthy. Já era tarde quando Sherlock Holmes voltou. Veio sozinho, porque Lestrade estava alojado na cidade. — O barômetro continua alto — observou ele ao sentar-se. — É importante que não chova antes que examinemos o local. Devemos estar bem dispostos e

alerta para um trabalho sutil como este. Não queria fazer o exame cansado, após uma longa viagem. Vi o jovem McCarthy. — E o que lhe disse ele? — Nada. — Não pôde dizer nada? — Absolutamente nada. A certa altura estive inclinado a pensar que ele escondia o nome do criminoso, mas no fim fiquei convencido de que está tão intrigado como qualquer um de nós. Não é um rapaz de inteligência brilhante, embora seja agradável e, segundo penso, honesto. — Não posso concordar com a falta de gosto dele — observei —, se é verdade que não quis casar-se com uma jovem tão atraente como a Srta. Turner. — Ah! Aí está uma história um pouco triste. O rapaz está louco por ela, mas há uns dois anos atrás, quando era ainda garoto, e antes de conhecê-la bem, porque ela esteve internada num colégio durante uns cinco anos, o que foi que o idiota fez senão apaixonar-se por uma garçonete em Bristol e casar-se com ela no registro civil? Ninguém sabe disso, mas imagine como deve ter sido horrível para ele ser repreendido por não poder fazer aquilo que daria tudo quanto possui para realizar, mas que sabe ser absolutamente impossível. Foi a loucura desse fato que o fez levantar a mão, quando o pai, na última entrevista, insistia para que ele pedisse a Srta. Turner em casamento. Por outro lado, não tinha meios para se sustentar, e por aquilo que se ouve dizer, o pai era um homem duro e tê-lo-ia mandado embora se soubesse a verdade. Foi com sua esposa que ele passou esses três dias em Bristol, e o pai não sabia do seu paradeiro. Repare bem nisso. É importante. Pelo menos uma coisa boa resultou de tudo isso, porque a moça, vendo pelos jornais que ele estava em grandes dificuldades e em vias de ser enforcado, separou-se dele completamente e escreveu-lhe dizendo que já tem um marido nas docas das Bermudas, e que portanto não há nada que os prenda. Parece-me que essa notícia conformou bastante o jovem McCarthy, apesar de tudo o que tem sofrido. — Mas se ele está inocente, quem praticou o crime? — Ah! Quem? Quero chamar a sua particular atenção para dois pontos. Um é que o falecido tinha um encontro com alguém perto do lago, e que essa pessoa não podia ser o filho, porque este estava fora de casa e não se sabia quando voltaria. O segundo ponto é que o homem assassinado gritou "Cuuiii" antes de saber que o filho estava ali perto. São esses os pontos decisivos do caso. E agora vamos falar a respeito de George Meredith, faça o favor, e deixaremos os outros pontos para amanhã. Não choveu, como Holmes prognosticara, e o dia amanheceu claro e sem nuvens. Às nove horas, Lestrade chegou com o carro e partimos para a Fazenda Hatherley e o lago Boscombe.

— Tive notícias sérias esta manhã — observou Lestrade. — Dizem que o Sr. Turner está tão doente que não há esperanças de salvar-lhe a vida. — É um homem de idade, suponho — disse Holmes. — De uns sessenta anos; porém, sua constituição foi prejudicada com a vida fora do país, e tem enfraquecido muito ultimamente; este caso produziu maus efeitos sobre ele. Era um velho amigo de McCarthy e, posso afirmá-lo, seu benfeitor, pois soube que lhe deu a Fazenda Hatherley de graça. — Será possível? Isso é muitíssimo interessante — disse Holmes. — Oh, sim! E ajudou-o de muitas outras formas. Todos aqui falam de sua bondade para com o falecido. — Realmente! Não lhe parece estranho que esse McCarthy, que parece ter possuído muito pouca coisa e devia muitos favores, tivesse a ousadia de falar no casamento de seu filho com a filha do Sr. Turner, presumível herdeira de uma boa fortuna, e insistisse tanto, como se bastasse pedir para ser aceito? O mais estranho ainda é que, segundo sabemos, o próprio Turner não queria o casamento. Foi a filha que nos contou. Não tira nenhuma conclusão disso tudo? — Agora vêm as deduções e conclusões — suspirou Lestrade piscando-me o olho. — Já acho bastante difícil tratar dos fatos, Holmes, sem ir atrás de teorias fantásticas. Em todo caso, arranjei um fato que vai desafiar seu raciocínio. — Então, de que se trata? — Que o Sr. McCarthy foi morto pelo filho, e que todas as suas teorias são meras fantasias lunáticas. — Bem, o luar é uma coisa mais clara do que a neblina — disse Holmes, rindo. — Mas suponho que isso aí à esquerda seja a Fazenda Hatherley. — É, sim.

Era uma casa ampla, confortável, de dois andares, coberta de ardósia, com grandes camadas de líquen sobre as paredes sombrias. As cortinas estavam fechadas, e as chaminés sem fumaça davam-lhe um ar de abandono, como se o peso da tragédia a deprimisse. Batemos à porta, e a empregada, a pedido de Holmes, mostrou-nos as botas que o

patrão usava quando foi assassinado e também umas do filho, embora não fossem as que usasse na ocasião. Depois de as examinar de diversas maneiras, Holmes pediu-lhe que nos levasse ao quintal, de onde seguimos o caminho torto que conduzia ao lago Boscombe. Sherlock Holmes ficava transformado quando iniciava pesquisas num caso como aquele. Pessoas que só o conheciam como o pensador sossegado e lógico da Baker Street não o teriam reconhecido agora. O rosto ficava corado, e a fisionomia, fechada. As sobrancelhas pareciam duas linhas pretas, firmes, enquanto debaixo delas os olhos brilhavam como uma chapa de aço. Com o rosto inclinado e os ombros curvos, os lábios pendiam e as veias do pescoço inchavam como as cordas de um chicote. As narinas pareciam dilatar-se com o faro, como puro animal de caça, e o cérebro ficava tão absolutamente concentrado no caso em questão que uma pergunta ou observação de outrem caía em ouvidos surdos ou recebia um inesperado rosnar como resposta. Rápida e silenciosamente, ele caminhou através dos prados e pela mata até o lago Boscombe. Era um terreno úmido e pantanoso aquele, e havia sinais de muitas pisadas, tanto no caminho como entre o capim e a margem do lago. Às vezes Holmes adiantava-se; outras, parava repentinamente; numa ocasião fez um pequeno rodeio até o prado. Lestrade e eu o seguíamos, o detetive, indiferente e desdenhoso, enquanto eu observava o meu amigo com o interesse que vem da convicção de que cada ato dele ia em direção a um fim definido. O lago Boscombe, lençol de água cercado de juncos, com trinta jardas de diâmetro, fica nos limites entre a Fazenda Hatherley e o parque particular do rico Sr. Turner. Acima da mata que o cerca do lado oposto, podem-se ver os cimos vermelhos da residência do fazendeiro. Do lado de Hatherley a mata era fechada, e havia uma estreita passagem de relva molhada a uns vinte passos, que a atravessava entre a beira das árvores e dos juncos que cercavam o lago. Lestrade mostrou-nos o lugar exato onde fora encontrado o corpo, e tão úmido estava o chão que vi muito bem os sinais onde o homem caíra. Para Holmes, como pude perceber pelo seu olhar fixo e olhos penetrantes, muitas outras coisas eram evidentes na relva pisada. Andou ao redor, como um cachorro farejando, e depois, voltando-se para o meu companheiro, perguntou: — Para que você entrou no lago? — Para pesquisar com um ancinho. Pensei que talvez houvesse qualquer arma ou outro sinal. Mas, com todos os diabos, como você... — Oh, chega! Não tenho tempo. Este seu pé esquerdo, metido para dentro, está em toda parte. Até uma toupeira poderia segui-lo, mesmo entre os juncos. Oh, como seria fácil se eu pudesse ter vindo antes que vocês chegassem como uma manada de búfalos, pisando tudo! Aqui está o lugar onde vieram com o guarda-caça. Cobriram todos os vestígios, cerca de dois metros em redor do corpo. Mas aqui há três marcas separadas do mesmo pé. Tirou a lente e deitou-se sobre a capa para ver melhor, falando o tempo todo, mais para si do que para os outros.

— Estes são os pés do jovem McCarthy. Por duas vezes andou e uma vez quase correu, tanto assim que as solas dos pés estão bem fundas, mas os saltos, poucos visíveis. Isso corrobora a sua história de que correu quando viu o pai caído. Aqui estão as pegadas do pai quando caminhou de baixo para cima. O que é isto? É sinal da coronha da espingarda do filho enquanto ouvia. E isto? Ah! Ah! O que temos aqui? Sinais de pontas de pés, pontas de pés! Quadrados, sapatos comuns! Os sinais vão e voltam outra vez, certamente em busca da capa. Agora, de onde será que vieram? E Holmes correu para baixo e para cima, às vezes perdendo e outras vezes achando os sinais, até que chegamos perto da orla da mata, sob a sombra de uma grande faia, a maior árvore da vizinhança. Holmes deu a volta, deitou-se mais uma vez com o rosto perto do chão e soltou um grito de satisfação. Ali ficou bastante tempo, virando folhas e paus secos, colhendo o que parecia ser pó do chão e pondo-o num envelope, examinando com a lente não só o chão, mas também a casca da árvore até onde podia chegar. Um pedra tosca estava caída no musgo, e também esta ele examinou e guardou. Então seguiu o caminho atrás da mata até chegar à estrada pública, onde desapareceram todos os sinais. — Foi muito interessante — observou ele, voltando ao seu habitual bom humor. — Presumo que esta casa cinzenta aqui à esquerda seja a do porteiro; acho que devo entrar e conversar um pouco com o Sr. Moran, e talvez escreva um bilhete. Depois poderemos voltar para almoçar. Vocês podem ir ao carro, que eu estarei lá daqui a pouco. Em cerca de dez minutos chegamos ao carro e voltamos a Ross. Holmes levava consigo a pedra que apanhara do chão, dentro da mata. — Esta talvez o interesse, Lestrade. O assassínio foi praticado com ela — disse ele, mostrando-a. — Mas não vejo marca nenhuma. — Não há marcas. — Então como o sabe? — Porque o capim começava a crescer debaixo dela. Havia poucos dias que ali estava. Não havia sinal do lugar de onde fora tirada. Ela corresponde ao ferimento. Não há sinais de outras armas.

— E o assassino? — É um homem alto, canhoto, manco de uma perna, calça sapatos de caça com solas grossas e tem uma capa cinzenta, fuma charutos indianos, usa boquilha e tem um canivete que corta mal no bolso. Há diversas outras indicações, mas essas ajudar-nos-ão bastante nas nossas pesquisas. Lestrade riu-se. — Sinto continuar incrédulo — disse ele. — Suas teorias são boas, mas temos de tratar com as cabeças duras do júri britânico. — Nous verrons — respondeu Holmes calmamente. — Você trabalha à sua maneira, e eu usarei os meus métodos. Estarei ocupado esta tarde, e provavelmente voltarei para Londres pelo trem da noite. — E deixa o caso inacabado? — Não, terminado. — Mas o mistério? — Está resolvido. — Quem é então o criminoso? — O cavalheiro que descrevi. — Mas quem será ele? — Certamente não deve ser difícil descobrir. Esta vizinhança é muito limitada, com pouca população. Lestrade encolheu os ombros. — Sou um homem prático — disse ele —, e realmente não posso andar aí pelo campo à procura de um homem canhoto e manco. Seria ridicularizado por todos os meus colegas da Scotland Yard. Tendo deixado Lestrade nos seus aposentos, fomos para o nosso hotel, onde encontramos o almoço à mesa. Holmes estava silencioso e perdido em seus próprios pensamentos, com uma expressão angustiada no rosto, como quem se acha numa posição confusa. — Venha cá, Watson — disse ele, depois de terem tirado a toalha da mesa —, sente-se nesta cadeira e deixe-me falar com você um pouco. Não sei bem o que deva fazer e preciso do seu conselho. Acenda um charuto e deixe-me expor o caso. — Por favor, peco-lhe que o faça.

— Bem, ao considerar este caso, há dois pontos na narrativa do jovem McCarthy que chamaram nossa atenção logo de início, embora eu haja sido impelido a seu favor, o que não aconteceu com você. Um ponto é aquele quando o pai gritou, conforme ele disse, "Cuuiii", antes de ser visto. O outro ponto é sua referência a um rato. Ele murmurou diversas palavras, compreende, mas foi só isso o que o filho ouviu bem, antes de o velho morrer. Desses dois pontos é que devem partir as nossas pesquisas; em primeiro lugar, comecemos por admitir que o que o rapaz disse é verdade. — O que quer dizer "Cuuiii", então? — É evidente que não era para chamar o filho, que ele supunha em Bristol. Era para chamar a atenção da pessoa com quem tinha um encontro marcado. "Cuuiii" é um grito usado pelos australianos. Há grandes probabilidades de que a pessoa que McCarthy esperava encontrar também tivesse estado na Austrália. — E o rato? Sherlock Holmes tirou do bolso um papel dobrado e estendeu-o em cima da mesa. — Este é o mapa da colônia de Victoria — disse ele. — Telegrafei para Bristol pedindo que o mandassem ontem à noite. Pôs a mão sobre uma parte do mapa. — O que é que você lê aqui? — perguntou. — ARAT — li eu. — E agora? — disse ele levantando a mão. — BALLARAT. — Justamente. Foi essa palavra que o homem disse e da qual o filho apenas ouviu as últimas sílabas. Sem dúvida pretendia pronunciar o nome do assassino, Fulano de Tal, de Ballarat. — É maravilhoso! — exclamei eu. — É claro. E agora bem vê que diminui consideravelmente o campo das pesquisas. A capa cinzenta é outro ponto que, caso sejam verdadeiras as palavras do filho, torna-se também verídico. Agora saímos da vaga suposição para a definitiva concepção de um australiano de Ballarat, com capa cinzenta. — Certamente. — É um homem que conhece o distrito, porque o lago só pode ser atingido pela

fazenda ou pela herdade, onde é quase impossível a passagem de estranhos. — É isso mesmo. — Depois houve a nossa expedição de hoje. Por um exame profundo do solo, acrescentei os pequenos pormenores que dei àquele imbecil Lestrade, esta tarde, quanto à personalidade do criminoso. — Mas como o conseguiu? — Você conhece o meu método. É baseado na observação das coisas triviais. A altura do homem podia deduzir-se dos passos, e as botas podiam ser reconhecidas pelas suas características. — Sim, eram botas especiais. Mas, e o fato de ser manco? — A impressão do pé direito era sempre menos distinta do que a do esquerdo. Pisava mais leve com ele. Por quê? Porque coxeava. — Mas e o fato de ser canhoto? — Mesmo você ficou surpreso com a natureza do ferimento, conforme foi expressa pelo legista no inquérito. A pancada foi dada por trás. Mas do lado esquerdo. Agora, pergunto, como pode ser isto, a não ser que a pessoa que a deu fosse canhota? Ele tinha ficado atrás daquela árvore durante a entrevista entre pai e filho. Fumara até. Descobri a cinza de um cigarro, a qual, com meus estudos especiais sobre o tabaco, me permitiu dizer que o cigarro era indiano. Você sabe que já escrevi uma pequena monografia a respeito das cinzas de cento e quarenta variedades diferentes de tabaco usado em cachimbos, cigarros e charutos. Tendo descoberto a cinza, olhei em redor e encontrei o toco do cigarro entre os liquens, para onde ele o atirara. Era um cigarro indiano, de uma qualidade que não é produzida em Rotterdam.

— E a boquilha? — Vi que a ponta do cigarro não tinha estado na boca, portanto, que ele usava boquilha. A ponta havia sido cortada e não mordida, mas o corte era defeituoso, daí deduzi que o canivete não cortava bem. — Holmes — disse-lhe eu —, você envolveu esse homem de tal forma, que ele não pode fugir, e salvou a vida de um inocente, como se tivesse cortado a corda em que ele estava pendurado na forca. Vejo a direção a que isso tudo leva. O culpado é... — O Sr. John Turner — anunciou o rapaz do hotel, abrindo a porta da nossa sala de estar e fazendo entrar a visita. O homem que entrou era uma figura esquisita e impressionante. Seus passos vagarosos e hesitantes, seus ombros curvos, davam-lhe a aparência de velhice; todavia, as feições duras e enrugadas, os enormes braços e pernas demonstravam que possuía força física pouco comum, assim como temperamento. A barba em desalinho e o cabelo grisalho, as sobrancelhas longas e caídas, tudo se combinava para lhe dar um ar de dignidade e força, mas o rosto estava branco, os lábios e os cantos das narinas, levemente azulados. Para mim, era mais do que evidente que ele sofria de qualquer moléstia crônica e fatal. — Tenha a bondade de sentar-se — disse Holmes delicadamente. — O senhor recebeu o meu bilhete? — Sim, o porteiro o entregou a mim. O senhor disse que deseja falar comigo aqui para evitar escândalo. — Julguei que o povo repararia se eu fosse à sua propriedade. — E por que queria ver-me? — Ao dizer isso, olhou de modo desesperado para o meu amigo, como se a própria pergunta já estivesse respondida. — Sim — disse Holmes respondendo mais com o olhar do que com as palavras. — É isso mesmo, sei de tudo a respeito de McCarthy. O velho cobriu o rosto com as mãos. — Deus tenha piedade de mim! — exclamou ele. — Mas eu não deixaria o rapaz sofrer, juro-lhe que teria confessado se as coisas fossem contra ele no

tribunal. — Regozijo-me por ouvi-lo dizer isso — disse Holmes solenemente. — Teria falado se não fosse minha querida filha. Seu coração se partirá quando souber que estou preso. — Pode ser que não chegue a isso — disse Holmes. — O quê? — Não sou um policial. Foi a sua filha que requereu minha presença aqui, e estou agindo no interesse dela. Todavia, o jovem McCarthy precisa ser posto em liberdade. — Sou um moribundo — disse o velho Turner —, sou diabético há muitos anos. Meu médico disse-me que é duvidoso que eu dure mais que um mês; todavia, preferia morrer debaixo do meu próprio teto a morrer na prisão. Holmes levantou-se e foi sentar-se à mesa com a caneta na mão e um rolo de papéis à frente. — Diga-nos a verdade e eu tomarei nota. Você, Watson, assinará como testemunha. Apresentarei sua confissão só em último caso, para salvar o jovem McCarthy. Prometo que não a usarei, a não ser que seja absolutamente necessário. — Está bem — disse o velho —, é pouco provável que eu viva até o julgamento do tribunal, por isso a mim pouco importa, mas quero poupar o choque a Alice. Agora vou esclarecer tudo; muito tempo se passou até que a tragédia chegasse ao auge, mas não levarei muito tempo a contá-la. "Vocês não conheceram o falecido McCarthy. Era o diabo encarnado. Isso posso afirmá-lo, e Deus nos livre de cair nas garras de um homem como ele. Todo o seu peso tem estado sobre mim durante os últimos vinte anos. Ele arruinou a minha vida. Vou contar-lhes como caí em seu poder. Foi entre os anos 60 e 70, no quartel. Eu era um rapaz novo então, descuidado e temerário, pronto para lançar mão fosse no que fosse. Aliei-me a maus companheiros, comecei a beber e não tive sorte no trabalho; fugi para o mato e tornei-me salteador. Éramos seis e levávamos uma vida selvagem, assaltando uma estação de vez em quando ou fazendo parar os vagões nas estradas. Black Jack de Ballarat era o nome sob o qual eu era conhecido; eu e o nosso bando somos lembrados ainda hoje na colônia como os gângsteres de Ballarat. "Um dia paramos um trem que ia de Ballarat a Melbourne. Eram seis soldados e nós também éramos seis. Três dos nossos rapazes foram mortos antes que pudéssemos pegar a bagagem. Apontei o revólver para a cabeça do condutor, que não era outro senão McCarthy. Antes o tivesse morto, mas poupei-o, embora tivesse visto os seus olhos vivos de canalha fixos no meu rosto, como que para se recordar sempre das minhas feições. Desaparecemos

com o ouro, ficamos ricos e voltamos para a Inglaterra sem nos tornarmos suspeitos. Ali me separei dos velhos camaradas, resolvi fixar residência e ter uma vida calma e respeitável. Comprei esta herdade que estava à venda e procurei fazer algum bem aos outros com o meu dinheiro, tentando redimir-me do modo como o havia ganho. "Casei-me, mas minha esposa morreu nova, deixando-me a minha Alice. Mesmo quando pequenina, a mãozinha dela parecia conduzir-me ao bom caminho, como até então nada o conseguira. Enfim, comecei uma página nova e limpa da minha vida, procurando expiar o passado; tudo ia bem, quando McCarthy me descobriu. "Tinha ido a Londres tratar de um investimento quando o encontrei na Regent Street, malvestido e malcalçado. "— Aqui estamos, Jack — disse ele tocando-me no braço —, seremos uma família só. Somos só dois, eu e meu filho, e você pode sustentar-nos. Se não quiser assim, esta Inglaterra cumpre muito bem as leis, e há sempre um policial por perto. "— Bem, iremos para o oeste — resolvi, pois não havia meios de me livrar deles, e então vieram e se instalaram nas minhas terras. Não havia sossego para mim, nem paz, nem esquecimento. Fosse eu para onde fosse, lá estava aquela cara de velhaco, escarnecendo de mim. Ficou pior quando Alice cresceu, porque ele percebeu que eu tinha mais receio que ela soubesse do meu passado do que da própria polícia. Tudo o que ele pedia era preciso dar, e eu dava sem discutir; terras, dinheiro, casas, até que por fim me pediu algo que não podia atender. Pediu Alice. O filho dele crescera, assim como minha filha, e, como era sabido que eu tinha pouca saúde, parecia-lhe certo que o filho se tornasse proprietário de tudo. Mas fiquei firme, não queria que sua maldita estirpe se misturasse com a minha; não que o rapaz fosse indesejável, mas tinha o sangue do pai, e isso bastava. "Fiquei firme. McCarthy ameaçou-me. Desafiei-o a fazer tudo o que quisesse, até o pior. Havíamos marcado encontro junto ao lago, a meio caminho entre as nossas casas, para tratar do assunto. "Quando cheguei, vi-o conversando com o filho; por isso, fumei um cigarro enquanto esperava, atrás de uma árvore; tudo o que havia em mim de mau e odioso me subiu à cabeça. Ele pretendia convencer o filho a casar-se com minha filha com tão poucos sentimentos pela vontade dela como se se tratasse de qualquer mulher da rua. Fiquei louco ao lembrar-me de que eu e tudo o que me era mais caro estávamos em poder de um homem daqueles. "Não havia jeito de me libertar dele. Eu era um homem moribundo, desesperado. Enquanto mantive as faculdades mentais claras e o físico regularmente forte, vi que estava selado o meu destino. Mas minha honra e a minha filha! Tudo estaria salvo se eu pudesse calar aquela língua vil. E assim o fiz, Sr. Holmes. Eu o faria outra vez. Pequei profundamente e vivi uma vida de martírio para o expiar, mas que minha filha ficasse amarrada às mesmas

malhas que eu era demais para que o pudesse suportar. Abati-o com menos relutância do que se fosse uma fera venenosa. O grito dele fez regressar o filho. Eu já chegara à beira da mata, embora tivesse sido obrigado a voltar para apanhar a capa que havia deixado cair na fuga. Esta é a verdadeira história de tudo quanto ocorreu." — Bem, não sou seu juiz — disse Holmes, enquanto o velho assinava a confissão que fora escrita. — Peço a Deus que nunca sejamos expostos a tal tentação. — Também o desejo, senhor. E o que pretende fazer? — Em vista da sua saúde, nada. Sabe que em pouco tempo deverá comparecer perante um tribunal mais solene que o deste mundo. Guardarei sua confissão, e se McCarthy for condenado, serei obrigado a utilizá-la. Senão, nunca será vista por olhos mortais, é o seu segredo, esteja o senhor morto ou vivo, ficará apenas conosco. — Adeus, então — disse o velho solenemente —, vossos próprios leitos de morte, quando chegar a hora, serão aliviados à lembrança da paz que me cederam. Coxeando e com todo o seu gigantesco corpo tremendo, saiu vagarosamente da sala. — Deus nos ajude! — disse Holmes depois de um longo silêncio. Por que fará a fatalidade diabruras com pobres seres fracos como esses? Quando ouço falar de um caso semelhante, lembro-me das palavras de Baxter e digo: "Onde não está a graça de Deus, aparece Sherlock Holmes". James McCarthy foi absolvido devido às várias objeções apresentadas por Holmes e submetido ao conselho de defesa. O velho Turner viveu mais sete meses após a nossa entrevista, mas agora já faleceu, e há grandes esperanças de que o filho de um e a filha do outro possam ainda chegar a viver juntos durante muitos anos, casados, felizes e sem saber da nuvem turva que lhes enegrece o passado.

