As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

255

Click here to load reader

Transcript of As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

Page 1: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL

VANICLÉIA SILVA SANTOS

As bolsas de mandinga no espaço Atlântico:

Século XVIII

São Paulo

2008

Page 2: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

2

VANICLÉIA SILVA SANTOS

As bolsas de mandinga no espaço Atlântico:

Século XVIII

Tese de doutoramento apresentada ao programa de

pós-graduação em História Social, do Departamento

de História, da Faculdade de Filosofia, Letras e

Ciências Humanas da Universidade de São Paulo,

para obtenção do título de Doutor em História.

Área de Concentração: História Social.

Orientadora: Prof. Dra. Marina de Mello e Souza.

São Paulo

2008

Page 3: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

3

AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE

TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA

FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

Catalogação na Publicação

Serviço de Biblioteca e Documentação

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da

Universidade de São Paulo

Santos, Vanicléia Silva As bolsas de mandinga no espaço Atlântico : Século XVIII / Vanicléia Silva Santos ;

orientadora Marina de Mello e Souza. -- São Paulo, 2008.

256 fl. 10 il.

Tese (Doutorado - Programa de Pós-Graduação em História Social. Área de

concentração: História Social) - Departamento de História da Faculdade de

Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

1. História do Brasil (Aspectos religiosos; Aspectos sociais) – Século 18. 2.

Religiões africanas – Brasil – Século 18. 3. Amuletos. 4. Religiões afro-brasileiras

– Século 18. 5. Cultura afro-brasileira - Século 18. I. Título.

21ª. CDD 981.03

299.6

S237

Page 4: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

4

FOLHA DE APROVAÇÃO

Vanicléia Silva Santos

As Bolsas de Mandinga no espaço Atlântico

Século XVIII

Tese apresentada ao programa de pós-graduação em

História Social, do Departamento de História, da

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

da Universidade de São Paulo, para obtenção do

título de Doutor em História.

Banca Examinadora:

__________________________________________________________

Profa. Dra. Marina de Mello e Souza (Orientadora)

__________________________________________________________

Profa. Dra. Laura de Mello e Souza (USP)

__________________________________________________________

Profa. Dra. Maria Antonieta Antonacci (PUC/SP)

__________________________________________________________

Profa. Dra. Maria Cristina Cortez Wissenbach (USP)

___________________________________________________________

Profa. Dra. Daniela Calainho (UERJ)

__________________________________________________________

(1º. Suplente)

Prof. Dr. Carlos Alberto de Moura R. Zeron (USP)

_________________________________________________________

(2º. Suplente)

Profa. Dra. Patrícia Schermann (UNIFESP)

_________________________________________________________

(3º. Suplente)

Prof. Dr. Robert Slenes (UNICAMP)

Page 5: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

5

Para Marina de Mello e Souza.

Page 6: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

6

AGRADECIMENTOS

Marina de Mello e Souza me estimulou a estudar Historia de África, esculpiu

minha prática e ladrilhou minha imaginação. Espero que resultado-texto no-la decepcione.

Quero que o resultado-vida a emocione. Não sou outra. Mas fui tornada melhor.

Adone Agnolin, Carlos Zeron, Cristina Wissenbach, Laura de Mello de Souza,

Marina de Mello e Souza, Alexandre Marcussi, Rosana Gonçalves, Aldair Carlos, Gabriela

Segarra, Michelle Comar, André Santos Luiggi, Fábia Barbosa, Elaine Ribeiro, Bruna

Soalheiro Cruz, Ana Emilia e Bruno Feitler, professores e colegas da Linha de pesquisa

Escravidão e História Atlântica e do Projeto Temático Dimensões do Império Português,

foram indulgentes comigo. Cristina Wissenbach e Laura de Mello de Souza, quando do exame

de qualificação, sugeriram caminhos e destinos para a pesquisa.

Maria Antonieta Antonacci partilha sua generosidade e saber comigo desde os

tempos de PUC-SP. Raphael Rodrigues Vieira Filho é meu orientador desde os tempos de

UNEB. Padre Carlos Eduardo Bethancourt Sanchez é meu amigo e incentivador aqui, algures

e alhures. Didier Lahon se tornou minha referência de diálogo intelectual. Emanoel Araújo,

diretor e curador do Museu Afro-Brasil, me ensinou a saber de Arte.

Os funcionários do Instituto de Estudos Brasileiros, da Cátedra Jaime Cortesão, da

Casa das Áfricas, da Casa de Portugal, dos arquivos baianos e cariocas por onde passei, e do

Museu Afro-Brasil onde trabalhei, foram gentis e prestativos comigo.

Meus colegas de Crusp e cotidiano – Aldair Carlos, Lena de Castro, Sara Freitas –

me socorreram em horas de solidão. Francisco Xavier me instruiu sobre língua quimbunda.

Daniel Afonso da Silva pôs emoção na história de minha História. Erika Cavalcante, Jamilly

Musse, Renata Diório, Vera Schmidt e Viviane Morais competiram com o carinho e com o

amor de meus parentes e de meus pais nesta São Paulo tão distante de casa e de tudo.

Para parafrasear o autor de Cem anos de Solidão teço a minha mais profunda

gratidão ao povo da minha maloca.

Meus avós, João Amaro e Alice Bello, falecidos, cuidaram de mim. Minha avó

Elizia rezou pra mim. Minha tia China mandingou pra mim. Meus tios – Ovídio, Arismário,

Reginaldo e Conceição – gostaram de mim. Meus primos, Michel e Regiane, choraram por

mim. Meus irmãos – Vando, Vaniléia e Valdinéia – e meus sobrinhos – Charles e Nívea –

esperaram por mim.

Page 7: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

7

Meus pais, Noel e Vera, atenuaram a distância me amando. Que reconheçam, no

que se segue, alguma parcela desse amor e do meu amor.

Page 8: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

8

RESUMO

SILVA SANTOS, Vanicléia. As bolsas de mandinga no espaço Atlântico: Século XVIII.

São Paulo, 2008. (Tese apresentada ao programa de pós-graduação em História Social da

FFLCH-USP)

Dentre as práticas mágicas realizadas pelos africanos e crioulos no Império Português,

tiveram destaque os amuletos em formato de bolsinha contendo ingredientes que protegiam

contra armas e doenças. Sua popularidade atiçou os inquisidores do Santo Oficio que a

denominou bolsa de mandinga, e os confeccionadores de mandingueiros, e interpretaram a

prática como uma manifestação de feitiçaria. Essa pesquisa propõe uma análise das bolsas de

mandinga utilizadas nas sociedades atlânticas como resultado da recriação de tradições

africanas no mundo do cativeiro e da circulação de saberes entre africanos de diferentes

origens, a partir de um fundamento da cultura banto associada ao cristianismo.

Palavras-chave: África-Brasil, Escravidão-Bahia, Mandinga-Banto, Catequese-escravidão,

Brasil – Religião - História - século XVIII.

Page 9: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

9

ABSTRACT

Among the magical practices done by Africans and Creoles in the Portuguese Empire, we can

point out charms in shape of small bags containing specific ingredients that protected against

harm made by guns and illness. Their popularity intrigued the Inquisition and their agents had

called them “bolsa de mandinga”, and the people who made them “mandingueiros”,

interpreting those practices as manifestations of sorcery. This research tries to analyze the

“bolsas de mandinga” utilized in the Atlantic societies as a result of the recreation of African

traditions in the world of slavery and circulation of knowledge related to Africans from

different origins, based in a Bantu culture associated with Christianity.

Page 10: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

10

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ....................................................................................................................... 12

1 AMULETOS PROTETORES NA ÁFRICA ........................................................................ 23

1.1 Os mandingas .................................................................................................................... 23

1.2 A presença portuguesa na Guiné e o contato com os mandingas ...................................... 29

1.3 Os costumes dos mandingas .............................................................................................. 38

1.4 A missionação na Guiné: relíquias portuguesas na África ................................................ 51

1.5 A redução da alteridade por meio da linguagem religiosa ................................................ 61

2 A CIRCULAÇÃO DE PESSOAS E SABERES NO ATLÂNTICO – AS BOLSAS DE

MANDINGA ........................................................................................................................ 93

2.1 A feitiçaria na inquisição de Portugal: a questão legal ...................................................... 95

2.2. Negros na Inquisição de Portugal ................................................................................... 102

2.3 Negros do Atlântico na Inquisição .................................................................................. 109

2.4. Escravidão e feitiçaria na África .................................................................................... 126

2.5. Povos africanos na Bahia Setecentista............................................................................ 135

3 CATEQUESE DE AFRICANOS E COLONIZAÇÃO DO SERTÃO BAIANO .............. 142

3.1 Da cartequese indígena para a africana ........................................................................... 142

3.2 Padres intérpretes ............................................................................................................. 152

3.3 Criação de novas freguesias ............................................................................................ 164

3.4 A redefinição missionária seguindo o brilho do ouro...................................................... 172

4 MANDINGUEIROS NO BRASIL .................................................................................... 181

4.1. Identidades construídas nos circuitos atlânticos ............................................................. 181

4.2. Catolicismo negro ........................................................................................................... 188

4.3. Sem irmandades nem calundus: mandingueiros na Bahia setecentista .......................... 209

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................ 234

FONTES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................... 239

Page 11: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

11

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

1. Mapa de Abraão Cresques ................................................................................................... 26

2. Marabu ................................................................................................................................. 28

3. Guerreiros mandingas .......................................................................................................... 44

4. Negro mandinga .................................................................................................................. 49

5. Soldado fula ......................................................................................................................... 90

6. Mapa da comarca de Jacobina – séc XVIII ....................................................................... 176

7. Nganga .............................................................................................................................. 198

8. Manuscrito de bolsa de mandinga ..................................................................................... 201

9. Sítio de Riachão ................................................................................................................. 221

10. Manuscrito de bolsa mandinga ........................................................................................ 224

Page 12: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

12

INTRODUÇÃO

O passado deve ser visto como a circunstância

condicionadora do presente. Não cremos que o presente

possa ser “compreendido” – no sentido de se explicarem

as relações entre diferentes formas institucionais

contemporâneas – sem referência ao passado.1

No Brasil, o estudo dos amuletos africanos, salvo engano, só foi iniciado a partir

do interesse dos pesquisadores brasileiros e estrangeiros em torno do episódio da Revolta dos

Malês ocorrida na Bahia em 1835. Nina Rodrigues foi o pioneiro nestes estudos que

abrangiam a religiosidade dos africanos. O autor perseguiu com afinco o objetivo de mostrar

a “significação histórica” da revolta, observando que os escravos “sob o duro regime do

cativeiro reconstruíram como puderam as práticas, os usos e as crenças da pátria longínqua.”

Para o autor, os talismãs usados na revolta, escritos em língua árabe remontavam, à origem

dos Hauçás.

Arthur Ramos, discípulo de Nina Rodrigues, estudou as religiões e cultos negros

no Brasil de matriz “gêge-nagô”. Defendeu a superioridade cultural destes povos da África

Ocidental. Sua leitura do sincretismo religioso no Brasil é de cunho evolucionista: “resultante

de uma mescla curiosa, na qual várias formas mythicas entraram em contacto, umas se

fundindo a outras, as mais adiantadas absorvendo as mais atrazadas, originando uma

verdadeira symbiose.” 2

Ramos explicou que os talismãs usados eram frutos da teologia rudimentar

aprendida por esses negros na África: “esses talismans, mandingas ou amuletos eram, na sua

maior parte, fragmentos ou versetos do Alcorão, escriptos em caracteres árabes, num pedaço

de papel, pequenas taboas, ou em outros objectos que elles guardavam como gris-gris.”3

Laura de Mello e Souza, na década de 1980, trouxe a mais importante

contribuição para o estudo das mentalidades e da religiosidade popular no Brasil colônia:.

Sua análise acerca das práticas religiosas vividas pela população nos séculos XVI, XVII e

XVIII mostra como fragmentos da magia, religiosidade e feitiçaria européias foram vividos

1 Sidney MINTZ e Richard PRICE, O nascimento da cultura Afro-Americana. Uma perspectiva antropológica,

Edição revista de 1992, trad. Vera Ribeiro, Rio de Janeiro: Pallas-Universidade Cândido Mendes, 2003, p. 113. 2 Arthur RAMOS, O Negro Brasileiro: Etnografia Religiosa. São Paulo/Porto Alegre: Cia. Editora

Nacional/Universidade de São Paulo, 1940, p. 39. 3 Idem, p. 83.

Page 13: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

13

pela população. Atenta à natureza da religiosidade colonial, Souza percebeu que conforme

avançava o processo de colonização, mais saberes e práticas circulavam entre portugueses,

indígenas e africanos, num movimento de adaptação e resistência.

Sob o prisma da resistência do escravo contra os seus senhores, Laura de Mello e

Souza examinou com minúcia os vários tipos de práticas mágicas que as devassas e as fontes

inquisitoriais classificaram como feitiçarias. Dentre estas, “a mais consistente das

manifestações de tensão por meio de práticas mágicas e feitiçaria foi o uso de bolsas de

mandinga, ou patuás.” A grande popularidade delas encontra resposta no fato de terem sido

usadas pelas várias camadas sociais, sobressaindo-se os negros.4 Após identificar a

antigüidade do uso de amuletos na Europa, a autora interpretou-as a partir dos ingredientes de

natureza católica inseridos nas bolsas, assim como observou as intenções reveladas no uso

das “mandingas” – a proteção.

João Reis seguiu os passos de Nina Rodrigues, para afirmar que os amuletos do

século XIX tinham origem entre os povos islamizados. Através de cronistas que estiveram na

Costa Ocidental da África, apontou o uso generalizado de tais amuletos. Eram levados junto

ao corpo tanto pelos “mais doutos” quanto pelos “menos relaxados” entre os seguidores do

islamismo. Também o usavam os “pagãos” iorubás e outros grupos africanos, que nunca

tiveram conhecimento do Islã.5 As virtudes protetoras eram os motivos de estar presentes

entre os`islamizados e não-islamizados. Na Bahia, o objetivo de portá-las era a proteção

contra senhores e soldados e, principalmente, “contra pessoas do mesmo nível social do

portador do amuleto, o que configura seu papel no interior da própria comunidade africana.”6

Daniela Buono Calainho, em sua pesquisa, intitulada Religiosidade Negra e

Inquisição Portuguesa no Antigo Regime ressaltou o uso das bolsas de mandinga na

Metrópole lusitana. Em sua tese, buscou a possibilidade de “estabelecer conexões com

algumas práticas de certos grupos africanos, na própria África, e perceber ainda uma notável

circularidade e difusão entre os negros moradores do Reino e entre estes e os do Brasil”.

Negros de diversas etnias e crioulos foram flagrados usando as bolsas, pois nos novos lugares

onde desembarcaram “estas crenças difundiram-se, foram partilhadas, ensinadas e

aprendidas, adquirindo um novo perfil diferente do original”.7 A novidade de sua tese é a

4 Laura de Mello e SOUZA, O Diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Cia. das Letras, 2002, p. 210.

5 João José REIS. Rebelião Escrava no Brasil: A história do levante dos malês em 1835. São Paulo: Companhia

das Letras, 2003, p. 180. 6 Idem, p. 192.

7 Daniela Buono CALAINHO. Metrópole das Mandingas: Religiosidade Negra e Inquisição Portuguesa no

Antigo Regime. Doutorado em História. UFF, Niterói, RJ, 2000, pp. 157 e 149.

Page 14: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

14

análise acerca da recriação cultural em torno da bolsa de mandinga e a demonização das

práticas africanas pela Inquisição na Europa Moderna

Ao fim dessa revisão historiográfica, cabe destacar a tese de doutoramento de Didier

Lahon, defendida em 2001. Trata-se de uma exaustiva pesquisa sobre a presença dos negros

em Portugal, na qual dedicou uma parte aos mandingueiros negros.8 O autor analisou as

práticas religiosas dos africanos na Metrópole como resultado do processo da mestiçagem

com a cultura popular européia, através dos relatos das testemunhas e das confissões dos

negros processados pela inquisição pelo crime de feitiçaria. Os processos de Catarina Maria,

Maria Antonia, ambas naturais de Angola, Francisco Antonio da Costa e Jose Francisco

Pereira, ambos da Costa da Mina, foram analisados, quando possível, a partir das suas

culturas de origem.

A novidade da sua pesquisa foi a tentativa de empreender uma análise morfológica

dos elementos usados nos rituais, a qual, chamou de “equivalência simbólica”. Ele comparou

tradições da Costa da Mina com alguns “ingredientes” da bolsa e da confissão do rito de

pacto diabólico. Quanto aos elementos gráficos contidos nas orações feitas por Jose Francisco

Pereira, um dos mais famosos mandingueiros do circuito atlântico, sua chave de leitura é da

representação minimalista de cenas da Paixão de Cristo (Jesus, pregos, coroa de espinho,

cruz, soldados romanos, Espírito Santo, signo Salomão e outros difíceis de decifrar) e do

vodou haitiano. 9

Embora tenha avançado na tentativa de decifrar os grafismos de Jose Francisco de

Souza, Didier Lahon apegou-se ao dado da procedência geográfica/étnica, porque foi

influenciado pelos estudos de Artur Ramos, Roger Bastide e Pierre Verger, os quais

analisaram o sincretismo do complexo religioso nagô na Bahia com o catolicismo. Discordo,

em parte, de sua análise, pois as gravuras não se referem à cosmologia dos jejes, fons e

nagôs. Penso que sejam referências aos elementos semelhantes ao catolicismo e da cultura

bacongo. Antes de morar na Metrópole, o mandingueiro morou em Pernambuco, Minas

Gerais e Rio de Janeiro, em cada lugar, ele disse ter aprendido algum tipo de feitiço para

fazer mandinga. A bolsa de José Francisco e as de vários outros mandingueiros eram

produtos das trocas de saberes em Lisboa entre africanos de várias procedências no Reino e

noutras partes do Império.

8 Magie, Calundu, Syncretisme et Croyances Africaines a Lisbonne. In: Didier LAHON. Esclavage et Confréries

Noires au Portugal durant l'Ancien Régime (1441-1830). Tese de doutorado em Anthropologie Sociale et

Culturelle, Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris, 2001; 9 Idem. Inquisição, pacto com demônio e “magia” africana em Lisboa no século XVIII. Topoi. Rio de Janeiro:

Revista do Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ, vol.5, n.8, pp. 28-43, 2004.

Page 15: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

15

Essas pesquisas são importantes pelo trabalho com as fontes documentais (em geral,

inquisitoriais ou policiais) e pelas interpretações das práticas religiosas que envolviam o uso

dos amuletos no Brasil. A análise de Laura de Mello e Souza permite um olhar geral acerca

das práticas dos negros na América Portuguesa, ressaltando as bolsas de mandinga, seus

conteúdos e as motivações dos seus usuários. Em D. Lahon e Daniela Calainho há uma

pesquisa mais pormenorizada dos usos das bolsas de mandinga em Portugal. Nas demais

obras, como as de Nina Rodrigues, Arthur Ramos e João Reis, há uma preocupação em

observar a atuação das práticas oriundas da África Ocidental na cidade de Salvador

oitocentista e suas continuidades.

O uso de amuletos protetores fazia parte do conjunto de práticas culturais e

religiosas dos africanos tanto do Oeste como da parte Centro-Ocidental: as duas regiões

fornecedoras de escravos ao Novo Mundo. No sertão da Bahia do século XVIII, o uso de

amuletos consistiu também em prática religiosa que agregou materiais de origem européia,

como as hóstias e orações católicas, para lhes atribuir significados africanos, principalmente

da cosmologia religiosa dos povos bacongo e quimbundo. Esse trabalho é o resultado da

pesquisa acerca das bolsas de mandinga no Império Português. A investigação em torno da

origem das bolsas usadas por mandingueiros no sertão da Bahia conduziu a pesquisadora por

caminhos tortuosos e difíceis, fazendo-a atravessar constantemente o Atlântico: partindo da

Alta Guiné para Portugal, seguindo para o Brasil, e atravessando novamente para Angola,

para finalmente olhar de novo o Brasil. O resultado disso foi a constatação de que na Bahia

do século XVIII os negros se reuniram em torno de uma prática mágica, a bolsa de mandinga,

na qual podiam ser agregados símbolos africanos e católicos, que faziam mais sentidos no

mundo do cativeiro do que a catequese sacramentalizada apenas no batismo e na comunhão

esporádica.

A perspectiva adotada insere o período abordado na longa-duração. Começamos no

século XVI observando o olhar europeu acerca das práticas religiosas dos negros na Costa

Ocidental da África. Nesse período de descobertas, os povos mandes despertaram, de forma

singular, a atenção dos portugueses que mercadejavam ou missionavam nessa região.

Acompanhamos esse olhar no século XVII até o ano de 1774, quando as bolsas de mandinga

já eram bem populares na Colônia. Nesse ano, as bolsas de mandinga e outras práticas

mágicas deixaram de ser consideradas “feitiçarias” pela ação reformadora do Marquês de

Pombal e foram classificadas como ignorância no Regimento da Inquisição do referido ano.

Essa extensão temporal foi necessária para compreender como as práticas religiosas em torno

Page 16: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

16

do uso de amuletos foram se transformando a partir dos processos de mudança do tráfico

negreiro e dos laços de solidariedade que se formavam no cativeiro.

A realização de uma pesquisa sobre missionação entre negros no espaço atlântico

e do olhar europeu sobre as práticas mágicas deles, tanto no território africano bem como na

Colônia da América Portuguesa do século XVIII, não constitui tarefa das menos complicadas.

Para tanto, as fontes utilizadas são de diversas naturezas. Para a Guiné: a Monumenta

Missionária Africana constituiu-se em item imprescindível e de enorme riqueza para

compreender a missionação dos jesuítas entre os mandingas. Os viajantes deram as

informações etnográficas: Luis de Cadamosto, André Álvares Almada, Francisco Coelho e

André Donelha. Para Angola, o padre Cavazzi de Monteccuculo, o militar Antonio de

Cadornega e a Monumenta Missionária Africana permitiram observar os costumes e usos dos

amuletos no século XVII e XVIII pelos bantos.

Para o Brasil, foram usados os seguintes documentos: do Conselho Ultramarino

dos catálogos do Projeto Resgate, nos quais há correspondências trocadas entre as

autoridades do Brasil, Portugal, Angola e Guiné; as compilações dos documentos dos jesuítas

por Serafim Leite, as Notícias do Arcebispado da Bahia, os sermões dos padres Jorge Benci e

Antônio Vieira; as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia; a gramática de Pedro

Dias; o vocabulário de Antonio Peixoto, e os dados do Trans-Atlantic Slave Trade Data Set.

Devo ressaltar os processos inquisitoriais contra as “feitiçariass”, pois

constituem, pela natureza dos dados que veiculam, as fontes mais importantes para

descortinar a historia da África e do Brasil e das relações atlânticas. Principalmente porque

podem revelar a forma como os africanos e seus descendentes recriaram ou continuaram suas

tradições no Brasil.

Sobre o procedimento de tratar com as fontes inquisitoriais, Ginzburg nos

ensina, com sua larga experiência, que é importante nunca perder de vista que os

documentos, ou seja, os textos dos julgamentos dos réus, longe de serem neutros, são

dialógicos e polifônicos. Eles trazem em si “vozes contraditórias”, pois estão contaminados

pelo quadro de referência cultural divulgado na Europa pelos pregadores, teólogos e juristas

sobre o demônio e bruxas. Em geral, as “respostas dos réus não eram mais do que o eco das

perguntas dos inquisidores.” O autor sugere que o historiador se inspire nos antropólogos e

utilize os depoimentos dos acusados como uma porta de entrada para compreender o universo

Page 17: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

17

em que vivia o indivíduo, as relações sociais que estabelecia e descobrir quais crenças,

valores e costumes estão encobertos pelos discursos estereotipados dos inquisidores. 10

Essa pesquisa se inscreve no âmbito dos estudos da religiosidade negra no período

da escravidão. Considera-se a religião a partir de dois pontos de vista: da continuidade das

tradições africanas sob a perspectiva da “interpenetração cultural” e/ou da criação de novas

instituições no Novo Mundo, pois, dadas as condições da diáspora negra, era impossível

transplantar os sistemas sociais e culturais existentes na África. Nessa direção, estudos muito

importantes têm mostrado a recriação de instituições no mundo do cativeiro, nas quais

“sobreviveram” elementos estruturais da cultura de origem, que muito inspiraram a nossa

análise: Luiz Mott11, Robert Slenes,12 João Reis13, Mary Karasch,14 Marina de Mello e Souza15,

James Sweet,16 Eduardo Silva17, Lucilene Reginaldo18 e Nicolau Parés.19

10

Carlo GINZBURG, O Inquisidor como antropólogo – uma antologia e as suas implicações. In: A Micro-

História e outros ensaios. Rio de Janeiro: Difel, 1991, p. 208.10

Há estudos importantes recentes que utilizam

dessa metodologia sugerida por Ginzburg, que pesquisam os negros presos pela Inquisição, com objetivo de

mostar o sincretismo religioso na América Portuguesa. Destacam-se as obras: Laura de Mello e SOUZA, Op.

cit., Ronaldo VAINFAS, Trópico dos pecados. 2. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1989; A Heresia dos Índios.

Catolicismo e rebeldia no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995; Confissões da Bahia:

Santo Ofício da Inquisição de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997; Daniela CALAINHO, Op.

Cit.; várias publicações de Luiz Mott, algumas estão citadas na nota seguinte; MARCUSSI, Alexandre

Almeida. “Estratégias de mediação simbólica em um calundu colonial”, Revista de História, FFLCH/USP,

n.155, pp. 97-124, 2006. Há ainda outras pesquisas que usam os processos gerados pela Inquisição para revelar

as dinâmicas atlânticas das relações entre africanos e europeus e as crenças dos negros nos séculos XVII e

XVIII: F. BETHENCOURT & P. HAVIK, A África e a Inquisição portuguesa: novas perspectivas. Revista

Lusófona de Ciência das Religiões, Lisboa, v.5/6, pp. 21-27, 2004; HAVIK, Silences and Soundbytes. The

gendered dynamics of trade and brokerage in the colonial Guinea-Bissau region. Muenster/ New Brunswick,

Lit Verlag/Transaction Publishers, 2004; Comerciantes e Concubinas: sócios estratégicos no comércio

Atlântico na Costa da Guiné. In: Revista Internacional de História de África – A Dimensão Atlântica da

África. Rio de Janeiro: CEA/USP/ SDG-Marinha/Capes, pp. 161-79, 1996 ; La sorcellerie, l‟acculturation et le

genre: la persécution religieuse de l‟Inquisition portugaise contre les femmes africaines converties en Haut

Guinée (XVIIe siècle). Revista Lusófona de Ciência das Religiões. Lisboa, Ano III, n.5/6, pp. 99-116, 2004.

Selma PANTOJA, Inquisição, degredo e mestiçagem em Angola no século XVIII. Revista Lusófona de

Ciência das Religiões. Lisboa, n.5/6, pp. 117-136, 2004; Angola com os gangas e os zumbis nas redes da

Inquisição no século XVIII. In: ISAIA, Artur César (Org.). Orixás e espíritos: o debate interdisciplinar na

pesquisa contemporânea. Uberlândia: EDUFU, 2006. 11

Luiz MOTT, O Calundu-Angola de Luzia Pinta: Sabará, 1739. Revista do IAC, Universidade Federal de Ouro

Preto, 1994, pp. 73-82; A vida mística e erótica do escravo José Francisco Pereira 1705-1736. Revista Tempo

Brasileiro, Rio de Janeiro, no. 92/93, 1988, pp. 85-104; Quatro Mandingueiros de Jacobina na Inquisição de

Lisboa. Afro-Ásia, UFBA, Centro de Estudos Afro-Orientais, n.16, pp. 149-162, 1995; Dedo de anjo e osso

de defunto: os restos mortais na feitiçaria Afro-Luso-Brasileira. Revista USP, n. 31, pp. 112-119, 1996; Santo

Antônio, o divino Capitão-do-Mato. In: REIS, João & GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio.

História dos quilombos no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1996; Cotidiano e vida religiosa: entre a capela e

o calundu. In: SOUZA, Laura de M. (Org.) História da Vida no Brasil: cotidiano e vida privada na América

Portuguesa. São Paulo: Cia. das Letras, 1997. 12

Robert SLENES, “Malungu Ngoma Vem!” África coberta e descoberta no Brasil. Revista da USP, n.12, pp.

48-67, 1991; O mesmo texto foi e revisado e publicado em ARAUJO, M. Negras Memórias, Memórias de

Negros, São Paulo, 2002; A árvore de Nsanda transplantada: cultos kongo de aflição e identidade escrava no

Sudeste brasileiro (século XIX). In: LIBBY, Douglas Cole; FURTADO, Júnia Ferreira (Orgs.), Trabalho livre,

trabalho escravo: Brasil e Europa, séculos XVIII e XIX. São Paulo: Annablume, pp. 273-314, 2006. 13

João José REIS, Rebelião Escrava no Brasil: Op. Cit.; Magia jeje na Bahia: a invasão do Calundu de

Cachoeira, 1785. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.6, n. 16, pp. 57-81, 1988; Sacerdotes, devotos e

Page 18: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

18

Os estudos de Sidney Mintz & Richard Price, John Thornton, Hein Vanhee, Philip

Havik e Cristina Pompa, que discutem os conceitos de cultura, crioulização, continuidades,

sincretismo20 e tradução religiosa,21 foram de fundamental importância para pensar o tema das

bolsas de mandinga no espaço atlântico.

Mintz e Price, ao abordar o tema dos estudos nas Américas acerca das

sobrevivências africanas, enfatizam que não se pode deixar de levar em consideração o peso

do escravismo, do cruzamento entre história e antropologia, bem como, das culturas africanas

das regiões que abasteceram o tráfico negreiro transatlântico, que foram marcadas por grande

heterogeneidade. Os autores não negam a existência de uma herança cultural comum aos

africanos, mas afirmam que ela teria de ser observada sob os “princípios gramaticais

inconscientes” e das “orientações cognitivas”, e não poderia ser automaticamente associada a

manifestações culturais explícitas, visto que estas estariam sempre diretamente ligadas às

formas institucionais que as articulavam.22

Cristina Pompa realizou uma belíssima obra sobre a relação entre os tupinambás

e os missionários na América Portuguesa e o problema colocado em torno da compreensão

das “santidades” e dos “profetas” indígenas. A autora sugere o termo “tradução”, pois este

clientes no Candomblé da Bahia oitocentista. In: Orixás e espíritos: o debate interdisciplinar na pesquisa

contemporânea. Uberlândia: EDUFU, 2006; Domingos Pereira Sodré: um sacerdote africano na Bahia

oitocentista, Afro-Ásia, UFBA, Centro de Estudos Afro-Orientais, n. 34, pp. 237-313,2006; Quilombos e

revoltas escravas no Brasil: “Nos achamos em campo a tratar da liberdade‟. Revista USP, n.28, pp. 14-38,

1996. 14

Mary KARASCH, A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Cia. das Letras, 2000. 15

Marina de Mello e SOUZA, Reis Negros no Brasil Escravista – História da Festa de Coroação de Rei Congo.

Belo Horizonte, Editora UFMG, 2002; Catolicismo negro no Brasil: Santos e Minkisi, uma reflexão sobre

miscigenação cultural. Afro-Ásia, UFBA, Centro de Estudos Afro-Orientais, no. 28, pp. 125-146, 2002; Santo

Antonio de nó-de-pinho e o catolicismo afro-brasileiro. Tempo, Revista do Departamento de Historia da

Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, Sette Letras, v. 6, n.11, 2001. 16

James H. SWEET, Recreating Africa: Culture, Kinship and Religion in the African-Portuguese World 1441-

1770. Carolina: The University of North Carolina Press, 2003. 17

Eduardo SILVA, Dom Obá II D’África, O Príncipe do Povo: Vida, Tempo e Pensamento de um Homem

Livre de Cor. São Paulo: Cia. das Letras, 1997. 18

Lucilene REGINALDO, Os Rosários dos Angolas: Irmandades Negras, experiências escravas e identidades

africanas na Bahia Setecentista. Tese (Doutorado). São Paulo: Unicamp, 2005. 19

Luis Nicolau PARÉS, A Formação do Candomblé: História e ritual da nação jeje na Bahia. Campinas, SP:

Editora da Unicamp, 2006. 20

Hein VANHEE, Central African popular christianity and the making of Haitian voodoo religion. In:

HEYWOOD, Linda M. Central Africans and Cultural Transformations in the American Diaspora.

Cambridge: Cambridge University Press, pp. 243-264, 2002; Philip HAVIK, Op. Cit.

Sidney MINTZ e Richard PRICE, O Nascimento da Cultura Afro-Americana: uma perspectiva

antropológica. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Pallas: UCAM, 2003; John THORNTON, On the Trail of

Voodoo: African Christianity in Africa and the Americas. The Americas, n.55, pp. 261-78, 1991; 'I am the

Subject of the King of Congo': African Ideology in the Haitian Revolution. Journal of World History, n.4, pp.

181-214, 1993; A África e os africanos na formação do mundo atlântico (1400-1800). Trad. Marisa Rocha

Mota. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004; 21

Cristina POMPA, Religião como Tradução: missionários, Tupi e Tapuia no Brasil Colonial. Bauru: São Paulo:

EDUSC, 2003. 22

Sidney MINTZ e Richard PRICE, Op. Cit., pp. 28-34.

Page 19: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

19

fornece o instrumental necessário para interpretar o referido problema cultural: “a linguagem

religiosa parece tornar-se o terreno da mediação onde cada cultura pode tentar ler a

diversidade da outra e onde a alteridade pode encontrar seu sentido e, portanto, sua

„tradução‟, em termos culturalmente compreensíveis”.23

Esse conceito foi muito importante para compreendermos a ação missionária

dos jesuítas na Guiné, no Brasil e em Angola. O modo de doutrinar foi baseado na tradução

do cristianismo para a linguagem dos africanos. Estes, por sua vez, traduziram os

ensinamentos e símbolos cristãos para suas concepções africanas.

Baseado em seu trabalho com documentos de arquivos inquisitoriais, Ginzburg

percorreu um longo caminho utilizando-se dos teóricos da literatura européia para afirmar

que é preciso ir além da idéia de causalidade na interpretação do acontecimento histórico. A

história, no seu entender, deve ser contada ao revés do que foi documentado. Ou seja, é

preciso saber ler nas entrelinhas dos documentos oficiais para extrair deles outras histórias.

Seguindo a lição de Ginzburg, utilizamos as confissões e as bolsas anexadas aos processos

dos mandingueiros para identificar as origens de suas práticas mágicas e analisar o resultado

da circulação entre saberes africanos e católicos.

O referencial para compreender a confluência dos conceitos de “magia” e

“religião” é a noção de “práticas religiosas” de Pierre Bourdieu, respaldado nos pensamentos

de E. Durkheim e M. Weber.

Costuma-se designar em geral como magia tanto uma religião inferior como antiga,

logo primitiva, quanto uma religião inferior e contemporânea, logo profana e

profanadora. (...) Como observou Weber é a supressão de um culto sob a influência de

um poder político ou eclesiástico em prol de uma outra religião, que, reduzindo os

antigos deuses à condição de demônios, deu origem ao curso do tempo à oposição entre

a religião e magia.24

O quadro de diferenciação estabelecido entre as práticas mágicas e a religião

fornece elementos importantes para pensar nos embates entre a doutrina que a Igreja

transmitia e a vivência cotidiana da religião dos africanos.

As práticas mágicas visam objetivos concretos e específicos, parciais e imediatos (em

oposição aos objetivos mais abstratos, mais genéricos e mais distantes que seriam os da

religião); estão inspiradas pela intenção de coerção ou de manipulação dos poderes

sobrenaturais (em oposição as disposições propiciatórias e contemplativas da “oração”

23

Cristina POMPA, Op. cit., p. 56. 24

Pierre BOURDIEU, A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 44.

Page 20: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

20

por exemplo); e por último, encontram-se fechadas no formalismo e ritualismo toma lá dá

cá.25

Tendo em vista essa perspectiva da funcionalidade da religião é de suma

importância o estudo de Cramer, Fox e Vansina sobre os movimentos religiosos na África

Central, que construíram o modelo teórico de fortuna-infortúnio, segundo o qual as “forças

do outro mundo” são acionadas diante de situações de conflito ou de desventura.26 Assim,

interpretamos que os amuletos usados no Brasil corresponderam às necessidades de resolver

problemas da esfera do cotidiano, do mundo do visível.

Pierre Sanchis propôs uma revisão do termo sincretismo, há muito tempo usado

no Brasil para explicar os processos de interpenetração cultural entre religiões e culturas, pelo

fato do conceito ter se tornado alvo de muitas críticas nos últimos 20 anos, por causa da visão

negativa que opunha o conceito de “pureza” e o seu oposto a “mistura” ou o “sincretismo”.

Por outro lado, os analistas usavam de outros conceitos que tinham o mesmo sentido:

“junção, união, confluência, mistura, aglutinação, associação, simbiose, amálgama,

paralelismo, correspondência, equivalência, justaposição ou convergência e síntese.”27

Da perspectiva desse autor, o conceito de sincretismo nos permite entender como

grupos sociais e as culturas “são levadas a entrar num processo de redefinição de sua própria

identidade, quando confrontadas com o sistema simbólico de outra sociedade, seja ela de

nível classificatório homólogo ao seu ou não.”28 Dessa forma, percebemos que os africanos

modificaram suas práticas religiosas diante do mundo do cativeiro, marcado pela religião

católica, e ao mesmo tempo modificaram o catolicismo. O processo sincrético se dá numa

relação desigual. No contexto colonial, marcado pela relação senhor - escravo, o catolicismo

e os fragmentos de africanismos marcaram o sentido da dinâmica e orientaram o sentido do

sincretismo que ocorreu nos casos estudados.

Concluindo o elenco de referencias teóricos importantes para pensar esse trabalho,

cabe destacar a participação no grupo de Escravidão e História Atlântica e no Projeto

Temático Dimensões do Império Português, agregada ao Núcleo de Religião e

Evangelização, cujas discussões me levaram a pensar nas connected histories, termo muito

25

Idem, p. 45. 26

Willy CRAEMER, Jan VANSINA, Renée C. FOX, Religious Movements in Central Africa: A Theorical Study.

Comparatives Studies in Society and History, 18, 4, 1976, pp. 458-475. 27

Pierre SANCHIS, As tramas sincréticas da História: Sincretismo e modernidades no espaço luso-brasileiro.

Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo: ANPOCS, ano 10, n.28, pp. 123-138, 1995. 28

Idem, p. 125.

Page 21: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

21

bem conceituado por Sanjay Subrahmanyam.29 Tentar juntar as partes do Império dentro de

um tema é algo fascinante, mas difícil de ser realizado, porque exige pensar no móbile que

conectava as partes. Para isso, a participação no Colóquio Internacional sobre Poder e

Religião no Império Português, cuja discussão central foi o movimento de expansão do

catolicismo via Império Portugues, o papel de mediação cultural dos missionários e a

produção de alteridades nativas.30

O primeiro capítulo mostra a origem dos povos Mandingas no reino do Mali e

como foram os primeiros contatos dos portugueses com eles na Costa da Guiné. O olhar dos

viajantes dos séculos XV, XVI e XVII traz dados dos costumes e modos de vida das

populações costeiras e do interior do Oeste africano. Os missionários jesuítas tentaram

traduzir a religião dos povos pagãos para convertê-los. Nesse percurso, se depararam com

concorrentes no mercado espiritual: os missionários mandingas que distribuíam amuletos

islâmicos. A partir daí, disseminou-se a idéia de que eram supersticiosos e feiticeiros. Os

amuletos também faziam parte da gramática cultural dos bantos, cuja função também era

proteger o corpo do portador de doenças, feitiços e armas.

O segundo capítulo trata do circuito atlântico das bolsas de mandinga, através dos

registros inquisitoriais. As tabelas que mostram as diferentes direções do tráfico de escravos

entre a África e a Bahia, no século XVIII, permitem compreender porque as bolsas de

mandinga tornaram-se a expressão do encontro entre vários grupos étnicos, reunidos sob a

escravidão no Brasil. Diante das necessidades do mundo do cativeiro, o cristianismo tornou-

se um dos lugares privilegiados de recriação das praticas mágicas africanas.

O terceiro capítulo mostra a tentativa de catequização dos africanos. A priori, os

missionários jesuítas da Bahia tentaram formar padres angolanos catequistas que falassem a

língua dos africanos. O aumento da população escrava acompanhava o desenvolvimento do

interior da província. A solução foi a criação de freguesias e delegação de doutrinação dos

escravos aos senhores e aos capelães. O resultado foi a sacramentalização compulsória dos

negros, através da doutrinação repetitiva e inculcada.

O quarto capítulo é uma análise dos processos dos negos presos no sertão da

Bahia, acusados de portar bolsas de mandingas, cujo poder era concedido por meio de pacto

diabólico. A comparação dos documentos acerca dos amuletos do Brasil com aqueles das

partes da África, a partir dos tipos de ingredientes, das orações inseridas nas bolsas, da língua

29

Serge GRUZINSKI, Os mundos misturados da monarquia católica e outras connected histories. Topoi, Revista

do Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ, Rio de Janeiro, v.2, pp. 175-95, 2001. 30

Colóquio Internacional Contextos Missionários: Poder e Religião no Império Português. São Paulo: USP, 1 a 5

de outubro de 2007.

Page 22: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

22

na qual escreveram as orações e as representações dos gráficos mostram que havia uma troca

de idéias entre as pessoas no circuito do Atlântico, bem como entre o catolicismo e

conhecimentos dos bantos e guineenses.

Page 23: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

23

1. OS MANDINGAS NA GUINÉ PORTUGUESA

1.1 Os Mandingas

As informações sobre os povos que habitavam o Norte da África, o Saara e sua

zona fronteiriça ao sul, chamada de Sahel, chegavam à Europa por meio dos escritores

árabes. Estes autores dos tarikhs (crônicas) estudaram nas escolas islâmicas criadas em Fez,

Tumbuctu, Ualata, Gaô e Tunis, onde foram incentivados a escrever crônicas dos reinos do

Sudão (do árabe Bilad-al-Sudan – país dos negros) e deram atenção especial às descrições do

reino do Mali.1

Os povos mandingas são originários dos mandês. Suas histórias estão contadas

nos tarikhs. No antigo reino do Mali, também chamado de reino Mandinga, os habitantes

eram os povos Malinqué, Mande ou Mandéu.

Mali, em língua Malinque significa “o lugar onde reside o senhor, e, por extensão,

o povo malinke ou mandé é o povo do rei”.2 Mali é também o nome do hipopótamo – que é o

totem do povo do Sundiata, tido como fundador do Império do Mali. Segundo a lenda, ele

transformou-se neste animal quando morreu afogado no rio Sankarani.

As crônicas localizam a origem dos mandês no Sahel, por volta do século VII,

onde os seus antepassados contribuíram para a conquista do antigo Império de Gana. O

antigo reino de Gana não está relacionado ao atual país de Gana. Para Fage, estava situado

em Uagadu, entre os vales do Níger e Senegal. Foi fundado em 622 d.C. pela dinastia Kaya-

Magha ou a Sanhaja. Os chefes Sanhajas, no século XI, ao sentir o enfraquecimento político e

1 Ibn Batutta nasceu no Marrocos em 1304. Morreu em Fez em 1369. Suas viagens duraram cerca de trinta anos.

No regresso a Fez, no tribunal do Sultão Abu'Inan, relatou suas viagens ao escritor Ibn Juzay, que depois as

tornou conhecidas e famosas. Ibn Khaldun nasceu em Túnis, em 1332 e faleceu no Cairo em 1406. Suas

atividades nas cortes de Fez e Túnis e no Cairo como mufti (juiz e líder religioso) forneceram-lhe as

informações para o capítulo de sua obra sobre o reino do Mali. Sua obra mais conhecida é The Muqadimmah –

A Introduction to History. Leo Africanus nasceu em Granada em 1485, mas foi expulso junto com os pais e

milhares de outros muçulmanos pela Monarquia Católica em 1492. Instalaram-se no Marrocos, onde estudara.

Acompanhou o tio em missões através do norte da África e ao reino subsaariano de Gana; muito jovem foi

capturado por cristãos e apresentado como um escravo sábio ao papa do Renascimento, Leo X. Este o libertou,

batizou-o sob o nome "Johannis Leo de Medici", e o incumbiu de escrever em italiano uma pesquisa detalhada

da África que proveu a maioria do saber dos europeus sobre o continente durante os vários séculos. Na ocasião,

ele visitou as antigas e famosas cidades islamizadas de Gana e Tumbuctu. À época, Tumbuctu era centro de um

comércio farto em produtos africanos e livros. Presume-se que tenha morrido em 1554 em Túnis, depois de ter

se reconvertido ao Islã. Ver J. D. FAGE. História da África. Lisboa: Edições 70, 1995, pp. 88-9; Said

HAMDUN, & Noel KING. Ibn Batuta In Black África. Londres: Markus Wiener Publishers, 1994. Consta do

acervo da Casa das Áfricas; José KHOURY. Ibn khaldun. Prolegômenos ou filosofia social. São Paulo:

Safady, 1958. José Khoury ainda traduziu a autobriografia de Khaldun, publicada no mesmo ano. Ambas as

obras constam na Coleção Eurípedes da FFLCH/USP. 2 J. D. FAGE, Op. Cit., p. 68. Ver capítulo 5. O autor afirma que era comum a denominação dos estados e

capitais da África negra através de um termo indicador da presença de realeza.

Page 24: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

24

econômico do reino, buscaram reaver o equilíbrio no islamismo, imbuídos de um desejo

imperialista de unificação. Resolveram levar um religioso muçulmano do sul do Marrocos

para pregar entre os Sanhajas. Depois dos primeiros esforços e vicissitudes ganhou

ascendentes sobre os demais pequenos estados e tornou-se uma liga guerreira conhecida

como almorávidas. Estes recuperaram o controle da rota ocidental das caravanas

transaarianas e dos centros comerciais de Sijilmasa e Audagoste para os Sanhajas. No

entanto, após a partida dos almorávidas, os antigos chefes dividiram-se novamente em

facções pelo deserto, buscando isoladamente lucros rápidos e entrando em conflitos com os

agricultores.3

Alberto da Costa e Silva, afirma por meio de Al-Bakri, que “Gana” era um título

usado pelos reis de um país cujo nome era Aucar. Essa denominação significava “chefe de

guerra”. Tunca e caia-maga ou caia-manga também eram designações reais que significavam

“rei do ouro”. O autor enfatiza a idéia de que o reino não se chamava Gana, e que não se

tratava de um império, mas de um “estado nacional”, pois ao caia-maga não era relevante

[...] a precisão dos limites, a extensão das terras sob seu domínio, o comando dos espaços,

tampouco, a imposição de uma rígida estrutura governamental ou das formas de cultura

do grupo dominante sobre os povos periféricos. O que lhe importava era quantidade de

gente sob seu controle. Não era Gana, portanto, um império, se visto da perspectiva

romana: não possuía vontade de unificar e converter, de reduzir todos os povos – dentro

de fronteiras em expansão, mas, em cada momento, determinadas – à mesma lei e a um

mesmo césar.4

O comércio de ouro que havia nas terras de Gana tornou-a muita afamada.

Presume-se que os locais de extração, genericamente chamados Uângara, eram nas minas de

Bambuque ou mais ao sul em Djené.

Os mandês eram súditos do reino de Gana e viviam ao sul do Saara, junto à curva

do rio Níger. Este era um ponto comercial estratégico que os possibilitou romper o controle

de Gana. No início do século XIII, a dinastia de Sumangaru Kante conquistou e destruiu o

antigo reino de Gana. Sundiata Keita, por sua vez, venceu Sumangaru em meados do mesmo

século, após ter reunido vários clãs malinquês. O chefe dos Keita, uma sociedade secreta de

caçadores, concentrou forças e fundou as bases do novo Império Mandê do Mali.

Os reis do Império do Mali, geralmente, são apresentados como homens ligados a

atividades de caça, metalurgia, guerra e magia. No ano de 1200, Sumangaru assumiu a

célebre dinastia dos Kantés, povo contrário ao Islã, por isso considerado na literatura árabe

3 J. D. FAGE, Op. Cit., pp. 73-85.

4 A Enxada e a Lança, A África antes dos Portugueses. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992, p. 247.

Page 25: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

25

como um reino animista. Ele deixou a lembrança de ter sido grande guerreiro e um mago

profundo conhecedor de feitiçaria. Em 1240, tornou-se vitorioso e passou a fazer várias

operações de expansão do Império do Mali. Em seguida, conquistou a região do baixo rio

Senegal, governada pelo Djolofing, o rei do Jalofos (também considerado, à época, animista

por não se converter ao Islã). Sumangaru foi reputado pelos seus talentos de mágico e

carregou consigo os amuletos do inimigo como despojos.5

Muitos reis da região do Saara aceitaram o Islã por ocasião da expansão

almorávida, porque o novo credo facilitava as relações cada vez mais importantes com os

mercadores da área saariana e do Norte da África. Para J. D. Fage, o tráfico transaariano

proporcionou os meios para que o Islã pudesse se contactar com os povos sudaneses,

habitantes do sul do deserto.6 As conversões dos reis de Tacrur no século XI e depois a do rei

de Gana desencadearam uma série de conversões de soberanos. As adesões à nova religião,

via de regra, eram superficiais. Houve também as autênticas. Nesses casos, os reis se

tornavam muçulmanos fervorosos.

O reino do Mali, entretanto, só passou a ser conhecido na Europa após a magnífica

viagem do chefe político e religioso chamado Mansa Musa à Meca em 1324. Sua comitiva

possuía milhares de pessoas, dentre os maiorais da corte, soldados e escravos. Contam os

autores dos tarikhs, que o Mansa levou tanto ouro consigo e o gastou de forma tão excêntrica

que o valor do metal caiu no mercado egípcio. As conseqüências dessa prodigiosa viagem de

peregrinação foi a propagação, por todas as partes, da história do Mansa Musa como um rei

muçulmano, poderoso e detentor de ricas minas de ouro. O objetivo da viagem era

desenvolver diálogo político e comercial com o Egito. A partir dessa viagem desenvolveu-se

o comércio de escravas e escravos eunucos para o Egito.7

O seu ouro inflamou durante séculos a imaginação dos geógrafos e aventureiros.

Jaime Ferrer, judeu de Maiorca, na primeira metade dos anos trezentos fez uma viagem ao

Sul do Bojador em busca do lendário “Rio do Ouro” do fabuloso reino Mandinga. Seus

relatos foram registrados no Atlas Catalão de Abraão Cresques, no qual aparece destacada a

figura alegórica do imperador do Mali com uma pedra de ouro na mão, trajando vestes

muçulmanas, sentado em trono e usando coroa, que faziam referência ao estilo Ocidental.

5 Joseph KI-ZERBO, História da África Negra. (Edição revista e atualizada pelo autor). Paris: Ed. Europa-

America, 1972, p. 169. 6 J. D. FAGE, Op. Cit., p. 84.

7 Alberto da Costa e SILVA. A enxada e a lança. Op. Cit., p. 297.

Page 26: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

26

Fig. 1. Mapa de Abraão Cresques (1375). Embaixo da pedra de ouro que o

imperador Mansa Musa segura na mão direita está a representação da cidade de

Tombuctu. Tradução literal do texto árabe da esquerda: “Este senhor negro é

aquele muito melhor senhor dos negros de Guiné. É o mais rico e o mais nobre

senhor de toda esta parte, com abundância de ouro na sua terra”.

Copia do “Special Collections Department, University of Virginia Library”

Durante todo o período do Quatrocentos, a suserania do mandimansa (título do

governante do Mali, que significa “senhor dos mandes”), foi paulatinamente diminuída.

Pequenos reinos vassalos foram se apartando e conquistavam a independência. Foi perdendo

o controle dos portos caravaneiros, sobretudo para Songai, que foi conquistando as principais

cidade do império: Tombuctu, Jené, Agadés, Bagana, Macina, Diala, Galam e tomou as

minas de ouro de Tagaza e as rotas do sal. Em meados do século XVI, a capital do Mali,

Niani, foi saqueada por dois irmãos da dinastia real dos Songai. Com isso, a dinastia dos

Keita teve o seu poder diminuído.8 Gaô tornou-se a capital do reino da dinastia Songai, que

adotou o título de Soni.9

Tendo perdido a primazia das rotas saelianas, o mandimansa recebeu a notícia do

que viriam a ser os substitutos dos tuaregues, os cameleiros do deserto que transportavam

mercadorias. Eram as caravelas de portugueses que aportavam na Costa Atlântica e

mandavam avisar ao Mansa do interesse de fazer amizade e mercadejar com ele. O comércio

8 A extensão do império foi assim descrita por FAGE: “por volta do século XIV, controlavam um império

bastante mais extenso do que o antigo Gana, a partir de sua capital em Niani, próximo ou junto ao do Alto

Níger. Esse império chegou a ter cerca de 2000 quilômetros desde a costa atlântica a oeste até as fronteiras da

atual Nigéria a leste e uma extensão máxima de cerca de 960 quilômetros, desde os centros caravaneiros como

Audagust, Ualata (...) e Tamaka (...) a norte, até os limites das florestas do Sudoeste da Guiné”. Op. Cit., p. 87.

Ver também Alberto da Costa e Silva. A Enxada e a Lança, Op. Cit., p. 289. 9 Em 1591, uma força expedicionária partiu do Marrocos, atravessou o Saara e foi conquistando todas as cidades

do domínio dos songai. No fim do século XVI, o Mali estava reduzido aos vales do Níger e Gâmbia. Alberto da

Costa e SILVA, A Manilha e o Libambo, Op. Cit., pp. 291-2.

Page 27: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

27

com o litoral fortaleceu o poder militar do Mali na Costa, bem como deu poder aos vassalos

mandingas como o mansa do Gabu.10

O desenvolvimento das chefaturas na Alta Guiné está associado ao aumento do

comércio e propagação do Islã. Os diulas ou uângaras eram grupos especializados de

comerciantes mandês islamizados, com poderes políticos que cresceram com o comércio de

sal, ouro e noz-de-cola. Controlavam os circuitos comerciais mais importantes e contribuíam

para o sistema de administração de tributos. A estratégia comercial e religiosa deles consistia

no estabelecimento destes grupos com suas mercadorias nas proximidades das aldeias dos

chefes “pagãos”.

Considerados como homens cheios de atributos sobrenaturais para o comércio e

possuidores de poderosos amuletos, os mercadores diulas eram acompanhados em suas

viagens por um chefe religioso “muçulmano-fetichista”11, o marabu, membro de

comunidades religiosas e militares do Norte da África, de grande ascendência espiritual e

política entre os berberes, especialmente na época da expansão islâmica em direção à África

ocidental. As caravanas que trocavam produtos nas rotas de comércio, eram guardadas pelo

marabu, considerado capaz de neutralizar qualquer adversário. Enquanto outros membros de

caravana andavam fortemente armados, o marabu levava apenas amuletos para proteger a

todos. 12

10

A interpretação de Alberto da Costa e SILVA, no capítulo “Mali e Songai” acerca da desestruturação do

império do Mali é mais consistente do que a Joseph KI-ZERBO (Op. Cit., p. 91), pois este defende a idéia de

que a perda de poder do Mali sobre o seu território deveu-se à diminuição do seu poderio militar. 11

O termo refere-se à combinação harmônica do islã com as práticas mágicas realizadas pelo marabu. A religião

tradicional dos povos dessa região era o culto aos espíritos ancestrais (ritos de possessão) e a magia para

proteção pessoal contra feitiçarias e doencas. O marabuto era (e ainda é) o sacerdote responsável pela

manipulação dos espíritos, muito respeitado pela comunidade porque tido como sábio. Ele conhece um pouco

do Alcorão, ensina o árabe, cuida das pessoas por meio de pagamento por ser adivinho, curador e mágico. Ele

utiliza versículos do Alcorão, nomes de profetas e califados poderosos para fazer aumentar o poder dos

amuletos (grigri), chamados pelos estrangeiros de “fetiches”. Marie-Cécile e Edmond ORTIGUES, Édipo

Africano. Trad. Cláudia Berliner. São Paulo: Escuta, 1989, pp. 221-2. 12

Joseph KI-ZERBO, Op. Cit., p. 223.

Page 28: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

28

Fig. 2. Marabu, o chefe religioso, usando amuletos e um cachimbo com cano longo,

acompanhado por outros que rezam ao fundo. Gravura de René Claude Geoffrey de

Villeneuve, que esteve na região da Guiné na segunda metade do séc. XVIII.

Gravura de René Claude Geoffrey de Villeneuve, que esteve na região da Guiné na

segunda metade do séc. XVIII.(Copy in Special Collections Department, University of

Virginia Library).

Assim, o mecanismo de expansão dos mandês consistia na aproximação com os

chefes locais, fixação de estabelecimento próximo às aldeias, estavam sempre acompanhados

de sacerdotes muçulmanos, forneciam produtos que não eram produzidos na região,

compravam a produção local para revendê-la em outros lugares, e disseminavam o Islã. Ki-

Zerbo avaliou que essa expansão, baseada no tripé aliança política, comércio e religião, foi

fenômeno histórico dos mais decisivos desta parte ocidental da África para entender a

dispersão dos mandês no Oeste africano e a difusão de seus costumes. 13

Embora islamizado desde o século XI, os imperadores do Mali não eram muito

ortodoxos em suas conversões. O veneziano Luis de Cadamosto14 foi um dos primeiros

navegantes a estar na costa Ocidental da África no início da expansão ultramarina portuguesa.

Depois de alcançar o rio Senegal, chegou ao “primeiro reino dos negros da Baixa Etiópia”,

referia-se às terra dos povos jalofos. Na sua visão, a adesão dos senhores ao islã era pouco

13

Idem, p. 222. 14

Cadamosto esteve na Costa da Guiné entre 1455 e 1456, e escreveu sua narrativa “Viagens à África Negra”,

dez anos depois para ter honra dos seus feitos. Sua primeira publicação na Itália ocorreu na segunda metade do

século XV, e mais três edições surgiram no século seguinte. Foi obra muito lida. É considerada a primeira fonte

moderna sobre a África e seus habitantes. As demais narrativas estavam fundamentadas por uma mentalidade

Medieval, orientadas por uma tradição bíblica ou pelos clássicos antigos como Plínio, Ptolomeu e Heródoto,

que transmitiam uma imagem da África povoada por seres mitológicos, fantasias, lendas e monstros. Ver

Marcus Silvio da CORREA, A Imagem do negro no Relato de Viagem de Cadamosto (1455-1456). Politeia,

Revista de História e Sociologia. Vitória da Conquista, Vol. 2, n.1, 2002, pp. 99-129.

Page 29: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

29

profunda e ocasionada pelos interesses políticos com os árabes, ao passo que o povo

desconhecia as doutrinas da religião:

A fé destes primeiros negros é maometana; mas nem por isso estão bem firmes na fé

(como este mouros brancos), particularmente a gente miúda. Os senhores, porém, seguem

aquela crença, porque tem continuamente consigo alguns pretos azenegues ou algum

árabe (...). E estes dão algum ensino, aos sobreditos senhores, da sobredita fé maometana,

dizendo-lhes que seria para eles enorme vergonha serem senhores e viverem sem

qualquer lei de Deus e fazerem como fazem os seus povos e gente miúda, que vivem sem

lei.15

Os árabes já conheciam a região do Norte da África, o deserto e alguns reinos

subsaarianos desde o século VII. Enquanto os portugueses apenas conseguiram essas

informações no comércio com os mouros no Mediterrâneo. Circulou bastante na Europa o

mapa do judeu Abraão Cresques, de 1375, com destaque para o rei do Mali ostentando vestes

islâmicas, que forneceu aos brancos uma visão mais material da Terra Icognita, como era

descrito o continente em outras projeções cartográficas.16

Os mandingas, herdeiros do antigo império do Mali, estavam bem estabelecidos

na costa da Alta Guiné quando os portugueses chegaram durante meados do século XV, e

todos os povos da Alta Guiné exibiam uma lâmina de civilização mandê há muito tempo.17

1.2. A presença portuguesa na Guiné e os contatos

João de Barros, geógrafo e funcionários régio é um dos principais cronistas dos

descobrimentos portugueses, ao lado de Gomes Eanes Zurara. Foi tesoureiro da Casa das

Minas, Índias e Ceuta. Em 1533, tornou-se feitor das Casas das Minas e Índias. Esteve na

Costa da Mina, mas foi a partir dos documentos administrativos que circulavam por suas

mãos e dos relatos dos marinheiros sobre a região que obteve as principais fontes para sua

obra. Ele também conhecia o relato de Cadamosto e buscou dados nos mapas de Ptolomeu e

Cresques.

João de Barros, tendo por base essas fontes, indicou em sua obra onde se

localizava o poderoso reino do Mali, com sede em Tombuctu. Ele enfatizou a idéia corrente

da fama do ouro que corria naquelas terras. Apontou os mandingas como os intermediários

15

Viagens de Luis de Cadamosto e de Pedro de Sintra, Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1988, p.

119. 16

José Rivair MACEDO, Os filhos de Cam: a África e o saber enciclopédico medieval. SIGNUM: Revista da

ABREM, Vol. 3, p. 101-132, 2001; Luís Adão da FONSECA, O Imaginário dos navegantes dos séculos 15 e

16. Estudos Avançados, USP, São Paulo, n.16, 1992. 17

Gwendolyn Midlo HALL, Africans in Colonial Louisiana, The development of Afro-Creole culture in the

Eighteenth Century. Louisiana State University Press, 1995, p. 29.

Page 30: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

30

entre os comerciantes de ouro de Tombuctu e os portugueses que faziam trato no rio

Gâmbia.18

A formação do império português teve início com uma série de conquistas pelo

ultramar na Costa da Guiné no século XV. O expansionismo portugues recebeu orientação

teve legitimação do Papa. O Padroado, que possuía privilégios e deveres, concedidos pelo

Papa à Coroa de Portugal, como patrona das missões católicas na África, Ásia e América

Portuguesa. Combinava a conquista dos poderes temporais e espirituais. A cruz e a coroa ou a

cruz e a espada são termos figurativos para se referir à luta dos missionários pelas almas dos

“gentios” das regiões distantes.

A convite de D. Henrique, o marinheiro Luis de Cadamosto viajou da costa

senegalesa até o Rio Gâmbia em 1455. Na introdução de seu relato de viagem, explica que o

Infante interessou-se em ocupar o continente africano somente após ter participado da

ufanada conquista de Ceuta contra os mouros no território marroquino em 1415. Apesar de

conhecido como O Navegador, D. Henrique só fez uma única viagem ao Marrocos. Contudo,

foi o grande incentivador das navegações que ultrapassaram o Bojador e conquistaram a

Costa Atlântica da África na primeira metade do século XV, já que tinha o monopólio das

concessões aos viajantes.

Sem explicitar o sentido comercial da empreitada, mas sem também sem omiti-lo,

Barros acreditava que o intuito de D. Henrique era combater os mouros a pedido de seu pai,

D. João I, que o incumbiu da missão de “perseguir com todo o seu poder os inimigos da fé de

Cristo.”19 Como grão-mestre da Ordem de Cristo20 e munido do objetivo de propagar a fé

cristã, podia aplicar os rendimentos dessa ordem religiosa às expedições.

Além da antiga tradição de combater os mouros que continuava viva desde o

século VII21, D. Henrique também se interessava pelo título de “Conquistador e descobridor

18

João de BARROS e Diogo de COUTO, Da Ásia [1552]. Nova edição offerecida a sua Magestade D. Maria I

Fidelíssima. Lisboa: Officina Typographica, 1778. 19

Idem, p. 84. 20

A Ordem de Cristo, uma organização de caráter religioso-militar, fundada por D. Dinis em 1319, herdeira dos

Templários. A partir D. Henrique, a chefia passou a ser conferida apenas a membro da família real. Padroado

consistiu na delegação de poderes ao Rei de Portugal, concedida pelos papas, em forma de diversas bulas

papais, uma das quais uniu perpetuamente a Coroa Portuguesa à Ordem de Cristo, em 1551. A partir de então, o

rei de Portugal passou a ser também o patrono e protetor da Igreja, com as seguintes obrigações e deveres: a)

zelar pelas leis da Igreja; b) enviar missionários evangelizadores para as terras descobertas; c) sustentar a Igreja

nestas terras. O rei tinha também direitos do Padroado, que eram: a) arrecadar dízimos (poder econômico); b)

apresentar os candidatos aos postos eclesiásticos, sobretudos bispos, o que lhe dava um poder político muito

grande, pois, nesse caso, os bispos ficavam submetidos a ele. Charles BOXER, O Império Marítimo

Português. 1415-1825. São Paulo: Cia. das Letras, 2002, ver capítulo 10. 21

No século VII os muçulmanos conquistaram a Árábia, parte da Síria, Pérsia, e todo o Egito. Avançaram pelo

Mar Mediterrâneo e alcançaram os domínios da Espanha e Portugal em 711. Nos séculos seguintes os

portugueses empreenderam batalhas para recuperação de lugares sagrados para os cristãos. Porém, foi lento o

Page 31: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

31

da gente idolatra, empreza, que té o seu tempo nenhum Principe tentou.”22 Para conseguir tal

feito, fez ou mandou fazer diligências sobre a terra e a gente de Ceuta para saber das coisas

de dentro do “sertão da terra, principalmente das partes remotas aos Reynos de Fez, e

Marrocos.” Por meio destas, entendeu que havia muitos mouros no deserto do Saara e por

toda a região da Guiné.23

A tomada de Ceuta e sua conservação, a posição estratégica então alcançada, e a

boa situação econômica de Portugal possibilitaram aos portugueses obter informações sobre

os negros das terras do Alto rio Níger e do rio Senegal. O objetivo era desviar o comércio do

ouro das caravanas de camelos do Sudão Ocidental e os intermediários muçulmanos do norte

africano da Berberia, os berberes. Fatores religiosos, políticos, econômicos e estratégicos

fizeram com que D. Henrique atribuísse a Deus a ultrapassagem ao sul do Bojador, realizada

pelos capitães Nuno Gonçalves e Tristão Vaz:

Nosso Senhor como por sua misericordia queria abrir as portas de tanta infidelidade, e

idolatria pera salvação de tantas mil almas, que o Demonio no centro daquellas regiões, e

provincias bárbaras tinha cativas, sem noticia dos meritos da nossa Redempção.24

Foi com a idéia da expansão reconquistadora antimaometana que os portugueses

se lançaram na ocupação da Costa do continente africano. As populações nativas não-cristãs

foram concebidas como infiéis inimigos, contra os quais poderiam fazer guerra justa em prol

da fé cristã. Portugal não fez a divisão entre o inimigo sarraceno (muçulmano da Ásia, África

ou Espanha) e o infiel apenas contaminado pelo Islã, como era o caso dos azenegues, e dos

guinéus, gentios da Costa, pouco conhecedores da religião maometana.

No relato de sua viagem à Costa da Guiné, Luis de Cadamosto, colaborador da

Escola de Sagres, ressalta que D. Henrique ordenara que se mudasse a estratégia da política

externa portuguesa. Era preciso evitar os conflitos bélicos e estabelecer alianças com as

populações a fim de fazer comércio e de mostrar-lhes o caminho da fé cristã:

processo de expulsão dos árabes da Península Ibérica, durante o qual foram travadas as lutas entre mouros e

cristãos. A reconquista de Portugal ocorreu somente em 1248, em 1492 foi a de Espanha. Todo o século XV foi

uma seqüência de tensões bélicas entre o Norte e o Sul do Mediterrâneo. Portugal após sua reconquista apoiou

Castela e lançou-se às conquistas do outro lado do Estreito de Gibraltar, que eram consideradas também terras

cristãs tomadas pelos árabes. Assim foram tomadas Ceuta (1415), Alcacer Seguer (1458), Anfa (1468), Arzila

(1471), Larache e Tânger (1471). Isácio Pérez FERNÁNDEZ. In: LAS CASAS, Frei Bartolomé de. Brevíssima

Relação da destruição de África: Prelúdio da destruição das Índias, Primeira Defesa dos guanches e dos

negros contra a sua escravização. Estudo preliminar, edição e notas de Tradução de Júlio Henriques. Lisboa:

Edições Antígona, 1996. 22

João de BARROS, Op. Cit., p. 18. 23

Idem, p. 19. 24

Idem, p. 24.

Page 32: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

32

(...) há um certo tempo para cá, tudo se reduziu à paz e a trato de mercadorias; e não

consente o dito Senhor Infante que seja feito mais dano a nenhum, porque o dito Senhor

presume que tratando estes como cristãos e convivendo com eles por serem homens

simples que nunca trataram com outros cristãos nem o[s] viram ainda (...) e sejam, só de

nome Maometanos, facilmente se poderaõ reduzir a fee católica.25

A viagem que fez o veneziano foi acompanhada de turgimãos trazidos de

Portugal. Estes eram “escravos negros vendidos por aquele Senhor de Senega[l] aos

primeiros cristãos que vieram descobrir o país dos Negros; os quais escravos se fizeram

cristãos em Portugal e aprenderam bem a língua(...)”. O uso de tradutores negros da terra era

a nova estratégia para estabelecer um contato amistoso. Próximo ao rio Gâmbia, Cadamosto

acenou com tecidos para uns negros que viu na praia. Um dos negros foi até o navio e

conversou com um dos turgimãos. Fizeram festas ao negro, que ficou admirado da

embarcação dos brancos e ganhou muitas ninharias. O marinheiro mandou um presente ao

Bati Mausa, um dos senhores daquela região, submisso ao Imperador do Mali. O presente era

uma marlota de seda “muito bonita, feita em terra de Mouros”. Seguia também uma

mensagem: “Mandámos-lhe dizer como tínhamos ali vindo por ordem de nosso senhor rei de

Portugal, cristão, para haver com ele boa amizade, e para saber se ele teria necessidade das

coisas das nossas terras, pois todos os anos o nosso senhor rei lhas mandaria”.26

Em pouco tempo voltou o turgimão acompanhado do dito negro. Então

Cadamosto foi conhecer o Bati Mausa. No reino deste soberano fez amizade e negócios.

Comercializou “muitas coisas em troca de alguns negros e de certa quantidade de ouro.”27

Sempre que aportava, o referido europeu observava o tipo de comércio possível naquele

local, quem era o soberano das terras, a amistosidade dos povos, como se vestiam, moravam,

lutavam, guerreavam, se alimentavam e adoravam seus deuses.

Já que estavam numa região desconhecida, os portugueses recorreram não só aos

turgimãos para facilitar o contacto na Costa da Guiné, mas também apelaram aos mouros.

Eles acompanhavam as embarcações agindo como intérpretes ou apontando caminhos.28 No

século XV, os portugueses apenas tinham contato com a África através dos azenegues e

berberes, pois desde muito tempo, faziam comércio com eles em Ceuta, e assim, obtinham

25

Viagens de Luis de Cadamosto e de Pedro de Sintra, Op. Cit., p. 105.

Capote curto de capuz usado pelos árabes. 26

Idem, p. 148-9. 27

Idem, p. 162. 28

Sobre o papel dos intérpretes na formação do Império luso ver: Diogo Ramada CURTO. A Língua e o Império.

In: Francisco BETHENCOURT & Kirti CHAUDHURI. História da Expansão Portuguesa, A Formação do

Império. Lisboa: Temas e Debates, Vol 1. 1998-2000.

Page 33: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

33

informações dos reinos do interior do continente, dos povos da ilhas recém-colonizadas

Madeira (1419), Açores (1439) e de alguns “guinéus” da região do rio Senegal.

As notícias do ouro nas terras do interior em direção ao reino do Mali, levaram o

rei D. João a enviar de Portugal missões diplomáticas ao mandimansa com presentes e

recados. O objetivo era que as caravanas transaarianas de ouro fossem direcionadas para os

comerciantes portugueses no litoral.29 Se obtiveram resposta, os resultados não foram os

melhores, pois nunca conseguiram alcançar monopólio nas trocas de produtos.

As bulas papais expedidas à Coroa portuguesa legitimavam o pensamento e

interesse dos portugueses. A Bula Romanus Pontifex de 08 de janeiro de 1455 de Nicolau V,

denominada carta do imperalismo português, concedeu a D. Afonso e seus sucessores a

conquista, ocupação e apropriação de todas as terras, portos, ilhas e mares da África, desde os

cabos de Não e do Bojador até a Guiné, incluindo toda a costa meridional até o seu extremo e

ainda permitia combater os

homens sarracenos e agarenos e outros infiéis que, por terem o espirito nublado,

desprezam o caminho recto da verdadeira luz e da verdadeira salvação, e os inimigos

jurados da Cruz, que odeiam Deus e são acerrimos perseguidores da religião cristã e

profanam não só os seus bens espirituais mas também os bens temporais (...), bem como

os insultos, prisões, morticínios.30

Estudiosos coevos observam que a Bula de 1455 era uma reiteração das bulas de

1418 e 1436 expedidas pelo papa Eugénio IV que autorizava guerras de cruzadas e

escravização contra os negros muçulmanos no Marrocos. Os assaltos e escravizações eram

legalizados pela Bula de indulgências e privilégio de cruzada (Bula Rex Regum) do papa

Eugénio IV de 1436, que foi reiterada em 1455 contra os sarracenos e outros infiéis. Esta

Bula referia-se às ações dos portugueses no Marrocos, porém, foi indevidamente usada ao sul

do Bojador, contra outros africanos. Atribui-se essa atitude do pontífice às leituras dos relatos

de marinheiros que exageravam nas informações sobre estes povos, pintando-lhes como se

fossem mouros.31

29

João de BARROS. Da Ásia, Primeira Década. Livro III, cap. 12, pp. 257-8. 30

Frei Bartolomé de LAS CASAS, Brevíssima Relação da destruição de África: Prelúdio da destruição das

Índias, Primeira Defesa dos guanches e dos negros contra a sua escravização. Estudo preliminar, edição e notas

de Isácio Pérez Fernández. Tradução de Júlio Henriques. Lisboa: Edições Antígona; 1996, p. 122. (Grifos do

autor). 31

Isácio P. Fernández em seu estudo preliminar à obra de LAS CASAS mostra quatro etapas das formas de

intervenção das expedições portuguesas ao sul do Bojador no século XV. Apesar das bulas papais enfatizarem a

concessão das conquistas em função de combate aos mouros e conversão dos gentios não houve atividade

missionária até o século XVI. Pp. 120-3.

Page 34: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

34

Mas quem seriam os “outros infiéis” que poderiam ser conquistados? Boxer

sugere que estavam se referindo aos pagãos e outros inimigos da cristandade, ou seja, a

população do litoral saariano e aos negros da Senegâmbia com quem os portugueses já

haviam entrado em contato.32

A Bula de março de 1456, Inter Caetera, assinada pelo Papa Calisto III

confirmava a Romanus Pontifex. Concedia à Ordem de Cristo jurisdição espiritual sobre

todas as terras conquistadas pelos portugueses no presente e no futuro. Atribuía ao grão-

mestre da Ordem, D. Henrique, plenos poderes para: nomear os titulares de todos os

benefícios, tanto clero regular como o secular, impor censura, exercer outras penas

eclesiásticas e desempenhar os mesmos poderes do bispo na sua jurisdição.

Embora estivessem presentes nas bulas papais o propósito da conversão dos

pagãos, até a morte de D. Henrique, apenas um evangelizador, o Abade Souto da Casa, foi

enviado à Gâmbia em 1458 para converter o chefe de Niumi.33 O efeito cumulativo de tais

bulas foi dar à Portugal “sanção religiosa a toda uma atitude igualmente dominadora com

relação a todas as raças que estivessem fora do seio da cristandade.”34 O Padroado português

tinha plenos poderes no ultramar que se estendia da América Portuguesa ao Japão.

A expansão ultramarina combinava a conquista de novas terras com a busca de

novos mercados e conversão dos povos. As bulas papais correspondiam aos interesses dos

dirigentes portugueses de: expugnar o Islã numa cruzada contra os muçulmanos da Berberia,

conhecer e ganhar o controle das fontes de ouro da Guiné transportado pelo Saara,

estabelecer o contato com Preste João, o lendário sacerdote-rei que habitava algum lugar do

Leste, na Ásia ou na África, e buscar especiarias na Índia.

A despeito de não haver igreja, no alvorecer do século XVI, já existiam três fortes

na costa africana: Arguim, São Jorge da Mina e Axim35. Na ocasião do envio dos materiais

para construção do Castelo de São Jorge da Mina, por volta de 1480, o rei dizia que seria “a

primeira pedra da Igreja Oriental, que elle em louvor, e gloria de Deos desejava edificar por

meio desta posse real, que (...) tinha per doações dos Summos Pontifices (...)”.36

32

Charles BOXER, O Império Marítimo Português. 1415-1825. São Paulo: Cia. das Letras, 2002, p. 37. 33

Ver estudo preliminar, edição e notas de Isácio Pérez Fernández de Frei Bartolomé de LAS CASAS, Op. Cit.,

pp. 120-44. 34

Charles BOXER, Op. Cit. Ver capítulo “O ouro da Guiné e Preste João.” 35

O forte de Arguim foi construído em 1445 e teve importância fundamental no estabelecimento dos portugueses

na Costa. Cadamosto (Op. Cit., p. 103) diz que era exportado por este porto entre 800 a mil escravos por ano.

O comércio era feito com os berberes. Estes vendiam escravos em troca de cavalos, trigo, panos, tecidos,

tapetes, saiotes e outras coisas de luxo. Mas foi suplantado economicamente pelo Castelo de São Jorge da

Mina, erguido em 1482, onde era comerciado ouro. O forte de Axim foi edificado em 1502. 36

João de BARROS. Op. Cit., p. 156.

Page 35: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

35

Para a construção da fortaleza de São Jorge da Mina, D. João II, rei de Portugal

enviou Diogo de Azambuja como capitão de uma armada de 10 caravelas e duas urcas,

transportando matérias e homens para trabalhar na obra. Chegaram em 1481 à Costa da Mina.

A expedição encontrara lá outro navio luso que estava comprando ouro. Azambuja fé

amizade e pediu para apresentá-lo ao soberano local. No dia seguinte, Azambuja foi

apresentado ao caramansa ou casamança, o soberano local, e obteve ordens para aportar com

seus homens. Desceram todos enfeitados e armados. Em seguida, mandou celebrar embaixo

de uma árvore a primeira missa realizada na África.37

Diogo de Azambuja observou com acuidade como o rei se apresentou. O

Casamansa apareceu sentado em uma cadeira alta, vestido de “pelote de brocado”. Suas

pernas e braços cobertos de braceletes de ouro e no pescoço um colar de ouro também com

pedrarias e umas “campainhas miúdas, e pela barba retorcidas humas vergas d’ouro.”38 Em

retribuição pela missa, houve uma apresentação solene dos nobres e de soldados locais para

os portugueses.

O comandante disse ao Rei de Casamansa que o rei de Portugal era muito grato

por tê-los recebido com seus navios e permitido construir a fortaleza em suas terras. Revelou

que ElRey tencionava retribuir o benefício com amor e pagar com a salvação de sua alma, e

ensiná-lo quem era o criador do mundo e de todas as coisas que nele há.39 D. João ainda

prometia, caso ele aceitasse o batismo, tornar-se seu “amigo, e irmão nesta Fé de Christo, que

professava, e de o ajudar em todas as cousas, que delle tivesse necessidade”.40 O Casamansa

respondeu que consentia com a construção da fortaleza, mas eximiu-se de responder acerca

da proposta do seu batismo.41

A fortaleza foi um dos primeiros esforços de ocupação do território da Guiné, para

exploração do comércio e, consequentemente, catequização dos locais. Mas nem sempre os

projetos ocorriam conforme pensados. Pois a noção de Império formulada estava relacionada

a missão católica, administração dos povos e comércio. No entanto, os povos responderam, a

partir de seus hábitos, a essa tentativa de impor normas em seu território e fizeram com que

os estrangeiros se modificassem.

Durante a construção do Castelo da Mina, os portugueses tiveram que aprender

como funcionavam as regras desse espaço onde pretendiam atuar. Um exemplo foi o

37

João de BARROS, Op. Cit. 38

Idem, p. 157-8. 39

Idem, pp. 156-67. 40

Idem, p. 168. 41

Idem, pp. 163-5.

Page 36: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

36

momento em que estavam os oficiais explodindo os penedos para a construção da Fortaleza.

Os casangas, súditos do reino de Casamansa, ameaçaram atacá-los, pois nas rochas

depositavam oferendas e faziam sacrifícios aos seus “ídolos” chinas, e eles ainda não haviam

recebido as suas súplicas. Para evitar uma guerra entre os locais e os seus empregados,

Azambuja ofereceu “lambeis [panos], manilhas, bacias e outras cousas” aos negros. Eram

presentes que o rei de Portugal estava enviando para agradar ao soberano local e aos seus

cavalheiros, conforme o costume.

A construção do forte e da igreja durou quase três anos. Em março de 1486 foi

concluída e recebeu o nome de Castelo de São Jorge da Mina porque o rei D. João II era

fervoroso devoto do mesmo santo. Tendo cumprido sua missão, Azambuja retornou ao reino

com “boa cópia d‟ouro”. Deixou sessenta homens cuidando da fortaleza e um capelão para

zelar da Igreja e dos fiéis. Uma “Missa quotidiana” devia ser celebrada “em memória do

Infante D. Henrique, por ser auctor deste descubrimento”. 42

No mesmo decênio de 1480, ao Norte do reino do Casamansa, a história de um rei

jalofo, o Bemoim ou Bemoij, constituiu-se num dos episódios mais importantes para se pensar

os interesses comerciais, políticos e religiosos, tanto dos jalofos quanto dos portugueses.

Os portugueses faziam resgate no reino de Bór Byrão, localizado a 60 léguas do

Golfo de Arguim, mas que era governado por seu irmão por parte de mãe, Bemoim. Pelo fato

de Byrão ter deixado o irmão mais novo governar, foi assassinado pelo seu irmão mais velho,

Cibitah, o qual passou a fazer guerra a Bemoim. Este, em troca da ajuda militar do rei de

Portugal, prometeu batizar-se. Sendo assim, D. João II enviou-lhe “cinco cavalos ajaizados”,

o duque de Beja mandou-lhe mais um cavalo e arreios. Gonçalo Coelho foi como capitão e

levou alguns clérigos com ele.

Passado quase um ano que a ajuda foi enviada, Bemoim nada mais falou sobre sua

conversão, alegando o fato de o povo estar em guerra. Gonçalo Coelho, por não ver lucros

naquela empresa enviou cartas ao rei contando da dificuldade de comércio naquele lugar.

Logo recebeu ordens de regressar ao Reino. Ao comunicar a decisão a Bemoim, este resolveu

enviar seu sobrinho como mensageiro ao rei de Portugal. Para retribuir os presentes, mandou

cem peças de escravos e “huma grossa manilha de ouro, como carta de crença, segundo seu

costume”. Após a partida de Coelho, Bemoim ficou desamparado e fugiu para a fortaleza de

Arguim, de onde embarcou no navio dos portugueses que faziam comércio naquela praça. Foi

para o Reino com alguns homens que o acompanhavam.43

42

Idem, p. 169. 43

Idem, pp. 200-11.

Page 37: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

37

Em Portugal, foi recebido com honras de príncipe. Por meio de intérpretes, D.

João conversou com Bemoim sobre os reinos africanos. Interessou-se muito quando este

contou sobre o rei dos povos “Moses”, cujo “estado começava em Tungubutu [sic] e se

estendia contra o Oriente, o qual não era Mouro, nem Gentio, e que em muitas cousas se

conformaram em costumes com o povo Christao (...)”.44 O rei de Portugal conjeturara ser

aquele o Reino de Preste João que tanto desejava descobrir.

Bemoim foi entregue pelo rei aos teólogos para que praticassem com ele “cousas

da Fé pera estar mais disposto pera receber o Baptismo”. Sendo assim, foi batizado em

novembro de 1489 pelo bispo de Tânger e Ceuta. D. João II foi o seu padrinho e a rainha, sua

madrinha. Recebeu o nome cristão de D. João Bemoim. Também receberam o sacramento

vinte e quatro fidalgos seus.45 Após batismos e festas que sucederam, o rei de Portugal cuidou

de repatriar o soberano negro. Juntamente com ele e seus fidalgos foram enviadas caravelas

sob o comando de Pero Vaz de Cunha, soldados, pedreiros para construção da fortaleza, e

“pera conversão dos barbaros alguns religiosos, o maioral dos quaes era Mestre Álvaro”,

frade da Ordem de São Domingos e seu confessor.46

Com todo esse aparato, D. João objetivava construir fortaleza no rio Senegal, para

que, por intermédio de D. João Bemoim, os demais jalofos se convertessem à fé. Pretendiam

entrar “no interior daquella grão terra té chegar ao Preste, de quem elle tanto fundamento

fazia pera as cousas da Índia. Tambem (...) pe[lo] Castello de Arguim, resgate de Cantor,

Serra Leoa, e fortaleza da Mina (...)”.47

Pensava-se em repetir o sucesso que ouve na recente conversão do rei do Congo

em 1483, que fazia apenas sete anos. Mas as esperanças foram combalidas alguns dias depois

da chegada da frota: o comandante Pero Vaz de Cunha matou D. João Bemoim a punhaladas

dentro do navio. Alegou que o rei jalofo lhe preparava uma traição. Porém, João de Barros

sugere que o português cometeu o assassinato por outro tipo de ameaça. Ao ver muitos dos

seus homens adoecerem e morrerem na terra, “por ser lugar doentio”, ele temeu ser

encarregado de comandar o forte e ter o mesmo fim. Após o acontecimento fatal, Pero Vaz de

Cunha retornou ao Reino. O rei português ficou descontente e abandonou a obra.

Esse episódio leva a pensar que o encontro entre os europeus e os povos africanos

não pode ser visto na clássica visão de dominação e resistência. De um lado, os brancos

impondo seu poder e regras aos negros; e do outro lado, estes obedecendo e sendo aculturado

44

Idem, p. 210. 45

Idem, p. 212. 46

Idem, p. 222. 47

Idem.

Page 38: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

38

dentro do sistema cultural europeu. A justificativa ideológica da expansão do Império

português, lastrada no discurso missionário de conversão ao cristianismo respondia a claros

interesses econômicos e políticos. Os africanos, por sua vez, também tinham interesses na

presença portuguesa e impuseram suas regras. A religião foi a estratégia de mediação e

negociação.

Assim se finda o século XV na Guiné. Com exceção do abade enviado para

converter o chefe de Niumi em 1460 e do capelão deixado em São Jorge da Mina, não

existiram outras presenças de missionários na Costa da Guiné. Do ponto de vista cristão,

continuava valendo a afirmação de Cadamosto: “pela informação que houvemos no pouco

tempo que [lá] estivemos, falaremos em primeiro lugar da sua fé. É geralmente idolatria, por

diversos modos, dando grande fé aos encantamentos e outras coisas diabólicas que sabem

fazer”.48

As crenças africanas não eram compreendidas pelos portugueses como religião.

Os africanos desconheciam o cristianismo. Mas as trocas de mercadorias e principalmente o

tráfico de escravos eram interesses em comum. “(...) É de saber que estes nunca tiveram

notícia nem conhecimento de outros cristãos, a não ser Portugueses, os quais lhes fizeram

guerra durante 13 a 14 anos, tomando a muito deles, como disse atrás, em muitos assaltos e

vendendo-os como escravos.”49

1.3 Os costumes dos mandingas

As primeiras descrições da África, baseadas em visões fantasiosas, diziam que era

habitada por mulheres com barba, homens monstruosos que amamentavam seus filhos,

serpentes, unicórnios e outros seres estranhos50. O padre Alonso de Sandoval, devido ao seu

48

Viagens de Luis de Cadamosto e de Pedro de Sintra, Op. Cit., p. 165. 49

Idem, p. 106. 50

Alonso SANDOVAL, Un Tratado sobre la Esclavitud. Madrid: Alianza Editorial, 1987. Sandoval era

jesuíta. Escreveu a sua obra no início do século XVII na América Espanhola, em Cartagena de Las Índias. Ele

recorreu à tese de Aristóteles para explicar porque no continente africano o povo tinha pele negra e era habitada

por monstros: “Dizen pues estos, que la causa de ser los Etíopes negros proviene del calor que está em la

superficie del cuerpo que abraza y quema la cute (...). Por lo cual (...) estan llenas de serpientes, Basiliscos,

Dragones, Unicórnios, y otras fieras bestias (...) y alli ay muchos hombres monstruosos, que maldizem al Sol

por lo mucho que siempre los abrasa.” Baseado no Livro II de Aristóteles, sugeriu que na África os monstros

eram gerados porque a natureza não alcançava o seu devido fim, que é cada um gerar o seu semelhante. O

monstro, portanto, era um pecado da natureza, que não adquiriu a perfeição que haveria de ter a pessoa. Pp. 73-

80. Na descrição que faz dos „Etiopes de Guinea (...) de la tierra, ryos e puertos”, o jesuíta conta que os rios

Gâmbia e o Senegal geravam vários peixes diferentes, e animais que se criam na água, como crocodilos e

cavalos marinhos, serpentes com asas, e fortes espécies de bestas feras”. (p. 105)

Page 39: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

39

interesse na forma como os escravos eram resgatados, trocava correspondências com os

padres Luis Brandão, reitor do Colégio inaciano em Angola e Baltazar Barreira, que estava na

Missão da Costa da Guiné. Por meio destas epístolas obtinha informação sobre a religião dos

africanos.

Quando escreveu sua obra, a África já não mais pertencia mais ao reino do

Maravilhoso do homem Medieval, pois já havia notícias da realidade.51 No entanto, recorreu à

imagem de uma terra habitada por monstros, baseada no determinismo geográfico de

Aristóteles. As narrativas acerca da estranheza da fauna e rigores do clima tinham o propósito

de ampliar o caráter desantropomórfico e desnaturante52 das perversões atribuídas à África.

Essas características faziam o continente parecer o território de todas as bestialidades e da

ação do demônio, o que justificava a cristianização e a compra dos cativos para “ajudar a

salvar a alma dos negros”.

Os relatos de viagem tentavam explicar o “estado da natureza” dos selvagens.

Cristina Pompa indica que, se tratava “de fato, do processo de releitura da identidade

ocidental frente às novas humanidades que a descoberta apresentava, através da construção

da alteridade, onde o código religioso era privilegiado”.53

A partir do século XV, apesar de alguns relatos do encontro entre europeus e

africanos revelarem que não havia homens monstruosos e seres fantasiosos, outros

permaneceram indicando em seus registros o encontro com seres fantásticos. Entre os negros

da Guiné, os viajantes encontraram vários sinais de “idolatria”: tinham crenças, sacerdotes,

ídolos, templos e sacrifícios, que atestavam a existência de uma religião. Cadamosto dizia

que:

(...) pela informação que houvemos no pouco tempo que [lá] estivemos, falaremos em

primeiro lugar da sua fé. É geralmente idolatria, por diversos modos, dando grande fé aos

encantamentos e outras coisas diabólicas que sabem fazer.54

Para ter uma visão dos costumes e da religião dos povos da Costa da Guiné no

século XVI, a fonte mais importante é o relato de André Álvares d‟Almada, filho mestiço de

português com parda, nascido em Cabo Verde, que escreveu o Tratado dos Rios de Guiné do

51

José Rivair MACEDO, Os filhos de Cam: a África e o saber enciclopédico medieval. Op. Cit.; Adão da

FONSECA. O Imaginário dos navegantes dos séculos 15 e 16. Op. Cit. 52

Luis Felipe ALENCASTRO. O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo:

Companhia das Letras, 2000, p. 53. 53

Cristina POMPA, Religião como Tradução: missionários, Tupi e Tapuia no Brasil Colonial. Bauru: SP:

EDUSC, 2003, p. 43. 54

Viagens de Luis de Cadamosto e de Pedro de Sintra, Op. Cit., p. 165.

Page 40: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

40

Cabo Verde dês do Rio Sanagá até os Baixos de Santa Ana de todas as Nações de negros que

há na dita costa e de seus costumes, armas, trajos, juramentos, guerras. 55

O autor assume o discurso ibérico do movimento das Cruzadas – a Costa da Guiné

era habitada por mouros que deveriam ser perseguidos e combatidos. No prólogo de sua obra,

afirma que não era possível saber das coisas notáveis que se passaram entre os negros da

Costa da Guiné porque não sabia ler os escritos que havia, supostamente por serem

arabescos: “(...) neste gentio há uns negros tidos por religiosos, chamados bixirins, os quais

escrevem em papel e em livros encadernados de quatro e meia folhas (...) mais são certos

sinais e particulares conceitos que letras inteligíveis”.

O luso-africano residia em Cabo Verde e era um mercador de escravos e de outros

produtos. Conhecia bem as diferenças, semelhanças e particularidades dos povos. Os

capítulos de sua obra foram organizados pelas etnias descritas pelo autor: jalofos, fulos,

barbacins, borçalos, mandingas, arriatas, falupos, casangas, buramos, banhuns, bijagós,

balantas, sapes, beafares, naluns, bagas, cocolins, bagas, sumbas e manes.

Almada observou que os povos que habitavam entre os rios Senegal e Gâmbia

tinham traços da fé maometana, pois os reis não comiam carne de porco, os meninos

passavam por ritos de circuncisão, os cortesãos usavam roupas compridas de algodão e

“carapuça” de algodão na cabeça. No Reino dos jalofos, povo que habitava o lado Sul do Rio

Senegal, o rei Budomel era um bixirim: não bebia vinho nem comia carne suína, e ainda era

amigo de outros bixirins e mouros. Este povo falava a língua dos fulos e a dos árabes, com os

quais mantinham relações comerciais.56

Além dos islamizados, dizia que a maioria dos povos era idólatra. De Casamansa

até Serra Leoa, havia crença nos chinas:

os seus ídolos são uns paus fincados no chão, debaixo de alguma arvore grande e

sombria, com as cabeças tortas ao modo de cajados, juntos estes em feixe, amarrados,

postos no chão, com as cabeças todas para cima. E o seu ídolo, a que eles chamam

Chinas, e reverenciam, oferecendo-lhes vinhos da sua sura, que é de palma, e o de milho,

que é como cerveja, mas não é de tanta dura. E embarram esse pau com papas de farinha

de arroz e de milho, e com o sangue das vacas e cabras e de outros animais; quando

fazem as suas searas põem ao longo delas alguns paus destes fincados no chão, para as

guardar, parecendo a estes pobres que tem o pau o poder para isso.57

55

“Tratado dos Rios de Guiné do Cabo Verde dês do Rio Sanagá até os Baixos de Santa Ana de todas as Nações

de negros que há na dita costa e de seus costumes, armas, trajos, juramentos, guerras”. Feito pelo capitão André

Álvares D‟ALMADA, natural da Ilha de Santiago de Cabo Verde prático e versados nas ditas partes”. In:

Monumenta Missionária Africana. África Ocidental (1570-1600). Coligida e anotada pelo padre Antonio

Brasio. Vol. III. Lisboa: Agencia Geral do Ultramar, 1965. 56

Idem, p. 230. 57

André Álvares d‟ ALMADA, Op. Cit., pp. 296-7.

Page 41: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

41

Quando Cadamosto, mais de um século antes, se encontrou com um outro

soberano dos jalofos, cujo título era o mesmo, soube pelo sobrinho desse que no reino havia

muitos encantadores de cobras e de cavalos. Disse ser o seu tio o melhor encantador que

existia no reino: o rei Budomel fazia um círculo no chão, depois encantava todas as cobras

que entravam na circunferência riscada. Pegava a mais venenosa para extrair o veneno e fazia

uma mistura com uma semente e envenenava as armas para guerrear.58 Mas o que chamou

muito a atenção do estrangeiro foi o costume dos guerreiros em colocar amuletos ao pescoço

dos cavalos para que fossem protegidos nas guerras. Disseram-lhe que:

(...) fazem untar o cavalo com unto fino, e têm-no depois 15 ou 20 dias, pois não querem

que ninguém o veja, dependuram-lhe ao pescoço umas resteas de figurinhas mouriscas

que se parecem com breves, dobradas em pouco espaço, em dobragem quadrada, e

cobertas de couro vermelho; e têm fé que por trazerem aquele amuleto em cima, isto é, ao

pescoço, vão mais seguros os cavalos combater.59

A distância entre os relatos de Cadamosto e Almada, observando os costumes dos

povos da Costa da Guiné, é de, aproximadamente, um século e meio. Ambos notaram traços

do Islã nos usos e costumes tradicionais dos negros. À época de Almada, a expansão da fé

dos muçulmanos já havia se estendido no sentido sul e se tornado mais visível dentre os

povos “pagãos”, devido à influencia dos povos mandingas. No século XVI, a expansão

militar dos mandingas em direção ao litoral estabeleceu elites dirigentes, cujo referencial

eram as estruturas sociais do Mali, como a patrilinearidade que definia a forma de escolha das

chefaturas locais. Pouco a pouco a população guineense foi se “amandingando” e sendo

islamizada.

O imaginário acerca do Império do Mali e do seu poderio era uma referência

constante da terra dos mandingas. Almada queixara-se de que o grande “Mandimança”, o

“imperador negro, a quem todos os negros desta Guine dão obediência, não [foi] visto até

hoje de nenhum dos nossos”. Apesar de jamais ter visto o Imperador, o luso-africano

conhecia com muita propriedade os mandingas, pois fazia trato com eles nas margens do rio

Gâmbia.60 Descreveu-os como homens belicosos, religiosos e feiticeiros. Respeitados pelos

portugueses, por essa fama que corria, e porque eram os poderosos comerciantes que

controlavam o ouro. André Donelha (1625), nascido em Cabo Verde, comerciante de

escravos na região, também se encantou com os relatos sobre o reino do Mali:

58

Viagens de Luis de Cadamosto e de Pedro de Sintra, Op. Cit., pp. 136-7 59

Idem, p. 142. 60

André Álvares d‟ALMADA, Op. Cit., pp. 271 e 278.

Page 42: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

42

A gente desta terra dizem é branca, baça e preta. Contam tantas grandezas e riquezas

deste grande Mandimansa, que parece cousa impossível. O que eu sei é que antre as

naçõis de todo o Guiné que têm desquerição e rezão, em nomeando Mandimansa tiram os

barretes. (...) A sua principal cidade se chama Malem [sic]. Tenho falado com muitos

Fulos, Jalofos, Mandingas em Guiné, e com muitos que se fizerão cristãos e (...) sem

desvairar, dizem deste Mandimansa as grandezas que tenho dito e muito mais, e que nas

suas terras há ouro como nesta ilha há pedras e a mesma terra é ouro, mas que donde já

ouro não nace ervas nem dá mantimentos; mas como o reino é grandíssimo, tudo sobeija.

Falei com Jalofos me disseram que o Xarif pagava certas páreas em cada certos anos a

este Mandimansa.61

O rio Gâmbia, aparece em todos os relatos portugueses, pois era o local

preferencialmente usado pelos mandingas para fazer resgates de vários produtos com os

estrangeiros. Eles vendiam:

escravos, roupa de algodão branca e preta, (...) mel e cera; (...) muito marfim, mais que

em nenhum outro Rio de Guiné, porque acontece muitas vezes, indo as embarcações por

ele, verem bandos de elefantes em terra, como de vacas (...).62

As mercadorias estrangeiras que mais lhes interessavam para fazer trato eram

artigos de luxo, cujo uso daria distinção social:

(...) cavalos, roupa branca da Índia, contaria da Índia, de Veneza, margarideta grossa e

delgada, fio vermelho, pano vermelho, vinta-quatreno, grão, búzio, papel, cravo, manilhas

de cobre, bacias de barbear, caldeirões de cobre de um arretel até dois, cobre velho, e

entre todas a mais estimada é a cola, fruto que se dá na Serra Leoa e seus limites; e vale

tanto neste Rio, que dão tudo a troco dela, assim mantimentos como roupa, escravos, e

ouro.63

O cronista anotava com precisão quais as possibilidades de trato com os

mandingas: quais produtos estrangeiros interessavam mais aos soberanos locais, bem como as

mercadorias e alimentos que estes reinos produziam. O objetivo era identificar os mercados

potenciais para a Coroa e mostrar as possibilidades desta incrustar seus enclaves.

Cabe destacar o interesse dos portugueses pela noz-de-cola. Esse produto era

apreciadíssimo, pois refresca a boca ao ser mastigado e provoca um efeito estimulante. “Era

um produto de luxo, cujas propriedades medicinais o mundo do Islão apreciava. Sendo um

estimulante não condenado pelo maometanismo, sua demanda tendia a aumentar”.64 Ao notar

as rendas que esse produto auferia nas redes locais de comércio, controladas pelos

61

André DONELHA, Descrição da Serra Leoa e dos Rios de Guiné do Cabo Verde (1625). Edição do texto

português, introdução, notas e apendices por Avelino Teixeira da Mota. Notas por P. E. H. Hair. Tradução

francesa por Leon Bourdon. Lisboa: Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1977, p. 122. 62

Idem, p. 272. 63

Idem, p. 276. 64

Alberto da Costa e SILVA, A enxada e a lança. Op. Cit., p. 299.

Page 43: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

43

mandingas, que eram bem anterior à presença européia na região, os portugueses entenderam

a necessidade de se adequar as demandas locais e passam a agir nos circuitos locais. Era uma

determinação vinda da parte africana na relação comercial.

Almada indica que havia diferença no trato dos mandingas da parte do Sul e os do

Norte do rio Gâmbia com os portugueses: os do Sul eram traiçoeiros e “prezam-se de

matarem os brancos, e tomarem navios como já fizeram a alguns”. Na verdade, a crítica era

porque os portugueses não podiam ir a essa banda austral. Ao longo desta, os mandingas

edificaram pequenas fortalezas chamadas de “cão-sans”, feitas de madeira com guaritas,

baluartes e praças de armas para luta.65 Enquanto na parte Norte podiam fazer trato de ouro

com “mercadores Mandingas, que também são religiosos”, portanto muçulmanos, e com estes

mercadejavam, ao invés de entrar em conflito. Esses mercadores comercializavam ouro em

pó e possuíam balanças “marchetadas em prata, e cordões de retrós; (...) os pesos são de

latão, da feição de dados; e o marco é como uma maçã de espada; trazem este ouro em canos

de penas grossas de aves e em ossos de gatos”, para não serem roubados nos diversos reinos

pelos quais passavam. Andavam em cáfilas. Seus capitães trocavam o ouro que traziam por

manilhas de cobre, que eram levadas para o centro comercial de Tombuctu, onde havia

grande procura e eram usadas pelas pessoas para ornamento das suas pernas e braços, bem

como para arreios de cavalos.66 Os portugueses tentavam controlar a venda das manilhas pois

temiam que pudessem ser utilizadas para fabrico de armas.

As vestes dos mandingas foram descritas de modo a evidenciar o vestuário como

um distintivo dos adeptos do Islã; e os caracterizava como soldados de uma milícia religiosa.

Na visão de Almada, esses homens de milícias apareciam trajados da seguinte forma:

(...) camisas compridas, que ficam dando um palmo por cima dos joelhos e uma maneira

de calças muito atufadas, diguo calções muito avelutados, estreitos e justos por baixo nas

pernas, os quais ficam dando por debaixo dos joelhos como os nossos; trazem as pernas

nuas, e nos pés uns alpercatos de couro cru; e nas cabeças umas carapuças do mesmo

pano de algodão, ao modo de diademas; os cabelos da cabeça trancados, espadas de tres

palmos e meio, sem guardas, com as empunhaduras chãs, ao tiracolo; e facas de palmo e

mais na cinta, em lugar de punhais. São grande cavalgadores, boa gente de guerra; e são

os que usam milícia bem disciplinada (...).67

Abaixo, a gravura de dois soldados mandingas. Aproxima-se bastante da descrição

de Almada no final no século XVI, que já indicava o uso das roupas atufadas de algodão e

65

Idem, p. 273. 66

Idem, p. 276-7. 67

Idem, pp. 240 e 274.

Page 44: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

44

cabeças cobertas; e o porte de espadas, facas e amuletos protetores pendurados no pescoço e

na roupa. Suponho que a gravura pode ter sido realizada a partir do relato dele.

Fig.3. Guerreiros mandingas vestindo roupas de algodão, portando vários amuletos de

proteção, facas, adagas e pequenas espadas. Gravura realizada no séc. XIX, que guarda

enormes semelhanças com as descrições do XVI, talvez fonte de inspiração.

Hermann Wagner. Schilderung der Reisen. Eduard Vogel in Central-Afrika (Leipzig,

1860), p. 303. (Copy in Special Collections Department, University of Virginia

Library).

Não foi por acaso que Almada narrou com olhar particularizado os tipos de armas

que portavam os mandingas, os quais faziam trato não somente com os portugueses. Mas,

sobretudo com os mouros do Norte da África. Situações de conflito entre os comerciantes e

funcionários brancos ou mestiços com os mandingas na região não foram incomuns. Nessas

ocasiões, os portugueses acabavam por conhecer e experimentar os artifícios bélicos de

defesa e ataque dos nativos. Espantou-os a quantidade de armas que eles possuíam: “São

muito guerreiros estes negros, e nesta terra, há mais armas quem em nenhuma Guiné, porque,

como há nella ferro que fundem, fazem muitas armas de azagaias, dardos, facas e muita

frecha.”68

O poder peçonhento das “frechas ervadas” fazia temer mais ainda os estrangeiros.

Diz Almada que num conflito que ocorreu às dez horas da manhã, entre os portugueses e os

negros, houve perdas humanas de ambas as partes. No período da tarde, os brancos foram

68

Idem, p. 273.

Page 45: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

45

sepultar os mortos que lutavam do seu lado, feridos pelas tais flechas, mas não puderam

carregá-los porque o veneno provocou uma rápida corrupção dos cadáveres, de maneira que,

ao pegar a pessoa pelo braço ou perna, os membros se soltavam do corpo. A solução foi fazer

as sepulturas no local onde foram mortos.69 Essas histórias aumentavam cada vez mais o

temor dos mandingas, contra os quais os portugueses não tinham como combater.

Conforme registrou Almada, ao longo do rio Gâmbia, sertão adentro, havia três

“casas” para formação corânica dos bexerins “peregrinantes”. Segundo a observação do

cronista, existiam em quantidade maior do quem em qualquer outra parte da Guiné, pois era

área de dominação comercial, política e religiosa dos mandingas, onde mandaram edificar as

mesquitas com as salas voltadas para o Oriente. Fazendo analogia com a organização da

igreja católica, Almada buscou compreender a importância dessas “casas”, isto é, as

mesquitas, chamando-as de “conventos”, e identificar a hierarquia religiosa de seus membros:

“O maior destes religiosos, como entre nós [há] uma dignidade de Guardiao ou de Provincial,

chamam eles Ale-mame, e trazem anel como bispo”. 70

O imame [Do ár. imãm.], ou alimame, título de sacerdote muçulmano, causava

forte impressão no luso-brasileiro, pelas atividades que exercia e pela forma como se

apresentava.

Escrevem em livros encadernados, que eles fazem, como já fica dito, nos quais dizem

muitas mentiras; e dá o demônio ouvidos aos outros, para os ouvirem e crerem, andam

estes Cacizes magros e debilitados de suas abstinências e jejuns e manjares, não comendo

cousa morta por mão de pessoa que não seja religiosa, trazem os vestidos compridos e por

cima deles capas e farragoilos, de baetas ou bedens, e chapeus grandes, pretos e brancos

(...) Rezam juntos com uma vozaria alta, como muitos clerigos em coro; e no cabo

acabam com Ala-arabi, e Ala-mimi.71

Comparados aos “clérigos” católicos, os religiosos bexerins andavam pelas terras

dos beafares, banhúns, buramos, jalofos, papéis e outros. Os bexerins davam-lhes “nóminas a

estes gentios, e dizendo-lhes mil mentiras. E como falam pela boca do diabo, e como diz[em]

muitas mentiras, acerta de ser alguma verdade e por essa lhe[s] dão muito credito”. Descrente

do poder das nôminas dadas pelos mandingas, Almada narra a história de um sacerdote caciz

do reino de Casamansa que ofereceu ao rei “Masatãba”, uma “nómina bem guarnecida,

dizendo que a tro[u]xesse, porque jamais, trazendo-a, seria ferido cõ[m[ arma a nenhu[m]a.”

Para provar aos portugueses o seu poder, o caciz mandou o rei colocar a nômina no pescoço e

69

Idem. 70

Idem, p. 275. 71

Idem, p. 275-6.

Page 46: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

46

ordenou que lhe atirassem uma azagaia, que traspassou o corpo do mesmo, pois o demônio

que auxiliava o sacerdote não desviou a arma. O cronista diz que, mesmo havendo provas

como estas, não bastavam para “desenganarem” o povo.72

A nômina (a palavra deriva do latim nomen, o plural de nome). Em Portugal do

século XVI, tratava-se de uma bolsinha fechada dentro da qual eram colocados nomes ou

retratos de santos, versículos do Evangelho e outras orações pias para livrar as pessoas de

tentações e livrar de perigos.73 Tendo em vista o costume dos católicos portugueses, Almada

compreendeu que havia o mesmo o sentido no uso do amuleto muçulmano, que também era

feito para proteger o portador sob auxílio do demônio.

Almada concluiu sua obra indicando que o investimento de missionários para

converter os gentios que seguiam “muitas gentilidades e ritos”, seria indispensável para

acrescentamento da fazenda de Sua Majestade. Nisso residia a lógica do Império, que

associava religião e política, missão católica e a administração de povos, nas terras de

“conquistas”, cuja interação se daria pelo comércio. No fundo, tratava-se de obra

propagandista para atrair povoadores portugueses para exploração, como ocorreu no Brasil.

Para o comerciante, havia um sentido: “povoando-se viria a ser de maior trato que o Brasil,

porque no Brasil não há mais que açúcar e o pau e algodão; nesta terra há algodão e o pau que

há no Brasil, e marfim, cera, ouro, âmbar, malagueta, e podem-se fazer muitos engenhos de

açúcar; há ferro, muita madeira para os engenhos, [e] escravos para eles”.74

O que estava por trás do comentário conclusivo de Almada era a forma de atuação

dos portugueses nas terras “conquistadas”. No Brasil, os indígenas foram subjugados pelas

armas e dizimados pelas doenças dos brancos, o que facilitou a ocupação das terras litorâneas

e posteriormente o interior. Na África, não invadem a terra, porque não suportam as “febres”

letais e porque precisaram fazer alianças com as chefaturas locais para trocar produtos e

acessar as mercadorias oriundas do interior do continente.

Os escritos de Cadamosto e Almada, por terem o caráter de testemunhos,

influenciaram o pensamento dos que seguiram para África posteriormente, inclusive os

clérigos. A diferença era que estes últimos tinham em mente as formulações teológicas que

colocaram em voga noções e conceitos do binômio Império-Cristianismo, como capazes de

legitimar e garantir as formas de domínio dos povos extra-europeus.

72

Idem, p. 327. 73

Rafael BLUTEAU. Vocabulario portuguez, & latino, authorizado com exemplos dos melhores escritores

portuguezes, & latinos, e offerecido a elrey de Portugal Dom Joam V. pelo padre D. Raphael Bluteau.

Lisboa: Na Officina de Pascoal da Sylva, 1716, p. 742. 74

Idem, p. 376.

Page 47: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

47

A chegada da Missão Jesuítica em Cabo Verde, em 1604, tinha por objetivo

converter os negros e incorporar o “novo reino” ao corpo da cristandade. Em julho de 1604, o

padre Baltazar Barreira, designado como superior da Missão. Era já um velho experiente no

trato com os extra-europeus. Ele já contava com anos de prática adquirida em outra missão

ultramarina, onde atuou na conversão dos povos da África Centro-Ocidental durante quase

vinte anos.

Pelas informações que obteve previamente através da obra de André Álvares de

Almada, o velho Baltazar preocupou-se em identificar a existência de uma religião entre os

negros para facilitar a maneira fazer a mediação com os nativos. Baseado nos escritos de

Almada informou que os povos dos reinos de Bissau, Guinala, Biguba, Besegi, e outros da

embocadura do Rio Grande e de Serra Leoa, compartilhavam códigos culturais semelhantes.

Esses povos praticavam a poligamia, cultuavam os “chinas”, usavam talismãs e realizavam

sacrifícios de mulheres e criados em cerimônias fúnebres da realeza.

O padre Barreira traduziu os chinas como sendo igual a Deus. Disse que a

devoção que os cristãos tinham por Jesus e Nossa Senhora era a mesma que os negros tinham

pelos seus “ídolos”. A compreensão era expressa por meio de uma “linguagem comum”,

onde as coincidências se apresentavam como num “jogo de espelhos”.75 Numa das primeiras

cartas enviadas ao Provincial sobre a Missão, o referido padre indicou quais eram as

idolatrias e os deuses dos guinéus:

(...) o vocábulo por onde esta gentilidade significa o culto e veneração que tem de sua

idolatria, é por este nome China; de modo que assim como nós chamamos a nosso Deus,

assim eles ao que têm e adoram por Deus chamam China; donde, quando vêem nossas

imagens de Cristo ou de Nossa Senhora lhe chamam China do branco, ou China do

cristão, querem dizer Deus do cristão, ou coisa a que quer ou ama muito. Donde o que

eles têm por sua China e por seu Deus veneram com muito grande respeito, nem fazem

nada sem seu conselho; e para mais o diabo os enganar, lhes fala nela quando a trazem a

publico para terminarem alguma coisa em juízo, ou fazerem algum juramento, ou

quererem saber alguma coisa que há-de haver ou suceder no reino.76

75

Cristina POMPA, Op. Cit., p. 56. Em seu estudo sobre a relação entre os tupinambás e os missionários na

América Portuguesa e o problema colocado em torno da compreensão das “santidades” e dos “profetas”

indígenas, a autora sugere o termo “tradução”, pois fornece o instrumental necessário para interpretar o

referido problema cultural. Para nós, importa entender que “a linguagem religiosa parece tornar-se o terreno

da mediação onde cada cultura pode tentar ler a diversidade da outra e onde a alteridade pode encontrar seu

sentido e, portanto, sua „tradução‟, em termos culturalmente compreensíveis”. 76

Padre António BRÁSIO, Monumenta Missionária Africana. África Ocidental. Vol. IV. Lisboa: Agência

Geral do Ultramar, 1968. A partir daqui essa obra será referida como M.M.A., seu respectivo volume,

antecedida pelo título do documento e sua data: “Das coisas de Cabo Verde e Costa da Guine” (P. Baltazar

Barreira), 1606, M.M.A., IV, pp. 203-5.

Page 48: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

48

Espantou ainda mais ao dito padre ver o altar onde eram colocadas as oferendas

aos “ídolos” dos povos da Guiné:

Tomam muitos paus, cada um de palmo e meio, todos muito pretos em razão da variedade

dos licores que lançam em umas vasilhas, que é sangue de diversos animais com que

tingem esses paus; e as vasilhas são umas panelinhas juntas umas das outras,

entressachadas com pontas de cabras; destes paus fazem um feixe, que fica parecendo um

cepo de talhar carne, de altura de palmo e meio, do qual estão dependuradas por umas

cordinhas delgadas duas ou três caveiras de cachorros. E eis aqui o deus que esta cega e

brutal gentilidade adora e mete no coração e isto é o que chamam China.77

O vocábulo China também era atribuído à pessoa sacrificada na cerimônia fúnebre

do soberano:

Têm mais outra cerimônia gentílica, a qual é, que morrendo o Rei ou a Rainha, ou

qualquer fidalgo ou pessoa nobre, cada um, conforme o seu estado e posse, manda matar

comsigo para o servirem na outra vida aqueles que mais ama nesta, assim homens como

mulheres, e a cada uma destas pessoas chamam também chinas, porque com esta palavra

declaram o muito que lhe querem, que é como a seu próprio deus.78

A palavra china tinha vários significados.79 Era o local onde se fazia o ritual de

oferta aos deuses. “Espécie de templo em forma de guarda-sol e coberto de palha, em que

oferecem sacrifícios aos espíritos diabólicos, para conseguirem seus desejos.”80 Era também o

próprio objeto de culto, feito de madeira ou pedras. Os altares eram erguidos nos locais de

oferecimento. Poderia ser na sementeira de arroz para que tivessem uma boa produção,81 no

quintal da casa para dar proteção contra doenças e invejas,82 em penedos, próximo ao mar,

embaixo de árvores e onde mais fosse conveniente para quem estava solicitando ou

agradecendo pela ajuda recebida.83

77

Idem. 78

Idem. 79

António CARREIRA, Símbolos, ritualistas e ritualismos ânimo-fetichistas na Guiné Portuguesa. Boletim

Cultural da Guine Portuguesa, Vol. XVI, 1961, no

63, pp. 505-541. Segundo o estudo deste autor, o termo

china é usado ainda entre alguns povos, como os felupes, cassangas, banhuns, mas com o acrescentamento do

sufixo bú. Esclarecendo também a nova designação irã, para o termo: “Seja pela facilidade de exprimir e

grafar, seja pela decisiva influência do crioulo, o certo é que o termo irã teve franco acolhimento e hoje

substitui nos falares correntes as designações de China, Chinabú, ídolo, feitiço ou qualquer outra com

idêntica ou similar equivalência, sobrepondo-se às próprias designações vernáculas nas línguas nativas.” Pp.

506 e 508. 80

“Carta do Padre Baltasar Barreira ao Provincial de Portugal”, 05/03/1607, M.M.A., IV, p. 236. 81

Idem. 82

Carta Ânua do Padre Baltasar Barreira ao Provincial de Portugal, 01/01/1610, M.M.A., IV, p. 392. 83

As chinas ou Irãs podiam ser coletivos, familiares e individuais. Podendo ter as mais variadas formas, mas,

raramente, figuras antropomorfas. Os coletivos podiam ser árvores, estacas de madeira, forquilhas, simples

desenhos geométricos, pedras ou outra representação material. Eram utilizados por todas as pessoas de uma

aldeia. As chinas coletivas “representam os antepassados longínquos do grupo e os seus deuses ou entes

sobrenaturais e, por isso, constituem-se em protectores genéricos da colectividade. São frequentemente

evocados, invocados, acarinhados e presenteados”. São utilizados para: escolha e empossamento do rei; nos

Page 49: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

49

As oferendas eram os animais sacrificados (vaca, cabra, galinha, cachorro), as

pessoas (no caso da morte de soberano) e também ouro.

Enterraõ nos em huã cova a modo de aboboda, e sobre ella lhe armaõ huã casa a modo de

ermida, aonde vaõ falar cõ o defunto e emcomendarlhe suas cousas; assentaõ o corpo em

seu assento, e se he alguã pessoa nobre mataõlhe escravos e escravos, pera que os vaõ

servir a outra vida. E poe[m]lhe ao redor em seus balayos o ouro que tinhaõ guardado

pera seu enterramento, no qual poe[m] grande cuidado, porque lhe mete o diabo em

cabeça que tudo aquillo hão de achar na outra vida;84

Alem dessas “erronias” em que viviam os “gentios”, os reinos da embocadura do

Rio Grande, inseridos na área de atuação da missionação portuguesa, conviviam com os

mandingas que habitavam a região.

Fig. 3. Negro mandinga, mostrado com panos de

algodão, muitos amuletos pendurados no

pescoço e ao longo do peito e com a cabeça

coberta. Gravura de René Claude Geoffroy de

Villeneuve, L‟Afrique, ou histoire, moeurs,

ritos de passagem e fúnebres; auxiliar as mulheres na fecundidade e procriação; solucionar casos graves na

comunidade; proteger as sementeiras de arroz; chamar a chuva; proteger o povoado contra “comedores de

alma”, a mortandade do gado, as pragas e insetos nocivos a lavoura, etc. António CARREIRA. Op. Cit., p.

510. 84

“Carta do Padre Baltasar Barreira ao Provincial de Portugal”, 05/03/1607, M.M.A., IV, p. 238-9. Francisco de

Lemos COELHO. Duas Descrições Seiscentistas da Guiné [1684]. Lisboa: Academia Portuguesa de

História, 1953, p. 116. Esse viajante também descreve o rito funerário dos povos manes e as oferendas de

ouro: tiram as tripas, embalsamam o corpo, enfeitam o corpo com manilha de ouro, vestem nos mortos as

melhores roupas. Deitam o morto numa cama, sacrificam as mulheres e pajens para servir a pessoa na outra

vida. Colocam arroz, vinho, peças de ouro, arco, flechas na cova. Cerram tudo. Deitam terra por cima.

Page 50: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

50

usages et coutumes des africains : le Sénégal

(Paris, 1814), vol. 3, facing p. 170. (Copy in

Special Collections Department, University of

Virginia Library)

O padre observou que mandingas influenciavam os demais povos com seus

costumes de oferecer objetos de proteção pessoal por toda a costa da Guiné e interior do rio

Gâmbia, a fim de promover a conversão deles ao islamismo:

Há nestas partes certa gentilidade a que chamao Mandingas, que hé a pior gente, porque

guardão a seita dos mouros e confina cõ eles nos custumes e nas terras cõ[m] os Jalofos.

Estes andam metidos cõ[m] esta gentilidade e os enganaõ dando-lhe nominas e hus

relicairos que trazem ao pescoço, assi[m] como os agnus Dej e outras relíquias. São

estas nominas hus pedaços de couros cosidos de diversos modos e nelles trazem o que

estes mouros lhe dão, e semeaõ também a cizanea de sua perversa ceita [sic].85

Em virtude da importância que tinham os amuletos para os católicos, o padre

compara os objetos religiosos daqueles povos africanos com os artefatos cristãos que também

eram usados em Portugal e noutras parte da Europa com o intuito de proteção e cura. As

nôminas eram bolsas para guardar relíquias e orações de defesa do mal. O Ágnus-dei era um

tipo de medalha de cera abençoada pelo papa para livramento de males e perigos, cujo uso se

fazia na Europa desde a Alta Idade Média.86

Na Europa Moderna, as pessoas comuns ou notáveis recorriam aos conhecimentos

populares de outras, hábeis em curar, adivinhar e resolver problemas do dia-a-dia, como os

curandeiros. Muitas vezes o padre era procurado para resolver tais situações. De forma muito

semelhante aos clérigos da Idade Média,87 no princípio da Idade Moderna, os teólogos

católicos e protestantes eram hostis à magia popular, feitiçaria, sortilégios, uso de amuletos e

contra-bruxaria. Alguns continuaram condenando os usos destas práticas até o século XVIII.

Porém, outros especialistas da Igreja não deixaram de discutir a eficácia desses recursos.88

Após o Concílio de Trento, o ágnus-dei e os amuletos constavam dentre os

elementos permitidos como defensivos contra as bruxarias e demonismos em geral. O bispo

85

“Carta do Padre Baltasar Barreira ao provincial da Companhia de Jesus”, 20/02/1606, M.M.A., IV, p. 99. 86

A palavra Agnus-Dei, literalmente, significa “Cordeiro de Deus”. Eram “relíquias de cera branca em forma de

medalha que de uma parte tem a figura de um cordeiro, símbolo de Nosso Senhor Jesus Cristo e da outra

alguma outra devota imagem. O Sumo Pontífice os benze e os consagra no primeiro ano de seu Pontificado,

regularmente de sete em sete anos. São estes AgnusDei sagrados preservativos contra as feitiçarias, doenças,

tormentas, raios. (...) Também se dá o nome de Agnus Dei a outras obrasinhas de seda, prata e ouro, nas quais

se encaixa alguma partícula desta cera benta.” Rafael BLUTEAU. Vocabulario portuguez, & latino,

authorizado com exemplos dos melhores escritores portuguezes, & latinos, e offerecido a elrey de Portugal

Dom Joam V. pelo padre D. Raphael Bluteau. Lisboa: Na Officina de Pascoal da Sylva, 1716, p. 170. 87

Stuart CLARK, Pensando com Demônios. A idéia de Bruxaria no Princípio da Europa Moderna. Tradução de

Celso Mauro Parcionik. São Paulo: Edusp, 2006, pp. 593 e 621. 88

Idem, pp. 362, 606-7.

Page 51: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

51

Friedrich Forner de Bamburg, quando publicou Panoplia armaturae Dei, em 1625, dedicou

22 dos seus 35 sermões para instruir os cristãos de como se proteger do assédio do diabo.

Além dos sermões, foram sugeridas pelo bispo outras peças de armadura espiritual contra o

demônio: os sete sacramentos, “alguns sacramentos de bênção da Igreja (água benta, sal,

vinho, óleos, sinos, etc.), exorcismos, (...) invocação dos nomes de Cristo e da Virgem, a

proteção de um anjo da guarda, santos e suas relíquias, o sinal-da-cruz, o uso de Agnus Dei e

amuletos feitos com trechos das sagradas escrituras.”89

O espanhol Juan Maldonado (1534-1583), jesuíta, especialista pós-tridentino,

professor de Teologia e Filosofia em Paris, escreveu Traicté des Anges et Demons. No seu

“manual” oferecia várias proteções eclesiásticas típicas para que os cristãos se livrassem do

demônio: “exorcismo, o nome de Cristo, o sinal-da-cruz, relíquias de santos, recitação do

Credo, jejum e oração, a eucaristia, água benta e a palavra de Deus.” O arsenal ainda incluía

outro objeto sagrado, o ágnus-dei.90

Ao mesmo tempo em que a doutrina católica rejeitava as idolatrias européias, por

outro lado, aceitava o uso de relíquias cristãs e também de amuletos em processos de cura. Na

Guiné não foi diferente. Os talismãs, produzidos pelos bexerins e marabus, foram assimilados

pelos missionários europeus como outro sinal de idolatria, ao lado do culto dos chinas, que

evocava os antepassados e protegia a aldeia.

1.4. A missionação na Guiné: relíquias portuguesas na África

As obras dos comerciantes que moravam na região e dos que passavam

temporadas mercadejando e, principalmente, as cartas escritas e enviadas pelos funcionários e

missionários da Guiné para o Reino, difundiram informações dos mandingas como feiticeiros

e supersticiosos, que vendiam amuletos com inscrições do Alcorão, cujas propriedades eram

protetoras.

Mesmo tendo notícias da expansão do Islã por meio de seus predicadores

mandingas e do desvio religioso dos comerciantes portugueses, a Missão da Guiné demorou

de ser iniciada, pelo impasse entre a Coroa e a Companhia de Jesus, até que o rei Filipe

ordenou a abertura de um seminário em Santiago para a evangelização do continente, que

89

Idem, pp. 665-6. 90

Idem, p. 664. O autor evidencia em sua obra que havia pouca concordância entre católicos, luteranos e

calvinistas acerca dos remédios contra bruxarias.

Page 52: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

52

nunca foi efetivado. Nas povoações de Cabo-Verde e no continente já havia capelães

diocesanos que atuavam de forma precária.

O objetivo da Missão da Guiné era combater o avanço dos muçulmanos, extirpar a

religião que havia entre os “selvagens”, inserir o cristianismo e aumentar a fazenda da Coroa

Portuguesa. Ao perceber a importância dos mandingas na Guiné, os missionários tentaram

afastá-los de sua área de ação da Missão e traduzir a religião muçulmana para o cristianismo.

Após o Concílio de Trento, Portugal foi a nação na qual se verificou “uma rápida

e eficaz implantação das medidas conciliares”. O rei de Portugal demonstrou total apoio ao

Papa na aplicação das novas regras tridentinas. Fortalecido pela posição de D. Henrique, o rei

considerou-as “como lei do reino”.91 A aplicação das novas doutrinas exigia uma

metodologia, pois a simples divulgação de decretos não atenderia a reforma desejada. Para

cristianizar era preciso mobilizar o povo e instruí-lo. O cumprimento da resolução92 tomada

em Trento em relação às imagens e relíquias foi alternativa para promover o patrimônio

hagiográfico de Portugal e servir de instrumental como fonte para suscitar uma prática

religiosa mais fervorosa das massas. As relíquias sagradas tornaram-se, assim, um meio de

divulgar o projeto tridentino de reforma dos costumes do povo.93

Em julho de 1604, desembarcou em Santiago, Ilha de Cabo Verde, três sacerdotes

e um irmão para realizar a Missão da Guiné. O padre Baltazar Barreira foi designado como

superior. Ele já contava com a experiência de outra missão ultramarina nas terras de Angola,

onde foi conselheiro do governador Paulo Dias e atuou na catequese dos povos da África

Centro-Ocidental.94

91

João Carlos G. SERAFIM, Relíquias e propaganda religiosa no Portugal pós-tridentino. Via spiritus. Porto:

Centro Inter-Universitário de História da Espiritualidade da Universidade do Porto, Instituto de Cultura

Portuguesa da Faculdade de Letras do Porto, n.8, 2001; pp. 159-60. 92

“Manda o santo Concílio a todos os bispos e aos mais que têm o ofício e cuidado de ensinar que, conforme à

praxe da Igreja católica e apostólica recebida desde os tempos primitivos da religião cristã e consenso dos

santos Padres e decretos dos sagrados concílios, instruam diligentemente os fiéis primeiramente acerca da

intercessão dos santos, sua invocação, veneração das relíquias e legítimo uso das imagens, e lhe ensinem que

os santos que reinam juntamente com Cristo, oferecem a Deus pelos homens as suas orações, e que é bom e

útil invocá-los humildemente e recorrer às suas orações poder e auxílio para alcançar benefícios de Deus, por

seu Filho Jesus Cristo nosso Senhor, que é o nosso único redentor e salvador. Sentem pois impiamente

aqueles que dizem que os santos que gozam da eterna felicidade no céu, não devem ser invocados; e assim os

que afirmarem que se não deve veneração e honra às relíquias dos santos, e que estes e outros sagrados

monumentos são inutilmente honrados pelos fiéis; e que debalde visitam as memórias dos santos por motivos

de conseguir o seu socorro, devem ser infalivelmente condenados, segundo há muito os condenou e agora

condena a Igreja”. Sacrossanto e Ecumenico Concilio de Trento em Latim e Portuguez [O]. Lisboa:

Officina Patriarc. de Francisco Luiz Ameno, 1781 (Seção XXV - A invocação, a veneração e as Relíquias

dos Santos, e as sagradas Imagens). 93

Ibidem. 94

Baltasar Barreira entrou para a Companhia de Jesus em 1556. Em 1569 dedicou-se a socorrer as vítimas da

peste bubônica que assolava Lisboa. Em 1575 foi para Angola como superior da missão, ao lado de Paulo

Dias de Novais. Construiu a Igreja de São Paulo de Luanda e atuou com chefe militar num levante. Retornou

Page 53: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

53

Ao ser indicado para a Costa Noroeste africana, agradeceu a indicação da

Companhia de Jesus e justificou sua aceitação de conduzir o projeto de missionação na Costa

da Guiné. Tomado de espírito cruzadista, acrescentou: “porque quanto mais noticia tenho de

Guiné, tanto tenho mayor magoa do desemparo (sic) de tantos milhares de almas, que

nenhum conhecimento tem do beneficio inestimável de sua redeçãm, porque atégora nam

chegou a elles a luz do sancto Evangelho, estendendose cada vez mais por aquellas partes a

maldita seyta de Mafamede.”95

Os jesuítas foram recebidos entusiasticamente pelas autoridades locais e a

população de Santiago. No final da tarde do primeiro dia da estada deles, houve uma forte

ventania que levantou grandes ondas e lançou os navios que estavam atracados no porto

contra os arrecifes de pedras. Outras embarcações se desamarraram e ficaram próximas aos

arrecifes, inclusive a que levava as relíquias dos santos para a missão da Guiné, e estava

prestes a ser arremessada também, mas uma grande onda devolveu o navio ao porto. Esse

episódio foi considerado um milagre, atribuído às santas relíquias.96

No primeiro domingo, após a chegada dos padres, foi celebrada uma missa com

procissão, acompanhada pelo “Governador do Bispado e das dignidades e conegos da See, e

toda a nobreza da Cidade, cõ[m] tanto cõ[n]curso de toda a sorte de gente, que não cabia

polas ruas.”97 Ao final do cortejo foi anunciado que no domingo seguinte, dia da festa do

Santíssimo Sacramento, haveria uma procissão para as santas relíquias.

No domingo seguinte, conforme ocorria em Portugal, Espanha, Itália, Alemanha e

na América Portuguesa, as relíquias foram recebidas com grande festa em Cabo Verde. A

procissão do Corpo de Deus e das relíquias trazidas de Portugal ocorreu à tarde com todo o

ritualismo do catolicismo português: danças, folias, São Jorge armado a cavalo, espada,

repique alarmante de todos os sinos, trombeta, charamela e disparos de artilharia. Seis

sacerdotes do cabido, vestidos “cõ[m] as mais ricas capas da Sé, tres debaixo de hum paleo e

tres debaixo de outro”, iam à frente levando as relíquias dentro de seis peças: “(...) todos da

para Europa. Em 1603, assumiu o posto de chefe dos noviços. Em 1604, aceitou o apostolado na Guiné, Cabo

Verde e Serra Leoa, e já contava com 66 anos de idade. Faleceu em Cabo Verde, em 1612. Luis F.

ALENCASTRO, O Trato dos Viventes. Op. cit., 168-70. 95

“Carta do Padre Baltasar Barreira ao padre Antonio Mascarenhas”, 16/03/1604; e “Carta do padre Baltasar

Barreira ao Provincial de Portugal”, 22/07/1604, M.M.A., IV, pp. 35 e 46. 96

“Todavia nunca nos pudemos persuadir que os Santos cujas reliquias estavao nelle e traziamos pera esta terra, o

avião [haviam] de desemparar. E assi foi que estando sobre o arrecife, veo hua grande onda do mar por cima

dos mesmos penedos, que o tirou fora e afastou delles, sem receber dano algum, o que deo animo aos

marinheiros pera lhe acodir e o pôr a salvo, ainda que cõ muyto risco de suas vidas, e cõ andar sobre elle toda

a noite; este beneficio o atribuem todos ás santas reliquias e o tem por milagre manifesto”. “Carta do Padre

Baltasar Barreira ao provincial de Portugal”, 22/07/1604, M.M.A., IV, p. 44. 97

Idem, p. 45.

Page 54: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

54

maneira que podiaõ e lhe era possível, declaravaõ a estima em que tinhaõ as santas reliquias e

cõ[m] mostras de extraordinaria alegria e devaçaõ, nos davaõ as graças do tesouro cõ[m] que

enriqueciamos a terra”.98

O cortejo religioso foi organizado pelos padres Baltazar Barreira e Manoel de

Barros. Terminou quando já estavam escuras as ruas da sede do bispado da Guiné. Por

motivos de segurança, os clérigos resolveram suspender o ritual de beijar as relíquias naquele

dia.

As relíquias sagradas eram restos físicos dos santos, principalmente ossos, e

outros objetos que pertenceram a eles ou com os quais apenas tiveram contato. Podem ser

classificadas em três tipos: restos físicos de mártires e santos (ossos, cabelos, unhas, sangue,

lágrimas, etc.); instrumentos de martírio (cruzes, pregos, lanças, setas, correntes, paus,

tacapes, etc.); e relíquias de contato (roupas, terra de sepulturas, lenços que estiveram em

contato com as partes dos restos mortais, e outros objetos de uso pessoal). 99

Do ponto de vista religioso, as relíquias sagradas transformaram-se em elementos

estratégicos para promover a cristianização de territórios. A religião católica, fundada em

narrativa de grande sofrimento e morte, desenvolveu um culto especial aos corpos dos seus

santos. Os túmulos dos mártires foram os primeiros locais de culto dos cristãos. No final da

Antiguidade, a dilatação do cristianismo precisou articular a idéia de territórios consagrados

pelos túmulos dos santos, com a necessidade de expansão para locais onde não houvera

perseguições e martírios. A solução encontrada para ampliação da cristandade, associada aos

cultos aos restos mortais de mártires, foi o transporte dos seus corpos ou partes deles, ou os

instrumentos do seu martírio para novos locais de culto.

O culto às relíquias continuou na Idade Média, consagrando novos territórios para

a fé cristã. Além disso, elas operavam curas e emanações maravilhosas. A incorruptibilidade

dos corpos e os traslados milagrosos provavam que eram artefatos divinos.

O Concílio de Trento (1545 a 1563), cujo objetivo era moralizar os costumes da fé

católica e centralizar o poder da Igreja, “reforçou o poder milagroso dos corpos dos santos,

reafirmando a sua presença física e integral, mesmo nos menores fragmentos e condenando

aqueles que desafiavam esse poder”.100

O desafio enfrentado pela Igreja no final da Antiguidade foi recolocado com os

“descobrimentos” ultramarinos. Como inserir os novos territórios recém-conquistados na

98

Idem, p. 48 99

Renato CYMBALISTA, Relíquias sagradas e a construção do território cristão na Idade Moderna. Anais do

Museu Paulista, História e Cultura Material. Vol 14; pp. 13-4, 2006 100

Idem, p. 16

Page 55: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

55

história e memória cristãs? Em seu estudo das relíquias sagradas como elementos estratégicos

para a cristianização da América Portuguesa, Renato Cymbalista propôs três chaves de leitura

para compreender os procedimentos tomados pela Igreja nesse momento: 1) as descobertas

de novas relíquias, como elementos de conexão dos tempos modernos com o início da era

cristã; 2) os traslados de relíquias, como procedimentos de transplante da memória sagrada;

3) e a produção de novas relíquias, que revela a capacidade de criação permanente da

sacralidade”.101

Não eram apenas as descobertas de relíquias que evidenciavam o pertencimento

de determinado território à história cristã. O fato das relíquias serem transportáveis revelava o

meio, por excelência, pelo qual podiam adaptar-se ao corpo da cristandade. O aumento do

fluxo e a mobilidade de relíquias no século XVI foram provocados por três fatores: as

descobertas de catacumbas com muitas relíquias em Roma, que aumentou a oferta; a remoção

das relíquias dos lugares onde estavam guardadas para preservá-las do desprezo dos

reformadores protestantes que as destruíam, pois se indignavam com a veneração dos restos

humanos; e os novos territórios ultramarinos conquistados no início da Idade Moderna.102

As descobertas de muitas relíquias na reconquista da Península Ibérica tinham o

objetivo de exaltar o pertencimento daquele local ao corpo da cristandade, que estava sendo

retomado dos mouros. “Acreditava-se que todas as partes do mundo haviam sido tocadas pela

palavra de Cristo por meio de seus apóstolos, e que o Diabo e seus servidores havia desviado

grande parte da humanidade deste caminho.”103 Nesse sentido, a América Portuguesa foi

inserida na narrativa cristã, por meio das pegadas de São Tomé, que pregou aos indígenas. A

Índia foi contemplada pelos ossos desse apóstolo, pois seu túmulo foi encontrado em

Meliapor.