O nobre solteiro

O casamento do Lorde St. Simon, e a maneira curiosa por que terminou,

há muito deixou de ser assunto de interesse nos círculos exaltados em que o

infeliz noivo se movimenta. Escândalos novos o obscurec6ram e os detalhes

picantes atraíram os bisbilhoteiros e os fizeram esquecer esse drama de quatro

anos atrás. Como tenho razões para acreditar, entretanto, que os fatos

verdadeiros nunca foram revelados ao público em geral, e como meu amigo,

Sherlock Holmes, teve importante papel em esclarecer o mistério, acho que as

memórias dele não ficariam completas sem um esboço desse episódio notável.

Faltavam poucas semanas para meu casamento, nos dias em que ainda

compartilhava os alojamentos de Holmes na Rua Baker, quando ele chegou em

casa uma tarde após ter saído para passear a pé e encontrou uma carta na mesa

da entrada esperando por ele. Eu ficara em casa o dia todo, pois o tempo virara,

de repente, e chovia com ventos fortes de outono e a bala que trazia na perna

como relíquia da campanha do Afeganistão estava latejando persistentemente.

Sentado em uma poltrona e com as pernas esticadas em uma cadeira, havia me

rodeado de jornais até que, saturado com as notícias do dia, os jogara de lado e

ficara parado olhando o enorme monograma em relevo, encimado de uma

coroa, que estava sobre a mesa, pensando em quem poderia ser o nobre que

escrevia a meu amigo.

- Aqui está uma epístola nobre - comentei, quando ele entrou. - A

correspondência da manhã, se estou bem lembrado, consistia em contas da

peixaria.

- É, minha correspondência pelo menos tem o encanto de ser variada -

respondeu, sorrindo. - E as cartas dos mais humildes geralmente são as mais

interessantes. Isso parece um desses convites sociais muito pouco desejáveis,

que exigem que um homem minta ou que se caceteie.

Abriu o envelope e lançou um olhar no conteúdo.

- Ora, talvez isso seja interessante.

- Não é social, então?

- Não, estritamente profissional.

- E é de um cliente nobre?

- Um dos mais nobres da Inglaterra.

- Meu caro amigo, dou-lhe os parabéns.

- Asseguro-lhe, Watson, sem pretensões, que a posição social de meu

cliente vale menos para mim do que o interesse de seu caso. É possível,

entretanto, que as duas coisas existam nessa nova investigação. Você tem lido

os jornais assiduamente nos últimos dias, não tem?

- É o que parece - disse com pesar, apontando a pilha de jornais no canto

da sala. - Não tinha nada mais a fazer.

- Ainda bem, pois você poder-me-á talvez pôr em dia. Não leio nada a não

ser os anúncios pessoais e as notícias criminais. Os primeiros são sempre muito

instrutivos. Mas se você tem acompanhado as notícias recentes deve ter lido

sobre Lorde St. Simon e seu casamento.

- Ah, sim, com muito interesse.

- ótimo. A carta que tenho aqui é do Lorde St. Simon. Vou ler para você e

então vai pegar esses jornais e me contar tudo que sabe sobre o assunto. Eis

aqui o quê ele diz:

- “Prezado Sr. Sherlock Holmes:

Lorde Backwater me assegura que posso confiar inteiramente em seu

discernimento e discrição. Decidi, portanto, fazer-lhe uma visita para consultá-

lo sobre um acontecimento doloroso que ocorreu com referência a meu

casamento. O Sr. Lestrade, da Scotland Yard, já está agindo nesse assunto, mas

me assegurou que não tem nenhuma objeção à sua cooperação e acha mesmo

que pode ser útil. Irei às quatro horas da tarde e se por acaso o senhor tiver

outra coisa marcada a essa hora, espero que a desmarque, pois esse assunto é da

máxima importância.

Atenciosamente,

ROBERT ST. SIMON”

- É datada de Grosvenor Mansions, escrita com pena de ave e o nobre

lorde manchou o dedo mindinho direito com tinta - observou Holmes,

dobrando a carta.

- Falou em quatro horas. Já são três. Estará aqui dentro de uma hora.

- Tenho o tempo justo, com seu auxilio, para me inteirar do assunto. Olhe

os jornais e arrume os artigos por ordem de data, enquanto vejo exatamente

quem é nosso cliente. - Pegou um volume vermelho em uma prateleira de livros

perto da lareira. - Aqui está - disse, sentando e abrindo o volume no colo. -

“Pobert Walsingliam de Vere St. Simon, segundo filho do Duque de

Balmoral...” - Hum! - “Armas: Azul-celeste, três estrepes na parte superior do

escudo sobre uma faixa. Nasceu em 1846”. Está com quarenta e um anos,

maduro para se casar. Foi Subsecretário das Colônias em uma das últimas

administrações. O Duque, seu pai, foi Secretário do Exterior. Herdaram sangue

dos Platagenet diretamente e dos Tudor pelo lado materno. Ha! Não há nada

muito instrutivo em tudo isso. Acho que tenho de apelar para você, Watson,

para algo mais sólido.

Não há problema em encontrar o que quero porque os fatos são bem

recentes e o assunto me impressionou. Não mencionei a você porque sabia que

estava investigando um assunto e não gosta que outras questões interfiram.

- Ali, está se referindo àquele pequeno problema do caminhão de

mudança de Grosvenor Square - Isso já foi resolvido, embora fosse evidente

desde o início. Por favor, dê-me o resultado de sua pesquisa nos jornais.

- Aqui está a primeira notícia que encontrei, na coluna pessoal do Moming

Post e datada, como vê, de umas semanas atrás. “Foi contratado o casamento

que, se os boatos estiverem certos, realizar-se-á muito breve, entre Lorde Robert

St. Simon, segundo filho do Duque de Balmoral, e a Srta. Hatty Doran, filha

única de Aloysius Doran, de São Francisco, Califórnia”. É só.

- Breve e sucinto - comentou Holmes, estendendo as pernas longas e finas

para o fogo.

- Saiu um parágrafo ampliando isso em um dos jornais sociais na mesma

semana. Ali, está aqui. “Breve haverá um pedido de proteção no mercado de

casamentos, pois o princípio atual de comércio livre está prejudicando nosso

produto nacional. Urna por uma a direção das casas nobres da Grã-Bretanha

está passando às mãos de nossa lindas primas do outro lado do Atlântico. A

semana passada adicionou mais um à lista de prêmios que foram arrebatados

por essas encantadoras invasoras. Lorde St. Simon, que demonstrou por mais

de vinte anos estar à prova das setas do pequeno deus, anunciou

definitivamente seu próximo casamento com a Srta. Hatty Doran, a fascinante

filha de um milionário da Califórnia. A Srta. Doran, cuja figura graciosa e rosto

impressionante atraíram muita atenção nas festividades de Westbury House, é

filha única e dizem que seu dote será em excesso de um milhão, com mais

expectativas no futuro. Como é sabido que o Duque de Balmoral foi forçado a

vender seus quadros nos últimos anos e como Lorde St. Símon não tem

nenhuma propriedade, exceto a pequena quinta de Birchmoor, é óbvio que a

herdeira californiana não é a única a ganhar com uma aliança que permitirá que

ela faça a transição fácil e comum, nesses dias, de uma dama republicana para

um título de nobresa inglesa”.

- Mais alguma coisa? - perguntou Holmes, bocejando.

- Sim, multa. Há outra notícia no Morning Post dizendo que o casamento

seria muito quieto, na igreja de St. George, Hanover Square, que só meia dúzia

de amigos íntimos eram convidados e que o grupo iria para a casa mobiliada

em Lancaster Gate, alugada pelo Sr. Aloysius Doran. Dois dias depois, isto é,

quarta-feira passada, há umas poucas linhas dizendo que o casamento 9e

realizara e a lua-de-mel seria na propriedade de Lorde Backwater, perto de

Petersfield. Essas foram as notícias antes do desaparecimento.

- Antes do quê? - perguntou Holmes, espantado.

- Da moça desaparecer.

- Quando foi que desapareceu?

- No almoço após o casamento.

- Realmente? Isso está ficando muito mais interessante do que parecia.

Bastante dramático, até.

É. Achei que era um pouco fora do comum.

É freqüente desaparecerem antes da cerimônia e ocasionalmente durante a

lua-de-mel, mas não me lembro de nenhum caso corno esse. Por favor, dê-me

todos os detalhes.

- Devo avisá-lo que são muito incompletos.

- Talvez possamos completá-los.

- Foi tudo relatado em uma única notícia do jornal da manhã de ontem,

que vou ler para você. A manchete é: “Ocorrência Singular em Casamento

Elegante”.

- “A família de Lorde Robert St. Simon está profundamente consternada

com os episódios estranhos e dolorosos que ocorreram com relação a seu

casamento. A cerimônia, conforme anúncio breve nos jornais de ontem, teve

lugar na manhã anterior, mas somente agora foi possível confirmar os estranhos

rumores que correm tão persistentemente. Apesar dos esforços de amigos para

abafar a questão, a atenção do público foi tão despertada que de nada adianta

fingir ignorar o que é agora assunto discutido em toda parte”.

- “A cerimônia na igreja de St. George em Hanover Square foi muito

simples, com a presença somente do pai da noiva, Sr. Aloysius Doran, a

Duquesa de Balmoral, Lorde Backwater, Lorde Eustace e Lady Clara St. Simon

(o irmão mais moço e a irmã do noivo) e Lady Alicia Whittington. O casal e

convidados, após a cerimônia, dirigiram-se à casa do Sr. Aloysius Doran em

Lancaster Gate, onde seria servido o almoço. Parece que houve uma confusão

causada por uma mulher, cujo nome não é sabido, que tentou forçar a entrada

na casa, alegando que tinha uma ligação qualquer com Lorde St. Simon. O

mordomo e o lacaio só conseguiram expulsá-la depois de urna cena prolongada

e desagradável. A noiva, que felizmente entrara em casa antes dessa inoportuna

interrupção, sentara à mesa com os convidados e de repente se queixara de mal-

estar, deixando a mesa e se retirando para o quarto. Quando sua ausência se

prolongou e começaram os comentários, seu pai foi ver o que acontecia e soube

pela empregada que ela fora rapidamente ao quarto, pegara um casaco e um

chapéu e saíra às pressas. Um dos lacaios declarou que vira uma senhora sair de

casa de casaco e chapéu, mas não acreditou que fosse sua patroa, pois pensava

que ela estava com os convidados. Quando verificou que a filha desaparecera, o

Sr. Aloysius Doran, juntamente com o noivo, comunicou-se imediatamente com

a polícia e extensas investigações estão sendo efetuadas que provavelmente

resultarão em um esclarecimento rápido desse mistério. Até uma hora avançada

à noite passada, entretanto, nada se sabia sobre o paradeiro da moça

desaparecida. Fala-se em possibilidade de um crime e há boatos de que a polícia

prendeu a mulher que causara o distúrbio, acreditando que, por ciúme ou

qualquer outra razão, pode estar ligada ao estranho desaparecimento da noiva”.

- Só isso?

- Só mais um pequeno item em outro jornal da manhã, que é bem

sugestivo.

- E qual é?

- Que a Srta. Flora Millar, a mulher que causou o distúrbio, foi realmente

presa. Consta que foi dançarina no Allegro e que conhecia o noivo há vários

anos. Não há mais nenhum detalhe e o caso está agora em suas mãos.

- E parece ser extremamente interessante. Não o teria perdido por coisa

alguma desse mundo. Mas a campainha está tocando, Watson, e o relógio

marca uns minutos depois das quatro, portanto deve ser o nosso nobre cliente.

Nem pense em ir embora, Watson, pois prefiro mil vezes ter uma testemunha,

nem que seja só para checar minha própria memória.

- Lorde Robert St. Simon - anunciou o criado, abrindo a porta. Entrou um

cavalheiro de rosto agradável e educado, pálido e com um nariz imponente,

algo de petulante na curva da boca e o olhar firme de um homem acostumado a

comandar e ser obedecido. Tinha uma maneira viva e animada, mas a aparência

em geral era de mais idade, pois os ombros eram um pouco curvos e os joelhos

dobravam ligeiramente ao andar. O cabelo, também, quando tirou o chapéu de

abas viradas, estava grisalho ao redor do rosto e ralo no topo da cabeça. As

vestimentas apuradas chegavam quase ao exagero: colarinho alto, sobrecasaca

preta, colete branco, luvas amarelas, sapatos de verniz e polainas claras.

Avançou lentamente na sala, virando a cabeça de um lado para o outro e

balançando na mão direita o cordão que prendia o pinceriê de ouro.

- Boa tarde, Lorde St. Simon - disse Holmes, levantando e fazendo um

cumprimento. - Por favor, sente-se naquela poltrona. Este é meu amigo e colega,

Dr. Watson. Chegue-se mais perto da lareira e vamos conversar.

- É um assunto muito doloroso para mim, como pode facilmente imaginar,

Sr. Holmes. Estou profundamente magoado. Soube que o senhor já lidou com

vários assuntos delicados da mesma natureza, embora duvide que tenham sido

da mesma classe social.

- Não, foram de classe mais alta.

- Como?

- Meu último cliente da mesma natureza foi um rei.

- Oh! Não tinha nenhuma idéia. Que rei?

- O rei da Escandinávia.

- O quê! Ele perdeu a esposa?

- O senhor deve compreender - disse Holmes com suavidade - que trato os

assuntos de meus outros clientes com a mesma discrição que prometo ao

senhor.

- Claro! Está certo! Está certo! Por favor me perdoe. Quanto ao meu caso,

estou pronto a lhe dar todas as informações que possam lhe ajudar a formar

uma opinião.

- Obrigado. Já estou a par do que saiu nos jornais, e nada mais. Presumo

que a imprensa está correta. Esse artigo, por exemplo, sobre o desaparecimento

da noiva,

Lorde St. Simon lançou os olhos no artigo. - Sim, está correto, até onde vai.

- Mas preciso de muito mais antes de poder formar uma opinião. Acho

que poderei chegar aos fatos mais rapidamente se lhe fizer perguntas.

- Por favor, prossiga.

- Quando conheceu a Srta. Hatty Doran?

- Em São Francisco, um ano atrás.

- Estava viajando pelos Estados Unidos?

- Sim.

- Ficou noivo, então?

- Não.

- Mas ficaram amigos?

- Achava sua companhia divertida e ela sabia disso.

- O pai dela é muito rico?

- Dizem que é o homem mais rico na costa do Pacífico.

- Como foi que ele ganhou dinheiro?

- Em mineração. Há poucos anos, não tinha nada. Então encontrou ouro,

fez investimentos e enriqueceu rapidamente.

- Bem, qual sua impressão pessoal sobre o caráter da jovem... de sua

esposa?

O nobre balançou o pincenê nervosamente e fitou a lareira. - Sabe, Sr.

Holmes, minha esposa tinha vinte anos quando o pai ficou rico. Até então, vivia

no acampamento da mina, vagava pelos bosques e montanhas e sua educação

velo mais da natureza do que de uma sala de aulas. Ela é uma menina

traquinas, com uma personalidade forte, livre e selvagem, liberada de qualquer

espécie de tradições. É impetuosa... vulcânica, deveria dizer. Toma uma decisão

rapidamente e age sem o menor medo. Por outro lado, ter-lhe-ia dado o nome

que tenho a honra de possuir - tossiu discretamente - se não achasse que, no

fundo, era uma mulher nobre. Acredito que seja capaz de se sacrificar

heroicamente e que qualquer coisa desonesta lhe seria profundamente

repugnante.

- Tem uma fotografia dela?

- Trouxe isso comigo. - Abriu um medalhão e mostrou-nos o rosto de uma

mulher muito linda. Não era uma fotografia e sim uma miniatura em marfim e

o artista conseguira transmitir o efeito do cabelo negro lustroso, os grandes

olhos escuros e os lábios encantadores. Holmes contemplou-a por muito tempo,

com ar grave. Depois fechou o medalhão e devolveu-o a Lorde St. Simon.

A moça veio a Londres, então, e se encontraram novamente?

- Sim, o pai a trouxe para tomar parte nessa última temporada social.

Encontrei-a várias vezes, fiquei noivo dela e agora nos casamos.

- Trouxe consigo, pelo que soube, um dote considerável.

- Moderadamente. Não mais do que é comum em minha família.

- E esse dote, naturalmente, fica com o senhor, já que o casamento é um

feito de compensamento?

- Realmente, ainda não indaguei sobre esse assunto. - Muito natural. O

senhor viu a Srta. Doran na véspera do casamento? - sim. - Ela estava bem,

alegre? - Muito bem. Falou longamente sobre o que íamos fazer no futuro. -

Curioso. Isso é muito interessante. E quanto à manhã do dia do casamento.

- Estava muito animada'.. isto é, pelo menos até depois da cerimônia. - E

notou alguma mudança, então?

- Bem, para dizer a verdade, notei então os primeiros sinais, que já

conhecia, de que estava ficando um pouco mal-humorada. Mas foi um incidente

muito trivial e não pode ter nada a ver com o caso.

- Gostaria que me contasse, apesar disso.

- Olhe, é muito infantil. Ela deixou cair o buquê de noiva quando saíamos

da igreja. Estávamos passando por um banco e o buquê caiu nele. Demorou um

instante, mas o cavalheiro que estava sentado no banco entregou-lhe o buquê,

que parecia intato. Mas quando disse qualquer coisa a ela, respondeu-me

abruptamente. E no carro, a caminho de casa, parecia estar absurdamente

agitada com esse incidente insignificante.

- Ali, sim? Disse que o cavalheiro estava sentado no banco. Então havia

outras pessoas presentes, que não os convidados?

- Ali, sim. É impossível evitar isso quando a igreja está aberta.

- Esse cavalheiro não era um amigo de sua esposa?

- Não, não. Chamei-o de cavalheiro por mera cortesia, mas era uma pessoa

muito comum. Não reparei muito nele. Mas realmente acho que nos estamos

desviando do assunto.

- Então Lady St. Simon voltou do casamento menos alegre do que antes. O

que fez quando entrou novamente em casa de seu pai?

- Eu a vi conversando com a empregada.

- E quem é sua empregada?

- Seu nome é Alice. É americana e veio da Califórnia com ela.

- Uma criada pessoal?

- Sim, e me parecia que tomava muitas liberdades. Mas é claro que na

América essas coisas são muito diferentes.

- Quanto tempo ficou falando com essa Alice?

- Ali, uns minutos. Não prestei atenção, estava pensando em outras

- Não ouviu o que estavam falando?

- Lady St. Simon disse qualquer coisa sobre “apossar-se das terra”. Usava

muito linguagem de mineração. Não tenho a menor idéia do que queria dizer.

- A gíria americana às vezes é muito expressiva. E o que fez sua esposa

quando acabou de falar com a criada?

- Entrou na sala de almoço.

- Em seu braço?

- Não, sozinha. Era muito independente nessas pequenas coisas. Quando

estávamos sentados uns dez minutos levantou-se de repente, murmurou umas

desculpas e saiu da sala. E não voltou.

- Mas essa empregada, Alice, pelo que entendi, declarou que ela foi ao

quarto, cobriu o vestido de noiva com um longo casaco, botou um chapéu e saiu

da casa.

- Exatamente. E foi depois vista andando em Hyde Park em companhia de

Flora Millar, uma mulher que está agora presa e que já havia criado um

distúrbio em casa do Sr. Doran naquela manhã.

- Ali, sim. Gostaria de mais detalhes sobre essa moça e suas relações com

ela.

Lorde St. Simon encolheu os ombros e levantou as sobrancelhas. - Somos

amigos por muitos anos. Devo dizer, amigos íntimos. Ela costumava dançar no

Allegro. Fui bastante generoso com ela, e não tem razão de reclamar, mas o

senhor sabe como são as mulheres, Sr. Holmes. Flora era uma pessoa

encantadora, mas tinha um gênio violento e era muito dedicada a mim.

Escreveu cartas horrorosas quando soube que ia me casar e, para dizer a

verdade, a razão por que quis um casamento tão simples foi porque temi que

houvesse um escândalo na igreja. Ela foi até a porta do Sr. Doran logo que

chegamos da igreja e tentou forçar a entrada, dizendo coisas horríveis de minha

esposa e chegando até a ameaçá-la, mas eu previra a possibilidade de suceder

algo semelhante e dera instruções aos empregados, que logo conseguiram

mandá-la embora. Ficou quieta quando viu que não adiantava fazer escândalo.

- Sua esposa ouviu isso?

- Não, graças a Deus.

- E foi vista andando com essa mesma mulher depois disso?

- Sim. É isso que o Sr. Lestrade, da Scotland Yard, considera muito grave.

Acha que Flora atraiu minha esposa e armou alguma cilada horrível para ela.

- Bem, é possível.

- O senhor concorda, então?

- Não disse que fosse provável. E o senhor concorda?

- Acho que Flora não machucaria uma mosca.

O ciúme é capaz de transformar as pessoas. E qual é sua teoria quanto ao

que sucedeu?

- Bem, na verdade vim aqui em busca de uma teoria e não para apresentar

uma. Dei-lhe todos os fatos. Já que me pergunta, entretanto, posso dizer que me

ocorreu a possibilidade de que toda essa excitação e a consciência de que havia

dado um gigantesco passo social causaram algum distúrbio nervoso em minha

esposa.

- Em resumo, quer dizer que ela ficou subitamente louca?

- Bem, quando penso que ela deu as costas ... não vou dizer a mim, mas a

tanto que muitas pessoas aspiraram em vão ... não posso. explicar os

acontecimentos de nenhuma outra maneira.

- Essa, também, não deixa de ser uma hipótese - disse Holmes, sorrindo. -

E agora, Lorde St. Simon, creio que tenho quase todos os fatos. Posso perguntar

se estavam sentados à mesa de forma a poder ver pela janela?

- Podíamos ver o outro lado da rua e o parque.

- Muito bem. Creio que não é preciso detê-lo por mais tempo. Entrarei em

contato com o senhor.

- Se tiver a sorte de resolver esse caso - disse nosso cliente, erguendo-se.

- Já o resolvi.

- Hein? O que disse?

- Disse que já o resolvi.

- Então onde está minha esposa?

- Isso é um detalhe que lhe darei muito em breve.

lorde St. Simon sacudiu a cabeça. - Receio que seja preciso cabeças mais

sábias que a sua e a minha - observou e, fazendo um cumprimento majestoso e

antiquado, retirou-se.

Muita bondade de Lorde St. Simon dar-me a honra de colocar minha

cabeça no mesmo nível da sua - disse Sherlock Holmes, rindo. - Acho que vou

tomar um uísque com soda e fumar um charuto depois de todas essas

perguntas. Já chegara às minhas conclusões sobre esse caso antes de nosso

cliente entrar nessa sala.

- Meu caro Holmes!

- Tenho anotações sobre vários casos semelhantes, embora nenhum fosse

tão rápido, como já observei. Esse exame todo serviu para transformar minha

hipótese em certeza. Provas circunstanciais são às vezes muito convincentes,

como quando você encontra uma truta no leite, para citar o exemplo de

Thoreau.

- Mas eu ouvi tudo que você ouviu.

- Sem ter, entretanto, o conhecimento de casos anteriores que tanto me

ajuda. Houve um caso paralelo em Aberdeen alguns anos atrás e algo em linhas

muito semelhantes em Munique um ano depois da guerra franco-prussiaria. É

um desses casos... mas, veja, aqui vem Ustrade! Boa tarde, Lestrade! Pegue um

copo no aparador e há charutos naquela caixa.