A África foi inserida na narrativa cristã através de vários “varones ilustres” que

nasceram na Etiópia, cuja maioria pertence ao Antigo Testamento: A rainha de Sabá, Santa

Efigênia (princesa da Etiópia), Séfora (mulher de Moisés), São Felipe, São Gaspar (um dos

três reis magos), São Elesbão (Imperador da Etiópia), São Moises e São Serapião (ambos

abades), Santo Antonio e São Benedito, ambos negros e franciscanos do século XVI.

Mas apenas dois deles são apresentados na descrição de Alonso de Sandoval como

mártires: São Gaspar e Santo Antonio. São Gaspar, rei da Etiópia, teria abandonado todas as

suas riquezas para imitar a pobreza de Jesus que ele testemunhou, desde que fora levar-lhe

101

Idem, p. 17. (Grifos do autor). 102

Idem, p. 25. 103

Idem, p. 21.

Page 56: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

56

um presente por ocasião de seu nascimento; e passou a evangelizar entre os “pueblos ciegos”

de fé. Alcançou a “palma del martyrio” porque morreu por Cristo. Os restos mortais do Rei

Mago da Etiópia foram levados dessa região para Milão. Depois que o Imperador Federico

Barba-Roxa destruiu essa cidade, foram trasladados para Colônia, na Alemanha “donde estan

al presente y son tenidos em grande veneracion, como escriven graves autores.”104

O segundo mártir era um negro muçulmano do Norte da África, que “crióse em la

mortifera seta de Mafoma, por ser hijo de padres Moros”. Foi comprado como escravo pelos

italianos no comércio pelo Mediterrâneo e levado para a Sicília, onde o batizaram com o

nome de Santo Antonio. Foi alforriado aos 42 anos pelo seu senhor, após ter multiplicado

milagrosamente o gado dele. Entrou para a Ordem dos Franciscanos, onde levou uma vida

penitente e continuou a obrar milagres. Quando morreu, os anjos celestiais cantaram e os

sinos badalaram voluntariamente, sem ser tocados por pessoa alguma. Seu enterro foi em

“lugar eminentissimo donde fue colocado su santíssimo cuerpo, que permanece entero y sin

corrupcion.”105

Também foram produzidas relíquias de mártires ao Norte. Trata-se do

martirológio de cinco frades italianos que foram pregar aos mouros no Marrocos e tentar

converter o rei. Em conseqüência de suas pregações, foram presos e torturados. Os seus

corpos foram despedaçados e lançados fora da cidade. Os portugueses foram recolher as

“relíquias”, enquanto os mouros tentavam queimá-las, porém estas não incendiavam, pois o

fogo antes se apagava, por mais que o atiçassem, porque as carnes eram sagradas. “(...) E hua

cabeça delles muytas vezes deytarã no fogo e logo saltava fora, e assi ficou saã do lume sem

queimadura e cõ os cabellos inteiros, assi como se mostra no mosteiro de sancta Cruz”. As

relíquias dos mártires foram trasladadas para Portugal por intermédio do infante D. Pedro,

realizando desde logo inúmeros prodígios. Depois foram levadas por D. Henrique para o

mosteiro da “Congregação dos Cónegos Regulares de Santa Cruz” em Coimbra, em 1579.106

Também para a parte Oeste da África, no início da Missão dos Jesuítas, foi

trasladada uma “relíquia de contato”: as tábuas da cama onde dormia e fazia penitência Santo

Inácio de Loyola, “o Bom Pastor.”107 Dessas tábuas, foi feita uma cruz, abrigada na catedral

da diocese das Ilhas de Cabo Verde. Com o passar dos anos, os sermões dos padres,

esclarecendo sobre os atributos divinos da relíquia que estivera em contato com o santo,

104

Alonso Sandoval, Un Tratado sobre la Esclavitud. Op. Cit., p. 223. 105

Idem, p. 228. 106

João Carlos G. SERAFIM, Op. Cit., p. 171. 107

Idem, p. 459. Este relato também consta na “Carta do Padre Sebastião Gomes ao Provincial de Portugal” de

outubro de 1613. In: M.M.A., IV, p. 532.

Page 57: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

57

parecia ter gerado grande devoção pela mesma dentre a população. Os religiosos, inclusive,

emprestavam-na aos nativos para ser levada às residências dos enfermos, como aconteceu

com um homem que estava muito doente e melhorou em poucos dias depois que a relíquia

chegou a sua casa. Quando o religioso foi buscá-la, devolveu-a “chorando muitas lagrimas de

devoção e saudades”.108

Ao que parece, o que mais despertou a devoção em torno da cruz feita com o

santo lenho da cama, onde dormiu Santo Inácio, foi um milagre ocorrido a um homem

principal da Ilha de Santiago que morava no campo e tinha um filho à beira da morte. O pai

mandou pedir aos religiosos a relíquia para que o moribundo morresse consolado com a

mesma, “como he muy ordinario nesta Ilha”. Ao recebê-la, com muita devoção, o rapaz

morreu sem sofrimento algum e ficou com os olhos abertos contemplando a cruz como se

vivo estivesse. Todos ficaram admirados com o acontecido. A mãe do falecido pediu que a

relíquia o acompanhasse até a sepultura junto ao seu corpo, e coseu-a na mortalha para que

não caísse. Após o sepultamento, mandou que uma criada de sua casa devolvesse-a na igreja,

mas a mulher subtraiu a relíquia e não revelou onde estava. Mandaram fazer diligências pelos

caminhos para ver se encontravam, mas não achavam. Até que foi vista afastada de uma

vereda “entre grandes ervaçais”, sobre as “pontas das ervas” a “joya preciosa”.

A notícia foi dada aos padres e, logo em seguida, propalada pela cidade, “e foy a

causa de cobrarem todos grande devoçaõ a esta santa relíquia, e de se valerem alguns della

em suas necessidades,”109 principalmente as mulheres em situações de risco de parto.110 Um

homem principal da cidade tomou a cruz emprestada perante a dificuldade no trabalho de

parto de duas criadas dele, e serviu para aliviar-lhes a dor e fazê-las parir. Uma outra, que não

recebeu a relíquia, correu risco de morte e sua criança não vingou.

As narrativas miraculosas eram apresentadas como manifestação da onipotência

divina, sempre pronta a intervir no mundo. A sacralidade da relíquia tinha como principal

argumento o acontecimento milagroso. Ao contrário da “tipologia” Medieval, na qual o

108

Idem. 109

“Carta Ânua da Missão de Cabo Verde do Ano de 1610 até Julho de 1611”, 17/07/1611, M.M.A., IV, pp.

459-60. 110

“Carta do Padre Sebastião Gomes ao Provincial de Portugal”, outubro de 1613, M.M.A., IV, p. 532. A cruz

“tem livrado muitas molheres que de parto estavaõ muito perigosas, e assy tanto que alguã se vê deste modo

attribulada, logo procura por todas as vias aver a cruz, porque sabem já, e tem por certo, que chegando se hao

de ver livres de tal perigo, pollo que tem acontecido a muitas a cada dia experimentaõ, e assy sem terem

respeito ao tempo nos vem importunar cada dia, ainda que seja tarde da noite (...) e metem tantos rogadores

que muitas vezes somos forçados, por satisfazer a sua fee e devaçaõ consentir que a levem fora da Cidade,

assy pera as molheres que estaõ de parto, como pera outros doentes”.

Page 58: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

58

milagre era geralmente manifestado por cura, para levar o descrente a crer, na Modernidade,

o milagre era um prêmio pela devoção. 111

A narrativa das obras milagrosas na Guiné, por meio das cartas, se direcionava aos

membros da Companhia de Jesus, ao público mais erudito e também aos menos letrados.

Através do culto as relíquias e dos milagres obrados por elas, os missionários acreditavam

atingir os objetivos da renovação da Igreja: disciplina, catequese, reforma de costumes e

interiorização da fé.

Os padres seguiam as observâncias do Concílio de Trento. Pretendia-se justificar a

veneração dos santos e das imagens e a educação dos fiéis na prática devocional através da

propagação das imagens de Cristo, da Virgem e de outros santos, como manifestações divinas

e sinais dos milagres que Deus obrou pelos eles. Por outro lado, deviam-se evitar os abusos e

o aparecimento de novos cultos. Por isso, ordenava-se que fossem punidos os abusos de

adoração das imagens que “não figurem divindade”, e que houvesse controle no surgimento

de novas relíquias.112

Revestidos de espírito tridentino, os clérigos produziram relatos das atividades dos

seus companheiros falecidos na Missão da Guiné, enfatizando as dificuldades e sofrimentos

enfrentados por eles nas terras perigosas e doentias da África. Destacaram três elementos: as

inúmeras conversões, os milagres alcançados através do falecido, e a morte a serviço da

propagação do Evangelho, para o aumento da fé cristã. A finalidade da narrativa era

aproximar o religioso da figura do mártir e criar uma propaganda para abertura de processo

de canonização, conforme rezavam as normas tridentinas de centralização papal.

O padre João Delgado chegou a dezembro de 1608 em Cabo Verde, e faleceu sete

meses depois em Bichangor, perto do Rio Farim. Foi acometido pelas enfermidades tropicais.

Conforme testemunhos, em sua ação missionária, ele fez muitas pregações e deu lições

espirituais. O rei de Bichangor chorava ao ouvi-lo falar das coisas de Deus. Muitos fiéis o

comparavam aos “grandes santos do çeo”. Semelhantemente à história de outros santos, ele

preparou-se para a morte, pois sabia qual seria a hora. Apesar do pouco tempo de sua

missionação, consta que seu falecimento foi muito sentido pela população do Bichangor.

Os pertences do padre João Delgado foram guardados como relíquias: “depois de

sua morte, que foi muy sentida, e chorada de todos, lançarã[o] os Portugueses mão de

algu[m]as cousas suas, guardando as e estimando as como se forã reliquias de algu[m] grande

111

João Carlos G. SERAFIM, Op. Cit., p. 157 112

O Sacrossanto, e Ecumenico Concilio de Trento em Latim e Portuguez, Lisboa: Officina Patriarc. de

Francisco Luiz Ameno, 1781. Tomo II, p. 347.

Page 59: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

59

santo.”113 Posteriormente, passou-se a atribuir curas a ele. Um morador encontrava-se doente,

e foi ao lugar onde o padre estava sepultado, fez uma oração e ficou curado: “pedindo a Deos

que por seus mereçimentos o livrasse daquele mal, que daly se alevantou são, e nã[o] cessava

depois de contar a mercê que Deos lhe fizera atribuindo a intercessaõ, e merecimentos deste

seu servo.”114

Foi Baltazar Barreira quem registrou os testemunhos da ação missionária e, até

mesmo, do milagre ocorrido após a morte de João Delgado. Ele enviou duas cartas ânuas ao

Provincial da Companhia de Jesus, enfatizando os feitos maravilhosos do padre, com o

objetivo de construir um clima propício para a sua indicação para beatificação ou a liberação

papal, visando o culto de seus restos mortais. Mas não houve resposta.

Narrativa semelhante foi produzida em torno do padre Manoel de Barros, que

também faleceu na ação missionária quando estava na Ilha do Fogo. Teve seu corpo

trasladado para a Igreja principal da Ribeira Grande, no arquipélago cabo-verdiano, onde foi

enterrado em frente ao altar. Foi descrito pelos colegas como milagroso, exímio exorcista de

demônios115 e capaz de operar curas nos enfermos.116

O falecimento do padre Baltazar Barreira, em 1612, foi muito sentido pelos seus

colegas. Nas cartas escritas após sua morte, foi chamado pelos colegas de “Santo Velho”. A

113

“Carta Ânua da Missão do Padre Baltasar Barreira ao Provincial de Portugal”, 01/01/1610, M.M.A., IV, p.

397. 114

Idem, pp. 397-8, e 458-9. 115

“(...) fallaõ como de hum santo muy principal dos que estaõ no Ceo; esta sua opiniaõ confirmou Deos com

alguãs obras que elles chamam milagres; huã foy que trazendolhe huã molher possuída do demonio, e que

padecia este trabalho avia alguns annos, elle dilatou tres dias o officio que lhe avia de fazer, os quaes tomou

pera jejuar e fazer oração applicada a esta obra; trazelha passados elles, achaõno em oraçaõ diante do

Santíssimo Sacramento, concorre muita gente a ver o sucesso, fazlhe os exorcismos, resiste o demonio,

alegando que muitos visitadores e outros sacerdotes pretenderaõ deitalo daquella sua morada, e não poderaõ,

e que assy avia de ser agora; aperta o padre com elle, pedindo a Deos que lhe acrecente os tormentos,

mandalhe em nome de Jesu Christo, e da Santíssima Trindade que saia, não torne mais aquella molher;

rendesse finalmente o espírito mao, diz que se quer ir, e que não tornará mais. (...) Ao mesmo Padre antes que

desta Ilha fosse pera aquella, tinha sucedido também outro caso em que Deus se mostrou maravilhoso,

tomando por instrumento ao seu servo; em hum valle de muitas fazendas, e ortas, que dista desta cidade obra

de legoa e meã, eraõ os moradores molestados continuamente dos demonios, que ora lhes queimavaõ as

casas, ora os apedrejavaõ, e faziaõ outras vexaçoes semelhantes; pretenderaõ outros sacerdotes remedear isto

ajudandose dos meos que a Igreja ordena pera isso, mas naõ foy Deos servido que saíssem com seu intento.

Chamaõ o Padre, pedemlhe que acuda a esta perseguicaõ diabolica; aparelhase pera isso, valese de oração e

dos santos exorcismos, anda de casa em casa lançando agoa benta, e invocando o nome de Iesv [Jesus] todo

poderoso; foi cousa maravilhosa, e que deu a todos grande motivo de louvar a Deos o que se seguio, porque

assy fugirão os demônios daquellas partes desdaquella hora, que nunca mais os sentiraõ nellas”. Idem, pp.

457-8. 116

(...). A outra obra maravilhosa que Deos fez pollo mesmo Padre naquella ilha foy que hum homem depois de

buscar todos os remédios possiveis pera atalhar ao mal de alporcas que padecia hum filho seu, sem lhe

aproveitarem nada, antes parece que cada vez cresciaõ mais, acudiu ao Padre por ultimo remédio; elle o

consolou, e exortou a que tivesse grande fee e confiança em Deos e depois de fazer oraçaõ untou o menino

com oleo da lâmpada que ardia diante do Santíssimo Sacramento; isto fez três dias arreios e no cabo delles

ficou taõ saõ como se nunca tivera aquelle mal, de que todos se maravilharaõ muito, e engrandeceraõ o poder

de Deos e a vertude que dera ao seu servo. (...) Idem, p. 457.

Page 60: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

60

vida de Barreira foi marcada por quase 50 anos de apostolado, a maior parte na África.

Passado mais de meio século do falecimento dele, o comerciante cristão Francisco Coelho

bosquejou um milagre que acontecera com o “santo velho”, que teria feito uma imagem do

Menino Jesus chorar diante do paganismo que vivia aquela gente.117

O padre Baltazar Barreira, apesar de seu longo apostolado nas terras africanas, deu

apoio aberto e decisivo ao tráfico negreiro. Esse fato certamente dificultou a construção de

uma hagiografia e a possibilidade da indicação do seu nome para abertura de processo de

beatificação, como ocorreu com os padres José de Anchieta no Brasil e Francisco Xavier na

China e na Índia.118

Os jesuítas da Guiné Portuguesa, ao que parece, tentaram fazer o mesmo que

ocorreu com os padres Francisco Xavier no Oriente e José de Anchieta, que estava do outro

lado do Atlântico, na América Portuguesa. Falecido em 1597, teve seus ossos exumados e

trasladados da capitania do Espírito Santo para Salvador em 1609. Alguns decênios depois,

seu culto foi autorizado por um breve do Papa Urbano VIII. Esforço semelhante foi feito para

reconhecer os feitos sobrenaturais do irmão jesuíta Antonio Fernandes que faleceu no início

do século XVI. Outros padres franciscanos, martirizados pelos índios tupinambás, tornaram-

se relíquias, bem como os instrumentos do martírio deles: paus e tacape.119

No Oriente, o culto a Francisco Xavier também não tardou. Apesar de ter tido

morte natural em 1552, no ano seguinte, suas relíquias corpóreas já eram extraídas,

distribuídas e devocionadas. Em 1553, foi extraído um pedaço de carne da coxa direita de

Xavier. Em 1554, uma parte do dedo do pé dele foi arrancada pela devota Condessa de

Villahermosa e transportada em procissão em Goa nos finais do séc. XVI. Em 1556, havia

um relicário com o seu cabelo no Colégio de São Paulo de Goa. Em 1614, o braço direito,

com o qual baptizava, foi separado, a pedido do Padre Geral da Companhia de Jesus, Cláudio

117

“No meyo deste esquecimento havia obra de outenta annos, que morando nesta ilha, de padres da Companhia

de Jesus foy a conversão de tanto pagaismo dous religiosos (ao superior chamavao Padre Baltasar Barreyra)

os quaes aportarão, depois de algumas navegacoins que fizeram pellos mais rios, em este rio da Serra Lioa,

aonde começarão a fazer tão grande fruito, que por elle se podia diser, quer era conforme o seu desejo, pois

não hiao a parte aonde não convetessem aldeas inteiras, bauptizandosse todos. Levados todos deste fervor

quis o dito padre com seu companheiro passar á terra dos Sousos, em a qual viagem, contavão os negros que

o acompanhavão, que em o caminho antes e chegarem aonde hiao, lhe chorou o Menino Jesus que levava, o

que o venerável padre atribuhio o ver este Senhor o pouco que aquelle pagaismo era lembrado dos christãos;

Francisco de Lemos COELHO, Duas Descrições Seiscentistas da Guiné [1684]. Manuscritos Inéditos

publicados com Introdução e Anotações Históricas pelo Acadêmico de Número Damião Peres. Lisboa:

Academia Portuguesa de História, 1953, p. 238. 118

Ver Luis Felipe ALENCASTRO, Op. Cit., p. 170. 119

Ver Renato CYMBALISTA, Op. Cit., pp. 34-37.

Page 61: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

61

Acquaviva.120 Todavia, a distribuição de relíquias corpóreas e de contacto de Francisco

Xavier iniciou-se nos anos que antecederam a sua inscrição no rol dos santos. Após rápido

processo de beatificação, foi canonizado pelo papa Gregório XV em 1622, juntamente com

outros santos de semelhante envergadura e fama: Inácio de Loyola (fundador da Companhia

de Jesus), Teresa de Ávila, Felipe Néri (apóstolo de Roma) e Isidoro (patrono de Madri). 121

Penso que os missionários da Guiné estavam influenciados, também, pela

publicação do “Tratado da vida e Martírio dos cinco mártires de Marrocos enviados per São

Francisco”. A obra narra o martírio dos cinco frades italianos, discípulos de São Francisco,

que padeceram no Marrocos, pelas mãos do rei Miramolim, citados anteriormente. Esse

livreto foi amplamente divulgado pelo zeloso cardeal D. Henrique, que também se tornara

Inquisidor-Geral. Quando foi designado prior da “Congregação dos Cónegos Regulares de

Santa Cruz”, em 1556, a instituição estava em crise. Para revitalizar o funcionamento do

mosteiro de Coimbra e catequizar a massa da população, ele promoveu o culto às relíquias

dos mártires do Marrocos, através do livrinho que mandou traduzir, imprimir e publicar em

fevereiro de 1568.122

* * *

Veremos, a seguir, que a Missão na Guiné, imbuída do espírito tridentino de

catequizar os povos através da devoção dos santos e das relíquias sagradas, encontrou nos

povos mandingas uma de suas principais dificuldades para conversão porque os códigos

culturais eram semelhantes.

1.5. A redução da alteridade por meio da linguagem religiosa

No encontro entre povos dantes desconhecidos, no início da Europa Moderna, os

europeus conceituaram, o “outro” através do código religioso: a religião do mundo clássico

era o referencial privilegiado para compreender as outras religiões. Entre os indígenas

americanos, o paganismo era o mal a ser combatido com a catequese. Entre os africanos, a

catequese e a escravização seriam as formas de tirá-los do pecado e do paganismo no qual

viviam.123

120

Maria Cristina OSWALD, São Francisco Xavier no Oriente – Aspectos de devoção e iconografia. São

Francisco Xavier: nos 500 anos do nascimento de São Francisco Xavier: da Europa para o mundo

1506-2006. Porto: Centro Interuniversitário de História da Espiritualidade, 2007, pp. 125-6. 121

Luis Felipe ALENCASTRO, Op. Cit., p. 409 (nota 116). 122 João Carlos G. SERAFIM, Op. Cit., p.168 e 171. 123

Cristina POMPA, Op. Cit., p. p. 51-2.

Page 62: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

62

Nos termos da teologia projetada nas leituras da religião dos nativos, a fé deles era

falsa, portanto, pagã, fruto da manipulação diabólica. O diabo corrompia a alma dos

nativos.124

O Demônio da mentalidade medieval européia tornou-se o grande inimigo a ser

combatido nos territórios “descobertos”. Ele dificultava o trabalho dos missionários, pois

estava em toda a parte. O diabo tentara afundar o navio com as relíquias, incendiara casas,

ajudara os bijagós nas guerras contra a população continental,125 provocara conflitos entre os

nativos e os portugueses,126 entrava na Igreja, fazia pessoas enfermas e outras malignidades.127

Inclusive foi acusado pela incorruptibilidade do cadáver de uma mulher: habitara os corpos

dos nativos

Tem o demonio nestas partes muitos ministros seus que com feitiços, e beberagens

insinadas por elle acabã quanto quer. Chamarãme pera hum mancebo, que tinhã por

endemoninhado, e os sinais erã disso, porque nem nomear queria o santissimo nome de

Jesu, nem o da Virge[m] sua may, ne[m] beijar as image[n]s, ne[m] consentio que lhe

deitasse[m] relíquias, e outras cousas santas ao pescoço. Fizlhe os exorcismos (...). O

padre Barreira contou também que a parede da Igreja de Cacheu caiu. Quando foram

fazer outro alicerce para reerguê-la, encontraram o corpo de uma mulher falecida há 14

meses, cujo corpo e mortalha estavam incorruptos. Levantou informações acerca da vida

124

Idem. 125

“Falam com os demônios todas as vezes que querem, principalmente quando hao-de ir fazer guerra, e os

invocam, e da maneira que lhes parecem assim se contrafazem. E untando-se com almagre e gesso, que há

muito naquelas ilhas, e com muitas penas de aves metidas entre os cabelos, que os trazem trançados, e com

rabos de cavalos dependurados ao pescoço, botados por detrás das costas, com muitos cascáveis, vão

parecendo os mesmos demônios, e dessa maneira vão à guerra; no mar pelejam com todos, mas tanto que

tomam terra não há briga”. André ALMADA, Op. Cit., p. 317. 126

Um escravo Mandinga fugiu da casa de um português e passou quinze dias escondido no mato, mas depois

apareceu, segundo o padre, incitado pelo demônio. Chegando à povoação onde moravam os brancos, às dez

horas da manhã, começou a “despedir delle frechas ervadas contra as pessoas que via diante de sy”. Fugiram

todos para não serem mortos. “Vendo o menistro de Satanás que cõ as frechas não pudera conseguir seu

intento, lança fogo sobre hua casa de hum português casado, que por ser de palha e não aver quem impidisse

o incêndio (...) e della satiou o fogo nas casas dos portuguezes que disse, e sem lhe poderem valler, as

abrasou e consumio com toda a fazenda que nellas achou, [no valor de 40 escravos].” “Carta Ânua da Missão

de Cabo Verde do Ano de 1610 até Julho de 1611,” 17/07/1611, M.M.A., IV, p. 441-2. 127

Após o batismo do D. Manuel, rei vizinho do de Serra Leoa, o demônio se vingou: “hu[m] idolo no lugar por

onde o Padre e outros cristãos yaõ á Igreja, ornando o, e conçertando o ao seu modo e fazendolhe seus

crãmenes, que assi[m] chamã as cerimonias cõ[m] que o adorã[o], e lhe pedem o que desejaõ. Passando por

aly o Capitao dos portugueses o dia seguinte, e vendo o simulacro de Satanás, maravilhasse primeiro do

atrevimento do gentio, que o pôs aly, e depois aceso cõ[m] zelo da honra de Deos arremete a elle cõ[m] o

bastão que levava nas mãos, e depois de o fazer em pedaços, nã[o] se quis yr dali, sem que o lugar ficasse

limpo, e sem rasto ou sinal da abominação que antes aly estava. Mas o diabo, pera que os gentios creesem

que aquela injuria feita a seus idolos nã[o] ficava sem catiguo, fez, permitindolho Deos, que se achasse loguo

mal o Capitão; perturbãse os cristãos, triunfaõ os gentios, faz dõ Miguel grande sentimento pólo Padrinho,

acode loguo a sua casa cõ elRey, vão chamar o Padre que já estava recolhido, por ser alta noite, dizemlhe que

o capitão está morrendo; consola o Padre, dizlhe que aquilo hé enveja do diabo, declaralhe que nã podia fazer

mais mal que o que Deos lhe permitisse, (...). O padre o confessou, “depois de fazer cõ[m] elle o officio de

medico spiritual e o encommendar a Deos, juntamente se acabou hua grande tempestade que se tinha

levantado de agoa e trovoes, e a que o enfermo padeçia, ficando saõ como antes, cõ[m] grande admiracao de

todos os christaõs, e confusão dos gentios”. “Carta Ânua do Padre Baltasar Barreira ao Provincial de

Portugal”, M.M.A., IV, 01/01/1610, pp. 381-2 e 388-9.

Page 63: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

63

pregressa da mesma. Soube que, ela e “outras negras daquella povoaçaõ, que tinhã o

mesmo trato cõ o demonio e vivia como ella viveo, mais gentilica que cristãme[n]te.

Acreditaram que a terra não consumia o seu corpo porque morreu excomungada ou

porque “o diabo morou e[m] sua alma, e a possuyo na vida(...)”. Após a morte, Deus,

“por seus secretos juizos, acompanhou, e possuyo o corpo, e o preservou da corrupção

co[m] a mortalha, cordaõ e tudo o mais que tinha sobre si.”. O corpo foi retirado e

mudado para outra parte da igreja, enquanto aguardavam uma posição do visitador da

Companhia.128

O Demônio manifestava-se, principalmente, através dos inimigos do projeto

missionário: nos religiosos mandingas, chamados de jambacouses, marabus, bexerins,

cacizes129, ressaltados nas epístolas como “feiticeiros” e enganadores. Eram os

intermediadores entre o diabo e a alma dos africanos, que precisavam ser destruídos.

Com as pregações, doutrinas, confissões e praticas [e]spirituais se vão desarraigando

desta terra polla bondade de Deos as muitas e muy grandes superstições que nella há, o

qual tanto hé mais de estimar, quanto mais cree nelas; todo genero de doenças e casos

desastrados que sucedem a alguã pessoa, atribuem a quem lhe tem ódio, e o tem por

effeito de feitiços, e se o mal continua affirmaõ que seu enemigo come o enfermo. Aos

mestres desta arte diabólica chamaõ Jabacouces, e porque vivem della persuadem ao

enfermo quando os chama pera o curar que alguã o come, e que elles sabem aonde lhe

tem escondida a alma, pedindolhe dinheiro por que lha vaõ buscar e trazer; fingem depois

que a achaõ debaixo de algum penedo, ou em outra parte e que lha trazem em hum pucaro

de agoa daõ a beber, e ora seja polla fee que nisto tem, ou porque o diabo lhe aplica

algum remédio por meo daquella agoa, acontece muitas vezes que saraõ os enfermos,

como tendo sabido em confissão, e fora della.130

Vizinho ao porto de Serra Leoa, habitava o rei de Farma. Barreira planejava

convencê-lo a aceitar também o batismo. No entanto, o soberano recusou a missionação dos

padres católicos e converteu-se ao Islã, pois foi persuadido pelo “ministro de Satanás”, o

bexerim:

(...) No tempo e[m] que Deos o tinha disposto desta maneira pera reçeber nossa sancta

fee, veo ao seu Reyno hu[m] ministro de Satanás a que os Mouros de Berberia chama[m]

Casizes, e os de Guine Bexerins. Este tratou com cõ[m] elle, e tais cousas lhe pregou da

maldita seyta de Mafoma, que o rendeo, e fez seu discípulo, crendo e pondo por obra tudo

o que ensinava. Foy tã[o] estreita esta amizade, que nem o Rey podia viver sem ter a par

128

Carta Ânua do Padre Baltasar Barreira ao Provincial de Portugal. 01/01/1610, M.M.A., IV, pp. 381-2. 129

Caciz vem do árabe: qasis. O termo é usado entre os muçulmanos para designar o sacerdote. Bexerim vem

também do árabe: mabacharim. O termo também é usado para sacerdote religioso predicador do Islã.

(Agradeço a Maged Tallat Mohammed Ahmed El Gebaly, egípcio muçulmano, doutorando do Departamento

de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa FFLCH/USP, pelo esclarecimento lingüístico).

O termo “caciz” também consta no Novo Dicionário Aurélio Eletrônico – Século XXI. Rio de Janeiro:

Nova Fronteira, 1999. 130

“Carta Ânua da Missao de Cabo Verde do ano de 1610 até julho de 1611”, 17/07/1611, M.M.A., IV, pp. 463-

4.

Page 64: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

64

de si ao Bexerim, nem o Bexerim perdia a ocasião de tirar delRey tudo quanto queria,

porque nada lhe negava(...)131

Barreira, dizia que na terra dos mandingas, todos tinham a mesma língua, lei e

costumes, mas viviam de “enganos”. Havia mesquitas e escolas corânicas pelo sertão, cuja

assistência religiosa era realizada pelos casizes, que produziam nôminas de metal e couro

com versos do Alcorão. Ao tomar conhecimento, o padre reprovava a crença no Islã, pois a

considerava um engano, e que as nôminas com versos do Alcorão eram mentiras:

(...) Segue[m] a ceita de Mafoma como os mais que atras ficaõ, e tem misquitas e escolas

de leer e escrever, e muytos casizes, que levão esta peste a outros Reynos da banda do

Sul, enganando a gente com nominas que fazem de metal e de coyro, muyto bem

lavradas, em que metem escritos cheos de mentiras, afirmando que tendo consigo

estas nominas nem a guerra nem a paz [h]averá cousa que lhes faça mal.132

As nôminas e os casizes eram considerados falsos, não porque eram ineficazes. Os

padres sabiam que produziam o efeito desejado. Entretanto, tratavam como uma forma de

distorção diabólica do mundo natural.

O pensamento expresso por Baltazar Barreira em relação às nôminas dos

mandingas revelava a “linguagem comum” usada pelos missionários para dar conta da nova

realidade, que opunha verdadeiro/falso, Deus/Diabo, cristão/idólatra, padres/casizes.133

Os jabacouses ou jambacosses134, termo usado no Cabo Verde e também na Guiné,

eram os homens que tinham a responsabilidade de julgar os casos de feitiçarias ocorridos na

comunidade, curavam aos enfermos, faziam as “cerimônias gentílicas”, adivinhações,

131

“Carta Ânua do Padre Baltasar Barreira ao Provincial de Portugal”, 01/01/1610, M.M.A., IV, p. 370. 132

“Carta do Padre Baltasar Barreira ao Padre João Álvares,” 01/08/1606, M.M.A., IV, p. 165-166. (Grifos

meus). 133

“(...) E eu experimentei ser assi[m] nas praticas que tive cõ os principais do governo, porque claramente

confessavã[m], que tudo que seus Bexerins ensinavã[m] era ley de Mafoma, era mentira, e que a nossa ley

era a verdadeira, ajuntando a isto que aynda que no exterior se aviã como Mouros, no interior erã cristaõs, e

que se nã se declaravã, e pedia o sancto baptismo era porque viviã das rendas que el Rey lhes dava,

mostrando grande desejo de que elRey se baptizasse, pera elles fazere[m] o mesmo.” “Carta Ânua do Padre

Baltasar Barreira Ao Provincial De Portugal”, 01/01/1610, M.M.A., IV, p. 376. 134

Antonio CARREIRA esclarece o significado mais preciso do termo: “Genéricamente, todos os indivíduos que

exercem qualquer função, ampla ou reduzida, que envolva a realização de ritos mágicos, tomam a designação

crioula de Jambacosse ou Djambacós (os homens), Jambacá ou Djambacá (as mulheres) ou Baloubeiro

(Balôbeiro), indistintamente aplicável a homens e a mulheres.” Essas designações são usadas para identificar

“mágicos e adivinhos em geral, ou sejam, os evocadores e invocadores de espíritos de antepassados, de

deuses e de génios (os ritualistas e sacerdotes dos Irãs [chinas]); os adivinhos, botadores ou deitadores de

sorte, dizedores ou profetizadores do futuro, curandeiros, bruxos, confeccionadores de amuletos (ou guardas

na expressão crioula) e de poções que têm a finalidade de defender o indivíduo do mau-olhado, da acção

invisível dos inimigos vivos, conhecidos e ignorados, e dos animais que incarnam a alma de inimigos já

falecidos também e tamem de feiticeiros; e os curadores de males físicos (os mezinheiros ou homens-

medicina). Op. cit., pp. 514-15. (Grifos do autor).

Page 65: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

65

convenciam os negros já batizados a retornarem aos seus costumes e detinham poderes

políticos, eles eram os responsáveis pelas práticas tradicionais locais, não muçulmanas.

Os padres, inclusive, tentaram, em vão, converter esses sacerdotes ao cristianismo

para refrear a ação deles na comunidade em torno das crenças tradicionais: “(...) a gente preta

cristã, pela muita comunicação que tem com os gentios, e pouca doutrina, tornao facilmente a

alguns ritos alheos de nossa santa fee, espeçialmente os que antes do bapstismo eram

Jabacouçes, que assi[m] chama aos feiticeiros que adevinhã, e curaõ cõ[m] remédios, e cõ[m]

palavras aprendidas na escola de Satanás. E por esta causa eram muy desejada aly a

Companhia [de Jesus]”.135

Cabe ressaltar que essa era uma região de encontros culturais, mesmo antes da

chegada dos portugueses, com a presença de mercadores muçulmanos entre populações

várias (papéis, balantas, banhuns, bijagós, sereres, jalofos). Existiam três sistemas em

contato: crenças tradicionais (antepassados – chinas, espíritos), Islã, catolicismo

A necessidade que os missionários tinham de dividir as esferas do divino e do

demoníaco não pertencia à cultura dos africanos. Os padres transferiram da Europa para a

América, Ásia e África “os dilemas religiosos de uma época em que a necessidade de separar

o santo do diabólico era a verdadeira obsessão dos inquisidores e teólogos.”136

a) A tradução entre padres e bexerins

Como na Europa, os clérigos foram procurados na Guiné, Cabo Verde e Serra

Leoa para administrar remédios contra os demônios, curar doenças e intermediar relações

comerciais.

O padre Manoel Álvares, em uma das circunstâncias em que o diabo estava

presente, aconselhou que se colocasse um relicário no pescoço da sobrinha do rei de Fatema,

uma gentia possuída pelo demônio, e “logo a deixou o espírito maligno.” Para outra gentia

que levou uma pancada na cabeça do diabo e pediu uma mezinha contra este, o religioso

mandou rezar o “Santíssimo nome de Jesus e faça o sinal da +”. O sinal da cruz também foi

indicado como remédio para o filho de uma “molher pobre” que estava muito mal de uma

doença que lhe suprimia a fala e tomava várias partes do corpo. O padre mandou que a mãe

fizesse o sinal da cruz sobre as partes mais atingidas, e o menino foi curado. 137

135

“Carta Ânua do Padre Baltasar Barreira Ao Provincial de Portugal”, 01/01/1610, M.M.A., IV, p. 378. 136

Cristina POMPA, Op. Cit., p. 52. 137

“Carta do Padre Sebastião Gomes ao Provincial de Portugal”, outubro de 1613, M.M.A., IV, p. 523.

Page 66: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

66

D. Pedro, autoridade subordinada do rei de Serra Leoa, estava enfermo e sarou

“por meo do santo Evangelho que o padre lhe rezou”. Tinha um amigo doente, Bessé

(sucessor do reino de Fatema); falou ao padre que o enfermo não sarava porque não recebeu o

“lavatorio do santo bautismo”. Foram buscar o homem. O padre o exortou a confiar no

“verdadeiro Deus”, e esquecesse os ídolos, porque estes nada podiam. O resultado “foy cousa

maravilhosa o que a divina Bondade obrou nelle, porque levando o e[m] braços á igreja

depois de catequizado, tudo foy hu[m] receber polo santo baptismo a saude dalma, e a do

corpo.” Deram-lhe o nome cristão de Dõ Manuel. 138

O padre Barreira disse que um bexerim, que desejava converter D. Manuel ao Islã,

assistiu ao batismo deste. O sacerdote mandinga ficou muito impressionado com o poder de

Deus em curar o enfermo. Então logo se entregou ao padre para fazê-lo cristão também,

devido ao “conhecimento da verdade que os cristaõs professaõ, da falsidade da seyta e[m]

que vivia, que falando cõ[m] o Padre e chamandolhe muitas vezes Bexerim de Deus”.139

Na disputa pelos fiéis, os padres passaram a concorrer com os bexerins. E tiveram

que desempenhar as mesmas funções deles. Por isso, foram chamados pelos negros, na

“tradução religiosa”, por bexerim de Deus ou “bejerines de los Christianos”, conforme

registrou um capuchinho, anos mais tarde.

O capuchinho espanhol, Frei Gaspar de Sevilha, esteve na missão em meados do

século XVII. Ele observou que a população operava na epistemologia analógica para

compreender o papel dos padres e bexerins. O frei dizia que, os “gentios”, ao ver os

missionários cristãos se interessavam pela fé da mesma forma quando encontravam os

bexerins: “los gentiles son dociles, y confessan que es la mejor nuestra ley sancta, y se

alegran de vernos, y se van trás nosotros, y nos llaman bejerines de los Christianos.”140

Quando o comerciante Francisco Coelho esteve na Costa de Guiné entre 1646 e

1669, notou a forte presença dos bexerins próximo ao rio Gâmbia, e ao observar o papel

religioso que desempenhavam junto aos negros, operou analogicamente como num “jogo de

espelhos”. Comparou, como fizera André Almada em 1595141, os letrados bexerins com os

“doutores” e os “bispos” católicos, assim:

(...) há entre elles huma casta, ou religião a que chamão bexerins, que são os letrados da

Ley, e todos lêm, e escrevem a lingoa arabiga, se bem tambem com erros, prezão-se de

138

“Carta Ânua do Padre Baltasar Barreira Ao Provincial de Portugal”, 01/01/1610, M.M.A., IV, pp. 394-5. 139

Idem. 140

“Relação da Missão da Costa da Guine”, 05/02/1647, M.M.A., V, p. 462. 141

André ALMADA, Idem, p. 275.

Page 67: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

67

grandes adevinhadores, e feiticeiros, e os negros hão grande medo delles, deste há alguns

de mais alta dignidade, como entre nós os doutores, ou bispos, a que chamão fodigués.142

Da mesma forma que os nativos (falupos, banhus, beafares, papeis e luso-

brasileiros) se aproximavam dos mandingas e predicadores do Islã com interesse na religião e

comércio, aproximaram-se também dos europeus cristãos com o mesmo intuito.

O padre Baltazar Barreira, incomodou-se com o papel comercial desempenhado

pelos mandingas no comércio de escravos, pois nas guerras vendiam cativos “pagãos”, como

os arriatas e falupos, aos muçulmanos do Norte da África para alimentar o trafico

transaariano.

Tem esses casizes quase en todo os Reinos huã ou mais aldeias apartadas, en que vive[m]

com muitos privilegios que os Portugueses não te[m]. Saõ muy acatados de todos e consultados nas

cousas da guerra e da paz, tratam em escravos que vendem aos Mouros da Berberia e aos Portugueses

destas partes; e com este titolo entrão aonde quere[m] e sameaõ suas falsidades; e posto que as outras

nações que estão para o Sul as não seguem en tudo, hé todavia grande impedimento o que lhes

ensinaõ para receber nossa Santa Fee.143

Observe-se que o jesuíta reclamava dos casizes como detentores de privilégios

comerciais em áreas que os portugueses não tinham; pois os religiosos mandingas estavam

inseridos nas estruturas políticas e econômicas das aldeias e gozavam, como chefes religiosos

de permissão e de segurança para circular por todo o sertão.

Os clérigos diocesanos e das missões também assumiam o papel de

intermediadores comerciais, fosse em nome da Coroa ou em proveito próprio. Eram acusados

de cuidar mais de negócios do que da vida religiosa. O Padre Baltasar Barreira, ao iniciar

Missão, disse que o rei de Tora, apenas aceitava ser batizado por ele, pois os outros

sacerdotes que estiveram em suas terras não atuaram como religiosos doutrinando e não

celebraram missa, mas “tratavam em escravos e nas mais coisas, como os outros

portugueses”.144

Em 1607, o clérigo pediu ao Provincial da Companhia, “dois sacerdotes de vida

exemplar” para ter mais tempo de cuidar da vida espiritual da população e poder atuar como

Vigário Geral, independente daquele do Bispado de Cabo Verde, que tinha jurisdição secular

e eclesiástica na Guiné, e pouco atenção dava ao continente. No entanto, o próprio padre

Baltazar participava do tráfico:

142

Francisco de Lemos COELHO, Duas Descrições Seiscentistas da Guiné, Op. Cit., p. 25. 143

“Carta do Padre Baltasar Barreira ao Padre João Álvares”, 01/08/1606, M.M.A., IV, p. 165-6. (Grifos meus) 144

“Carta do Padre Baltasar Barreira ao Provincial da Companhia de Jesus”, 20/02/1606, M.M.A, IV, p. 108.

Page 68: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

68

A esperiençia [sic] me te[m] mostrado que ne[m] na Ilha ne[m] ca podemos viver se[m]

escravos. E assim sou forçado co[m]prar algu[n]s, mas sou de pareçer, se V.R. o ouver

assi[m] por be[m], que aos que co[m]prarmos limitemos algu[n]s años e[m] que nos

sirvão, e lhe declaremos, que se naquelles años nos servire[m] be[m], ou fazendo o que

não deve[m], os venderemos. 145

O cônego Manoel Severim de Faria, em 1622, preocupado com a evangelização

na Guiné, apontou dois motivos principais do fracasso na Missão: a alta mortandade dos

religiosos provocada pelo clima da terra; e os padres que se envolviam com o comércio de

escravos. Ao invés de evangelizar, eles buscavam “remédio temporal para o seu próprio bem,

que não o espiritual da gente”, ou seja, “só se ocupa[va]m de comprar e vender.” Severim de

Faria, denunciava que os clérigos enviados para a Guiné eram degredados do Reino, para

serem corrigidos de suas culpas no ultramar. Porem, lá, não deixavam seu vícios e maus

costumes, antes, escandalizavam com falta de virtude e doutrina, e o desejo de tornarem-se

logo ricos e retornarem para Portugal.146

A associação entre empresa colonial e os batismos realizados pelos padres ficou

explícita numa carta que o rei de Serra Leoa enviou ao rei de Portugal. D. Fellipe de Leão

agradeceu pelo batismo e “verdade da ley christã”, que o livrou da crença nos “ídolos”, e o

transformou de “filho do diabo” em “filho de Deos”, e ressaltou o trabalho do padre Baltasar

Barreira. Em seguida, anunciou o seu interesse comercial: “Este meu Reino hé mui grande, a

terra muito sadia e fertil; desejo que venhão a ela muitos vassalos de V. Magestade e que a

cultivem e se sirvão della e das cousas que nella há, e que para viverem seguros fação

fortaleza na Barra da Serra”.147

Os documentos referidos resumem as implicações políticas e econômicas na

“conversão” dos reis e estabelecimento da Missão em suas “aldeias”, revelando o quanto os

jesuítas estavam envolvidos na empresa colonial, apesar da proibição de Roma.

b) A Tradução de ritos, cerimônias e interesses econômicos.

A observação do processo de missionação na Guiné mostrou que não houve um

“projeto” de catequese pensado como aconteceu na América Portuguesa. Os batismos sem

catequese mostraram-se inúteis. A Bula papal de 1537 regulava que o ritual do batismo

deveria ser menos simplista. Porém, a realidade da Missão, que contava com poucos padres,

145

“Carta do Padre Baltasar ao Provincial de Portugal”, M.M.A, IV, 05/03/1607, pp. 227-8. 146

“Apontamentos de Manuel Severim de Faria sobre a Fundação de Seminários para a Guine”, 1622, M.M.A.,

IV, pp. 671-2. 147

“Carta do Rei da Serra Leoa a El-Rei de Portugal”, 25/02/1606, M.M.A., IV, pp. 126-7.

Page 69: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

69

procurava batizar os reis para atrair os súditos, exigindo que tivessem apenas uma esposa,

construir capelas em suas terras para doutrinar a população e estabelecer uma relação

comercial para mantê-los na fé cristã.

A proposta dos aldeamentos indígenas tinha o objetivo de “civilizar” os nativos e

catequizá-los. A instituição das aldeias para educar e converter foi restrito ao Brasil. Durante

o debate em torno do proveito da evangelização nas aldeias instaladas no litoral, o padre

Jacob Roland posicionou-se contra os aldeamentos, pois dizia que “o mesmo não costuma

acontecer na Índia, na China, México, no Peru, no Canadá, ou outros lugares das Índias. Mas

no Brasil as circunstâncias impõem que isso aconteça”.148 O padre não cita a Guiné, porque na

época do debate (1667), aquela Missão já era tida como um fracasso.

Na colônia da América Portuguesa, os jesuítas pensaram em um modelo

catequético que privilegiava a confissão ao invés do batismo, pois este último se mostrava

inútil aos índios, que retornavam sempre aos seus antigos costumes.149 Enquanto a confissão

possibilitava controlar os desvios religiosos e dominar a vida social dos sujeitos.

As normas pós-conciliares tomadas em relação ao sacramento da confissão

vetaram as confissões públicas e coletivas. A partir do Concílio, o penitente deveria contar

seus pecados secretamente apenas ao confessor dentro do confessionário, ao menos uma vez

por ano. Na Guiné, os clérigos não conseguiam atender as tais normas, por vários fatores:

falta de contingente missionário, poucas igrejas e conhecimento pouco aprofundado da

língua.150

Os batismos dos chefes locais caracterizam o quadro ideal para observar que a

aceitação do batismo não implicava em conversão. Os soberanos da Guiné compararam os

padres com os bexerins, associavam o rito do sacramento do batismo ao seu poder de cura e

também aos seus interesses comerciais com os portugueses. Os negros da Guiné também

148

Cristina POMPA, Op. Cit., pp. 77-9. 149

Idem, pp. 57-81. A autora mostrou em sua pesquisa que as diretrizes da missão no Brasil foram determinadas

totalmente pelo pensamento jesuítico O milenarismo franciscano, cujo plano era reconstruir o Reino de deus

na terra, no fim dos tempos, foi repensando mediante os conflitos com os colonos e jesuítas e da resistência

dos indígenas à conversão. Jose de Acosta, em fins do século XVI, pensou e reformulou o projeto

missionário para o Novo Mundo. A realidade da colônia e os ditames tridentinos, levaram-no a propor a

evangelização como projeto de civilização e conquista religiosa. Ao analisar o resultado da evangelização

após cem anos de ação nas terras americanas, Acosta repensou a prática missionária, a partir da Contra-

Reforma. A catequese e a missão foram alvos do debate teológico em torno do projeto missionário para os

índios. “O conteúdo moderno do conceito de missão nasceu da crise do modelo de conversão baseado no

sacramento do batismo administrado por predicadores fervorosos”. O batismo deixou de ser o principal eixo

na catequese, em detrimento da confissão. 150

Durante uma missa realizada em Serra Leoa, o padre Barreira, ao enfatizar o fervor religioso de um rei,

comentou acerca da confissão: “e quando na confissão, que dizíamos no cabo [porto], batíamos no peito,

fazia ele o mesmo.” “Carta do Padre Baltasar Barreira ao Provincial da Companhia de Jesus”, 20/02/1605,

M.M.A., IV, p. 99.

Page 70: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

70

fizeram uso da “linguagem comum” na “confusão de horizontes”.151 Passaram a fazer uma

sobreposição de papéis, buscando nos padres os mesmos atributos que tinham os bexerins e

jambacosses.

Em 1606, no porto de Serra Leoa, o padre Baltazar Barreira batizou alguns

lançados e seus filhos. O rei assistiu as cerimônias e interessou-se pelo batismo. O padre

disse que somente depois que escolhesse apenas uma esposa para se casar e deixasse as

outras. O soberano escolheu a filha de um rei vizinho que morava no interior, a qual não

aceitou ser catequizada. E teve que ser batizada e casada no mesmo dia, a contragosto do

padre, que somente realizou os sacramentos, instantaneamente, mediante intervenção de

outros portugueses: “No princípio não me deixei dobrar, mas ajuntando-se os portugueses me

representaram tantos inconvenientes que se podiam seguir se os não baptizasse, que julguei

ser vontade de Deus”. Recebeu o nome cristão de D. Filipe Leão.152 No mesmo dia foram

batizados seus filhos e sua irmã. Em 1607, o referido padre escreveu ao provincial da ordem

em Portugal uma carta edificante, na qual narrava os novos sucessos da missão, como os

batismos de mais de sessenta pessoas em Serra Leoa.153

O rei de Tora, foi batizado depois do padre Barreira ter impedido uma guerra entre

ele e outro rei vizinho.154 O poderoso rei de Fatema que recebeu o nome de Pedralves Pereira,

também aceitou o batismo, mediante o esforço do padre, que enfrentou o demônio que

tentava dificultar a cerimônia, fazendo com que um rei que estava em marcha para atacá-lo

dissuadisse de sua campanha ao ver o sacerdote.155

Na “Relação” de 1610, constam os reis que aceitaram o batismo. Sõguo, o mais

poderoso fidalgo daquele Reyno, recebeu o sacramento e permitiu construir fortaleza na

costa. Foi batizado com grande festa e recebeu nome de “dõ Bartolomeo” e o seu irmão,

recebeu o nome de D. Sebastião.156 Na ocasião da conversão do rei Mane “Principalissimo e

muy conhecido naquelas partes”, o demônio tentou persuadi-lo, mas foi acudido pelo padre

que o batizou e fez festa. Aceitou o nome de D. André, por ser dia deste santo; e deu seu filho

pra ser batizado. Depois foi a vez de Besse, sucessor do reino de Fatema, que adoeceu. Mas

ao ser batizado na data do natal curou-se para sempre.157

151

Cristina POMPA, Op. Cit., p. 52. 152

“Carta do Padre Baltasar Barreira ao Provincial da Companhia de Jesus”, 20/02/1606, M.M.A., IV, pp. 103-5. 153

“Carta do Padre Baltasar Barreira ao provincial da Companhia de Jesus”, 05/03/1607, M.M.A., IV, pp. 230-1

e 235. 154

“Carta do Padre Baltasar Barreira ao Provincial da Companhia de Jesus”, 20/02/1606, M.M.A., IV, pp. 108-9. 155

“Carta do Padre Baltasar Barreira ao provincial da Companhia de Jesus”, 05/03/1607, M.M.A., IV, pp. 234-5. 156

“Carta Ânua do Padre Baltasar Barreira Ao Provincial de Portugal”, 01/01/1610, M.M.A., IV, p. 390. 157

Idem, p. 392.

Page 71: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

71

No porto de S. João, no reino de Setuaõ, irmão do rei de Serra Leoa, foram

batizados “hum irmão deste fidalgo, hua senhora nobre e rica, que offereceo hua sobrinha que

muito amava, pera que o Padre a fizesse filha de Deos (...) levando de presente dous parentes

seus muy chegados.” No mesmo dia, um “fidalgo principal”, foi picado pela cobra e rejeitou

ser tratado pelos modos tradicionais dos bexerins. Pediu batismo e ganhou o nome de D.

Antonio.

Os reis Guinala, Bisege e Biguba manifestaram também o desejo de receber o

referido sacramento. Eles governavam pequenos reinos da região do Rio Grande. A

localização geográfica fazia com que fossem constantemente vítimas dos ataques, assaltos e

escravizações dos bijagós, pois estavam situados bem em frente das ilhas destes.158 A carta

que Bimalá, o rei de Guinala, enviou a D. Filipe II, explicita suas intenções. Depois de

queixar-se dos constantes assaltos dos bijagós, prometeu fazer-se cristão e que “largaria todas

as erronias chinas que os da minha nação costumavao ter, reduzindo-me á fee de Christo”

(...), desde que o monarca Ibérico o ajudasse a combater seus inimigos.159

O padre Manuel Álvares desconfiou da fé dos reis que pediam o batismo. Ele

percebeu que o interesse dos reis em aceitar o sacramento residia no proveito de receber

ajuda de Portugal em forma de socorro e munição para combater os bijagós. Diante da

conjuntura turbulenta vivida nesse ano, o padre disse ao rei de Portugal e Espanha: “não me

parece acertado baptizar a tres Reis que escrevem a V. Magestade, porque importa yr atente e

devagar, atentandome até vir recado cõ[m] o que Deus tem obrado e vai obrando.”160 Mais

adiante diz que pretende batizar os reis e mais pessoas, porém, depois de catequizá-los para

que não voltem aos erros antigos: “Esperaõ conjunção e que eles vão crescendo no

conhecimento da nossa santa fee, pêra que de gentios não venhaõ a ser hereges. E por isso os

não tem baptizados, posto que delles são bem importunados.”161

Barreira, já havia enfrentado em Serra Leoa mesma situação, pela qual passava o

seu jovem colega jesuíta, que acabara de chegar à Missão. O “Santo Velho” já notara há

algum tempo que o batismo não implicava em conversão ao cristianismo: “(...) a gente preta

158

Francisco COELHO, à época, esteve na região do rio Grande. Diz que os bijagós habitavam o reino antigo dos

beafares e foram conquistados em guerra. Vendo-se atacados constantemente fugiram em canoas para povoar

as ilhas em frente ao Rio Grande. Mesmo nas ilhas, os beafares iam fazer-lhes guerra. Os bijagós passaram a

se defender, de modo que de vencidos se tornaram vencedores. Tiveram várias vitórias e diziam que os

beafares eram suas galinhas. Além de os assaltar e escravizar, e passaram a fazer o mesmo com os pepéis do

rio Cacheu e os jebas. Op. Cit., pp. 42-3. 159

“Carta do rei Bamalá de Guinala a ElRei D. Filipe II”, 01/05/1607, M.M.A., IV, pp. 255-6. 160

“Carta do Padre Manuel Álvares a ElRei D. Filipe II”, 03/05/1607, M.M.A., IV, p. 257. 161

“Rellação de alguas cousas de Guiné e das portas que alli se vão abrindo para novas conversões, tirada das

cartas do P. Manoel Álvares da Cia. de Jesu [sic] e de outras de D. Sebastião Fernandes Cação escrita do Rjo

Grande em mayo de 607 [sic]”, M.M.A., IV, p. 274.

Page 72: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

72

cristã, pela muita comunicação que tem com os gentios, e pouca doutrina, tornao facilmente a

alguns ritos alheos de nossa santa fee(...).”162

Diferentemente do Brasil, onde os jesuítas viam os aldeamentos como a solução

para que os índios se mantivessem constantes na fé, na Guiné, não ocorreram. Os nativos

batizados nas áreas de atuação da Missão, ao retornar para suas atividades e contato com os

demais, abandonavam as “obrigações” cristãs ensinadas pelos padres:

Algu[n]s negros christãos naturaes desta terra, que tornarão a a ella da Ilha do Caboverde,

onde foraõ baptizados, cõ[m] o trato dos gentios vieraõ a tanto esquecimento das

obrigaçoes de nossa santa fee, que tinhaõ chinas, ou consentiaõ que as tivesse[m] seus

escravos, e tratavaõ cõ[m] ellas e lhe encome[n]davaõ suas cousas, como fazem os

gentios (...).163

O padre Baltasar Barreira, observara esse fato desde os primeiros anos de sua

missionação.164 A ação dos padres não se estendia pelo sertão, onde habitava a maioria da

população. As atividades missionárias se restringiam à região costeira, onde foram erguidas

as capelas, e para onde deveriam afluir cristãos para receberem assistência espiritual. O

número diminuto de padres, o batismo em detrimento da confissão, e os braços curtos da

Inquisição no continente, contribuíram para que na Guiné os rudimentos de cristianismo

aprendidos fossem sincretizados com as práticas locais. Esses elementos ofereceram

oportunidade singular para o princípio da “tradução” religiosa.

Um exemplo de apropriação sincrética do cristianismo foi o de um “negro

mancebo Mandinga, por nome Gaspar Vaz”, que foi escravo de alfaiate, em São Pedro,

arquipélago de Cabo Verde, de quem aprendeu a profissão e era também botoeiro. Essa

história foi contada por André Donelha, rico comerciante que o conhecia e o reencontrou

alguns anos depois, no Porto de Cação, rio Gâmbia, onde Gaspar morava em terras de seu tio

Sandeguil e havia se tornado um “tangomao”.

Donelha, a partir de seu referencial de cristão, decepcionou-se ao ver o que

ocorrera com o jovem mandinga que era batizado:

Abraçou-me, dizendo que não podia crer ser eu o que via, e que Deos me levara lá pera

ele me fazer alguns serviços. De que lhe dei os agradecimentos, dizendo que tambem

folgava muito de o ver, pera lhe dar novas de seu senhor e senhora e conhecidos, mas que

me pesava de ver o vestido com o camisão de Mandinga e com nóminas dos seus feitiços

ao pescoço, ao que ele me respondeu: “Eu trago senhor, este trajo porque eu sou sobrinho

do Sandeguil, senhor desta aldea, o qual os tangomanos chamam duque, por ser a segunda

162

“Carta do Padre Baltasar Barreira ao Padre João Álvares.” 01/08/1606, M.M.A., IV, pp. 165-6. 163

“Carta do Padre Baltasar Barreira ao Provincial de Portugal”, 05/03/1607, M.M.A., IV, p. 238. 164

“Carta do Padre Baltasar Barreira ao Padre João Álvares”, 01/08/1606, M.M.A., IV, p. 172.

Page 73: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

73

pessoa do rei. Por morte do Sandeguil, meu tio, [eu] fico herdeiro de todos os seus bens, e

por isso trago os vestidos que Vossa Mercê vê, mas na Lei de Mafamede não creio, mas

antes me aborrece. Na Lei de Jesus Cristo creio, e pera que Vossa Mercê saiba ser

verdade o que digo despio o camisão, ficou em jubao e camisa ao nosso modo, e do

pescoço tirou um rosário de Nossa Senhora dizendo, todos os dias me encomendo a Deos

e à Virgem Nossa Senhora nesse rosário. E se eu não morrer, e vier a herdar a casa de

meu tio, farei pera por em Santiago alguns escravos, e achando embarcação hei-de ir

viver nessa ilha e morrer antre cristãos. 165

Gaspar Vaz foi escravo da família de Bibiana Vaz da França, a famosa tangomã

estudada por P. Havick.166 O episódio do encontro entre ele e o comerciante André Donelha

no porto do rio Cação foi analisado do ponto de vista do comércio afro-atlântico por Carlos

Zeron, que destaca a posição dele como um “tangomao”, indivíduo, que, além de intérprete,

era um dos intermediários ou mediadores do trato comercial na costa da Guiné.167

Gaspar, como muitos de seus contemporâneos, que habitavam a região, vivia entre

os costumes e religião dos muçulmanos, cristãos, e crenças tradicionais.168 Tratava-se de

estratégia de incorporação seletiva de religiões? Ele combinava sincreticamente os símbolos

religiosos devido a sua situação de “intermediário”: dizia que levava escondido por baixo do

camisão um rosário de Nossa Senhora para quem rezava, porque queria morrer cristão. No

entanto, o Islã e as regras locais falavam mais alto. Justificou o uso de camisão e amuletos

muçulmanos porque residia em terra dos mandingas, onde era o herdeiro dos bens e da casa

do seu tio Sandeguil, conforme a regra da tradição matrilinear.169 Era uma apropriação

sincrética do cristianismo, sem abandonar as práticas “pagãs”. O padre Álvares já dizia que

muitos só eram cristãos quando viam os padres. Gaspar Vaz se mostrava cristão apenas à

vista do amigo Donelha, que era cristão e seu parceiro comercial.

Os africanos batizados eram “cristãos por cerimonias” ou “kriston”. Incluía-se

nessa categoria “uma população heterogênea, desde escravos domésticos até profissionais e

165

André DONELHA. Op. Cit., p. 146. 166

P. J. HAVICK, A Dinâmica das relações de gênero e parentesco num contexto comercial: um balanço

comparativo da produção histórica sobre a região da Guiné-Bissau séculos XVII e XIX. Afro-Ásia. UFBA,

n.27. 2002, p. 90. 167

Carlos Alberto ZERON, Pombeiros e Tangomaus, intermediários do tráfico de escravos na África. In: R. M.

LOUREIRO. & GRUZINSKI (coord.). Passar as Fronteiras. Lagos, 1999, pp. 26-7; John THORNTON, A

África e os africanos na formação do mundo atlântico (1400-1800). Trad. Marisa Rocha Mota. Rio de

Janeiro: Elsevier, 2004, p. 117. Este autor evoca a fonte para relativizar o poder dos europeus e africanos no

comércio. 168

André DONELHA afirma que na região da Guiné viviam “Judeos Portugueses e Portugueses cristãos que

andam la lançados, a regatar, e Franceses, mas não consente que haja desputa sobre quais das leis é milhor;

diz que cada um faça seu proveito, e vivam como quiserem na lei que tiverem, e não haja porfia, porque serão

castigados no seu reino. Op. Cit., p. 128. 169

P. J. HAVICK, A Dinâmica das relações de gênero. Op. Cit.

Page 74: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

74

comerciantes livres que tinham se estabelecido em áreas localizadas em torno das cidades

fortificadas, e tinham seu próprio governo independente.170

A pedagogia jesuítica buscava elementos da cultura nativa como “linguagem

comum” para fazer o “outro” compreender a fé católica. O uso do nome “china” para Deus, o

de “corofim” para demônio, e a forma de “doutrinar” os negros revelam o cristianismo como

uma religião plástica, capaz de se adequar aos novos costumes para modificar as alteridades.

Por ocasião de uma festa dada pelo rei de Larego aos padres, foi realizada uma

cerimônia à moda local. Acompanhavam a procissão homens dançando carregando armas,

plantas e ervas. A procissão à moda local, antecedia a missa, celebrada pelo padre:

(...) hu[m] esquadrão de frecheiros cõ[m] seus arcos e coldres, hus cantando, outros

bailando cõ[m] suas capellas de ervas frescas, allegres cõ[m] a victoria e assim chegaraõ

ao Porto de S. Cruz, que he o próprio orago, e toda a noite continuaraõ a festa. E ao dia

seguinte cantou missa o Pe. Gaspar Goncalves Pereira, vesitador deste Porto, á honrada

Virgem Conceição, em gratificação de tam assinalada mercê como foi tirarem ás chinas

suas cerimonias e mortes.171

Outro exemplo de “tradução” de rito dos nativos para reelaborar suas pregações

foi a percepção dos padres de que não havia na concepção religiosa da população a idéia de

um edifício público destinado ao culto religioso. Os islamizados tinham mesquitas, chamadas

pelos padres de “Escola de Satanás”, e “conventos”, ao longo do rio Gâmbia, distante mais de

50 léguas do litoral atlântico. Enquanto que, para o culto dos chinas, o povo necessitava

apenas de um altar onde seriam devotadas as oferendas.

Sendo assim, Barreira apelou para as procissões pelas ruas e celebrações fora das

capelas, já que o povo não adotava o costume de freqüentá-las. As “doutrinas” passaram a ser

realizadas na beira da praia, sempre antecedidas por procissões para que o povo se sentisse

motivado a acompanhar:

Antes de entrarmos na povoação [Joala], passando á vista de hua cruz arvorada na praya,

ajoelheime, e fiz oração a ella, seguindome todos os que acõpanhavã e[m] presença nã

somente dos Mouros, mas tambe[m] de muitos ereges que aly estavã (...) fiz dahy por

diante a doutrina todos os dias ao pee desta cruz, que he o lugar mais frequentado dos

naturais e estrangeiros.

(...) Cantavã primeiro dous mínimos Todo fiel Cristão, e depois continuava eu cõ as

orações, credo, e mandamentos, respondendo grandes e pequenos e[m] alta voz, que por

soare[m] muito, era[m] ouvidos na somente dos que estava e[m] hua grande praya que aly

faz o mar tambe[m] dos navios, e dos mouros de toda a povoacaõ, dos quais accudiã

tantos assi home[n]s como molheres, mininos, e mininas, que igualava, e excedia o

numero dos cristãos, e na quietacaõ nã se differençiavã delles.

170

Idem, p. 87.

Page 75: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

75

Saymos pois hu dominguo á tarde pola rua principal da povoaçaõ,que he muy cumprida e

larga, levando diante a campainha, e depois hu[m] crucifixo de vulto muy devoto, e be[m]

acompanhado de luminárias, e de Portugueses, e outros cristaõs e[m] duas orde[n]s a

modo de procissaõ, respondendo todos á doutrina, que dous mininos yã cantando.

(...) ajoelhamos loguo diante dela [cruz], e entoando os mininos três vezes Senhor Deos

misericórdia, como sempre faziã no cabo da doutrina, repetiã todos o mesmo batendo nos

peitos de modo que moviã a grande piedade, e devoçaõ.172

A cruz posta próxima ao porto, a procissão pelos lugares movimentados, sem

necessidade de igreja, o uso de campainhas, de música, o coro de crianças, crucifixo,

luminárias, as pregações em voz alta e a metodologia da repetição de frases eram as

estratégias para atingir a população negra.

As igrejas eram construídas pelos próprios negros, atendendo a um estilo

arquitetônico local, semelhante a suas casas, parecia não ter interferência dos padres: em

Serra Leoa fizeram algumas “igrejas de madeira”,173 que assim foram descritas:

O modo com que esta gente vai fazendo as igrejas e casas, é que vão metendo muitos

paus no chão, tão juntos que tocam uns nos outros e depois de atados em cima, os barram

de uma parte, e da outra que não aparece nada e fica parede muito bem feita; dão-lhe

depois com barro tão alvo que parecem caiadas; o telhado é de palma ou de folhas de

certas árvores.174

Até mesmo as roupas dos negros tornaram-se um símbolo da “seita de Mafoma”,

que deveria ser extirpado. O comerciante português Francisco Coelho observou que, dentre

os costumes dos jalofos e mandingas, o que mais chamou atenção dele, foram os usos de uns

tipos de “armas” para defesa pessoal, cuja roupa fazia parte do “arsenal”

As armas com que se cobrem os corpos são uns camizões que lhe fazem os feiticeiros,

que entre elles não desfez este crime, antes quanto maiores o são mais temidos e

respeitados se fazem. Estes camizões lhe cobrem todos os corpos the os pes e estão

cheios de bolcinhas de couro, que elles chamão nóminas, em que poem papeis com

caracteres, e dizem que isto defende de armas de seus inimigos; na cabeça levão hum

barrete que lhe toma a cabeça e pescoço tudo do mesmo modo; e com cada dia lhes

mostrar a experiencia que tudo isto são patranhas e não armas deffensivas, vão tão

confiados com ellas como se levarão muito boas couraças ou arnezes de prova.175

Os camisões, nôminas, barrete, usados pelos mandingas eram como armaduras

preparadas para defesa. Aos olhos dos europeus, tratava-se de distintivo religioso, pois os

negros depois de convertidos ao islamismo passavam a usar roupas brancas largas de

algodão, às quais penduravam vários amuletos.

172

“Carta Ânua do Padre Baltasar Barreira ao Provincial de Portugal”, 01/01/1610, M.M.A., IV, pp. 374-6. 173

“Relação da Costa da Guine”, 1606, M.M.A., IV, p. 217. 174

“Carta do Padre Baltasar Barreira Ao Provincial da Companhia de Jesus”, 20/02/1606, M.M.A., IV, p. 111. 175

Idem, pp. 107-8.

Page 76: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

76

Os missionários católicos também exploraram esse artifício de fazer os conversos

mudarem o hábito do vestuário. O padre Barreira, quando foi batizar um dos irmãos do rei de

Serra Leoa, entregou uma roupa para o padre Manuel Álvares para que este a desse ao

neófito: “(...) E porque a todos os que se baptizaõ vestimos, pera que mude[m] o habito

gentilico, dei ao Padre pera elle hu[m] vestido de seda que tinha guardado pera o primeiro

baptismo que se offerecesse de algu[m]a pessoa nobre.”176

Em outra ocasião, na qual celebrava vários batismos em Serra Leoa, o padre

Manoel Álvares disse que não foi possível realizar outros, por falta de “trajo diferente que

usaõ os gentios, por razoes que há pera os não batizar.”177 Ou seja, os missionários católicos

passaram a dar roupas aos negros que se batizavam, agindo de forma semelhante aos

bexerins, que além do camisão branco de algodão, distribuíam os amuletos.