O detetive oficial vestia urna jaqueta grossa e uma echarpe que lhe davam

decididamente uma aparência náutica e carregava na mão uma sacola de lona

preta. Com um ligeiro cumprimento de cabeça, sentou-se e acendeu o charuto

que lhe fora oferecido.

- O que está acontecendo? - perguntou Holmes, com os olhos brilhando. -

Não parece muito contente.

- E não estou. E esse caso infernal do casamento St. Simion. Não tem nem

pé nem cabeça.

- Realmente! Você me surpreende.

- Quem já ouviu uma história tão confusa? Todos os indícios escapam por

entre meus dedos. Trabalhei nisso o dia todo.

- E parece que se molhou muito - disse Holmes, pondo a mão na manga da

jaqueta. É, estávamos dragando o rio Serpentine. Meu Deus do céu, para quê?

Em busca do corpo de Lady St. Simon.

Sherlock Holmes recostou-se na poltrona e deu uma gargalhada.

- Dragaram também a bacia do chafariz de Trafalgat Square? - perguntou,

ainda rindo.

- Por quê? O que quer dizer com isso?

- Porque você tem a mesma probabilidade de encontrar a moça lá que

Lestrade lançou um olhar zangado a meu companheiro, - Suponho que

você sabe, de tudo - resmungou.

- Bem, acabei de ouvir a história, mas já cheguei a uma conclusão.

- Ali, é mesmo! Então pensa que o rio não tem nada a ver com o assunto?

- Acho muito pouco provável.

- Então talvez possa ter a bondade de explicar como é que encontramos

isso no rio? - Abriu a sacola enquanto falava e jogou no chão um vestido de

noiva de seda, um par de sapatos de cetim branco e uma coroa e véu de noiva,

tudo desbotado e encharcado de água. - Veja só - disse, colocando uma aliança

nova em cima da pilha. - Aí está uma noz para o senhor quebrar, Sr. Holmes.

- Ali, realmente - disse meu amigo, soprando anéis de fumaça no ar. -

Tirou isso tudo do rio?

- Não. Foi tudo encontrado flutuando perto da margem por um guarda

florestal. Foram identificadas como sendo as roupas dela e me parece que 9e as

roupas estavam lá, o corpo estaria por perto.

- Seguindo seu raciocínio brilhante, o corpo de qualquer um deve ser

achado perto de seu guarda-roupa. E por favor diga-me onde pretende com

isso?

A algum indício ligando Flora Millar ao desaparecimento da moça.

- Receio que isso seja um pouco difícil. - É mesmo? - exclamou Lestrade,

com aspereza. - E eu receio, Sr. Holmes, que não seja muito prático com suas

deduções e suas hipóteses. Já cometeu dois erros em dois minutos.. Esse vestido

compromete a Srta. Flora.

- Como?

- Há um bolso no vestido. No bolso há uma carteira. Nessa carteira um

bilhete. E aqui está o bilhete. - Bateu com o papel na mesa à sua frente. - Ouça

só isso: “Você me verá quando tudo estiver pronto. Venha imediatamente. F. H.

W'. A minha teoria, desde o início, foi que Lády St. Simon foi levada por um

ardil de Flora Millar e que esta, certamente com cúmplices, é responsável por

seu desaparecimento. Aqui, assinado com suas iniciais, está o bilhete que, sem

dúvida, foi enfiado sorrateiramente em sua porta, e que a levou a se entregar a

eles.

- Muito bem, Lestrade - disse Holmes, com um sorriso. - Você realmente

está indo muito bem. Deixe-me ver. - Pegou o papel desinteressadamente, mas

ficou logo alerta e soltou urna exclamação de prazer.

- Isso é realmente importante - disse.

- Ali, acha mesmo?

- Extremamente. Dou-lhe os parabéns.

Ustrade ficou de pé e se inclinou para olhar, triunfante.

- Mas olhe só! - exclamou. - Está olhando o lado errado.

- Pelo contrário, este é o lado certo.

- O lado certo? Está louco! É aqui que está o bilhete escrito a lápis, deste

lado.

- E desse é o que parece ser um pedaço de uma conta de hotel, que me

interessa profundamente.

- Não tem nada de interessante nisso. Já olhei antes - disse Lestrade. - “4

de outubro, quarto 8 xelins, café da manhã 2 xelins e 6 penies, coquetel 1xelim,

almoço 2 xelins e 6 penies, copo de xerez 8 penies”. Não vejo nada de

importante nisso.

- Provavelmente não. Mas é muito importante, assim mesmo. Quanto ao

bilhete, também é importante, ou pelo menos as iniciais o são, portanto,

humilhação; dou-lhe parabéns novamente.

- Já perdi tempo demais - disse Lestrade, de pé. - Acredito em trabalho e

não em sentar em frente da lareira elaborando lindas teorias. Uma boa tarde

para o senhor, Sr. Holmes, e vamos ver qual de nós resolve esse problema.

Pegou as roupas, meteu-as na sacola o foi em direção à porta.

- Apenas uma sugestão, Lestrade - disse Holmes, arrastando as palavras,

antes que sumisse seu rival. - Vou-lhe dar a verdadeira solução. Lddy St.Simon

é um mito. Não existe e nunca existiu essa pessoa.

Lestrade olhou meu companheiro com compaixão. Virou-se depois para

mim, bateu na testa três vezes, sacudiu solenemente a cabeça e saiu depressa.

Mal havia fechado a porta atrás de si e Holmes já se levantara e vestira o

sobretudo. - Tem alguma razão em falar de trabalho - comentou. - Acho,

Watson, que vou deixar você com seus jornais por um pouco.

Passava das cinco horas quando Sherlock Holmes saiu, mas não tive

ocasião de me sentir só, pois dentro de uma hora chegou um homem com uma

enorme caixa chata. Abriu-a com o auxílio de um rapazola que viera junto e,

para minha grande surpresa, uma ceia gastronômica começou a ser arrumada

na modesta mesa de mogno de nosso alojamento. Um par de galinhas-d'angola,

um faisão, uma torta de pâté de foie gras, com um grupo de garrafas vetustas e

poeirentas. Após arrumar essas as os dois visitantes sumiram, como o gênio das

Noites da Arábia, sem qualquer explicação, exceto que tudo estava pago e tinha

sido encomendado para entrega nesse endereço.

Pouco antes de nove horas Sherlock Holmes entrou, animado. As feições

estavam graves, mas os olhos brilhavam, o que me fez pensar que não tinha

ficado desapontado em suas conclusões.

- Trouxeram a ceia - disse, esfregando as mãos.

- Parece que está esperando visitas. Puseram a mesa para cinco pessoas.

- Sim, acho que vamos ter companhia - disse. - Estou surpreso que Lorde

St. Simon não tenha chegado ainda. Ali! Acho que estou ouvindo seus passos na

escada.

Era realmente nosso visitante da manhã que entrou apressadamente,

balançando o cordão do pincenê mais vigorosamente que nunca, e com um ar

muito perturbado nas feições aristocráticas.

- Meu mensageiro o encontrou, então? - perguntou Holmes.

- Sim, e devo confessar que o conteúdo muito me espantou. Está seguro do

que disse?

- Absolutamente.

Lorde St. Simon caiu em uma cadeira e passou a mão pela testa.

- O que dirá o Duque - murmurou - quando souber que um membro da

família sofreu tal humilhação?

- Foi mero acidente. Não concordo que haja havido nenhuma humi-

- Ali, olha essas coisas de outro ponto de vista.

- Não vejo como ninguém seja culpado. Não posso imaginar como a moça

poderia ter agido de outra forma, embora seja lastimável que tenha usado

métodos tão abruptos. Mas como não tem mãe, não havia ninguém para

aconselhá-la nessa crise.

- Foi uma ofensa, senhor, uma ofensa pública - disse St. Simon, batendo

com os dedos na mesa.

- Deve ser tolerante com essa pobre moça, colocada em situação tão difícil.

Não serei tolerante. Estou muito zangado, realmente, e fui

vergonhosarnente usado.

- Acho que ouvi a campainha - disse Holmes. - É, ouço passos na entrada.

Se não posso persuadi-lo a ser leniente nesse assunto, Lorde St. Simon, trouxe

aqui um defensor que talvez seja mais bem-sucedido. - Abriu a porta e fez

entrar uma dama e um cavalheiro. - Lorde St. Simon - disse - permita-me

apresentar-lhe o Sr. e a Sra. Francis Hay Moulton. A senhora, acho eu, o senhor

já conhece.

À vista dos recém-chegados nosso cliente ficara de pé, muito empertigado,

com os olhos baixos e uma das mãos enfiadas no peito da sobrecasaca, a

verdadeira imagem da dignidade ofendida. A senhora dera um passo em sua

direção e estendera a mão, mas ele continuara de olhos baixos. Tanto melhor

para ele, talvez, pois o rosto suplicante dela era difícil de resistir.

- Você está zangado, Robert: - ela disse. - Bem, acho que tem toda a razão.

- Tenha a bondade de não pedir desculpas a mim - disse Lorde St. Simon

amargamente.

- Ali, sim, sei que o tratei muito mal, e devia ter falado com você antes de

partir. Mas estava muito perturbada e desde que vi Frank não sabia o que

estava fazendo ou dizendo. Foi um milagre que não caísse no chão desmaiada

lá mesmo em frente ao altar.

- Talvez, Sra. Moulton, preferisse que meu amigo e eu saíssemos da sala

enquanto explica tudo?

- Se é que posso dar minha opinião, - disse o cavalheiro desconhecido -já

têm havido segredos demais nesse negócio. Por mim, gostaria que toda a

Europa e a América ouvissem tudo. - Era um homem pequeno, musculoso,

queimado do sol, com feições agudas e uma maneira alerta.

- Então contarei nossa história agora mesmo - disse a senhora. - Este aqui é

o Frank e nos encontramos em 1881, na mina de McQuire, perto das Montanhas

Rochosas, onde o Pai estava trabalhando nas terras de mineração que

arrendara. Frank e eu ficamos noivos, mas um dia o Pai encontrou um veio

muito bom e ficou rico, enquanto que o pobre Frank tinha uma concessão que

não deu em nada. Quanto mais rico o Pai ficava, mais pobre ficava o Frank.

Finalmente o Pai não quis mais ouvir falar de nosso noivado e me levou embora

para São Francisco. Frank não desistiu, entretanto, e me seguiu até lá, e nós nos

víamos sem meu pai saber de nada. Ficaria muito zangado w soubesse, então

nos escondíamos dele. Frank disse que iria embora fazer sua fortuna e não

voltaria para me buscar enquanto não tivesse tanto dinheiro quanto meu pai.

Então prometi que esperaria por ele para sempre e que não me casaria com

ninguém mais enquanto ele vivesse. - “Então por que não nos casamos agora

mesmo”, ele disse, “e aí ficarei o de você. E direi que sou seu marido enquanto

não voltar para buscá-la”. Bem, conversamos um pouco e ele tinha, arrumado

tudo tão direitinho, com o sacerdote pronto, à espera, que nos casamos ali

mesmo. E então Frank foi embora em busca da fortuna e voltei para meu pai.

- A próxima notícia que tive era de que Frank estava em Montana e depois

foi trabalhar em minas no Arizona e depois disso tive notícias do Novo México.

Depois veio um artigo longo no jornal sobre um acampamento de mineiros que

havia sido atacado pelos índios apache e o nome do Frank estava na lista dos

que haviam sido mortos. Desmaiei quando li isso e fiquei muito doente durante

meses. O Pai pensou que tinha alguma doença rara e me levou a todos os

médicos de São Francisco. Não tive nenhuma notícia por mais de um ano, e

nunca duvidei que Frank estivesse realmente morto. Então Lorde St. Simon veio

a São Francisco e nós viemos a Londres e arranjaram esse casamento, e meu pai

ficou muito contente, mas eu sentia todo o tempo que nenhum homem neste

mundo poderia tomar o lugar do meu pobre Frank em meu coração.

- Mesmo assim, se casasse com Lorde St. Simon, claro que teria cumprido

meu dever com ele. Não se pode ordenar o amor, mas os atos sim. Fui até o

altar com ele decidida a ser a melhor esposa possível. Mas podem imaginar o

que senti quando entrei na igreja e vi Frank olhando para mim de um dos

bancos. Primeiro pensei que fosse um fantasma, mas quando olhei de novo, ele

ainda estava lá, com uma espécie de interrogação nos olhos, como se me

estivesse perguntando se estava contente ou triste de vê-lo. Foi um milagre eu

não ter desmaiado. Só sei que tudo estava virando e as palavras do sacerdote

eram como um zumbido de abelhas em meus ouvidos. Não sabia o que fazer.

Deveria interromper a cerimônia e fazer uma cena na igreja? Olhei novamente

para ele e parecia que sabia o que eu estava pensando, pois ergueu um dedo aos

lábios fazendo sinal de silêncio. Depois vi que rabiscava em um pedaço de

papel e sabia que estava escrevendo para mim. Quando passei pelo banco dele

ao sair da igreja, deixei cair meu buquê e ele enfiou o bilhete em minha mão

quando devolveu as flores. Era uma linha só, pedindo que me encontrasse com

ele quando me desse o sinal. Claro que nunca duvidei por um instante que meu

primeiro dever era para com ele e decidi fazer exatamente o que ele mandasse.

- Quando voltei a casa contei à minha criada, que o conhecera na

Califórnia, e sempre gostara muito dele. Mandei que não dissesse nada a

ninguém, mas que arrumasse umas roupas e deixasse meu casaco e chapéu a

mão. Sei que devia ter falado com Lorde St. Simon, mas era extremamente

difícil em frente de sua mãe e todos os ilustres convidados. Resolvi fugir e

contar tudo depois. Não fiquei sentada nem dez minutos à mesa quando vi

Frank pela janela, do outro lado da rua. Fez sinal para mim e começou a andar

em direção ao parque. Fui até o quarto, vesti o casaco e fui atrás dele. Uma

mulher velo atrás de mim, falando qualquer coisa sobre Lorde St. Simon

(parece, pelo pouco que ouvi, que ele tinha um segredo também antes do

casarnento), mas consegui me livrar dela e logo alcancei Frank. Tomamos um

carro juntos e fomos para um quarto que ele alugara em Gordon Square, e isso

foi meu verdadeiro casamento depois de todos esses anos de espera. Frank fora

prisioneiro dos apache e fugira, fora para São Francisco, descobrira que eu o

considerava morto e tinha ido para a Inglaterra, seguiu-me até aqui e me

encontrou na manhã do meu casamento.

- Vi no jornal - explicou o americano. - Dava o nome dela e a igreja, mas

não dizia onde ela morava.

- Conversamos então sobre o que deveríamos fazer e Frank era a favor de

contar tudo, mas eu estava tão envergonhada que só queria desaparecer e

nunca mais ver nenhum deles, só mandar umas linhas para o Pai para dizer que

estava viva. Era horrível para mim pensar em todos aqueles lordes e ladies

sentados em volta da mesa de almoço, esperando que eu voltasse. Então Frank

pegou minhas roupas e tudo, fez um pacote e, para que não servisse de pista,

jogou em algum lugar onde ninguém ia encontrá-lo. Era provável que

estivéssemos a caminho de Paris amanhã, mas esse cavalheiro, o Sr. Holmes,

veio nos procurar esta tarde, embora não consiga imaginar como ele nos

encontrou, e mostrou claramente e com muita bondade que eu estava errada e

Frank tinha razão, e que devíamos contar toda a verdade. Ofereceu-nos a

oportunidade de falar com Lorde St. Simon sozinho, e então viemos a seus

aposentos imediatamente. Agora, Robert, você ouviu a história toda e sinto

muito se o magoei, mas espero que você não fique muito sentido comigo.

Lorde St. Simon não relaxara sua atitude rígida, mas ouvira com a testa

franzida e os lábios comprimidos toda essa longa narrativa.

- Perdoe-me, - disse - mas não é meu costume discutir assuntos pessoais

íntimos em público.

- Então não vai me perdoar? Não vai apertar minha mão antes que eu me

vá?

- Oh, claro, se isso lhe dá prazer. - Estendeu a mão e apertou friamente a

mão que ela lhe estendeu.

- Esperava - sugeriu Holmes - que nos acompanhasse em uma pequena

ceia.

- Acho que está pedindo demais - respondeu o nobre. - Posso ser forçado a

aceitar esses recentes acontecimentos, mas não devem esperar que os

comemore. Acho que, com sua permissão, vou me retirar agora, desejando a

todos uma muito boa-noite. - Incluiu todos no cumprimento de cabeça e saiu da

sala.

- Então espero que pelo menos o casal me honre com sua companhia -

disse Sherlock Holmes. - E sempre um prazer conhecer um americano, Sr.

Moulton, pois sou uma pessoa que acredita que a loucura de um monarca e a

idiotice de um Ministro em anos passados não evitará que nossos filhos sejam

algum dia cidadãos do mesmo país debaixo de uma bandeira que será uma

combinação da inglesa e da americana.

- Esse caso foi bem interessante - disse Holmes quando os visitantes

haviam saído. - Serve para demonstrar claramente como a explicação de uni

mistério pode ser muito simples, mesmo quando de início pareça inexplicável.

Nada podia ser mais inexplicável. Nada podia ser mais natural que a seqüência

de acontecimentos conforme narrada por essa senhora, e nada mais estranho

que o resultado quando visto, por exemplo, pelo Sr. Lestrade da Scotland Yard.

- Você não estava errado, então?

- Desde o princípio dois fatos foram muito óbvios para mim. Um era que a

moça estava disposta a se submeter à cerimônia de casamento, o outro que se

arrependera disso poucos minutos após voltar a casa. É evidente que alguma

coisa tinha acontecido durante a manhã para fazê-la mudar de idéia. O que

poderia ter sido? Não poderia ter falado com ninguém quando estava fora de

casa, pois estava acompanhada pelo noivo. Então teria visto alguém? Se tivesse

teria sido alguém da América, pois tinha passado tão pouco tempo neste país

que não poderia ter permitido que ninguém tivesse adquirido uma importância

tão grande que bastava vê-lo para mudar seus planos completamente. Veja que

já chegamos, por um processo de exclusão, à idéia de que ela deveria ter visto

um americano. Então quem poderia ser esse americano? E por que teria tanta

influência sobre ela? Poderia ser amante; poderia ser um marido. Sua juventude

havia, eu sabia, sido passada em cenas rudes e sob condições estranhas. Já havia

chegado a esse ponto antes de ouvir a narrativa de Lorde St. Simon. Quando

nos: contou sobre o homem no banco da igreja, da mudança no estado de

espírito da noiva, da maneira tão óbvia de conseguir passar um bilhete,

deixando cair o buquê, da conversa com a criada confidencial e a alusão muito

significativa a se apossar de terras, que em linguagem dos mineiros quer dizer

tomar posse daquilo a que outra pessoa já tem direito, a situação ficou

absolutamente clara. Ela fugira com um homem, e esse homem era um amante

ou um marido anterior, e as probabilidades eram a favor dessa última hipótese.

- E como foi que os encontrou?

- Talvez tivesse sido difícil, mas nosso amigo Lestrade tinha essa

informação nas mãos e não lhe deu valor. As iniciais eram, claro, de grande

importãncia, mas mais valioso ainda era saber que nessa semana ele pagara a

conta em um dos hotéis mais exclusivos de Londres.

- Corno sabia que era exclusivo?

- Pelos preços exclusivos. Oito xelins por um quarto e oito penies por um

copo de xerez mostravam que se tratava de um dos hotéis mais caros. Não há

muitos em Londres que cobram esses preços. No segundo que visitei na

Avenida Northumberland vi pelo registro que Francis H. Moulton, um

cavalheiro americano, saíra no dia anterior e vendo os itens de sua conta

encontrei exatamente os mesmos que vira na duplicata da conta. A

correspondência era para ser enviada a 226 Gordon Square, por conseguinte me

encaminhei para lá e tive a sorte de encontrar o casal amoroso em casa.

Arrisquei dar-lhes uns conselhos paternais e lhes mostrar que seria melhor, de

todos os lados, que esclarecessem sua posição ao público em geral e a Lorde St.

Simon em particular. Convidei-os a se encontrar com ele aqui, e como viu,

obriguei-o a comparecer.

- Mas sem resultado nenhum - comentei. - A atitude dele não foi nada

elegante.

- Ali! Watson, - disse Holmes, sorrindo - talvez você também não fosse

nada elegante se, depois de todo o trabalho de fazer a corte e se casar, você se

encontrasse privado no mesmo momento de sua esposa e de uma fortuna. Acho

que devemos julgar Lorde St. Simon com muita compaixão e agradecer os céus

que não é provável que jamais nos encontremos na mesma situação. Puxe sua

cadeira para perto e dê-me meu violino, pois nosso único problema agora é

como passar essas noites sombrias de outono.

1

O POLEGAR DO ENGENHEIRO ARTHUR CONAN DOYLE

As aventuras de Sherlock Holmes

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De todos os problemas que foram submetidos a meu amigo Sherlock Holmes durante os anos de nossa associação, somente dois foram trazidos por mim: o do polegar do Sr. Hatherley e o da loucura do Coronel Warburton. Dos dois, o último talvez tenha proporcionado um campo maior para um observador perspicaz e original, mas o primeiro foi tão estranho de início e tão dramático nos detalhes, que talvez mereça mais ser relatado, ainda que tenha dado menos oportunidades a meu amigo para os métodos dedutivos de raciocínio com os quais; conseguia resultados tão notáveis. A história foi narrada mais de uma vez nos jornais, creio, mas, como todas essas narrativas, seu efeito é muito menor quando compactado em meia coluna impressa do que quando os fatos evoluem lentamente diante de seus olhos e o mistério é gradativamente esclarecido à medida que cada nova descoberta fornece um passo que leva eventualmente à verdade. Na ocasião, as circunstâncias deixaram profunda impressão em mim e o lapso de dois anos pouco enfraqueceu a imagem. Foi no verão de 1889, pouco depois de meu casamento, que sucederam os acontecimentos que vou resumir. Eu voltara a exercer minha profissão e abandonara finalmente Holmes em seus aposentos na Rua Baker, embora o visitasse constantemente e ocasionalmente até o convencesse a abandonar seus hábitos boêmios e vir nos ver. Meus clientes se haviam tomado bem numerosos e como eu morava não muito longe da Estação de Paddington, tinha alguns funcionários de lá como pacientes. Um deles, que eu havia curado de uma doença dolorosa e de longa duração, não se cansava de apregoar minhas virtudes e de me mandar todos os sofredores sobre os quais tinha alguma influência. Uma manhã, pouco antes das sete horas, fui acordado pela empregada batendo à porta para anunciar que dois homens haviam vindo de Paddington e estavam esperando no consultório. Vesti-me às pressas, pois sabia por experiência. Que casos de estrada de ferro raramente eram banais, e apressei-me a descer. Enquanto descia, meu velho aliado, o guarda, saiu da sala e fechou bem a porta. Ele está aqui dentro - murmurou, apontando com o polegar por cima do ombro. - Ele está bem. - 0 que é então? - perguntei, pois seus gestos sugeriam que era alguma estranha criatura que tinha encarcerado em minha sala. - É um novo doente - murmurou. - Achei que devia vir com ele aqui, eu mesmo, assim ele não podia escapar. Ele está aí dentro, são e salvo. Tenho de ir agora, Doutor, tenho meus deveres, assim como o senhor. - E assim se foi, sem me dar tempo sequer de lhe agradecer. Entrei em meu consultório e encontrei um cavalheiro sentado junto à mesa. Estava vestido sobriamente, com um temo de tweed mesclado, e um boné de fazenda macia que tirara e colocara em cima de meus livros. Uma das mãos estava enrolada em um lenço, que estava todo manchado de sangue. Era jovem, não tinha mais que vinte e cinco anos e o rosto era acentuadamente másculo, mas estava extremamente pálido e deu-me a impressão de um homem que estava profundamente agitado e usando toda sua força de vontade para se controlar.

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- Sinto muito acordá-lo tão cedo, Doutor - disse. - Mas sofri um acidente muito sério durante a noite. Vim de trem hoje de manhã e quando perguntei em Paddington onde poderia encontrar um médico, um camarada muito amável me trouxe aqui. Dei um cartão à empregada, mas vejo que ela o deixou em cima daquela mesinha. Peguei o cartão e li: "Sr. Victor Hatherley, Engenheiro hidráulico, 16-A Rua Victoria (39 andar)". Era esse o nome, profissão e endereço de meu visitante matutino. - Desculpe por tê-lo feito esperar - disse, sentando em minha poltrona. - Acaba de chegar de uma viagem noturna, pelo que diz o que em si só é uma ocupação monótona. - Oh, a noite que passei nunca poderia ser chamada de monótona - respondeu, rindo. Continuou rindo em tom alto e agudo, recostando-se na cadeira e sacudindo-se todo. Todos os meus instintos de médico se revoltaram com essas gargalhadas. - Pare! - gritei. - Controle-se! - E enchi um copo com água de uma garrafa. Não adiantou nada. Era uma dessas explosões histéricas que acontecem com uma personalidade forte quando uma grande crise finalmente passa. Eventualmente voltou ao normal, muito cansado e com o rosto vermelho. - Fiz um papel de idiota - disse em voz rouca. - Não foi nada. Beba isso! - Derramei um pouco de conhaque no copo com água e a cor começou a voltar a suas faces. - Agora estou melhor! - disse. - Então, Doutor, tenha a bondade de tratar do meu polegar, ou melhor, do lugar onde era o meu polegar. Desenrolou o lenço e estendeu a mão. Até meus nervos endurecidos estremeceram-se. Quatro dedos se projetavam, e uma horrenda superfície vermelha e esponjosa onde o polegar deveria estar. Havia sido brutalmente cortado ou arrancado das raízes. - Céus! - exclamei. - Que ferida horrível. Deve ter sangrado muito. - Sim, sangrou. Desmaiei quando aconteceu e acho que fiquei desacordado muito tempo. Quando voltei a mim vi que ainda estava sangrando enrolei o lenço bem apertado no pulso, segurando com um pedaço de pau. Excelente! 0 senhor devia ter sido um cirurgião. É uma questão de hidráulica, sabe, e aí tenho conhecimentos. Isso foi feito - disse, examinando a ferida - com um instrumento pesado e afiado. - Com uma machadinha de açougueiro. - Presumo que foi um acidente. - De maneira nenhuma. - 0 quê, um ataque. - Decididamente. - 0 senhor está me deixando horrorizado. Limpei a ferida, lavei-a e fiz um curativo. Ele agüentou tudo sem estremecer, embora mordesse o lábio de vez em quando. - Que tal? - perguntei, quando terminei. - Excelente! Com seu conhaque e seu curativo já me sinto outro homem. Estava muito fraco, pois passei por muitas coisas. - Talvez seja melhor não falar no assunto. Evidentemente o deixa muito nervoso. - Oh, não, agora não. Tenho de contar minha história à polícia, mas, entre nós, se não fosse pela prova evidente dessa minha ferida, ficaria muito surpreso se acreditassem em mim, pois minha história é realmente extraordinária e não tenho

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provas para confirmá-la. E mesmo que acreditassem em mim, as pistas que posso lhes dar são tão - vagas que é muito duvidoso se jamais se poderá fazer justiça. - Ah! - exclamei. - Se trata de um problema que o senhor gostaria que fosse resolvido, recomendaria altamente que fosse consultar - meu amigo, Sherlock Holmes, antes de ir à polícia. - Oh, ouvi falar desse homem - respondeu meu visitante - e ficaria muito contente se ele se encarregasse do assunto, embora tenha de usar a polícia oficial também. Pode me dar uma apresentação para ele? - Farei melhor que isso. Vou levá-lo lá eu mesmo. - Ficaria imensamente grato ao senhor. - Vamos chamar um carro e iremos juntos. Chegaremos bem a tempo de tomar café com ele. Sente-se bastante bem para isso? - Sim. Não me sentirei aliviado enquanto não contar minha história. - Então minha empregada chamará um carro e estarei de volta em um instante. - Subi as escadas correndo, expliquei o sucedido à minha esposa rapidamente e em cinco minutos estava dentro de um carro, levando meu novo paciente para a Rua Baker. Sherlock Holmes estava, como eu esperava, descansando em sua sala de estar, vestindo um roupão e lendo os anúncios pessoais do enquanto fumava seu cachimbo de antes do café, composto de todas as sobras de fumo do dia anterior, cuidadosamente secas e amontoadas em um canto da prateleira sobre a lareira. Recebeu-nos com sua amabilidade calma, mandou vir mais ovos e bacon e nos acompanhou em uma lauta refeição. Quando terminamos, sentou nosso novo conhecido no sofá, colocou uma almofada atrás de sua cabeça e um copo de conhaque com água a seu alcance. - É fácil de ver que sua experiência não foi muito comum, Sr. Hatherley - disse. - Por favor, fique deitado e sinta-se completamente à vontade. Conte-nos o que puder, mas pare quando se sentir cansado, e se fortifique com um pouco desse estimulante. - Obrigado, - disse meu paciente - mas me sinto outro homem desde que o Doutor fez o curativo, e acho que seu café da manhã completou a cura. Vou tomar o menos possível de seu valioso tempo, por isso começarei imediatamente a relatar minhas extraordinárias experiências. Holmes estava sentado em sua ampla poltrona, com a expressão de cansaço, com pálpebras pesadas, que encobria sua natureza aguda e perspicaz e eu à sua frente, enquanto ouvíamos em silêncio a estranha história que nosso visitante nos contou. - É preciso dizer que sou órfão e solteiro, moro sozinho em quartos alugados em Londres. Minha profissão é de engenheiro hidráulico e tive considerável experiência de trabalho durante os sete anos que passei como estagiário na grande firma Venriar & Matheson, em Greenwich. Há dois anos, tendo completado meu estágio e também tendo herdado uma quantia adequada pela morte de meu pobre pai, decidi estabelecer-me por conta própria e aluguei salas na Rua Victoria. - Suponho que todo mundo passa pelo mesmo quando está começando a vida e abre um escritório. Em dois anos, só o que me apareceu foram três consultas e um pequeno serviço, nada mais. Minha renda bruta não passa de vinte e sete libras e dez xelins. Todos os dias, das nove da manhã até as quatro da tarde ficava em minha pequena sala, até que comecei a acreditar que nunca teria uma clientela.

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- Ontem, entretanto, quando estava pensando em fechar o escritório, meu empregado entrou para dizer que um cavalheiro queria falar comigo sobre um trabalho. Trouxe um cartão com o nome de "Coronel Lysander Stark" impresso. Logo em seguida veio o próprio Coronel, um homem bastante alto e extremamente magro. Acho que nunca vi um homem tão magro assim. 0 rosto se resumia em nariz e queixo e a pele das faces estava esticada sobre os ossos protuberantes. No entanto, essa magreza parecia coisa natural e não fruto de alguma doença, pois seus olhos eram brilhantes, seus movimentos cheios de energia e sua postura confiante. Estava vestido sobriamente e julguei que deveria ter uns quarenta anos. - 'Sr. Hatherley?’, indagou, com ligeiro sotaque alemão. "0 senhor foi recomendado, Sr. Hatherley, como sendo uma pessoa eficiente em sua profissão e também ornamente discreto e capaz de guardar um segredo" Cumprimentei-o, sentindo-me lisonjeado com essas palavras, como qualquer rapaz da minha idade. 'Posso indagar quem me recomendou?-, perguntei. - 'Talvez seja melhor não dizer por enquanto. “A mesma pessoa me informou que o senhor é órfão e solteiro e reside sozinho em Londres.” - 'Terrivelmente correto’, respondi, "mas permita-me observar que nada disso tem a ver com minha capacidade profissional. Não é sobre um assunto profissional que o senhor quer falar comigo?”. - "Sem dúvida alguma. Mas o senhor viu que tudo que digo tem uma o de ser. Tenho um trabalho para o senhor, mas é essencial que haja segredo absoluto, entende, segredo absoluto, e naturalmente é mais fácil obter isso de um homem que mora sozinho do que um que reside no seio da família." - Se prometer guardar segredo, retorquiu, "pode ter certeza absoluta que cumprirei o prometido". Ele me olhou fixamente enquanto eu falava e me pareceu que nunca vira um olhar tão desconfiado e inquisitivo. - Então, promete? Perguntou finalmente. - "Sim, prometo. " - "Silêncio completo e absoluto, antes, durante e depois? Nenhuma referência ao assunto, nem oral, nem por escrito”? - "Já lhe dei minha palavra". - "Muito bem." Levantou-se de repente e, atravessando a sala como um relâmpago, abriu a porta. 0 corredor estava deserto. - Muito bem, disse, voltando. "Sei que os empregados às vezes ficam curiosos sobre os negócios de seus patrões. Agora podemos falar em segurança". Puxou a cadeira para junto da minha e começou a me fixar novamente com aquele olhar inquisitivo e pensativo. - Uma sensação de repulsa e alguma coisa semelhante ao medo começou a se apossar de mim, vendo as excentricidades desse homem esquelético. Nem mesmo meu medo de perder um cliente podia me impedir de mostrar minha impaciência. - Teço-lhe que declare a que veio senhor disse-lhe. "Meu tempo é muito valioso". Deus me perdoe por esta última frase, mas falei sem pensar: - O que acha de cinqüenta guinéus por uma noite de trabalho? Perguntou. - “Maravilhoso.” - "Estou dizendo uma noite de trabalho, mas uma hora seria mais apropriado. Apenas quero sua opinião sobre uma máquina hidráulica de estampar que não está

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funcionando bem. Se nos mostrar o que está errado, nós mesmos a consertaremos. 0 que acha de uma incumbência dessas?" - “O trabalho parece ser pouco e a remuneração excelente”. - Precisamente. Queremos que venha hoje à noite pelo último trem. - "Aonde?" - "A Eyford, em Berkshire. É um lugarejo perto da fronteira de Oxfordshire, a dez quilômetros de Reading. Há um trem de Paddington que o deixará lá aproximadamente as onze e quinze". - "Muito bem." - "Irei buscá-lo com um carro". - "Fica longe da estação?". - "Sim, nossa pequena propriedade fica no meio do mato. São uns dez quilômetros da estação de Eyford". - "Então não chegaremos antes da meia-noite. Imagino que não há chance nenhuma de um trem de volta. Serei obrigado a passar a noite lá". Podemos arranjar acomodações para o senhor. "É um pouco incômodo. Não seria possível ir a uma hora mais conveniente?" - "Achamos melhor o senhor ir à noite. É para recompensá-lo por qualquer inconveniência que estamos pagando ao senhor, um rapaz jovem e desconhecido, um honorário que compraria a opinião dos maiores de sua profissão. Mas é claro que se o senhor quiser desistir do negócio, tem toda a liberdade". - Pensei nos cinqüenta guinéus e como me seriam úteis. "De maneira nenhuma", respondi. O maior prazer em fazer o que deseja. Gostaria, entretanto, de entender um pouco melhor o que é exatamente que o senhor quer que eu faça. - 'Pois não. É muito natural que a promessa de segredo que extraímos' do senhor o faça ficar curioso. Não quero que se comprometa à coisa alguma sem saber do que se trata. Suponho que não haja risco nenhum de alguém nos escutar? - "Absolutamente." - "Então é o seguinte. 0 senhor deve saber que greda de um produto valioso e que só é encontrada em um ou dois lugares na Inglaterra, pois não”? - "Já ouvi dizer". - "Há algum tempo comprei uma pequena propriedade, muito pequena, a uns doze quilômetros de Reading. Tive a sorte de descobrir que havia um depósito de greda em um dos meus campos. Ao examiná-lo, entretanto, vi que esse depósito era relativamente pequeno e fazia ligação com dois muito maiores, um à direita e outro à esquerda, ambos nas propriedades de meus vizinhos. Esses bons homens não sabiam absolutamente que suas terras continham o que era equivalente a uma mina de ouro. Naturalmente, meu interesse seria comprar suas terras antes que descobrissem seu verdadeiro valor, mas, infelizmente, não tinha capital para isso. Compartilhei o segredo com alguns amigos meus e eles sugeriram que começássemos a trabalhar secretamente em nosso pequeno depósito e assim ganharíamos o suficiente para comprar as terras dos vizinhos. É isso que vimos fazendo por algum tempo e, para auxiliar as operações, fizemos uma prensa hidráulica. Essa prensa, como já expliquei, não está funcionando bem e queremos sua opinião. Contudo, guardamos nosso segredo zelosamente e se fosse sabido que temos engenheiros hidráulicos vindo à nossa casa isso despertaria suspeitas e se os fatos viessem à tona, seria adeus à possibilidade de adquirir essas terras e

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realizar nossos planos. É por isso que fiz o senhor prometer que não dirá a ninguém que vai hoje à noite. Espero que tenha explicado tudo claramente". - "Compreendo" respondi. "A única coisa que não entendi bem é qual é a utilidade de uma prensa hidráulica na extração de greda de prisioneiro, que, pelo que sei, é escavada da terra como pedra de uma pedreira". - "Ali!" ele disse displicentemente. "Temos nosso processo especial. Comprimimos a terra em tijolos para poder removê-los sem revelar o que contêm. Mas isso é mero detalhe. Contei-lhe toda nossa história, Mr. Hatherley, e demonstrei que confio no senhor". Ergueu-se enquanto falava. "Vou esperá-lo, então, em Eyford. Às 1 1h15m." - "Estarei lá com certeza". - "Nem uma palavra a ninguém." Lançou-me um longo olhar inquisitivo e, com um aperto de mãos, saiu apressado da sala. - Bem, quando pensei em tudo isso com calma fiquei, como devem imaginar muito espantado com essa súbita incumbência que havia recebido. Por um lado, é claro, estava contente, pois os honorários eram pelo menos dez vezes mais do que teria pedido se fosse eu que tivesse feito o preço e era possível que esse serviço levasse a outros. Por outro lado, a expressão e a maneira de meu cliente causaram uma impressão muito desagradável em mim e não achei que a explicação sobre a greda de prisioneiro fosse razão suficiente para essa visita à meia-noite e para justificar sua ansiedade de que eu não dissesse nada a ninguém. Mas apesar disso, pus de lado meus receios, fiz uma lauta refeição, fui para Paddington e comecei minha viagem, obedecendo fielmente à recomendação de não dizer nada a ninguém. - Em Reading mudei não só de vagão, mas também de estação. Consegui pegar, entretanto, o último trem para Eyford e cheguei à pequena e escura estação depois de onze horas. Fui o único passageiro a saltar lá e não havia ninguém na plataforma, exceto um porteiro sonolento, com uma lanterna. Quando pelo portão, entretanto, encontrei meu conhecido da manhã esperando no escuro, do outro lado. Sem dizer uma palavra, pegou meu braço e levou-me rapidamente para um carro, cuja porta estava aberta. Fechou as janelas dos dois lados, deu urnas pancadinhas na madeira e o carro se arremessou à frente a toda velocidade. - Um cavalo só? - perguntou Holmes. - Só um. - Notou de que cor era? - Sim, vi à luz das lanternas laterais quando entrava no carro. Era um cavalo baio. - Com aparência cansada? - Não, descansado e vigoroso. - Obrigado. Desculpe a interrupção. Por favor, continue sua história. É muito interessante. - Lá nós fomos pelo menos por uma hora. 0 Coronel Lysander Stark havia dito que eram somente uns dez quilômetros, mas achei, pela velocidade em que andávamos e o tempo que levamos que deviam ser pelo menos uns quinze. Sentou-se a meu lado em silêncio todo o tempo e vi mais de uma vez, quando olhei para ele, que estava me olhando com grande intensidade. As estradas pareciam não ser muito boas naquela região, pois sacudimos e balançamos de um lado para o outro todo o tempo. Tentei olhar pelas janelas para ver onde estávamos, mas o vidro era fosco e não pude ver nada, só a mancha de uma luz ocasional. De vez em quando dizia

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alguma coisa para quebrar a monotonia da viagem, mas o Coronel respondia em monossílabos; e a conversa morria. Finalmente os solavancos da estrada cederam lugar a um caminho de cascalho e o carro parou. 0 Coronel Lysander Stark saltou e, quando o segui, puxou-me rapidamente para uma varanda que se abria à nossa frente. Saímos, por assim dizer, diretamente do carro para o hall de entrada, de forma que não pude nem ver a frente da casa. No minuto em que transpus a soleira da porta, esta se fechou atrás de nós e ouvi o ruído das rodas do carro que se afastava. - Estava totalmente escuro dentro de casa e o Coronel tateou em volta procurando fósforos e resmungando baixinho. Subitamente uma porta se abriu na outra extremidade da passagem e uma longa faixa dourada de luz se estendeu em nossa direção. Alargou-se e uma mulher surgiu com uma lâmpada que segurava acima da cabeça, empurrando o rosto para a frente e olhando para nós. Pude ver que era bonita e pelo brilho da luz no vestido escuro que usava, vi que era de uma fazenda de boa qualidade. Disse algumas palavras em uma língua estrangeira e o tom era como se estivesse fazendo uma pergunta e quando meu companheiro respondeu com um monossílabo rude ela estremeceu tanto que a lâmpada quase caiu de sua mão. 0 Coronel Stark foi até ela, murmurou qualquer coisa em seu ouvido e aí, empurrando-a em direção ao quarto de onde viera, veio para mim novamente com a lâmpada na mão. - Teço-lhe que tenha a bondade de esperar neste quarto uns minutos disse, abrindo outra porta. Era um quarto pequeno, mobiliado simplesmente com uma mesa redonda no centro, na qual estavam espalhados vários livros em alemão. 0 Coronel Stark colocou a lâmpada sobre um harmônio perto da porta. "Não o farei esperar muito," disse, e desapareceu na escuridão. - Lancei um olhar nos livros sobre a mesa e apesar de não saber alemão, vi que dois eram tratados sobre ciências e os outros, livros de poesia. Fui até a janela, esperando ver alguma coisa da paisagem, mas estava coberta por pesadas tábuas de carvalho. Era uma em extraordinariamente silenciosa. Ouvi o tique-taque de um velho relógio em alguma parte do corredor, mas fora isso, tudo era silêncio. Uma vaga sensação de mal-estar começou a se apoderar de mim. Quem eram esses alemães e o que estavam fazendo, morando nesse lugar estranho, tão longe de tudo? E que lugar era esse? Estava a doze ou quinze quilômetros de Eyford, era tudo que sabia, mas se ao Norte, Sul, Leste ou Oeste, não tinha a menor idéia. Reading e possivelmente outras cidades grandes talvez estivessem nesse raio e, portanto o lugar poderia não ser tão isolado assim. No entanto, tinha certeza, pela profundidade do silêncio, que estávamos no campo. Andei de um lado para o outro cantarolando baixinho para espantar o medo e sentindo que estava fazendo jus a meus honorários de cinqüenta guinéus. - De repente, sem o menor som preliminar que servisse de aviso no silêncio total, à porta da sala abriu-se lentamente. A mulher surgiu na abertura, a escuridão do corredor às suas costas, a luz amarela de minha lâmpada caindo sobre seu lindo e aflito rosto. Vi logo que estava aterrorizada e o sangue gelou em minhas veias. Ela ergueu um dedo trêmulo para fazer sinal de silêncio e murmurou umas palavras em inglês hesitante, lançando os olhos, como os de um animal amedrontado, para o corredor escuro.

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- "Eu iria," disse, procurando, ou assim me pareceu ficar calma. "Eu iria. Não ficaria aqui. Não há nenhum bem para o senhor fazer aqui". - "Mas, minha senhora," respondi, "não fiz ainda o que vim fazer aqui. Não posso ir embora sem ver a máquina". - "Não vale a sua pena esperar," ela continuou. "Pode passar pela porta. Ninguém impede". E então, vendo que sorri e sacudi a cabeça, abandonou qualquer reserva, avançou, torcendo as mãos e implorou: "Por amor de Deus! Ir embora daqui antes que seja tarde demais!" - Mas sou um pouco teimoso por natureza e sempre pronto a me envolver em alguma coisa quando há algum obstáculo no caminho. Pensei em minha remuneração de cinqüenta guinéus, em minha viagem cansativa e na desagradável noite que parecia me aguardar. Seria isso tudo à-toa? Por que iria embora sem ter executado minha incumbência e sem ser pago o que me era devido? Essa mulher poderia até ser uma louca. Ficando firme, por conseguinte, embora ela tivesse me abalado mais do que queria confessar, abanei novamente a cabeça e declarei minha intenção de ficar onde estava. Ela estava prestes a continuar a me implorar quando uma porta bateu acima de nós e ouvimos passos na escada. Ficou escutando um segundo, fez um gesto de desespero e sumiu tão repentina e silenciosamente quanto tinha vindo. - Os recém-chegados eram o Coronel Lysander Stark e um homem baixo e atarracado com uma barbicha saindo das dobras do queixo e papada, que me foi apresentado como o Sr. Ferguson. - Triste é meu secretário e gerente - disse o Coronel. Acidentalmente, tinha a impressão que deixara esta porta fechada. Receio que tenha sentido a corrente de ar. - Pelo contrário, respondi rápido, "abri a porta eu mesmo, pois achei a sala um pouco abafada". - Lançou-me um de seus olhares desconfiados. "Talvez seja melhor irmos ao trabalho, então," disse: "0 Sr. Ferguson e eu vamos levá-lo para ver a máquina". - "Talvez seja bom botar o chapéu". - Não, não é preciso. É dentro da casa. - "0 quê, estão escavando greda de dentro de casa?" -Não, não. Apenas a comprimimos aqui. Mas não importa isso! Só queremos que examine a máquina e nos diga o que está errado com ela. - Subimos junto, o Coronel primeiro com a lâmpada, o gerente gordo e eu seguindo. A velha casa era um labirinto, com corredores, passagens, escadas estreitas em espiral e portas pequenas e baixas com soleiras gastas por geração e geração que as haviam atravessado. Não havia tapetes e nenhum sinal de mobília acima do andar térreo, o reboco caía das paredes e a umidade emergia em manchas esverdeadas; de aspecto doentio. Tentei manter uma aparência desligada, mas não havia esquecido os avisos da linda senhora, embora os tivesse ignorado, e fiquei de olho em meus dois companheiros. Ferguson parecia ser um homem moroso e calado, mas vi pelo pouco que disse que, pelo menos, era meu compatriota. - 0 Coronel Lysander Stark parou finalmente diante de uma porta baixa, que destrancou. Dentro havia um pequeno quarto quadrado, no qual nós três mal cabíamos ao mesmo tempo. Ferguson ficou do lado de fora e o Coronel me fez entrar.