Na concepção teológica dos missionários, era preciso substituir o falso pelo

verdadeiro, sobrepondo símbolos: o Diabo por Deus, a “gentilidade” pelo cristianismo, os

padres pelos feiticeiros, os amuletos de couro e os camisões feitos pelos bexerins por

“relíquias” e roupas católicas.

c) Tradução dos amuletos

Ao mesmo tempo em que a doutrina católica rejeitava as idolatrias, aceitava o uso

de relíquias cristãs e também de amuletos em processos de cura. Os talismãs produzidos

pelos bexerins, casizes, marabus e jabacousses foram assimilados pelos missionários como

outro sinal de idolatria, ao lado do culto dos chinas, que evocava os antepassados e protegia a

aldeia. A concepção teológica tridentina de despertar a devoção dos povos, por meio das

relíquias e devoção aos santos encontrou espaço fértil para operar com a tradução religiosa na

Guiné.

Na Europa, havia objetos de proteção que eram vendidos à população: agnus-dei,

nôminas e escapulários. Assim como os restos de mártires, também eram chamados de

relíquias, porque podiam, da mesma forma, operar curas e livrar do demônio.

Na Guiné, não havia nenhum tipo de relíquia européia, que os padres pudessem

sobrepor aos talismãs muçulmanos. A fim de substituir as bolsinhas de uso corrente, os

jesuítas tentaram produzir amuletos. Mandaram imprimir em Portugal imagens do fundador

176

“Carta Ânua do Padre Baltasar Barreira ao Provincial de Portugal”, 01/01/1610, M.M.A., IV, p. 365. 177

“Carta Ânua da Missão de Cabo Verde do Ano de 1610 até Julho de 1611”, 17/07/1611, M.M.A., IV, p. 438.

Page 77: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

77

da Companhia de Jesus, Santo Inácio de Loyola, em papel, e distribuíram à população.

Chamaram-na de “relíquias”, que podiam proteger, curar e obrar milagres.

Francisco Tavares, sobrinho do Bispo de Cabo Verde, adoeceu ao chegar à

Diocese. Foi visitado por padres que lhe levaram imagem de Santo Inácio da igreja, que, em

breve tempo, o fez se recuperar completamente.178

O bispo, que era um fervoroso devoto do santo loyolano, bem como os padres,

diziam que as imagens impressas em papel do referido santo acudiam os doentes com “obras

maravilhosas” e livravam de vários perigos.179 Os relatos dos clérigos contam que a relíquia

de papel curou o neto de um homem honrado que não queria tomar a mama da mãe.

Aconteceu que o avô não sabia que mezinha aplicar, procurou um cônego devoto do santo,

que lhe emprestou “huã imagem do Sancto em papel”.180 Levou-a e quando chegou em casa o

menino já estava mamando. Outro homem honrado tinha a filha doente, procurou o mesmo

religioso que lhe deu a mesma “relíquia”, e em poucos dias a menina sarou. Um parente de

uma mulher endemoninhada perguntou ao dito cônego qual o remédio para livrá-la da

atribulação, este o mandou levar emprestada uma imagem de papel e a pusesse sobre a pessoa

para deixasse o mau espírito.181

Outra prova de sua eficácia, teve o cônego que um dia estava comendo uma

galinha picada. Engasgou-se com um pedaço de osso e quase estava para morrer sufocado,

quando se lembrou que levava em seu breviário uma relíquia de papel do santo jesuíta,

passou-a na garganta e desentalou.182

Um homem foi livrado da morte pela imagem do santo, porque um contrário

pretendia matá-lo, mas, quando se cruzaram, percebeu que seu inimigo estava tomado pela

cegueira, milagrosamente provocada pela relíquia. Este caso impressionou ao padre, pois se

comprovava cotidianamente a eficácia do remédio:

Hé notável a fee que aquelles novos christaõs tem nas santas reliquias, que logo pedem

como se bautizaõ; contou hum delles ao Padre que andando em sua busca hum gentio

poderozo pera o matar e relevando lhe ir á aldea deste seu enemigo, não arreceou fazello

confiado nas relíquias que levava consigo, que por meo dellas Deos o [h]avia de

livrar delle; e foy assy[m], porque indo não somente á alde[i]a mas estando diante delle,

Deos o cegou de maneira que vendo o não no conheceo.183

178

“Carta do Padre Sebastião Gomes ao Provincial de Portugal”, Outubro/1613, M.M.A., IV, p. 533. (Com

exceção desse parente do bispo, as demais pessoas recorriam à imagem de papel). 179

Idem, p. 531. 180

Idem. 181

Idem, p. 532. 182

“Carta Ânua da Missão de Cabo Verde do ano de 1610 até Julho de 1611”, 17/07/1611, M.M.A., IV, p. 461. 183

Idem, p. 451. (Grifos meus).

Page 78: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

78

O que o padre não parece ter percebido foi que o “novo christão” passou a fazer

uso das “relíquias" cristãs, distribuídas na cerimônia do batismo na Guiné, como se fosse um

amuleto africano. Mudara apenas o formato, mas a essência da crença permanecia a mesma –

era um artefato para proteger o corpo contra o ataque de inimigo.

A tentativa de criar um culto em torno da imagem de Santo Inácio de Loyola na

Guiné, com vários testemunhos de curas milagrosas pode ter duas interpretações: podia ser

uma das metodologias pensadas para despertar a fé devocional dos negros em torno de um

santo, que operava milagres e protegia até mesmo da morte. Ou apenas propaganda para o

fundador da Companhia de Jesus, que estava prestes a ser canonizado pelo papa Gregório

XV. Inclusive, o padre Barreira, enviou, em uma de suas cartas ao provincial, seus votos de

esperança de ver logo canonizado “Nosso Beato Padre Ignaçio”.184

d) Destruição de amuletos

As cartas escritas pelo padre Baltazar Barreira, contando os costumes dos

“gentios” da Guiné, das suas idolatrias e, principalmente da conversão e sucesso da Missão,

eram publicadas quase que instantaneamente pela Companhia de Jesus.185 Numa de suas

primeiras missivas, o referido padre prometeu que relataria à Coroa e aos seus superiores

tudo que aprendesse sobre “á terra firme, que Reys há nelle, que poder tem, que gente hé a

destas partes, que naturaes tem, que hé o que produs a terra, e finalmente que hé o que tem de

bem e de mal.”186 Isso acontecia não só com suas cartas edificantes. Desde 1550, o papado

costumava publicar as cartas dos missionários jesuítas do Brasil, Índia e América Espanhola.

Segundo estudo de Adriano Prosperi havia um público de leitores na Europa curioso por

saber sobre “as gentes e os seus costumes” e sobre a “conversão de muitos povos que

receberam o lume da santa fé cristã.” As grandes conversões reforçavam nos leitores “a

convicção de que a fé cristã é a verdadeira e de que os europeus levam a luz da verdade

àqueles que ainda não a possuem”.187

184

“Carta do padre Baltasar Barreira ao Provincial de Portugal”, 05/03/1607, M.M.A., IV, p. 223. 185

P. E. H. HAIR, Heretics, Slaves and Witches – as seen by Guinea Jesuits c.1610. Lisboa: Instituto de

Investigação Científica Tropical, Serie Separatas, 2002, p. 3; e Journal of Religion in Africa. XXVIII, no 2,

1998. 186

“Carta do Padre Baltasar Barreira ao Padre João Álvares”, 01/08/1606, M.M.A., IV, p. 159. 187

Adriano PROSPERI, “As Missões no Brasil, vistas de Roma.” Texto apresentado no Colóquio Internacional

Poder e Religião no Império Português. São Paulo/USP, Casa de Cultura Japonesa. 1 a 5 de outubro de

2007, pp. 04-6. Ver também Cristina POMPA, o sub-capítulo “A epistolografia jesuítica: para além da

Page 79: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

79

O relato do sucesso da conversão de um rei “gentio”, cujo nome não foi citado,

revelava uma suposta vitória dos padres sobre os pregadores mandingas. A destruição pública

dos amuletos “falsos” pelo próprio rei provava que a conversão era verdadeira, pois o neófito

logo se tornara um defensor do cristianismo. Este “Rey principal” contou que havia recebido

de um

(...) Mãdiga, ministro da maldita seita de Mafoma (...) huã vestidura chea de nominas,

com que emganaõ os gentios, afirmandolhe que tendoa vestida [ne]nhuã arma lhe poderia

fazer dano algum na guerra, e fora della; esta tinha elle em tanta estima que por [ne]nhum

preço a dera, mas depois de ser christão, conhecendo a falcidade daquelas nominas, que

queimou publicamente com a vestidura, querendo que estivesse presente toda a aldea pera

que vissem a conta em que tinha [d]aquelles falsos preservativos e entendesse que sôo o

verdadeiro Deos em que elle cria, o podia defender, e livrar de todo perigo na guerra e na

paz.188

Este e outros relatos que compõem as cartas edificantes, não deixaram de revelar

os momentos de angústia da missão. As reclamações recorrentes dos padres acerca dos

cristãos negros mostram que eles eram inconstantes na fé: após o batismo retornavam para

seus costumes ou os combinavam com os símbolos da religião cristã.

Os grupos étnicos da região da Senegâmbia partilhavam códigos culturais

semelhantes, além disso, havia uma plasticidade para agregar novidades.189 Para incorporar o

cristianismo não achavam necessário abandonar os traços da adesão anterior ao islamismo

(como o uso dos amuletos) e nem os costumes tradicionais (o culto dos chinas).

D. Pedro, rei de Serra Leoa, depois do batismo era tido como dos mais fervorosos

em sua fé; ele adoeceu e estava acamado, quase morrendo. O padre Barreira foi chamado

para acudi-lo. Ao chegar à casa do moribundo, foi até o terreiro da casa, onde viu “algu[m]as

chinas, ou idolos das suas escravas gentias”, que não tiveram tempo de escondê-las. Ele

quebrou tudo, depois foi ao quarto onde estava D. Pedro e dissera-lhe que “aqueles diabos o

tinha[m] na cama,” e em seguida ele já estava recuperado.190

O padre disse que convencera os reis da embocadura do Rio Grande a

abandonarem o costume dos sacrifícios de pessoas em cerimônias fúnebres e a quebrar os

seus deuses chinas que ficavam em altares de paus e pedras. Os deuses foram destruídos e

houve comemoração com fogos. Na ocasião os chefes principais pediram o batismo e um rei

retórica”, pp. 81-110; e Luis Felipe de ALENCASTRO, o cap. 5 – especialmente o item: “A teoria negreira

jesuíta”, pp. 168-180. 188

“Carta do Padre Sebastião Gomes ao Provincial de Portugal”, Outubro/1613, M.M.A., IV, p. 442. 189

Carlos LOPES, O Kaabu e os seus vizinhos: uma leitura espacial e histórica explicativa de conflitos. Afro-

Ásia, UFBA, Centro de Estudos Afro-Orientais, n.32, 2005, p. 21. 190

“Carta Ânua do Padre Baltasar Barreira ao Provincial de Portugal”, 01/01/1610, M.M.A., IV, p. 392.

Page 80: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

80

entregou seu filho para receber o sacramento. Mas o padre disse que precisava catequizá-los

para que não voltassem aos “seus erros tam antigos”, pois esperava “conjunçaõ e que elles

vão crecendo no conhecimento de nossa santa fee, pera que de gentios naõ venhaõ a ser

hereges. E por isso os não tem baptizados (...)”191

Os padres tentaram convencer alguns negros mandingas que portavam amuletos

para aceitarem o batismo. Eles pediram o sacramento e disseram que logo lançariam fora os

amuletos. Uns tiraram do pescoço e os lançaram ao mar, outros, porém, continuaram usando

e os escondiam quando viam os padres.192

Os episódios narrados anteriormente, dos batismos dos reis eram sempre

acompanhados da destruição de amuletos e chinas, considerados idolatrias. Os padres

estavam agindo de forma semelhante aos protestantes reformistas da Europa, que no início do

século XVI, passaram a quebrar as relíquias cristãs, condenando o seu culto, pois rejeitavam

os objetos dos mártires como instrumentos de mediação entre Deus e os fiéis. Os católicos

viram nessa reação um delito contra a fé.193 Os protestantes, por outro lado, viam o culto às

relíquias como idolatria, menos ligado à fé cristã do que a magia e a superstição.194

O padre Barreira destruiu os objetos sagrados de um rei diante da reação atônita

de um nobre. Ele acreditava que o seu rei estava totalmente desprotegido, mediante o

abandono do uso dos objetos de proteção. O fato se deu na ocasião dos batismos de dona

Felipa de Leão e D. João Setuaõ (ambos irmãos de D. Felipe Leão, rei de Serra Leoa).195 Após

este ter recebido o sacramento, “o diabo fez com que um capitão”, ao vê-lo mudado no

vestuário e sem as insígnias de poder e proteção, dissesse com certo temor: “quem sairá agora

cõ nosco á guerra? Quem pelejará? Quem nos defenderá de nossos enemiguos?”

O português, padrinho de D. João Setuao, “declarou em presença de todo o povo,

quã[o] çegos viviã, pois cria[m] que os corninhos, pelles, e mais cousas que levavã[m] á

guerra tinha virtude pera os livrar da morte. (...)”. Depois disto, o padrinho entrou na casa de

seu afilhado “quebra, queima e converte em cinzas todos os idolos que acha nelle. E em seu

191

“Relação das coisas da Guiné”, Maio de 1607, M.M.A., IV, p. 274. 192

Idem, pp. 274-5: “Trataraõ os Padres cõ[m] alguns destes gentios que traziaõ as taes nominas, sobre o santo

baptismo, o qual pediaõ e que logo lançariaõ as nôminas fora, e hu[m] tirou do pescoço e lançou ao mar,

outros as escondem quando lhes ve[m] fallar”. 193

“(…) assim os que afirmarem que se não deve veneração e honra às relíquias dos santos, e que estes e outros

sagrados monumentos são inutilmente honrados pelos fiéis; e que debalde visitam as memórias dos santos

por motivos de conseguir o seu socorro, devem ser infalivelmente condenados, segundo há muito os

condenou e agora condena a Igreja”. O Sacrossanto, e Ecumenico Concilio de Trento em Latim e

Portuguez, Tomo II. Op. Cit., p. 347. 194

Renato CYMBALISTA, Op. Cit., p. 15. 195

“Carta Ânua do Padre Baltasar Barreira ao Provincial de Portugal”, 01/01/1610, M.M.A., IV, p. 367.

Page 81: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

81

lugar manda arvorar hu[m]a fermosa cruz, a qual adorou prostrado por terra cõ[m] grande

devoção e fee.”196

O referido padre disse que convenceu os reis da embocadura do Rio Grande

quebrar todos os seus “idolos de pedra e pau”. 197 Mas quando foi visitar D. Pedro, rei de Serra

Leoa, que estava enfermo, quebrou, pessoalmente, os “idolos” das escravas gentias.198 O

padre Manoel Álvares disse que os mandingas batizados jogaram os amuletos muçulmanos

ao mar em sinal de desprezo da religião muçulmana.199

No encontro com o “outro”, os padres agiram como os calvinistas – com aversão

das relíquias dos povos nativos. Atitudes semelhantes tiveram os católicos na China. Ao

perceberem o culto em torno de uma relíquia, o dente de Buda, quebraram-no

publicamente.200

A destruição das relíquias na Guiné pelos missionários era uma resposta, ao

perceber em que a pregação, o batismo e a distribuição de novas relíquias não garantiam a

conversão e a constância na fé.

e) Ocaso da missão na Guiné

Em 1612, morreu o padre Barreira durante a sua Missão, quando estava em Cabo

Verde. Em 1617, faleceu o padre Manoel Álvares em Serra Leoa. O apostolado deles foi

marcado pelos batismos, restritos aos reis, suas parentelas e nobreza local.

Foi escrita, em 1621, a “Relação da Cristandade da Guiné e Cabo Verde”. Trata-se

de um mapeamento dos lugares onde havia Igrejas, missionários, cristãos e gentios. Não

consta a autoria do documento, mas, provavelmente, foi elaborado por um jesuíta, que

buscava mostrar o sucesso da Missão iniciada em 1604. O autor da “Relação da Cristandade”

iniciou a missiva advertindo que os gentios ainda não batizados, eram “fáceis” de serem

convertidos se houvesse mais sacerdotes zelosos e mais igrejas. E que a maior dificuldade de

missionação era a terra ser “muito doentia para os que vão destas partes de Europa”, pois dos

15 padres enviados em 17 anos de atividade missionária na Guiné, apenas dois estavam

vivos, em Cabo Verde.201

196

Idem, p. 368. 197

“Relação das coisas da Guiné”, Maio de 1607, M.M.A., IV, p. 274. 198

“Carta Ânua do Padre Baltasar Barreira ao Provincial de Portugal”, 01/01/1610, M.M.A., IV, p. 392. 199

“Relação das coisas da Guiné”, Maio de 1607, M.M.A., IV, pp. 274-5. 200

Charles BOXER, O Império Marítimo Português. 1415-1825. São Paulo: Cia. das Letras, 2002, p. 89. 201

“Relação da Cristandade da Guiné e Cabo Verde”, 1621, M.M.A., IV, pp. 662-5.

Page 82: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

82

O relator informava à Coroa que na Ilha de Santiago, sede do bispado de Cabo

Verde, onde havia a residência da Companhia de Jesus, eram todos cristãos. Na Ilha do Fogo

eram todos, igualmente, cristãos e existia uma Igreja com um clérigo. Nas demais ilhas de

Santo Antão, Santa Luzia e do Sal eram todos cristianizados, e ia um clérigo dizer missa. Em

Serra Leoa, diz que “os reis naturais” governam estas terras e que apenas dois se fizeram

cristãos - D. Felipe e D. Pedro de Caricuri, e havia três igrejas que eram freguesias, mas não

iam padres desde 1605. Em Cacheu, disse que eram todos cristãos e tinha uma igreja com um

clérigo. Em Bichancor, cujo rei não era cristão, havia uma igreja com um padre para assistir

os mercadores portugueses, que habitavam quinze casas. No porto de Santa Cruz no Rio

Grande, onde também tinham 15 casas de portugueses, havia uma igreja, mas sem clérigo.202

Os lugares citados são ilhas e cidades costeiras da Guiné. Eram habitados pela

população local, lançados, funcionários da Coroa e visitados, intermitentemente, por

religiosos, que mandaram edificar igrejas e capelas. No entanto, isso não garantia a

evangelização.

Alguns meses depois dessa apologética “Relação”, foi enviada outra: a “Relação

das Igrejas e christandade das ilhas de Cabo Verde e da Serra Leoa”. Documento escrito por

Manuel Severim de Faria, em janeiro de 1622, intitulado “Apontamentos da obrigação que os

Reys de Portugal tem de procurarem a conversão dos povos da Guiné, e os inconvenientes,

porque ategora se não fes, e do meio como se poderá alcançar facilmente com grande serviço

de Deus, e aproveitamento da fazenda de Sua Majestade.”203

À época, o autor dos “apontamentos” era Conselheiro da Coroa,204 e denunciou os

jesuítas de descumprirem com o “serviço de Deus, e com suas obrigações, que não com o

202

Idem. 203

“Apontamentos de Manuel Severim de Faria sobre a Fundação de Seminários para a Guine”, Janeiro-1622,

M.M.A., IV, p. 666. 204

Idem, p. 694: “O autor era doutor em Cânones pela Universidade de Coimbra e Cónego da sé de Évora.

Quando da carta aqui publicada fazia parte do Conselho de Portugal em Madrid”. Nascido em 1584 em

Lisboa, foi levado ainda criança para Évora, onde foi educado por um tio, Baltasar de Faria Severim, cônego

e chantre da Sé de Évora. Nesta cidade, freqüentou a Universidade de Évora, e tornou-se Mestre em Artes e

Doutor em Teologia, além de ter recebido várias ordens sagradas católicas. Aos 25 anos, sucedeu seu tio no

Cabido da Sé de Évora. Adquiriu o direito de receber somas elevadas, fruto de disposições eclesiásticas que

lhe asseguraram diversas rendas e outros benefícios. Devido à sua formação escolástica aplicou seus

honorários na aquisição de uma das mais famosas e bem apetrechadas bibliotecas do seu tempo. Destacou-se,

não apenas nas áreas da sua formação (teologia e filosofia) ou como historiador. Também procurou fazer

reflexão e intervenção política. Em 1624, por exemplo, Severim de Faria escreveu a obra Discursos Vários

Políticos, na qual advogou a transferência da sede da corte de Madrid para Lisboa. Contudo, a obra mais

conhecida e referenciada de Faria é Notícias de Portugal. Trata-se de compilação de vários textos

(Discursos) onde se debruça sobre os mais variados temas: a milícia, a nobreza, a moeda, as universidades, a

evangelização na Guiné, a carreira das naus e a peregrinação, e também várias biografias de cardeais

portugueses. Notícias de Portugal foi publicada em 1655, ano de seu falecimento. Mário PINTO, Gabriel

SILVA & Jorge Pedro SOUSA, A Génese do Jornalismo Lusófono e as Relações de Manuel Severim de

Faria (1626-1628). Universidade Fernando Pessoa, 2007, pp. 39-43. (Grifos meus).

Page 83: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

83

bem de suas Rendas” durante a Missão: entendendo (...) que o seu principal intento, hé, que

se cumpra primeiro com o serviço de Deos, e com as suas obrigações, que não com suas

rendas.”205 Num tom anti-jesuítico ele questionou a concessão papal à Portugal das terras da

África, cuja justificativa da conquista era o combate aos povos mouros e conversão dos

gentios:

O Senhorio que os Reys deste Reyno tem em Guiné (em que se incluem os Estados do

Cabo Verde, Mina, S. Thomé, Angola e parte do Congo) foi primeiramente concedido aos

Reys de Portugal por hua Bulla do Papa Martinho V, e depois por outras de Eugenio IV,

Nicolau V, Sixto IV e Leão X, nas quaes dizem os Summos Pontífices que dão o dominio

daquellas terras a esta Coroa, com condição que os Reys della proveia de Sacerdotes, e

Menistros do Evangelho que bautizem, e ensinem nossa Santa Fee aos naturaes da terra,

encarregandolhe sobre isso suas consciências, como se vee do theor de todas ellas.206

Manuel Severim de Faria recorreu à Década I, crônica de João de Barros. Citou

em seus “apontamentos” a história da primeira missa em terras africanas por Diogo de

Azambuja, que completava 139 anos naquele ano de 1621, para denunciar que, além das

promessas e poucos esforços, não havia “mais naturaes christaos, apenas alguns nas

fortalezas da Mina e Axem”.

O autor negava todas as informações relativas ao sucesso da conversão conferida

pelo jesuíta na “Relação” anterior.207 Segundo ele, no arquipélago do Cabo Verde, descoberto

desde 1441, a conversão se fazia apenas nas ilhas de Santiago e do Fogo, onde estavam as as

povoações portuguesas. Denunciava que na terra firme, nos portos do Rio de S. Domingos,

Guinala, Biguba, Rio das Pedras, Bissau, Cacheu e Joala, todos eram batizados, do mesmo

modo dos cativos comprados para o tráfico ou para serviço dos padres, pois o Evangelho só

passou a ser pregado naquelas partes quando foi enviada a Missão jesuítica, liderada pelo

padre Baltazar Barreira.208 Disse que em São Tomé apenas os cativos dos moradores das ilhas

eram doutrinados. Em Angola, desde

1575, em que começou a conquista ategora, tudo foraõ guerras e da conversão dos

naturaes se tratou pouco, ainda que tem hum Collegio da Companhia e outro Convento de

Padres Terceiros, porque o Evangelho de Christo hé de paz e não se hade pregar com as

armas nas mãos. E assi[m] tirando os negros de Loanda e Massangano, não há na terra

outros christaos senão os escravos que saem daquelle porto de resgate pera Europa, e

205

“Apontamentos de Manuel Severim de Faria sobre a Fundação de Seminários para a Guine”, Janeiro-1622,

M.M.A., IV, p. 666. 206

Idem, p. 667. 207

“Relação da Cristandade da Guiné e Cabo Verde”, 1621, M.M.A., IV, pp. 662-665. 208

“Apontamentos de Manuel Severim de Faria sobre a Fundação de Seminários para a Guine”, M.M.A., IV, p.

670.

Page 84: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

84

Novo Mundo, aos quaes bautizão sem o cathequizarem, de maneira que morrem nas

mesmas embarcações como brutos.209

Severim de Faria concluiu seus apontamentos anti-jesuíticos explicando “as

causas porque em tantos annos se tem feito tam pouco fruito na conversão dos povos da

Guiné”. Para ele, houve três motivos para o pouco fruto do trabalho de conversão feito: o

primeiro era dos ministros eclesiásticos, os bispos, clérigos e religiosos, que morriam logo,

porque a terra era insalubre, não eram repostos e davam mal exemplo de vida - buscavam

remédio espiritual para o seu próprio bem, “só se ocupam de comprar e vender”. O segundo

eram os portugueses que tratavam naquelas partes, que também davam maus exemplos –

eram degredados do Reino por delitos graves, tratantes e soldados, interessados nos cativos,

que se envolviam em escândalos. O terceiro estava, intimamente, relacionado ao primeiro.

Tratava-se da malignidade dos climas da terra. Ou seja: doenças.

Para os três graves problemas apontados acima ele sabia qual o remédio – a

criação de um seminário em Portugal para atender aos vocacionados de todas as nações

africanas:

(...) que neste reino [h]aja hum seminário em que se crie certo número de moços de cada

huma destas Províncias onde estao os nossos governos, os quaes moços aprendao a língua

latina, e Theologia em huma das Universidades deste Reyno, e sejao ensinados no mesmo

Seminário a bons costumes, e virtudes, por pessoas Religiosas, de maneira que quando

daqui saírem pera suas patrias, possao fazer o officio de Pregadores, e succedendo huns

aos outros continuem na cultivação espiritual daquellas províncias até as converter de

todo.210

O chantre de Évora concluiu mostrando o “proveito temporal que resultaria á

Coroa de Portugal a edificação destes Seminários no Reyno”: ao levar os filhos dos reis e

fidalgos africanos para a Corte, poder-se-ia usá-los como reféns para proibir os pais deles de

comerciarem com os holandeses. Por outro lado, pensara que estes jovens naturais da terra,

depois de instruídos retornariam aos seus lugares para atuarem como seminaristas. Dessa

forma, os príncipes e povos da Guiné ficariam agradecidos e forçados a ter paz e amizade

com os portugueses.211

Na Guiné, a empresa colonial andava de mãos dadas com o projeto missionário.

Assim como nas demais partes do Império. Mas, em Cabo Verde, Brasil, Índia, Luanda e São

Tomé, onde as ordens religiosas tinham casas, colégios, seminários e os missionários

209

Idem, p. 669. 210

Idem, p. 675. 211

Idem, p. 681-2.

Page 85: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

85

escreveram gramáticas para conversão dos gentios. Diferentemente, na Costa da Guiné, os

padres nunca se instalaram para dar assistência regular aos convertidos; atuavam apenas nas

missões intermitentes e construíam pequenas capelas nas encostas do mar e dos rios

principais, que contavam com escassas alfaias. Em Serra Leoa, por exemplo, depois da morte

dos padres Baltazar Barreira e Manoel Álvares, passaram-se mais de trinta anos sem que

nenhum padre lá fosse.

O padre Antonio Vieira, quando esteve em Cabo Verde, em 1652, celebrou uma

missa, deixou a observação da necessidade de mais clérigos para o trabalho missionário; e

disse que na Guine só havia cruzes e nomes de santos, mas o povo estava abandonado. 212

Francisco Coelho, em meados do século XVII, observou o abandono, em que foi

relegada a região do rio Gâmbia, que não possuía padres nem igreja para assistir nem ao

menos aos brancos que habitavam:

(...) e agora da passagem tambem quero dizer hua couza que sempre me escandalizou

enquanto vivi nelle, e he que en todo o rio, havendo tantas povoacoens em que morarão

os brancos, não vi nem tive noticia que [h]o[u]vesse nunca nelles nenhu[m]a igreja, o que

não he na mais costa de Guine, e ainda os sacerdotes que vão de Cacheo administrarlhes

os sacramentos vão muito mal; e assim, como lhes faltao os templos e os mestres, e a

gente do rio com que vivem são hereges e mahometanos, e não há quem os reprehenda,

vivem com demasiada soltura, principalmente guardao mal os mandamentos da Sancta

Madre Igreja, e en todos os dias prohybidos por ella, sem escrúpulo, comem carne. Deos

Nosso Senhor lhes acuda.213

O comerciante fez observação semelhante em Cacheu e Bissau:

No reino de Canhaguto ouve muita cristandade, e o rey da terra era christão com sua

molher, e chamavasse Dom Bernardo, e tinha igreja com seu sino. A este rey de Bossis

que, disse, chamarase Nacurna, e por sua morte, como faltarão obreiros, foise esfriando

esta cristandade e hoje não há nada. Tambem no reino das ilhetas ouve hum rei christão

que chamavào Dom Francisco; assim que não estar isto tudo de Cacheo para cá reduzido

a religião catholica não he mais que por falta de mestres.214

Quando os capuchinhos da Propaganda Fide chegaram à Guiné para continuar a

missão, o povo já havia esquecido os fragmentos aprendidos do cristianismo e a igreja estava

abandonada. As missões religiosas não frutificaram, pois, ao mesmo tempo, o comércio

deixou de ser promissor para os portugueses devido a concorrência das outras nações

européias.

212

“Carta do padre Antonio Vieira ao padre André Fernandes”, 25/12/1652, M.M.A., VI, p. 25. 213

Francisco de Lemos COELHO, Duas Descrições Seiscentistas da Guiné, Op. Cit., p. 137. 214

Idem, p. 165.

Page 86: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

86

O contato dos portugueses com a Costa da Guiné que se iniciou em 1440,

prolongou-se de forma efetiva na expansão do Império Português até fins do século XVII.

Depois, essa região foi tomada pelos holandeses, franceses, ingleses e espanhóis.

Para Luis Felipe de Alencastro, o Império Ultramarino português não conseguiu

se impor na Costa da Guiné por dois motivos principais: a “má governança” dos funcionários

da Coroa que não conseguiu garantir o domínio colonial e os “azares da catequese”. O autor

destacou os motivos da decadência do Império naquela parte da África: 1) as doenças

(febres), que matavam os estrangeiros; 2) as feitorias construídas no litoral não impediam que

as outras nações fizessem comércio também; 3) o desejo de conquistar e controlar o mar

encarecia os custos de manter as feitorias; 4) O bispado de Cabo Verde era sustentando pela

receita régia da Bahia, pois a ilha de Santiago rendia poucos impostos reais, devido aos

constantes ataques dos “inimigos” europeus dos portugueses. 215

Com o fim da união das Coroas, em 1640, a Costa da Guiné foi paulatinamente

tomada pelas outras nações européias, os portugueses foram proibidos de comercializar com

os castelhanos, principais compradores de escravos para a América espanhola, e o tráfico foi

reordenado para o Brasil com conexão direta com os traficantes baianos, que controlavam o

comércio de tabaco, mercadoria indispensável no tráfico da Guiné. Os holandeses ocuparam

o forte de São Jorge da Mina, que haviam tomado desde 1638. A partir de 1664, a Companhia

das Índias Ocidentais concedeu o direito de monopólio aos franceses para comercializar na

Alta Guiné. Estes passaram a ter direitos exclusivos na Senegâmbia, que se estendia da Ilha

de Gorée até o rio Senegal.216 Mesmo assim, os baianos conseguiam comerciar na região.

Logo, negociavam seu tabaco, antes mesmo de chegar a mercados africanos, com franceses e

holandeses.217

f) Tráfico da Senegâmbia para as Américas:

Os dados para o tráfico de escravos no século XVII, ainda são escassos, pela

limitação das fontes. É um tema em debate, cujas pesquisas têm se revigorado nos últimos

anos. Mas podemos afirmar que os primeiros escravos que desembarcavam no Brasil,

procediam dos portos da Alta Guiné e Angola. A instalação das primeiras benfeitorias, como

fortes e igrejas na costa atlântica da Guiné permitiu que o comércio de escravos realizado

215

Luis Felipe de ALENCASTRO, Op. Cit., pp. 55-56. 216

Gwendolyn Midlo HALL, Africans in Colonial Louisiana. Op. Cit., p. 34. 217

Pierre VERGER, Fluxo e Refluxo: comércio entre a Bahia de Todos os Santos e o Golfo do Benim. Sao

Paulo: Corrupio, 1997.

Page 87: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

87

nessa região alimentasse a incipiente indústria açucareira da América Portuguesa. A presença

portuguesa no Congo e Angola, faria dessa região uma colônia e outro entreposto importante

de fornecimento de escravos para o Brasil.

O tráfico da Guiné no século XVIII ainda é tema pouco estudado por brasileiros,

pela já aludida dificuldade de fontes mais abrangentes e consistentes. Interessante notar que a

historiografia não aponta a vinda dos povos mandingas para o Brasil, mas os mandingueiros,

que seria uma alusão a tais povos, aparecem muito no contexto colonial, sempre associados à

heterodoxia da religiosidade colonial.

Nos séculos XV e XVI, para os portugueses, a Guiné era uma referência ao litoral

da costa ocidental africana, que tinha a feitoria de Cacheu como centro comercial,

subordinada às ilhas de Cabo Verde. À medida que a expansão do comércio português

avançou para o sul, o termo passou a ser também utilizado para designar as partes do litoral

então conhecidas como Costa da Pimenta, Costa do Marfim, Costa do Ouro e Costa dos

Escravos. Assim, toda a África Ocidental ao norte do Equador, do Rio Senegal ao Gabão, era

conhecida então como a Guiné. 218

Os mandingas, conforme visto no capítulo 1, faziam parte do comércio de

escravos na Alta Guiné. Na região do rio Gâmbia em sentido Norte pela costa atlântica até o

rio Tagarim (Serra Leoa) adentrando pelo continente, os mandingas dominavam as redes de

comércio e controlaram rigorosamente quais povos podiam ser vendidos. Até 1720 nenhum

Mandinga vendeu seu próprio povo ou deixou que outros os vendessem.219

Os mandingas vendiam os povos “selvagens”, ou seja, os não islamizados, como

os bambaras que habitavam as terras localizadas nas proximidades do rio Senegal, além do

Galam, perto do Rio Níger, no sentido Leste. Estes lutavam contra o Islã e foram

escravizados pelos mandingas, cuja religião permitia a escravização de “pagãos”, e

muçulmanos que cometessem crimes.220

Mas os portugueses cedo perderam sua primazia comercial na região para os

holandeses e ingleses, na Gâmbia. Em 1664, a França já havia se estabelecido nos portos da

ilha de Goré até o forte de St. Louis. A Companhia das Índias em 1720 concentrava-se no

Senegal porque “era a única praça da costa africana onde possuía direitos exclusivos de

comércio”. A Companhia vendia licenças privadas para interessados no tráfico de escravos.

218

OLIVEIRA, Maria Inês Cortez. Quem eram os „Negros da Guiné‟? A Origem dos Africanos na Bahia. Afro-

Ásia. Salvador, n.o 19/20 (1997), p. 39.

219 Gwendolyn Midlo HALL. Africans in Colonial Louisiana: The development of Afro-Creole Culture in the

Eighteenth Century. Lousiania State University Press, 1995, p. 41. 220

Idem, p. 38.

Page 88: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

88

Os ingleses ficaram com o porto de Cabinda. Enquanto quase toda a costa de Angola era

dominada pelos portugueses. A Companhia tinha um porto de comércio em Ajudá, no Golfo

do Benin, mas competia ali com todas as nações da Europa. Logo depois, os portugueses

tomaram Ajudá. 221

No século XVIII, os reinos mandingas, que iam do Senegal ao Gâmbia era eram

mais zelosos com o islamismo. Do rio Gâmbia até os rios da Guiné, com exceção dos povos

sereres, todos eram “idólatras”, ou seja, não seguiam o islamismo. Midlo Hall afirma que as

rotas da cultura afro-crioula da Lousiana têm sua origem na Senegâmbia. Do fim do século

XVII e por todo o século XVIII, o principal mercado de desembarque dos jalofos, bambaras,

fulas e outros povos da Senegâmbia foi a Louisiana.222

Cacheu, incrustada em terra dos mandingas islamizados, foi o principal porto de

abastecimento para as colônias espanholas até 1680. No período em que administradores da

Coroa e as missões religiosas estiveram nessa região, houve pouco embarque de cativos do

porto de Cacheu para a América Portuguesa.

Em setembro de 1642, uma carta do governador do Brasil Antônio Teles da Silva

para S. Magde., informava sobre as conseqüências danosas nos engenhos e fazendas

provocadas pela falta de escravos. O problema era a ocupação de Angola pelos holandeses e

as epidemias. O governador solicitou escravos de Cacheu e de outras partes da África.223

Nos fundos do Arquivo Ultramarino há correspondências indicando a chegada de

navio do porto de Cacheu. Em 1733, chega um navio da Costa da Mina e Cacheu, que foi

registrado na Alfândega.224 Em 1741, a Alfândega também registrou outro navio do referido

porto desembarcou escravos em Salvador, arrematados por Manoel de Faria Ayram.225 Há

outras informações esparsas nas correspondências do Conselho Ultramarino acerca da vinda

de tumbeiros de Cacheu. Ao contrário dos copiosos dados referentes aos navios que

chegavam de Angola através dos portos de Benguela e Loango e os da Costa da Mina.

Certamente, o período de maior embarque de povos do porto de Cacheu em direção ao Brasil,

221

Em 1731, os franceses venceram os alemães e conquistaram a ilha de Arguim. A Companhia das Índias

concedeu toda a extensão da Ilha de Arguim até o sul de Serra Leoa aos franceses. O forte de St. Louis

localizado na boca do rio Senegal era o principal enclave da Companhia das Índias na África. Apesar de

relativamente seguro de bombardeamentos de navios, não era conveniente para carga e descarga. Dessa

forma, foi construído o forte de St. Joseph, no Galam, nos limites entre o Senegal e o Mali, na terra dos

bambara. Todas as caravanas passavam pelas terras mandingas e cruzavam o rio Níger. Cerca de um terço

dos escravos transportados da Senegâmbia para a Louisiana passaram pelo porto de Galam e dois terços

cruzaram o rio Gâmbia. 222

223

Projeto Resgate. Documentos Avulsos do Arquivo Ultramarino. AHU. Caixa: 8 Doc: 975. Bahia, 22 de

Setembro de 1642. 224

Projeto Resgate. Documentos Avulsos do Arquivo Ultramarino. Caixa: 45, doc.3986. Bahia, 1733. 225

Projeto Resgate. Documentos Avulsos do Arquivo Ultramarino. Caixa: 71, doc.35967. Bahia, 1741.

Page 89: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

89

foi no final do século XVIII. Com a criação da Companhia do Grão-Pará e Maranhão, que

durou entre 1755 e 1778.226 Matthias Röhrig Assunção divulgou em artigo resultados de sua

pesquisa realizada sobre o tráfico de escravos para o Maranhão, considerado o quinto porto

negreiro do Brasil. O autor diz que não há estatísticas fidedignas para o período do tráfico.

Inclusive, na base de dados do Transatlantic Slave Trade não aparece nenhum dado sobre o

comércio de escravos entre as duas regiões. Baseado em fontes encontradas e em estimativas,

Assunção sugere que cerca de 140 mil escravos tenham desembarcados no porto de São Luiz

do Maranhão, embarcados no porto de Cacheu. 227

g) A difusão da imagem dos mandingas como feiticeiros no Atlântico

Em 1642, a Companhia retirou-se de Cabo Verde por causa de conflitos com a

Coroa que impôs uma série de exigências aos padres. O envio de padres Capuchinhos pela

Propaganda Fide, criada em 1622, foi tema dos mais polêmicos pelos embargos que Portugal

impunha por considerar inimigas as demais nações.

No entanto, enquanto a Coroa Portuguesa criava impasses contra a entrada de

outras ordens religiosas na Costa da Guiné e Cabo Verde, os sacerdotes islâmicos se

fortaleciam na Costa e no interior. O movimento mandinga,228 que combinava fetichismo e

Islã se expandia. Isso foi confirmado em observações de religiosos da Propaganda Fide e de

comerciantes portugueses que estiveram na região ao longo do século XVII.

Em 1647, no porto de Combo, perto da Barra, entrada do rio Gâmbia, Frei Andrés

de Sevilha e Fr. Gaspar de Sevilha também enfrentaram a concorrência com os pregadores do

226

Manuel Dias NUNES, A Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão, 1755-1778. Belém: UFPA, 1970; e

Antonio CARREIRA, As Companhias Pombalinas de Grão-Pará e Maranhão, Pernambuco e Paraíba.

Porto: Editorial Presença, 1983. 227

Mathias Assunção supõe que no Maranhão, nordeste do Brasil, desenvolveu-se uma cultura crioula mandinga.

Seus dados para tal inferência é o estudo pioneiro de Manuel Nunes Dias que fez um levantamento para os

anos de 1757 a 1777. Os cativos embarcados nos portos eram majoritariamente procedentes dos rios da

Guiné: 44% em Cacheu, 43% em Bissau e 12% em Angola. E de 1778 a 1801, 17.691 escravos dos portos

vizinhos de Cacheu e Bissau foram enviados em tumbeiros para o Maranhão e Pará. Assunção fortalece sua

idéia, a partir da análise de 3 conjuntos documentais localizados no Maranhão i) 100 inventários de São Luiz

e Codó. Nestes aparecem 457 africanos. Destes, 70 foram registrados apenas como africanos. Os demais, 387

africanos, foram classificados como: 48% do Congo e Angola, 36% dos rios da Guiné e 13% da Baia do

Benin e 3% da contra-costa. ii) livros de óbitos da freguesia de Itapecuru-mirim da primeira metade do século

XIX. Aparecem neles as etnias dos africanos falecidos: 20 eram povos procedentes da Guiné (mandinga,

pepel, bijagó, fula, balanta, cassange e nalu) e 21 eram “angolas”. Os demais falecidos foram genericamente

denominados pretos e pretas. iii) Inventário da partilha de bens do fazendeiro Manoel Coelho, de 1844.

Consta no documento que o dito Manoel possuía 112 escravos, 19 eram angolas, 7 eram mandingas.Matthias

Rohrig ASSUNÇÃO, Maranhão, Terra Mandinga. Boletim da Comissão Maranhense de Folclore, vol. 20,

2001, pp. 4-5. Trabalho disponível on-line em <www.portalcapoeira.com>. Acesso em 25/12/2007. 228

Carlos LOPES, O Kaabu e seus vizinhos. Op. Cit., pp. 9-28.

Page 90: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

90

Islamismo. Os frades espanhóis não realizaram batismos porque os nativos eram pouco

perseverantes e tinham inconstância na fé, pois diziam que mudavam facilmente de uma

religião para outra:

(...) Christianos negros que hallé em ambos puertos y bapticé muchos parbulos com

solemnidad el dia de S. Sebastian; y por la cortedad del tiempo y rudeza de algunos

adultos y poca seguridad de perseverançia, que luego se pervieten com las malas

doctrinas de los bejerines moros, que ay muchos, y son continuos en la ensenança de

sus falçedades, y hechiçerias, no me resolvi a baptiçarlos hasta mejor ocasion.229

O comerciante Donelha, ao prosseguir adentro do rio Gâmbia também encontrou

mercadores mandingas, “bixiriis, que são os sacerdotes”, que se aproveitavam do comércio

para “samear a maldita seita de Mafoma antre a gente bárbara que correm todo o sertão da

Guiné e todos os portos do mar, e assim se não achará nenhum porto, desd‟os Jalofos, São

Domingos, rio Grande até Serra Lioa, que neles se não achem Mandingas bixiriis.”

Fig. 5. Soldado fula ou peul, etnia que habita a região do Gâmbia,

vizinha dos jalofos e mandingas. A descrição é do padre francês

David Boillat: “no pescoço dele há amuletos (gris-gris), que serviam

para várias funções protetoras. Atravessando o tórax, outro gris-gris

para repelir balas; assim como há outro no braço direito. As pulseiras

ornamentais de cobres são usadas no braço esquerdo e tornozelo

direito. Atado à sua cintura é „coufa‟, um chifre que contém pó,

balas, e tabaco de fumagem.” Padre David Boillat, Esquisses

Sengelaises (Paris, 1853), prancha 17 (Special Collections,

University of Virginia Library)

229

“Relação da Missão da Costa da Guine”, 05/02/1647, M.M.A. Vol. IV. (op. Cit), p. 461. (Grifos meus).

Page 91: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

91

André Donelha confirmou o que a maioria dos autores já observara: a importância

dos bexerins entre os mandingas, principalmente no Gâmbia, e da notável relação entre a

atividade mercantil e o proselitismo religioso:230 “(...) o que levam para vender são feitiços em

cornos de carneiros e nóminas e papeis escritos, que vendem por relíquias, e com vender tudo

isso sameiam a seita de Mafamede por muitas partes e vão em romaria à casa de Meca e

correm todo o sertao d‟Etiopia.231

No final do século XVII, o Governador-Geral do Cabo Verde e Guiné, Manuel da

Costa Pessoa, encarregou o português Francisco Lemos Coelho de escrever uma descrição da

“distribuição geográfica dos povos indígenas, suas crenças, seus hábitos”, porque era “bem

conhecedor dos assuntos versados”.232 Sua obra reforça a opinião da importância do rio

Gâmbia como local de comércio controlado pelos Mandingas. A região que se estendia à

margem era habitada por mandingas e por gente da terra, que absorveram os seus ritos e

passaram a ser chamados também de mandingas, pois se tornaram também muçulmanos.233

Para Coelho, os povos vizinhos aos mandingas, como os falupos e banhús não eram ainda

convertidos ao islamismo e “não observão religião nenhuma”, no entanto “não faltão

mandingas que os enganão com seus embustes”.234

O pensamento dos europeus que navegavam pelo rio Gâmbia era formado pela

idéia de que se tratava de um povo que possuía muitos poderes sobrenaturais, que também

temiam. Diziam ao comerciante luso também que ali havia um grupo de negros chamados

Corijuros, cujos capitães os recomendavam que falassem a verdade e não tomassem coisas

alheias, que não precisavam de armas para se defender, pois eram “grandes feiticeiros, e por

isso muito temidos de todo o gentio e suas couzas são sagradas entre todos os negros, e

nenhu[m] lhes toca contra sua vontade, quanto mais que o gentio de todo este rio,

principalmente desta banda do Norte, não toma nada a ninguém, e pode dormir na rua o

dinheiro”.235

As pistas deixadas pelos viajantes e missionários que estiveram em contato com

os povos mandingas permitem fazer uma caracterização deles: habitavam o rio Gâmbia e

230

Idem, pp. 98, 101 e 106. 231

Idem, p. 160. 232

Francisco de Lemos COELHO, Duas Descrições Seiscentistas da Guiné, Op. Cit,, p. 17. 233

Idem, p. 120. 234

Idem, p. 32. 235

Idem, p. 128.

Page 92: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

92

circulavam por toda a Costa da Guiné (do Rio Senegal até Serra Leoa), pelo deserto do Saara,

e comercializavam várias mercadorias, principalmente ouro, escravos e tecidos.

Em 1688 foi lançada uma obra para contar os feitos financiados pelo rei francês

contra corsários e “bárbaros”. Na descrição do povo do reino mandinga o autor diz serem

cavaleiros intrépidos, que comercializam com mercadores árabes em Tombuctu, e que eram

mágicos:

Os povos de etnia Mandinga eram antigamente grandes Idólatras & muito fortes na magia

& nos encantamentos. Eles têm muitos videntes & Mágicos que chamam de Bexerins,

após alguns anos eles difundiram suas idéias junto aos seus vizinhos por meio do seu

comércio. O seu soberano Pontífice reside na capital do Reino: diz-se que é um famoso

Mágico que há depois do Rei de Bena que evoca os Demônios & e se usa disto para

atormentar os seus inimigos.236

Mandinga não era apenas uma etnia.237 Pode-se afirmar que era uma designação

atribuída a povos comerciantes que circulavam muito pelo deserto do Saara e costa Atlântica.

Havia uma língua franca falada na extensa Costa, a malinquê, dominada por eles, portanto,

dispensavam intérpretes, como fazia o jovem mandinga Gaspar Vaz. Os povos, com os quais

viviam imiscuídos, eram praticantes de ritos tradicionais combinados com os islâmicos.

Os mandingas eram identificados como islamicos. Os portugueses não os

hostilizavam por terem acesso, a partir deles, às mercadorias que vinham de importantes

centros comerciais que os europeus nunca tinham entrado em contato, por causa das doenças

da terra e porque não tinham permissão dos régulos locais.

A prática religiosa mandinga, era marcada pela difusão do Islã, uso de talismãs

que protegiam o corpo de males cotidianos, como as enfermidades, feitiços,

desentendimentos entre as pessoas, e das guerras que assolavam as aldeias, naquele

turbulento contexto de produção de cativos para alimentar o tráfico.

236

« Les peuples de Mandinga etoient autrefois de grands Idolatres & fort entétez de la magie & des enchatemens.

Ils ont encore des devins & des Magiciens qu‟ils apelent Bexerins depuis quelques années ils l‟ont multiplié

chez leurs voisins par le moyen de leur commerce. Leur souverain Pontife demeure dans la capitale du

Royame: on dit que c‟est un fameux Magicien, qui avoir apris au Roy de Bena a evoquer les Demons & a

s‟en servir pour tourmenter ses ennemis. » Thomaz AMAULRY. Relation Universelle de L’Afrique

Ancienne et Moderne, Où lón voit ce quíl y a de remarquable, tant dans la Teere ferme que dans les Iles,

avec ce que le Roy a fait de memorable contre les corsaires de Barbarie, & c. En quatre parties. Lyon : Par le

Sr. de La Croix. Tome second., 1668, pp. 468-9. Agradeço à Viviane Morais essa indicação bibliográfica. 237

Para os franceses, geograficamente, a Senegâmbia compreendia a região entre os rios Senegal e Gâmbia. É

considerada uma área de cultura homogênea e histórias em comum pelos estudiosos. Há quatro principais

línguas faladas: Serere, Wolof, Peul e Malinke, esta última era uma língua mutuamente inteligível e falada

pelos mandês do Leste. Estes povos viveram como vizinhos por centenas de anos e houve um intercâmbio

fixo de pessoas entre eles. Os grandes impérios de Gana, Mali e Songai foram fundados nesta região.

Gwendolyn Midlo HALL, Op. Cit., p. 29.

Page 93: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

93

Os talismãs mandingas de proteção individual eram manufaturados geralmente em

couro cozido em formato de uma bolsinha, ou feitos de metal ou de couros de animais;

colocava-se dentro deles orações do Alcorão escritas em árabe. Eram produzidos pelos

bexerins e marabus, sacerdotes muçulmanos que os distribuíam ou vendiam durante suas

atividades comerciais e religiosas por toda a Costa da Guiné. O recurso a estes artefatos

devia-se à busca por proteção em viagens, batalhas e na vida cotidiana. Costumava-se usá-los

pendurados ao pescoço ou nas roupas, sendo que, quanto maior a quantidade deles, mais

protegida ficava a pessoa. Eram amplamente usados pelos sacerdotes, comerciantes,

guerreiros, pessoas comuns e até colocados em cavalos.

Dessa forma, é possível compreender historicamente como o termo Mandinga,

referente ao povo Mandê, habitante do antigo reino do Mali, foi difundido ao mundo

Atlântico, através do tráfico de escravos com a imagem de povo feiticeiro, cheios de

superstições. Os africanos que chegaram ao Reino, procedentes da costa da Guiné,

continuaram a usar talismãs pelas ruas de Lisboa, gerando curiosidade e possibilitando que os

brancos vissem o que, até então, sabiam pela literatura de viagem e pelo que circulava pela

boca dos marinheiros.

As práticas religiosas dos mandingas estavam relacionadas aos mouros da Costa

Ocidental da África, contra os quais os missionários e os agentes da Inquisição que ali

atuaram nada puderam fazer. Em Portugal e em África, os mandingas e os seus talismãs

foram interpretados, por observadores europeus, como feiticeiros que faziam pactos

diabólicos para ampliar sua eficácia.

A Inquisição, que atuou na África Ocidental, por meio de seus agentes locais,

pouquíssimas denúncias recebeu acerca das crenças dos gentios e mouros da Guiné. A polícia

religiosa tinha braços curtos no continente africano, haja vista a presença tímida da Igreja que

não despendia de contingente para converter os povos e promover a manutenção da sua fé.

Portanto, restava-lhes perseguir os cristãos-novos e velhos, numa época de disputa de

mercados e maior desenvolvimento econômico de Cabo Verde e rios da Guiné.

No entanto, em Portugal, os agentes da Inquisição fizeram com que os amuletos

dos mandingas ganhassem fama no lastro de um cristianismo que não conseguiu se impor

pela conversão na Guiné. O sistema de “traduções” via nas crenças e práticas locais atos

demoníacos e feitiçarias, o que legitimava a perseguição de seus confeccionadores e usuários.

A Inquisição difundiu o termo mandinga com o sentido de feitiçaria. Ao atribuir

grande poder às bolsinhas, estabeleceu uma forte relação entre a magia dos africanos e poder.

Page 94: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

94

As cartas e relatos evidenciam o contato entre cristãos, gentios e muçulmanos. Os

europeus sentiram na crença muçulmana uma concorrência em todos os domínios: cultural,

político e, sobretudo econômico. Os mandingas controlavam o interior e impediam a entrada

do cristianismo.

A religião, no entanto, era a “linguagem”, de mediação dos portugueses para

compreender a alteridade. A Missão religiosa dos jesuítas, na primeira metade do século

XVII, através de suas cartas, enfatizou a presença dos mandingas como principais

concorrentes, pois eram predicadores do Islã, e conquistavam a população com a distribuição

de amuletos. A circulação de cartas e relações jesuíticas fez com que todo o espaço atlântico

tomasse conhecimento dos mandingas como um povo detentor de poderes sobrenaturais,

feiticeiros e manipuladores de feitiçarias.

Os documentos também mostram que os africanos traficados do rio Senegal até

Serra Leoa para a América Portuguesa e outras partes do Novo Mundo, não eram

cristianizados. Muito menos os cativos raptados para alimentar o tráfico, que recebiam

batismos instantâneos, coletivos, no porto ou dentro do navio, em língua latina e sem

intérprete. Embora grande parte seguisse nos tumbeiros sem que fosse cumprida a lei.

Portanto, os amuletos encontrados com os africanos, originários da Costa

Ocidental, não estavam relacionados ao cristianismo aprendido na costa da Guiné. Tratava-se

de tradições mandingas na diáspora que havia se combinado com as tradições locais em

maior ou menor grau.

O termo mandinga e as práticas a ele associadas são propícios para uma análise na

dimensão das circulações atlânticas.

Page 95: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

95

2. A CIRCULAÇÃO DE PESSOAS E SABERES NO ATLÂNTICO: AS BOLSAS DE

MANDINGA

[Inquisidor]: “Como podia pensar que a Mandinga era uma

coisa de Deus, dado que via que só os pretos a utilizavam, e

com muita precaução, e que assim a dita mandinga não podia

parecer-lhe lícita e boa?

[José Francisco]: Disse que elle entendia que a mandinga era

cousa de Deos, porque lhe chamavao oraçao, e como muita

gente a trazia não lhe parecia ser couza do Demônio.1

A expansão dos tentáculos da Inquisição pelo Oceano Atlântico e a natureza das

fontes produzidas pelas denúncias contra os suspeitos na fé, possibilitam observar como

vários povos mesclaram suas culturas. A implantação da instituição e sua forma de

organização e sustentação nos espaços atlânticos não é o foco dessa pesquisa, nem a ação

persecutória do Santo Ofício. Esse capítulo apresenta uma análise da circulação de amuletos

nos mundos misturados pela monarquia católica, através da cristianização das populações

nativas da América Portuguesa e Costa Atlântica da Guine e África Central. O comércio, o

tráfico de escravos, as missões religiosas e a inquisição portuguesa, que atuaram na costa

atlântica, propiciaram o encontro entre povos e a mestiçagem cultural.

2.1 A feitiçaria na Inquisição de Portugal: a questão legal

No Concílio de Trento, vários teólogos esperavam que a Reforma na Igreja

católica levasse a uma união com os protestantes, evitando, portanto, um cisma derradeiro no

rebanho da cristandade européia. Os teólogos ecumênicos foram retirados do Concílio,

evidenciando o projeto da Igreja tridentina que consistia em afastar qualquer perspectiva de

união com as seitas protestantes. Portanto, o Concílio definiu a posição da Igreja Católica em

relação às críticas promovidas pelos protestantes, estando a Reforma Católica associada a uma

série de ações políticas, institucionais e ideológicas que possibilitaram a defesa da ortodoxia

ameaçada e a consolidação da autoridade do papado. Nessa circunstância, foi criado o

Tribunal da Inquisição para controle da fé, e a Companhia de Jesus para garantir o

1 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, n. 11.767 – Exame do processo de Jose Francisco

Pedroso, folhas 37-42.

Page 96: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

96

cumprimento das deliberações de Trento: despertar a fé nos descrentes e gentios e garantir a

correta observação dos dogmas da Igreja.2

Outros autores defendem que, além das exigências de Trento, diante do perigo

iminente da Reforma Protestante, o estabelecimento do Tribunal da Inquisição no Mundo

ibérico foi criado em decorrência da existência de três grandes comunidades religiosas, a

cristã, a muçulmana e a judia.3 O Tribunal da Inquisição na Espanha foi criado com o objetivo

de extirpar a heresia judaica e eliminar os conversos suspeitos. O principal móvel da

Inquisição na Espanha Moderna foram os judeus espanhóis convertidos ao catolicismo, os

marranos. Em 1492, graças aos bens confiscados dos cristãos-novos presos pela Inquisição,

os reis católicos derrotaram os mouros de Granada, e no mesmo ano decretaram a expulsão

dos judeus.4 Em 1536, a Inquisição Portuguesa foi criada, segundo alguns autores, devido o

crescimento da comunidade judaica, formada pelos que migraram da Espanha.

A expansão da fé cristã foi essencial para que o projeto português de colonização

dos espaços atlânticos se concretizasse, articulando poder político e poder eclesiástico. As

organizações administrativas e as igrejas, os funcionários reais e os missionários, articulavam

todo o engenho do Padroado Real.5

O contexto de expansão ultramarina européia é o contexto de expansão do

Evangelho para além do continente europeu, que lutava contra o luteranismo, combatia o

judaísmo, e perseguia feiticeiros e feiticeiras.

Há autores que afirmam que a Inquisição serviu para fortalecimento do Estado

português e que a busca por cristãos novos foi uma das molas propulsoras para

estabelecimento da Inquisição em Portugal. O número de processados por crime de judaísmo

atesta que o alvo preferido eram os cristãos novos. Mas a feitiçaria foi uma das preocupações

do Tribunal da Inquisição Português. Um estudo sobre os códigos civis e eclesiásticos mostra

como o Estado português comportou-se diante do medo das feitiçarias e de seus autores. Mais

tarde essa legislação foi aplicada aos africanos e indígenas nos espaços ultramarinos. A

legislação criada em torno da feitiçaria nos códigos civis e eclesiásticos de Portugal permite

compreender a profusão de práticas pagãs que existiam na Europa Moderna, especialmente,

naquela parte da península Ibérica. As artes mágicas, a feitiçaria, os sortilégios, as

2 Francisco C. FALCON, “A crise dos valores morais, religiosos e artísticos”. in F. C. Falcon e A. E. Rodrigues.

Tempos Modernos: Ensaios de História Cultural, 2000, p.170. 3 Léon POLIAKOV, História do Anti-semitismo. São Paulo: Perspectiva, 1979.

4 Idem, vol. I, pp. 105-108, 122.

5 Charles R. BOXER, O Império Colonial Português. Lisboa: Edições 70, 1977.

Page 97: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

97

adivinhações, os invocadores do demônio, o pacto com as figuras diabólicas e as práticas

pagãs, de uma forma geral, são preocupações da Igreja desde os primórdios do Cristianismo.

Mas foi no início da Idade Moderna que a bruxaria, a magia e a superstição tornaram-se

objeto de leis civis e teológicas.

Após a fundação da Monarquia Portuguesa no século XII, passaram-se quase três

séculos para que os usos e costumes fossem compilados por juízes para formar o código de

leis. A compilação das Ordenações Afonsinas em meados do século XV, era a junção dos

direitos romano e canônico. Aplicava-se o direito romano em matéria temporal, desde que não

tivesse nenhuma vinculação com qualquer espécie de pecado. Enquanto o direito canônico,

fundado sobre a obediência ao papa e à Igreja, aplicava-se aos aspectos espirituais, e também

aos temporais, especialmente, quando o direito romano não se pronunciava ou quando sua

observância ocasionava algum tipo de pecado.

No Livro V das Ordenações Afonsinas (publicadas em 1446) estão especificados

os crimes e as penas judiciais para todos os tipos de delitos, inclusive os contra a fé: heresia,

apostasia e feitiçaria. Estabelecia-se que lançar varas para buscar ouro ou prata, usar espelhos

para adivinhações, assim como fazer artes e conversar com o diabo eram crimes de feitiçaria,

cujas penas variavam conforme a condição social do condenado. Se fosse “pessoa vil” seria

presa e açoitada publicamente onde o fato ocorresse. Se fosse um vassalo ou pessoa de maior

condição, a punição era o degredo por três anos para Ceuta.6

Essas leis foram alteradas com a publicação das Ordenações Filipinas (1521). No

que se refere à fé, os legisladores fizeram modificações rigorosas diante da observação dos

hábitos religiosos heterodoxos da população lusa. No capítulo XXXIII do Livro V, foram

tipificadas as práticas nas quais os sujeitos incorriam no crime de feitiçaria, e quais as penas

aplicáveis.7

Roubo de pedra d‟ara ou corporais, sendo de lugar sagrado ou não, – era muito

grave, o ladrão seria punido com a pena de morte. Fazer malefícios ou cura “em círculo, ou

fora delle, ou em encruzilhada, espiritos diabolicos invocar, ou a algua pessoa der a comer, ou

beber qualquer cousa pera querer bem ou mal a outrem, ou outrem a elle”, também resultaria

6 Ordenações Afonsinas. “Livro V, Título XXXXII – Dos Feiticeiros”. Coimbra: Real Imprensa da

Universidade, 1786, pp. 152-4 7 Idem, Livro V, Título XXXIII – Dos Feiticeiros, e das vigílias que se fazem nas Igrejas, pp. 92-6.

Page 98: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

98

em pena de morte. Porém, a execução só poderia ser feita após observação da “qualidade da

pessoa, e o modo em que se tais cousas fizeram.”8

Adivinhar com varas, água, cristal, espelho, espada, espádua de carneiro, figuras

desenhadas, imagens de metal, cabeça de homem morto ou outra parte do corpo, baraço de

enforcado, o usar essas coisas para feitiçaria ou fazer mal a alguém. As penas eram: açoite

público com baraço de enforcado, pregão no lugar onde o crime ocorreu, ser “ferrado em

ambas as faces com o ferro que pera isso mandamos fazer com um ff, porque seja sabido pelo

dito ferro, que foram julguados ou condenados por o dito malefício;” ou degredo perpétuo

para a Ilha de São Tomé, ou outras Ilhas de sua comarca. Pagavam-se de três mil réis para

delatores.9

Passar o doente em folhas de determinadas plantas, ou lama virgem; benzer espada

que matou alguém; guardar cabeça de saludador em caixa de ouro ou prata; ameaçar as

imagens de santo de afogamento caso não chovesse; usar peneira para saber de furto; ter raiz

de mandrágora em casa para obter graça com seus senhores ou ter sorte; lavar a cabeça de cão

para conseguir algo. Se fosse pessoa vil ou inferior a esta – seria publicamente açoitada com

baraço, pregão pela vila e pagamento de dois mil réis para seu acusador. Se fosse vassalo ou

superior a este ou esposa de pessoa nessa condição – seria “degradado para cada hum dos

nossos Luguares d‟Alem em África por dois annos” e pagamento de quatro mil reis para quem

o acusou.10

Nas Ordenações Manuelinas, publicadas em 1603, permaneceram quase

inalterados os tipos de crimes de feitiçaria e as penas. No entanto, foi extinto o castigo de

marcar o rosto com ferrete de insígnia difamante. A pena de degredo, para os que usassem dos

ingredientes citados anteriormente para fazer feitiçaria para o mal ou para o bem também

mudou. Em vez do exílio temporário à África, teria o banimento perpétuo para o Brasil. A

pena pecuniária ficou estabelecida em três mil réis para os condenados de qualquer

condição.11

No que diz respeito ao comportamento dos bons cristãos, o Concílio exigia dos

fiéis um imenso respeito aos Sacramentos, sob pena de excomunhão. A Eucaristia tinha

excelência sobre os demais Sacramentos: “A sua excelência e singularidade está em que os

8 Idem, p. 92.

9 Idem, p. 93.

10 Idem, p. 95.

11 Ordenações Manuelinas. Ordenações do Senhor Rey D. Manuel. Livro V, Título III – Dos feiticeiros.

Coimbra: Universidade de Coimbra, 1797, pp. 1150-2.

Page 99: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

99

outros sacramentos só têm a virtude de santificar, quando alguém faz uso deles, ao passo que

na Eucaristia está o próprio autor da santidade.” Reforçava-se o dogma que logo depois da

consagração, estaria ali “o verdadeiro corpo de Nosso Senhor e seu verdadeiro sangue

conjuntamente com sua alma e sua divindade, sob as espécies de pão e de vinho, isto é, seu

corpo sob a espécie de pão e seu sangue sob a espécie de vinho, por força das palavras

mesmas”12 A essa acepção institui-se o dogma da transubstanciação.

Todos os fiéis eram obrigados tributar à hóstia a veneração e o culto de adoração –

latria -, que só se devia a Deus. O Concilio declarou instituído o costume de celebrar

anualmente o Santíssimo Sacramento. Este deveria ser “levado honorífica e reverentemente

em procissões pelas ruas e lugares públicos. Pois é muito justo que haja alguns dias sagrados

e estabelecidos.” O objetivo era fazer com que todos os “cristãos, com singular demonstração

de ânimo, se mostrem lembrados e agradecidos para com seu comum Senhor e Redentor por

tão inefável e verdadeiramente divino beneficio, em que se representa a vitória e o triunfo de

sua morte.”13

A Eucaristia deveria ser obrigatoriamente oferecida aos enfermos. O Santíssimo

Sacramento teria um lugar especial reservado para ser guardado depois de consagrado. Os

fiéis deveriam se preparar espiritualmente para comungar – deveriam estar em juízo e

confessar; e receber a hóstia das mãos do sacerdote e não mais diretamente na boca, como era

realizado antes.

No debate sobre os dogmas da Igreja e dos Sacramentos instituídos por Jesus

Cristo no Concílio, que ocorreu na cidade Trento, entre 1545 e 1563, foi definido que era

preciso “eliminar os erros e extirpar as heresias a respeito destes santíssimos sacramentos”,

pois que a inobservância fazia mal à “pureza da Igreja Católica e à salvação das almas”.14

Em meio ao que era discutido em Trento, Portugal se antecipava no cumprimento

das novas normas, porque era uma nação católica, por excelência.

Grosso modo, as ordenações foram resultados da codificação das leis em vigor.

Era um código civil com jurisdição sobre a fé. Religião e Estado andavam de mãos dadas. No

entanto, os crimes contra a religião, não podiam ser julgados pela justiça secular. Cabia aos

juízos eclesiásticos. A Inquisição portuguesa foi um tribunal criado especialmente para julgar

12

O Sacrossanto e Ecumenico Concilio de Trento em Latim e Portuguez, Lisboa: Officina Patriarc. de

Francisco Luiz Ameno, 1781. Ver: Cap. III - Da excelência da Eucaristia sobre os outros sacramentos, p.249. 13

Idem. 14

Idem, “Secção VII – Decreto dos Sacramentos”, p. 171.

Page 100: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

100

os crimes contra a fé católica. Foi instituída pela bula papal Cum ad nihil magis de Paulo III

em março de 1536.

Para fiscalizar o cumprimento dos decretos estabelecidos pela Igreja Católica em

Trento, o tribunal inquisitorial foi fortalecido. No mesmo ano em que foi decretada a referida

bula, o inquisidor-geral publicou um monitório com a descrição pormenorizada dos crimes

sob jurisdição inquisitorial que deviam ser denunciados ao tribunal: o judaísmo dos cristãos-

novos, o luteranismo, o islamismo, as proposições heréticas e os sortilégios. No monitório

esses “delitos” são especificados e ampliados: “cerimônias judaicas e islâmicas, as opiniões

heréticas (entre as quais os erros luteranos, a incredulidade, a rejeição dos dogmas e dos

sacramentos), da feitiçaria e da bigamia (...)”.15

O Tribunal da Inquisição de Portugal teve vida longa, durou quase três séculos

(1536-1821). Ao longo de quase três séculos de atuação foi regulado por quatro regimentos. O

primeiro é de 1552. O segundo de 1613. O terceiro, de 1640, teve vida mais longa, vigorando

por 134 anos. Em 1774 foi expedido o último. Vejamos como os crimes de feitiçaria foram

classificados nos quatro regimentos inquisitoriais: No primeiro e segundo regimentos, o

interesse maior era tornar mais rigorosa a legislação eclesiástica contra o judaísmo e a

apostasia. Portanto, não há qualquer referência às práticas mágicas ou de feitiçaria.16

No terceiro Regimento consta que se alguma pessoa, que em “desprezo do

santíssimo Sacramento do altar, quebrar, derrubar, tomar, ou fazer algum desacato à Hóstia

consagrada, ou ao Cálice consagrado”, confessar que cometeu essa culpa por viver apartada

da fé Católica, seria processada para responder como herege formal. Teria assim, as mesmas

penas impostas aos condenados por heresia.17

Em caso de práticas de feitiçarias, sortilégios, ou adivinhações, usando de

superstições heréticas, a pessoa incorreria em penas de excomunhão, confiscação de bens e no

crime de heresia. Havendo provas legítimas de heresia ou apostasia, e o réu não confessasse,

seria relaxado à justiça secular, e sairia em Auto-de-fé com habito de relaxado, “carocha na

cabeça, com rótulo de feiticeiro na forma costumada”.18

O uso de hóstia e vinho consagrados, (corpo e sangue de Cristo), pedra d‟ara

roubada de lugar sagrado, ou parte dela, corporais, ou qualquer outra coisa sagrada nas

15

Francisco BETHENCOURT, História das Inquisições. Op. Cit., p.24. 16

Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal [1552 e 1613]. In: Revista do Instituto

Historico e Geográfico do Brasil, Rio de Janeiro, n. 392, jan./ dez. 1996, pp. 573-691. 17

“Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal” [1640], Idem, p.854 18

Idem, p.855.