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- "Estamos agora", disse, "dentro da própria prensa hidráulica e seria profundamente desagradável para nós se alguém resolvesse ligá-la. 0 teto deste pequeno quarto é, na realidade, a extremidade do Pistorn que desce com uma força de muitas toneladas para esse chão de metal. Há pequenas colunas laterais de água do lado externo que recebem a força e a transmitem e multiplicam da maneira que o senhor conhece. A máquina está funcionando, mas está um pouco dura e perdeu um pouco de sua força. Tenha a bondade de examiná-la e nos mostrar o que devemos fazer para repará-la". - Tomei a lâmpada dele e examinei minuciosamente a máquina. Era realmente gigantesca e capaz de exercer enorme pressão. Quando fui para o lado de fora e apertei as alavancas que a controlavam, vi logo pelo som sibilante que havia um vazamento que permitia a regurgitação de água através de um dos cilindros laterais. Um exame sucessivo revelou que uma vedação de borracha na cabeça de uma haste encolhera e não mais vedava adequadamente o encaixe em que operava. Era claramente isso que estava causando a perda de força e mostrei a meus companheiros, que ouviram meus comentários atentamente e fizeram algumas perguntas práticas sobre a maneira de proceder para corrigir o defeito. Quando tinha explicado tudo a eles, voltei ao quartinho e olhei bem em volta, para satisfazer minha curiosidade. Era óbvio que a história da greda de prisioneiro era uma invenção, pois era absurdo imaginar que uma máquina tão poderosa era usada para uma finalidade inadequada. As paredes eram de madeira, mas o chão de ferro era cavado, como uma calha, e quando fui examiná-lo vi uma crosta de depósito mineral em todo ele. Agachei-me e estava procurando raspar um pouco para ver o que era, quando ouvi uma exclamação em alemão e vi o rosto cadavérico do Coronel me olhando. - O que está fazendo aí? Perguntou. - Fiquei zangado de ter sido enganado por uma história tão complicada como a que tinha me contado. "Estava admirando sua greda de prisioneiro," respondi. "Acho que poderia aconselhá-lo melhor sobre sua máquina se soubesse exatamente qual é sua finalidade". - No momento exato em que pronunciei essas palavras arrependi-me de minha ousadia. 0 rosto dele endureceu e os olhos cinzentos faiscaram. - "Muito bem," disse, "vai saber tudo sobre a máquina". Deu um passo atrás, bateu a pequena porta e virou a chave na fechadura. Corri para a porta e puxei a maçaneta, mas estava trancada e a porta não cedeu a meus pontapés e pancadas. "Olá!", gritei. "Ou, Coronel! Abra a porta!" - E de repente, no silêncio, ouvi um som que gelou o sangue em minhas veias. Era o ruído metálico das alavancas e o som sibilante do cilindro que vazava. Ele ligara a máquina. A lâmpada ainda estava no chão, onde a deixara quando examinara a calha. Pela sua luz, vi que o teto negro estava descendo sobre mim, lentamente, aos arrancos, mas, como ninguém sabia melhor que eu, com uma força que dentro de um minuto me esmagaria. Atirei-me, gritando, contra a porta e tentei arrancar a fechadura com as unhas. Implorei o Coronel para me deixar sair, mas o cruel rumor de alavancas abafou meus gritos. 0 teto estava apenas três ou quatro palmos acima de minha cabeça e com a mão erguida podia sentir a superfície dura e áspera. Então me ocorreu que a dor da morte dependeria muito da posição em que me encontrasse. Se deitasse de rosto para baixo o peso cairia sobre minha espinha e estremeci ao pensar nos ossos se quebrando. Talvez fosse mais fácil deitar de

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costas, mas será que teria a coragem de ficar olhando aquela sombra negra fatal descendo sobre mim? Já não podia mais ficar de pé, quando vislumbrei algo que trouxe uma torrente de esperança para meu pobre coração. - Já havia dito que embora o chão e o teto fossem de ferro, as paredes eram de madeira. Quando olhei em volta apressadamente pela última vez, vi uma linha fina de luz amarela entre duas tábuas, que se alargou cada vez mais à medida que um pequeno painel era aberto. Por um instante não pude acreditar que fosse realmente uma porta que me salvava da morte, mas logo a seguir atirei-me para a abertura e caí meio desmaiado do outro lado. 0 painel fechou-se atrás de mim, mas o som da lâmpada. Se espatifando e logo após o ruído metálico das duas chapas de metal provaram como tinha escapado por pouco. - Voltei a mim com alguém puxando minha mão e me encontrei deitado no chão de pedra de um corredor estreito, com uma mulher inclinada sobre mim me puxando com a mão esquerda segurando uma vela com a direita. Era a mesma boa amiga cujos avisos tão tolamente eu havia ignorado. "Eles aqui estarão já, já. Verão que não está 19. Oh, não perca o tão precioso tempo, venha! " Dessa vez, pelo menos, não desprezei seus conselhos. Fiquei de pé, cambaleando, e corri com ela pelo corredor e por uma escada circular. Esta nos levou a outra passagem mais larga e justamente quando a alcançamos ouvimos o som de passos apressados e duas vozes gritando, uma em resposta à outra, do andar em que estávamos e do andar de baixo. Minha protetora parou e olhou em volta, como quem não vê saída. Então abriu uma porta que levava. a um quarto, onde, pela janela aberta, entrava o luar, banhando o chão. "É sua única chance", disse, "é alto, mas talvez possa pular". Enquanto falava, surgiu urna luz no fim da passagem e vi o vulto magro do Coronel Lysander Stark avançando rapidamente com uma lanterna em uma das mãos e uma arma parecida com uma machadinha de açougueiro na outra. Atravessei o quarto correndo e olhei pela janela. 0 jardim à luz da lua parecia tão calmo e doce e seguro, e estava a menos de dez metros. Subi no peitoril, mas hesitei em pular até ouvir o que ia se passar entre minha salvadora e o bandido que me perseguia. Se ela fosse maltratada, apesar de todo o perigo voltaria para socorrê-la. Mal pensara isso, quando ele chegou à porta, empurrando-a de lado, mas ela o abraçou e tentou detê-lo. - "Fritz! Fritz! ", exclamou em inglês. "Lembre sua promessa depois da última vez. Você disse que não ia ser assim nunca mais. Ele guardará segredo! Oh, ele guardará segredo!" - "Você está louca, Elise!", ele berrou, lutando para se livrar. "Você vai estragar tudo. Ele viu demais. Solte-me, vamos!" Jogou-a de lado e, correndo para a janela, golpeou-me com a pesada arma. Eu deixara o corpo cair e estava me segurando ao peitoril com as mãos quando ele me atacou. Senti uma dor vaga, afrouxei os dedos e caí no jardim a meus pés. - Fiquei aturdido, mas não me machuquei com a queda. Levantei e saí correndo por entre os arbustos o mais velozmente possível, pois sabia que ainda não estava fora de perigo. De repente, enquanto corria, comecei a me sentir tonto e fraco. Olhei minha mão, que latejava e então, pela primeira vez, vi que meu polegar havia sido

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decepado e o sangue corria da ferida. Consegui enrolar meu lenço na mio, mas os ouvidos começaram a zumbir e caí desmaiado entre as roseiras. - Não sei quanto tempo fiquei desacordado. Deve ter sido por muitas horas, pois a lua já se fora do céu e começava a amanhecer quando abri os olhos. Minhas roupas estavam ensopadas de orvalho e a manga do casaco estava coberta de sangue do polegar ferido. A dor na mão me fez recordar todos os detalhes da aventura noturna e fiquei de pé, sentindo que talvez ainda não estivesse a salvo de meus perseguidores. Mas, para minha surpresa, quando olhei em volta, não vi nem a casa nem o jardim. 0 lugar onde caíra do era um ângulo de uma sebe próxima à estrada e logo adiante havia um prédio longo e baixo que, ao me aproximar, provou ser a mesma estação aonde chegara à noite anterior. Se não fosse pela ferida na mão, tudo que se passara durante àquelas horas horríveis poderia ter sido um pesadelo. - Meio tonto, entrei na estação e perguntei pelo trem da manhã. Havia um para Reading dentro de uma hora. 0 mesmo porteiro estava de serviço. Perguntei-lhe se ouvira falar de um Coronel Lysander Stark. Não sabia quem era. Vira um carro à noite anterior esperando por mim? Não, não vira. Havia uma delegacia perto dali? Sim, a uns quatro quilômetros. - Era longe demais para ir andando, fraco e doente como me sentia. Resolvi esperar até chegar à cidade para contar minha história à polícia. Passava um pouco das seis quando cheguei e fui primeiro tratar de minha mão e foi entro que o Doutor teve a bondade de me trazer aqui. Estou colocando meu caso em suas mãos e farei exatamente o que o senhor mandar. Ficamos ambos em silêncio após ouvir essa extraordinária narrativa. Depois Sherlock Holmes tirou da prateleira um dos grandes volumes onde guardava seus recortes. - Aqui está um anúncio que lhe vai interessar - disse. - Saiu em todos os jornais cerca de um ano atrás. Ouçam: "Perdido no dia 9 do corrente, o Sr. Jeremiah Hayling, de 26 anos, engenheiro hidráulico. Saiu de casa às dez horas da noite e não foi mais visto. Vestia." etc.etc. Ali! Isso foi à última vez que o Coronel precisou consertar sua máquina, sem dúvida alguma. Disse. - Céus! - exclamou meu paciente. - Então isso explica o que a moça - Certamente. É bem claro que o Coronel era um homem calculista e desesperado, firmemente decidido que nada ia atrapalhar sua jogada, como os piratas de antigamente, que não deixavam nenhum sobrevivente nos barcos que capturavam. Bem, os minutos são preciosos e se o senhor se sente bastante bem, vamos imediatamente à Scotland Yard e em seguida a Eyford. Umas três horas depois estávamos a caminho de Reading e de lá à pequena aldeia em Berkshire. 0 grupo era composto de Sherlock Holmes, o engenheiro hidráulico, Inspetor Bradstreet da Scotland Yard, um detetive e eu. Bradstreet abrira um mapa da região sobre o assento e se ocupava em desenhar um círculo tendo como centro Eyford. - Aqui está - disse. - Esse círculo tem um raio de doze quilômetros partindo da aldeia. 0 lugar que procuramos deve estar dentro dessa linha. 0 senhor disse doze quilômetros, não foi? - Aproximadamente. Foi mais ou menos uma hora de viagem. - E acha que o trouxeram de volta toda essa distância quando estava inconsciente?

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- Devem ter feito isso. Tenho uma recordação confusa de ter sido carregado e posto em algum lugar. - 0 que não posso entender - disse eu - é por que não o mataram quando o encontraram desmaiado no jardim. Talvez o vilão tenha se enternecido com as súplicas da moça. - Não acho isso provável. Nunca vi uma cara mais implacável em toda minha vida. - Breve saberemos tudo disse Bradstreet. - Bem, desenhei o círculo e só gostaria de saber em que ponto dentro dele vamos encontrar as pessoas que procuramos. - Acho que posso determinar isso - disse Holmes calmamente. - Ali! - exclamou o inspetor. - Então já formou sua opinião? Bem, vamos lá. Vejamos quem concorda com o senhor. Eu digo que é no Sul, pois lá é mais deserto. - E eu digo Leste - aventurou meu paciente. - Eu acho que é Oeste - disse o detetive. - Lá há várias pequenas aldeias. - Minha opinião é o Norte - eu disse - porque lá não há colinas e nosso amigo não disse que o carro tivesse subido nenhuma inclinação. - Ora - disse o inspetor, rindo - não poderíamos divergir mais. Cobrimos todos os pontos do compasso. Sr. Holmes, qual é seu voto decisivo? - Estão todos errados. - Mas não podemos estar todos errados. - Ali, sim, podem. Esse é o ponto que escolho - e colocou o dedo bem no centro do círculo. - É aqui que os encontraremos. - Mas e a viagem de doze quilômetros? - exclamou Hatherley. - Seis de ida e seis de volta. Nada mais simples. 0 senhor mesmo disse que o cavalo não estava cansado quando entrou no carro. Como poderia ser assim se tivesse andado doze quilômetros em estradas péssimas? - Realmente, seria um ótimo estratagema - observou Bradstreet, pensativo. - É claro que não pode haver dúvidas quanto à natureza desse bando. - Nenhuma - disse Holmes. - São cunhadores de moedas falsas, em grande escala, e usavam a máquina para formar a amálgama que substitui a prata. - Há muito tempo que sabíamos que havia um bando muito astuto trabalhando nisso - disse o inspetor. - Estavam cunhando milhares de meias coroas. Conseguimos seguir sua pista até Reading, mas lá os perdemos, pois conseguiram nos despistar de tal maneira que provavam que eram velhos profissionais. Mas agora, graças a essa oportunidade fortuita, acho que vamos pegá-los finalmente. Mas o inspetor estava enganado, pois esses criminosos estavam destinados a escapar à justiça. Quando chegamos à estação de Eyford vimos uma coluna gigantesca de fumaça saindo de um grupo de árvores na vizinhança, pairando como uma imensa pluma de avestruz sobre a paisagem. - A casa pegando fogo? - perguntou Bradstreet, quando o Um seguia sua viagem. Sim, senhor - respondeu o chefe da estação. - Quando começou? - Ouvi dizer que foi durante a noite, mas piorou muito e está queimando toda. - De quem é a casa? - Do Dr. Becher. - Diga-me - interrompeu o engenheiro - se Dr. Becher é um alemão muito magro, com um nariz fino e comprido?

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0 chefe da estação deu uma boa gargalhada. - Não senhor, o Dr. Becher é inglês e não há ninguém na paróquia que tenha uma barriga maior. Mas ele tem um hóspede, ouvi dizer que é um paciente dele, que é estrangeiro e que bem precisa de um pouco da boa carne de Berkshire para cobrir seus ossos. Mal ele acabara de falar, estávamos todos nos apressando em direção ao incêndio. A estrada subiu uma pequena colina e à nossa frente surgiu um grande prédio baixo jorrando fogo por todas as janelas e frestas, enquanto no jardim três carros de bombeiros lutavam em vão para conter as chamas. - É este mesmo! - exclamou Hatherley, profundamente excitado. - Ali está a estrada de saibro e as roseiras onde caí. A segunda janela foi de onde pulei. - Bem, pelo menos - disse Holmes - o senhor teve sua vingança. Não há dúvida de que foi sua lâmpada de querosene que, quando comprimida pela prensa, tocou fogo nas paredes de madeira e certamente eles estavam ocupados demais em persegui-lo para notar. Agora fique de olhos abertos para ver se seus amigos de ontem à noite estão no meio da multidão, embora receie que a essas horas já estejam a muitos quilômetros de distância. E os receios de Holmes se realizaram, pois desde esse dia não mais se ouviu falar da linda moça, o sinistro alemão ou o moroso inglês. Aquela manhã, muito cedo, um camponês vira uma carroça com várias pessoas e umas caixas volumosas indo rapidamente em direção a Reading, mas aí se perdia a pista dos fugitivos e nem mesmo a engenhosidade de Holmes conseguiu descobrir o menor indício de seu paradeiro. Os bombeiros ficaram muito perturbados com as coisas estranhas que encontraram dentro da casa, especialmente quando descobriram um polegar humano recentemente decepado no peitoril de uma janela. Ao entardecer, finalmente, seus esforços foram recompensados e conseguiram dominar as chamas, mas aí o telhado já havia desmoronado e o prédio todo estava reduzido a ruínas, só se salvando uns cilindros retorcidos e canos de ferro, não restando nada mais da maquinaria que custara tanto ao nosso desafortunado engenheiro hidráulico. Descobriram grandes massas de níquel e estanho em um barracão, mas nenhuma moeda, o que pode explicar a presença das caixas volumosas na carroça. Como nosso engenheiro hidráulico foi levado do jardim ao lugar onde recobrou os sentidos poderia ter sido um mistério para sempre se não fosse a terra macia, que contou sua história. Fora evidentemente carregado por duas pessoas, uma das quais; tinha pés excepcionalmente pequenos e a outra, excepcionalmente grandes. 0 que era mais provável é que o inglês silencioso, sendo menos audaz e também menos sanguinário que seu companheiro, tivesse ajudado a mulher a levar o homem inconsciente para fora de perigo. - Bem, - disse nosso engenheiro, muito triste, ao tomarmos nossos lugares para voltar a Londres - que mau negócio eu fiz! Perdi meu polegar e perdi honorários de cinqüenta guinéus e, afinal de contas, o que ganhei? - Experiência - disse Holmes, rindo. - Indiretamente, pode ser de muito valor. É só contar sua história e ganhará a reputação de excelente companhia para o resto de seus dias.

1

Arthur Conan Doyle

Um caso de Identidade

2

Meu caro amigo, - disse Sherlock Holmes, quando sentávamos um de cada

lado da lareira em seus aposentos na Baker Street - a vida é infinitamente mais

estranha do que qualquer fantasia concebida pelo homem. Não ousaria

imaginar coisas que são meros lugares-comuns da existência. Se pudéssemos

voar por aquela janela de mãos dadas, pairar sobre esta grande cidade, levantar

delicadamente os telhados e espiar as coisas esquisitas que estão acontecendo,

as estranhas coincidências, os planos, os objetivos cruzados, acontecimentos

trabalhando através de gerações e levantando aos resultados mais absurdos,

isso tornaria toda a ficção, com suas conclusões óbvias, corriqueira e

desinteressante.

- Não estou convencido de que isso é verdade - respondi. - Os casos nos

jornais são, em geral, vulgares e desprovidos de imaginação. Na polícia o

realismo chega a um limite extremo, mas o resultado é, pode-se dizer, nem

fascinante nem artístico.

- Uma certa seleção e discrição deve ser usada para produzir um efeito -

observou Holmes. - Isso falta nos relatórios de polícia, onde se lê talvez as

banalidades dos juízes e não os detalhes que para um observador contêm a

essência vital da questão. Pode crer, não há nada mais insólito e corriqueiro.

Sorri e abanei a cabeça. - Compreendo que você ache isso - disse. -

Evidentemente, em sua posição de conselheiro extra-oficial e de dar assistência

a quem está mistificado, em três continentes, você entra em contato com tudo

que há de estranho e bizarro. Mas aqui - peguei o jornal que caíra no chão -

podemos testar isso na prática. Eis a primeira manchete: “Marido trata mulher

com crueldade”. Estende-se por meia coluna, mas sei tudo o que vai suceder.

Existe, naturalmente, a outra mulher, a bebida, o empurrão, a pancada, a irmã

ou senhoria que tem pena dela. O escritor mais cru não poderia inventar nada

mais nu e cru.

Na verdade, seu exemplo é infeliz para seu argumento - disse Holmes,

tirando o jornal das minhas mãos e lançando um olhar no artigo. - É um caso da

separação e por acaso investiguei alguns detalhes dele. O marido não bebia, não

havia nenhuma outra mulher, e a queixa quanto ao comportamento dele

consistia em que adquirira o hábito de terminar todas as refeições tirando a

dentadura e atirando-a na esposa, o que você há de convir não é coisa que

ocorra à imaginação do escritor comum. Tome uma pitada de rapé, Doutor, e

reconheça que ganhei alguns pontos com esse seu exemplo.

3

Estendeu uma caixinha de rapé de ouro velho, com uma enorme ametista

no centro. O resplendor estava em contraste com sua maneira simples de viver

e não pude deixar de fazer um comentário.

- Ah, - disse ele - esqueci que não o vejo há várias semanas. É uma

pequena lembrança do Rei da Boêmia pelo meu auxilio do caso dos papéis de

Irene Adler.

- E o anel? - perguntei, olhando um maravilhoso brilhante que reluzia em

seu dedo.

- Veio da família reinante da Holanda, mas o assunto em relação ao qual

os servi é de tal delicadeza que não posso confiá-lo nem a você, que teve a

bondade de escrever sobre um ou dois dos meus pequenos problemas.

- E tem algum a estudar no momento? - perguntei, interessado.

- Uns dez ou doze, mas nenhum muito interessante. São importantes,

compreende, sem serem interessantes. Realmente, descobri que é geralmente

em assuntos não muito importantes que há campo para observação e para

rápida análise de causa e efeito que dá tanto encanto a uma investigação. Os

crimes maiores tendem a ser mais simples, pois quanto maior o crime,

geralmente mais óbvio é o motivo. Nesses casos, exceto um que me foi referido

de Marselha, não há nenhum ponto interessante. É possível, entretanto, que

tenha algo melhor dentro de poucos minutos, por aí vem um de meus clientes,

se não me engano.

Erguera-se e ficara de pé espiando por entre as cortinas a rua sombria de

Londres. Olhando por sobre seu ombro, vi que na calçada oposta estava uma

mulher corpulenta com um abrigo de peles no pescoço e uma enorme pluma

vermelha em um chapéu de abas largas, inclinado sobre uma orelha à maneira

da Duquesa de Devonshire. Debaixo dessa imensa proteção, espreitava nossas

janelas, nervosa e cheia de hesitação, enquanto o corpo oscilava de um lado

para o outro e os dedos mexiam inquietos com os botões das luvas. De repente,

num arremesso, como o nadador que se atira n'água, atravessou rapidamente a

rua e ouvimos o som agudo da campainha.

- Já vi esses sintomas antes - disse Holmes, jogando o cigarro na lareira. -

Oscilar na calçada sempre significa um caso amoroso. Gostaria de conselhos,

mas receia que o assunto seja delicado demais para ser comunicado a alguém. E

mesmo aqui ainda podemos discriminar. Quando uma mulher foi gravemente

enganada por um homem ela não oscila e o sintoma usual é um puxador de

campainha quebrado. Aqui podemos assumir que se trata de um caso amoroso,

4

mas que a jovem não está zangada e sim perplexa, ou magoada. Mas aí vem ela

em pessoa para esclarecer o assunto.

Enquanto falava, ouviu-se uma pancada na porta e o rapazinho de libré

entrou para anunciar a Srta. Mary Sutherland, enquanto a própria avançava

atrás de sua pequena figura como um navio mercante atrás de um rebocador.

Sherlock Holmes a recebeu com a cortesia fácil pela qual era famoso e, fechando

a porta, levou-a a uma poltrona, olhando-a minuciosamente, conquanto de

maneira abstrata, como lhe era habitual.

- A senhorita não acha - disse finalmente - que com sua miopia é um tanto

cansativo bater tanto a máquina?

- No princípio era mesmo - ela respondeu - mas agora sei onde estão as

letras sem precisar olhar. - Percebendo, então, o verdadeiro significado de

palavras, teve um sobressalto e olhou-o com medo e espanto estampados seu

rosto largo e bem-humorado. - O senhor ouviu falar de mim, Sr. Holmes -

exclamou - senão como poderia saber isso? Vim ao senhor porque a Sra.

Etherege, cujo marido o senhor encontrou tão facilmente quando a polícia e

todo mundo mais o consideravam morto, o recomendou altamente. Oh, Sr.

Holmes, como gostaria que o senhor fizesse o mesmo por mim. Não sou rica,

mas ainda tenho cem libras por ano do que ganho com a datilografia e as daria

de bom grado para saber o que foi feito do Sr. Hosmer Angel.

- Por que veio me consultar com tanta pressa? - perguntou Sherlock,

juntando as pontas dos dedos e olhando o teto.

Novamente um olhar de surpresa espalhou-se pelo rosto da Srta.

Maryland.

- Saí às pressas - disse - porque fiquei zangada de ver como o Sr.

Windibank, isto é, meu pai, estava levando tudo na calma. Não quis ir à polícia,

e não quis vir ao senhor e finalmente, como ele não ia fazer nada e continuava

dizendo que não havia nada de errado, fiquei furiosa e peguei minhas coisas às

pressas e vim ver o senhor.

- Seu pai? - disse Holmes.

- Sim, meu padrasto. Eu o chamo de pai, embora soe engraçado, pois é

somente cinco anos e dois meses mais velho que eu.

- E sua mãe ainda vive?

- Ah, sim, mamãe está viva e muito bem. Não fiquei nada contente, Sr.

Holmes, quando ela casou novamente logo depois da morte de meu pai, e com

um homem que é quase quinze anos mais moço do que ela. Meu pai era

bombeiro em Tottenham Court Road e deixou um bom negócio de herança, que

5

mamãe continuou com o Sr. Hardy, o assistente. Mas, quando casou com o Sr.

Windibank ele fez com que ela vendesse o negócio, pois ele era superior como

vendedor de vinhos. Conseguiu quatro mil e setenta libras por tudo, que não foi

nem a metade do que papai conseguiria se fosse vivo.

Esperava que Sherlock Holmes ficasse impaciente com essa narrativa,

conseqüente, mas, ao contrário, ele ouvia com a maior atenção concentrada.

- Sua pequena renda - perguntou - vem da venda do negócio?

- Oh, não senhor, isso é separado, foi deixado para mim por meu Tio Ned

de Auckland. São títulos da Nova Zelândia que rendem 4 112%. Duas mil e

quinhentas libras, mas só posso mexer nos juros.

- A senhorita me interessa muito - disse Holmes. - E como recebe a

considerável quantia de cem por ano, e mais o que ganha com seu trabalho, sem

dúvida a senhorita viaja um pouco e se diverte bastante. Creio que uma moça

solteira pode viver muito bem com uma renda de cerca de sessenta libras por

ano.

- Poderia viver com muito menos, Sr. Holmes, mas compreenda que

enquanto eu viver em casa não quero ser um fardo para eles, por isso usam

meu dinheiro para as despesas. Claro que isso é só enquanto eu ficar com eles.

O Sr. Windibank recebe os juros todos os trimestres e dá o dinheiro para minha

mãe, e eu vivo muito bem com o que ganho com minha máquina de escrever.

Cobro dois pences por página e muitas vezes bato quinze a vinte páginas por

dia.

- Deixou bem clara sua posição - disse Holmes. - Este é meu amigo, Dr.

Watson. Pode falar em frente dele com toda franqueza. Agora tenha a bondade

de nos contar sobre sua ligação com o Sr. Hosmer Angel.

O rosto da Srta. Sutherland ficou corado e ela brincou nervosamente com a

franja da jaqueta. - Encontrei-o pela primeira vez no baile - disse. - Eles

costumavam mandar entradas para papai quando era vivo e depois se

lembraram de nós e mandaram para mamãe. O Sr. Windibank não queria que

nós fossemos. Nunca queria que fôssemos a lugar nenhum. Ficava furioso até

quando eu queria ir a um piquenique da escola num domingo. Mas dessa vez

eu resolvi ir, e ia mesmo, pois que direito tinha ele de me proibir? Ele disse que

essas pessoas não eram dignas de nós, e todos os amigos de meu pai iam estar

lá. E disse que eu não tinha nenhuma roupa decente para usar, e meu veludo

roxo que não tinha nem tirado da gaveta, muito menos usado. Finalmente,

quando viu que não podia fazer nada, foi para a França em viagem de negócios

6

e nós fomos, mamãe e eu, com o Sr. Hardy, que tinha sido assistente de papai, e

foi lá que conheci o Sr. Hosmer Angel.

- Imagino - disse Holmes - que quando o Sr. Windibank voltou da França

ficou muito aborrecido porque a senhorita foi ao baile.

- Ora, até que ele se portou muito bem. Riu, me lembro, e encolheu os

ombros e disse que não adiantava nada negar alguma coisa a uma mulher, pois

ela arranjava um jeito de fazer o que quisesse.

- Bem. Então no baile dos gasistas a senhorita conheceu um cavalheiro

chamado Hosmer Angel.

- Sim, senhor. Nos conhecemos naquela noite e ele nos visitou no dia

seguinte para saber se tínhamos chegado em casa bem e depois disso nos

encontramos... isto é, Sr. Holmes, eu o encontrei duas vezes. Depois disso, papai

voltou e o Sr. Hosmer Angel não podia mais ir em casa.

Bem, o senhor compreende, papai não gostava disso. Não queria; e

costumava dizer que uma mulher devia se sentir feliz em casa, com sua própria

família. Mas como eu dizia à minha mãe, uma mulher quer família, para

começar, e eu ainda não tinha a minha.

- Mas o Sr. Hosmer Angel não fez nenhuma tentativa para vê-la

novamente.

- Bem, meu pai ia à França novamente dentro de uma semana, e Hosmer

escreveu e disse que era melhor e mais seguro não viajar. Podíamos nos

escrever nesse ínterim e ele costumava mandar uma todos os dias. Eu pegava a

correspondência todas as manhãs, assim meu pai não precisava saber nada.

- A senhora estava noiva dele nessa ocasião?

- Ah, sim, Sr. Holmes. Ficamos noivos depois do primeiro passeio que

Hosmer... o Sr. Angel... era tesoureiro em uma firma na Rua Lea... e...

- Que firma?

- Esse é o problema, Sr. Holmes, não sei.

- E onde ele morava? Dormia no escritório. E não sabe o endereço?

- Não... só que era na Rua Leacadenhall.

- Para onde mandava suas cartas, então?

- Para a agência de correio da Rua Leadenhall, para serem apanhadas lá.

Ele disse que se eu mandasse para o escritório os outros empregados iam fazer

pouco dele por receber cartas de uma moça, então sugeri bater a máquina, como

ele fazia com as dele, mas não quis, disse que quando eu escrevia à mão sentia

que vinham diretamente de mim, mas, quando eram datilografadas, a máquina

7

se colocava entre nós. Isso mostra como ele gostava de mim, Sr. Holmes, e como

pensava em todas essas coisinhas.

- Muito sugestivo - disse Holmes. - É um antigo axioma meu que as

pequenas coisas são infinitamente mais importantes. Pode lembrar-se de outras

pequenas coisas sobre o Sr. Hosmer Angel?

- Era muito tímido, Sr. Holmes. Preferia andar comigo no entardecer;

quando escurecia, em vez de durante o dia, porque dizia que detestava chamar

atenção. Era muito retraído e um verdadeiro cavalheiro. Até sua voz era

delicada. Contou que tinha tido uma séria infecção das amígdalas quando era

criança e isso o deixara com a garganta enfraquecida. e uma maneira de falar

um pouco hesitante, em voz muito baixa. Andava sempre muito bem-vestido,

muito limpo, e tinha olhos fracos, como eu. Ele ouvia com a maior atenção

concentrada.

- Bem, e o que aconteceu quando o Sr. Windibank, seu padrasto, voltou da

França?

- O Sr. Hosmer Angel foi lá em casa de novo e propôs que nos casássemos

antes de papai voltar. Ele estava muito sério e me fez jurar sobre a Bíblia que,

não importa o que acontecesse, eu sempre seria fiel a ele. Mamãe disse que ele

tinha razão em me fazer jurar, que era sinal de sua paixão por mim. Mamãe era

do lado dele desde o princípio e até parecia gostar dele mais do que eu. Então,

quando começaram a falar em casamento dentro de uma semana, comecei a

perguntar sobre papai, mas ambos disseram que não importava, bastava contar

a ele depois do casamento, e mamãe disse que ela tomaria conta de tudo. Não

gostei disso, Sr. Holmes. Era engraçado pedir seu consentimento, pois ele era só

uns anos mais velho do que eu, mas não queria fazer nada escondido, então

escrevi a papai em Bordeaux, onde a Compainha tinha escritórios, mas a carta

foi devolvida a mim na manhã do casamento.

- Não o encontrou, então?

- Não, porque ele voltara para a Inglaterra antes de ela chegar.

- Isso foi azar. O casamento estava marcado, então, para a sexta-feira. Ia

ser na igreja?

- Sim, senhor, mas muito simples. Era para ser na Igreja St. Saviour, perto

de King's Cross, e depois íamos almoçar no Hotel St. Pancras. Hosmer nos veio

buscar num cabriolé, mas como éramos duas e não cabiam três, ele nos fez

entrar e tomou um caleche de quatro rodas, que era o único carro de aluguel na

rua àquela hora. Chegamos primeiro à igreja e quando o caleche chegou,

ficamos esperando que ele saltasse mas ninguém saltou e quando o cocheiro

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desceu da boléia e olhou dentro, não havia ninguém; o cocheiro disse que não

podia imaginar o que tinha acontecido, pois vira direitinho quando ele subiu.

Isso foi sexta-feira passada, Sr. Holmes, e não vi nem ouvi nada desde então

que possa dar sequer uma idéia do que aconteceu com ele.

- Parece que a senhora sofreu uma grande injustiça - disse Holmes.

- Ah, não senhor. Ele era bom demais para me fazer qualquer mal. Ora, a

manhã inteira ele ficou me dizendo que não importava o que acontecesse, eu

devia ser fiel a ele; e que mesmo que alguma coisa completamente inesperada

sucedesse para nos separar, eu me devia lembrar sempre que estava

comprometida com ele e que ele voltaria para mim mais cedo ou mais tarde.

Era uma conversa um pouco estranha para o dia do casamento, mas o que

aconteceu prova que havia uma razão.

- Isso é bem verdade. Sua opinião, então, é que alguma catástrofe

inesperada ocorreu com ele?

- Sim, senhor. Acredito que ele viu algum perigo, ou não teria falado... E

então o que ele percebeu, aconteceu.

- Mas não tem a menor noção do que poderia ter sido?

- Nenhuma.

- Mais uma pergunta: como sua mãe reagiu nessa circunstâncias?

- Ela ficou muito zangada e disse que eu nunca mais deveria mencionar

isto.

- E seu pai? Contou-lhe tudo?

- Sim, e parece que ele pensou como eu, que alguma coisa grave tinha

acontecido e que eu teria notícias de Hosmer algum dia. Como ele disse, por

que razão alguém me levaria até a porta da igreja e depois me deixaria? Se ele

tivesse pedido dinheiro emprestado, ou se tivesse se casado comigo e

transferido meu dinheiro para ele, aí haveria uma razão. Mas Hosmer era muito

cuidadoso quanto a dinheiro e nunca olharia para um tostão meu. Mas então o

que poderia ter acontecido? E por que ele não escreveu? Oh, fico quase o tempo

todo pensando nisso! E não consigo fechar os olhos de noite. - Tirou um lenço

da bolsa e começou a soluçar.

- Estudarei o caso para a senhorita - disse Holmes, erguendo-se - e não

tenho dúvida de que chegaremos a algum resultado definitivo. Por enquanto,

deixe que eu carregue esse fardo e não pense mais no assunto. Acima de tudo,

apague o Sr. Hosmer Angel de sua mente, como ele se apagou em sua vida.

- Então acha que nunca mais o verei?

- Receio que não.

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- Mas o que aconteceu com ele?

- Esse problema fica em minhas mãos. Gostaria de uma descrição exata

assim como cartas dele que a senhora possa me emprestar.

- Pus um anúncio no Chronicle sábado passado - ela disse. - Aqui está o

jornal, e aqui estão quatro cartas dele.

- Obrigado. E seu endereço?

- Lyon Place, 31, Camberwell.

- Qual endereço do escritório de seu pai?

- Ele viaja para a firma Westhouse & Marbank, os grandes importadores

de vinho, na Rua Fenchurch.

- Obrigado. Suas declarações foram muito claras. Deixe os papéis aqui...

Lembre-se do conselho que lhe dei.

- O senhor é muito bondoso, Sr. Holmes, mas não posso fazer isso. Sou fiel

a Hosmer. Estarei pronta para ele quando voltar.

Apesar do chapéu absurdo e do rosto pouco expressivo, havia algo nobre

nessa fé singela de nossa cliente que inspirava respeito. Depositou o pacote de

papéis sobre a mesa e saiu, prometendo voltar novamente quando fosse

chamada.

Sherlock Holmes; ficou sentado em silêncio por uns minutos com os dedos

coladas, as pernas esticadas à frente e os olhos grudados no teto. Tirou, então,

do descanso o velho cachimbo de barro que era seu conselheiro e, após acendê-

lo, recostou-se na poltrona, envolto em nuvens espessas de fumaça, com um ar

profundamente langoroso.

- Um estudo interessante, aquela moça - observou. - Achei-a muito mais

interessante que seu pequeno problema que, por falar nisso, é bastante comum.

Se consultar meus arquivos, encontrará casos paralelos, como Andover em

1877, e um caso parecido em Haia o ano passado. A idéia é muito velha, mas

havia um ou dois detalhes que eram novidade para mim. Mas a moça em si

mesma foi altamente instrutiva.

- Parece que você viu muito nela que é completamente invisível para mim

- comentei.

- Invisível, não. Você não observou bem, Watson. Não sabia onde olhar, e

assim perdeu tudo que era importante. Não consigo fazer você compreender a

importância das mangas, a sugestão das unhas dos polegares, ou as grandes

conseqüências de um cordão de sapatos. Agora, o que você deduziu da

aparência daquela moça? Descreva.

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- Bem, usava um chapéu de palha de abas largas, cor cinzenta, com uma

pluma vermelho-tijolo. O casaco era preto, bordado, com uma franja de

pequenos ornamentos de azeviche. O vestido era marrom, mais escuro que café,

com um babadinho de pelúcia roxa no pescoço e nas mangas. As luvas eram

cinzentas e havia um buraco no indicador direito. Não vi suas botas. Usava

brincos de ouro pequenos, redondos, pendurados e tinha aparência de ter

algum dinheiro, de uma maneira vulgar, confortável, meio relaxada.

Sherlock Holmes bateu palmas mansamente e sorriu.

- Realmente, Watson, você está fazendo grandes progressos. Saiu-se muito

bem mesmo. É verdade que não viu nada importante, mas aprendeu o método

e tem um bom olho para cores. Nunca confie na impressão geral, amigo,

concentre-se nos detalhes. Em um homem talvez seja melhor observar primeiro

os joelhos das calças. Na mulher, olho sempre para as mangas. Como você

observou, essa moça tinha pelúcia nas mangas, e a pelúcia é uma fazenda

excelente para mostrar vestígios. A linha dupla, pouco acima do punho, onde a

datilógrafa encosta na mesa, estava lindamente definida. A máquina de costura

manual deixa uma marca semelhante, mas somente no braço esquerdo e do

lado mais longe do polegar, em vez de ser na parte mais larga, como nesse caso.

Olhei então para o rosto e, vendo a depressão causada por óculos nos dois lados

do nariz, comentei sobre miopia e datilografia, o que pareceu surpreendê-la.

- Surpreendeu a mim.

- Mas certamente era óbvio. Fiquei, então, muito surpreso e interessado

quando olhei para baixo e vi que, embora as botas que usava não fossem

totalmente diferentes, não eram realmente um par, pois uma tinha a biqueira

decorada e a outra era completamente simples. Uma estava abotoada somente

em dois botões de cinco, e a outra em três, salteados. Ora, quando você vem

bem-arrumada em tudo mais, mas saiu de casa com botas díspares; não é

nenhuma grande dedução dizer que saiu às pressas. Escrevera um bilhete antes

de sair de casa, após estar toda vestida. Você viu que a luva direita estava rota;

aparentemente não notou que tanto a luva quanto o dedo estavam manchados

de tinta roxa. Tinha de ser esta manhã, ou a mancha não estaria ainda tão

visível no dedo. Tudo isso é muito divertido, embora bastante elementar, mas é

hora de trabalhar, Watson. Incomoda-se de ler para mim a descrição de Angel

no anúncio?

Coloquei o recorte perto da luz. “Desaparecido” - dizia - “na manhã do

sábado um cavalheiro chamado Hosmer Angel. Cerca de 1,68, robusto, tez

morena, cabelos pretos, ligeiramente careca no topo, costeletas pretas, óculos

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escuros, ligeiro defeito de fala. Vestindo, quando visto pela última vez,

sobrecasaca preta com lapelas de seda, colete preto, corrente de 'Albert' e calças

cinzas de tweed Harris, com polainas marrons sobre botina de elástico. Sabe-se

que trabalhava em um escritório na Rua Leadenhali. Qualquer pessoa que...”

etc. etc.

- Está bem - disse Holmes. - Quanto às cartas - continuou, lançando olhar

para o pacote - são muito comuns. Nenhuma pista do Sr. Angel, nada de

excepcional, exceto que cita Balzac uma vez ou outra. Há algo, entretanto, que

sem dúvida impressionará você.

- São datilografadas - comentei.

- Não só isso, mas a assinatura também. Veja a precisão de “Hosmer” no

fim da página. Existe uma data, veja, mas não o endereço, só o nome da rua, o

que é bastante vago.

- De quê?

- Meu caro amigo, será possível que você não veja como isso influencia?

- Não posso dizer que vejo, a não ser que ele quisesse negar a autoria das

cartas, se houvesse alguma ação por quebra de promessa movida contra. Não,

não é isso. Bem, vou escrever duas cartas que devem resolver a questão. Uma é

para uma firma na cidade, a outra é para o padrasto da moça, Windibank,

perguntando se pode vir aqui amanhã às seis horas da tarde. É melhor tratar de

negócios com os homens da família. E agora, Doutor, podemos fazer nada até

chegarem as respostas a essas cartas, portanto, vamos arquivar nosso pequeno

problema por enquanto.

Tinha razões de sobra para acreditar nos sutis poderes de raciocínio do

amigo e em sua extraordinária energia quando em ação e senti que devia ter

bases muito sólidas para manter essa atitude confiante em face ao mistério

singular que lhe fora solicitado resolver. Só o vira fracassar uma vez, no caso do

Rei da Boêmia e a fotografia de Irene Adler, mas quando lembrava o estranho

caso do Sinal dos Quatro e as extraordinárias circunstâncias ligadas ao Estudo

em Vermelho, sentia que só uma trama extremamente complicada escaparia a

seus poderes de análise.

Deixei-o, então, fumando ainda o cachimbo preto de barro, convicto de

que ao voltar na noite seguinte veria que tinha nas mãos todas as chaves que

nos levariam à identidade do noivo desaparecido da Srta. Mary Sutherland.

Um caso profissional de grande gravidade me ocupou nessa ocasião e

passei o dia inteiro ao lado da cama de um paciente. Eram quase seis horas

quando consegui me liberar e pegar um cabriolé para ir à Baker Street, receoso

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de chegar tarde demais para assistir ao final de nosso pequeno mistério.

Encontrei Sherlock Holmes sozinho, entretanto, meio adormecido, enroscado

no fundo de sua poltrona. Uma coleção formidável de vidros e tubos de ensaio

e o odor acre de ácido clorídrico demonstravam que passara o dia fazendo

aquelas experiências químicas de que tanto gostava.

- Então, já encontrou a solução? - perguntei ao entrar.

- Sim, era o bissulfato de baritina.

- Não, não, do mistério - exclamei.

- Estava pensando no sal em que estava trabalhando. Não havia mistério

nenhum, como eu disse ontem, embora alguns detalhes fossem interessantes. O

único inconveniente é que não há lei nenhuma, receio muito, que se aplique a

esse patife.

- Quem era ele, e qual seu objetivo em abandonar a Srta. Sutherland?

Mal dissera essas palavras e Holmes ainda não abrira a boca para

responder, quando ouvimos passos pesados na passagem e uma batida à porta.

- É o padrasto da moça, o Sr. James Windibank - disse Holmes. - Escreveu

dizendo que estaria aqui às seis. Entre!

O homem que entrou era de altura média, robusto, de uns trinta anos de

idade, barbeado, moreno, com um jeito insinuante e afável e um par de olhos

cinzentos extremamente agudos e penetrantes. Lançou um olhar inquiridor a

nós ambos, colocou a cartola reluzente sobre o móvel da sala e, com ligeiro

cumprimento de cabeça, sentou-se na cadeira mais próxima.

- Boa noite, Sr. James Windibank - disse Holmes. - Creio que isto aqui é

uma carta datilografada pelo senhor, na qual marcou vir aqui às seis horas.

- Sim, senhor. Receio estar um pouco atrasado, mas não sou totalmente

dono de mim mesmo, sabe. Sinto muito que a Srta. Sutherland o tenha

incomodado sobre esse assunto, pois acho muito melhor não lavar esse tipo de

roupa em público. Ela veio muito contra minha vontade, mas é uma moça

muito excitável, muito impulsiva, como deve ter observado, e não é fácil

controlá-la quando mete uma idéia na cabeça. Evidentemente, não está ligado

às autoridades oficiais, mas não é nada agradável um problema de família como

esse espalhado por aí afora.

- Tenho absoluta certeza de que conseguirei descobrir o Sr. Hosmer Angel

- disse Holmes calmamente..

O Sr. Windibank levou um susto e deixou cair as luvas.

- Estou muito tenso em ouvir isso - disse.

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- É uma coisa curiosa - observou Holmes - que uma máquina de escrever

tenha realmente tanta personalidade quanto a caligrafia de uma pessoa.

Podem ser novas em folha, mas não há duas máquinas que escrevam

letras exatas; umas ficam mais gastas que outras, e algumas gastam mais de um

lado que de outro. Repare nesse seu bilhete, Sr. Windibank, o “e” um pouco

borrado e um defeito pequeno na curva superior do s. Há dezessete

características, mas esses dois são os mais óbvios.

- Uso essa máquina para toda a correspondência no escritório; está um

pouco gasta - respondeu nosso visitante, olhando atentamente para Holmes

com seus olhinhos muito vivos.

- E agora lhe vou mostrar o que é realmente um estudo muito interesse, Sr.

Windibank - continuou Holmes. - Estou pensando em escrever, dia desses, mais

uma pequena monografia sobre a máquina de escrever e sua relação com o

crime. É um assunto ao qual tenho me dedicado bastante; tenho aqui quatro

cartas que aparentemente se originaram do homem desaparecido. São todas

batidas à máquina. Em todas elas, não só os “es” e os “rs” estão defeituosos,

como poderá observar, se quiser usar a minha assistência, a presença das outras

dezessete características que mencionei.

O Sr. Windibank saltou da cadeira e pegou o chapéu. - Não posso perder

tempo com esse tipo de conversa fantástica, Sr. Holmes - disse. - Se pegar esse

homem, vá pegá-lo e avise-me quando estiver tudo acabado.

- Certamente - disse Holmes, dando uns passos à frente, então, que já o

peguei!

- O quê! Onde? - gritou o Sr. Windibank, com o rosto subitamente

convulso e olhando em volta como um rato preso em ratoeira.

- Ah, assim não... assim não - disse Holmes com toda suavidade. - Não o

deixo sair dessa, Sr. Windibank. É transparente demais, e não foi nada esperto o

senhor dizer que seria impossível para mim resolver uma questão simples. Isso

mesmo. Sente-se, e vamos conversar.

Nosso visitante caiu em uma cadeira com a fisionomia arrasada e o suor

escorrendo na testa. - Não... não me poderão processar - balbuciou.

- Receio que esteja certo. Mas aqui entre nós, Windibank, de uma maneira

mesquinha, foi o golpe mais cruel, egoísta e desnaturado que jamais vi. Agora

vou relatar o que sucedeu e contradiga-me se estiver errado. O homem sentava

na cadeira com a cabeça afundada no peito, como se estivesse completamente

aniquilado. Holmes estendeu as pernas e apoiou os pés no canto da lareira, e

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recostando-se com as mãos nos bolsos começou a falar mais para si mesmo do

que para nós, pelo que parecia.

- O homem casou-se com uma mulher muito mais velha que ele pelo

dinheiro dela - disse - e desfrutava o uso do dinheiro da filha, enquanto ela

vivesse com eles. Era uma quantia considerável para pessoas na sua posição, e

sua perda teria feito uma grande diferença. Valia a pena fazer um esforço para

conservá-la. A filha tinha uma personalidade afável e boa, era afetiva e meiga,

portanto, era evidente que, com suas qualidades pessoais e sua pequena renda,

não ficaria solteira muito tempo. Seu casamento significaria, naturalmente, a

perda de cem libras por ano. Então que faz seu padrasto para evitar isso? Adota

a estratégia de mantê-la fechada em casa e proibir que procure a companhia de

pessoas de sua idade. Mas cedo verificou que isso não daria certo para sempre.

Ela ficou irriquieta, insistiu em seus direitos e finalmente anunciou sua decisão

firme de ir a um certo baile. E o que faz seu esperto padrasto então? Concebe

uma idéia que dá mais crédito à sua imaginação que a seu coração. Com a

cumplicidade e assistência de sua mulher, disfarçou-se, cobriu esses olhos

penetrantes com óculos escuros, mascarou o rosto com costeletas e bigode

espessos, abaixou a voz vibrante para um murmúrio insinuante e, muito seguro

devido à miopia da moça, aparece como o Sr. Hosmer Angel, afastando os

possíveis namorados pela técnica de se tornar um deles.

- Foi só uma brincadeira de início - gemeu nosso visitante. - Nunca

pensamos que ela se envolvesse dessa maneira.

- Talvez não. Seja como for, a moça se envolveu profundamente e,

convencida de que seu padrasto estava na França, nunca poderia por um só

momento suspeitar da traição. Ficou lisonjeada pela atenção do cavalheiro e o

efeito foi muito aumentado pela admiração, expressa em altas vozes, de sua

mãe. Então o Sr. Angel começou a visitar a casa, pois era óbvio que deveria ir o

mais longe possível, para obter um resultado satisfatório. Houve vários

encontros, e um noivado, que finalmente iria garantir que a afeição da moça

não se virasse para outro. Mas não era possível dissimular para sempre. Essas

viagens fingidas à França eram realmente muito incômodas. O que restava fazer

era, evidentemente, dar um final tão dramático que deixaria uma impressão

permanente na pobre moça, que evitaria que ela olhasse para qualquer outro

pretendente por muito tempo. Daí os tais votos de fidelidade feitos sobre a

Bíblia, e daí também as alusões à possibilidade de alguma coisa acontecer na

própria manhã do casamento. James Windibank queria que a Srta. Sutherland

ficasse tão amarrada a Hosmer Angel, e tão incerta quanto ao que lhe havia

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sucedido, que durante dez anos ou mais, pelo menos, não ouvisse nenhum

outro homem. Levou-a até a porta da igreja, e então, como não podia ir mais

longe, desapareceu convenientemente com o velho truque de entrar por uma

porta do carro de quatro rodas e sair pela outra. Acho que isso foi o que

sucedeu, Sr. Windibank.

Nosso visitante recobrara algo de sua auto-segurança enquanto Holmes

falava e agora ergueu-se da cadeira com uma expressão de frio desprezo.