Page 101: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

101

feitiçarias, adivinhações e sortilégios, a invocação aos espíritos diabólicos com preces e

sacrifícios ou outros cultos de latria (a Deus) ou dolia (aos santos e anjos); o rebatizamento

de criança sabendo que havia sido batizada; o chamamento ao demônio por seus nomes; o

incensamento ou unção com óleo sagrado a cabeça de defunto, eram atos que revelavam a

“veemente suspeita de heresia”. A pena seria atenuada caso o culpado confessasse aos

inquisidores como foi realizada a cerimônia de pacto diabólico, onde ocorreu, quais as

circunstâncias em que o demônio foi invocado e quem foram os responsáveis.19

Se o processo resultasse em “leve presunção de serem suspeitos na fé”, o réu seria

levado a tormento. Se confessasse algo mais, faria abjuração de leve no auto-de-fé. Aquele

que abjurasse de leve ou de veemente seria condenado nas penas arbitrárias, e penitências

espirituais.20

Cabe ressaltar que o delito da feitiçaria não foi o foco da Inquisição portuguesa,

como foram o judaísmo e os crimes morais, como o concubinato e a sodomia. Justamente, por

isso só aparece mais detalhamento no Regimento de 1640. Pedro Paiva explica que isso

ocorreu porque não se desenvolveu uma “ciência demonológica” em Portugal. Diferente do

que ocorreu em outras partes da Europa, onde houve uma produção maior de tratados

demonológicos esclarecendo sobre as ações do demônio.21

O que demonstramos acima foi a produção mista de ordens, que buscavam regular

as ações heréticas nas instâncias máximas da legislação portuguesa, representadas pela justiça

civil e pela Inquisição, que previam o crime de feitiçaria e as penas para os feiticeiros,

baseadas em arquétipos de feitiçaria de “obras clássicas”, bem como nos usos heterodoxos

dos símbolos cristãos pelos populares de Portugal. Nas conquistas de ultramar, esses

arquétipos foram aplicados aos nativos.

Paul Hair, em estudo minucioso do referencial teóricos de dois padres, Manoel

Álvares e Manoel de Barros, que atuaram na Missão da Guine, identificou que eles tiveram

como livro de cabeceira o “Malleus Malleficarum”, o manual elaborado pelos alemães para

distinguir um feiticeiro. Com base no Martelo das Feiticeiras e nas leis de Portugal, eles não

acreditaram que os acontecimentos naquela parte da África tivesse intervenção divina. Tudo

era obra do demônio. Ou seja, a visão de mundo dos jesuítas eram ecos de suas experiências

19

Idem. 20

Idem, 856. 21

Pedro PAIVA, Bruxaria e superstição num país sem caça às bruxas (1600-1774). Lisboa: Notícias

Editorial, 1997.

Page 102: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

102

sociais e intelectuais na Europa do século XVI e XVII. . Qualquer pessoa que soubesse

manipular o mundo sobrenatural era um agente do Diabo.22

No encontro entre os portugueses e as populações africanas houve um

estranhamento, mas também ouve adaptações, pois os códigos religiosos eram passíveis de

serem traduzidos, devido à identificação de semelhanças.

No capítulo 1 mostramos que na Missão da Guiné os clérigos constatavam, a partir

de seus referencias religiosos, que as práticas mágicas dos africanos eram vistas como

intermediações constantes do demônio. Os missionários, administradores, soldados, e outros

funcionários da Coroa, que atuaram nos espaços atlânticos do Império Português faziam parte

desse universo mental mágico, onde as bruxas voavam, pessoas comuns podiam fazer pactos

com o demônio, elaboravam feitiços sofisticados com objetos sagrados, que eram as nôminas,

faziam adivinhações com morto, com espada, espelho, água, e muitas outras artes.

2.2. Negros na Inquisição de Portugal

Durante o primeiro século – entre 1450 e 1550, a maior parte dos escravos

embarcava nos navios que aportavam na zona da Senegâmbia, grosso modo entre Senegal e

Serra Leoa. Mas, nas primeiras décadas do séc. XVI, também desembarcavam em Lisboa

escravos oriundos de São Tomé e do Benin. A partir de 1580 e mais ainda no início do séc.

XVII os escravos vindos de Angola e Congo se tornaram mais numerosos e guardaram o

primeiro lugar em termos demográficos até o fim do tráfico. Enfim, nas duas ultimas décadas

do séc. XVII desembarcaram, de maneira cada vez mais regular, os escravos minas que

constituíram o segundo grupo importante de africanos em Lisboa.23

Duas pesquisas se destacam sobre a presença dos negros em Portugal e suas

estratégias de recriação das culturas tradicionais em terra de brancos: Didier Lahon e Daniela

Buono Calainho. Ambos se apoiaram em fontes inquisitoriais para investigar as práticas

cotidianas e religiosas de origem africana protagonizadas pelos negros estabelecidos no

Reino. Didier Lahon aprofundou o seu estudo por meio da investigação da presença das

22

HAIR, P. E. H. Heretics, Slaves, and Witches – as seen by Guinea Jesuits c. 1610. Lisboa: Instituto de

Investigação Científica Tropical. 2002. Serie Separatas; e Journal of Religion in Africa. XXVIII, no

2, 1998,

pp. 13-4. 23

Didier LAHON, Inquisição, pacto com demônio e “magia” africana em Lisboa no século XVIII. Topoi. Rio de

Janeiro: Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ/ 7Letras, 2004, vol.5, n.8.

Page 103: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

103

irmandades de negros por todas as províncias de Portugal e intentou uma análise

morfológica.24

Através das fontes inquisitoriais, Daniela Buono Calainho investigou a difusão das

bolsas de mandinga, a partir da África, para o Brasil e Portugal. A autora diz que “arriscou”

fazer uma reflexão sobre o processo de difusão de aspectos da religiosidade africana através

do rastreamento da rota das bolsas de mandinga no Império. Na sua interpretação, a difusão

das bolsas de mandinga no Império Português foi fruto da circulação de saberes e contatos

entre africanos que circularam pela América Portuguesa e pelo Reino.25 Ela utilizou

processos inquisitoriais, Livros de Denúncias e os Cadernos do Promotor dos séculos XVI a

XVIII, como fontes para identificar a origem étnica dos negros envolvidos com as bolsas de

mandinga no Reino. Através desses documentos, descobriu que a maioria dos usuários era

originária da Costa da Mina. Também analisou alguns processos nos quais aparecem as

evidências da mobilidade dos escravos nos espaços do Império português. Eles circulavam

acompanhando seus proprietários pelo Reino, permanecendo tempos curtos ou mais

estendidos nesses lugares, favorecendo o encontro e a troca de idéias entre negros de diversas

partes da África no contexto da escravidão urbana portuguesa.

Laura de Mello e Souza, já tinha chamado atenção em sua obra, desde 1986, que

os processos dos mandingueiros do Brasil estavam geralmente ligados aos processos dos

negros de Portugal. Ocorria que, na capital do Império, os escravos acompanhavam

funcionários da Coroa que para lá se dirigiam. Essa permanência curta ou longa propiciava

que os negros propagandeassem “valores culturais africanos” e práticas mágicas coloniais,

como a bolsa de mandinga.26

A autora ainda alertou para um dado interessante acerca dos usuários, que não

eram apenas negros. Em 1714, Francisco Lourenço de Vasconcelos, branco, natural de

Angola saiu em auto-de-fé, acusado de porte de bolsa. Em 1716, Diogo Lopes, branco, natural

de Cabo Verde, também incorreu no mesmo crime e na mesma pena.27 Apesar de brancos, os

24

Didier LAHON, Inquisição, pacto com demônio e “magia” africana em Lisboa no século XVIII. Topoi. Rio de

Janeiro: Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ/ 7Letras, 2004, vol.5, n.8. 25

Daniela Buono CALAINHO, Metrópole das Mandingas: Religiosidade Negra e Inquisição Portuguesa no

Antigo Regime. Doutorado em História. UFF, Niterói, RJ, 2000; Jambacousses e gangazambes: feiticeiros

negros em Portugal. Afro-Ásia, UFBA, Centro de Estudos Afro-Brasileiros, v.25-26, p.141-176, 2001;

Africanos penitenciados pela Inquisição Portuguesa, Revista Lusófona de Ciência das Religiões, Lisboa,

v.5/6, p.47-63, 2004. 26

Laura de Mello e SOUZA, O Diabo e a terra de Santa Cruz. São Paulo, Cia. das Letras, 2002, pp.215-17. 27

Idem, p. 216.

Page 104: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

104

dois processados eram originários de regiões do Império português onde o uso de amuletos

fazia parte dos costumes locais.

Calainho destacou o fato de a maior parte dos africanos do Reino processados já

ter habitado ou passado de viagem pelo Brasil ou manter relações com mandingueiros da

Colônia. Portanto, a justificativa para insistência dos inquisidores no questionamento aos réus

para que eles dissessem onde aprenderam a fazer a bolsa. As respostas indicavam sempre uma

conexão entre os mandingueiros de Portugal e do Brasil.

No conjunto de processos analisados, tanto por Laura de Mello e Souza quanto por

Daniela Calainho, o mais expressivo é o de José Francisco Pereira. Eles nasceu nos primeiros

anos do século XVIII na Costa da Mina. Depois de apresado em sua terra e atravessado o

Atlântico num tumbeiro, desembarcou em Recife, onde foi batizado. Foi então levado para o

Rio de Janeiro, depois para Minas Gerais, onde teve outro dono. Cruzaria novamente o

Atlântico, acompanhando o novo senhor para a cidade de Lisboa, onde foi preso em 1730,

com menos de 30 anos de idade. Confessou aos inquisidores que aprendeu a confeccionar

bolsas de mandinga no Brasil, pois comprara um artefato desses no Rio de Janeiro, abriu-o e

passou a imitar a produção. Por ser analfabeto, pedia ajuda a outras pessoas para transcrever

os textos das orações. Em Recife contratou um estudante, filho do boticário. Em Lisboa,

recorreu a Antonio Guedes, 20 anos, que era “moço de servir”, no Mosteiro de Salzedas. Nas

suas bolsas continham orações benzidas sob a pedra d‟ara. Importante notar que os escravos

de padres eram importantes vetores de aproximação dos negros à escrita de orações, o que foi

observado no Brasil também.

O serviço de colocar sub-repticiamente as bolsas debaixo da pedra na Igreja era de

José Francisco Pedroso, seu ajudante, que já tinha o costume de fazer isso.28 José Francisco

Pedroso era escravo de Domingo Francisco Pedroso, irmão do dono de Jose Francisco

Pereira. Ao ser preso, Pedroso confessou que morou no Rio de Janeiro, onde fora batizado,

crismado e onde aprenderam a fazer as bolsas de Mandinga. Em Portugal, houve grande

procura de vários negros pelas bolsas produzidas por eles. Questionado também sobre os seus

clientes, ele deu uma lista de negros do Império que circulavam pelo Reino e compravam as

bolsas para se proteger de “cutiladas”: José, escravo que estava numa frota do Rio de Janeiro;

Francisco que seguia numa frota da Bahia para o Maranhão; Antonio, escravo de um padre de

Alcântara; Miguel, escravo de um sacerdote de São Paulo, vendido para a Bahia; Ventura,

28

ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 11774. Apud. Mello e Souza, Op. Cit., p. 217-8, e CALAINHO, Op.

Cit., p. 166-7.

Page 105: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

105

escravo de homem de negócio do Rio de Janeiro e alguns pretos de Alfama, dos quais não

lembrava os nomes.29

Simão, um preto angola, foi anunciado na confissão de José Pereira como

mandingueiro. Esse escravo da Costa da Mina confessara ao inquisidor que quando estava

muito atarefado para atender a demanda de seus clientes, que buscavam bolsas de mandinga

em Lisboa, indicava o angolano Simão para outras pessoas.

Manuel da Piedade, natural da Bahia, era conhecido entre os negros do Porto, onde

residia, por portar uma oração do Justo Juiz como uma mandinga para protegê-lo e vendia

ingredientes para bolsas de mandinga. Foi denunciado pelos seus clientes: o negro Ventura e o

escravo Luiz de Lima da Costa da Mina.30

O escravo do cônego Luiz de Carvalho Povoas, chamado Luiz de Lima, natural de

Judá, Costa da Mina, e morador do Porto, disse ao inquisidor, em 1722, que antes de ser

levado para o Reino esteve em Pernambuco, onde adquiriu uma bolsa de mandinga do escravo

Francisco. Abriu-a e fez outras semelhantes. Mas sua fama corria porque recebia bolsas e

ingredientes diretamente de fornecedores da província de Pernambuco. Tornou-se um grande

vendedor de mandingas. Dentre seus clientes, havia negros do Porto e escravos de senhores

brasileiros. Luis de Lima ainda denunciou outros mandingueiros que conhecera, todos de

Pernambuco.31

Na Inquisição Portuguesa foi contabilizado um total de 912 processos de réus

culpados por feitiçaria. Destes, 93 foram negros e mulatos processados e denunciados.32

Dentre estes negros, 46 (69,7%) eram procedentes de diversas partes da África, conforme

mostra a tabela.

29

ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 11767. Apud. Mello e Souza, Op. Cit., p. 217-8. 30

ANTT, Inquisição de Coimbra, processo 9972. Apud. CALAINHO, Op. Cit., p. 167-9. 31

ANTT, Inquisição de Coimbra, processo 1630. Apud. e CALAINHO, Op. Cit., p. 169. 32

Francisco BETHENCOURT, O imaginário da magia: Feiticeiros, saludadores e nigromantes. Lisboa:

Universidade Aberta, 1987, pp. 302-6.

Page 106: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

106

Quadro 1. Origem dos Africanos denunciados e processados por feitiçaria

pela Inquisição portuguesa (séculos XVI-XVIII)

Fontes: Processos inquisitoriais, Cadernos do Promotor e Livros de Denúncias dos

tribunais de Coimbra, Évora e Lisboa. Apud. Daniela Buono CALAINHO, Op.

Cit., p. 281.

A maioria dos africanos denunciada por práticas mágicas, envolvendo uso de bolsa

em busca de proteção, era de centro-africanos, embora também seja expressiva a quantidade

de gente da África Ocidental.

A autora reforça sua hipótese da existência de uma relação entre bolsas de

mandinga e “identidade étnico-cultural” dos negros cativos que residiam em Portugal, porque

os maiores usuários eram os mandingas, “povos guineenses, inseridos no chamado grupo

iorubá-nagô.”33

Após localizar a origem da maioria dos mandingueiros da diáspora atlântica,

provindos da Guiné, a autora historicizou o termo Mandinga. Apontou para o etnônimo dos

habitantes do Mali, que possuíam crenças “animistas”. Após a penetração do Islã na África

Negra, esse povo teria difundido um sincretismo “muçulmano-fetichista”. Os amuletos foram

uma das formas de manifestação desse sincretismo da expansão dos mandingas.34

Na sua interpretação, os povos mandingas desembarcados no Reino e noutras

partes do Império teriam se misturado com outras etnias, e suas práticas de origem islâmicas

33

Daniela CALAINHO, Op. Cit., p. 165. 34

Idem, p. 165.

Região Total Proteção

África Ocidental 20 11

Costa da Mina 12 9

Guiné 4 0

Cabo Verde 4 2

África Centro-Ocidental 25 8

Angola 15 5

Congo 8 2

São Tomé 1 1

Benguela 1 0

África Oriental 1 0

Moçambique 1 0

Totais 46 19

Page 107: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

107

foram assimiladas por outros grupos: “De uma origem islamizada, difundiu-se por grupos de

origem bantu, outros grupos africanos e caminhou para fora da África, marcando presença já

com diferentes conteúdos em Portugal e no Brasil colonial, e na Salvador de 1835”.35

Diferente do sugerido por Daniela Calainho, o povo mandinga não pertence aos

iorubás e sim ao ramo Mandê da Alta Guiné (sussu-ialunca, soninquê, vai-cono, manica-

bambara-diula, mande-bande, loco, lomo, dã, guro, tura, samo, bisa e busa). Os povos da

Costa da Mina, (Baixa Guiné), de onde procede a maioria dos denunciados em Portugal,

faziam parte do subgrupo lingüístico ioruba-nagô (ewe-akan, fom, achanti, fante, gã, iorubá,

igala, nupê, edo, idoma, ibo e ijó).36 Além disso, a origem dos escravos da Revolta dos Malês

em 1835, em Salvador, que portavam amuletos com inscrições em árabes, não eram da Alta

Guiné.37

A palavra Mandinga, desde o século XV até os dias atuais, ainda guarda a mesma

acepção que tinha os missionários e viajantes europeus, especialmente aquelas divulgadas

pela Missão da Guiné (que compreendia a costa de Cacheu a Serra Leoa e interior), onde eles

se surpreendiam em ver as pessoas portando amuletos por todos os lugares. Nesta área de

atuação primeira dos portugueses, as línguas pertencem ao subgrupo “oeste-atlântico”: fula,

serere, jalofo, noon, diola, balante, tenda, beafada, pajade, banhum, nalu, bijagos e outras.38

Vale ressaltar ausência de indícios da existência desse povos na América lusa.

As evidências demonstram, portanto, que não há relação direta entre os amuletos

usados pelos negros em Lisboa (denominados bolsas de mandinga pelos inquisidores) e o

etnônimo. Nenhum dos acusados pertencia ao sub-grupo mandê ou oeste-atlântico.

35

Idem, p. 173. 36

As línguas faladas na Alta Guiné, Baixa Guine é África Central foram classificadas no grupo Níger-Congo, que

tem seis ramificações (Mandes, Oeste Atlântico, Gur, Kwa, Benue Congo e Adamawa Oriental). Os Mandingas

fazem parte do sub-grupo Mande. Os povos iorubás fazem parte do grupo Kwa da Baixa Guiné. Alberto da

Costa e SILVA. Op. Cit., p.40. 37

“Os mandingas não se aliaram aos rebeldes malês em Salvador, por razões que se encontravam do outro lado do

Atlântico. Enquanto na África, prevalecia, entre os muçulmanos fulas, hauçás, bornus, nupes e iorubas, um

islamismo militante, enraizado na pregação do ulemá magrebino Muhammad ibne Abd al-Karim al-Maghili e

reforçada pelo xeque tuaregue Jibril ibne Umar e pelo próprio Usuman dan Fodio, entre os soninquês e

mandingas gozava de enorme prestígio uma tradição dita quietista, que tinha origem no pensamento do egípcio

Jalal al-Din al-Suyuti, para quem era mais meritório manter a paz do que fazer a guerra, e do al-hajj Salim

Suwari, de Dia, em Macina, segundo o qual o islamita que vivia entre infiéis tinha de ser o mais estrito possível

no cumprimento de suas obrigações religiosas, mas devia afastar-se da política e dos conflitos armados. O all

hajj Suwari recomendava a coexistência com os infiéis e, consequentemente, rejeitava o jihad.” Alberto da

Costa e SILVA. Sobre a rebelião de 1835, na Bahia. In: Um rio chamado Atlântico: a África no Brasil e o

Brasil na África. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: UFRJ, 2003, pp.189-214. 38

Idem.

Page 108: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

108

No século XVIII, o termo deixou de ter uma conotação étnica no Império

português. Firmara-se com outros significados: mandinga passou a ser sortilégio e

mandingueiro, feiticeiro, ou feiticeiro africano.

Laura de Mello e Souza, em seu estudo sobre as feitiçarias e práticas mágicas que

faziam parte do cotidiano na Colônia, disse que as bolsas de mandinga foram a forma mais

típica de feitiçaria nos Setecentos porque eram amplamente usadas por todos os grupos

sociais. Não se restringia apenas a negros e escravos, usavam-nas também os brancos e índios.

Entretanto, os negros compunham a parcela predominante de usuários. A autora sugeriu que

as bolsas de mandinga se popularizaram no Brasil somente no Setecentos porque foi o tempo

necessário para construção de uma mentalidade colonial sincrética, na qual foram agregadas

as tradições européias, ameríndias e africanas. Essa explicação se justificaria pelo fato de não

haver menção a elas nem na Primeira e nem na Segunda Visitação do Santo Oficio ao Brasil.

O único caso de bolsa de mandinga no século XVII foi a denúncia contra o moço Manuel

João, o sapateiro do Maranhão, preso no Pará.39

Dessa forma, as bolsas não podem ser interpretadas apenas como resposta para os

conflitos deflagrados na Colônia entre senhores e escravos, pois se tornaram resultado da

acomodação das práticas religiosas africanas ao mundo do cativeiro. O catolicismo foi a

linguagem de mediação entre códigos culturais diferentes. Os documentos da Inquisição e

outros textos de época que relatam o comércio corrente de objetos sagrados cristãos revelam

que os negros africanizaram traços da tradição católica para que estes fizessem sentido diante

de suas necessidades.

A agregação de símbolos católicos, em geral roubados das igrejas, só ocorreu no

século XVIII, porque na América Portuguesa as práticas sincréticas começaram a aparecer

depois do processo de mistura de grupos étnicos diferentes e da propagação do catolicismo

entre os africanos. Portanto, a bolsa de mandinga tornou-se a expressão dos encontros no

Atlântico português. Pode-se, portanto inferir que os inquisidores atribuíram ao Brasil a

origem da elaboração da bolsa de mandinga por três motivos fundamentais: a profusão de

africanos “pagãos” postos em contato pelo cativeiro, a dificuldade em fazer com que o

catolicismo tridentino fosse cumprido na Colônia, principalmente pela falta de sacerdotes, das

distâncias das fazendas e das paróquias, e desinteresse dos senhores para que seus escravos

fossem doutrinados.

39

ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 10181. Apud. Mello e Souza, Op. Cit., p. 211.

Page 109: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

109

2.3 Negros do Atlântico na Inquisição

A Inquisição de Portugal, criada em 1536, teve que aguardar o estabelecimento das

ordens religiosas e instituições eclesiásticas como paróquias e dioceses para que o tribunal de

fé pudesse ser instaurado ou receber os visitadores enviados para outras partes do Império. O

tribunal de Goa, criado em 1560, com jurisdição sobre todo o Estado da Índia (que

compreendia os estabelecimentos portugueses no oriente, de África a Macau), foi o único

criado fora do Reino. Diferentemente do que fizera a Inquisição de Espanha (1478) em suas

possessões de além-mar, que desde 1517, nas Antilhas já tinha implantado uma estrutura

mista entre o tribunal eclesiástico e a Inquisição para a perseguição dos delitos de heresia. Em

1570, instituiu-se o Santo Oficio do México, em 1571, em Lima. Em 1610, o tribunal de

Cartagena das Índias. A entrada da Inquisição portuguesa no espaço atlântico foi pontuada

pelas visitas de inspeção aos arquipélagos da Madeira e dos Açores (1575-1576, 1591-1593 e

1618-1619), a Angola em 1596-1598, ao Brasil em 1591-1595 e 1618-1620. Mesmo

verificando a ausência de tribunal, processos foram sendo instruídos contra réus residentes ou

oriundos dessas áreas, devido a articulação entre a Inquisição e as estruturas eclesiásticas

locais. 40

Entre os séculos XVI e XVIII, o tribunal do Santo Ofício procurou atuar nos

territórios insulares africanos, na zona dos Rios da Guiné e Angola valendo-se de diversas

práticas judiciais: confirmação de licenças régias para saída do Reino, as visitas inquisitoriais

e pastorais, as denúncias, o despacho e julgamento de réus e o degredo.

Se comparada a ação da Inquisição em Portugal e noutras partes do Império,

poder-se-ia dizer que foi mais expressiva em Goa, onde 14 mil pessoas foram indiciadas. No

Brasil, mais de mil pessoas naturais e residentes foram denunciadas, a maior parte de cristãos

novos e alguns negros e índios. Na Guiné, houve 1800 denúncias enviadas a Lisboa, mas os

inquisidores classificaram 1503 como crimes da alçada da Inquisição. Deste total, apenas 29

tornaram-se processos, e somente 18 processos foram arrolados com sentença, dentre estes,

três negros naturais da região da Guiné. Em Angola, o Sumário de uma visita contabilizou

menos de 100 denunciados, a maioria cristãos novos e cristãos velhos, apenas um negro, e

nenhum se tornou processo.

40

Francisco BETHENCOURT & Philip HAVIK, A África e a Inquisição portuguesa: novas perspectivas. Revista

Lusófona de Ciência das Religiões. Ano III, 2004 / n.º 5/6 – 21-27.

Page 110: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

110

A ação da Inquisição limitou-se do lado africano porque as autoridades, em sua

maioria, estavam instaladas na costa. O interior era de difícil controle. Além disso, a

Inquisição não podia perseguir os “gentios”, apenas os batizados.

Importante lembrar que grande parte dos estudos sobre Inquisição em África, foi

empreendida por pesquisadores influenciados pela tendência historiográfica que busca

compreender a perseguição e a forte presença dos cristãos-novos em outros enclaves do

Império português. Nesse sentido, os mais importantes são os de José da Silva Horta e Filipa

Ribeiro da Silva.41

Também há outras pesquisas que buscam analisar os casos envolvendo as

sociedades africanas e o sincretismo cultural com as sociedades atlânticas: Philip Havik

estudou os processos de mulheres acusadas de feitiçaria na Guiné, e Selma Pantoja analisou

alguns casos suspeitos de feitiçaria como o resultado de circulação de saberes e da

mestiçagem nas áreas de intercâmbio de Angola.42

*

Entre 20 de agosto de 1596 e 04 de julho de 1598, a Inquisição portuguesa

encarregou o jesuíta Jorge Pereira, da Residência de Angola de fazer um inquérito sobre as

“coisas tocantes ao santo Oficio”. O resultado do procedimento do referido padre foi apenas

um “sumário de testemunhas”. Este deveria oferecer os elementos necessários para que uma

visita do Santo Ofício ocorresse, mas a proposta não foi levada a diante, apesar das insistentes

solicitações. As autoridades eclesiásticas e civis de Cabo Verde, Guiné, São Tomé e Príncipe

também desejaram uma visita de Inquisidor, mas também nunca foram atendidas. 43

41

José da Silva HORTA, Africanos e Portugueses na Documentação Inquisitorial, de Luanda a Mbanza Kongo.

In: Actas do Seminário Encontro de Povos e Culturas em Angola. Luanda (1995). Lisboa: CNCDP, 1997 e

Filipa Ribeiro da SILVA, A Inquisição em Cabo Verde, Guiné e S. Tomé e Príncipe (1536-1821):

contributo para o estudo da política do Santo Ofício nos territórios africanos. Lisboa, Dissertação em História

dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa (Séculos XV a XVIII), Faculdade de Ciências Sociais e

Humanas, Universidade Nova de Lisboa, 2002 42

Philip J HAVIK, Silences and Soundbytes. The gendered dynamics of trade and brokerage in the colonial

Guinea-Bissau region. Muenster/ New Brunswick, Lit Verlag/Transaction Publishers, 2004; Comerciantes e

Concubinas: sócios estratégicos no comércio Atlântico na Costa da Guiné. In: Revista Internacional de

História de África – A Dimensão Atlântica da África. Rio de Janeiro: CEA/USP/ SDG-Marinha/Capes,

pp.161-79, 1996 ; La sorcellerie, l‟acculturation et le genre: la persécution religieuse de l‟Inquisition

portugaise contre les femmes africaines converties en Haut Guinée (XVIIe siècle). Revista Lusófona de

Ciência das Religiões. Lisboa, Ano III, n.º 5/6, pp. 99-116. 2004. Selma PANTOJA, Inquisição, degredo e

mestiçagem em Angola no século XVIII. Revista Lusófona de Ciência das Religiões, Lisboa, Ano III, 2004

/ n.º 5/6. Pp. 117-136; Angola com os gangas e os zumbis nas redes da Inquisição no século XVIII. In: Artur

César ISAIA (Org.). Orixás e espíritos: o debate interdisciplinar na pesquisa contemporânea. Uberlândia:

EDUFU, 2006, p. 24. A denúncia consta nos Cadernos do Promotor. 43

José da Silva HORTA, Op. cit., p. 305.

Page 111: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

111

Em 1592, o padre Pero Rodrigues arribou na Bahia. Estava indo de Lisboa para

Angola a fim de resolver o problema dos sobados controlados pelos jesuítas, os sobas eram

avassalados dos padres desde a conquista de Angola por Paulo Dias de Novais; pois, o rei

Felipe III resolveu extinguir a capitania hereditária e dizimar o controle dos jesuítas. Pero

Rodrigues foi para Angola como inspetor-geral de assuntos espirituais e temporais. Quando

estava lá, foi convocado a formular um questionário de proposições, no qual aparecem os

crimes que deveriam ser identificados dentre os denunciados: judaísmo, luteranismo,

proposições contra a igreja, heresia, blasfêmia, crimes de natureza sexual e negligência

religiosa.

O padre Jorge Pereira, Superior da missão, realizou a diligência para buscar os

cristãos que não respeitavam os dogmas da Igreja. Contabilizou-se um total de 96

denunciados, que foram acusados por 46 testemunhas. A maior parte dos denunciados e

denunciantes eram residentes em Luanda. O local da inquirição foi a vila de São Paulo do

“Reino de Angola”. As denúncias eram relativas a delitos cometidos no Império – Luanda,

Lisboa, Brasil e São Tomé. O grupo mais representativo dos denunciados foi formado por

comerciantes envolvidos no tráfico de escravos, os cristãos-novos e cristãos-velhos do Reino.

As testemunhas foram recrutadas entre os cristãos-velhos mais respeitados do Congo e

Angola, pois já tinham exercido funções judiciais. Estes denunciaram os cristãos novos,

evidenciando, assim, uma solidariedade entre os primeiros contra os últimos.

Um dos cristãos-novos foi acusado de carregar muitas imagens do menino Jesus

dentro de uma canastra (cesta larga feita de treliças de madeira) quando ia fazer resgate no

sertão. Este caso foi relatado por duas testemunhas ao padre Francisco Osouro, que foi

provisor no reino do Congo. Jose da Silva Horta observou que se desenvolveu um tráfico de

imagens de santos, de Nossa Senhora e do Menino-Jesus no Congo e Angola, pois os

africanos se encantavam por tais peças. Os centros africanos interpretavam os símbolos

católicos como se fossem os minkisi, objetos dotados de poderes mágicos, capazes de protege-

los de infortúnios.

Apenas um africano, cujo nome e local de residência não aparecem no sumário,

consta do inquérito com o estatuto de denunciado por crime de sacrilégio. Ele era escravo de

um cristão-novo. Sua culpa foi ter carregado uma imagem de santo amarrada a um feixe de

lenha, que não se sabia se era de Cristo ou de Nossa Senhora. Pode ser que fosse sua, mas os

indícios levam a crer que o escravo era um agente comercial de seu senhor no tráfico de

imagens de santos no Congo. Portanto, incorria também em crime de simonia. Na visão das

Page 112: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

112

testemunhas, a gravidade era porque a venda dos santos estava sendo feita por um negro

(gentio) a mando de um cristão-novo (de quem se desconfiava da fé).

Os cristãos-novos atuavam à margem do processo institucional da missão católica

de cristianização dos gentios e fugiam do enquadramento das normas eclesiásticas. O padre

Manuel da Silveira, o “quitinga” (manco), cristão-novo, aparece como um exímio

comerciante de bulas. Ele mandava “suas negras”, que podiam ser suas escravas ou

concubinas, à feira de M‟bata vender as folhas das bulas de indulgências.44 Álvaro Lopes

vendia “caras ou carrancas de pastilha com fio de seda e alchimia” e um boneco dizendo que

eram “ossos” de santos ou “filhos de deus” 45. Enquanto cristãos-novos já haviam entendido

que os povos quimbundo e ambundo com os quais se relacionavam tinham predileção pelos

objetos cristãos, o clero católico entendia que, além da dificuldade de contingente para

catequizar os gentios, ainda tinham que enfrentar a concorrência dos cristãos novos, que

praticavam simonia.

Em janeiro de 1626, o Duque de Hermosa, a mando do Rei de Portugal, enviou

uma carta ao governador de Angola Fernão de Souza. Comunicava-lhe que estava enviando,

por ordem do inquisidor-geral dos Reinos e senhorios de Portugal, Fernão Martins

Mascarenhas, o licenciado Luis Pires da Veiga como deputado do Santo Ofício para visitar o

bispado de Angola. Em setembro do mesmo ano, o governador de Angola respondeu a carta,

sinalizando a chegada do visitador do Santo Oficio da Inquisição. Ainda se desconhece o livro

de assento dessa visitação.46

Quase um século depois da primeira visita, em 24 de abril de 1693, foi feito outro

pedido para a Inquisição atuar na África Central. Desta feita, pelo governador Gonçalo da

Costa de Menezes, que enviou ao rei de Portugal uma longa carta, na qual pedia que os

moradores fossem reprimidos rigorosamente, pois regressavam às superstições antigas:

todos ponhamos em grane cuidado fazer o serviço de Deus, como V. Magestade nos

manda, vestindo-nos do mesmo zelo cattholico com o fervor a que nos dá exemplo a

piedade de V. Mafestade, porque é certo que aqui é que convém as primeiras missões, não

sendo menos necessárias aos brancos e brancas principaes, ás quaes não era necessária

missão, senão Inquisição, ou que o Bispo fora n‟esta parte, o em que mais se occupara,

porque usam muitos e muitas das superstições dos negros, juramentos do bulungo e ritos

diabólicos, e na negraria se sabe que usam de circuncisão, e que é lastima na parte

44

Idem, p. 308. 45

Idem, p. 309. 46

José Lourenço de MENDONÇA & Antonio Joaquim MOREIRA, Historia dos principais actos e

procedimentos da Inquisição em Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1980, pp.142-3.

Page 113: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

113

principal seja este o procedimento dos christaos baptisados, e conviria que V. Magestade

mandara crear alguma forma de tribunal como o Bispo e os padres da Companhia,

Prelados das Religiões que fossem lettrados e capazes de julgar estes cazos onde se tomará

conhecimento d‟estes erros para se emendarem e castigarem conforme o forem, fazendo-

nos relapsos as execuções que mandarem os Sagrados Cânones, sem excepção de

pessoa.47

O Governador de Angola não estava se referindo aos negros, mas aos portugueses,

dentre eles, os judeus e cristãos novos.

José da Silva Horta que estudou com minúcia a atuação da Inquisição em Angola

informa que nenhum dos denunciados foi preso. E não foi encontrado processo de nenhum

deles.48

Depois dessa diligência ocorrida no último decênio do século XVII, há

conhecimento apenas de duas denúncias realizadas no tribunal inquisitorial contra moradores

da África Central. Uma contra o mulato forro Vicente de Morais, soldado do batalhão das

“guerras pretas”, em 1715, por porte de bolsa de mandinga. Outra, em 1722, contra o capitão

Antonio de Freitas, por ter recorrido aos ngangas para realizar um ritual de entambe – uma

cerimônia, presidida por um sacerdote ambundo, que oferecia comida (boi e bode) para as

divindades, sob som de batuque, afim de que a alma da falecida esposa do capitão deixasse o

mundo dos vivos.49

John Thornton inferiu que a tolerância e concessões dos portugueses em Angola,

face a natureza do cristianismo, eram próprias de uma situação em que eles não ditavam as

regras sociais. Os portugueses consideravam que a vida religiosa dos africanos era de natureza

diabólica. Porém, nada podiam fazer principalmente porque a Inquisição não tinha jurisdição

sobre os gentios, somente sobre os batizados.50

Além disso, a Inquisição era sustentada pelos bens confiscados dos réus. Daí o

interesse, em especial nos cristãos-novos e judeus, envolvidos em redes de comércio, por todo

o Reino. A prisão de africanos, mesmo que batizados, daria despesas ao Santo Oficio, caso

47

“Carta do Governador de Angola a sua Majestade el-Rei”, 24/04/1693, M.M.A., XIV, p. 296-7. 48

José da Silva HORTA, A inquisição em Angola e Congo: o inquérito de 1596-98 e o papel mediador das

justiças locais. In.: Arqueologia do Estado. Primeira jornada sobre forma de organização e exercício dos

poderes na Europa do sul, séculos XIII-XVIII. Lisboa: História e Crítica, vol. 1, 1988. pp. 387-425. Agradeço

ao professor José da Silva Horta pelos esclarecimentos e envio de materiais. 49

Selma PANTOJA, Inquisição, degredo e mestiçagem em Angola no século XVIII. Revista Lusófona de

Ciência das Religiões, Lisboa, Ano III, 2004 / n.º 5/6. Pp. 117-136; Angola com os gangas e os zumbis nas

redes da Inquisição no século XVIII. In: Artur César ISAIA (Org.). Orixás e espíritos: o debate interdisciplinar

na pesquisa contemporânea. Uberlândia: EDUFU, 2006, p. 24. A denúncia consta nos Cadernos do Promotor. 50

J. THORNTON, A África e os africanos na formação do mundo Atlântico. Op. Cit.

Page 114: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

114

não tivessem bens. Os pobres presos nos cárceres da Inquisição deveriam pagar as custas do

processo com trabalho para a Coroa. Se o preso fosse escravo, o senhor o perderia para o

Santo Oficio. Laura de Mello e Souza enfatizou o lugar privilegiado do Santo Oficio, cujos

poderes se sobrepunham aos dos proprietários de escravos da Colônia, pois podiam subtrair

estes aos cárceres inquisitoriais por anos, onde muitos morriam ou eram enviados para as

galés.51

Estudiosos da Inquisição são unânimes em indicar que a repressão inquisitorial

concentrou-se noutras partes do Império sobre os negociantes importantes, em sua maioria,

cristãos novos.52

*

Houve várias promessas de visitas na Guiné: em 1586 iria João Gonçalves

Arceiro. Em 1591, Heitor Furtado de Mendonça, o mesmo que foi ao Brasil, prometeu visita.

Para 1623 havia estimativa da ida de outro visitador. Supõe-se que não ocorreu nenhuma das

visitas por falta de cooperação dos jesuítas que missionavam na região, que andavam em

conflito com a diocese de Cabo Verde. O problema foi solucionado com a institucionalização

dos agentes do Santo Ofício para atuação nos enclaves do Império e apoio das ordens

religiosas estabelecidas nesses lugares.

Na Guiné, a Inquisição passou a atuar desde 1581 através de agentes habilitados:

os familiares do Santo Ofício. Os candidatos ao cargo eram sujeitos ao exame de limpeza de

sangue e de seus procedimentos de vida. No seiscentos, a maioria dos agentes eram

caboverdianos. Mas o Regimento da Inquisição de 1640, exigia que fossem naturais do Reino,

sem infâmia pública, ser ileso de penitência pela Inquisição, inclusive dos parentes.53

Os familiares eram responsáveis pelas denúncias de desvios religiosos, realização

de diligências e envio delas para o Reino e prisão de suspeitos. Eles eram instruídos por meio

de cartas enviadas pelo Comissário do Santo Oficio de Lisboa, endereçadas para o

responsável em fazer a diligência. Segundo os códigos inquisitoriais suas incumbências

limitavam-se a: “envio voluntário de denúncias, pois as tarefas como a remessa de suspeitos

presos, a reperguntação e a ratificação de testemunhos e a publicação dos editais da fé apenas

51

Laura de MELLO & SOUZA, Op. Cit., p.285. 52

Francisco BETHENCOURT, Op. Cit. p.217. 53

Filipa Ribeiro da SILVA, Op. cit. , p.98. A autora informa que a maior parte dos recrutados eram eclesiásticos

seculares, alguns regulares e pessoas civis. Mas a ação deles era muito limitada por três motivos: havia poucas

petições para o cargo de familiar, a articulação com o Santo Oficio de Lisboa era condicionada pela navegação,

e havia demora na comunicação por causa das chuvas, ventos, falta de expediente e roubo de correspondências.

Page 115: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

115

podiam ser feitas mediante ordem inquisitorial.”54 Os agentes, em geral, eram mal instruídos e

faziam denúncias que não pertenciam à esfera do Santo Ofício.55 Seus erros mais freqüentes

eram prender as pessoas sem autorização da Inquisição, encaminhamento do suspeito para

Portugal e confiscação dos bens. 56

Felipa Ribeiro da Silva realizou uma exaustiva pesquisa acerca do estabelecimento

da Inquisição em Cabo Verde, Rios da Guiné, São Tomé e Príncipe e da ação dos seus

agentes. Ela contabilizou um total de 1.741 crimes denunciados incluídos na alçada

inquisitorial. Do total de crimes aceitos e classificados, 1.145 deles, ou seja, 66% eram delitos

ideológicos; 14% crimes sexuais; 12,8% outros delitos; e 3,7% crimes contra o Santo Ofício.57

Quadro 2. Distribuição temporal dos crimes ideológicos

denunciados incluídos na alçada inquisitorial

Crimes ideológicos S.D. 1536-

1600

1601-

1700

1701-

1800

1800-

1821

Total

Judaísmo - 212 361 - - 573

Acolhimento de cristãos-

novos judaizantes

- - 35 - - 35

Comércio com cristãos-novos

judaizantes

- - 37 - - 37

Correspondência com

cristãos-novos judaizantes

- - 01 - - 01

Blasfêmia - 116 104 06 - 226

Proposições - 9 22 12 - 43

Ritos africanos - 01 53 - - 54

Feitiçaria 04 15 31 11 84 145

Luteranismo 01 04 26 - - 31

Total 05 357 670 29 84 1.145

Fonte: Filipa Ribeiro da SILVA. Op. Cit., pp.159-60.

54

Idem, p. 73. 55

Idem. Os crimes denunciados excluídos da jurisdição inquisitorial foram: abuso de poder eclesiástico, cobrança

de dinheiro por serviços paroquiais, desacatos públicos, mancebia, perseguição de religiosos e prostituição.

Pp.231-36. 56

Idem, ver item “Tarefas Concretizadas”, pp. 76-95. 57

Idem. As demais denúncias foram por crimes sexuais (bigamia, sodomia e solicitação), crimes contra o Santo

Ofício (abuso de poder do Santo Oficio, fingir ministro do Santo Ofício, fuga da prisão, impedir ação do Santo

Oficio, negligência na colaboração com o Santo Oficio), e outros delitos (desacato a imagens, comércio ilícito,

sigilismo, desrespeito pelos dias santos, desrespeito pelos sacramentos, dizer missa sem ordens, falso

testemunho, livros proibidos, maçonaria, saída do Reino sem licença e fingir revelação). P.161.

Page 116: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

116

Felipa Ribeiro da Silva elaborou uma distribuição temporal dos crimes ideológicos

denunciados e aceitos pela Inquisição em Lisboa, e observou que a concentração de denúncias

que ocorreu nos séculos XVI e XVII, nos referidos arquipélagos e rios da Guiné, esteve

relacionada ao período de maior evolução política e econômica destas regiões.

Segunda a autora, no século XVI e XVII, em virtude da instabilidade governativa

na Guiné e em São Tomé, bem como da rivalidade econômica entre os comerciantes

caboverdianos e os portugueses e europeus pelo monopólio do comércio da costa guineense, o

Santo Ofício tornou-se o principal meio de solucionar problemas de ordem econômica e

política, pois extirpava da sociedade os sujeitos que concorriam nas atividades comerciais.

Desta pesquisa, interessa-nos, de modo particular o levantamento do perfil dos

denunciantes bem como dos denunciados e as práticas culturais classificadas pela Inquisição

como “feitiçarias” e “ritos africanos”. Apesar de significativas, tais denúncias eram

numericamente poucas, o que prova o desinteresse da Inquisição por esses delitos em

território africano.

Os delatores eram homens com idade entre 21 e 50 anos, naturais do Reino e do

Império, residiam no local da infração ou nas proximidades, eram ligados aos órgãos de poder

eclesiásticos ou civis. Esta relação garantia-lhes o controle sobre os mecanismos de atuação

da Inquisição a nível local e encaminhamento dos autos e dos réus para Lisboa. Tal poder

abria espaço para abusos e excessos: “as autoridades locais dispunham de um meio para banir

da sociedade elementos indesejáveis.”58

Os denunciados eram predominantemente, brancos, cristãos-novos e cristãos-

velhos, naturais do Reino e do Império (Cabo Verde, São Tomé, Brasil, Benim), Flandres,

cuja maioria residia em ilhas do Cabo Verde (Santiago e Antão) e na Guiné (portos de Joala e

Ale), áreas de controle efetivo da Coroa. Eram homens ligados ao comércio, às artes

mecânicas, tarefas medicinais e atividades marítimas.

Há uma diferença entre o número de crimes e o de suspeitos. Foram 1.145 crimes

ideológicos cometidos por 460 denunciados. O estatuto religioso dos acusados ficou assim

distribuído: 351 deles estavam sem informação, 94 classificados como cristãos-novos, 10

cristãos-velhos, 3 cristãos, 01 com parte de cristão-novo e apenas 01 “gentio”.59 O único caso

de denúncia de gentio foi o da negra Maria Dias, residente na Guiné, século XVI.

58

Idem. A autora repete esse argumento diversas vezes ao longo da análise dos dados de sua pesquisa. Ver pp. 80,

120, 155, 157 e outros. 59

Idem, p. 240.

Page 117: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

117

Quanto aos denunciados por crime de feitiçaria, eram em geral brancos, mestiços,

negros batizados e gentios. Os brancos e mestiços faziam uso de dois tipos de práticas

mágicas – a européia e a africana. Em 1575, Gonçalo Álvares de Chaves e sua irmã, Ana

Chaves, moradores em São Tomé foram denunciados porque ele recorreu à arte da feitiçaria

que aprendera com seu pai na cova e exercia com o auxílio de um livro. “Além do poder de

comunicação com os mortos, o delatado estabelecera também um pacto com o demônio, a

quem dera um membro de seu corpo e com quem falava com regularidade”,60 para alcançar

proteção e afastar os males. Um século depois, em 1667, o soldado João Dias, assistente da

mesma ilha, diante dos perigos de sua profissão buscara proteger-se com um arsenal de

ingredientes de origem cristã combinada com outras que podem ser de cultos pagãos europeus

ou africanos. Ele colocou uma bolsa debaixo da pedra de ara, no altar da capela do Hospital

da Misericórdia da Ribeira Grande, na qual continha duas orações (uma invocando Jesus

Cristo e outra o justo Juiz de Cristo e da Santíssima Trindade), e “uns pedaços da partícula,

uns pós, dentro de papéis, um agulha, dois vinténs, um azevio de espora de galo”.61 Nas

orações, o soldado pedia a “salvação, o adiamento da morte, a protecção contra os inimigos e

todos os males do passado, do presente e do futuro. Nestas invocações solicitava também o

afastamento do diabo e todos os espíritos maus, bem como a concessão de todas as graças e

indulgências por ele pedidas.”62

No caso dos europeus ou afro-europeus suspeitos de gentilismo, as primeiras acusações

surgiam na seqüência da não observância dos preceitos religiosos católicos,

designadamente não ir à missa, não comungar e comer carne nos dias proibidos. A esses

comportamentos associavam-se, por vezes, a existência de laços de amizade com os

negros entre esses acusados e os indígenas e dos seus costumes como o uso de seus trajes,

penteados e adornos.63

A participação destes brancos e mestiços nas cerimônias dos autóctones e no culto

e adoração aos ídolos chinas levaram a população a realizar denúncias contra eles. O Major

Manuel Lopes Lobo, da praça de Cacheu foi denunciado pelo negro Manuel, da mesma praça,

porque o branco ofereceu-lhe cabritos e galos para que adivinhasse acontecimentos futuros. O

60

Inquisição de Lisboa, Livro 194, fls 195-198. Instituto dos Arquivos Nacionais/ Torre do Tombo. Apud Felipa

Ribeiro da SILVA, Op. Cit., p.210. 61

Inquisição de Lisboa, Livro 32, folhas 225; Livro 35, folha 160; processo n. 4469. Instituto dos Arquivos

Nacionais/ Torre do Tombo. Apud Felipa Ribeiro da SILVA. Op. Cit., p.210-11. 62

Idem, p. 211. 63

Idem, p.204.

Page 118: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

118

major Lobo queria saber especificamente se o desfecho da guerra que promoveria contra o rei

de Bissau seria favorável pra si.64

Queixas também foram enviadas ao Santo Oficio contra o pardo Manuel da Silva,

natural de Malaca em 1618 e Antonio Rodrigues Casquo, em 1609, ambos residentes em

Cacheu. Este último era suspeito de adesão às práticas gentílicas porque tomou parte em um

rito fúnebre repudiado pelos europeus, no qual pessoas eram sacrificadas ao morto (os jesuítas

Baltazar Barreira e Manoel Álvares ficaram horrorizados ao presenciar uma dessas cerimônias

e tentaram extingui-la das sociedades onde estiveram em missão).65 Antonio Rodrigues

Casquo foi acusado de manter estreito convívio com o rei de Bissau e por ocasião da morte

deste participou nas celebrações funerárias, auxiliou no enterramento do monarca, no

sacrifício dos que iam servi-lo na outra vida: o filho, a rainha e os escravos, e ainda colocou

uma mesa com uma toalha e uma refeição, onde o rei voltaria para se alimentar mais tarde.66

A maioria dos denunciados por feitiçaria foram negros gentios e batizados. Os

crimes deles consistiram em “crença nos ídolos, o uso de amuletos, mezinhas e orações para

fins terapêuticos, a adivinhação e os rituais funerários, a par de outros fenómenos com uma

expressão muito singular.”67 Assim, entre as acusações de feitiçaria, foi constante a delação da

participação de negros em cerimônias gentílicas bem como por recorrerem aos sacerdotes

locais ou por serem eles próprios os chefes de cerimônias.

Felipa Ribeiro da Silva fez uma observação importante: a participação nestes

rituais se agravava conforme o nível de cristianização dos indivíduos que nelas tomaram

parte, 68 fossem reinóis ou nativos batizados. De modo geral, de um modo geral, os negros

gentios não foram o alvo principal dos agentes locais da Inquisição porque constituíam apenas

um mau-exemplo para os cristianizados. A negra Maria Dias, residente na Guiné, por

exemplo, foi denunciada em meado do século XVI, acusada de usar um amuleto feito com um

pedaço de pênis de criança para curar-se das doenças da garganta. Os inquisidores em Lisboa

averiguaram a denúncia, mas julgaram as culpas insuficientes para arrolar um processo. A

64

Inquisição de Lisboa, Livro 205, folhas 231-231v. Instituto dos Arquivos Nacionais/ Torre do Tombo. Apud

Felipa Ribeiro da SILVA. Op. Cit., p.204 e 208. 65

M.M.A. Vol. IV. Op. Cit., pp.203-205, 236-239, 241, 255, 273-275, 392, etc. 66

Inquisição de Lisboa, Livro 275, folha 144. Instituto dos Arquivos Nacionais/ Torre do Tombo. Apud Felipa

Ribeiro da SILVA, Op. Cit., pp.204, 205 e 209. 67

Idem, p. 204. 68

Idem, p.203.

Page 119: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

119

“gentia” foi remetida à justiça eclesiástica ou sofreu repreensão na mesa ou o seu despacho foi

suspenso, pois não teve condenação.69

Medida semelhante foi tomada com o processo do negro forro, João Fernandes,

natural de Arda, residente em São Tomé, em 1588.70 Pelas características da denúncia era um

sacerdote, pois a população o procurava para que ele consultasse e receitasse mezinhas à base

de ervas para curar as suas doenças. Foi denunciado por possuir também uma casa no mato,

onde guardava cabeças de cães e cabras e outros ídolos que adorava. Esse era o seu local de

fazer oferendas. Segundo os denunciantes, tinha escravos que trabalhavam como seus

assistentes de “feitiçaria” e por ocasião da morte de um deles, o sacerdote celebrou o seu óbito

com o rito gentílico parecido com o das Chinas: “deitando sangue de galinha e vinho de

palma dentro da cova do morto e fazendo grande festa ao som de abataque (sic), trombeta e

outros instrumentos autóctones.”71 João Fernandes certamente era um babalorixa ou vodunsi

da Baixa Guiné, pois seus ritos são semelhantes aos celebrados aos orixás e voduns.

Distante de São Tomé, em Santiago, outro negro, José Cabral, em 1700, era

também um sacerdote, que os denunciantes chamaram de feiticeiro. Ele fazia adivinhações

através de peneiras, levava oferendas aos ídolos e usava rezas a Santo Antônio para conhecer

o futuro das pessoas e realizar curas. Este é um dos poucos casos em que os nativos aparecem

sincretizando as práticas católicas com as locais.72

Na Ilha de Santo Antão, onde havia menor presença de clérigos do que na de

Santiago, um grupo de negros, formado pelo sapateiro Manuel Clara, Carlos Fatuda, João

Antonio e Inocência Sianna, conhecidos como “Curadores do Espogeiro”, no início dos

Oitocentos, foram denunciados porque coletavam ervas à meia-noite para fazer mezinhas,

proferiam “adivinhações acerca do paradeiro e estado de saúde das pessoas embarcadas,

através de um mecanismo designado por peneiras, mas cujos procedimentos não foram

especificados pelos denunciantes.”73

A Inquisição nas Ilhas de Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e costa da Guiné foi

relativamente branda – teve caráter mais missionário e catequético do que coercitivo e

69

Inquisição de Lisboa, processo n.º 233-233ª. Instituto dos Arquivos Nacionais/ Torre do Tombo. Apud Felipa

Ribeiro da SILVA, Op. Cit., p.207. 70

Inquisição de Lisboa, Livro 209. Instituto dos Arquivos Nacionais/ Torre do Tombo. Apud Felipa Ribeiro da

SILVA, Op. Cit., pp.206 e 207. 71

Idem, p.209. 72

Inquisição de Lisboa, Livro 316, folhas 454-455v. Instituto dos Arquivos Nacionais/ Torre do Tombo. Apud

Felipa Ribeiro da SILVA, Op. Cit., pp.207 e 208. 73

Inquisição de Lisboa, processo n.º 15055. Instituto dos Arquivos Nacionais/ Torre do Tombo. Apud Felipa

Ribeiro da SILVA, Op. Cit., pp.207 e 208.

Page 120: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

120

violento, na interpretação de Ribeiro da Silva. Os números confirmam a idéia. De um total de

1800 denúncias enviadas à Lisboa, os inquisidores classificaram 1503 como crimes da alçada

da Inquisição. Deste total, apenas 29 tornaram-se processos. Somente 18 processos foram

arrolados com sentença. Quais os crimes processados na Costa da Guiné e nas Ilhas de Cabo

Verde, São Tomé e Príncipe? Foram 07 crimes ideológicos (03 judaísmo; 02 blasfêmia; 01

luteranismo e 01 rito africano) 08 crimes sexuais (07 bigamias e 01 sodomia) e 03 outros

delitos (desacato à imagem, fingir-se ser ministro do Santo Oficio e fingir ter revelação de

Santo). Os processados eram todos súditos do Império: 08 de Cabo Verde, 03 da Guiné, 5 de

São Tomé e Príncipe e 02 do Brasil.

Vejamos os três casos de africanos arrolados nos processos por crimes de

feitiçaria. O único caso de crime de “rito africano” foi atribuído à Crispina Peres. Ela Nasceu

em Cacheu, onde também residia, era livre, cristã, filha de um oficial e comerciante português

originário de Açores com uma mulher negra de etnia bainouk convertida. O marido dela era

comerciante, o capitão francês Jorge Gonçalves, que foi um influente governador de Cacheu.74

Por ocasião da visita pastoral do visitador-geral Gaspar Vogado (mestiço de Cabo

Verde e rico comerciante) que foi à Costa da Guiné em 1661, este recebeu um conjunto de

delações contra Francisca Monteira, Isabel Lopes, Vilaça Dias, Sebastião Fernandes,

Henrique Marques e Crispina Peres porque esta fora à Vila Quente, onde vivia a maioria dos

africanos cristianizados.75 Foi acusada de feitiçaria, crenças supersticiosas e adoração dos

fetiches. Segundo as testemunhas, além de Cristina ter tal fetiche em sua casa, juntamente

com outras mulheres, levou vinho de palma e sangue de galinhas para um dos fetiches

situados ao alcance de um fuzil do povoamento e ordenou aos negros pagãos que jogassem o

sangue no objeto. Um residente de Cacheu declarou que Ña Crispina enviou dinheiro às

aldeias Bainouk de Buguendo e Sara para fazer vir os jambacosses ou curadores a fim de

favorecer o seu casamento com o seu futuro marido, o capitão Jorge Gonçalves Francês. Ela

também tinha organizado cerimônias pagãs sobre uma das embarcações do seu marido

74

“Witchcrafts, Politics and Gender: the colonial emergence of women in the Afro-Atlantic connections”. In:

Philip J. HAVIK, Silences and Soundbytes, Op. cit., pp.148-62. 75

Francisco de Lemos COELHO, Duas Descrições Seiscentistas da Guiné. Op. Cit., p.35. Este cronista e

comerciante português conhecia Cacheu e escreveu sua obra à época em que Crispina Peres buscava os

sacerdotes da Vila Quente. O relato contemporâneo de Coelho confirma os costumes desse bairro, onde havia

uma ermida de Santo Antonio. “(...) o dito Bairro da Vila Quente he habitado por grumetes forros, e de negros

gentios pescadores, e hum cubil de ladroens muy prejudicial á dita povoação a qual mais della he em que vivem

os brancos, ou os Deozes de Guiné, que assim lhe chama o gentio, e verdadeirmente se lhe pode chamar, por

que he só parte Guiné hoje, que cada hum pode viver como quizer, sem haver quem lho contradiga.”.(grifos

meus). Ver também Philip J. HAVIK. Comerciantes e Concubinas: sócios estratégicos no comércio Atlântico

na Costa da Guiné. Op. Cit, p.171.

Page 121: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

121

vertendo o sangue de uma vaca na base do mastro a fim de garantir o sucesso da sua viagem.

E quando a sua filha caiu doente chamou um curador para saber quem estava a assassiná-la,

mas também para saber como tratar a doença e curá-la.76

Num dos processos pelo crime de “desacato à imagem” a ré foi a negra Andreza

Fernandes, livre, natural e residente na Ilha do Príncipe, denunciada em 1771.77 O delito dela

foi colocar uma cruz no chão da igreja durante a missa e saltar sobre a mesma três vezes, o

que foi entendido pelas testemunhas como sinal de desprezo.

O terceiro e último africano processado foi Bento Rodrigues ou de Jesus, homem

preto, natural de Santiago e morador da mesma ilha, sentenciado em 1647, porque fingiu ter

tido uma revelação da Virgem Maria.

As sentenças atribuídas aos processados variavam conforme a gravidade do crime.

As penas mais severas foram contra os praticantes de judaísmo e os blasfemadores, que podia

ser: abjuração “de levi” ou “vehementi”, cárcere perpétuo ou usar hábito penitencial perpétuo.

Os bígamos foram obrigados a receber instrução na fé e a pagar os custos do processo. Nos

casos graves foram postos a sair no auto de fé com vela acesa na mão, açoites, reclusão no

cárcere inquisitorial a arbítrio.

Muitas mulheres condenadas por prática de feitiçaria eram enviadas ao degredo em

São Tomé, Brasil ou Angola.78 Mas este não foi o castigo imposto à Crispina Peres. Após ser

presa, levada para Lisboa e passar quatro anos esperando para ser julgada, ela jurou inocência

aos inquisidores e disse que não entendia porque suas ações eram pecados, pois ela tinha

permissão dos curadores locais para as cerimônias que realizou. Também alegou que todos os

residentes de Cacheu recorriam aos jambacosses e curandeiros, que cultuavam os deuses

chinas e portavam gris-gris: “Dentro da Villa de Cacheu quase todos os Cristãos os portam

principalmente os homens que vão à guerra e as mulheres que dão luz.”79

O marido de Crispina mandou cartas aos inquisidores defendendo-a. Justificava

que os atos dela eram frutos da religiosidade rudimentar que recebera; e insinuou que a prisão

de sua esposa poderia acarretar uma revolta dos pagãos contra os portugueses, pois o rei Pepel

76

Philip HAVIK, La sorcellerie, l‟acculturation et le genre: la persécution religieuse de l‟Inquisition portugaise

contre les femmes africaines converties en Haut Guinée (XVIIe siècle). Revista Lusófona de Ciência das

Religiões. Lisboa, Ano III, 2004 / n.º 5/6 – 99-116. Ver também Inquisição de Lisboa, processo n.º 2079.

Instituto dos Arquivos Nacionais/ Torre do Tombo. Apud Felipa Ribeiro da SILVA. Op. Cit., pp.205-207. 77

Inquisição de Lisboa, processo n.º 8867. Instituto dos Arquivos Nacionais/ Torre do Tombo. Apud Felipa

Ribeiro da SILVA. Op. Cit., p.207. 78

Selma PANTOJA, Inquisição, degredo e mestiçagem em Angola no século XVIII. Op. Cit. 79

Philip HAVIK, La sorcellerie, l‟acculturation et le genre. Op. Cit., p.109.

Page 122: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

122

tinha intenção de mandar doze mil guerreiros armados para Cacheu. Informou ainda que

estava sendo vítima de seus inimigos, concorrentes comerciais, e por fim disse que aquelas

práticas em sua terra não eram pecados, pois inclusive o padre visitador Gaspar Vogado que

denunciou a sua mulher também tratava suas doenças com os curadores mandingas.80 Diante

dessas negociações, Crispina Perez teve uma pena leve: após abjuração pública aquando de

um auto-de-fé de Lisboa, foi mandada de volta a Cacheu para fazer suas penitências e receber

instrução religiosa.81

Andreza Fernandez, por ter pulado sobre a cruz três vezes foi sentenciada para

receber instrução na fé, cumprir penitências espirituais, alguns anos de degredo e ainda foi

açoitada, dada a sua condição social. Bento de Jesus, mesmo após condenado continuou

afirmando que realmente teve revelações da Virgem Maria, por isso, teve seus bens

confiscados, condenado à excomunhão maior e ainda foi relaxado à justiça secular.

A análise dos denunciados e denunciantes, das pessoas processadas, assim como

dos crimes pelos quais foram sentenciados e as penas aplicadas permitem inferir com certa

anuência que a Inquisição em Costa da Guiné, São Tomé e Príncipe estava preocupada

principalmente com a presença de cristãos-novos. “Tal facto decorria do próprio modelo

inquisitorial que despertava as pessoas mais para um gênero de denúncias que para outras. Em

regra, procuravam-se as pessoas do Reino, com comportamentos desviantes, face à ortodoxia

religiosa”.82 Seguindo as provas dadas por Filipa Ribeiro da Silva, a Inquisição na África era

um meio intimidatório à população dos enclaves costeiros, que reforçava os poderes locais de

alguns grupos dos brancos. Portanto, as práticas que não alteravam a ordem vigente (política e

econômica) não incomodaram.83

Ao contrário do Reino, onde vigorava as normas do Concílio de Trento (1545-

1563), que regulava os comportamentos sociais, morais e religiosos, a África era muito

diferente. Mesmo nas áreas onde a Inquisição atuou, que eram habitadas por brancos e havia

presença de administradores da Coroa, a evangelização dos “gentios” até fins do século XVII

foi superficial, a catequização foi rápida e nem os brancos recebiam assistência espiritual

regular dada a falta de clérigos seculares e regulares. Portanto não era possível evitar que os

brancos passassem a adotar os costumes e religiões dos africanos, bem como era impossível

punir aos negros pelas suas práticas e manifestações “gentílicas”.

80

Idem. 81

Idem, p. 110. 82

Idem, p.243. 83

Idem, p.267.

Page 123: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

123

Justamente pelos motivos elencados as denúncias contra os povos mandingas não

passaram de denúncias por dois motivos importantes: primeiro, os mandingas eram

comerciantes, mercadores de escravos não-muçulmanos e de outras mercadorias importantes,

como o ouro. Em segundo lugar, que os inquisidores despacharam algumas queixas, por

julgarem que os crimes supostamente cometidos contra a fé, eram insuficientes para arrolar

um processo. Esse foi o caso de Antónia Dias, negra livre de etnia mandinga, residente na

praça de Farim. No final dos anos Seiscentos, os capitães Luis Pina de Araújo, Diogo Coelho

de Sá, Jorge Carvalho Moutinho e Francisco Vaz Horta efetuaram queixas contra a negra, por

prática de feitiçaria, pacto, invocação do demônio, homicídio de crianças e responsabilizada

pela aparição de um cão.84

Se aos olhos dos padres os mandingas eram poderosos feiticeiros que impediam a

conversão dos naturais ao cristianismo, aos olhos dos agentes locais da Inquisição (clérigos

regulares e seculares, funcionários da Coroa), estas práticas constituíam um perigo menor,

fruto da “gentilidade”. Eles estavam de olho nos cristãos-novos, envolvidos nas redes de

comércio do Atlântico, uma vez que os negros estavam submetidos ou fora do sistema. Além

do mais, os custos dos processos eram caros. Se o acusado não tinha bens, a administração

eclesiástica e o Tribunal da Inquisição deveriam assumir as despesas.

*

As origens diversas dos usuários de bolsas de mandinga no Brasil mostram como a

emergência histórica dessa prática ritual revela uma visão de mundo mais ou menos

compartilhada entre africanos e descendentes de africanos escravizados e levados para a

Bahia no curso do século XVII e do XVIII. De um total de 119 acusados pela Inquisição por

crime de feitiçaria, cometidos no Brasil, no período de 1590 a 1780, a pesquisa de Mello e

Souza apontou 17 pessoas denunciadas por porte de bolsa de mandinga. Vejamos a origem

deles no quadro abaixo:

Quadro 3. Perfil dos mandingueiros da América Portuguesa (1590 a 1780)

Nome Cor Origem Ano prisão

Manuel João Preta Maranhão 1668

Antonia Maria Preta Recife 1715

João de Siqueira Varejão Castelo

Branco

Branca Recife 1725

José Barreto Preta Recife

Manuel da Piedade (escravo) Preta Bahia 1730

Joseph Francisco Pereira (escravo) Preta Ajudá, Costa da

Mina

1731

84

Inquisição de Lisboa, Livro 266, fls.232-262v. Instituto dos Arquivos Nacionais/ Torre do Tombo. Apud Felipa

Ribeiro da SILVA, Op. Cit., p.210.

Page 124: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

124

Jose Francisco Pedroso (escravo) Preta Ajudá, Costa da

Mina

1731

Antonio Mascarenhas (escravo) Preta Angola

Miguel Moniz Pardo Cachoeira (Bahia) 1749

Luis Pereira (escravo) Preta Jacobina (Bahia) 1745

Mateus Pereira Machado (escravo) Preta Jacobina (Bahia) 1745

Jose Martins (forro) Preta Jacobina (Bahia) 1745

Jose Fernandes (livre) Pardo Vila N. Sra Abadia

(Bahia)

Salvador de Carvalho Preta Vila do Príncipe

(MG)

Antonio de Carvalho Serra Preta Serro Frio – MG 1764

Anselmo Índio Vila Benfica - Pará 1764

Joaquim Pedro Índio Vila Beja - Pará 1764

Fonte: Laura de Mello e SOUZA. Op. cit., pp. 210-26.

O quadro aponta para uma maioria de negros nascidos na Bahia usando as bolsas

de mandinga, seguidos de crioulos de Pernambuco, indígenas do Pará, negros de Minas

Gerais e, por último, africanos de Angola e Costa da Mina. A principal característica das

bolsas coloniais era a inserção nelas de orações aos santos, colocadas escondidas debaixo da

toalha do altar para o padre dizer missa e torná-las abençoadas, credos às avessas, pedaço de

pedra d‟ara e hóstias furtadas da Igreja.

Antonio de Mascarenhas, ainda menino, foi capturado em Angola e despachado

num tumbeiro para Funchal, na Ilha da Madeira. Andou por outros lugares do Reino: Rio de

Janeiro, São Miguel, Lisboa, Mazagão. Mas foi na sua passagem pelo Brasil, em 1734, onde o

réu dissera que tomara conhecimento de mandinga. Quem lhe dera a bolsa foi Ventura, o

negro que, em Lisboa, auxiliava Joseph Pereira a fazer bolsa de mandinga. Foi denunciado em

1743 por diversas pessoas. Apresentou-se ao inquisidor e contara a este como era a bolsa:

“uma carta com várias figuras pintadas de tinta vermelha em que se achavam uma imagem de

Cristo Senhor Nosso crucificado e uma carranca a modo de cara de gente, e muitas outras

coisas a modo de trempe e grilhas, e mais figuras”. Esta carta serviria para defendê-lo de

ferimentos, brigas e pendências.85

Ao mesmo tempo em que negros de diversas origens eram denunciados, presos e

punidos em Portugal e na América Portuguesa, do outro lado do Oceano, o preto forro

Vicente de Morais, ambundo, falante de quimbundo, natural da fortaleza de Muxima86,

também fora denunciado, em 1715, à Inquisição de Lisboa.

85

ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 254. Apud. MELLO E SOUZA, Op. Cit., p. 254. 86

Perto dessa fortaleza situava-se Kissama, a região das mais resistentes à penetração portuguesa, cuja fortaleza

de Muxima, servia de baluarte na batalha entre africanos e portugueses. A fortaleza recebeu este nome por

situar-se nas terras do soba Muxima Aquitamgombe. Os portugueses construíram próxima à fortaleza uma

Page 125: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

125

Vicente de Morais era acusado de carregar um santinho roubado do altar da Igreja

de Muxima e de produzir bolsas com orações. A bolsa era nomeada no processo, como

paulista, sallamanca, Cabo Verde e mandinga. O réu confessou que recebeu uma bolsa de

chita cosida, quando estava na fortaleza de Massangano para se proteger dos perigos, que

carregava sempre junto ao corpo. Contou também que nas brigas que teve com militares

brancos recebeu vários estocadas, mas não ficou ferido, o que ele atribuía aos poderes da

bolsa. Também ganhara outra bolsa de um branco na fortaleza de Muxima, que era para não

sofrer ataques, mas não a experimentara, pois a emprestara ao negro Domingos que não a

devolvera. Isso indica que, em Angola, assim como no Brasil e em Lisboa, os brancos

também usavam as bolsas.87

A fama da bolsa de Vicente de Morais corria em toda a fortaleza, inclusive o

capelão soube e, após várias diligências, conseguiu flagrá-lo, portando-a presa na cintura.

Dentro da bolsa havia orações e uma pequena pedra de altar da Igreja.

Havia a tradição entre os ambundos de usar bolsas com certos ingredientes para

proteger o corpo. Os ngangas faziam uma espécie de cinto, chamado de “cinturas”, com

tecidos de fibras de palmeiras, peles de animais e pós, e os distribuíam aos membros das

aldeias para serem carregados junto ao corpo, conforme descrição do capuchincho Cavazzi. O

revestimento e o conteúdo das bolsas Seiscentistas usadas pelos ambundos, descritas pelo

padre foram modificados. No século XVIII, passaram a ser elaboradas com elementos

oriundos da religião católica, ou seja, de santos, orações, hóstias e pedras de altar entre outros

e tecidos europeus, como chita e o damasco.

A bolsa que protegia Vicente de Morais das estocadas dos brancos está anexada ao

seu processo, conservado no Arquivo da Torre do Tombo, em Lisboa. Após várias sessões de

tortura, Vicente foi levado a confessar aos inquisidores que fizera pacto com o Demônio, o

qual lhe dera a bolsa, juntamente com um anel do Diabo. Foi tido como herege. Teve

confiscado todos os seus bens, condenado e degredado para as galés reais.

igreja chamada Imaculada Conceição e desde o início do século XVII existem as histórias dos milagres da

santa. Na época da tomada da região de Angola pelos holandeses a imagem da santa foi levada para a vila de

Massangano. Após a saída dos holandeses de Angola, a imagem da santa voltou a Muxima, carregada de

histórias misteriosas e casos de milagres. A população africana passou a fazer peregrinação à igreja para

venerar a imagem da santa, e o local e a santa passaram a se chamar Nossa Senhora de Muxima. Selma

PANTOJA, Inquisição, degredo e mestiçagem em Angola no século XVIII, Op. cit., p.128-9 87

ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 5477. Agradeço a Bruno Feitler por ter trazido esse processo de Lisboa.

Page 126: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

126

2.4. Escravidão e feitiçaria na África

Para Jan Vansina, o estado de Angola nasceu do fortalecimento da autoridade de

um chefe de linhagem, que se revelou capaz de impor-se a outras linhagens. O chefe cobrava

tributo sob a produção das aldeias para obtenção de excedente superior ao normal e depois

realizava uma grande redistribuição daqueles excedentes.

Havia terra em abundância, mas não havia aperfeiçoamento tecnológico. A

solução estava em requerer maior quantidade de braços. O trabalho era o único fator que

poderia ser mudado; vem daí, provavelmente, o estatuto do escravo doméstico. Os primeiros

escravos foram certamente prisioneiros de guerra. Outra fonte possível de trabalho cativo

seria a comutação da pena de morte imposta a certo criminosos. 88

Os africanos, portanto, já conheciam a instituição da escravidão antes da presença

dos estrangeiros. Mas o tráfico transatlântico intensificou a produção de escravos,

transformando as pessoas na mercadoria mais importante em algumas sociedades africanas.

Em 1537 ocorreu um dos debates mais importantes entre os juristas de Salamanca,

Coimbra e Évora. Debateu-se sobre a natureza da escravidão. O foco era a legitimidade da

redução à escravidão das populações nativas das regiões “descobertas”.89 Para os teólogos

tomistas de Salamanca. Os indígenas não poderiam ser escravizados por uma questão de

direito natural. Não poderiam ser escravizados, mas deveriam ser tutelados.

O jurista Francisco de Vitória adotava o princípio do “estatuto adâmico”, atribuído

ao ameríndio. Nas suas lições, proferidas na Universidade de Salamanca, defendeu o conceito

tomista do direito natural como instrumento para se interpretar a realidade americana e para

julgar a polêmica relação que se estabelecera entre espanhóis e ameríndios.90

Nessa discussão, os europeus deveriam comprar apenas cativos reduzidos à

escravidão por meio de um dos três títulos legítimos: guerra justa, resgate (ou comutação da

pena de morte) e necessidade extrema (alienação voluntária de uma pessoa maior de idade, ou

de sua prole em caso de necessidade extrema).

88

Jan VANSINA. A África Equatorial e Angola: as migrações e o surgimento dos primeiros estados. In: História

Geral da África: A África do século XII ao XVI. Vol. IV. Brasil: Ática/Unesco, p. 573. 89

Carlos Alberto de Moura ZERON, O debate sobre a escravidão ameríndia e africana nas universidades de

Salamanca e Évora. In: CAROLINO, Luis M. & GAMENIETZKI, Carlos Z. Jesuítas, Ensino e Ciência. Séc.

XVI-XVIII. Portugal: Caleidoscópio, 2005, pp.205-226. 90

Idem, p. 207.

Page 127: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

127

Houve dissensões entre os padres e juristas acerca da forma como esses títulos

seriam averiguados. Para reafirmar um consenso hegemônico os teólogos da Universidade de

Évora, sugeriram realizar com minúcia a análise dos casos de consciência e na determinação

rigorosa e circunstanciada dos títulos legítimos a partir dos quais o domínio (escravização)

poderia ser exercido sobre outro ser humano – e, extensivamente, sobre outras sociedades e

seus territórios.

A grande inovação adveio dos juristas de Évora, que propunham que se

descrevesse os usos e costumes das sociedades africanas e ameríndias, os modos de

organização política, o funcionamento de suas instituições e hierarquias sociais,

diferenciando-as segundo as regiões e os povos concernidos.

Essa proposta casou muitos incômodos e dúvidas. Como deveria ser o

comportamento do comprador em cada etapa do tráfico? Como ficaria a consciência do

comprador? E o confessor?

Nas circunstâncias históricas precisas que cercavam o tráfico de escravos para as

Américas, os argumentos dos teólogos mudaram: o reconhecimento consensual dos direitos

costumeiros deveria ocorrer com uma subordinação relativa à investigação da legitimidade

das operações comerciais dos traficantes europeus.

Francisco de Vitória emitiu um parecer sobre a legalidade do tráfico negreiro

português, tal como era praticado nas costas africanas, pois, para ele, dever-se-ia manter a “a

soberania das sociedades organizadas politicamente, por mais diferentes e imperfeitas que

elas sejam”.

Luis de Molina emitiu a opinião dissonante na discussão acerca da escravidão

africana. Era espanhol, mas estudou filosofia em Coimbra. Em 1571, obteve seu doutorado

em Évora, onde ensinou teologia por 20 anos. Morreu em Madri em 1600, aos 64 anos. É

autor de um tratado teológico-jurídico Da Justiça e do direito (1594).91 Ao invés de recorrer

aos autores tomistas ou às teorias da Igreja para escravidão, ele empreendeu uma análise

histórica da realidade do tráfico negreiro, através de uma enquete junto a marinheiros,

comerciantes e missionários, para averiguar a legitimidade das operações realizadas pelos

portugueses.

A sua diligência revelou que na África não havia nenhum título que legitimasse a

redução dos africanos à escravidão, e explica os motivos. Para ele, as guerras “intertribais”

91

Idem, p. 219.

Page 128: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

128

eram decorrentes de uma organização política deficiente, e eram levadas adiante sem qualquer

aparência de direito ou justiça:

Entre eles raros são os reis potentes que tenham submetido diversas nações. O poder está

então dividido entre numerosos chefetes e pequenos senhorios. Desde há muito tempo, e

bem antes que os nossos ali chegassem, infinitas guerras intestinas causavam estragos

entre eles, as tribos lutando umas contra as outras e fazendo-se mal por todos os meios, e,

segundo todas as evidências, sem uma sombra sequer de direito ou justiça. Assim, essas

populações que estão submetidas a esses chefetes, que reduzem frequentemente à

escravidão um grande número de sujeitos de outros potentados locais, vendendo-os em

seguida aos portugueses.92

O jurista sugeria que a falta de educação civil e política, fazia com que os

escravos fossem, na realidade, pessoas condenadas por faltas leves e insignificantes:

Diz-se também que nesses lugares, o Tribunal de Justiça consiste em uma reunião sob

uma arvore, presidida por um chefete local e em presença dos anciãos, que votam a

sentença, condenando algum à escravidão perpétua, e outros à pena de morte, e que eles

costumaram punir um roubo leve, mesmo que não se trate mais do que de uma galinha ou

outra coisa de pequeno valor, com a pena capital ou a escravidão perpétua.93

Em suma, Molina defendia a idéia de que a escravidão na África e no tráfico eram

provas do desregramento jurídico das sociedades africanas e da desordem jurídica das

relações luso-africanas. A crítica atingia, diretamente, Portugal que era o Estado legitimador

do tráfico, que negociava com os tangomaos na Guiné e com os pombeiros do Congo e

Angola.

O que interessa aqui é a sugestão de Molina para a circunstância do tráfico:

colocar o missionário como agentes capaz de garantir não apenas a fiscalização e aplicação

dos títulos legítimos de redução à escravidão, mas também a civilização e propagação da fé,

assegurando assim a legitimidade da presença ibérica nessas regiões.94

No entanto, a intensificação da produção de escravos no contexto do tráfico

transatlântico não dava tempo para a observância dos títulos legítimos, por parte dos

pombeiros e tangomaos, e armadores.

No calor desse debate, André Álvares de Almada, filho de portugues, nascido em

Cabo-Verde, comerciante de escravos escreveu o Tratado Breve no final do século XVI.

Certamente influenciado pelo que ouvia ou lia sobre a discussão dos juristas acerca dos títulos

92

Idem, p. 220. 93

Idem, p. 221. 94

Idem, p. 225.

Page 129: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

129

legítimos, ocupou-se em enumerar as maneiras como os diversos reinos se organizavam em

torno da produção de cativos. Seu intuito era provar que essas sociedades conheciam a

instituição da escravidão e que nada podiam fazer os comerciantes diante do desregramento

dos negros para atender ao tráfico. Diz ele que os beafares usam “polões”, que eram árvores

muito grandes, à sombra das quais faziam seus juízos e consistórios. Se alguém apanha “os

frutos agrestes que dão arvores não os podem apanhar senão todos juntos, por mandado do

senhor da terra, principalmente um fruto chamado manganaxo, apanhando-o alguma pessoa

antes do mandado geral, por tal caso fica escravo e se vende.”95 Outra possibilidade de cativar

era em tempo de escassez,

“houve tamanha fome naquela costa, causada dos gafanhotos, que se vendiam os escravos

por meio alqueire de milho ou feijão; e tiravam as mães os filhos de si, e os vendiam a

troco de mantimento, dizendo que mais valia viverem, ainda que cativos, que não

morrerem à pura fome”.96

No caso da Alta Guiné, existiam variadas formas de encontrar o culpado pela

morte, a doença ou infortúnio de alguém. Fazia parte da “gramática cultural comum”97 a prova

do ordálio, cuja culpa, geralmente incidia naqueles, cuja suspeição era lugar comum na

aldeia.98 Os julgadores eram os chefes religiosos, que geralmente, influenciavam no poder

político. Nessa região, o jambacosse, o caciz, o bexerim, o marabu e herbolários estavam

associados a idéia de bem estar da comunidade, pois resolviam os conflitos, apaziguavam as

tensões, cuidavam dos doentes, descobriam as causas das mortes e excluíam os sujeitos que

punham em desequilibro a ordem social.

No Reino dos Jalofos, havia vários tipos de gente que manipulava o mundo do

sobrenatural. Os Bixirins exerciam o papel de pregadores do Islamismo, tinham papel

95

Idem, 332-3 96

André Álvares Almada. Op. Cit., p.251 97

John THORNTON, Op. cit., p. 255. 98

“Entre os Jabundos, Banhuns da terra do Casamansa, assim como os Buramos e Beafares, também há juízes

que fazem julgamentos de delitos. Diferente do modo dos Barbacins, este chama-se este juramento o da água

vermelha: (...) que eles temem muito; a qual trazem, quando se dá, em uma panela, e água é em si vermelha,

pisada de cortiça de algumas árvores desfeita em água, ou que tenha sumo que baste para mister. E esta água

dão às partes. E aquele que o primeiro vomita fica livre; muitos morrem tomando esta água, e são aquelas

pessoas que quer o Rei que morram, se são ricas. E tem este ardil: dá aviso a quem dá os juramentos que não

escapem de morrer tal pessoa ou tal; traz este que dá água, no dedo polegar uma peçonha muito fina que

despacha em poucas horas. E vai dando esta água primeiro àquelas pessoas que não querem que morram, por

não terem que tomar a herdar delas, por serem pobres. E indo dando, tanto, que chega às pessoas que lhe tem

dito o Rei que não escapem, as quais sempre ficam depois dos outros tomarem, e querendo dar-lhes a água,

mete o dedo da peçonha dentro dela, e em metendo diz ao outro que a tome. E fica a água tão peçonhenta que

morrem em poucas horas, e ficam homicídios e condenados em perdimento dos bens. E há casos por onde as

gerações ficam cativas do Rei e se vendem. Parece que é esta água em si asquerosa.” Idem, p.293-4

Page 130: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

130

político, pois o rei Budomel era um Bixirim: “tem o povo grande devoção e dão muito crédito

ao que eles dizem.” Eles “fazem muitas nóminas, que dão ao povo, nas quais tem muita

confiança e esperança.” Os ervorarios “fazem com as ervas mui altíssimas curas, curando a

leprosos e outras enfermidades graves.” Os Jabacouses eram “como médicos”, vão visitar os

doentes, mas “não tomam o pulso aos enfermos, nem lhes aplicam mezinhas nenhumas;

somente dizem que as feiticeiras e feiticeiros fizeram mal àquele enfermo”. Na cultura dos

jalofos não há morte sem propósito e sem culpados. Acredita-se que os feiticeiros comem a

pessoa. As diligencias efetuadas para descobrir o feiticeiro eram sofisticadas.99

O luso-africano Almada se interessava por compreender como funcionavam as

instituições jurídicas de punição dos povos nos reinos que percorria comprando escravos e

outras mercadorias. Ele dizia que as punições atendiam às novas lógicas comerciais do

mercado de venda de cativos. Dizia ainda que os beafares “furtam escravos, que trazem a

vender aos navios e se os não compram matam-nos, por não serem descobertos.”

E têm por costume estes negros e todos os mais que vendem furtados, quando os vendem

dão-lhes a beber vinho ou comer alguma cousa, que lhes dão à conta do mesmo negro que

vendem. E dão-lhe o comer ou beber, porque dizem que ficam descarregados de

consciência, porque o mesmo vendido ajudou a comer o seu dinheiro. E são tão sagazes

que se vêem alguma bisonho do sertão, fingem que os querem agasalhar, e os recolhem

em suas casas, e tendo-os nelas alguns dias lhes metem em cabeça que tem no mar amigos

e os querem levar lá para que sejam conhecidos deles e para folgarem; e indo aos navios

os vendem. E desta maneira enganam a muitos destes.100

Explicou como eram os enterros, pois entendia que a morte não era vista como um

fenômeno natural, mas fruto da inveja de alguém, que deveria ser punido.

Sem deixar de observar a teoria dos títulos para tornar o outro cativo, Almada

salienta que os escravos eram obtidos na região por dois meios: cativos de guerra e

sentenciados em juízos, isto é, por delitos cometidos na comunidade. Mas o mercador se

espantava com a quantidade de pessoas que iam a julgamento por feitiçaria: “Estranham mais

que todos os casos, os feiticeiros; a estes vendem e toda a geração, sem ficar até a quarta; e a

alguns mandam arrancar os olhos, e deitar outros a leões e onças.”101

99

Idem, p. 249. 100

Idem, p. 337-8. 101

Idem, p. 262-3.

Page 131: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

131

Nos ritos fúnebres os adivinhos, chamados Jabacoses falam com o morto para

descobrir quem o matou. Almada achava quer era outra estratégia para fazer escravos e o rei

obter rendas:

E é quando morre algum, antes de o enterrarem, depois de posto em uns paus que servem

de tumba, cobertos com panos negros, em ombros de negros, andam estes com o morto

escaramuçando de uma parte para outra, ao som de muitos instrumentos de atambores,

trombetas de marfim e businas. E os que escaramuçam andam com tanta fúria e ímpeto,

que parece que andam os demónios metidos neles. E há outros negros a que chamam

Jabacoses, que falam com o morto e lhe fazem pergunta que diga quem o matou. E

andando estes que o trazem às costas com aquela fúria duma parte para a outra, se dão em

alguma pessoa e estão quedos, dizem que essa pessoa o matou, que é outro ardil inventado

pelo Reis e os do seu Conselho, como o da água. E se não dão em alguma pessoa, diz o

que faz as perguntas ao morto, que morreu da sua enfermidade. E quando dão em algum

este fica homicida, e prendem-no por feiticeiro, e o vendem e a geração toda, sem ficar

nenhum.

Em 1570, Almada diz que estava esperando um pagamento em escravos na casa do

rei. Alguém caiu da árvore, os soldados apanharam mulheres e filhos já por cativos e os

deram por cativos ao comerciante. Há outra lei posta pelos chefes locais, que se uma pessoa

cair da palmeira e morrer são consideradas feiticeiras, e logo os soldados vão até a casa do

defunto, pegam tudo, até as mulheres e filhos. Essa era uma forma de fazer muitos cativos

para vender aos portugueses: “e como há nesta terra muitas palmeiras e os negros são amigos

de vinho, andam continuadamente por cima delas tirando a sura, que bebem, e não deixam de

caírem delas e morrerem alguns”. 102

Na terra dos sapes eles chamam a sala de audiência, um alpendre redondo “funco”;

os “solategis, que são pessoas principais do Reino. Em segredo administram justiça;” e os

“arões” são como advogados que usam máscaras. Os reis e os solategis dão as sentenças.

Aqueles condenados por feitiçaria não são vendidos aos portugueses. São mortos e têm a

cabeça cortada, e o corpo colocado fora da aldeia para os animais. Ou vendidos para homens

que os compram para matá-los e se tornar cavaleiros ou ficar honrados.103

Os relatos de Almada, no final do século XVI, numa área da Alta Guiné, que

forneceu as primeiras levas de escravos para Portugal, permite observar que existem normas

para julgamento de culpados por determinados crimes, principalmente por atos propiciatórios

de malefícios.

102

Idem, p. 295. 103

Idem, p. 349.

Page 132: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

132

O padre Barreira cita a feitiçaria como um dos “títulos” que legitimam a

escravidão entre os africanos, e especifica em quais situações alguém é considerado feiticeiro

pela comunidade.

Outro modo há de os escravizar com titulo de justiça, como he quando se prova que

algu[m] negro ou elle confessa que he feiticeiro ou matou outro com peçonha, ou que anda

com algu[m]a molher do Rey, ou que solicita guerra contra elle, ou que pede ás chinas

(que assi chamaõ aos seus idolos), que o mate[m], no qual caso se o Rey acerta de

adoecer, não somente matao ou vendem para fora do seu Reyno o deliquente e lhe

confiscão os bens, mas cativao também e vendem todos os seus parentes, por temer que

algum deles, para se vingar peça também ás chinas que o mate[m], o qual fazem também

os seculares de vassalos, ainda que não sejam Reys.104

Não podemos deixar de compreender que os discursos dos portugueses têm o tom

de exagero e estão imbuídos da intenção de justificar o trato dos escravos e não ter problemas

com a consciência pesada. Entretanto, relatos coevos revelaram existência de duas vertentes

de utilização da magia. De modo preciso, havia duas categorias de intermediários experientes

na manipulação de espíritos ancestrais e forças da natureza. Uma forjava o bem-estar da

coletividade. Outra, a instrumentalização do mal. O reconhecimento de feição boa ou má

dessa categorização da magia é terreno movediço para olhares não convencionados como os

dos padres, que teimavam em não reconhecer a organização dos povos africanos e atribuir

ação do demônio em todas as atividades sobrenaturais.

A presença dos missionários em Angola no século XVII aumentou as denúncias da

população queixando-se de enfeitiçamentos praticados pelos sacerdotes. Estudiosos têm

apostado na possibilidade de feiticeiros encontrados nas Américas terem sido deportados de

África como punição a eventuais práticas feiticeiras. John Thornton afirma, por exemplo, que

104

“Dos escravos que saem da Guiné”, 1606, M.M.A, IV, p. 195. O padre Baltazar Barreira nunca “manifestou

preocupações acerca da legitimidade da escravidão no reinos da Guiné, como diz a autora. Pelo contrário,

foi o mais forte apoiador do tráfico de escravos dentre os missionários jesuítas. Ele não tinha dúvidas sobre

a licitude do negócio negreiro. O escravo era moeda da África, assim como o açúcar era o do Brasil,

defendia ele. Suas cartas eram respostas diretas aos teóricos de Salamanca e Coimbra. Em 1606, ele

utilizou-se do estudo de André Almada, e escreveu com minúcia um memorial informando todas as

maneiras como os africanos engendravam para produção de cativos. E concluiu assim o seu manifesto

negreiro: “Visto pois quantas perdas tem dadas estas nações aos Portugueses e agravos que lhe tem feito, e

que a coroa de Portugal pode pretender compensação de tudo isto, deve-se tratar se pode Sua magestade dar

licença aos seus vassalos para comprar daqui por diante, por modo de satisfação, todos os escravos destas

nações que lhe venderem, sem examinar o titulo do seu cativeiro, porque não vejo como este trato se possa

fazer sem escrúpulo de conciencia, se isto ou as resoes que no principio apontei o não fazem licito com que

os cativarão e que in dúbio melhor est conditio possidentis (na dúvida, prevalece o direito do possuidor),

parece que se não deve bulir nada.”

Page 133: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

133

o padre Cavazzi, em missionação por Matamba, degredou sacerdote ganga para o Brasil sob

acusação de feitiçaria. Em 1660, o sacerdote africano foi reconhecido pelo governador

Salvador de Sá, no Rio de Janeiro. Salvador Sá conhecia não só a pessoa como a sabia do

respeito que a população venerava ao sacerdote angolano, quando de sua estada em Angola

como governador.105

O reconhecimento pela comunidade de um feiticeiro, provocador de malefícios a

outra pessoa, se dava com a morte de alguém. Eram chamados de “comedores de alma”. Os

“bruxos” provocavam doenças e morte apenas sonhando com a pessoa ou sentindo inveja

dela. Do ponto de vista da coletividade, a prosperidade de alguém na comunidade era a culpa

do outro que passava por necessidade. Em algumas comunidades, a bruxaria era hereditária.

Quando se descobria um feiticeiro na família, todos deveriam ser julgados e condenados pelos

juízes locais (chamados marabutos, jambacouces, solategis).

Havia várias formas de descobrir um feiticeiro. A principal era levar o morto até a

porta da casa dos suspeitos de terem colocado o feitiço, onde se fazia perguntas ao defunto, e,

no momento em que este se mexia, indicava o culpado. Outra forma comum de julgar alguém

para descobrir culpados por crimes de feitiçaria e outros delitos na comunidade era a prova do

ordálio. Testemunhas disseram que antes da chegada dos europeus, feiticeiros eram

condenados a morte. Mas em virtude da produção compulsória de cativos para atender

demandas do tráfico negreiro, houve a comutação da pena de morte pela condenação à

escravidão e degredo para as Américas.

Intermediários de forças da natureza e espíritos ancestrais eram integrados na

sociedade. Estes poderiam também ser condenados por feitiçarias, pois, muita vez, fazer o

bem pra alguém implicava no mal do outro. Havia serviços pagos.

Na Alta Guiné, os jambacouces, marabutos, bexerins e cacizes eram adivinhos,

curadores, realizavam oferendas aos espíritos, eram herbolários que atendiam os aldeãos nas

suas buscas por remédios, faziam amuletos para proteger contra feitiços, faziam chover e

puniam os criminosos. Na África Centro-Ocidental, havia três tipos de sacerdotes: o kitomi, o

nganga e o ndoki. Cada um tinha papel diferenciado no mundo mental do Congo. O kitomi,

atuava na esfera pública, visava o bem da coletividade, fazia chover, afastava pragas, tinha

um papel de mediação entre natureza e sociedade, era um guardião de instituições sociais.

Cabia a ele manter o equilíbrio da sociedade e da natureza. Já o papel do nganga mostrava o

105

John THORTON, Op. cit., p. 346-8.

Page 134: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

134

quão precário era esse equilíbrio. Ele realizava serviços religiosos na esfera privada. O

individualismo desse atendimento ameaça a vida comunitária. Numa sociedade fechada,

facilmente, tensões se transformam em feitiçaria. Eles sacralizavam os nkisi, que se constituía

uma importante fonte de rendimento. O ndoki era diferente do nganga e do kitomi. Ele era

temido por saber manipular espíritos para provocar o mal do outro, e porque também recebia

pelos seus serviços religiosos.106

Em suma: o conhecimento dessas categorias para se abordar o tema da feitiçaria e

da magia em África é imprescindível. Elas explicitam as nuances entre o praticante de

feitiçaria em terras africanas ou americanas.

O grande número de africanos elencados nas listas de livros de devassas

eclesiásticas, nos processos inquisitoriais e Cadernos do promotor não significa que foram

todos processados por prática de feitiçaria maléfica. Seguindo a pista deixada por Almada, a

pessoa nem sabia que era feiticeiro. A prática era hereditária. Inclusive crianças poderiam ser

consideradas feiticeiras. Isso era identificado, geralmente, quando, após seu nascimento,

acontecimentos ruins acontecessem à sua família, como, por exemplo: morte da mãe, perda de

colheita de seu pai, adoecimento de irmãos.

Nos séculos do tráfico, os africanos resolviam seus problemas a partir de

manipulação do mundo mágico. Os jovens aprendiam cedo a buscar esse tipo de resolução.

Alguns certamente foram iniciados, como sacerdotes solucionadores de problemas, ainda em

sua terra, como a Luzia Pinta, conforme demonstrado por interpretações recentes de

pesquisadores.107 Por isso, foi comum, ao chegarem ao Brasil, serem alfabetizados e educados

por africanos mais velhos.

2.5. Povos africanos na Bahia Setecentista

Esta pesquisa não tem por objetivo estudar o tráfico, mas tentei levantar alguns

dados acerca da procedência dos escravos desembarcados no grande porto negreiro da

106

The mental world of Kongo. In: John Thornton, The Kingdom of Kongo: Civil War and Transition 1641-

1718. University of Wisconsin Press, 1983, pp. 56-63. 107

MARCUSSI, Alexandre Almeida. “Estratégias de mediação simbólica em um calundu colonial”. São Paulo,

Revista de História, n. 155, pp. 97-124, 2006.

Page 135: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

135

América, situado na Bahia. O objetivo é observar as áreas fornecedoras e fazer um esboço da

composição étnica dos africanos na referida capitania no século XVIII, quando houve intensa

popularidade das bolsas de mandinga entre os negros. Tendo identificado as etnias,

analisaremos se ocorreu no seio da sociedade escrava baiana um processo de continuação das

práticas africanas ou em que medida houve um processo de crioulização, a partir dos novos

contatos nos novo ambiente.

Desde a publicação, em 1969, dos estudos empreendidos por Philip Curtin, o tema

do tráfico atlântico tem sido revisitado, com base em dados mais consistentes, a partir de

fontes, ao invés de cálculos baseados em estimativas. A omissão de dados pelos traficantes, a

escassez de fontes e a perda de muitas delas dificultam a possibilidade de números que se

aproximem do real, mas é possível, a partir de fontes reconhecidas, vislumbrar o panorama de

então.

Baseado em Viana Filho, Pierre Verger dividiu em quatro ciclos o tráfico da Bahia

com a Costa africana, sendo o primeiro com a Guiné (1550 a 1600), o segundo com Angola e

Congo (1600 a 1700), o terceiro com a Costa da Mina (1700-1770), e o quarto mais

precisamente com o atual Benin (1770-1850).108

A organização dos ciclos do tráfico por Verger tornou-se a base de análise de

muitos estudos sobre a origem dos africanos desembarcados no Brasil. Esses ciclos devem ser

vistos com cautela, pois apenas apontam predominâncias. Interessa a essa pesquisa observar

até o terceiro ciclo. Na senda de Verger, as análises posteriores tiveram fundamentos em

pesquisas documentais. É importante observar que, para todas as regiões do Brasil não é

possível apontar uma só procedência de povos africanos. Os diversos movimentos de navios

partindo dos portos de Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco buscavam simultaneamente

escravos na África Ocidental e na Central.

Os dados de Philip Curtin atribuem ao Brasil a importação de 40% do montante de

quase 10 milhões de africanos desembarcados nas Américas.109 Mas ainda não há estudos

consistentes que mostrem a procedência de escravos das diferentes regiões da África por

períodos e a distribuição deles nas diferentes áreas importadoras.

O artigo de David Elthis, Stephen Behrendt e David Richardson, traz novas

evidências sobre a “participação dos países da Europa e das Américas no tráfico transatlântico

108

Pierre VERGER, Fluxo e Refluxo: comércio entre a Bahia de Todos os Santos e o Golfo do Benim. São

Paulo: Corrupio, 1997, p. 9. 109

Philip CURTIN, The Atlantic Slave Trade: a census. Madison: Wisconsin University Press, 1969.

Page 136: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

136

de escravos”110. Os autores sugerem novos números do tráfico português para o Brasil. De

1549-1600 – 50 mil escravos desembarcaram no Brasil. De 1601 a 1650 - 150 mil; de 1651-

1700 - 187 mil; de 1701-1810 – 598.2 mil cativos da Costa dos Escravos desembarcaram na

Bahia; e entre 1701-1810 - 953 mil embarcaram em Luanda em direção ao porto do Rio de

Janeiro.

Os dados mais recentes sobre demografia do tráfico em direção à Bahia dizem

respeito a novas fontes identificadas pelo projeto Trans-Atlantic Slave Trade Data Set da

Cambridge University. Alexandre Ribeiro, partindo desses dados, demonstra que entre 1581 e

1680, um total de 13.991 escravos desembarcaram na Bahia. Cerca de 9.081 (64,9%) eram

bantos e 3.638 (26,1%) eram da África Ocidental.111 Entre 1681 e 1780, desembarcaram cerca

de 861.158 escravos: 26% procedentes de África Central e 72,7%, das baías de Biafra e

Benin. Os demais, estima-se, eram de Senegâmbia, Serra Leoa, Costa do Ouro e África

Oriental.112

Entre 1600 e 1700, a região da África Centro-Ocidental foi a principal zona

abastecedora de escravos para a Bahia. Na primeira metade do século XVII, o tráfico para o

Brasil ficou quase estagnado por causa da Guerra dos Trinta anos (1618-48). Isso promoveu

consideravelmente o aumento do preço do escravo africano e intensificação do apresamento

de indígenas para o cativeiro. Quando Angola foi tomada pelos holandeses e libertada em

1648 por tropas organizadas por comerciantes do Rio de Janeiro, acabou se forjando uma

aliança entre as praças de Luanda e a carioca. Depois da reconquista, os navios baianos

continuaram se dirigindo para Angola, abastecer-se de mão-de-obra para suas lavouras de

cana, assim como os pernambucanos. O tráfico para a Bahia era maior pelo fato de ser a sede

da colônia e possuir junto com Pernambuco os maiores engenhos. Mas não era um grande

tráfico.

Na segunda metade do século XVII a economia açucareira estava estagnada

devido às guerras contra os holandeses, mas outros fatores exigiram mão-de-obra africana: a

diminuição dos índios escravizados pelos colonos, a expansão das fazendas de gado pelo

110

David ELTHIS; Stephen BEHRENDT & David RICHARDSON, A participação dos países da Europa e das

Américas no tráfico transatlântico de escravos: novas evidências. Salvador, Afro-Ásia, n. 24, pp. 9-50,

2000. 111

Alexandre V. RIBEIRO, “The Trans-Atlantic Slave Trade to Bahia (1582-1851)”. In: David ELTIS; David

RICHARDSON. (Orgs.). Extending the Frontiers: Essays on the New Transatlantic Slave Trade

Database. Yale University Press, (no prelo). Usei a tabela 4: Origins of the African slave ships docking in

Bahia, by African region of embarkation, 1581-1855. Cf. também do mesmo autor: Estimativas sobre o

volume do tráfico Transatlântico de escravos para a Bahia, 1582-1851. XXIII Simpósio Nacional de

História, ANPUH, Londrina, 2005. 112

Alexandre V. RIBEIRO, “The Trans-Atlantic Slave Trade to Bahia (1582-1851)”, Op. cit.

Page 137: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

137

interior da colônia; e, sobretudo, pelo aparecimento de dois produtos indispensáveis para

escambo: o fumo baiano e a geribita carioca.

Foi a descoberta de ouro pelos paulistas no último decênio do século XVII que

desencadeou a procura por escravos no Brasil e fez o porto de Salvador incrementar o

desembarque de africanos para depois reexportá-los por terra para as cidades mineradoras de

Minas Gerais. Entretanto, o tráfico regular entre Angola e Bahia não responderia a grande

demanda. Se seguirmos os dados do Trans-Atlantic Slave Trade Data Set, em mais de um

século (1581-1680) a Bahia importou cerca de 14 000 escravos, depois em apenas uma

década (1681-90) a importação girou em torno de 20 000 escravos, mais do que nos 110 anos

anteriores.113

A mineração fez da Bahia, pelo menos até o fim da segunda década do século

XVIII, o principal pólo abastecedor de escravos para a região mineradora. A demanda por

mão-de-obra escrava na América portuguesa explodiu e Angola não daria conta.114

Na Costa da Mina, a atuação dos baianos era favorecida pelo produto principal de

troca: o tabaco. Segundo Pierre Verger, foram estabelecidas relações entre os portos da baía

do Benin e a Bahia, desde o século XVII por três fatores. 1) Esta região era o único local em

que os baianos conseguiam despachar seu fumo de terceira qualidade (refugo), proibido de ser

mandado para o reino português, que só importava o fumo baiano de primeira e segunda

qualidade. 2) A Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, que dominava esta região e

possuía o monopólio de comércio de produtos europeus com chefes locais só permitia a

negociação de tabaco, favorecendo assim os baianos em detrimento dos comerciantes reinóis

e demais brasileiros que não produziam o fumo. 3) A proibição dos comerciantes das praças

do Rio de Janeiro e das demais localidades brasileiras não produtoras de tabaco de irem

comercializar na baía do Benin.115

No fim do século XVII, a epidemia de varíola em Angola, e a concorrência com os

cariocas que já estavam mais fortemente instalados na África Central munidos de geribita

levaram a Bahia a mudar sua rota para a Costa da Mina. Assim, passaram a desembarcar em

Salvador no início do século XVIII, levas de escravos oriundos dos portos Grande Popó,

Ajudá, Jaquim e Apá.116

113

Idem, ibidem 114

Joseph C. MILLER, O Atlântico escravista: açúcar, escravos, engenhos. Afro-Ásia, 1997, n.19/20, pp.9-36. 115

Pierre VERGER, Op. Cit. 116

Manolo FLORENTINO, Alexandre RIBEIRO e Daniel D. da SILVA. Aspectos comparativos do tráfico de

africanos para o Brasil (séculos XVIII e XIX). Afro-Ásia, n. 31, pp. 83-126, 2004.

Page 138: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

138

Enquanto os comerciantes da Bahia estavam voltados para o comércio com a

Costa da Mina, os do Rio de Janeiro e os Portugueses estavam em Angola. Porém, na área

mineradora havia uma preferência pelos escravos “minas”, tidos como mais aptos para o

trabalho nas minas, mais fortes e resistentes que os “angolas”, que, por sua vez, eram “mais

dóceis”. Lucilene Reginaldo observou que no início do século XVIII, desenvolveu-se uma

propaganda em favor do tráfico. As autoridades portuguesas destacavam as qualidades dos

bantos e as da Bahia destacavam as dos “sudaneses”.117 A propaganda não apenas exaltava as

“capacidades inatas” dos africanos para determinados afazares. A preocupação das

autoridades do Rio de Janeiro e das Minas Gerais com revoltas como a que aconteceu em

Palmares fazia com que solicitassem o envio de mais “angolas” para a mineração, pois eram

sujeitos mais fiéis e obedientes.118

O estudo brasileiro de demografia escrava para o Brasil ainda é terreno nebuloso e

controverso.119 Especialistas passam a conjecturar dados a partir de comparações com outras

colônias, as últimas levas chegada a determinado porto e com a produção agrícola. Minha

intenção, recorrendo a pesquisas recentes, é apenas sustentar que bantos, seguidos de

guineenses, compuseram a maior parte dos escravos na Bahia do século XVII; sendo, no

século XVIII, o inverso. Os números do tráfico são importantes para a pesquisa porque

enfatizam a presença de escravos de diferentes origens na Bahia e interessa porque parto do

pressuposto de que os números e porcentagens dos “grupos de procedência”120 não podem ser

tomados como prova de raízes específicas de fenômenos culturais, mas podem fornecer uma

útil informação de base.

*

Assim como não há pesquisa consistente sobre a composição étnica da população

de Salvador no século XVIII, porque não foi realizado censo, com exceção dos dados

117

Lucilene REGINALDO, Os Rosários dos Angolas: Irmandades Negras, experiências escravas e identidades

africanas na Bahia setecentista. Campinas, 2005. (Tese apresentada ao departamento de História do IFCH-

UNICAMP), p. 154. 118

A autora observou que ao mito da docilidade angola, criado no início do século XVIII, no contexto da

propaganda do tráfico, foram agregados “outros mitos antropológicos e historiográficos”. Reginaldo, viu que

Nina Rodrigues teria sido o grande propagador da idéia de uma superioridade sudanesa na Bahia, que veio a

marcar profundamente as pesquisas, constituindo, até mesmo, um “paradigma nas pesquisas históricas e

antropológicas dos negros baianos”. Op. Cit., p.162-3 119

Luis Felipe Alencastro (Op. Cit). Apêndice 7: “Sobre o número de escravos saídos de Angola e entrados no

Brasil nos séculos XVI e XVII”, pp. 375-80. O autor faz sérias críticas aos pesquisadores David Elthis,

Stephen Behrendt e David Richardson, pois diz que as estimativas deles jogam os número do tráfico para o

Brasil muito para baixo. 120

Marisa CARVALHO, Devotos da Cor. Identidade étnica, religiosidade e escravidão. Rio de Janeiro, século

XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, pp. 45-9.

Page 139: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

139

oferecido por Joze Caldas.121 também não existe para as cidades interioranas. Essa lacuna vem

sendo preenchida através do uso de novas fontes, como os inventários. Assim, há alguns

dados esparsos sobre algumas cidades da Bahia. Eles permitem inferir que houve grande

mistura étnica no meio da escravaria levada para o sertão, ora predominando bantos, ora

guineenses e minas.122

Nesse sentido, o esforço mais expressivo foi o de Albertinha Vasconcelos, que

realizou pesquisa exaustiva nos livros de Passaportes e Guias, onde encontrou os destinos dos

escravos exportados de Salvador para o interior da capitania, e mais províncias. Destes livros,

poucos foram preservados para mostrar o movimento de entradas. Os portos de Cachoeira e

Salvador foram os mais importantes para re-exportação.

Os livros de Passaportes e Guias foram utilizados apenas entre 1718 a 1729 e de

1759 a 1763. Neles, consta que entrou em Jacobina uma media de 1.000 a 1.200 escravos por

ano. No entanto, não foram encontrados os livros de Matrícula dos Escravos da referida vila o

que nos facultaria saber a origem destes. Para a vila de Rio de Contas, pertencente à Comarca

de Jacobina, a autora encontrou um livro incompleto apenas para os anos 1748-49, anotando

dados importantes dos registros que apontam um total de 456 da Costa da Mina, 359 escravos

“angolas”, 14 moçambiques, 2 do Cabo Verde, 2 de São Tomé e 4 com origem ilegível.123

Na relação de matrícula de escravos realizado pelo intendente das minas de

Jacobina, Pedro Soares Ferreira, em 1743, ele registrou que foram matriculados 1262

escravos, designados para as minas de ouro.124

Alguns dados coletados nos Livros de Notas de Jacobina para os anos de 1808-

1885, apontam números muito incompletos da comunidade escrava africana. Aparecem 53,

sendo que 35 foram qualificados genericamente como “africanos”; os demais eram 3

121

CALDAS, Jozé Antonio. Noticia Geral de toda esta Capitania da Bahia desde o seu Descobrimento até o

prezente anno de 1759. Revista do Instituto Geographico e Histórico da Bahia. Salvador, 1981. 122

S. SCHWARTZ, Segredos Internos. São Paulo, Companhia das Letras, 1988, p. 284; Consuelo Pondé de

SENA, Portugueses e africanos em Inhambupe, 1750-1850, Salvador, Centro de Estudos Baianos da

Universidade Federal da Bahia, pp. 17-19, 1977; Mônica Duarte DANTAS, Povoamento e colonização do

Sertão de Dentro baiano (Itapicuru, 1549-1822). Penélope: Revista de História e Ciências Sociais. Lisboa,

vol.23, pp.9-30, 2000. 123

Albertina VASCONCELOS, Ouro, Conquistas, Tensões, Poder: Mineração e Escravidão – Bahia do Século

XVIII. Dissertação de Mestrado em História. Campinas: UNICAMP, 1997. Tabela 12 – escravos africanos

em Rio de Conta, segundo a origem, 1748-1749, p. 271. 124

Accioli, Ignácio de Cerqueira e Silva. Memórias Históricas e Políticas da Bahia. Mandadas reeditar e anotar

pelo Goveno deste Estado. Annotador: Dr. Braz do Amaral. Vol VI. Bahia: Imprensa Oficial do Estado,

1940, p.211.

Page 140: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

140

“angolas”, 1 “congo”, 1 “mina”, 1 “uça”, 10 “pretos”125, contra um total de 364 classificados

com termos raciais que indicam serem nascidos no Brasil (acablocado, cabra, pardo-cabra,

crioulo, crioulo preto, crioulo cabra, crioulo pardo, mameluco, mestiço, mulato, pardo mulato,

pardo, além de Tapuia.126 Essa quantidade de escravos mestiços mostram a profusão de

casamentos que se deram e a diminuição da quantidade de exportação de escravos para o

sertão com a queda de produção das minas a partir de 1760.

Luis Nicolau Parés, fundamentado em pesquisa nos inventários de 11 cidades do

Recôncavo fumageiro, trouxe números inéditos para conhecimento da composição étnico-

racial da comunidade escrava daquela região. A predominância de povos da África Ocidental

no Recôncavo foi conseqüência das atividades comerciais dos baianos no tráfico com a Costa

da Mina que comercializavam o tabaco com os holandeses, que precisavam dessa mercadoria

para fazer trocas com os régulos africanos daquela região. Entre 1698-1729, na área

fumageira do recôncavo 30,7% dos escravos eram oriundos da África Ocidental, 25,2% da

África Central, e 44,1% de nacionais. De 1730-1749, havia 48,2% de nacionais, 39,3% da

África Ocidental, 12,4% da África Central.127

Sem o intuito de mostrar a predominância numérica dos povos da África Ocidental

em Salvador e no recôncavo, mas com o de apontar a presença marcante das práticas culturais

dos povos da África Central em torno das irmandades de Nossa Sra. do Rosário, Lucilene

Reginaldo apoiou-se nos dados de Stuart Schwartz, Luis Nicolau Pares e Joseph Miller. A

novidade empírica foi a amostragem de 70 embarcações saídas de Angola para a Bahia

registradas no Arquivo Ultramarino entre 1781-1789, sendo 38 de Benguela, 29 de Luanda, 3

de Loango e 1 de Cabinda.128

Mas, para além da composição étnica da parcela de africanos na Bahia, a análise

dos processos inquisitoriais envolvendo os negros acusados de feitiçaria mostra que havia

uma solidariedade escrava que independia da origem. Os dados mostram estreita relação entre

forros, escravos, africanos e crioulos. Portanto, a busca de códigos culturais e religiosos

semelhantes e capazes de atender às suas necessidades foi a linguagem simbólica usada para o

125

Raphael Rodrigues VIEIRA FILHO, Os negros em Jacobina (Bahia) no século XIX. Tese (Doutorado em

História). São Paulo: PUC-SP, 2006. O autor classificou os pretos como nacionais, mas segundo Sheila C.

FARIAS, o termo preto era empregado para os africanos. A colônia em movimento: fortuna e família no

cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 137. 126

Idem, p.108. 127

Luis Nicolau PARÉS, A Formação do Candomblé. Op. Cit., p. 65. 128

REGINALDO. Lucilene. Os Rosários dos Angolas. Op. Cit.

Page 141: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

141

entendimento. Penso que a religião cristã foi uma plataforma privilegiada que os africanos

tiveram para estabelecer novos laços de identidade e solidariedade no mundo escravista.

No século XVIII, quando se popularizou entre os negros o uso das bolsas de

mandinga, o tráfico havia aumentado e já estava completando mais de um século. No sertão,

foi o tempo necessário para diferentes levas de africanos e africanas, que chegaram à Bahia,

se mesclarem e recriarem suas culturas, a partir de transformação do catolicismo.

Page 142: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

142

3. CATEQUESE DE AFRICANOS E COLONIZAÇÃO DO SERTÃO BAIANO

A catequese era a primeira fervura que sofria a massa

de negros, antes de integrar-se na civilização

oficialmente cristã aqui formada com elementos tão

diversos. Esses elementos, a Igreja quebrou-lhes a força

ou a dureza, sem destruir-lhe a potencialidade. 1

3.1 Da catequese indígena para a africana

A cristianização constituiu-se na principal justificativa para a escravidão dos

africanos e a transmigração de milhares de pessoas para o Novo Mundo. As propostas

cogitadas para a catequização dos negros na América Portuguesa: a importação de

vocacionados de Angola, a formação de catequistas bilíngües e elaboração de catecismos

também bilíngües não vingaram, pois a Igreja não tinha recursos para atender à multidão de

cativos.

Teólogos e juristas da Igreja defendiam que a escravidão tinha como nascedouro o

pecado original. Ao rebelar-se contra Deus, o homem provocou guerras. Os vencidos foram

escravizados pelos seus vencedores, que se tornaram senhores. A escravidão era também o

castigo pelo pecado de Cam. Os africanos eram escravos por serem descendentes do filho

amaldiçoado por Noé. Essa idéia, originalmente defendida por Santo Agostinho no século

XIII, foi evocada pelos jesuítas na Colônia.

Durante o século XVI, os intelectuais da Igreja, diante dos conflitos para a

consolidação das conquistas ultramarinas européias; discutiram a legitimidade destas

conquistas e a legitimidade da redução das populações nativas à condição de escravidão. Os

indígenas não podiam ser escravizados, porque foi aplicado a eles o princípio da “liberdade

natural”: os índios eram livres pelo “direito de seu nascimento natural”, conforme declarava o

alvará de 1609, ordenado pelo rei Felipe III.2

Quanto aos africanos, os teólogos “identificaram e reconheceram a instituição da

escravidão como um fenômeno político-social presente nessas sociedades, anteriormente à

chegada dos europeus, e legitimada pelo direito costumeiro”. Nesse sentido, aceitava-se que a

1 Gilberto FREYRE, Casa grande & Senzala. São Paulo: Global, 2006, p. 440.

2 Luis Felipe ALENCASTRO, Op. Cit., p.87.

Page 143: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

143

escravidão derivava do direito de gentes, isto é de um direito natural partilhado pelos

diferentes povos, a partir de três situações: guerra justa, resgate (ou comutação da pena de

morte) e necessidade extrema. O consentimento de todos os povos da escravidão enquanto

castigo às guerras injustas foi legitimado pelo direito de gentes. 3

Os cativos gerados pela “guerra justa”, principal justificativa para o trato negreiro,

foram introduzidos pelo “direito de gentes para a conveniência das sociedades e castigo

daqueles que molestaram as nações vizinhas fazendo-lhes guerra injusta”. 4

Na América portuguesa esses argumentos jurídico-cristãos se secularizaram. A

escravidão africana era legítima aos olhos dos jesuítas, porque os índios não podiam ser

escravizados. Dessa forma, os negros da “Guiné” constituíam o meio de criar riquezas no

Brasil, onde seriam evangelizados como servos cristãos. Alguns clérigos se manifestaram

contra as práticas de apresamento na África que não observavam os “títulos legítimos”, mas

não questionaram o tráfico negreiro.

Poucos jesuítas se manifestaram contra os escravos mantidos sem instrução

religiosa. Em Cartagena das Índias, Alonso de Sandoval queixou-se da falta de compromisso

dos padres e senhores para com os escravos. 5 No Brasil, o primeiro a se manifestar contra a

situação de paganismo dos cativos foi o padre Manoel da Nóbrega em 1550. No decênio

seguinte, os padres inacianos do Colégio da Bahia, Miguel Garcia e Gonçalo Leite,

recusaram-se a confessar os senhores, inclusive os próprios companheiros jesuítas que

possuíam escravos (índios e negros) ilicitamente escravizados, não cuidavam da doutrina

religiosa destes cativos e assim se mostravam inaptos para a posse deles. O resultado do

conflito foi a desqualificação da opinião de ambos e o banimento do padre Garcia para a

Espanha, e de Gonçalo Leite para Lisboa, por determinação do visitador Cristóvão de

Gouveia, que veio resolver a querela.6

Os jesuítas chegaram à América Portuguesa com a missão de ganhar novas almas

para o rebanho da Igreja Romana, devido as perdas ensejadas nos conflitos religiosos com os

protestantes da Reforma. No início do século XVI, a ação religiosa dos padres inacianos

estava centrada na conversão dos indígenas, através dos aldeamentos. Os padres agruparam os

nativos em aldeias com objetivos de defesa, catequese e subsistência da própria Companhia

3 Carlos Alberto de Moura ZERON, O debate sobre a escravidão ameríndia e africana nas universidades de

Salamanca e Évora. In: CAROLINO, Luis M. & GAMENIETZKI, Carlos Z. Jesuítas, Ensino e Ciência. Séc.

XVI -XVIII. Portugal: Caleidoscópio, 2005, p. 208. 4 Idem.

5 Alonso de SANDOVAL, Un Tratado sobre la Esclavitud. Madrid: Alianza Editorial, 1987.

6 Luis F. ALENCASTRO, Op. Cit., pp. 163-4.

Page 144: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

144

de Jesus. Mas a catequese não tinha apenas sentido de conversão à fé cristã, mediante o

ensino exclusivo da dogmática católica. A catequese das crianças indígenas não era apenas o

ensino religioso do catecismo, incluía-se também leitura, escrita e matemática elementar.

O mesmo princípio de conversão religiosa ao catolicismo, que combinava

catequese com o ensino das primeiras letras, foi utilizado nos séculos XVII e XVIII nas

fazendas da Companhia de Jesus com os filhos dos escravos que nelas trabalhavam. As

atividades pedagógicas desses colégios estavam baseadas no Ratio studiorum.7 Para atingir tal

objetivo os padres jesuítas utilizaram uma pedagogia fundamentada nos seguintes elementos:

“bilingüismo (preferencialmente português e tupi); método de ensino mnemônico; catecismo

com os principais dogmas cristãos; desmoralização dos mitos indígenas; e atividades lúdicas

(música e teatro). O uso sistemático dessa pedagogia jesuítica no âmbito das casas de bê-á-bá

pode ser considerado como a primeira grande ação ideológica de afirmação dos valores

europeus quinhentistas no Brasil Colonial”.

Ao analisar o movimento dos jesuítas na evangelização na colônia, Marisa Bittar

notou que entre os anos 1570 a 1599 as “casas de bê-á-bá” foram sendo substituídas pelos

colégios, na mesma proporção em que os povos indígenas do litoral foram sendo dizimados

pela lógica de ocupação territorial baseada no modelo econômico da plantation (monocultura,

latifúndio e trabalho escravo) e epidemias. “Assim, paulatinamente, esses escolares foram

deixando de ser as crianças órfãs trazidas de Portugal, as indígenas e as mamelucas, para se

reduzir, quase que exclusivamente, aos filhos dos senhores de terras e escravos.”8

O padre Luiz da Grã, que esteve no Colégio da Bahia entre 1553 e 1609, diz que, a

princípio, os africanos eram catequizados juntamente com os índios e que estes davam

mostras de maior entendimento do que aqueles. Mas, a partir de 1574, aumentou o número de

escravos e as lições de doutrina passaram a ser dadas dentro da Igreja. Os padres ofereciam

prêmios aos escravos para participarem da procissão devidamente vestidos, bem como para

7 A base didático-pedagógica para a elaboração do Ratio Studiorum tem a sua origem nas experiências educativas

que se desenvolveram nos colégios inacianos de Roma, onde os jesuítas tinham influência desde 1538 e

Messina (1548). Em 1591 foi apresentado um segundo ordenamento que retirava do Ratio toda a configuração

de um tratado propedêutico e que traduzia a concepção educacional propugnada pelos inacianos na forma de

regras concisas. Foi essa segunda variante de 1591 que deu origem ao texto do Ratio Studiorum de 1599.

Amarilio FERREIRA Jr. & Marisa BITTAR. Casas de bê-á-bá e Colégios Jesuíticos no Brasil do século XVI.

Universidade Federal de São Carlos, p.7. Disponível on-line:

www.faced.ufu.br/colubhe06/anais/arquivos/531AmarilioJunior_e_MarisaBittar.pdf -. Acessado em

30/01/2007. 8 Amarilio FERREIRA JR. & Marisa BITTAR, Op. cit.

Page 145: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

145

aqueles que se esforçassem para aprender a língua, conforme observou o padre Quiricio

Caixa.9

Também preocupado com a catequese dos escravos foi o padre Inácio de Tolosa.

Quando esteve à frente do provincialato da Bahia, entre 1572 e 1577, sugeriu que, ao invés da

diocese de Angola ficar submetida à Província de Portugal, de onde eram enviados os padres,

que ficasse ligada à Bahia. Dessa forma, poder-se-ia receber “padres línguas, aptos a tratarem

com negros” na Bahia. 10

Em 1588, o padre Geral Aquaviva escreveu de Portugal ao provincial do Brasil,

Marçal de Beliarte, recomendando que os padres estudassem a língua tupi para ensino dos

índios, e seria importante que alguns irmãos da Companhia aprendessem a “língua de

Angola” para catequizar os escravos.11

O padre Cristóvão de Gouveia, visitador da Província da Bahia entre 1583 até

1589, foi enviado pelo padre Geral Aquaviva, com a missão de observar como estavam sendo

direcionados os trabalhos nessa “vinha estéril”. No ano em que chegou, notou que os escravos

não recebiam nenhum tipo de auxílio espiritual, porque os padres desconheciam as línguas

dos cativos. Sugeriu o visitador que os escravos permanecessem alguns anos no Brasil antes

de começarem a ser catequizados e propôs enviar dois irmãos do Colégio para Angola, aptos

para aprenderem a língua dos cativos. Em janeiro de 1584, saiu em missão para o Recôncavo

da Bahia, acompanhado de vários padres e um “língua de escravos de Guiné”. Seis meses

depois, em missão ao Pernambuco, fez-se acompanhar por um irmão jovem que sabia um dos

idiomas da África Central, pois fez uma “oração na língua de Angola” aos quarenta mártires

do Brasil, lançados vivos ao mar.12

Em 1602, o padre Pero Rodrigues arribou na Bahia, porque estava de passagem de

Portugal para Angola, onde atuaria como “visitador canônico” para resolver o conflito entre

os jesuítas e a Coroa, em relação à administração temporal dos sobados. Depois de reunir-se

com os jesuítas da Bahia, recebeu apoio na sua missão de manter os sobas avassalados;

também foi colocado a par dos problemas do provincialato, em relação aos aldeamentos

indígenas do Brasil. Os aldeados deveriam auxiliar na proteção da colônia, abarrotada de

negros da Guiné considerados inimigos potenciais. Interessava-se pela discussão acerca da

9 Seraphim LEITE, Historia da Companhia de Jesus. Século XVI – a Obra. Tomo II. Lisboa: Livraria Portugal;

Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1938, p. 353. 10

Idem, p. 354. 11

Idem. 12

Idem.

Page 146: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

146

catequese dos escravos no intuito de docilizá-los. Pero Rodrigues temia repetição de revolta

dos moldes da ocorrida em São Tomé anos antes. Após meses na Bahia, Rodrigues seguiu seu

destino. Permaneceu em Angola quase dois anos. Em seguida, foi indicado novo provincial da

Bahia (1594-1603).13

Serafim Leite supõe que, o padre Pero Rodrigues intensificou a relação de boa

vizinhança entre os dois Estados portugueses do Atlântico-Sul. Rodrigues fez como que a

Província de Portugal solicitasse a do Brasil que enviasse um visitador à Angola. O Provincial

do Brasil, que era o padre Fernão Cardim (1604-08), aceitou ao pedido e mandou por

visitador o padre António de Matos, que levou como companheiro o padre Mateus Tavares.

Nesse período, a Bahia estava fortemente ligada a Angola pelo trato negreiro. Os

jesuítas observaram o estreitamento das relações comerciais entre o Sul-Sul do Atlântico, e

sugeriram que os angolanos vocacionados para o sacerdócio, em vez de se dirigirem para

Portugal, poderiam encaminhar-se para o noviciado da Bahia, por ser mais próximo, e onde

prestariam melhores serviços na catequese dos negros. Dessa forma, vários angolanos se

tornaram jesuítas no Brasil.14

Na visão dos jesuítas, no século XVI, os proprietários não cuidavam da doutrina

dos seus escravos. Cristóvão Gouveia observou que:

Nas fazendas e engenhos há grande cópia de escravos, os quais nunca ouvem missa, ainda

que tenham nela sacerdotes que as digam, por serem as igrejas pequenas e os escravos

andam nus; e, pelo mau cheiro, não os deixam os seus senhores e Portugueses estar nem

dentro nem fora das Igrejas. Além disso, logo em amanhecendo, nos dias santos, vão

buscar de comer pelos matos, por seus senhores não lho dar. Pelo que nos parece que seria

de muito serviço.15

Durante as missões na Bahia, o visitador Gouveia informou que numa ocasião

rezou duas missas no Recôncavo. Uma pela manhã aos escravos; outra a tarde, aos

portugueses. Acreditava que dar missa em separado aos escravos era acertado, pois na ocasião

podiam ser doutrinados. Estimou que, naquele momento, cerca de 20 mil almas que “não teem

mais que o nome de cristãos e tudo o mais gentio, nem assim se poderão salvar, se não forem

melhor cultivadas e ensinadas nas coisas da fé.”16

13

ALENCASTRO, Op. Cit., pp. 67-8, 168-9. 14

Idem, p. 355. 15

Seraphim LEITE, Op. cit. 16

Idem, p. 356.

Page 147: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

147

Padre Antônio Vieira chegara ao Brasil ainda menino, e ingressou no Colégio dos

Jesuítas em 1623. Apoiou a escravidão africana, em detrimento da indígena. Ao proferir seus

primeiros sermões na Bahia para os escravos, pouco se referiu a doutrinação dos cativos, por

meio da catequese. Ele reforçava a idéia de trabalho como uma espécie de purgatório para os

africanos. A conversão e a escravidão iriam redimi-los.

Oh se a gente preta tirada das brenhas da sua Etiópia, e passada ao Brasil, conhecera bem

quanto deve a Deus, e a sua Santíssima Mãe por este que pode parecer desterro, cativeiro,

e desgraça, e não é senão milagre, e grande milagre!

Dizei-me: vossos pais, que nasceram nas trevas da gentilidade, e nela vivem e acabam a

vida sem lume da fé, nem conhecimento de Deus, aonde vão depois da morte? Todos,

como já credes e confessais, vão para o inferno, e lá estão ardendo e arderão por toda a

eternidade.17

Em Vieira, a escravidão aparece como lugar de padecimento e graça. A

transmigração da África para o Brasil, através do tráfico transatlântico redimiria os negros do

pecado original e das “trevas da gentilidade”. O padre Vieira, que foi o grande entusiasta do

projeto de elaboração de gramáticas entre seus colegas missionários no Maranhão, salientou a

sobreposição numérica de negros sobre os índios na Bahia, e mostrou que percebia a

necessidade de também catequizar os negros na língua materna: “E sendo muito maior o

numero dos negros que o dos índios. Assim como os índios são catequizados na sua própria

língua, assim os negros o são na sua, de que neste colégio da Bahia temos quatro operários

muito práticos, como também no Rio de Janeiro e Pernambuco.”18

Na capitania de Pernambuco, a questão suscitada pela língua dos “angolas” na

negociação com os palmarinos indicava a importância que tinham os padres que falavam a

língua dos escravos, e os laços estreitos existentes entre catequese e escravidão, ressaltados

através do discurso do Profeta do Império.19

Em 1691, o Padre Antonio Vieira acompanhava as negociações dos governadores

junto aos negros do quilombo de Palmares. Uma carta, enviada por um jesuíta anônimo20,

17

Sermão décimo quarto do Rosário, pregado na Bahia, à Irmandade dos Pretos de um engenho, em dia de São

João Evangelista, no ano de 1633, pelo padre Antônio Vieira. Padre Antonio VIEIRA, Sermões. Porto: Lello &

Irmão, vol. IV, tomo II, p. 312. 18

Pe Antônio Vieira, Apud Seraphim LEITE. Vol VII, p.277-8 19

M. F. BICALHO & Laura de Mello e SOUZA, 1680-1720: O Império deste mundo. São Paulo: Cia. das

Letras, 2000. Ver especialmente o capítulo o “Ocaso do Quinto Império”. 20

Ronaldo VAINFAS, “Deus contra Palmares – representações senhoriais e idéias jesuíticas”. In: João REIS, &

Flávio GOMES, Liberdade por um Fio. S. Paulo: Cia das Letras, 1996. O autor sugere que foi o italiano Jorge

Benci quem enviou tal proposta. Op. Cit., p. 76.

Page 148: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

148

sugeria que os padres fossem a Palmares, convencer os palmarinos a se renderem ou fazerem

um novo acordo. Vieira foi convidado a avaliar a sugestão, do seu colega de Ordem. Em

resposta ele contestou com desmerecimento a proposta do jesuíta, elencando cinco razões para

a impossibilidade da tarefa. A primeira delas era de nível “técnico”: “Porque se isto fosse

possível, havia de ser por meio dos padres naturais de Angola que temos, nos quais crêem, e

deles se fiam e entendem como de sua própria pátria e língua; mas todos concordam que é

matéria alheia de todo fundamento e esperança.”21

Para explicar porque essa proposta era “alheia de todo o fundamento e esperança”

Vieira lançou as outras três razões: 1) os aquilombados poderiam desconfiar que os padres

fossem “espias” do governo; 2) que ao suspeitarem dos ditos padres poderiam matá-los com

peçonha; 3) e que tais negros nunca deixaram de acolher os fugitivos de “sua nação” em

Palmares. A quinta razão referia-se ao sentido lógico que havia para o referido padre entre

escravidão e cristianismo: “porque sendo rebelados e cativos, estão e persevaram em pecado

contínuo e atual, de que não podem ser absoltos, nem receber a graça de Deus, sem se

restituírem ao serviço da obediência de seus senhores, o que de nenhum modo hão de fazer”.22

O projeto de catequese estava associado ao cativeiro dos africanos. Sendo assim,

não podia haver catequese para os sediciosos. Ronaldo Vainfas apontou com precisão o

sentido conservador do catolicismo tridentino que ordenava a doutrinação e conversão de

todos, mas previa também a manutenção da escravidão para agradar simultaneamente a Deus

e ao rei. A catequese só valia para os que estivessem em cativeiro, conforme apregoava

Vieira.23 A partir dos discursos dos inacianos, o referido autor percebeu que a catequese dos

escravos no Brasil tornara-se uma preocupação apenas no final do século XVII,

principalmente com as manifestações de rebeldia escrava na Colônia.

Na interpretação de Vainfas, a experiência de Palmares fez os jesuítas tomarem

partido na contenda que deixava os proprietários e os governos apavorados. Os discursos dos

jesuítas Antônio Vieira (escritos em 1691), os de Jorge Benci (entre 1683 e 1700), e os de

21

Idem. 22

Idem. 23

Ao negar a proposta de negociação com os quilombolas de Palmares em 1691, que implicava catequizá-los e

transformar o reduto de resistência de negros fugidos em um aldeamento, padre Vieira vaticinou que “a

liberdade [dos negros] seria a total destruição do Brasil”. Apud. Ronaldo VAINFAS. Deus contra Palmares –

representações senhoriais e idéias jesuíticas. Op. Cit., p.78. Ver também Rafael de Bivar MARQUESE,

Ideologia Imperial, poder patricarcal e o governo dos escravos nas Américas, 1620-1700. Afro-Ásia, UFBA,

Centro de Estudos Afro-Orientais, n. 31, pp. 39-82, 2004; José Carlos Sebe BOM MEIHI. A ética colonial e a

questão jesuítica: dos cativeiros índio e negro. Afro-Ásia, UFBA, Centro de Estudos Afro-Orientais, n. 21-22,

pp. 9-44, 1998-1999.

Page 149: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

149

Antonil (entre 1693 e 1698), reforçaram as opiniões da Companhia acerca da compatibilidade

total entre o cativeiro e a cristianização.

O padre Jorge Benci, que viveu na Bahia entre 1683 e 1700, foi um dos principais

letrado da Igreja que pensou acerca da escravidão africana no Brasil.24 Entendia-a como

legítima, porque os negros eram herdeiros do pecado original de Adão e da maldição de Cam.

A servidão serviria para o pecador penitenciar-se. Apesar de fortalecer essa idéia do servo

cristão, ele acusava os senhores de considerarem os escravos como “brutos”, “rudes” e

“boçais”. Enfatizava a impossibilidade de moldar os negros com brevidade, pois necessitava-

se de “tempo” para torná-los aptos a obedecer aos principais preceitos cristãos e levá-los a

perceber a “verdadeira” fé.

O tema discutido reflete a inclinação dos religiosos inacianos, no final do XVII,

diante do projeto cristão-escravista, que conciliava catequese e escravidão. O escravo, visto

como algo duro, rijo, para enfrentar o mundo do trabalho, vinha cheio de gentilismos e

superstições, precisando ser catequizado e instruído nos mistérios da fé.

Não sois vós aqueles que dizeis que o escravo é tão rude, como um tronco, e tão duro

como uma pedra? Ora tomai um tronco informe ou uma pedra tosca, e levando-a a casa de

um Imaginário ou Estatuário, dizei-lhe que desse tronco e dessa pedra vos faça logo logo à

vossa vista uma imagem ou estátua. Não se há-de rir de vós este Artífice? Não vos há-de

dizer que lhes haveis de dar tempo? Não vos há-de pedir dias e meses para a formar? Tudo

é verdade. Logo, confessando vós por vossa boca que o escravo é tronco ou pedra; como

pode ser que em poucos instantes se forme dele uma estátua e imagem de Cristão?

Porventura para isso não se requer tempo? Tempo para se desbastar o mais grosso de seus

erros e superstições à força de grandes marteladas. Tempo, para lhe abrir com o cinzel da

doutrina os ouvidos, para que penetre a palavra de Deus; os olhos, para que conheça os

mistérios da Fé; a boca, para que saiba orar. Tempo, para lhe tornear o pescoço, para que o

sujeite ao suave jugo de Cristo, e os braços, para que os estenda às boas obras. Tempo,

para lhe dividir nos dez dedos os dez Mandamentos da Lei de Deus, e para mais o que

concorre a formar um verdadeiro e perfeito Cristão.25

Este recurso simbólico da transfiguração, utilizado pelo jesuíta, certamente, está

pautado no clássico “Sermão do Espírito Santo”, escrito em 1657 pela mais ilustre expressão

24

Jorge Benci nasceu em Rimini (Itália) em 1650. Em 1665 entrou para a Companhia de Jesus. Permaneceu no

Brasil entre 1683 e 1700. Durante esse tempo assumiu várias funções no Colégio da Bahia. Pertenceu à geração

de Simão de Vasconcelos, Alexandre de Gusmão e Antonil. Benci acusava-os de passar mais tempo nos

Colégios, envolvidos nas discussões teológicas e acadêmicas do que nas missões no interior da província. Ele

deixou o Brasil por causa das querelas com seus companheiros. Redigiu sua obra em 1700. Foi publicada em

Roma em 1705. Faleceu em Lisboa, em 1708. Ronaldo VAINFAS, Ideologia e Escravidão: os letrados e a

sociedade escravista no Brasil colonial. Petrópolis: Vozes, 1986, pp. 89-100. 25

Jorge BENCI, A Economia Cristã dos Senhores no Governo dos Escravos (1700). São Paulo: Grijalbo,

1977, p. 90.