- Pode ser que tenha sido assim, e pode ser que não, Sr. Holmes. O senhor

é tão esperto, deve ser esperto bastante para saber que é quem está rompendo

com a lei agora, não eu. Não fiz nada ilegal desde o começo, mas enquanto ficar

com a porta trancada, o senhor está exposto a acusação por assalto e coerção

ilegal.

- A lei não pode, como diz, tocá-lo - disse Holmes, destrancando e abrindo

a porta - no entanto não existe um homem que mais mereça. Se a moça tem um

irmão ou um amigo, ele deveria dar-lhe uma surra de chicote. Por Deus! -

continuou, enrubescendo ao ver a zombaria no rosto do homem - não é parte de

meu dever para com meus clientes, mas tenho um chicote bem à mão e acho

que vou... - Deu dois passos rápidos à frente, mas antes que pudesse pôr a mão

no chicote, ouviu o rumor de passos apressados na escada, a pesada porta

batendo e o Sr. James Windibank correndo a toda velocidade pela rua.

- Mas que patife de sangue-frio! - disse Holmes, rindo e atirando-se uma

vez mais em sua cadeira. - Esse camarada irá de crime em crime até fazer

realmente mau, e então acabará na forca. Esse caso, em certos aspectos, foi

completamente desinteressante.

- Não consigo acompanhar todos os passos de seu raciocínio.

- Ora, era óbvio desde o começo que esse tal de Sr. Hosmer Angel devia

ter um motivo muito forte para agir de forma tão curiosa, e era igualmente

óbvio que o único homem beneficiado por esse incidente, pelo que sabíamos,

era o padrasto. Depois o fato de que os dois homens nunca apareciam juntos,

um só aparecendo quando o outro estava fora, era bastante sugestivo. Assim

como os óculos e a estranha voz, que indicavam disfarce, como também as

costeletas. Essas minhas suspeitas foram todas confirmadas pelo fato de bater

sua assinatura a máquina, que, naturalmente, implicava que a letra do tio era

familiar à moça e que ela reconheceria mesmo essa pequena escrita. Veja esses

fatos isolados, aliados a outros menores, apontando na mesma direção.

- E como os verificou?

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- Uma vez tendo localizado meu homem, foi fácil obter corroboração da

firma para a qual ele trabalhava. Tomei a descrição do anúncio, tirei tudo que

poderia ser um disfarce: costeletas, óculos, a voz, pedindo que me informassem

se coincidia com a descrição de um de seus caixeiros viajantes. Já havia notado

as peculiaridades da máquina de escrever, e escrevi para o próprio homem,

pedindo que viesse aqui. Como esperava, sua resposta foi batida a máquina, e

revelava os mesmos detalhes triviais, mas característicos. A volta do correio me

trouxe uma carta de Westhouse & Marbank, da Rua Fenchurch, dizendo que a

descrição se enquadrava perfeitamente à de seu empregado James Windibank.

E foi tudo!

- E a Srta. Sutherland?

- Se contar a ela, não vai me acreditar. Lembre-se do velho provérbio

persa: 'Há perigo para aquele que pega o filhote do tigre, e perigo também há

para aquele que rouba a ilusão de uma mulher”. Há tanta sabedoria em Hafiz

quanto em Horácio, e o mesmo conhecimento da vida.

FIM

HISTÓRIAS DE SHERLOCK HOLMES Histórias de Sherlock Holmes - Arthur Conan Doyle © Copyright 1999 VirtualBooks Online M&M Editores Ltda. Versão para RocketEditionTM eBooksBrasil.com HISTÓRIAS DE SHERLOCK HOLMES ARTHUR CONAN DOYLE Escândalo na Boêmia A Liga Ruiva Um Caso de Identidade ESCÂNDALO NA BOÊMIA PARA SHERLOCK HOLMES, ela é sempre a mulher. Poucas vezes ouvi-o mencioná-

la sob qualquer outro nome. A seus olhos ela ofusca e predomina sobre todo seu sexo. Não é que ele sentisse uma emoção assim como amor por Irene Adler. Todas as

emoções, e essa em particular, eram abomináveis à sua mente fria e precisa, embora admiravelmente equilibrada. Ele era, em minha opinião, a máquina

mais perfeita de raciocínio e observação que o mundo jamais viu – mas, como amante, ter-se-ia colocado em posição falsa. Nunca se referia às paixões sem

zombar e escarnecer delas. Eram admiráveis para o observador, excelentes para arrancar o véu que encobre as motivações e as ações dos homens. Mas para um

raciocinador treinado admitir essa intrusões em seu temperamento delicado e precisamente ajustado seria o mesmo que introduzir um fator perturbador que poderia

pôr em dúvida todas as suas conclusões racionais. Areia em um instrumento sensível, ou uma racha em uma de suas poderosas lentes, não seria maior distúrbio que

uma emoção forte em uma natureza como a sua. No entanto, só havia uma mulher para ele, e essa mulher era a ex-Irene Adler, uma recordação meio duvidosa e

suspeita. Vira Holmes muito pouco ultimamente. Meu casamento nos separara. Minha

felicidade tão completa e meu interesse todo concentrado no lar, o que sucede com o homem que pela primeira vez se vê senhor de sua própria casa, eram suficientes

para ocupar toda minha atenção; enquanto que Holmes, que detestava qualquer forma de sociedade com toda a força de sua alma boêmia, continuava em nossos

aposentos na Baker Street, afundado em velhos livros, passando alternadamente, de semana em semana, da cocaína à ambição, da sonolência da droga à feroz energia de

sua intensa natureza. Como sempre, ainda se sentia profundamente atraído pelo estudo do crime e ocupava suas vastas faculdades mentais e extraordinários poderes

de observação em seguir os indícios e elucidar os mistérios que haviam sido dados por insolúveis pela polícia oficial. De quando em quando ouvia alguma

coisa sobre suas aventuras: fora chamado a Odessa com relação ao assassinato de Trepoff, esclarecera a singular tragédia dos irmãos Atkinson em

Trincomalee e finalmente desempenhara com sucesso uma delicada missão para

a família real da Holanda. Fora esses sinais de atividade que eu simplesmente compartilhava com todos os leitores da imprensa diária, pouco sabia de meu

ex-amigo e companheiro. Uma noite – foi no dia 2 de março de 1888 – voltava de uma visita a um doente (pois

voltara a praticar medicina) e meu caminho me levou à Baker Street. Ao passar em frente à porta tão familiar, que mentalmente sempre associo a meu namoro

e aos sombrios acontecimentos do Estudo Vermelho, senti forte desejo de ver Holmes novamente e saber como estava utilizando seus extraordinários poderes.

Seus aposentos estavam brilhantemente iluminados e, ao olhar para cima, vi sua figura alta e magra passar duas vezes, uma silhueta escura contra a cortina.

Andava de um lado para o outro, rápido e impaciente, o queixo afundado no peito e as mãos cruzadas nas costas. Para mim, que conhecia todos os seus

estados de espírito e todos os seus hábitos, essa atitude revelava tudo. Estava trabalhando novamente. Emergira dos sonhos criados pela droga e estava

seguindo entusiasticamente a pista de algum novo mistério. Toquei a campainha e fui levado à sala que fora antigamente em parte minha também. Não demonstrou nada ao me ver – não era expansivo. Mas acho que ficou contente de

me ver. Sem dizer nada, mas com um olhar bondoso, fez sinal para uma poltrona, jogou-me sua carteira de charutos e indicou uma garrafa de bebida e um

sifão a um canto. Ficou, então, de pé em frente à lareira e olhou para mim com aquele seu olhar introspectivo. — O matrimônio lhe fez bem – comentou. — Acho, Watson, que engordou três quilos

e meio desde a última vez que o vi. — Três – respondi. — É mesmo? Pensei que fosse um pouco mais. Um pouquinho mais, acho, Watson. E

estou vendo que voltou a exercer a medicina. Não me disse que pretendia voltar a trabalhar. — Então como sabe? — Vi, deduzi. Como é que sei que recentemente você se molhou muito e que tem uma

empregada muito desajeitada e descuidada? — Meu caro Holmes, – disse – isso é demais. Na certa teria sido queimado vivo se

tivesse vivido uns séculos atrás. É verdade que fui passear no campo quinta-feira e voltei para casa encharcado. Mas como mudei de roupa não posso imaginar

como você descobriu isso. Quanto a Mary Jane, é mesmo incorrigível e minha esposa já a despediu. Mas isso também não sei como você adivinhou. Deu uma risadinha para dentro e esfregou as mãos de longos dedos sensíveis. — Muito simples – disse. — Meus olhos me dizem que no lado de dentro do sapato de

seu pé esquerdo, exatamente onde a luz da lareira está batendo, o couro está arranhado por seis cortes quase paralelos. Obviamente esses arranhões foram

causados por alguém que tentou raspar a lama que secara em volta da sola, e que não foi muito cuidadosa. Daí minha dedução dupla de que você sofria com

mau tempo e que tinha em casa um exemplar malévolo, cortador de botas, da classe doméstica de Londres. Quanto a você clinicar, se um cavalheiro entra em

meus aposentos cheirando a iodo, com uma mancha negra de nitrato de prata no indicador direito e uma saliência no lado do chapéu mostrando onde escondeu

o estetoscópio, seria muito burro se não visse logo que era membro ativo da profissão médica. Não pude deixar de rir diante da facilidade com que ele explicava o processo de suas

deduções. — Quando ouço você enumerar suas razões – comentei – tudo me parece tão ridiculamente simples que eu poderia facilmente fazer o mesmo, mas a

cada exemplo sucessivo de seu raciocínio fico completamente confuso,

até você explicar o processo. No entanto, acho que meus olhos são tão bons quanto os seus.

— Isso mesmo – respondeu, acendendo um cigarro e jogando-se em uma poltrona. — Você vê, mas não observa. A diferença é clara. Por exemplo, viu muitas

vezes os degraus que levam do hall a esta sala, não é? — Sim. — Quantas vezes? — Bem, algumas centenas. — Então quantos são? — Quantos? Não sei. — Aí está. Você não observou. No entanto, viu. Era isso que queria dizer. Sei que há

dezessete degraus porque vi e observei. Por falar nisso, já que está interessado nesses pequenos problemas, e teve a bondade de registrar uma ou duas

das minhas experiências, talvez ache isso interessante. – Estendeu uma folha grossa de papel rosado que estivera todo o tempo aberta sobre a mesa. — Veio

na última entrega de correspondência – disse. — Leia em voz alta. Não havia data, nem assinatura, nem endereço. Li: — "Hoje à noite, às quinze para as oito, receberá a visita de um cavalheiro que deseja

consultá-lo sobre assunto da maior importância. Os serviços que prestou recentemente a uma das Casas Reais da Europa provaram que é pessoa em

que se pode confiar assuntos importantes de uma magnitude que não se pode exagerar. Essa informação sua foi por muitas pessoas dada. Em casa a essa hora

esteja então e não leve a mal se uma máscara o visitante usar". — É realmente um mistério – comentei. — Que acha que significa isso? — Não tenho os fatos ainda. É erro grave formular teorias antes de obter os fatos. Sem

querer, começamos a torcer os fatos para se adaptarem às teorias, em vez de formular teorias que se ajustem aos fatos. Mas quanto ao bilhete, o que deduz

dele? Examinei cuidadosamente a caligrafia e o papel. — O homem que escreveu isso – falei finalmente procurando imitar o processo de meu

companheiro – era provavelmente uma pessoa de recursos. Papel desta qualidade custa pelo menos meia coroa o pacote. É excepcionalmente grosso. Excepcional, é isso mesmo – disse Holmes. — Esse papel não é inglês. Segure-o

contra a luz. Fiz o que mandava e vi um E maiúsculo com um g pequeno, um P e um G grandes

com um t pequeno tecidos no papel. — Que deduz disso? – perguntou Holmes. — Deve ser o nome do fabricante, sem dúvida. — Nada disso. O G com o t pequeno quer dizer Gesellschaft, que em alemão significa

Companhia. É uma abreviatura, é claro, reparei. E agora o Eg. Vamos olhar no Dicionário Geográfico. — Tirou um volume marrom pesado das estantes. —

Eglow, Eglonitz... aqui está, Egria. Fica em país de língua alemã...na Boêmia, não muito longe de Carlsbad. "Notável por ter sido a cena da morte de

Walienstein, e por numerosas fábricas de vidro e de papel". Ha, lia, meu amigo, que diz disso? – Seus olhos brilhavam e desprendeu uma grande nuvem azul e

triunfante do cigarro. — O papel foi feito na Boêmia – respondi. — Exatamente. E o homem que escreveu o bilhete é alemão. Reparou na construção

peculiar da frase "Essa informação sua foi por muitas pessoas dada". Um francês ou um russo nunca escreveria isso. É uma construção tipicamente alemã.

Portanto, só resta descobrir o que deseja esse alemão que escreve em

papel da Boêmia e prefere usar uma máscara que mostrar o rosto. E aí vem ele, se não me engano, para resolver todas as nossas dúvidas.

Enquanto falava, ouviu-se o som surdo de cascos de cavalos e rodas rangendo contra o meio-fio, seguidos do ruído insistente da campainha. Holmes assoviou.

— Uma parelha, pelo barulho – disse. — É – continuou, olhando pela janela – um belo caleche e uma linda parelha. Cento e cinqüenta guinéus cada animal.

Há muito dinheiro nesse caso, Watson, mesmo que não haja nada mais. — Acho melhor eu sair, Holmes. — Nada disso, Doutor. Fique onde está. Fico perdido sem meu Boswell. E isso parece

ser interessante. Seria uma pena não assistir. — Mas seu cliente... — Não importa. Posso precisar de seu auxílio e ele também. Aí vem ele. Sente naquela

poltrona, Doutor, e dê-nos toda sua atenção. Um passo lento e pesado, que se fizera ouvir na escada e no corredor, parou do outro

lado da porta. Seguiu-se uma pancada forte e autoritária. — Entre – disse Holmes. Entrou um homem que não podia ter menos de um metro e noventa e cinco de altura,

com o tronco e os membros de um Hércules. Suas roupas eram de uma riqueza que, na Inglaterra, era considerada prova de mau gosto. Largas tiras de astracã

riscavam horizontalmente as mangas e a frente do casaco, e o manto azul-escuro jogado sobre os ombros era forrado de seda cor-de-fogo e preso no pescoço

por um broche feito de um berilo flamejante. Botas cobrindo a metade das pernas, enfeitadas no alto com luxuosa pele marrom, completavam a imagem de

opulência barbaresca. Segurava em uma das mãos um chapéu de abas largas e usava na parte superior do rosto uma meia máscara preta que aparentemente ajustara

naquele momento, pois os dedos ainda a tocavam ao entrar. Pelo que se via da parte inferior do rosto, parecia ser um homem de personalidade forte, com um

lábio grosso, pendente, e um queixo comprido que sugeria resolução que chegava às raias da obstinação. — Recebeu meu bilhete? – perguntou em voz profunda e áspera com, forte sotaque

alemão. — Disse que viria vê-lo. – Olhou de um para o outro, como se não soubesse a quem se dirigir. — Tenha a bondade de se sentar – disse Holmes. — Este é meu amigo e colega, Dr.

Watson, que ocasionalmente faz a gentileza de me ajudar em meus casos. A quem tenho a honra de dirigir a palavra? — Pode me tratar de Conde von Kramm, um nobre da Boêmia. Espero que este

cavalheiro, seu amigo, seja um homem de honra e discrição a quem posso confiar um assunto da maior importância. Se não, prefiro comunicar-me com o senhor a sós. Levantei-me para sair, mas Holmes segurou meu braço e me empurrou na poltrona. —

Ou nós dois, ou ninguém – disse. — Pode dizer na frente deste cavalheiro tudo que quer dizer a mim. O Conde sacudiu os ombros largos. — Então é melhor começar – disse – pedindo a

ambos absoluto segredo por dois anos, depois disso o assunto não terá nenhuma importância. No momento – não é exagero dizer que é tão importante que pode

influenciar a história da Europa. — Prometo – disse Holmes. — Eu também. — Perdoem esta máscara – continuou o estranho visitante. — A pessoa augusta a

quem sirvo deseja que seu agente não seja conhecido pelos senhores e devo confessar desde já que o título que acabei de me conferir não é exatamente o meu. — Percebi isso – disse Holmes secamente.

— As circunstâncias são extremamente delicadas e todas as precauções devem ser tomadas para abafar o que se pode tornar um escândalo imenso e comprometer

seriamente uma das famílias reinantes da Europa. Para falar claramente, o assunto envolve a grande Casa de Ornistein, herdeiros do trono da Boêmia.

Também percebi isso – murmurou Holmes, acomodando-se na poltrona e fechando os olhos.

— Nosso visitante lançou um olhar surpreso à figura lânguida e relaxada do homem que certamente havia sido recomendado como tendo o raciocínio mais

incisivo e sendo o agente mais ativo da Europa. Holmes abriu os olhos devagar e fitou o gigantesco cliente com impaciência.

— Se Sua Majestade se dignar a expor seu caso – comentou – ficaria em posição de ajudá-lo.

O homem saltou da cadeira e andou de um lado para o outro, visivelmente perturbado. Então, com um gesto de desespero, arrancou a máscara do rosto e

atirou-a no chão. — Está certo – exclamou – sou o Rei. Por que tentar encobri-lo? — Realmente, por quê? – murmurou Holmes. — Antes de Sua Majestade dizer

qualquer coisa, já sabia que era Wilhelin Gottsreich Sigismond von Ornistein, Grão-Duque de Cassel-Falstein e herdeiro do trono da Boêmia. — Mas o senhor deve compreender – disse nosso estranho visitante, sentando-se

novamente e passando a mão pela testa ampla e branca – o senhor deve compreender que não estou habituado a tratar desses negócios pessoalmente. Entretanto o

assunto era tão delicado que não podia confiá-lo a um agente sem me colocar totalmente em seu poder. Vim de Praga incógnito para consultá-lo. — Então, por favor, consulte-me – respondeu Holmes, fechando os olhos de novo. — Os fatos são essencialmente os seguintes: há uns cinco anos, durante uma longa

visita a Varsóvia, conheci a famosa aventureira Irene Adler. Sem dúvida conhece esse nome. — Tenha a bondade de procurar em meu arquivo, Doutor – murmurou Holmes sem

abrir os olhos. Por muitos anos colecionara resumos de informações sobre pessoas e coisas diligentemente e era difícil mencionar uma pessoa ou um assunto sobre o

qual não pudesse imediatamente fornecer dados. Nesse caso, encontrei a biografia dela entre um rabino hebraico e um comandante que escrevera uma

monografia sobre os peixes do fundo do mar. — Deixe-me ver – disse Holmes. — Hum! Nasceu em Nova Jérsei em 1858.

Contralto... La Scala...Hum! Prima-dona da Ópera Imperial de Varsóvia... Sim. Retirou-se do palco... Mora em Londres... muito bem, a Sua Majestade, pelo visto,

envolveu-se com essa jovem, escreveu-lhe umas cartas comprometedoras e agora quer reavê-las. — Precisamente. Mas como... — Houve um casamento secreto? — Não. — Nenhum contrato ou compromisso legal? — Não. — Então não compreendo Sua Majestade. Se essa jovem senhora apresentasse as

cartas para fins de chantagem, ou outros, como poderia provar sua autenticidade? — Pela caligrafia. — Podia ser falsificada. — Meu papel de cartas pessoal. — Roubado. — Meu sinete. — Imitado.

— Minha fotografia. — Comprada. — Ela também saiu na fotografia. — Oh! Que pena! Sua Majestade realmente foi indiscreto. — Estava louco e fora de mim. — Comprometeu-se seriamente. — Eu era apenas o Príncipe Herdeiro nessa época. Era jovem. Só tenho trinta anos

agora. — É preciso reavê-la. — Tentamos e fracassamos. — Sua Majestade deve pagar. Temos de comprá-la. — Ela não quer vendê-la. — Roubá-la, então. — Foram feitas cinco tentativas. Duas vezes ladrões pagos por mim revistaram sua

casa. Uma vez desviamos sua bagagem quando viajava. Duas vezes armamos uma emboscada para ela. Não conseguimos nada. — Nenhum sinal da fotografia? — Absolutamente nenhum. Holmes deu uma risada. — É um problema bem interessante – disse. — Mas muito grave para mim – retorquiu o Rei, em tom apreensivo. — Bastante grave, é certo. E o que ela pretende fazer com a fotografia? — Arruinar-me. — Mas como? — Estou prestes a me casar. — Já sabia. — Com Clotilde Lothman von Saxe-Meningen, a segunda filha do Rei da

Escandinávia. Talvez conheça os princípios rígidos de sua família. Ela mesma é a essência da delicadeza. A sombra de uma dúvida quanto à minha conduta seria o

suficiente para acabar tudo. — E Irene Adler? — Ameaça mandar-lhe a fotografia. E é capaz de fazê-lo. Sei que o fará. O senhor não

a conhece, mas ela tem uma alma de aço. Tem o rosto da mais bela das mulheres, e a mentalidade do mais resoluto dos homens. Para me impedir de casar

com outra mulher, não há nada que hesite em fazer, absolutamente nada. — Tem certeza que ainda não a mandou? — Tenho. — Por quê? — Porque disse que mandá-la-ia no dia em que fosse anunciado o noivado. Isso será

na próxima segunda-feira. — Bem, então temos ainda três dias – disse Holmes, bocejando. — Ainda bem, pois

tenho um ou dois assuntos importantes para tratar no momento. Sua Majestade certamente ficará em Londres por enquanto? — Claro. Pode me encontrar no Langliam, sob o nome de Conde von Kramm. — Então lhe mandarei umas linhas contando nosso progresso. — Por favor. Ficarei ansioso. — E quanto a dinheiro? — Tem carta branca. — Totalmente? — Garanto-lhe que daria uma das províncias do meu reinado para conseguir aquela

fotografia. — E quanto às despesas imediatas?