Page 150: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

150

eclesiástica do século XVII, padre Vieira, o qual discorreu acerca da descrença dos indígenas

do Brasil, utilizando-se da metáfora do mármore e da murta. Vieira dizia que a indiferença

dos “brasis” (índios) aos dogmas da fé, era como uma estátua de murta que “em levantando a

mão e a tesoura o jardineiro, logo perdem a nova figura, e tornam à bruteza antiga e natural, e

a ser mato como dantes eram.” Ao contrário,

[...] a estátua de mármore custa muito a fazer, pela dureza e resistência da matéria; mas,

depois de feita uma vez, não é necessário que lhe ponha mais a mão: sempre conserva e

sustenta a mesma figura (...). Há umas nações naturalmente duras, tenazes e constantes, as

quais dificultosamente recebem a fé e deixam os erros dos seus antepassados (...), mas

uma vez rendidas, uma vez que receberam a fé, ficam nelas firmes e constantes como

estatuas de mármores: não é necessário mais trabalhar com ela.26

Para o italiano Benci, era impossível tornar alguém cristão em poucas horas.

Precisava o missionário, assim como o artífice, de tempo. “Tempo para se desbastar o mais

grosso de seus erros e superstições à força de grandes marteladas”27. As marteladas para

tornear a pedra dura ou o mármore rijo, eram o mesmo que catequizar os escravos na doutrina

cristã. As marteladas se afiguram como os castigos físicos impostos à domesticação do corpo

ao mundo do trabalho. O religioso busca explicitar em seu sermão a dificuldade de ensinar

aos escravos a religião:

Entre essas gentes há gente, que mais tem de bruto, que de gente. Há alarves em Guine tão

rudes e boçais, que só o vosso poder lhes poderá meter o Padre Nosso na cabeça. Há

Minas tão brutos e incapazes, que mil vezes nos havemos de benzer deles, primeiro que

eles aprendam a benzer-se.28

O senhor que não instruísse o seu escravo pecava “mortalmente e gravemente” e

sofria as punições ainda na terra: guerras, fomes e esterilidades, pestes e mortandades.

Fundamentado na Bíblia, Benci atribuiu as guerra dos holandeses, a seca e a epidemia da

varíola aos senhores que se afastavam da moralidade católica, deixando de cuidar da

doutrinação dos seus escravos. Os castigos seriam evitados se os párocos e senhores

aplicassem “o maior de seus cuidados em dar o pasto espiritual às almas dos pretos,

26

Padre Antônio Vieira, 1657. Apud. Eduardo Viveiro de CASTRO, O mármore e a murta: sobre a inconstância

da alma selvagem. In: A Inconstância da Alma Selvagem e outros ensaios de Antropologia. São Paulo:

Cosac&Naify, 2002, p.183. 27

“Discurso II – Em que trata da segunda obrigação dos senhores para com os escravos”. In: Jorge BENCI, Op.

Cit. , p. 90. 28

Idem, p. 86.

Page 151: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

151

inculcando-lhes, uma e muitas vezes, a Doutrina Cristã e os mistérios da fé, como têm de

obrigação.” 29

O padre italiano André João Antonil foi contemporâneo de Jorge Benci. Escreveu

o seu tratado no fim do século XVII e publicou-o em Lisboa, em 1711. Sua obra representa a

preocupação dos jesuítas com as tensões escravistas que se acentuavam no período. Baseado

em princípios da moralidade cristã, compôs um discurso das obrigações recíprocas entre

senhores e escravos, para garantia da manutenção do sistema escravista.

Competia aos jesuítas, com o aval da Coroa, assumir o exercício da tutela política

e moral sobre a sociedade colonial. Portanto, quando Antonil se refere à religiosidade dos

escravos, a evangelização aparece como a justificativa básica para a escravidão negra,

articulada ao desenvolvimento econômico do Império lusitano. Assim como Benci, ele

atribuiu aos senhores que não sabiam cuidar dos seus escravos, a resistência escrava que

assombrava o Brasil, via Palmares. Na parte de sua obra intitulada “Como se há de haver o

senhor de engenho com seus escravos”, advertia sobre os castigos excessivos e as sevícias.

Dizendo que, se “o castigo for freqüente e excessivo, ou se irão embora, fugindo para o mato,

ou se matarão por si, como costumam, tomando a respiração ou enforcando-se, ou procurarão

tirar a vida aos que lha dão tão má, recorrendo (se for necessário) a artes diabólicas, ou

cismarão de tal sorte a Deus, que os ouvirá e fará aos senhores o que já fez aos egípcios.” 30

Em nenhum momento comentou a respeito da catequese, apenas alertou aos

senhores para respeitarem os “domingos e dias santos de Deus”, pois “quando seu senhor lhos

tira e os obriga a trabalhar, como nos dias de serviço, se amofinam e lhe rogam mil pragas.”31

Antonil ressalta que o mau governo dos senhores para com os seus escravos

poderia levar a resistência escravista, em forma de rebelião, fuga, amofinamento, suicídio,

homicídio dos seus castigadores, “artes diabólicas”, e o lançamento de pragas contra os

senhores.

Poucos anos depois da publicação do sermonário de Jorge Benci, D. Sebastião

Monteiro da Vide escreveu na representação enviada ao rei, um detalhado painel da messe

que lhe cabia pastorar. Ao concluir os motivos expostos no início de sua argumentação, disse

que o Arcebispado da Bahia enviava ao Reino, um ano por outro, mais de 150.000 cruzados, e

29

Idem, p. 89. 30

André João ANTONIL, Cultura e Opulência no Brasil. Texto da edição de 1711. Introdução e vocabulário

por Alice Canabrava, São Paulo, Ed. Nacional, 1967, pp. 159-64. 31

Idem, ibidem.

Page 152: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

152

que este “excessivo valor” deve ser atribuído aos escravos, “que são os que cultivam as terras

por todo o Brasil para ellas frutificarem; e só á custa do seu continuo trabalho de dia e de

noite póde o Brazil mandar para Portugal muitos milhões nos estimáveis gêneros de que

carregam suas frotas.”32

D. Sebastião Monteiro da Vide, por ser um homem que conhecia de perto os

problemas da sua diocese, foi mais direto do que os jesuítas, ao se referir à escravidão e os

cuidados com o temporal e o espiritual. Sem escravos não haveria dízimos nem as redízimas

(as côngruas para pagamento dos clérigos enviadas pela Coroa). Os escravos precisavam ser

doutrinados, cuidados, melhor vestidos, e menos castigados, porque deles era extraído o

sustento da Metrópole e da Colônia.

Tendo observado o contexto ideológico e a preocupação de alguns clérigos com a

catequese dos africanos. Vejamos como tentaram colocar em prática as idéias da

evangelização dos escravos.

3.2 Padres intérpretes

Todos os padres designados para as missões no Brasil, eram obrigados a aprender

o tupi, a língua geral. Nas missões entre os “tapuia” do sertão, que não falavam a referida

língua, havia o costume de misturar vários grupos étnicos, dentre os quais, era usada uma

língua padrão.33

A experiência da mediação cultural e lingüística usada pelos jesuítas para

catequese dos índios aldeados, foi projetada também para os africanos.34 Mas havia uma

grande diferença entre o projeto catequético para os indígenas aldeados e a doutrinação dos

negros. Com exceção dos escravos dos padres que moravam nas fazendas e colégios, onde

eram catequizados na forma da Ratio Studiorum, como os indígenas, a expressa maioria

32

D. Sebastião Monteiro da VIDE, Noticias do Arcebispado da Bahia, Op. Cit., p. 346. 33

Cristina POMPA, Religião como Tradução. Op. Cit., p. 379. 34

A religião foi linguagem de mediação no encontro entre missionários europeus e indígenas brasileiros do litoral

e do sertão nos séculos XVI e XVII. A forma de catequização dos indígenas no Brasil foi variada, em virtude

das realidades dos grupos e da relação que os missionários estabeleciam com elas, mas o esboço geral da

catequese e a elaboração do projeto missionário foram dados pelos jesuítas. Os cantos, as procissões na

quaresma, as regras de disciplina dentro das aldeias, as pregações e sermões, a repetição de fórmulas, as

cerimônias de culto de uma forma geral, foram os mecanismos ideais da “tradução jesuítica” para cristianizar a

cultura indígena. A aprendizagem do “outro” passava pelo conhecimento da língua.

Page 153: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

153

ficava espalhada no interior pelas casas, fazendas, engenhos, acompanhando tropas de

curraleiros ou nas minas.

A responsabilidade da catequese dos escravos cabia aos missionários e aos seus

senhores. Jorge Benci aponta o papel assumido pela Companhia de Jesus no auxílio à

doutrinação dos negros, ao dispor “operários” versados no idioma dos escravos para

enfrentamento dos limites da comunicação impostos pelo desconhecimento das línguas: “E

quando não possais ou não queirais doutrinar por vós mesmos os vossos escravos: porque os

não trazeis aos Colégios e Casas da Companhia, onde há operários, que têm à sua conta

ensinar os escravos no seu mesmo idioma, porque desta sorte se suprirá a vossa falta?”35

A política missionária lusa de aprender as línguas dos colonizados, e elaborar

gramáticas e catecismos para conversão e catequização foi utilizada em todas as partes do

Império.

Depois da publicação da “Arte de Gramatica” de Anchieta (1595) no Brasil36, o

padre João Rodrigues publicou a “Arte da lingoa do Japam” (1608), em 1624 foi mandado

publicar a “Doutrina Christã”,37 catecismo bilíngüe português-quicongo, para uso dos

missionários portugueses no Congo.38 Em 1642, foi impresso em Lisboa o primeiro catecismo

bilíngüe em quimbundo-português “Gentio de Angola Suficientemente Instruído”. Foi

organizado pelo padre Francisco Paccónio. Meio século depois, esta obra inspirou outro

jesuíta Pedro Dias, que escreveu no Brasil uma outra gramática/catecismo bilíngüe,

quimbundo-português, impressa em Lisboa, em 1697: a “Arte da Língua de Angola.”

Para enfrentar a incomunicabilidade com os africanos foram pensadas duas

estratégias: primeira, trazer padres angolanos para ensinamento religioso dos escravos

procedentes da Costa da África centro-ocidental. Segunda, investir nos “padres e irmãos

35

BENCI, Op. Cit., “Discurso II – Em que trata da segunda obrigação dos senhores para com os escravos”, p. 89. 36

Na América Portuguesa Setecentista, os padres publicaram outras gramáticas para instrução de outros grupos

indígenas. O jesuíta italiano Luis Vicêncio Mamiani, quando viveu na Bahia entre os kariri redigiu o

“Catecismo da Doutrina Cristã na língua brasílica da nação quiriri, composto pelo padre Luís Venâncio

Mamiani da Companhia de Jesus, missionário da província do Brasil”, em Lisboa, 1698. Os missionários no

Maranhão e Pará também elaboraram catecismos importantes como Felipe Bettendorf (1684), Antonio de

Araújo (1687) e Luís Figueira. Ver Eduardo HOORNAERT, História da Igreja no Brasil, Op. Cit., pp. 73,

81-85. 37

António BRÁSIO diz no seu livro História e Missiologia, que a obra foi composta pelo padre Marcos Jorge e

acrescentada por Inácio Martins, tendo sido "de novo traduzida na língua do reino do Congo por ordem do

padre Mateus Cardoso, teólogo da Companhia de Jesus, natural da cidade de Lisboa", e dedicada "ao muito

poderoso e católico rei do Congo, D. Pedro Afonso, segundo deste nome", tendo como título: Doutrina Cristã,

em 1624. No entanto, Luis Felipe ALENCASTRO discorda do padre Brasio: a obra seria de autoria de Cornélio

Gomes, nascido no Mbanza Congo, filho de pais portugueses, escrita em 1556. Sendo assim, foi o primeiro

catecismo cristão traduzido no mundo ultramarino. Op. cit., pp. 158 e 423. 38

Charles BOXER, A Igreja e a Expansão Ibérica (1440-1770). Op. Cit., p. 57.

Page 154: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

154

nascidos no Brasil que aprenderam a língua angola com as próprias amas negras e, por

conseguinte chamados de línguas de Angola.”39 Essa proposição encontra-se em Serafim

Leite.

Após a guerra de retomada de Angola das mãos dos holandeses, em 1648, e da

reintegração deste entreposto comercial fornecedor de escravos no tráfico para as Américas,

avolumou-se a entrada de povos angolanos no Brasil. A correspondência de João Furtado de

Mendonça, governador do Rio de Janeiro, enviada ao rei de Portugal em 1678, deixava

evidente a preocupação da autoridade com esse contingente, e mostra o tipo de assistência

religiosa que estava sendo prestada pelos padres angolanos para amenizar os limites impostos

pelo desconhecimento da língua falada pelos escravos:

Tem mais padres deputados para a língua de Angola, porque como se averigua que a

maior parte daquele gentio vem por batizar, são os que maior serviço fazem a Deus,

porque tem o cuidado de irem aos navios que vem de Angola, tanto que aparecem a

animar os que vêm vivos e ajudar a bem morrer os que vêm doentes, que são muitos.40

No Rio de Janeiro, o governador mostrava-se satisfeito com o trabalho operado

pelos padres que falavam a língua dos angolas.

André João Antonil que foi mestre dos noviços no Colégio da Bahia deixou uma

lista das entradas de noviços entre 1566 e 1688, onde consta a origem dos candidatos: 11

deles eram naturais de Angola.41

Seguindo as pistas da existência de padres “angolas” catequizando no Brasil,

encontramos uma publicação de Serafim Leite, onde consta uma descrição sumária de nove

jovens, todos de origem angolana, que vieram estudar nos colégios jesuíticos da Bahia e do

Rio de Janeiro.42

39

Serafim LEITE, História da Companhia de Jesus no Brasil, Vol. VII, p. 277. 40

Idem , Vol VIII, p. 278. 41

Idem, pp. 437-8. 42

Serafim LEITE, Jesuítas do Brasil, naturais de Angola. Brotéria, Lisboa, v. 31, 1940.

Page 155: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

155

Quadro 4. O Clero angolano formado no Brasil pela Cia. de Jesus (1620-1712)

Padre Nasc Chegada

Brasil/*

Idade

Formação Onde missionou Morte

Antonio Cardoso

Natural de Luanda

1669 1684 25 anos

Estudou no Colégio da Bahia

Letras Teologia e

Filosofia.

Esteve em Lisboa antes de ir pra Bahia, onde foi duas

vezes reitor do seminário de

Belém: 1725 e 1746.

1749, no RJ.

Antonio de Passos

Natural do Reino de

Angola

1633 1652 19 anos

Estudou no Colégio da Bahia

? 1684, em PE.

Francisco de Lima

Natural de Luanda 1664 1683

19 anos Estudou no Colégio da Bahia

Letras Teologia e

Filosofia

Entre 1701-02, missionou com o P. Jose Bernardino no

Recôncavo. Percorreu 150

léguas e visitou 48 igrejas.

1707, em PE.

Francisco da Vide

Natural de Luanda

1667 1686

27 anos

? Engenhos e fazendas do sul

do Rio de janeiro.

1732, no

RJ.

João de Araújo

Natural do Reino de

Angola

1659 1674

15 anos

Estudou no

Colégio da Bahia

Jorge Benci o acompanhou

em missão no RJ.

?

João da Cunha

Natural de Luanda

1690 1712 22 anos

? Foi diretor de uma Congregação no RJ em 1732.

Tradutor dos poemas de

Anchieta do Tupi.

1741, no RJ.

Luis de Siqueira

Natural de Luanda

1605 1620 15 anos

Estudou no Colégio da Bahia

Aprendeu tupi

Governou várias casas, aldeias e o Colégio de PE -

1669.

Favoreceu as missões. Era sertanista – buscou serra das

esmeraldas.

?

Manuel de Lima

Natural de Luanda

1667 1683 27 anos

Estudou no Colégio da Bahia

Sabia a língua dos pretos de Angola e com eles trabalhou

com dedicação. Compôs

também um catecismo para os cativos de origem “mina”.

1718, na Bahia.

Miguel Cardoso

Natural de Luanda

1659 1674

35 anos

Estudou no

Colégio da Bahia

Letras Teologia e Filosofia.

Procurador das Missões.

Reitor dos Colégios de Recife

(1702), RJ (1716), Em 1719 – provincial do

Brasil.

172, em

Santos.

Fonte: Serafim LEITE. Jesuítas do Brasil, naturais de Angola. Brotéria. Lisboa, 1940, vol.31. * O ano de chegada dos vocacionados ao Brasil corresponde sempre à entrada destes na Companhia.

A maioria dos padres fez missões pelos engenhos, fazendas, sertões, e assumiu

altos cargos de direção nos colégios da Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro. O padre Manuel

de Lima por saber as línguas dos “pretos de Angola” e a dos povos oriundos do Castelo de

São Jorge da Mina, escreveu “Catecismo na Língua dos Ardas”, em 1708.43

A proposta de ter um clero angolano para catequizar os negros não se prolongou

por muito tempo, pois era sustentada apenas por alguns jesuítas do colégio da Bahia, cujo

pensamento mais expressivo foi o de Benci e Pero Rodrigues, que teve respaldo junto ao

Arcebispado.

As evidências mostram que os padres africanos ordenados na Bahia para auxílio na

catequese dos escravos provinham de Cabo Verde ou de Angola, e eram filhos de portugueses

43

Publicado em 1708, não se conhece outra notícia desse catecismo escrito na língua dos "ardas", pelo

missionário angolano Manuel de Lima, além da que consta em Serafim LEITE, Jesuítas do Brasil, naturais de

Angola. Op. Cit.

Page 156: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

156

nascidos nos enclaves. Alguns vocacionados que foram para o Seminário da Bahia eram

negros, pois em agosto de 1687, o governador geral Matias da Cunha escreveu à S. Majestade

informando-o sobre a “necessidade de recolher no Colégio dos Jesuítas a D. Diogo, potentado

negro que foi mandado de Angola, para ser doutrinado na forma que se lhe havia ordenado”.44

A presença de D. Diogo, um “potentado negro”, advindo da nobreza angolana,

sendo ordenado na Bahia, despertou atenção dos moços baianos mulatos, proibidos de

adentrarem na Companhia de Jesus pelo estatuto de pureza de sangue que vigorava para os

vocacionados. Talvez, em conseqüência da presença do angolano negro no Colégio dos

jesuítas, em janeiro de 1689, foi dirigida uma consulta ao Conselho Ultramarino “sôbre os

moços pardos da cidade da Bahia, que pedem se ordene aos religiosos da Companhia de

Jesus, que os admitam nas suas escolas do Brasil sem embargo do seu nascimento e de sua côr

porque foram excluidos e êles os não querem admitir.”45 Passado um mês, foi enviado à

Lisboa outro “Requerimento dos moços pardos que desejam estudar nos colégios dos

jesuítas.”46

A formação de intérpretes negros para facilitar a doutrinação foi uma possibilidade

cogitada, e talvez tenha sido usada por pouco tempo. Como já mostramos acima, a vinda de

aspirantes angolanos ao sacerdócio para junto da Companhia de Jesus foi somente até 1712.

Na Bahia, durante o século XVII predominaram os povos ”angolas”, pois o tráfico

estava voltado mais diretamente para África Central. No século XVIII, a Bahia voltou-se para

o comércio com a Costa da Mina, devido à conjuntura atlântica que perdurou até meados do

século XIX. Devido ao novo contingente de africanos, em junho de 1700, o Governador Geral

do Brasil, D. João de Lencastre, solicitou à Coroa autorização para recrutamento de

catequistas entre os forros para doutrinar os negros da Costa da Mina. Ele alegava um forte

motivo para o seu pedido: o pouco tempo que os cativos da Costa da Mina passavam na Ilha

de São Tomé, antes de serem distribuídos para os portos americanos, não lhes facultava o

entendimento da língua portuguesa.47

44

AHU – Luiza da Fonseca. Caixa: 28, Doc. 3420. 45

AHU – Luiza da Fonseca. Caixa: 28, Doc: 3517 46

AHU – Luiza da Fonseca . Caixa: 28 Doc: 3519 47

ALENCASTRO aponta em seus estudos as ilhas atlânticas, especialmente, São Tomé como um “laboratório

tropical”. Desde o século XVI, a ilha tornara-se um ancoradouro das naus que seguiam para as Índias, e

posteriormente das feitorias de São Jorge da Mina e do porto de Pinda. O Regimento do rei D. Manuel para o

feitor de São Tomé (1519), estabelecia as regras para o embarque, “tratamento e treino para o escravismo

moderno”. Os escravos permaneciam algum tempo na ilha para ficar mais resistente às doenças, aprender a

língua geral luso-africana e manejar o fabrico do açúcar. “No início do século XVI a ilha contava com 2 mil

escravos fixos, e 5 mil a 6 mil itinerante, à espera de embarque para outros mercados”. Op. Cit., p. 65.

Page 157: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

157

Em fevereiro de 1701, o Conselho Ultramarino respondeu favoravelmente,

autorizando a utilização de catequistas forros que sabiam a língua da Costa da Mina:

[...] vim a assentar, que não havia outro meyo mais, que o cuydado de hum Arcebispo

zellozissimo, que dirigindo este negocio por sy, e por seus parochos, obrigue aos

moradores que tiverem escravos por doutrinar; ou os comprarem nesse estado os fação

doutrinar; e cathechizar pellos interpretes em tal forma, que dentro de certo, e

determinado tempo, se achem capazes do Baptismo: Recomendando V. Mage, este

negocio muito ao novo Arcebispo, que eu lhe darey toda a ajuda e favor necessario, e

em forma que geralmente se entenda e cremos hum e outro, por especial recomendação, e

empenho do pio zello de V Mage., e por este meyo me parece podera haver o remedio, que

se deseja a salvação destes mizeraveis.48

Os “interpretes” seriam negros forros, instruídos pelos padres da Companhia de

Jesus, que se tornariam catequistas dos escravos daquela região. A carência de catequistas

devia ser óbvia, pois o documento deixa a seguinte abertura: “e não havendo negros forros e

ladinos, fareis comprar por conta da Fazenda real alguns escravos para este mesmo emprego,

mandando escolher daquelles de quem se possa de muy boa conta de si neste ministério, os

quaes os mesmos religiosos da Companhia ensinarão e os mandareis sustentar pella Fazenda

Real (...)”.49

Além dos catequistas conhecedoras de línguas africanas, a gramática do padre

Pedro Dias (1694) e as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707) foram

instrumentos pedagógicos de tentativa de regulamentação da forma como deveria ser

realizada a catequese dos africanos.

Em 1697, foi publicada na Officina de Miguel de Deslandes, a “Arte da Lingua de

Angola Offerecida a Virgem Nossa Senhora do Rosário May, & Senhora dos Mesmos Pretos

pelo padre Pedro Dias da Companhia de Jesus.”50 O objetivo da obra era ensinar aos padres a

língua dos ambundos (como são chamados hoje os povos da região de Angola), para facilitar

o processo de catequização dos escravos provindos dessa região para o Brasil, constituindo a

maior parte dos cativos.

48

AHU – “Consulta do Conselho Ultramarino ao Rei D. Pedro II acerca de recrutamento de catequistas entre os

negros forros da Bahia para doutrinar os negros da Costa da Mina.” Lisboa, 23 de fevereiro de 1701. Caixa 3,

Doc. 314. [grifos meus] 49

Idem. 50

Pedro DIAS, Arte da Lingua de Angola Offerecida a Virgem Nossa Senhora do Rosário May, & Senhora

dos Mesmos Pretos pelo padre Pedro Dias da Companhia de Jesus. Lisboa, na Officina de Miguel de

Deslandes, Impressor de Sua Magestade com todas as licenças necessárias. Ano 1697. (Edição Fac-similar

publicada pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 2006).

Page 158: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

158

Destinada aos jesuítas, a gramática do quimbundo (língua falada no antigo reino de

Angola) foi escrita de acordo com o espírito de gramatização das línguas exóticas dos séculos

XVI e XVII, ou seja, a descrição, em sua maioria, foi pautada nos modelos oferecidos pelas

gramáticas do latim clássico. Pouco se sabe da formação de Pedro Dias. Apenas que era luso-

brasileiro, natural de São Vicente. Nunca foi à nenhuma das partes da África; portanto, se

pressupõe que aprendeu o quimbundo com seus colegas missionários que estiveram na África

Central e com os próprios cativos.51 Após estudo da obra, suponho que o catecismo do padre

Paccomio, publicado desde 1642, constituiu-se em principal fonte para Pedro Dias.52

A “Arte da Lingua de Angola” foi escrita na Bahia, onde teve uso entre os

missionários que recebiam os navios negreiros vindos da África. Trata-se de uma gramática

bem sucinta, organizada em três partes: ortografia, morfologia e sintaxe.53 As gramáticas

missionárias jesuíticas, de forma geral, eram elaboradas, seguindo um padrão comparativo. Os

jesuítas dedicavam-se a aprender a língua dos africanos, num processo de decifração de

alguns códigos da cultura destes povos, traduzindo para a sua língua e depois devolvendo o

apreendido para eles. O que nos interessa são os exemplos utilizados pelo padre Pedro Dias

para explicar como se operava a tradução das expressões ligadas à religião da língua dos

ambundos para a língua portuguesa.

A maior parte das traduções do quimbundo para o português são expressões

associadas ao universo da religiosidade cristã no mundo do trabalho escravista.

Para se fazer entender pelos escravos, os religiosos encarregados da doutrinação

deveriam entender que “Nginaria-zambi” significava nome de Deus, “Oituxiyo gabangue

garielayo” – as culpas que fiz, estou arrependido delas; “Nganga” – padre, “Ginganga”, o seu

plural; “vanga” – feitiço, (pl. “Mauanga”), “Otubiâ tuà cariapemba tuà calela – o fogo do

diabo (o inferno) dura para sempre, “O nginganga jáuaba” – os padres são bons, “O milonga

yacucondeca nayo nzambi inecuim” – os preceitos com que se honram a Deus são dez.

51

Serafim LEITE, Padre Pedro Dias, autor da Arte da Lingua de Angola, apóstolo dos negros no Brasil.

Portugal em África. Lisboa: n. 4, v. 2, pp. 9-11, 1947. 52

O primeiro catecismo bilíngüe em quimbundo-português, “Gentio de Angola Suficientemente Instruído” foi

escrito pelo padre Francisco Paccónio, em 1642, impresso em Lisboa. Pedro DIAS cita-o em vários momentos.

Op. Cit., pp.8-9, 34-5. 53

A parte de tratamento da sintaxe da língua já se inicia, como vimos anteriormente, com a declaração de Dias

indicando ser objetivo de seu trabalho apontar “regras gerais” da língua, as quais seriam suficientes para um

primeiro contato do missionário com o kimbundu. Não se pode esquecer aqui do fato de que o uso

complementaria o conhecimento do gramático sobre a língua. As artes de gramática, breves como deveriam ser,

indicavam os aspectos básicos e essenciais para o contato inicial com a língua, um aprofundamento nesse

conhecimento seria fornecido pelo uso em contato direto com os falantes nativos. Ronaldo de Oliveira

BATISTA. “Regras gerais e comparações na syntaxe da Arte da Lingua de Angola”. Revista Estudos

Lingüísticos, GEL/UNESP, n. 33, 2004, p. 05.

Page 159: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

159

Também não faltou a forma elementar de perguntas e respostas, próprias dos catecismos

jesuíticos:

“Nzambii uazola atu osso”? Deus ama a todos? “Uazola” – ama;

“Ngana ùacala bebi?” Onde está senhor? “Ùacala boba” – está aqui;

“O mona nzambi úatunda bebi?” O filho de Deus de onde veio?

“Úatundu moculu” – veio do Ceo.54

Para cumprir as novas regras de Trento, no que diz respeito ao sacramento da

confissão, que deixara de ser público e passara a ser feito apenas entre o confitente e o padre,

a língua era uma condicionante. O padre Pedro Dias ensinou na sua gramática como deveria

ser feito o Ato de Contrição: “Nzambi ngana yâmi, o ituxi yosso ingacalacala, nagariclayo,

ngaryclayo, ngaitaculaxy, ngaitende, yanguibila quinene: ombata ngacussüile nayo eye ngana

vami.”55

A Arte da lingua de Angola, oferecida a Nossa Senhora do Rosário não era para

que os africanos falassem o português, mas para que os padres ou catequistas aprendessem o

quimbundo. O padre Pedro Dias tinha esperança de que através de sua obra o ensino do

catolicismo aos estrangeiros negros cativos melhorasse.56

Além da língua, que embargava o ensino da fé cristã aos escravos, a dispersão dos

escravos nos engenhos, fazendas e demais paróquias do interior, era outro elemento

dificultador. Dez anos após a publicação da obra de Pedro Dias, o Arcebispo da Bahia voltou

a advogar intérpretes para doutrinação dos escravos, como fizera em 1691.57 Dom Sebastião

Monteiro da Vide exortava nas Constituições Primeiras a todos, para se ocuparem da

54

Pedro DIAS, Op. Cit., pp. 39-40. 55

“Deos Senhor meu, os peccados todos que faço, arrependome delles, os lancei fóra, os desprezei, os quaes me

aborrecem muito, porque offendi com elles a ti Senhor meu.” Idem, p. 37. 56

As expressões e termos não se restringiam ao mundo religioso. Atentando para a possibilidade dos padres e

senhores entenderem o que se falava entre os cativos angolanos, havia a tradução de termos que aventavam à

idéia de solidariedade: “Ndandu” – parente (pl. “Gindandu”), “Ngana Uaoaba” – senhor bom (pl. “Gingana

Gaoaba”), “Lundo” – oiteiro (pl. “Malundo”). Assim como traduções para do mundo do trabalho: “Quicala

caloquinene” – trabalho grande, “icala caloinene” – trabalhos corporais, “alambi” – cozinheiro (pl. “mulambi”),

“abiri” – pastor de gado (pl. “mubiri”). Também não faltaram traduções para situações de conflito: “Nvunda” –

briga (pl. “Ginvunda”). Nos exemplos de conjugação de verbos no pretérito foram usados os verbos “nguigiba”

– matar, e “nguifua” – morrer. 57

D. Sebastião Monteiro da VIDE, Noticias do Arcebispado da Bahia para suplicar a sua Magestade Em favor do

culto divino e salvação das almas. Revista do Instituto Histórico e Geographico Brazileiro. Rio de Janeiro,

1891, p. 331: “[...] se deve procurar meio com que hajam pessoas que aprendam as línguas dos oriundos

d‟aquellas partes, para que, ordenando-se, hajam ministros que pela língua mais facilmente os instruam na santa

fé católica, e se livrem por este meio muitas almas do inferno”.

Page 160: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

160

doutrinação dos escravos, porém, esclarece que a “especial obrigação”, cabia aos párocos e

outros membros da Igreja:

Porque aos Párocos, como Pastores, e Mestres espirituais, obriga mais o cuidado de

apascentar suas ovelhas com a Católica e verdadeira doutrina, exortamos a todos os do

nosso Arcebispado, e a todas e quaisquer pessoas, a que nele estiver encarregada a cura

das Almas, ainda que sejam isentas, que todos os Domingos do ano em que não concorrer

alguma festa solene, ensinem aos meninos, e escravos a Doutrina Cristã no tempo e

hora que lhe parecer mais conveniente, atendendo aos lugares e distâncias das suas

Paróquias, ou sejam nas cidades ou fora delas (...) E para se conseguir o fruto desejado,

ordenem os párocos aos Pais, que mandem aos lugares, e horas determinadas seus filhos, e

aos senhores seus escravos (...). E aos Padres Capelães encomendamos que nas suas

Capelas façam a mesma diligência, principalmente com os escravos.58

Preocupado com a doutrina cristã dos escravos que estavam em locais distantes, o

arcebispo mandou imprimir uma “breve fórma de Cathecismo” para ser distribuído pelos

párocos nas casas dos moradores das suas freguesias, ordenando-os a instruírem os seus

escravos nos mistérios da fé pela “fórma da dita instrucção”.

No capítulo 579, sob o título de “Breve instrucção dos Mysterios da Fé,

accomodada ao modo de fallar dos escravos do Brasil, para serem cathequisados por ella”, a

fórmula adaptada para aqueles que eram considerados rudes, ficou assim:

Quem fez este mundo? Deos

Quem nos fez a nós? Deos

Deos onde está? No Ceo, na terra, e em todo mundo.

Temos um só Deos, ou muitos? Temos um só Deos.

Quantas pessoas? Tres.

Dize os seus nomes? Padre, Filho, e Espirito Santo.

Qual destas Pessoas tomou a nossa

carne?

O Filho.

Qual destas pessoas morreo por nós?

O Filho.

Como se chamao esse Filho? Jesus Christo

Sua Mãy se chama? Virgem Maria.

Onde morreo este Filho? Na Cruz.

Depois que morreo onde foi? Foi la abaixo da terra buscar as almas boas

E depois onde foi? Ao Ceo.

Há de tornar a vir? Sim.

Que ha de vir buscar? As almas de bom coração.

E para onde as de levar? Para o Ceo.

E as almas de máo coração para Para o inferno.

58

Idem, p. 223.

Page 161: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

161

Onde hão de ir?

Quem está no inferno? Está o Diabo.

E quem mais? As almas de máo coração.

E que fazem lá? Estão no fogo que nunca se apaga.

Hão de sahir de lá alguma vez? Nunca

Quando nós morremos, morre também

a alma?

Não. Morre só o corpo

E a alma para onde vai? Se é boa a alma, vai para o Ceo;

se a alma não é boa, vai pra o inferno.

E o corpo para onde vai? Vai para terra.

Há de tornar a sahir da terra vivo? Sim.

Para onde há de ir o corpo, que

teve alma de máo coração?

Para o inferno.

E para onde hade ir o corpo, que teve

alma de bom coração?

Para o Ceo

Quem está no Ceo com Deos? Todos os que tiveráo boas almas

Hão de tornar a sahir do Ceo, ou hão

de estar lá sempre?59

Hão de estar lá sempre.

A fórmula elementar de instrução por meio de perguntas e respostas tinha o

objetivo de servir para os escravos “se confessarem, e comungarem Christâmente, e com mais

facilidade, do que estudando de memória o Credo, e outras lições, que só servem para os de

maior capacidade”.

As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, interpretadas, neste

momento, como uma adaptação da Igreja à situação colonial indicavam a frouxidão do

catolicismo. D. Sebastião M. da Vide legislava, a partir do que já era fato. Não havia

catequese para os escravos: “[...] porque eles são os mais necessitados da Doutrima Christã,

sendo tantas as Nações, e diversidades de lingoas, que passão do gentilismo a este Estado,

devemos buscar-lhes todos os meios para serem instruídos na Fé, ou por quem lhes falle no

seu idioma. E não se nos offerece outro meio mais prompto, e mais proveitoso que o de uma

instrucção accompanhada á sua rudeza de entender, e fatuidade de fallar.”60

As Constituições Primeiras regiam a vida moral e religiosa internas à Colônia, em

todo o território sob jurisdição do Arcebispado da Bahia. O conjunto de normas e

procedimentos deveria orientar aos párocos, demais padres ordenados dispersos pela Colônia

e também aos senhores.

59

Idem, pp. 219-20. 60

D. Sebastião Monteiro da VIDE, Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia propostas e aceitas em o

Synodo Diocesano que o dito Senhor celebrou em 12 de junho do anno de 1707. São Paulo: Typografia de

Antonio Louzada Antunes, 1853, p. 219.

Page 162: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

162

Na segunda metade do século XVIII, na Bahia, os jejes da área Gbe-falante

tornaram-se a maior “nação” de africanos. O tráfico interno reconduzia os cativos

desembarcados na Bahia para o trabalho aurífero nas Minas Gerais. Dessa forma,

predominaram em Minas Gerais, no século XVIII, os negros “minas”, um termo geral das

fontes para indicar os cativos procedentes da costa dos atuais Benin e Gana.

Tendo passado quase três decênios da publicação das Constituições Primeiras, foi

redigido outro documento lingüístico em língua africana. O manuscrito “Obra nova de lingua

geral de mina”, redigido entre 1731 e 1741, em Ouro Preto, de Antonio da Costa Peixoto, não

chegou a ser publicado.61 A base do vocabulário mostra que predominavam os grupos ewe,

fon, gun e o mahi, da família Níger-Congo, classificadas no grupo “kwa”, subgrupo “gbe”.62

Antonio da Costa Peixoto era natural do Entre-Douro-e-Minho. Chegou em Vila

Rica no início do século XVIII, onde atuou na área dos garimpos e aprendeu com os escravos

a língua “mina”. Seu ofício era preparar, sob encomenda, brochuras com os conhecimentos de

uma língua que ele denominou “lingua geral de mina”. Suas brochuras tinham por objetivo

ensinar a língua dos escravos a seus senhores, com o intuito de facilitar o trato entre eles, e

obviamente, o maior controle do que falava a escravaria.63

Diferentemente da gramática em quimbundo de Pedro Dias, na qual

predominavam expressões da religiosidade cristã para conversão dos negros bantos, na

“Lingua geral da Minna”, de Antonio da Costa Peixoto, interessava registrar palavras e

expressões para mediar a relação entre senhores e escravos na lida diária.

Costa Peixoto elaborou seu glossário a partir de perguntas objetivas aos escravos.

Tais como: partes do corpo, vestuário, armas, profissões, animais e seus derivados, alimentos,

frutas, plantas, locais de trabalho, sentidos, doenças, utensílios domésticos, ferramentas de

61

A obra foi editada e publicada a primeira vez em 1945, por Edmundo Lopes Correia. Antonio Costa PEIXOTO.

Obra nova de lingua geral de mina. Manuscrito da Biblioteca Pública de Évora e da Biblioteca Nacional de

Lisboa. Lisboa: Agencia Geral das Colônias, 1945. Em 2002 foi lançado um ensaio crítico da obra no Brasil

pela etnolingüísta Yeda Pessoa de CASTRO, A língua mina-jeje no Brasil: um falar africano em Ouro Preto

do século XVIII. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro/Secretária da Cultura do Estado de Minas Gerais,

2002. Há também uma transcrição literal do manuscrito original da Biblioteca de Évora, do qual nos utilizamos,

em: Silvia Margarete Cunha SOUZA, A predicação da “língua geral de mina”: uma proposta de descrição.

São Paulo: USP/FFLCH/ Departamento de Lingüística, 2001. (Dissertação de Mestrado). 62

Silvia Margarete Cunha SOUZA, A predicação da “língua geral de mina”, op. cit., p.14. 63

“Pois hé serto e afirmo, que se todos os senhores de escravos, e hinda os que os não tem, souvecem esta

lingoage não sucederião tantos insultos, ruhinas, estragos, roubos, mortes, e finalm.te cazos atrozes, como m.tos

mizeraveis tem exprementado: de que me parece de algua sorte se poderião evitar alguns destes descomsertos,

se [h]ouvece maior curuzidade e menos preguisa, nos moradores, e [h]abitantes destes payses.” Antonio Costa

PEIXOTO. Obra nova de lingua geral de mina. Manuscrito da Biblioteca Pública de Évora e da Biblioteca

Nacional de Lisboa. Transcrição deste original consta de Silvia Margarete Cunha SOUZA, A predicação da

“língua geral de mina”, op. cit., p.136.

Page 163: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

163

trabalho, fenômenos naturais, hierarquias, relações parentais, verbos associados ao mundo do

trabalho e ao cotidiano, e por fim, uma lista de medidas e numerais usados para transações em

ouro.64

Embora o autor não fosse um religioso, tentou traduzir os conceitos da religião dos

povos jeje-mina para o cristianismo. Ele criava associações entre os significados concretos

das palavras e das coisas para que o proprietário e também os padres se comunicassem melhor

com os seus escravos.

No culto dos voduns da área Gbe-falante, havia várias divindades jejes65, cujo deus

supremo chama-se Mawu. Nas comunidades da África Ocidental, os cultos das famílias de

voduns eram organizados em torno de lideranças locais, cujo sacerdote, o “vóduno”,

significava literalmente o “dono” do vodum, um elemento fundamental da religião.66 No

contexto diaspórico, Peixoto, traduziu a palavra padre por “avóduno”. A expressão

“hihávouvodum” foi traduzida por deus do branco.

Havia similitudes entre a cosmologia cristã e o culto dos voduns. Embora, na visão

dos africanos, o “dono” do culto dos deuses era um padre branco, e não o chefe religioso

negro, ligado aos clãs. No contexto escravista havia-se de aprender outros preceitos religiosos,

que pouco lhes faziam sentido. “Avodumchuchê” = Igreja (literalmente: casa de Deus),

64

No universo de quase mil palavras traduzidas, cerca de 20 delas fazem referência ao universo religioso, que são

as seguintes:

Avóduno – Padre

Hihávouvódum – Nosso senhor

Avó–dumchuchê – igreja

Avódumgê – contas de rezar

Avódunçu – coresma

Avódumnhi – pascoa

Avódumzampê – dia santo

Fihánáni - Aonde vais? Máhipomvódum – Vou a missa.

Máhidõ-vodum – vou confessarme

Máhiclechovódum – vou rezar

Máhivódumchumchê – vou para a Igreja

Leba – o Demônio

Zoume – o Imferno

Avóduno hé cû – hum Padre morreo

Avódumcû hi hábouno mádu lamhã. Énàduguhevi – na coresma os brancos não comem carne. Comem peixe.

Menu hé já? Avódunohé já – quem he que [está] ahi? – ahi há bem um padre.

Na hipouhihávouvò dum pou – fiquece com Deos Nosso Senhor.

Hipouhéhépou – vá com o mesmo Senhor. 65

Dan – o vodum serpente, Hevioso – o vodum do trovão e Sakpata – o vodum da varíola e ainda há outros,

dentre os quais, o mais conhecido é Legba, a divindade intermediária entre deuses que representam bem e mal. 66

Luis Nicolau PARES, Tranformations of the Sea and Thunder Voduns in Gbe Speaking Área and in the

Bahina Jeje Candomblé. In.: CURTO, Jose, SOULODRE- LA FRANCE. & Renne. Africa and the

America: Interconnections during the Slave Trade. Trenton: Africa World Press, 2005.

Page 164: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

164

“Avodunçu” = quaresma (morte do filho de Deus); “Leba” = demônio (Legba = divindade

mensageira, associada ao cotidiano trágico, que está além do bem e do mal); “Zoume” =

inferno (fogo que queima) “Máhipomvódum” = Vou a missa (vou ver Deus).

Peixoto não deve ter feito muitas cópias de sua obra. Seu uso se restringiu aos

senhores letrados e alguns padres. Concordo com os lingüistas que a escrita da obra revela a

predominância dos negros “minas” em Minas Gerais no século XVIII, e existência de línguas

aparentadas. Mas, interessa ressaltar que a gramática refletia o medo senhorial da rebeldia

escrava e o desejo de penetrar o universo cultual africano. A preocupação do senhor em saber

o que se conversava no meio da escravaria e ensiná-los rudimentos de cristianismo estavam

mais relacionadas ao temor de revolta, que a tentativa de catequizá-los. Além do mais, a

organização religiosa dos voduns era muito mais complexa que o simplismo de sua tradução

ao cristianismo. A concepção européia de tradução da cosmologia dos voduns deixava um

campo considerável à interpretação e à invenção de sincretismo.

Nesse contexto de domesticação de africanos via catequese, os sermões de Jorge

Benci ameaçando os senhores que não cumpriam com seus deveres de cristãos para com os

seus escravos pode ter tido repercussão. As Constituições Primeiras do Arcebispo D.

Sebastião Monteiro da Vide não foram cumpridas substantivamente, pois a heterogeneidade

cultural e imensidão das províncias não permitiam. O vocabulário de Costa Peixoto nem foi

impresso. No século XVIII não há mais informações da chegada de padres angolanos ou do

envio de padres da Bahia para o outro lado do oceano para aprendizagem da língua ou da

vinda de almejantes ao sacerdócio.

Mas é preciso considerar que africanos desembarcados no Brasil, em especial na

Bahia, nos séculos XVI a XVIII, oriundos de África Centro Ocidental, eram marcados por

experiência do cristianismo. Escravos trazidos de outras partes de África eram instruídos por

catequistas ou padres angolanos. Portanto, havia possibilidade de difusão de cristianismo de

feição africana.

3.3 Criação de novas freguesias

O primeiro bispado do Brasil foi criado em 1551, por ordens de D. João III e do

Papa Júlio III (1550-55). Ao tempo da criação da diocese na Bahia de Todos os Santos, foram

erigidas três paróquias: Nossa Senhora da Vitória, a Sé e São Jorge dos Ilhéus.

Page 165: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

165

Passado mais de um século da criação do único bispado na América Portuguesa,

tornara-se evidente que era impossível a administração do governo eclesiástico por um só

bispo. A dilatação das capitanias, o surgimento de novos povoados, vilas e cidades, o aumento

do comércio e da comunicação entre os povoados, e o aguçamento dos conflitos entre colonos

e jesuítas por causa dos aldeamentos indígenas, foram fatores que expuseram a necessidade de

expandir a fé e colonizar os sertões.

O processo de interiorização da colônia portuguesa, só ocorreu no momento após a

guerra contra os holandeses (1654). Depois da expulsão dos batavos, a economia açucareira

entrou em crise por motivos internos (secas e epidemias) e externos (a concorrência

internacional do açúcar produzido nas Antilhas e o aumento dos preços dos escravos nos

portos africano devido à demanda nas Américas) 67.

A criação de novas freguesias no sertão da Bahia ocorreu simultaneamente ao

processo de ocupação e exploração do interior da província em meados do século XVII. A

descoberta de ouro em Jacobina e Rio de Contas, e a expansão dos currais de gado, afastaram

os indígenas das aldeias. Os africanos foram enviados para as fazendas e vilas, onde

receberam rudimentos da instrução religiosa. O resultado disso foi adesão superficial do

cristianismo, combinado com práticas das terras de origem.

Em 1676, o rei D. Pedro II (1673-1706) foi atendido em sua solicitação ao papa

Inocêncio XI (1676-89), de providenciar o desmembramento da diocese da Bahia de Todos os

Santos em três bispados, para que assim fosse dada mais atenção ao bem espiritual dos seus

“vassalos”, do que ao acréscimo da sua Real Fazenda.68 Em 1676, a Bahia tornou-se

arcebispado com poderes sobre Angola e Ilha de São Tomé. No mesmo ano, foram criados

três bispados: Maranhão, Pernambuco e Rio de Janeiro. A província do Maranhão, devido

dificuldades de navegação por causa dos ventos, ficou sujeita ao Arcebispado de Lisboa, e as

outras duas, ao da Bahia. Na primeira metade do século XVIII foram criadas mais três

jurisdições episcopais para atender as províncias que se destacavam economicamente: Pará

(1719), Mariana (1745) e São Paulo (1745).

67

Pedro PUNTONI, A Guerra dos Bárbaros: povos indígenas e a colonização do sertão. Nordeste do Brasil,

1650-1720. São Paulo: EDUSP/FAPESP, 2002. Ao analisar o processo de colonização dos sertões da Bahia e

de Pernambuco (mais precisamente o de “dentro” e o de “fora”), o autor indica que a partir do governo-geral de

Afonso Furtado de Castro do Rio Mendonça (1671-75), este passou a incentivar e coordenar o movimento de

“ocidentalização” da colônia. O “Regimento de Roque da Costa Barreto em 1677” é a prova desse interesse em

animar os colonos na interiorização. “O objetivo era manter povoado o interior da América, expandir a

ocupação da empresa colonial e, ao mesmo tempo, enfrentar os problemas que esta mesma ocupação criava”.

Pp. 25-7. 68

Luís dos Santos VILHENA, A Bahia no Século XVIII. Bahia: Itapuã. Coleção Baiana. Vol. 2, 1969, p. 441.

Page 166: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

166

A criação do Arcebispado da Bahia, na segunda metade do século XVII, coincidiu

com o momento de criação de aldeias no sertão e da maior inserção das ordens religiosas na

região. Esta aparente coincidência se tratava de um projeto de ocidentalização do

povoamento: as missões religiosas, dantes preocupadas com os aldeamentos no litoral,

passaram a acompanhar os caminhos do gado e as descobertas de minas de ouro.

A expansão das freguesias para além dos limites da Cidade de Salvador iniciou-se

com o quarto arcebispo da Bahia, D. João Franco de Oliveira, que assumira o Arcebispado da

Bahia depois de um longo período de mais de 30 anos de vacâncias. Permaneceu no cargo de

1692 a 1700. Antes de seguir para o Brasil, atuou quatro anos como bispo de Angola e Congo.

Ele foi o primeiro arcebispo a passar em visita ao Rio São Francisco.69 Na ocasião, erigiu duas

freguesias: as de Nossa Senhora do Bom Sucesso e Santo Antonio de Pambu no extremo

norte da província, e em mais dez povoamentos onde havia Igrejas dedicadas a oragos,

transformou-as em vigararias.70 Informado do zeloso trabalho, o rei de Portugal enviou-lhe

uma carta elogiosa em 1695:

Pareceu-me vos devia agradecer em carta particular o cuidado, zelo, e trabalho com que

vos tendes havido na vizita do vosso arcebispado, no augmento das missões, e na

diligencia de procurar o maior bem das almas. Fica-me muito na lembrança este serviço,

que sendo feito principalmente a Deos, de quem deveis esperar a maior remuneração, eu o

tenho, e avalio por muito particular para o interesse, e conservação dos meus dominios.71

O quinto arcebispo da Bahia foi D. Sebastião Monteiro da Vide, que já havia

passado pela experiência de Vigário-Geral do Arcebispado de Lisboa72. Ele continuou o

movimento de criação de freguesias, iniciado pelo seu predecessor. Durante a sua longa

69

D. João Franco de Oliveira foi desembargador Eclesiástico e Promotor, desempenhou o cargo de deputado do

Santo Ofício em Coimbra. Foi confirmado bispo do Congo e Angola em 9 de Junho de 1687, por bula de

Inocêncio XI. Entrou na diocese em 1688. Em 1691 foi promovido a arcebispo da Baía, por Bula de Inocêncio

XII. Chegou àquela cidade em dezembro de1692. Em agosto de 1700 regressou a Portugal. Em outubro de

1701 tomou posse da diocese de Miranda. Era natural de Condeixa e faleceu em 2 de Agosto de 1715, como

19.° titular da cidade de Miranda. 70

Nossa Senhora da Mãe de Deus da Curupeba, São Gonçalo da Vila de São Francisco, Nossa Senhora do

Rosário da vila da Cachoeira, São Gonçalo dos Campos, São Domingos de Saubara, São Jose das Itapororocas,

Nossa Sra. de Nazaré do Itapicuru de Cima, Santa Luzia do Pragui, São Gonçalo do Rio Sergipe de ElRei, e

Santo Antonio e Almas de Itabaiana. Ver: Jozé Antonio CALDAS. Op. Cit., p. 26. 71

D. Sebastião Monteiro da VIDE, Noticias do Arcebispado da Bahia para suplicar a sua Magestade Em favor do

culto divino e salvação das almas. Revista do Instituto Histórico e Geographico Brazileiro. Rio de Janeiro,

1891, Parte I, p. 329. 72

D. Sebastião Monteiro da Vide nasceu em 1643, em Monforte no Alentejo. Iniciou sua vida religiosa em Évora,

na Companhia de Jesus, mas a abandonou. Resolveu dedicar-se a carreira militar que também abandonou para

estudar direito canônico, e ordenou-se sacerdote posteriormente. Em Lisboa exerceu os cargos de prior da

Igreja de Santa Marinha, desembargador da Relação Eclesiástica e arcebispo. Foi nomeado por D. Pedro II, em

1701, o quinto arcebispo da Bahia. Faleceu na cidade de Salvador da Bahia, em 1722.

Page 167: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

167

estada de 20 anos na jurisdição da Bahia (1702-22). Erigiu cinco freguesias nas regiões do

Recôncavo e no Sul: “São Pedro do Monte da Cachoeira, N. Sra. da Purificação de Serg

e do

Conde, S. Jorge dos Ilheos, S. Gonçalo na Va. De S. Franc

o, N. Sra. do Rozario na Vila da

Cachoeira”.73

Além da criação das freguesias em lugares estratégicos, D. Sebastião Monteiro da

Vide destacou-se na história eclesiástica do Brasil por ter convocado o Sínodo para a

promulgação das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Até então, as doutrinas

seguidas pelo clero na Colônia eram dadas pelo Arcebispo de Lisboa.

Em 1712, nas Notícias do Arcebispado da Bahia, o prelado escreveu a mais

importante análise circunstanciada daquele Arcebispado. As duas principais justificativas do

pleito eram: “erigirem-se novas parochias com parocos, e coadjutores; e de se porem nas que

tiverem grande distrito os coadjutores que mais forem necessários” e “acrescentar os

ordenados dos capitulares, e mais ministros da Sé e de todos os párocos e coadjutores”.74

Cândido da Costa e Silva, estudioso da história da Igreja na Bahia, usa uma

expressão precisa: “um sertão por diocese” para evidenciar as distâncias que separavam as

freguesias. O autor corrobora com a historiografia que trata da divisão do governo

eclesiástico, que propõe o seguinte modelo: na primeira fase, Litoral Norte (freguesia de

Santo Amaro de Ipitanga), Litoral Sul (São Jorge dos Ilhéus, Nossa Sra. da Assunção em

Camamu). Na segunda fase, no Sertão de Baixo, duas freguesias em terras de Sergipe: N. Sra.

da Piedade da Vila do Lagarto e Vila Nova do Rio São Francisco, e duas em terras baianas –

São José das Itapororocas e N. Sra. de Nazaré do Itapicuru de Cima. E no Itapicuru de Cima,

“solitariamente num circuito de 300 léguas, a primeira de Santo Antônio da Jacobina”75

Em 1698, um missionário anônimo, incumbido de escrever ao rei de Portugal uma

representação detalhada de como viviam os cristãos dispersos pela capitania, oferece uma

imagem pouco conhecida pela historiografia. O primeiro caminho percorrido foi pela costa,

que o levou até Sergipe. O segundo foi o “caminho do meio”. O terceiro foi para o Sertão de

Cima: tendo partido de Salvador, seguiu a estrada do recôncavo, passando por Nossa Senhora

da Cachoeira, São José das Itapororocas e mais duas capelas de N. Sra da Conceição e N. Sra.

do Desterro. Transpôs as povoações de Tocos e Pinda, com bastante moradores e notou que

73

Jozé Antonio CALDAS, Op. Cit., p. 26. 74

Idem, p. 330. 75

Cândido da Costa e SILVA, Os segadores e a Messe. O clero oitocentista na Bahia. Salvador: Edufba, 2000, p.

54; Jozé Antonio CALDAS. Noticia Geral de toda esta Capitania da Bahia desde o seu Descobrimento até o

prezente anno de 1759. Op. Cit.; e Luís dos Santos VILHENA, A Bahia no Século XVIII. Op. Cit.

Page 168: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

168

não havia nelas igreja alguma. E, depois de 20 léguas, tendo enfrentado uma trilha sem água,

chegou aos

[...] dilatadíssimos, e fertilíssimo território chamados a Jacobina nova, e a velha, ambas

muy numerozamente povoadas, e ambas tão grandes em circuito, que podem competir na

largueza com hum Reino. Em todo esse amplíssimo ambito se não acha mais que huma

única Igreja que pela necessidade dos moradores se fez curada. Aqui já entrão a ser as

faltas muito mais lastimozas: porque quem se acha morador em mais de 30, 40 e 50

Legoas de distância, quanto tem que caminhar para ouvir missa.76

Segundo as estimativas de D. Sebastião Monteiro da Vide, no início do século

XVIII, haviam 44 igrejas paroquiais em toda a Capitania da Bahia, 06 na Capital, “20 no

recôncavo, 6 na banda do sul, e 12 na banda do norte: de sorte que se as ditas freguezias se

reparticem em distritos iguaes teria cada uma quazi 20 legoas de terreno, e com efeito,

algumas há que se estendem a mais de 20 legoas, e certamente todas as de fora da cidade

excedem de 2 leguas.”77

Na sua somatória de todas as freguesias, havia 90.000 mil almas, sendo que 50.000

seriam de pessoas escravas. O arcebispo justificou que não estava exagerando nos números

porque “na cidade o serviço interior e exterior das cazas é feito por escravos, e fora d‟ella no

recôncavo e sertão, elles são os que cultivam, e tratam das canas, tabacos, mandiocas, gados, e

dos outros frutos que no Brazil se produzem.”78

Preocupado com a quantidade de escravos que se avolumava na capitania, D.

Sebastião, talvez com base no que via e ouvia, sugeriu que, de “um anno por outro da Costa

Mina, e de Angola entram mais de 2.000 escravos n‟esta cidade da Bahia, e nas embarcações

que os vão buscar a aquelas partes”. Preocupava o prelado a enorme quantidade de escravos.

Afinal, já se apontara que 55,5% da população da capitania da Bahia era formada por

cativos.79

De forma muito cuidadosa, D. Sebastião recorreu a outra carta que o rei de

Portugal enviou, em 1693, ao arcebispo D. João Franco de Oliveira, seu antecessor. O

76

Accioli, Ignácio de Cerqueira e Silva. Memórias Históricas e Políticas da Bahia. Mandadas reeditar e anotar

pelo Governo deste Estado. Annotador: Dr. Braz do Amaral. Vol V. Bahia: Imprensa Oficial do Estado, 1937,

pp.317-18. 77

D. Sebastião Monteiro da VIDE, Notícias do Acerbispado da Bahia, Op. Cit., p. 332. 78

Idem, p. 337. 79

Idem, ibidem.

Page 169: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

169

monarca recomendava atenção, em relação aos senhores de escravos, pois estes não deviam

deixar faltar “pasto espiritual” e doutrinas para torná-los cristãos:

Reverendo em Christo Padre Arcebispo da Bahia,

Ainda que da vossa pessoa fico, que poreis grande cuidado em tudo o que for de vossa

obrigação como o maior bem das almas, e o amor dos próximos, me pareceu

recommendar-vos, que mui particularmente procureis saber si aos escravos que

assistem nos engenhos, e nas mais partes em que seus senhores os costumam mandar

se lhes assiste com o pasto espiritual, e se lhes fazem aquellas doutrinas, que são

necessárias para saberem o que devem saber todos os fieis christãos para a sua

salvação: como também si os senhores os tratam com crueldade no castigo ou dando-lhes

trabalho tão excessivo, que exceda as forças da natureza humana, para que a todo façais

dar o remédio que for conveniente, e que póde ser da vossa obrigação, e assim tenham os

escravos toda aquella doutrina que se lhes deve dar (...).80

O intuito de trazer à tona esta missiva do rei, enviada quase 10 anos antes à

colônia, era responder ao que o monarca queria saber “se lhes assiste com o pasto espiritual, e

se lhes fazem aquellas doutrinas, que são necessárias”. Com intuito de denunciar o desleixo

dos senhores para com os escravos, o prelado se pauta em sua experiência: “sou obrigado a

dizer a Vossa Magestade o que tenho alcançado e sabido, assim pela vizita que fiz em todo

arcebispado, como pela experiência que tenho em dez annos que n‟elle assisto”. Ele contou

que as embarcações chegadas ao porto da Bahia com 200, 300, 400 e mais escravos, traziam

os negros nas piores situações de doenças e debilitações:

infermos, magros e famintos da dilatada navegação, ou de alguns axaques que lhes

sobrevem no mar, como bexigas, sarampos, etc, certamente morrem para o inferno,

porque são mui poucas as pessoas a quem os escravos vem, havendo-os de vender, que em

quanto os têm em seu poder os mandam ensinar e instruir na fé, inda que a venda se dilate

por muitos mezes.81

Aqueles que os compram tratam logo de servir-se deles sem os instruir na fé, “e

descuidam-se tanto de lhes ensinar a doutrina christan, que poucos são os que tem a fortuna de

serem baptizados dentro de um anno”. O arcebispo observou que a maioria andava em

discordância da Lei que dava o prazo de um semestre para instrução e batismo do cativo: “[...]

mandamos que qualquer pessoa de qualquer estado, e condição que seja, que escravo de

80

Idem, p. 338. [grifos nossos]. 81

Idem, p. 339.

Page 170: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

170

Guiné tiver, os faça baptizer, e fazer christãos do dia a que seu poder vierem até seis mezes,

sob pena de os perder para quem os mandar”.82

Ao que parece essa lei tornou-se letra morta para os vendedores e compradores de

escravos, pois D. Sebastião proclamou que em toda a freguesia se achava grande número de

cativos por batizar, com mais de quatro anos sem estarem capazes de serem batizados por

falta de instrução suficiente. Inclusive, sabia ele que “continuamente se baptizavam filhas de

pretas infieis, as quaes geraram muito depois de estarem n‟esta terra.”83

Diante das denúncias de negligência acusando os vendedores e os compradores de

não doutrinarem os escravos para batizá-los, muitas vezes, ocorria de os proprietários

provisórios ou os senhores deles, os batizarem sem instrução: “são tambem necessitadissimos

os já baptizados da doutrina, porque se lhe não faz a que é necessária, e que todo o christão é

obrigado a saber para se salvar”. O arcebispo viu, nas visitas que fez em Salvador e

recôncavo, as “igrejas mui pouco freqüentadas dos escravos nos domingos e dias santos,

porque ordinariamente não vão a missa. As confissões não as fazem, sinão de anno a anno

pela obrigação da quaresma”.84

Tendo exposto os problemas da negligência da doutrinação dos escravos, o autor

das Noticias, sugere, a nosso ver, dois meios para solucioná-los: primeiro, erigir as vigararias,

já que, conforme o Concílio de Trento, os bispos tinham poderes para tanto. Deveriam ser

erigidas as “novas vigararias que parecessem mais úteis e convenientes, considerando todas as

circunstancias que em similhantes creações e desanexações de freguezes se costumam

ponderar.”85 Mas para a criação delas era preciso enfrentar outros obstáculos: a distância dos

lugares e a dificuldade dos caminhos. Escandalizado com a escassez de padres e as distâncias

entre as paróquias na Bahia, o arcebispo evocou a resolução do Concílio Provincial ocorrido

em Lima, em 1583, durante o qual se determinou o número de almas que se podia

encomendar a um pároco: “não podia cometer um paroco mais de 400 almas (...) e que nos

lugares que comprehendessem 300 ou 200 parochianos se devia pôr vigário.”86

Para efetuar uma comparação, informou que na cidade do Porto, havia 341 igrejas

com uma média de 513 almas para cada paróquia, que distavam poucas léguas umas das

outras. No entanto, na Bahia, “ha parocos, que têm duas e trez mil almas, os quaes por causa

82

Idem, ibidem. 83

Idem, ibidem. 84

Idem, p. 340. 85

Idem, p. 331. 86

Idem, p. 345.

Page 171: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

171

da distância e dificuldades de que se originam os incômodos apenas poderiam curar duzentas

almas”.87

O segundo meio para atenuar a falta de instrução religiosa era voltado para a

catequese dos escravos: “[...] se deve procurar meio com que hajam pessoas que aprendam as

línguas dos oriundos d‟aquellas partes, para que, ordenando-se, hajam ministros que pela

língua mais facilmente os instruam na santa fé católica, e se livrem por este meio muitas

almas do inferno”.88

A solução pensada pelo arcebispo para a catequese dos africanos

consistia na instrução e ordenação de pessoas, que aprendessem as línguas dos negros para

assim doutriná-los. As gramáticas de Pedro Dias e Antônio da Costa Peixoto são depositárias

das demandas do arcebispado baiano.

Um fato ocorrido na freguesia de Maragogipe, no recôncavo baiano, pode ilustrar

a preocupação que tiveram os clérigos para controlar a quantidade de pessoas, as distâncias, e

a pouca doutrinação. Catarina Pereira era casada com Antonio Ribeiro, separaram-se e

viveram muitos anos “sem trato nem comunicação”. Ele ficou morando em Capanema e ela

em outro lugar da freguesia. Catarina casou-se novamente com outro homem na dita

freguesia, mas no dia do casamento não havia nenhum conhecido pra denunciá-la. A mesma

ficou morando alguns anos com o segundo marido. Em 1708 denunciaram-na e ela foi

remetida ao Santo Oficio. Um ano depois saiu no auto de fé que se celebrou em Lisboa.

A experiência anterior de D. Sebastião Monteiro da Vide, como vigário-geral do

Arcebispado da pequena cidade de Lisboa, quando comparada com o dilatado arcebispado

baiano com mais de 600 léguas, deixou o prelado preocupado. Ele concluiu a narração do

episódio com a seguinte interrogação: “E si em distância de duas léguas se experimentam os

incommodos propostos (...), quaes serão os que rezultarão da distância de trez, quatro, cinco,

seis, sete, oito, nove, dez, vinte, trinta, e mais leguas, pois de todas estas distancias há

freguesias n‟este Brazil?”89

D. Sebastião estava convencido de que era impossível oferecer pasto espiritual em

tão dilatado campo, ainda mais quando se pensava nas escalas geográficas do Reino, que eram

bem menores. Era preciso criar mais freguesias.

A paulatina criação de freguesias entre o fim do XVII e início do XVIII, foi

resultante das concentrações demográficas em áreas economicamente prósperas, como as

87

Idem, p. 344. 88

Idem, ibidem. 89

Idem, p. 336.

Page 172: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

172

áreas mineradoras, e das desarticulações das missões religiosas permanentes nas aldeias, que

atendia aos nativos. As novas paróquias deveriam atender aos colonos e suas escravarias. A

exploração econômica do Sertão de Cima, no início do século XVIII, registrou avanços na

interiorização, após as descobertas do ouro. A redefinição da política missionária pela Igreja

acompanhou o impulso das minas de ouro e os caminhos dos currais de gado. 90 A multidão

que afluía mudava a imagem do sertão, dantes habitado apenas por índios selvagens.

3.4. A redefinição missionária seguindo o brilho do ouro

As minas da Bahia eram conhecidas desde o primeiro século de colonização e o rei

era sabedor disso. A entrada de Belchior Dias Moréia no sertão da Bahia no século XVI,

expôs ao mundo Atlântico as possibilidades de riquezas, que a despeito dos perigos, poderiam

ser conquistadas nas brenhas inóspitas da província. Conhecido como Moribeca, este

sertanista depois de percorrer desde o rio São Francisco seguiu por Sergipe d‟El Rei,

Jacobina, Paraguaçu e Paramirim, até as minas do Rio de Contas, onde disse ter descoberto as

sonhadas jazidas auríferas e as minas de prata, após uma longa viagem que iniciou em 1595 e

durou oito anos.91 Em seguida, viajou para Portugal a fim de anunciar o seu achado e requerer

seus títulos e mercês. Tendo recebido várias recusas da Coroa, retornou ao Brasil quatro anos

depois, sem indicar os caminhos das supostas minas. Em decorrência disso, foi preso por

ordens do rei, teve fiança paga pela família e faleceu sem revelar o suposto caminho

encontrado, deixando as imaginações instigadas.

Um século depois da viagem de Moribeca, em 1696, Pedro Barbosa Leal, vereador

e sertanista, foi incumbido por D. João de Lencastre de realizar o reconhecimento de tais

minas. O objetivo era, ao mesmo tempo confirmar o já conhecido e, principalmente, retificar a

iniciativa da descoberta de Belchior Dias Moréia. A existência das minas foi oficialmente

90

Na primeira fase das missões, os índios eram aldeados no litoral, mas a alta mortandade provocada pelas

epidemias fez com que a missionação fosse realizada no sertão nos aldeamentos indígenas, que se iniciou na

metade do século XVII. As entradas missionárias no século XVII, nos sertões da Bahia e Pernambuco

caminharam paralelamente à penetração colonial, havendo, portanto uma “interdependência” entre os dois

projetos: conversão e colonização. Após a expulsão dos jesuítas em 1759, o marquês de Pombal ordenou que os

aldeamentos fossem transformados em vilas e freguesias. Cristina POMPA, Op. Cit., p. 296. 91

Moreia, que tomou parte na expedição de 1590 para pacificar os índios do Sergipe, teria sido o primeiro a

explorar o interior nordeste da Capitania da Bahia. A procura de riquezas minerais levou-o a subir o rio

Itapicuru, buscando o sertão de Massacará, passando pela serra de Bendatayú (serra da Prata), daí à serra do

Puarassia, em meio à caatinga do Tucano, continuando pelas serras de Teiuba e da Jacobina, até chegar à Pedra

Furtada, e ao rio do Salitre, caminhando sempre até, finalmente, encontrar o sítio do Periperi. Tal expedição,

como tantas outras, não trazia consigo a real ocupação dos caminhos. J. Capistrano de ABREU. Capítulos de

história colonial (1500-1800) : & Os caminhos antigos e o povoamento do Brasil. Brasília : Editôra

Universidade de Brasília, 1963, p.260.