O Rei tirou uma bolsa de camurça de debaixo do manto e a depositou sobre a mesa. — Contém trezentas libras em ouro e setecentas em notas – disse. Holmes rabiscou um recibo numa página de seu caderno de notas e estendeu-a para o

Rei. — E o endereço dela? – perguntou. — Briony, na Avenida Serpentina, em St. John's Wood. Holmes anotou-o. — Mais uma pergunta, – disse, – de que tamanho era a fotografia? — Aproximadamente quinze por dez centímetros, montada com PassePartout. — Então, muito boa-noite, Sua Majestade, e espero em breve ter boas notícias. E boa-

noite, Watson – acrescentou, quando as rodas do caleche rolavam pela rua. — Se tiver a bondade de vir aqui amanhã de tarde, às três horas, gostaria de

discutir esse assunto com você. * * * EXATAMENTE às três horas apresentei-me na Baker Street, mas Holmes não havia

voltado ainda. A senhoria informou-me que saíra de casa logo após as oito horas da manhã. Sentei-me junto à lareira decidido a esperá-lo, não importa por quanto

tempo. Já estava muito interessado na investigação, pois embora não apresentasse aspectos sombrios e estranhos como os dois crimes que relatei

anteriormente, a natureza do caso e a situação de eminência do cliente davam-lhe um caráter todo especial. Na verdade, fora a natureza da investigação encetada por meu

amigo, havia algo em sua perfeita compreensão de uma situação, em seu raciocínio agudo, incisivo, que tornava para mim um prazer estudar seu sistema de

trabalho e seguir os métodos rápidos e sutis com que desvendava os mistérios mais indeslindáveis. Estava tão acostumado a seus constantes sucessos que a

possibilidade de fracasso nem sequer me ocorria. Eram quase quatro horas quando a porta se abriu e entrou um cavalariço com aparência

de embriagado, sujo e barbado, com o rosto inflamado e roupas vergonhosas. Embora acostumado com os espantosos poderes de disfarce de meu amigo,

tive de olhar três vezes antes de me convencer que era ele mesmo. Com um gesto de cabeça, desapareceu no quarto, de onde saiu cinco minutos depois,

respeitável novamente em um temo de tweed. Com as mãos nos bolsos, esticou as pernas em frente da lareira e riu alegremente por uns minutos. — Realmente – exclamou, e engasgou; e riu de novo até ser forçado a se recostar na

cadeira, exausto. — O que foi? — É muito engraçado. Estou certo de que você não pode adivinhar como passei a

manhã e o que fiz. — Não posso nem imaginar. Suponho que estava observando os costumes e talvez a

casa da Srta. Irene Adler. — Isso mesmo, mas os acontecimentos foram bastante insólitos. Vou lhe contar. Saí de

casa pouco após oito horas esta manhã, como um cavalariço desempregado. Existe grande compreensão e união entre homens que lidam com cavalos. Seja um deles, e

saberá tudo que está acontecendo. Achei Briony Lodge sem dificuldade. É uma pequena e requintada vila, com um jardim nos fundos, de dois andares, com a

frente rente à rua. Uma boa fechadura na porta. Grande salão à direita, bem mobiliado, com longas janelas indo quase até o chão e aqueles ferrolhos ingleses

absurdos que até uma criança pode abrir. Nos fundos não havia nada especial, só que a janela da passagem pode ser alcançada do telhado da cocheira. Andei

em volta e examinei-a de todos os lados, mas não vi nada mais de

interessante. — Desci então a rua e encontrei, como esperava, uma estrebaria num beco que corre

ao lado de um dos muros do jardim. Ajudei os cavalariços a tratar dos cavalos e recebi em troca dois penies, um copo de cerveja, dois pacotes de fumo

picado e toda a informação que poderia desejar sobre a Srta. Adler, para não mencionar uma meia dúzia de pessoas na vizinhança que não me interessavam

nem um pouco, mas cujas biografias tive de ouvir em detalhe. — E quanto a Irene Adler? – perguntei. — Ah, enlouqueceu todos os homens por aqueles lados. É a coisa mais linda do

planeta. Assim dizem todos os homens da Estrebaria Serpentina. Vive pacatamente, canta em concertos, sai para dar um passeio todas as tardes às cinco horas e volta às sete

em ponto para jantar. Raramente sai em outras horas, exceto quando está cantando. Tem somente um visitante, mas esse é muito freqüente. É moreno,

bonito e arrojado; vai lá todos os dias pelo menos uma vez, muitas vezes duas. É o Sr. Godflrey Norton, advogado da Corte. Veja a vantagem de fazer

amizade com um cocheiro de aluguel. Em casa uma dúzia de vezes e sabia tudo sobre ele. Quando ouvi tudo que tinha a dizer, andei de um lado a outro perto de

Briony mais uma vez para planejar minha campanha. — Godfrey Norton era evidentemente um fator importante. É advogado. Isso é de mau

agouro. Qual seria o relacionamento dos dois e qual o objetivo das visitas constantes? Ela seria sua cliente, sua amiga ou sua amante? Se fosse a primeira,

provavelmente teria transferido a fotografia para as mãos dele. Se fosse a última, isso era menos provável. A resposta a essa pergunta decidiria se eu

devia continuar meu trabalho em Briony Lodge ou desviar minha atenção para os aposentos do cavalheiro. Era uma questão delicada, e ampliava o campo de

investigação. Receio ser maçante com todos esses detalhes, mas tenho de lhe mostrar esses pequenos problemas para que você compreenda a situação. — Sou todo atenção – respondi. — Pesava os fatos mentalmente quando um cabriolé parou em frente de Briony Lodge

e saltou um cavalheiro. Era um homem extremamente bonito, moreno, de feições aquilinas e bigode... evidentemente o homem que haviam mencionado. Parecia

estar com grande pressa, gritou ao cocheiro que esperasse e passou rapidamente pela empregada que abrira a porta com o ar de um homem que estava

perfeitamente em casa. — Ficou na casa aproximadamente meia hora e pude entrevê-lo pelas janelas do salgo,

passeando de um lado para o outro, falando excitadamente e gesticulando com os braços. Não consegui vê-la. Depois ele saiu, parecendo mais apressado que antes.

Ao entrar no cabriolé, puxou um relógio do bolso e consultou-o. — Dirija como um demônio, – gritou – primeiro para Gross e Hankey na Regent Street e

depois para a Igreja de Sta. Mônica na Edgware Road. — Meio guinéu se fizer isso em vinte minutos! — Lá se foram e estava pensando se devia segui-los quando surgiu no beco um

pequeno e elegante landau, o cocheiro ainda meio desabotoado, com a gravata completamente torta e as pontas dos arreios fora das fivelas. Nem chegou a parar, ela saiu

correndo pela porta e se atirou dentro. Só a vi um instante, mas era uma mulher linda, um homem morreria de bom grado por seu rosto. — À Igreja

de Sta. Mônica, Jolin, – exclamou – e uma libra em ouro se chegar lá em vinte minutos. — Era bom demais para perder, Watson. Debatia se devia sair correndo ou me segurar

atrás de seu landau. quando surgiu um cabriolé na rua. O cocheiro

olhou dubiamente um passageiro tão mal vestido, mas entrei rapidamente antes que pudesse fazer objeções. — À Igreja de Sta. Mônica – disse-lhe. — Uma libra

em ouro se chegar lá em vinte minutos. Eram vinte e cinco para as doze horas e era evidente o que estava acontecendo.

— O cocheiro foi a toda velocidade. Nunca andei tão depressa, mas os outros chegaram a nossa frente. O cabriolé e o landau com os cavalos cobertos

de suor estavam em frente à porta quando cheguei. Paguei o homem e entrei na igreja às pressas. Lá dentro só havia os dois que eu seguira e um sacerdote

de sobrepeliz, que parecia discutir com eles. Os três se amontoavam em frente do altar. Subi lentamente a nave lateral como qualquer pessoa que entrasse

casualmente em uma igreja. De repente, para meu espanto, os três junto ao altar viraram-se e Godfrey Norton veio correndo até a mim.

— Graças a Deus – exclamou. — Você serve. Venha! Venha! — O que há? – perguntei. — Venha, homem, venha, só temos três minutos, ou não será legal. — Fui quase arrastado até o altar e antes de saber onde estava, murmurava respostas

que eram segredadas em meu ouvido e asseverava coisas que desconhecia totalmente, ajudando, de modo geral, a ligar Irene Adler, solteira, a Godfrey Norton,

solteiro. Tudo levou só uns instantes e lá estava o cavalheiro me agradecendo de um lado e a dama do outro, enquanto o sacerdote sorria à minha frente.

Foi a situação mais absurda em que jamais me encontrei e foi por isso que ri tanto há pouco. Parece que havia alguma irregularidade na licença e o

sacerdote recusou-se a casá-los sem uma testemunha, e surgi a tempo de evitar que o noivo tivesse de sair pelas ruas à procura de um padrinho. A noiva deu-me

uma libra em ouro e pretendo usá-la na corrente do relógio em memória dessa ocasião. — Isso foi totalmente inesperado – eu disse – e agora? — Bem, meus planos estavam seriamente ameaçados. O par poderia partir a qualquer

momento e era necessário tomar medidas imediatas e enérgicas. Mas ao chegar à porta da igreja, eles se separaram, indo ele de volta a seus aposentos e ela de

volta a casa. — Irei passear no Parque às cinco como de costume – ela disse ao se despedir dele. Não ouvi nada mais. Partiram em direções opostas e fui

tomar minhas providências. — Quais? — Carne fria e um copo de cerveja – respondeu, tocando a campainha. — Estava

ocupado demais para pensar em comida, e provavelmente estarei mais ocupado ainda hoje à noite. Por falar nisso, Doutor, preciso de sua ajuda. — Será um prazer. — Não se importa de desrespeitar a lei? — Nem um pouco. — Nem de correr risco de ser preso? — Não, se for em uma boa causa. — Ah, a causa é excelente! — Então estou às suas ordens. — Sabia que podia contar com você. — Mas que deseja que eu faça? — Quando a Sra. Turner trouxer a bandeja explicarei tudo. Agora – disse, servindo-se

com entusiasmo da comida simples que a senhoria trouxera – tenho de falar enquanto como, pois não há muito tempo. São quase cinco horas. Dentro de duas

horas devemos estar no local da ação. A Srta. Irene, ou Sra., agora, volta de seu passeio às sete. Devemos estar em Briony Lodge à sua espera.

— E então? — Deixe isso Por minha conta, já providenciei o que vai acontecer. Só há uma coisa

em que devo insistir. Você não vai interferir, aconteça o que acontecer. Entende? — Devo ficar neutro? — Não deve fazer nada. Provavelmente haverá algum pequeno distúrbio. Não se meta.

No fim serei levado para a casa. Quatro ou cinco minutos depois a janela do salão se abrirá. Você deve se colocar perto dessa janela aberta. Fique me

olhando, pois serei visível a você. — Sim. — E quando erguer a mão... assim... você jogará dentro da sala o que eu lhe der para

jogar e, ao mesmo tempo, gritará "Fogo". Compreendeu? — Perfeitamente. — Não é nada demais – disse, tirando do bolso um rolo do tamanho de um charuto. —

É uma pequena bomba de fumaça com uma espoleta em cada ponta para que exploda sozinha. Sua tarefa é simplesmente essa. Quando lançar seu grito de fogo,

este será repetido por várias pessoas. Pode então se dirigir para o fim da rua e eu o encontrarei lá em dez. minutos. Fui bem claro? — Devo ficar neutro, perto da janela, olhar para você e, quando der o sinal, atirar esse

objeto, gritar "Fogo" e esperar por você no fim da rua. — Exatamente. — Então pode confiar totalmente em mim. — Excelente. Acho que está na hora de me preparar para o novo papel que tenho de

desempenhar. Desapareceu no quarto e voltou dentro de poucos minutos disfarçado em um clérigo

protestante afável e pouco inteligente. O chapéu preto de abas largas, as calças frouxas, a gravata branca, o sorriso simpático e aparência geral de benevolência

eram completamente convincentes. Não é só que os disfarces de Holmes eram excelentes; sua expressão, maneirísmos, sua própria alma parecia variar

com qualquer papel que representasse. O palco perdeu um grande ator, assim como a ciência perdeu um raciocinador de primeira, quando ele se tomou um

especialista em crimes. Eram seis e quinze quando saímos da Baker Street e ainda faltavam dez minutos para

as sete quando chegamos à Avenida Serpentina. Já escurecia, e as lâmpadas se estavam acendendo enquanto passeávamos em frente de Briony Lodge

esperando a chegada de sua ocupante. A casa era exatamente como a imaginara pela descrição sucinta de Holmes, mas o local parecia menos privativo do que esperava.

Para uma pequena rua em uma vizinhança pacata era excepcionalmente animada. Havia um grupo de homens mal vestidos fumando e rindo em uma esquina, um

amolador com sua roda, dois guardas flertando com uma ama e vários rapazes bem vestidos que passeavam fumando charutos. — Veja – disse Holmes enquanto passávamos vagarosamente em frente da casa – esse

casamento simplifica muito as coisas. A fotografia agora é uma arma de dois gumes. É provável que ela tenha a mesma relutância que seja vista pelo Sr.

Godfrey Norton que o nosso cliente de que sua Princesa a veja... o problema é... onde vamos encontrar a fotografia? — Realmente, onde? — Não é provável que a carregue consigo. É grande demais para isso. Não seria fácil

de esconder em roupas de mulher. Sabe que o Rei é capaz de armar-lhe uma cilada e mandar revistá-la. Duas tentativas já foram feitas. Podemos ter certeza que

não a leva consigo.

— Então, aonde? — Seu banqueiro ou seu advogado. Há essa possibilidade dupla. Mas estou inclinado a

achar que nenhuma das duas é verdade. As mulheres são muito inclinadas a segredos e gostam de seus próprios esconderijos. Por que a entregaria a outra pessoa?

Pode confiar em sua própria guarda, mas não pode evitar que alguma influência indireta ou política seja exercida com sucesso em um homem de negócios.

Além disso, lembre-se que resolvera usá-la dentro de poucos dias. Deve estar onde possa facilmente pegá-la. Deve estar em sua própria casa. — Mas a casa foi revistada duas vezes. — Não quer dizer nada. Não sabiam onde olhar. — E você vai olhar aonde? — Não vou precisar procurar. — Como? — Vou deixar que ela me mostre. — Mas ela se recusará. — Não poderá recusar. Mas ouço o ruído de rodas. É sua carruagem. Agora obedeça

minhas ordens ao pé da letra. Enquanto falava, vimos o brilho das luzes de uma carruagem fazendo a curva da

avenida. Era um pequeno e elegante landau que parou à porta de Briony Lodge. Ao parar, um dos homens da esquina correu para abrir a porta na esperança de

ganhar uma moeda, mas foi empurrado por outro que acorrera com a mesma intenção. Irrompeu uma violenta briga, aumentada pelos dois guardas que tomaram o

partido de um dos homens, e pelo amolador, que ficou do lado do outro. Houve troca de golpes e em um segundo a senhora, que descia da carruagem, era o centro

de um monte de homens que se batiam ferozmente, usando os punhos e cacetes. Holmes se atirou no meio do grupo para proteger a senhora; mas ao chegar

junto dela, deu um grito e caiu no chão, com o sangue correndo pelo rosto. Ao vê-lo caído, os guardas fugiram em uma direção e os homens na outra, enquanto

que um grupo de pessoas bem vestidas que olhavam a briga sem tomar parte nela se aproximou para ajudar a senhora e o homem machucado. Irene Adler, como

eu ainda a chamava, subira os degraus correndo; mas parou no topo, sua figura magnífica delineada contra as luzes do hall, olhando a rua. — O cavalheiro está muito machucado? – perguntou. — Está morto – disseram várias vozes. — Não, não, ainda vive – gritou alguém. — Mas estará morto antes que conseguir

levá-lo para o hospital. — É um homem muito corajoso – disse uma mulher. — Teriam tirado a bolsa e o

relógio da moça se não fosse ele. Era um bando perigoso. Ah, ele está respirando. — Não pode ficar aqui na rua. Podemos levá-lo lá para dentro, senhora? — Claro. Podem levá-lo para o salão. Há um sofá confortável. Por aqui, por favor! Lenta e solenemente levaram-no para Briony Lodge e o depositaram na sala principal

enquanto eu observava os acontecimentos do meu posto perto da janela. Acenderam as lâmpadas mas não correram as cortinas, de forma que podia ver Holmes

deitado no sofá. Não sei se ele sentia remorsos naquele momento pelo papel que representava, mas sei que nunca me senti tão envergonhado em toda a minha

vida quando vi a linda criatura contra quem eu conspirava, e a graça e a bondade com que tratava do homem acidentado. Entretanto, seria uma traição a

Holmes se me recusasse agora a desempenhar o papel de que me encarregara. Endureci meu coração e tirei a bomba do casaco. Afinal de contas, pensei, não iremos

magoá-la. Estamos apenas evitando que magoe outra pessoa.

Holmes sentara no sofá e o vi fazer um gesto como se precisasse de ar. Uma empregada correu para abrir a janela. No mesmo instante eu o vi erguer a

mão e a este sinal atirei minha bomba na sala gritando: "Fogo". Mal terminara e toda a multidão de espectadores, bem e mal vestidos, cavalheiros, cavalariços

e empregadas, unira-se num único brado de "Fogo!". Nuvens espessas de fumaça encheram a sala e saíram pela janela. Vislumbrei vultos correndo e um momento

após a voz de Holmes, assegurando a todos que havia sido um falso alarma. Deslizando por entre a multidão, caminhei para a esquina e dez minutos depois

alegrei-me de sentir o braço de meu amigo no meu e de me afastar da cena da confusão. Ele andou rapidamente e em silêncio por alguns minutos, até que entramos

em uma das ruas desertas que levam à Estrada Edgware. — Muito bem-feito, Doutor – observou. — Não podia ter sido melhor. Tudo está bem. — Tem a fotografia. — Sei onde está. — E como descobriu? — Ela me mostrou, como disse que faria. — Ainda não entendi. — Não quero ser misterioso – disse, rindo. — Foi muito simples. Você viu,

certamente, que todo mundo na rua era meu cúmplice. Foram todos contratados por uma noite. Então, quando houve a briga, tinha um pouco de tinta vermelha na palma

da mão. Avancei, caí, esfreguei a mão no rosto e tornei-me um espetáculo digno de pena. É um truque muito velho. — Isso também eu imaginei. — Levaram-me então para dentro. Ela teve que concordar. Que mais poderia fazer? E

para a sala, que era exatamente onde eu suspeitava que estava a fotografia. Estaria lá, ou em seu quarto, e eu estava decidido a descobrir onde. Colocaram-me no

sofá, fiz um gesto pedindo mais ar, foram forçados a abrir a janela e você teve sua chance. — Como é que isso ajudou você? — Era muito importante. Quando uma mulher pensa que sua casa está pegando fogo,

seu instinto é correr imediatamente para a coisa a que dá maior valor. É um impulso incontrolável. e mais de uma vez já me aproveitei dele. Foi muito útil no

caso do Escândalo Darlington e também no do Castelo Amsworth. Uma mulher casada agarra seu bebê, uma solteira pega sua caixa de jóias. Era claro para mim

que a nossa jovem dama prezava acima de tudo aquilo que nós buscávamos. Correria para ver se estava segura. O alarma foi muito bem-feito. A fumaça e os gritos

eram bastantes para abalar nervos de aço. Ela reagiu lindamente. A fotografia está em um recesso atrás de um painel logo acima do cordão da campainha à

direita. Foi direto lá e vi-a de relance quando a puxou para fora. Quando gritei que era um alarma falso, tomou a colocá-la no lugar, lançou um olhar para

a bomba, saiu correndo da sala e não a vi mais. Levantei, pedi desculpas, saí da casa, hesitando se deveria tentar apanhar a fotografia ou não; mas o

cocheiro entrara na sala e me observava atentamente. Achei mais seguro esperar. A precipitação poderia prejudicar tudo. — E agora? – perguntei. — Nossa busca está praticamente terminada. Virei aqui amanhã com o Rei e com

você, se nos quiser acompanhar. Ficaremos na sala, esperando a senhora, mas é provável que quando ela chegar não encontre nem nós, nem a fotografia. Talvez

seja um prazer para Sua Majestade recuperá-la com suas próprias mãos. — E quando voltará lá?

— Às oito da manhã. Ela não estará de pé, e teremos toda a liberdade. Temos de agir rapidamente, pois esse casamento pode mudar completamente sua vida

e seus hábitos. Vou telegrafar imediatamente para o Rei. Havíamos chegado à Baker Street e parado em frente à porta. Holmes procurava a

chave nos bolsos quando alguém passou e disse: — Boa-noite, Sr. Sherlock Holmes. Havia várias pessoas na calçada no momento, mas a voz parecia vir de um esbelto

jovem encasacado que passara apressadamente. — Já ouvi essa voz antes – comentou Holmes, olhando a rua sombria. — Que diabo,

quem poderia ser? Dormi na Baker Street aquela noite e estávamos ocupados com café e torradas quando

o Rei da Boêmia entrou às pressas. — Conseguiu! – exclamou, segurando os ombros de Sherlock Holmes e olhando-o no

rosto com entusiasmo. — Ainda não. — Mas tem esperanças? — Tenho. — Então vamos. Estou impaciente. — Precisamos de uma carruagem. — Não, a minha está à espera. — Isso simplifica tudo. Descemos e fomos imediatamente para Briony Lodge. — Irene Adler casou-se – disse Holmes. — Casou! Quando? — Ontem. — Mas com quem? — Com um advogado inglês chamado Norton. — Mas não pode animá-lo? — Espero que sim. — Por que espera isso? — Porque Sua Majestade não precisaria mais ter receio de qualquer problema futuro.

Se não ama Sua Majestade, não há razão para interferir com os planos de Sua Majestade. — É verdade. Bem! Gostaria que ela fosse da mesma classe que eu. Que rainha ela

seria. Caiu em silêncio melancólico até chegarmos à Avenida Serpentina. A porta de Briony Lodge estava aberta e uma mulher idosa estava no topo dos degraus.

Olhou-nos com olhos sarcásticos ao saltarmos da carruagem. — O Sr. Sherlock Holmes, número 6? — Sim, eu sou o Sr. Holmes – respondeu meu companheiro, olhando-a com

curiosidade e bastante espanto. — Muito bem, minha patroa disse que era provável que o senhor viesse. Partiu esta

manhã com o esposo, pelo trem das 5h11min da estação Charing Cross, para o Continente. — O quê! – Sherlock Holmes deu um passo atrás, pálido de surpresa e desgosto. —

Quer dizer que deixou a Inglaterra? — Para nunca mais voltar. — E os papéis? – perguntou o Rei em voz rouca. — Está tudo perdido. — Veremos. – Holmes atirou-se para dentro da casa, correu para o salão seguido pelo

Rei e por mim. A mobília estava espalhada em todas as direções, estantes desmontadas, gavetas abertas, como se ela tivesse revirado tudo antes de sua

fuga. Holmes correu para o cordão da campainha, deslizou um pequeno

painel e, metendo a mão dentro, puxou uma fotografia e uma carta. A fotografia era de Irene Adler em traje a rigor, a carta era endereçada a: "Sr. Sherlock

Holmes. Para ser guardada até virem buscá-la". Meu amigo abriu-a e nós três a lemos juntos. Datava da meia-noite anterior e dizia o seguinte:

"MEU CARO SR. SHERLOCK HOLMES: Realmente foi formidável. Enganou-me

completamente. Não tive a menor suspeita até o alarma de fogo. Mas então, quando vi como tinha me traído, comecei a pensar. Fui avisada a seu respeito há meses. Disseram-

me que se o Rei empregasse um agente, certamente seria o senhor. E deram-me seu endereço. E apesar de tudo isso, o senhor fez com que eu revelasse o que

queria saber. Mesmo quando fiquei desconfiada, achei difícil pensar mal de um clérigo tão amável, tão bondoso. Mas sabe que também sou uma atriz

profissional. Vestir-me de homem é comum para mim. Freqüentemente aproveito a vantagem da liberdade que isso me dá. Mandei o cocheiro vigiá-lo, fui lá em cima, vesti

minhas roupas de passeio, como as chamo, e desci exatamente quando o senhor saía. Segui-o até sua porta e verifiquei que eu era realmente objeto de interesse do célebre

Sr. Sherlock Holmes. Então, muito imprudentemente, desejei-lhe boa-noite e fui procurar meu marido nas salas da Corte. Concordamos ambos que a fuga era o melhor recurso quando enfrentando um

adversário de tais proporções; assim, encontrará o ninho vazio quando chegar amanhã. Quanto à fotografia, seu cliente pode ficar descansado. Amo e sou amada por um

homem melhor que ele. O Rei pode fazer o que quiser sem nenhum empecilho de uma pessoa com quem procedeu muito mal. Só a guardo para me proteger, e para

preservar uma arma que sempre me garantirá contra qualquer medida que ele possa vir a tomar no futuro. Deixo uma fotografia que ele talvez goste de possuir; e sou,

prezado Sr. Sherlock Holmes, mui atenciosamente, IRENE NORTON, ADLER" — Que mulher...que mulher – exclamou o Rei da Boêmia, quando terminamos a

leitura. — Não lhe disse como era esperta e decidida? Não teria dado uma rainha maravilhosa? Não é uma pena que não fosse da minha classe? — Pelo que vi dessa dama ela parece, realmente, ser de um nível diferente de Sua

Majestade – disse Holmes friamente. — Lamento não ter podido concluir o negócio de Sua Majestade de maneira mais satisfatória. — Ao contrário, meu caro senhor – retorquiu o Rei. — Não poderia ser mais

satisfatório. Sei que sua palavra é inviolável. A fotografia está tão segura quanto se estivesse queimando na lareira. — Fico contente de Sua Majestade pensar assim. — Sou-lhe eternamente grato. Diga-me como posso recompensá-lo. Este anel... –

Tirou um anel de esmeralda em forma de serpente do dedo e ofereceu-o na palma da mão. — Sua Majestade tem uma coisa que prezo ainda mais – disse Holmes. — Basta dizer. — Essa fotografia. O Rei olhou-o com espanto. — A fotografia de Irene! – exclamou. — Certamente, se quiser. — Agradeço a Sua Majestade. Então nada mais há a fazer. Tenho a honra de desejar-

lhe uma boa manhã. – Cumprimentou-o e, virando sem observar a mão que o Rei lhe estendera, encaminhou-se comigo para casa.