Page 173: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

173

reconhecida pela Coroa em 1701. Porém, sob pretexto de protegê-las da cobiça estrangeira, de

evitar prejuízos à lavoura, do receio de despovoamento e do medo de ficar a costa litorânea

desprotegida, por quase duas décadas uma serie de proibições postergaram a exploração delas.

O rei queria ter domínio e segurança do território, garantindo, assim, os ganhos com tributos.

Em 1709, D. João V enviou carta ao governador D. Rodrigo Costa (1702-1708), elencando

tais perigos:

“(...) me pareceo dizer-vos, que, segundo as conjecturas do tempo, em que as nações

estrangeiras, se achão com tanta inveja e ambição das riquezas que se vão descobrindo

nas nossas conquistas, não convem que por ora se trate destas minas, que ficão na

jurisdição da cidade, principalmente sendo estas em partes que poderão ser invadidas e

occuparem as terras em que estao situadas, e de mais que se deve pezar o damno, que se

vai experimentando, em se despovoarem os lugares das gentes que os possa defender,

e, em conseqüência de faltarem os gêneros, por causa de não haver quem cultive os

campos, deixando-se de accudir a fabrica do tabaco, e assucar, para irem buscar os seus

interesses em tão grandes longitudes, e em meios falliveis, como são muitas vezes os

descobrimentos das minas.”92

[grifos nossos]

Esta, entre outras proibições93 de exploração das minas baianas pela Coroa, durante

as duas primeiras décadas do século XVIII, era resultado de uma preocupação maior:

controlar melhor a corrida de ouro para as Minas Gerais (ambas foram descobertas em datas

muito próximas). Pois as da província da Bahia distavam setenta léguas do litoral, impossíveis

de serem invadidas, como atestou Miguel Pereira, o engenheiro português, que veio

diretamente de Angola para averiguar as minas e o perigo de uma invasão estrangeira.94

A proibição da abertura de estradas para o sertão tinha o intento de coibir o

contrabando do ouro e dificultar o acesso de comunicação a outros caminhos; e, impedir

fissuras no meio do governo, ou seja, evitar a formação de poderes paralelos em território

indômito, como ocorreu nas Minas Gerais com Manoel Nunes Vianna, que fugiu de Vila Rica

e foi morar no Alto São Francisco em 1709, e atemorizava o governo acompanhado de uma

milícia de negros mandingueiros.

Assim, há vários indícios de que mesmo proibidas as minas baianas eram

exploradas. Em 1717, o marquês de Angeja solicitou novamente ao rei, que ao invés de

92

Cf. Ignácio de Cerqueira e Silva ACCIOLI, Memórias Históricas e Políticas da Bahia. Annotador: Dr. Braz

do Amaral. Vol VI. Bahia: Imprensa Oficial do Estado, 1940. Nota 10. 93

Albertina VASCONCELOS, Ouro: Conquistas, Tensões, Poder: Mineração e Escravidão (Bahia do Século

XVIII). Dissertação de Mestrado em História. Campinas: UNICAMP, 1997. A autora elencou todas as

proibições: 1701, 1703, 1706 e 1710 e 1714. A justificativa de todas estas proibições assentava-se no medo da

cobiça estrangeira. 94

Ignácio de Cerqueira e Silva ACCIOLI, Op. Cit., pp. 20-35.

Page 174: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

174

proibições para exploração das minas, que liberasse as mesmas e criasse a vila de Jacobina no

sertão:

(...) sou informado que a terra de Jacobina que dista dessa cidade setenta léguas pelo

sertão dentro é povoada há muitos anos de moradores com muitos currais de éguas e

gados, a qual podera ser de circuito e recôncavo sessenta léguas em que há algumas

aldeias de gentios que missionam os frades franciscanos e uma vigairaria que

compreende todo o rio de São Francisco e se compõe de mil e quinhentos fogos e

que já havera alguns anos que se abriram na dita parte minas de bom ouro, e se vão

continuando, tendo acudido a elas de São Paulo bastante gente e é notório haver ali

bom cristal branco (...) Me pareceu ordenar-vos informeis com vosso parecer neste

particular e se poderá constituir duas ou mais vilas na terra da Jacobina, reduzindo

os seus moradores a terem forma civil e política por onde se hajam de governar e

tenham quem lhe administre justiça, para que se evitem as diferenças que há entre

uns e outros em grande prejuízo do bem publico, para que, conforme a vossa noticia

se pode tomar em negocio.95

Na concepção dos estudiosos da economia baiana, Jacobina não era uma pequena

vila isolada no sertão. Situada num dos caminhos mais importantes na rota do gado, tornou-se

um ponto de convergência do Piauí e do São Francisco e de difusão das estradas que

atravessavam o sertão. Entre 1710 e 1721 foram registrados na dita vila 530 mortes com

armas de fogo. O clima de violência, tão comum nas áreas de mineração, preocupou as

autoridades. Mas não devemos crer que os crimes ocorriam apenas entre a parcela pobre de

mineradores. Os bandeirantes imiscuídos nos negócios da garimpagem eram autores do

mando de muitos homicídios. Um exemplo desses nas minas baianas foi o dos irmãos Prado.

Vilhena registra-o em uma de suas cartas e o associa ao desmando do poder público. Dizendo

que a falta de justiça no sertão levou o Conde de Sabugosa mandar degolar “facínoras” como

os irmãos Prado. Depois desse caso, segundo ele, fez-se necessária impor uma forma regular

de justiça, constante e uniforme.96

Somente em 1720, o novo governador e vice-rei, Vasco César Fernandes de

Menezes, autorizou a exploração das minas de Jacobina. “Foi no seu governo que a conquista

do sertão, a luta contra os indígenas e as descobertas e exploração das minas ganharam

impulso.”97 A ordem de liberação da exploração das minas de Jacobina, veio acompanhada de

mais duas outras deliberações: a de criação da primeira vila do sertão, e a instalação de uma

nova comarca, separada de Salvador nessa região. Isso se constituiu num momento importante

no processo de conquista do interior da província e de instalação dos aparelhos de poder.

95

Carta do Rei ao Marques de Angeja em 1717. In: A Bahia no Século XVIII. Vol.III. Notas e comentários de

Braz do Amaral. Apresentação de Edison Carneiro. Salvador: Itapuã, 1969, p. 578.

96

Luis dos Santos VILHENA, Op. Cit., p.578. 97

Albertina VASCONCELOS, Op. Cit., p. 59.

Page 175: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

175

Na cerimônia de implantação da vila de Santo Antônio da Jacobina, em 1720,

foram reunidos alguns moradores no núcleo principal do sítio do Senhor Bom Jesus, além dos

índios aldeados pelos franciscanos e uma igreja onde o povo podia assistir missa. A escolha se

dera também porque:

(...) era freqüentado de gente, com uma estrada comum para o Rio de São Francisco

arraial e Minas Gerais, e com efeito fez e criou vila no dito sítio com o nome de Santo

Antonio da jacobina e ordenou que nela se fizessem ou comprassem casas para

audiência e Câmara e que se fizesse cadeia para nela se recolherem os delinqüentes e

criminosos e que os oficiais de justiça residissem nela continuamente, e que todos os

moradores a tivessem e reconhecessem por vila de hoje em diante e fosse lugar e foro

público para se tratarem as cousas e litígios e que os moradores assim o tivessem

entendido.

A criação desta vila era o impulso que faltava para o domínio do vasto território da

capitania e de sua população. A liberação das minas conjugada à elevação do sítio à categoria

de vila, trazia no bojo os símbolos da “violência real e simbólica” que seriam incorporados ao

cotidiano do povoado. A nova ordenação administrativa e jurídica, instituía vila, câmara,

cadeia, pelourinho e forca. A nova vila correspondia ao interesse de uma maior organização

tanto judicial como administrativa e religiosa. Instalava-se ao mesmo tempo, o poder temporal

e espiritual como disciplinadores para o estabelecimento da ordem e arrecadação do lucro das

minas. O coronel Pedro Barbosa Leal, comissionado pelo Conde de Sabugosa, ao instalar a

Vila de Jacobina, em 1720, convocou os “moradores deste dito sitio”, para assistir o ato

solene, onde justificava a necessidade da Vila:

(...) assim os moradores e mineiros vivessem com maiores obrigações de vassalos,

como também de católicos, por ser informado que a uma e outra cousa faltavam, por

viverem muitos dêles em logares remotos, faltos da administração dos sacramentos

como também da administração da justiça, daí a razão de viverem absolutos e

destemidos, cometendo grandes obstinações e delitos (...)98

Até 1720, além da comarca da província da Bahia, havia apenas mais quatro, a de

Ilhéus, Porto Seguro, Espírito Santo, e Sergipe. Depois foi criada a de Jacobina, no centro do

Sertão com uma vasta extensão.99 Apesar da ampla abrangência, não se limitava com outras

98

CARTA RÉGIA (cópia) do rei D. Pedro II ao governador geral do estado do Brasil, D. João de Lencastre,

ordenando que não haja comunicação pelos sertões com as minas de São Paulo, nem das ditas minas se possa

buscar gado ou outros mantimentos à Bahia. Catálogo de Documentos Avulsos referentes à Capitania da

Bahia: existentes no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa. (1606-1825). Projeto Resgate. 1729, Doc.

313. 99

“Era esta terra conhecida com a designação de comarca da Bahia da parte do Sul, designação imprópria, pois

ela se estendia propriamente a Oeste.” Luis dos Santos VILHENA, Op. Cit., , p.578.

Page 176: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

176

regiões mineradoras nem com vias de acesso a portos. Segundo Albertina Vasconcelos, que

analisou minuciosamente essa região, “não bastaria o controle sobre Jacobina, se não se

controlassem os caminhos que a conduziam e dela partissem, principalmente as estradas para

o Piauí, Minas, Goiás e para todo o Sertão e Recôncavo”. A autora desvenda assim, a forma

como foram pensados os limites que favoreciam a incomunicabilidade com outros vizinhos:

“só assim entendemos que abrangesse os povoados ao longo do São Francisco até Sergipe, de

Rio de Contas até o Rio das Velhas, pelo norte de Minas, e Ilhéus, pelo sul da Bahia.”100 A

figura 6 permite-nos visualizar a abrangência.

Fig. 6. Mapa baseado nas descrições dos limites da Comarca de Jacobina.

Fonte: Evolução territorial e administrativa do Estado Bahia: um breve histórico.

Salvador: SEI, 2001.

Em 1725, o ouvidor-geral da Comarca da Bahia enfatizou a necessidade de criação

de uma nova comarca, por causa das distâncias que dificultavam a ação da justiça e

assistência ao povo de Jacobina, pois este precisava recorrer à vila de Nossa senhora do

Rosário da Cachoeira para resolver seus pleitos e demandas. Na verdade, a comunicação que

era realizada entre Cachoeira e Jacobina até 1720, preocupava a administração a ponto de

100

Albertina VASCONCELOS, Op. Cit., p. 69.

Page 177: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

177

interditá-la, devido aos descaminhos do ouro operados naquela rota, que de lá seguiam para

Salvador.101

Mas a criação da vila de Jacobina não se refere ao início da atuação dos

missionários no sertão. Assim como o descimento dos indígenas tinha justificativa na

cristianização dentro das aldeias, as “cidadelas de Deus”, o tráfico de escravos, trazidos da

África também foi legitimado pela evangelização dos pagãos/pecadores. Acreditava-se que

nos enclaves ultramarinos os negros seriam expurgados do paganismo e do pecado de ter

nascido na África. O cativeiro era legitimado pela catequese. O monopólio régio português e

os lucros obtidos no comércio ultramarino eram justificados pela evangelização dos pagãos.

Os jesuítas tinham privilégios junto à Coroa para entrar no sertão, descer os índios

e conduzi-los ao litoral. As primeiras entradas de religiosos no sertão baiano foram realizadas

pelos inacianos. Eles saíram em expedição entre 1574 e 1575, com o fito de descobrir ouro,

acompanhados de 150 portugueses e 500 “soldados”, isto é, índios guerreiros. Alcançaram a

atual região da Chapada Diamantina e frustraram-se por não terem encontrado as fabulosas

serras de esmeralda. Em seus relatos os padres contaram que ainda conseguiram batizar “500

almas inocentes”.102

Articulava-se cristianização e conquista territorial de novas áreas. O descimento

dos grupos indígenas para as aldeias surgiu da necessidade de “amansar”, ou seja, “civilizar”

os pagãos; manter contingente de mão-de-obra para trabalho forçado na proximidade das vilas

e portos; e afastá-los dos seus povos, para facilitar a catequese, e por conseguinte, a

cristianização; e usá-los com defesa contra os estrangeiros, os índios aimorés que atacavam os

brancos, e os negros da Guiné, que tentavam fugir para o sertão. Por outro lado, os

missionários e colonos se enfrentavam, pois queriam aprisionar os indígenas para escravizá-

los.

A monarquia foi pressionada pelos jesuítas e colonos acerca da escravidão dos

indígenas. Assim, foram promulgadas leis, que proibiam ou restringiam a escravidão dos

nativos. A justificativa dos jesuítas para os aldeamentos, com o passar dos tempos, foi motivo

101

A vastidão da região, distante da capital, dificultava a vigilância dos senhores e da administração colonial

sobre os africanos, que permitiu, por exemplo, o surgimento de quilombos já no final do século XVII. Numa

carta patente transcrita do Livro de Cartas dos anos de 1678 a 1688, consta que “MANOEL BOTELHO DE

OLIVEIRA venceu os mocambos de Papagayo, Rio do Peixe e Gamelleira em Jacobina. Obteve o cargo de

Capm-mor desses districtos por ter emprestado 22.000 cruzados de sua fazenda para a creação da Casa da

Moeda.” Annaes do Archivo Publico, Anno IV, vol. VI e VII, Bahia: Imprensa Official do Estado, 1920, p.

203. (grifos nossos). 102

Cristina POMPA. Religião como Tradução: missionários, Tupi e Tapuia no Brasil Colonial. Bauru, SP:

EDUSC, 2003, p. 316.

Page 178: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

178

de debate. Os índios levados do sertão para o litoral morriam de epidemias ou fugiam para

não serem escravizados.

Como resultado dessa expansão voltada para o interior, as descrições das aldeias

do sertão da Bahia do século XVIII já mostravam a extensa Comarca de Jacobina dividida

entre vários missionários. Os franciscanos, que adentraram no sertão em 1657, ficaram com as

aldeias de Massacará, Bom Jesus da Jacobina, Nossa Senhora das Neves de Sahy, Juazeiro,

Santo Antonio do Curral dos Bois. Os capuchinhos italianos com as de Rodelas; e os

sacerdotes seculares do Hábito de São Pedro103

ficaram com a aldeia do Salitre.104

A partir de 1679, as aldeias dos índios “tapuia”105

começaram a aparecer nos

catálogos dos jesuítas. A aldeia de São Francisco Xavier de Jacobina foi a primeira do sertão,

administrada pelos padres Jacob Roland e João de Barros106

. A carta enviada por este último

ao Pe. Antão Gonçalves, defendia a importância das missões nas aldeias do sertão, afirmando

que os índios seriam verdadeiramente apostólicos, e que apenas faltam “sojeitos que se

sacrifiquem a Deus”.107

A crítica era dirigida aos missionários que se dedicavam à vida

acadêmica no Colégio, em Salvador e se afastavam cada vez mais das aldeias do sertão. A

razão do afastamento era o atrito dos religiosos com a família de Garcia D‟Ávila, da casa da

Torre, que tentava escravizar os índios e proteger suas terras. Em 1669, esse poderoso

sesmeiro destruiu as residências e igrejas das aldeias de Itapicuru, Jeremoabo e dos Caimbé

que nunca foram reconstruídas, provocando a partida do Padre Jacob para a África, enquanto

João de Barros foi para Rodelas (extremo Norte da Bahia, divisa com Pernambuco).108

103

Os sacerdotes do Hábito de São Pedro eram seculares, formados no Colégio dos Jesuítas da Bahia. A alta

hierarquia restringia-se a funções burocráticas, e os demais, ao ministério dos sacramentos junto aos

moradores das povoações. 104

“Mapa geral de todas as Misoens, ou Aldeias de Gentio manso que estão situadas nesta Capitania da Bahia, e

nas mais q‟ comprehende o seo governo com os nomes delas, Vilas de q‟ são termo, freguezias a q‟

pertencem, qualidades dom Misionarios que administrão, Orago das gras

q‟nelas existem. Novas Vas

e

Oragos das Parochias a q‟se elevarão as q‟estavao na administrasam dos Jesuítas, Diocezes; Capitanias;

Comarcas a q‟pertencem; extensam das terras, no de casaes, ou Almas; e qualides

das nasoens de cada huma

delas Va. Bahia, dezembro 20 de 1758.” Jozé Antonio CALDAS. Noticia Geral de toda esta Capitania da

Bahia desde o seu Descobrimento até o prezente anno de 1759. Revista do Instituto Geographico e

Histórico da Bahia. Salvador, 1981. Ver também “Mapa curioso que contém nao vulgares notícias de

muitas aldeias de índios que por ordem régia são hoje vila”. In: Luís dos Santos VILHENA. A Bahia no

Século XVIII. Op. Cit. 105

Tapuia não era um etnônimo, tratava-se de uma denominação colonial para se referir aos índios que

habitavam o litoral, e não falavam a “língua geral”, o Tupi. Diante da dificuldade de classificar a diversidade

cultural e lingüística dos povos do sertão, foram chamados genericamente de tapuias. Idem, pp. 221-40. 106

João de Barros, enquanto esteve na aldeia de Jeru entre os Kariri fez anotações da língua desse grupo. O padre

Luís Mamiani corrigiu essas anotações, enviou para imprensa e fez publicar a Doutrina Cristaã na Lingua

Brasilica da Nação Kiriri. (1698). Idem, p. 328. 107

Idem, “Carta do P. João de Barros ao P. Comissário Antão Gonçalves, 11 de setembro de 1667”, p. 320. 108

Idem, pp. 321-323. A autora acompanhou, através das correspondências, o desfecho do conflito,

desencadeado depois que o padre Jacob Roland solicitou três léguas de terra para os índios. Ele foi embora

Page 179: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

179

O problema central das missões no sertão da Bahia era o da posse das terras e o

apresamento dos indígenas para servidão. Em 1696, aconteceu outro conflito desgastante,

com a Casa da Torre, desta feita, protagonizado pela viúva de Francisco Dias D‟Avila e sua

nora. Elas expulsaram os jesuítas de suas missões no rio São Francisco, por estes terem lhes

negado o sacramento da Comunhão. Cristina Pompa conta que a Coroa mandou fazer uma

devassa e decidiu que as aldeias fossem devolvidas aos padres pioneiros, porém, estes não

retornaram mais para tais missões, que foram entregues aos capuchinhos franceses109

e

carmelitas. A saída dos jesuítas da região de Jacobina deu lugar aos franciscanos, que não

tinham um projeto missionário “autônomo”, como os inacianos, que além da catequese,

entraram na defesa da liberdade dos índios. Os franciscanos adaptaram-se mais às exigências

do poder colonial.110

Na visão de Hoornaert, os franciscanos acompanharam o movimento de expansão

do catolicismo associado ao da lógica da colonização. Seguindo os passos da conquista do

litoral nordestino benziam os engenhos, acompanhavam as bandeiras que caçavam os índios e

estimulavam as guerras contra estes. Segundo o autor, a catequese entre os índios era apenas

uma fase de suas carreiras – os franciscanos viviam no máximo três anos entre os indígenas,

conforme seus regulamentos – pois estavam preocupados com os moradores dos núcleos mais

urbanizados do sertão.111

À medida que a população nativa começou a desaparecer dos aldeamentos do

litoral e se agravaram os problemas entre colonos e missionários no sertão, o comércio

negreiro pareceu como solução para atender ao engendramento da sociedade colonial.

Diferentemente da ação missionária dos jesuítas, franciscanos, capuchinhos e

outras ordens menores, que pensaram em estratégias mais elaboradas para catequizar os

indígenas do Brasil, os africanos que chegaram para substituir a mão-de-obra local, não

receberam essa atenção dos clérigos. A doutrinação dos escravos, como sabido, era dever dos

padres, mas principalmente do proprietário.

do Brasil em 1684 para São Tomé, depois que o Reitor do Colégio da Bahia, padre Antonio Forte, resolveu

fazer uma conciliação com a Casa da Torre, e se posicionar contra os padres que missionavam no sertão. 109

A missão dos capuchinhos no Brasil ocorreu sob o comando da “Propaganda Fide”. O primeiro grupo chegou

por acaso, em 1642, em Pernambuco, pois foram interceptados pelos holandeses quando viajavam para São

Tomé. 110

Eduardo HOORNAERT. História da Igreja no Brasil. Tomo 2. Petrópolis: Vozes, 2ª. Edição, 1979, p. 54;

Cristina POMPA, Op. Cit., p.330-3. 111

E. HOORNAERT. História da Igreja no Brasil. Op. cit., p.55. A referida obra situa-se dentre uma

historiografia que faz um discurso apologético à Companhia de Jesus.

Page 180: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

180

4. MANDINGUEIROS NO BRASIL

4.1. Identidades construídas nos circuitos atlânticos

O debate sobre as tradições religiosas africanas no Novo Mundo precisa ser

evocado para análise de duas idéias: a suposta herança mandinga no Brasil e a criação de

etnicidades coloniais, que nem sempre se relacionam com os grupos étnicos da África.

O antropólogo norte-americano Melville Herskovits foi o primeiro a sugerir o

estudo das tradições africanas no Novo Mundo e depois comparar com os costumes na África.

O objetivo era reconstituir a história dos negros e encontrar o passado africano nas Américas,

através de similaridades encontradas entre negros dos dois lados do Oceano. Para além dos

interesses acadêmicos, esse debate foi de enorme importância política nos Estados Unidos. A

metodologia sugerida por Herskovits tem encontrado seguidores tanto lá, quanto no Brasil.

Artur Ramos e Roger Bastide foram os mais proeminentes esforços de classificar os povos e

as religiões africanas no Brasil.1

A crítica maior aos estudos culturalistas é que pressupõem que os grupos étnicos

se definem em função dos traços culturais que são transferidos juntamente com os africanos e

reaparecem nas Américas, sob a forma de “sobrevivências” ou “resistências” africanas.

Portanto, o problema reside no conceito de cultura utilizado. Uns autores acreditam que, por

meio das fontes do objeto de estudo é possível conceituar a cultura como um conjunto de

traços originais que se regeneraram e se mantiveram no Novo Mundo; outros pensam que

estas interpretações não levam em consideração a dinâmica e as transformações operadas na

vida dos escravos pela violência da captura, travessia e adaptação no cativeiro, onde podiam

criar novas formas culturais ou tomando-as de empréstimo de outros grupos.

Sidney Mintz e R. Price, ao publicar em 1976, O Nascimento da cultura afro-

americana, propuseram a superação dos modelos interpretativos das culturas escravas nas

Américas.2 Se, por um lado, aqueles que pensavam a história dos africanos como uma

catástrofe que teria despojado os negros de suas raízes sofreram pesadas críticas, a tese da

1 A. RAMOS. Introdução à antropologia brasileira. Rio de Janeiro, Ed. Casa do Estudante do Brasil, 1961, 2

vols, p. 251-153. R. BASTIDE. As religiões africanas no Brasil. Contribuição a uma sociologia das

interpenetrações de civilizações, 3ª ed., São Paulo, Pioneira, 1989. 2 Sidney MINTZ e Richard PRICE, O nascimento da cultura Afro-Americana. Uma perspectiva antropológica,

Edição revista de 1992. Rio de Janeiro: Pallas-Universidade Cândido Mendes, 2003, p. 7.

Page 181: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

181

sobrevivência também foi criticada. O principal argumento era: ambas posições encobriam o

impacto da escravidão na formação da cultura afro-americana.

Nos primeiros tempos, a opressão do cativeiro, dificultou que alguns tipos de

instituições fossem desenvolvidos pelos africanos. Mas os escravos estabeleceram laços de

solidariedade ainda na viagem. Nas fazendas, cidades, campos, a resistência escrava aos

ditames senhoriais abriram espaço para a elaboração de uma cultura afro-americana

relativamente autônoma.

A heterogeneidade cultural na África e no Novo Mundo, forçou os escravos a

reinventarem suas tradições no Novo Mundo, imprimindo às primeiras culturas afro-

americanas grande dinamismo. As instituições culturais criadas pelos escravos eram separadas

das instituições senhoriais, pois foram constituídas nos embates contra seus proprietários.

Os escravos estavam abertos à novidade das novas culturas, mas sempre

informados pelas orientações cognitivas mais profundas trazidas da África. As culturas

africanas das regiões que abasteceram o tráfico negreiro transatlântico foram marcadas por

grande heterogeneidade. Ainda segundo Mintz e Price, a existência de uma herança cultural

comum aos africanos, não poderia ser automaticamente associada a manifestações culturais

específicas, visto que estas estariam sempre diretamente ligadas às formas institucionais que

as articulavam em solo africanos. Os autores sugerem que seja observada em um outro nível,

o dos “princípios gramaticais inconscientes” e das “orientações cognitivas”.3

Um dos argumentos centrais na obra de John Thornton, publicada depois da obra

de Mintz e Price é o questionamento da heterogeneidade cultural dos africanos na África e do

impacto negativo da escravidão. O autor mostra, com base em densa pesquisa em documentos

coetâneos, que a transmissão dos valores africanos na América foi possível porque ainda em

terra natal, já tinham contato com culturas estrangeiras, e mesmo na sociedade escravista

tinham liberdade suficiente para interação social. O autor sugere que os historiadores

compreendam a história das sociedades africanas e suas interações com o mundo atlântico,

“em especial de como os antecedentes africanos dos escravos nas Américas afetaram sua

reação ao novo ambiente”.4 No fundo, o autor propõe compreender a dinâmica do mundo

atlântico.

Marisa Soares descarta a análise das culturas africanas a partir da reconstituição de

uma “cultura original”, para buscar a identificação de “grupos de procedência”. A autora

3 Idem, pp. 27-31.

4 John THORNTON. A África e os africanos na formação do mundo Atlântico. Rio de Janeiro, Elsevier

Campus, 2004, p. 50.

Page 182: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

182

reforça que esses grupos se constituíram na relação entre o escravo e a sociedade escravista,

na qual estava inserido. Tomando como exemplo os casamentos entre escravos no Rio de

Janeiro, a autora mostra que a tendência do casamento entre cativos do mesmo grupo de

procedência supõe não apenas interesses dos senhores. A estatística pode indicar que as

escolhas matrimoniais partiam também da própria escravaria.5

A pesquisa de Luiz Nicolau Parés sobre a presença jeje na origem da

institucionalização do Candomblé na Bahia busca encontrar as continuidades das identidades

étnicas dos africanos no Brasil, em torno da organização do culto. Nesse sentido, ele se insere

na discussão entre “afrocêntricos” e “crioulistas”, que observam em que medida as tradições

africanas sobreviveram. Imbuído de ferramentas da história e antropologia, o autor considera

as especificidades do processo histórico e do contexto sócio-cultural do Brasil. Com isso,

mostra que o modelo conventual e eclesial do candomblé não é uma “criação local” como se

pensava, mas uma tradição dos povos jejes da área gbé falante.

O autor descarta o conceito de “grupos de procedência” de Soares porque se

restringe à consciência de uma procedência geográfica comum, ou seja, há um

privilegiamento da origem do escravo na análise.6 O autor opta pelo uso do conceito da

“teoria da etnicidade relacional” como o resultado de um processo dialógico e de contraste

cultural ocorrido entre os diversos grupos englobados sob as várias denominações

metaétnicas, dadas pelos senhores. O termo “identidade metaétnica”, cunhado por Jesus

Guanche Pérez, diz respeito às “denominações externas usadas para indicar conjunto de

grupos étnicos relativamente vizinhos, com uma comunidade de traços lingüísticos e culturais,

com certa estabilidade territorial, embarcados no mesmo porto”.7 Em suma, Nicolau Parés

propõe esse conceito para entender que ele serve apenas para as novas identidades coletivas

que são geradas a partir da inclusão, sob uma denominação de caráter abrangente.8

As discussões sobre “nação” e etnicidades, seja no sentido de procedência

geográfica comum, ou das denominações atribuídas aos senhores (externas, atribuídas pelos

traficantes e senhores de escravos) ou internas (dadas pelos próprios escravos) não servem ao

termo mandinga no contexto colonial da América Portuguesa.

Nos séculos XVI e XVII “mandinga” no Reino e no Brasil era uma alusão aos

povos da Alta Guiné, habitantes da região do rio Gâmbia que portavam ostentosos amuletos,

5 SOARES, Mariza Carvalho. Devotos da Cor. Identidade étnica, religiosidade e escravidão. Rio de Janeiro,

século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, pp. 45-9. 6 Nicolau PARÉS. A formação do Candomblé. História e ritual da nação jeje na Bahia. Campinas, SP: Editora da

Unicamp, 2006, p. 26. 7 Idem, pp. 26-7.

8 Idem. Idibem.

Page 183: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

183

islamizados, que controlavam as redes de comércio na região. Os mandingas eram os

comerciantes de cativos e outros produtos. Portanto, dificilmente, foram vendidos como

escravos. No século XVIII, reforço o meu argumento de que “mandinga” no Brasil e no Reino

era mais uma alusão aos poderes mágico-religiosos dos povos mandes usuários de amuletos,

do que uma referência à identidade étnica dos africanos desembarcados no litoral brasileiro.

No século XIX perdurou esse significado.

Portanto, equivoca-se quem atribui ao Mali, a origem dos mandingas ou

mandingueiros encontrados no Brasil9, seja em fontes eclesiástica, inquisitorial e até mesmo

civil. Mandingueiro é uma terminologia colonial que foi sendo alterada.

Eduardo França Paiva, encontrou uma interessante documentação acerca de uma

milícia de “negros mandingueiros” em Minas Gerais no início do século XVIII. Pautado nas

pesquisas de Nina Rodrigues, Arthur Ramos e João Reis sobre o Islã na Bahia; e nas

descrições de Alberto da Costa Silva e J. Ki-Zerbo sobre o reino do Mali, o autor, pensou que

os mandingueiros que ele viu na documentação de Minas Gerais foram embarcados

diretamente do reino do Mali para o Brasil.10

Os mandingueiros11 de Minas Gerais tinham o corpo fechado para balas e outras

armas, portanto invencíveis, e eram capazes de adivinhar o que havia dentro das casas das

pessoas. Foram munidos de armas por Manuel Nunes Viana, português que se tornara um

déspota no sertão de Minas Gerais e desafiou os poderes políticos da Coroa na Colônia,

dizendo-se também invencível por ter tido o corpo fechado por uma tropa de negros

conhecedores de magia. O autor comete vários exageros, dentre eles, inferir que “Estaria

Viana, junto com seus aliados e escravos armados, recriando um império Mali no sertão, entre

a Bahia e Minas Gerais”. Ou “estaria intentando se tornar um soberano, um mansa malinke

em pleno sertão da América Portuguesa?”12

A documentação que o autor usa é uma carta do Conde de Assumar do início do

século XVIII, pedindo ajuda à Coroa para combater a ousadia de Manuel Nunes Viana, que

estava aterrorizando a todos, dizendo-se possuído por poderes sobrenaturais. O conde, no

9 Exceção deve ser feita aos estudos sobre o tráfico de escravos do porto de Cacheu para o Maranhão e Pará, entre

1755- 1778, conforme nos referimos no primeiro capítulo. 10

Nas palavras do autor: “Esses mandingueiros eram, na verdade, escravos de origem africana, mais

especificamente da região do antigo Império do Mali, daí malinkes, male e mandinga.” Eduardo França PAIVA.

“De corpo fechado: Gênero masculino, milícias e trânsito de culturas entre a África dos mandingas e as Minas

Gerais da América, no início do século XVIII.” In: LIBBY, Douglas Cole; FURTADO, Júnia Ferreira (Org.).

Trabalho livre, trabalho escravo: Brasil e Europa, séculos XVIII e XIX. São Paulo: Annablume, 2006,

p.118. 11

Idem. Na documentação usada por França Paiva, os negros eram chamados mandingueiros. p. 121. 12

Idem, pp. 124-5.

Page 184: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

184

fundo, temia que Viana, pudesse engrossar sua milícia de negros armados e tomar o poder.

Viana, o vassalo rebelde, em contato com os negros, não se sabe se africanos ou crioulos,

possivelmente se valeu de algum rito africano de fechamento de corpo, e propalou isso. Era

mais uma prova de interpenetração cultural entre os saberes de negros e brancos na Colônia,

do que uma “valorização da tradição oral de guerreiros mandingas”.13

Dando seqüência à indicação das discussões que servirão aqui para que eu feche

minha própria reflexão, evoco a de Cristina Pompa, que interessada em investigar a dinâmica

e as mudanças culturais, coloca o campo religioso como foco da análise antropológica

comparativa. Ela observou com argúcia de historiadora fontes quinhentistas e seiscentistas, a

sua maioria em latim. A autora mostrou a vocação universalista das missões cristãs, anotou os

discursos dos missionários, historicizou as ações e práticas ameríndias e católicas que foram

sobrepostas e incorporadas. Em seu trabalho ela evidencia a concepção cristã da alteridade; e

a missão cristã como lugar da tradução intercultural. A religião era o meio privilegiado pelo

qual se comunicavam missionários, índios e demais gentes na América Portuguesa. E esses

grupos diferentes, ao entrar em contato, se modificaram mutuamente.14

Marina de Mello e Souza tem contribuído para a compreensão das tradições afro-

católicas no Brasil. Considerando as experiências anteriores dos escravos da África Central

com o catolicismo e seus símbolos, avança para além da constatação da “perda” e da

“resistência”. Mostra a direção de processos históricos que alteraram as tradições, fazendo

surgir adaptações, ressignificações e hibridismos decorrentes da experiência colonial, na qual

cristianismo e escravidão eram partes do mesmo processo. Nesse ponto, concordando com

Thornton, a autora aposta na idéia de que muitos dos africanos oriundos da África Centro-

Ocidental chegaram à América Portuguesa marcados pela experiência de adesão ao

catolicismo dos bacongos.

Marcada pela preocupação relativa às mestiçagens culturais, investigou produtos

resultantes do encontro entre as culturas africanas e européias, presentes em formas de

manifestação do catolicismo afro-brasileiro, como a coroação de reis negros nos espaços das

irmandades, as estatuetas de Santo Antônio de nó-de-pinho e os santos com penas na cabeça,

encontrados no mocambo do Pacoval no Pará, semelhantes aos minkisi centro-africanos. 15

13

Idem, p. 124. 14

Cristina POMPA. Religião como Tradução: missionários, Tupi e Tapuia no Brasil Colonail. Bauru: SP:

EDUSC, 2003. 15

Marina de Mello e SOUZA. Reis Negros no Brasil Escravista. História da Festa de Coroação de Rei Congo.

Belo Horizonte, Editora UFMG, 2002; “Santo Antônio de nó-de-pinho e o catolicismo afro-brasileiro”, Tempo,

vol. 6, nº. 11, (2001), pp.171-188; e “Catolicismo Negro no Brasil: Santos e Minkisi, uma reflexão sobre

miscigenação cultural”, Afro-Ásia, nº. 28 (2002), pp.125-146.

Page 185: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

185

Vários são os conceitos intercambiantes entre crioulistas que pensam as

transformações e os africanistas que buscam as continuidades das tradições africanas no

Brasil. São termos diversos, que apesar de se referirem a resultantes do contato entre

diferentes culturas, possuem sentidos significativamente diversos, como aculturação,

sincretismo, tradução, diálogos de surdos, transculturação, resignificação, mestiçagem

cultural, encontros de culturas, recriação, etc. Mas os conceitos não podem ser mais

importantes do que os fatos. Buscar chaves interpretativas ajuda a esclarecer, mas o rigor

conceitual pode enfraquecer o argumento oferecido pelo objeto em análise.

Seguindo a indicação dada por Luiz Nicolau Parés, invisto aqui na idéia de que no

início do século XVIII, no sertão da Bahia, desenvolveu-se uma cultura crioula com duplo

sentido do conceito: o demográfico (crescimento da população crioula) e o cultural (processo

de transformação e hibridação da culta dos africanos).16

O argumento da tese é que africanos e crioulos no sertão da Bahia se apropriaram

do cristianismo a partir de seus princípios gramaticais profundos. O resultado foi a

manifestação de um catolicismo negro no Brasil.

Os fatos aqui apresentados em torno da prática do uso de amuletos produzidos

com elementos cristãos são fragmentos do real. Ao historiador, apesar do interesse voraz por

compreender como se davam as dinâmicas sociais, só lhe é possível lampejos do que ocorreu.

Principalmente quando se trata de populações negras que não produziram sua própria

documentação. O que sabemos a respeito da religião e crenças dos africanos e seus

descendentes no Brasil foi registrado pelas autoridades coloniais, zeladoras do cristianismo e

da boa conduta dos católicos. Portanto, para não incorrer em generalizações, apresento os

fatos, partindo do argumento (repito, e não de uma teoria) de que ocorreu no sertão da Bahia

uma miscigenação cultural entre africanos, europeus e crioulos.

Nesse sentido, o argumento é que os negros marcados pela heterogeneidade

cultural e pela crioulização demográfica e cultural da sociedade em que estavam inseridos no

contexto escravista praticavam a religião dos senhores e dos agentes da igreja. Os negros

resignificaram os objetos cristãos mágico-religiosos, à luz de suas culturas de origem,

buscando proteção do mundo sobrenatural nas bolsas de mandinga, e principalmente soluções

para os problemas deste mundo.

Não se trata de ver o escravo como acomodado ao sistema escravista, num

momento em que se consolidou uma tradição de pesquisas baseadas na História Social que

16

Nicolau PARÉS. “O Processo de crioulização no Recôncavo baiano”, Afro-Ásia, n. 33, 2005, p. 88.

Page 186: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

186

mostra o escravo como sujeito que negociava com a classe senhorial. A despeito das

interpretações pretéritas, que o mostrava passivo diante da escravidão, e constrangido

culturalmente diante do mundo dos brancos, e obediente aos mandos e desmando dos seus

donos.

Ao invés de acomodação, as novas teorias interpretativas ensinam que se deve

olhar sob o prisma da negociação. A adaptação do africano à sociedade escravista que tinha o

cristianismo como plataforma de diálogo é um dado importantíssimo. Na prática do

catolicismo, africanos e crioulos adotaram novas práticas a partir de seus códigos culturais, de

sua auto-referência.

Mas a autonomia do escravo perante suas tradições estava em grande parte restrita

pelo quadro da sociedade escravista senhorial. As irmandades, por exemplo, foram espaços

concedidos pelas autoridades coloniais aos negros para que se organizassem em torno de um

santo padroeiro e realizassem suas festas. Dessa forma, pretendia-se atender os objetivos do

projeto missionário de conversão dos africanos. As festividades realizadas pelos negros

relacionadas às irmandades eram aceitas pelas autoridades coloniais.

Com exceção das irmandades e do formato luso das festividades, as atividades

exercidas pelos negros foram freqüentemente proibidas, perseguidas e demonizadas, como os

calundus do século XVIII, sendo mais conhecidos os de Minas Gerais e Bahia.17

Muitos escravos barganharam direta ou indiretamente com seus proprietários para

conseguir maior autonomia, sem, entretanto, reivindicar a saída do regime de escravidão. Mas

havia também opções drásticas como suicidar-se18 ou tramar a morte do senhor por meios

mais sorrateiros, como o envenenamento. Não era à toa que muitos senhores temiam ser

envenenados. Fazer feitiços para adoecer o senhor e a família dele era recorrente. Também era

comum no Brasil colonial usar de práticas mágicas para conseguir uma companhia amorosa,

proteger-se de castigos do senhor, e fechar o corpo para não ser ferido por armas de fogo,

facas e flechas de índios.

Eleger algumas crenças de africanos e seus descendentes como objeto de estudo é

trabalhar com hibridismos constituídos a partir das características específicas dos processos de

sua escravização e catequização. A natureza da escravidão em Jacobina e a liberdade relativa

17

Mais tarde, no século XIX, os candomblés também foram duramente reprimidos porque vistos como ameaça ao

sistema escravista, pois serviam como lugar de esconderijo de negros fugidos e exigiam dos neófitos e iniciados

longos períodos de reclusão para cumprimento das obrigações conventuais. A maioria dos estudos acerca dessas

práticas busca encontrar os traços desses ritos na África e comparar com as instituições criadas no Brasil,

atentando para o nível de transformação e continuidade que ocorreu. 18

Jackson FERREIRA. “„Por hoje se acaba a lida‟: suicídio escravo na Bahia (1850-1888)”, Afro-Ásia, no. 31,

(2004), pp.197-234.

Page 187: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

187

dos escravos permitiam a circulação de valores e interação entre os crioulos e os brancos para

participar das atividades da Igreja Católica, criando situações de extremo interesse de estudo.

As identidades, no circuito do mundo Atlântico, podiam ser construídas em torno

de uma prática mágico-religiosa sincretizada, e não apenas em razão da procedência do grupo

de origem e das denominações metaétnicas, ou externas, atribuídas pelos senhores aos

africanos no âmbito da escravidão.

4.2. Catolicismo negro

John Thornton chama atenção para o fato de que a conversão dos africanos não

começou nas Américas, mas na África. E este é um aspecto importante que deve ser levado

em consideração ao analisar a conversão dos negros ao cristianismo no Brasil. Uma parcela

pequena de escravos que desembarcaram era cristã, mas o conhecimento do cristianismo,

mesmo por poucos, causava um grande impacto. Os catequistas eram recrutados entre os que

conheciam melhor os ritos do catolicismo: persignar, rezar o Pai Nosso, Ave-Maria, Salve

Rainha e Credo, cantar, ter hábito de ir à igreja, confessar, comungar, conhecer os santos,

respeitar os mandamentos da Igreja, os Sacramentos e, os Mandamentos da Lei de Deus.

Além de espaço de construção de diálogos entre sistemas de pensamento europeus

e africanos, o cristianismo negro no Brasil foi o lugar de fusão de tradições africanas. O culto

aos santos facilitou aos africanos de diferentes “nações” traduzir suas visões dos cosmos e

divindades pelos entes sobrenaturais cristãos. Acerca da incorporação do cristianismo por

africanos, diz Thornton, que acredita ter esse processo ocorrido por meio de uma

comunicação entre cosmologias diferentes que encontravam analogias entre si:

A conversão religiosa, como é entendida convencionalmente, não foi, portanto, um

simples processo em que os europeus forçaram os africanos a aceitar uma religião

estranha, nem a prática das formas africanas tradicionais de revelação contínua no Novo

Mundo representa algum tipo de resistência heróica religiosa e cultural. Em vez disso, foi

um ato voluntário, espontâneo por parte dos africanos, convencidos pelos mesmos tipos de

revelações que seus próprios deuses haviam lhes mostrado que o outro mundo era

habitado, na verdade, por um grupo de seres idênticos às divindades dos europeus.19

Para fortalecer sua afirmação acerca da intencionalidade dos negros em se

tornarem cristãos ou de se comunicar com seres sobrenaturais cristãos, Thornton aponta a

19

THORNTON, Op. cit., p. 354.

Page 188: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

188

presença de cultos e de capelas com imagens de santos católicos em quilombos encontrados

nas Américas.20 Édison Carneiro afirmou que no mocambo do Macaco, os negros de Palmares

“possuíam uma capela, onde os portugueses encontraram três imagens, uma do Menino Jesus,

„muito perfeita‟, outra da Nossa Senhora da Conceição, outra de São Brás. [...].”21

Assim como se pensou que os africanos aderiram ao cristianismo por

obrigatoriedade, também há os que pensam que o catolicismo era apenas um “disfarce” ou

“fachada” para que os africanos pudessem cultuar às escondidas suas divindades. Há também

os que pensaram que a forma particular de interpretação do catolicismo colonial pelos negros

marca uma especificidade do Brasil.22

Robert Slenes tem mostrado em suas pesquisas que os negros convertidos ao

cristianismo fizeram cultos voluntários aos santos às escondidas e atribuíram novos sentidos a

tais divindades. Para além da fé, foram usados como elemento agregador para deflagrar

conspirações e revoltas. Em estudo sobre os cultos de aflição do Congo “transplantados” para

o Sudeste brasileiro no século XIX, o autor observou que na vila de São Roque, próxima a

São Paulo, em 1854, um preto forro chamado José Cabinda liderava um culto popular. José

fazia parte de povos do Congo cristianizados desde o final do século XV. Ele usava estatuetas

de Santo Antônio e de minkisi (objetos mágico-religiosos, usados na África central,

compostos de vários ingredientes que captavam poderes dos espíritos). O autor localizou

também um grupo de escravos de Vassouras, vila próxima ao Rio de Janeiro, que votavam

“culto supersticioso” a Santo Antonio. Em 1848, esse grupo planejava uma conspiração que

seria deflagrada no dia de São João Batista.23

Em várias partes do Brasil, em quilombos, cidades e áreas de plantation

desenvolveu-se um catolicismo negro, resultado de apropriações particulares das práticas e

símbolos católicos. Inclusive, santos foram usados como cúmplices nas conspirações de

revoltas escravas.24

20

Idem, p. 351-2 21

CARNEIRO, Édison. O quilombo dos Palmares. São Paulo: Brasiliense, 1947. p. 42-3. 22

Gilberto FREYRE. Casa Grande & Senzala. São Paulo: Global, 2006, pp.438-43. Freyre tece a primeira crítica

aos estudos de Nina Rodrigues, pois esse acreditava que os negros eram inaptos intelectualmente para aprender

outra religião. 23

Robert SLENES. “Malungu Ngoma Vem!” África coberta e descoberta no Brasil. Revista USP, n.28, 1991-2, p.

64; “A árvore de Nsanda transplantada: cultos kongo de aflição e identidade escrava no Sudeste brasileiro

(século XIX)”. In: LIBBY, Douglas Cole; FURTADO, Júnia Ferreira (Orgs.). Trabalho livre, trabalho

escravo: Brasil e Europa, séculos XVIII e XIX. São Paulo: Annablume, 2006, pp. 298-305. 24

João Reis observou em análise sobre revoltas escravas ocorridas no Brasil entre os séculos XVIII e XIX, que

muitas delas foram deflagradas em dias festivos de santos, por dois motivos principais: a festa dava lugar para

reunião de escravos que eram possuídos por espírito de liberdade e desejo de reversão ritual do mundo que os

escravos rebeldes desejavam perpetuar no mundo real; e porque havia relaxamento do controle senhorial.

Page 189: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

189

Luiz Mott evidenciou, com base em fontes do período colonial, o culto a Santo

Antônio, praticado por brancos que faziam do santo padroeiro do Brasil o intercessor para

conseguir recuperar escravos fugidos. Por outro lado, africanos de diversas “nações”, crioulos,

escravos e forros também inseriram o santo nos seus cultos sincréticos. Em 1777, no povoado

de Itapecerica, Minas Gerais, Brígida Maria e Roque, negro angola foram denunciados à

justiça eclesiástica por praticarem o calundu. O rito consistia em danças ritmadas por viola e

pandeiro, durante o qual invocavam as almas dos mortos a incorporarem nos vivos, e levavam

a imagem de Santo Antônio ao mato para fazer penitências. Em 1739, em Sabará, também

Minas Gerais, Luzia Pinta, forra natural de Angola, durante o culto em que fazia adivinhações

e curas, pedia aos enfermos duas oitavas de ouro para mandar rezar missas para Santo

Antonio e São Gonçalo, pois estes auxiliavam nas curas. Nas terras do ouro, Josefa Maria, de

nação coura, Benin, realizou uma cerimônia, a “dança de tunda” ou “acotundá”. Em transe,

ela falava em sua língua da Costa da Mina, dizendo que era filha de Nossa Senhora do

Rosário e de Santo Antônio; dizia também que o mesmo santo a batizara e a mandara ao

Brasil. Na dita casa onde realizavam o “acotundá”, também foi encontrada um altar para o

referido santo e ao pé do altar, havia uma panela com feijoada, comida servida para Ogum,

divindade do panteão iorubano.25

Robert Slenes sugere que os variados cultos a Santo Antônio no Brasil podem ter

sido trazidos via África Centro-Ocidental. No antigo reino do Congo eram populares as

estatuetas de Toni Malau, que significava o “Antônio da boa sorte”. Marina de Mello e Souza

reforça esse argumento no seu estudo acerca das estatuetas de Santo Antonio de nó-de-pinho

encontradas no Vale do Paraíba, sudeste do Brasil.26

Slenes alerta para o fato de que, apenas uma parcela mínima dos africanos

desembarcados no Brasil, com exceção dos ambundos e dos congoleses, conheciam o culto ao

Toni Malau; e que alguns podem até mesmo ter presenciado o movimento antoniano

Interessante notar que o autor ao buscar compreender o papel da religião cristã entre os africanos, opera com a

“chave” da rebeldia escrava. Para o autor, a combinação entre religião e política era o lugar privilegiado para

que o escravo se rebelasse em prol da reforma da escravidão. Reis não encontrou nenhum caso em que africanos

associados às irmandades estivessem envolvidos nas revoltas oitocentistas da Bahia. A forma como os negros se

apropriaram do catolicismo no Brasil, com base nas promessas, ou seja, nas trocas religiosas com os santos, teria

desenvolvido um catolicismo menos “consciente”. Ao contrario do que ocorreu nos Estados Unidos, onde o

protestantismo serviu ao Nat Turner como elemento incendiador de sua rebeldia, que o levou a matar vários

senhores brancos. Esse tipo de análise do catolicismo encobre a possibilidade de ver outras maneiras de

recriação de tradições africanas no seio da própria religião dos brancos. Ver “Quilombos e revoltas escravas no

Brasil: „Nos achamos em campo a tratar da liberdade‟”. Revista USP, n.28, 1996, p. 31. 25

MOTT, Luiz. “Acotundá: Raízes Setecentistas do sincretismo religioso afro-brasileiro”. Revista do Museu

Paulista/USP, 1986, pp.87-117; “Santo Antônio, o divino Capitão-do-Mato”. In: REIS, João & GOMES, Flávio

dos Santos. Liberdade por um fio. História dos quilombos no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1996; 26

“Santo Antônio de nó-de-pinho e o catolicismo afro-brasileiro”, Tempo, vol. 6, nº. 11, (2001), pp.171-188.

Page 190: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

190

protagonizado por dona Beatriz Kimpa Vita, que ocorreu entre 1702 e 1706, ano em que ela

foi queimada viva, porque acreditava ser Santo Antônio. Portanto, o culto a esse santo no

Brasil pode estar associado ao contato de africanos e crioulos de outras “nações” como os

ambundos e congoleses. Por meio do processo de reinterpretação, ou de tradução religiosa,

transformaram o Santo Antônio em santo protetor que possibilitava comunicação com os

mortos. Sua estatueta servia como amuleto para dar sorte, proteger de perigos, e auxiliar nos

ritos de curas da sacerdotisa courá, afilhada de Santo Antônio.27

Outra indicação importante que comprova que o cristianismo não foi um ato

involuntário aos negros no Brasil era a compra de “relíquias” católicas. Eles compravam

bentinhos, contas, verônicas, ágnus-deis, indulgências, e outras relíquias falsas, como

lasquinhas da cruz de Cristo e papelotes contendo leite-em-pó do peito de Nossa Senhora. Um

vendedor simoníaco foi o padre João Roiz. Ele passava sempre em Serro Frio para oferecê-las

aos negros, que pagavam em ouro pelos supostos objetos sagrados católicos. Os escravos e

libertos diziam comprá-los porque serviam para livrar de cobras e bichos, além disso, podiam

“meter-se embaixo d‟agua sem pirigar”.28

Em estudo sobre o papel das relíquias, os restos mortais dos santos na construção

de um mundo imperial, Renato Cymbalista nos ensina que o culto às relíquias cristãs foi

introduzido no Brasil desde os primeiros anos da colonização lusa. O objetivo de trazer

relíquias de santos para as partes “recém-descobertas” do Império visava integrar as novas

terras na narrativa cristã. Em 1575 foram recebidas duas cabeças das Onze Mil Virgens em

Salvador. Em 1584, uma das cabeças foi levada pra Olinda e recebida com missa solene pelo

jesuíta Fernão Cardim. Nos anos subseqüentes aportaram ao Brasil outras cabeças das Onze

Mil Virgens. Em 1577, uma dessas foi levada para São Vicente. O padre Cristóvão Gouveia

quando veio ao Brasil como visitador trouxe outra cabeça para Salvador. Em 1582 foi

inaugurado um relicário e uma capela no Colégio dos Jesuítas da Bahia para acomodar melhor

as santas relíquias. A cerimônia de trasladação das relíquias foi muito concorrida por

religiosos e pela população que causou tumulto.

Em seguida, o visitador da Companhia foi pra o Rio de Janeiro. Levou consigo

uma relíquia de São Sebastião acomodada em um braço de prata. Houve festa em louvor do

27

“A árvore de Nsanda transplantada: cultos kongo de aflição e identidade escrava no Sudeste brasileiro (século

XIX)”. Op. cit., pp. 306-7; e Marina de Mello SOUZA & Ronaldo VAINFAS. "Catolicização e poder no tempo

do tráfico: o reino do Congo da conversão coroada ao movimento antoniano, séculos XV-XVIII". Tempo, vol.

3, nº 6, dezembro, 1998. (p. 95-118). 28

Luiz MOTT. “Cotidiano e Vida Religiosa: entre a capela e o calundu”. In: SOUZA, Laura de M. (org.) História

da Vida no Brasil: cotidiano e vida privada na América Portuguesa. São Paulo: Cia. das Letras, 1997, p. 192.

Page 191: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

191

referido santo, padroeiro e protetor da cidade. A procissão começou no mar, passando pelas

ruas até a Igreja da Misericórdia. Em seguida houve um auto de teatro, e o ritual de beijar a

relíquia. O braço de São Sebastião foi colocado ao lado de uma cabeça das Onze Mil Virgens.

O Visitador seguiu para São Paulo em 1585. Levou consigo algumas relíquias: uma lasca do

santo lenho e uns pedacinhos dos santos tebanos da legião de São Maurício. 29

Além do traslado de relíquias como estes que foram apresentados, as conquistas

Ultramarinas da Idade Moderna também foram propícias a criação de novos mártires e

consequentemente de novas relíquias. No entanto, não eram simples os processos de

santificação. Na Idade Média, a igreja santificava o morto a partir dos cultos que

proliferavam. Mas as reformas católicas pós Trento, centralizaram no papado os processos de

beatificação e canonização. A partir daí, fiéis e ordens religiosas passaram a documentar com

precisão e fazer circular as informações sobre os candidatos a santos e suas relíquias.

A primeira relíquia da América Portuguesa foram as pegadas deixadas pelo

Apostolo de Jesus, São Tomé, quando pregava para os povos indígenas. Mas as primeiras

relíquias criadas foram do padre Anchieta, falecido em 1597 em Reritiba, Espírito Santo. Em

dois anos seus ossos foram transferidos para Salvador. Menos de vintes anos depois seu culto

foi autorizado pelo papa Urbano VIII. Seus restos mortais obraram milagres.30

Na Europa, os populares fizeram interpretações muitos particulares dos sermões

dos missionários em torno do culto às relíquias sagradas dos mártires da Igreja. O uso das

relíquias pelo povo sofreu uma resignificação religiosa. Luiz Mott mostra em estudo sobre

usos supersticiosos de restos mortais, um caso curioso de um europeu que roubava ossos das

igrejas para oferecer como oferenda ao Demônio. Em 1610, na Espanha, Miguel de Goyburn

desenterrava ossos de defuntos já gastos, e “deles tiravam os ossos das articulações dos pés, as

cartilagens dos narizes e todos aqueles ossinhos que existem ao redor e os miolos hediondos,

estas partes dos corpos dos defuntos recolhiam-nas em cestos e ofereciam ao Diabo”.31

Mott defende a idéia de que as práticas de infanticídio eram bem conhecidas na

29

CYMBALISTA, Renato. Sangue, ossos e terras: os mortos e a ocupação do território luso-brasileiro

séculos XVI-XVII. São Paulo, 2006. (Tese de Doutorado em Estruturas Ambientais urbanas - Faculdade de

Arquitetura e Urbanismo/USP); “Relíquias sagradas e a construção do território cristão na Idade Moderna”,

Anais do Museu Paulista, História e Cultura Material. Vol. 14, 2006, pp. 11-50. “A Cidade na América

Portuguesa: Uma Comunidade de Vivos e Mortos”, XII Encontro Nacional da ANPUR, Belém, 2007. (Sessão

Temática: História, Cidade e Urbanismo). 30

Renato Cymbalista. “Relíquias sagradas e a construção do território cristão na Idade Moderna”, Anais do

Museu Paulista. História e Cultura Material, Vol. 14, 2006, p. 36. 31

Luiz MOTT. “Dedo de anjo e osso de defunto: os restos mortais na feitiçaria afro-luso-brasileira”, Revista USP,

31, 1996, p. 114.

Page 192: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

192

Europa, pois várias mulheres foram denunciadas como assassinas de crianças. Para o autor, as

feiticeiras praticantes de infanticídio têm origem branca e não negra. Os africanos e

descendentes adotaram “não apenas a religião como também as superstições e práticas

diabólicas dos donos do poder.”32 No entanto, africanos de alguns lugares também conheciam

práticas de sacrifícios rituais de adultos e crianças.

Na Alta Guiné, conforme mostramos com mais minúcia, o culto às relíquias foi

introduzido em Cabo Verde. Os missionários levaram para a Ilha um pedaço do santo lenho

da cama onde Santo Inácio de Loyola dormia. Com essa madeira, uma cruz fora feita, que se

tornou uma milagreira relíquia. Os nativos interpretaram ao seu modo os sermões em torno da

relíquia e a usavam para todas as necessidades do cotidiano. Carregavam para suas casas para

amenizar as dores da morte do moribundo, para acompanhar defunto, ajudar no parto das

mulheres e em curas.

Na região dos rios da Guiné os missionários distribuíram imagens impressas de

Santo Inácio, como se fossem relíquias, às quais eram atribuídos poderes curativos. Mas o

povo usava as mesmas como se fossem amuletos para fechar o corpo. Durante a missão os

padres tentaram acabar com o costume de sacrifício de “chinas” nas cerimônias fúnebres da

realeza. Algumas pessoas se ofereciam para servir ao rei na outra vida, e eram enterradas com

cavalos, jóias, e demais coisas importantes para o rei no outro mundo.

Na África Central, os missionários também encontraram práticas semelhantes

envolvendo sacrifícios e cultos aos restos mortais de pessoas importantes. Em Matamba, no

reino de Angola, havia guerreiros imbangalas que tinham vida nômade, e se estabeleciam

provisoriamente em lugar fortificado, chamado kilombo. Eles viviam de saques às aldeias. A

reprodução do grupo era garantida pelos seqüestros de mulheres e crianças pertencentes a

vários grupos vizinhos, principalmente os ambundos. Conforme testemunharam os viajantes

do século XVII,33 as crianças nascidas no acampamento eram deixadas ritualmente no mato,

porque era proibido que filhos dos membros do grupo vivesse com eles. Evitava-se assim que

o poder fosse herdado por linhagem. Os novos chefes eram escolhidos pela sua coragem,

independente de sua origem. A identidade do grupo era mantida pelos ritos iniciáticos como a

circuncisão. Para que os guerreiros do grupo se tornassem invencíveis passavam um ungüento

chamado maji-a-samba. Essa pomada mágica era preparada com crianças sacrificadas

32

Idem, p. 116. 33

António de Oliveira CADORNEGA. História Geral das Guerras Angolanas. 1680. Anotado e corrigido por

José Matias Delgado. Lisboa: Agência-Geral do Ultramar. 1972, Tomo III, pp. 223-225.

Page 193: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

193

nascidas no kilombo. Portanto, diferente do que afirmou L. Mott, sociedades africanas

também conheceram o que aqui está sendo chamado de infanticídio com fins preventivos e

protetores.34

Na ocasião da entrada de um religioso no kilombo dos imbangalas, o Frei Antonio

de Serveja, que carregava ao colo uma menina recém-nascida que foi deixada no mato, as

pessoas se sentiram ofendidas com a ousadia dele, porque a quebra do costume seria causa de

ruína para o grupo. O Cronista Cadornega, disse que o chefe do kilombo não permitiu que

matassem o religioso “nem tampouco a criança que elle nunca largou de seus braços, dizendo

que o havião de martirizar com ella”.35 Ou seja, evitando a morte do religioso, evitava-se que

os ossos do sacerdote branco e da menina também fossem cultuados.

António Cadornega, o militar português que assumiu importantes postos em

Massangano e Luanda, também informa que os jagas (como os portugueses chamavam os

imbangalas) veneravam os “quicullos”, que eram os ossos de seus chefes antepassados.

Faziam-lhes “sacrifícios de gentios e animaes, derramando-lhe muito vinho, assim de

Portugal, como de Palma”.36 Os jagas consultavam esses antepassados nos assuntos

importantes, como as guerras e alianças. Os espíritos deles entram no corpo de um dos chefes

e respondem ao que devem fazer. Além de servir para comunicação com os mortos, os restos

mortais dos chefes tinham também a função de protegê-los:

[...] todos os cofres em que têm as negregadas relíquias dos seus senhores defuntos,

ornados de ricas sedas, e acompanhados de toda a gente principal, com muito gentio de

guerra de sua guarda, e toda a matinada de varios instrumentos, assim por fazerem aquella

honra e obsequio ao embaixador que vem, como por terem para si que com taes

defensivos se livraram do mal que pello tal embaixador lhes poderá vir, e acertarão em

que tudo o que com elles tratarem.37

Os cofres levados nas guerras dos imbangalas, nos quais colocavam os ossos dos

chefes antepassados do kilombo eram chamados de mosetes. Os jagas os “veneram e têm para

si, são os que lhe dão todo o esforso e valor para vencerem a seus inimigos e no que conquista

boa fortuna”.38 Isso quer dizer que os missionários encontraram um povo que também

34

Luiz MOTT. “Dedo de anjo e osso de defunto: os restos mortais na feitiçaria afro-luso-brasileira”. Op. cit., p.

114. “(...) a utilização de restos mortais de seres humanos não se trata de “barbarismo” de origem africana, mas

procede de antigas tradições européia divulgadas no Novo Mundo pelos colonizadores brancos”. 35

Idem, p. 227. 36

Idem, p. 224. 37

Idem, p. 225. 38

Idem, p. 228.

Page 194: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

194

cultuava os ossos de seus importantes antepassados, que podiam intervir em favor dos vivos.

Em 1661, o mosete usado pela Rainha Jinga foi levado de Matamba, onde estava sendo

construída a igreja de Nossa Senhora de Matamba, para Luanda, de onde retornou na forma de

candelabro. O padre capuchinho Antonio de Gaeta convenceu a Jinga a desfazer-se daquele

cofre, instrumento de comunicação com os mortos, e transformá-lo num candelabro para a

nova Igreja.39

Fosse pela influência dos sermões dos missionários em torno das relíquias dos

mártires, fosse pela tradição ambunda dos ritos consagrados aos antepassados, ou a

justaposição de ambas tradições, a morte de dona Beatriz Kimpa Vita foi emblemática. Em

1606, essa moça da nobreza congolesa, educada no cristianismo, foi queimada viva pelo

capuchinho Bernardo Galo acusada de heresia.40 Os seus seguidores recolheram seus ossos

como relíquias e espalharam que ela não havia morrido, apenas desaparecido de outra forma,

já que ela se transformava, por vezes em Santo Antônio.41

Na América Portuguesa, os restos mortais usados em feitiçarias revelam a tradução

dos sermões católicos em torno dos milagres que obravam os ossos dos defuntos. A

população de origem européia tinha mais familiaridade com o uso de restos mortais em suas

feitiçarias pela longa tradição do culto às relíquias. Durante a primeira visitação do Santo

Ofício da Inquisição de Lisboa à Bahia, em 1591, dona Guiomar, natural de Lisboa,

denunciou Antônia Fernandes, cristã-velha, natural de Guimarães (Norte de Portugal), viúva.

Esta era acusada de conhecer vários tipos de feitiços para segurar marido, os quais queria

ensinar à Guiomar. Um dos feitiços era composto de “pós de osso de finado, os quais pós ela

confessante deu a beber em vinho ao dito seu marido Francisco Fernandes para ser seu amigo

e serem bem casados”.42 Antônia teria contado também a Guiomar que foi até o local de

enforcamento em Vila Velha, Salvador, e cortou a mão de um negro que estava enforcado

39

Marina Mello e SOUZA. “A rainha Jinga de Matamba e o catolicismo - África Central, século XVII.”

Comunicação apresentada no Congresso Internacional Las relaciones discretas entre las monarquías

hispana y portuguesa: Las casas de las reinas (siglos XV-XIX). Madrid, Universidade Autônoma de Madrid;

11 e 14/ dezembro/2007, p.22. (texto mimeografado, discutido no Núcleo de Religião e Evangelização do

Projeto Temático Dimensões do Império Português, FAPESP/Cátedra Jaime Cortesão, em maio de 2008). 40

Id., "Catolicização e poder no tempo do tráfico: o reino do Congo da conversão coroada ao movimento

antoniano, séculos XV-XVIII". Tempo, vol. 3, nº 6, 1998, p. 12. O “movimento antoniano” foi reprimido pelo

capuchinhos italianos porque condenava o clero oficial estrangeiro, e rejeitava uma parte dos sacramentos

católicos como o batismo, a confissão e o matrimônio. Os antonianos proibiram a veneração da cruz, porque

esta foi o motivo da morte de Jesus, prometiam tornar procriadoras as mulher inférteis, ameaçavam transformar

em animais os reticentes à fé, e organizaram um clero particular, que tinha como sacerdote santos católicos,

como São João. 41

Idem, p. 18. 42

Ronaldo VAINFAS. Confissões da Bahia: Santo Ofício da Inquisição de Lisboa. São Paulo: Companhia

das Letras, 1997, p.134.

Page 195: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

195

para fazer feitiços.43

No Bispado de Mariana, Josefa Maria Soares, branca, tinha em casa duas caveiras.

Uma enterrada na porta da casa para proteger a família de mau agouro. A outra, escondida

dentro de casa, servia para tirar umas lasquinhas sempre que precisasse. Ela triturava até virar

pó. Em seguida misturava na comida de quem deseja fazer malefícios. Josefa foi denunciada

aos comissários do Santo Ofício por sua escrava parda, Albina Maria em 1774.44

Mas os negros também aderiram na Colônia ao uso dos restos corpóreos. As

“relíquias” foram resignificadas para compor as práticas mágicas e feitiçarias. Luiz Mott

encontrou em suas pesquisas alguns casos envolvendo negros.

Ângela Maria Gomes, em 1760, forra de nação courana, moradora em Itaubira,

Minas Gerais, denunciada ao Santo Ofício. Ela foi vista com outras mulheres desenterrando

um defunto no adro da Igreja de Nossa Senhora da Boa Viagem. Além dos restos mortais,

Ângela usava morcego e bode na feitura de seus feitiços. O rito era em sua casa e ocorria sob

o som de batuques todas as terças e sextas-feiras. A escrava Rosa Egipcíaca, natural da Costa

da Mina, dentre vários outros motivos, foi acusada pelo padre frei Santa Rita Durão de ser

fina feiticeira, porque acharam-na com o corpo dessecado de uma criança.45

Feliciana de Oliveira, parda, moradora do bispado de Mariana, foi acusada de atar

com uma fita verde e colocar dois ossos de defunto na boca de sua escrava Maria, crioula.

Desenhava uma cruz no chão e mandava a escrava pisar no desenho enquanto ela dizia

palavras para fazer Joaquim largar a mulher dele e ficar com ela. Em 1782, na Vila de São

Miguel, os escravos mulatos Joaquim e Clemência foram denunciados porque faziam feitiços

com saliva, cabelo, unhas e outras substâncias, como “pós, unhas e carnes de defuntos que

iam tirar nas sepulturas das igrejas, e metiam naqueles feitiços”. Em 1775, a parda Luiza

Maria Angélica, solteira, foi vista na rua em noite de lua cheia no Rio de Janeiro com duas

caveiras na mão, enquanto fazia orações. Os inquisidores suspeitaram de pacto com o

demônio.

Cabe destacar dois casos de usos de restos mortais para causar malefícios aos

senhores de escravos. O escravo Felipe, morador na vila de Santos, capitania de São Paulo

usou dente de jacaré e pó de defunto na preparação de uma poção que deu ao seu senhor. Este

43

Idem, p. 137. 44

Os casos arrolados por Luiz Mott nesse artigo “Dedo de anjo, osso de defunto”, foram extraídos dos processos

inquisitoriais da Inquisição de Lisboa e dos Cadernos do Promotor. Pp . 115-9. 45

Idem.

Page 196: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

196

foi acometido por profundas dores de barriga e nas cadeiras. Felipe confessou que a finalidade

era secar as tripas do seu dono. Numa das bolsas que portava, havia um dedo de criança,

unhas e um osso de defunto. O preto forro Matias Gonçalves Guizanda, alfaiate, morador em

Recife, tinha uma saquinho de pano dentro do qual foram encontrados desenhos que se

pareciam com o diabo, cinco orações e dez pedaços de ossos de um crânio humano. Tudo isso

dizia usar para fazer malefícios que lhe encomendavam.46

Os usos de restos mortais de pessoas divinizadas, portadoras de poderes

miraculosos ou mágicos foram incentivados pela Igreja. No entanto, na América Portuguesa,

os africanos e crioulos fizeram interpretações particulares acerca do poder dos mortos e

usaram também restos mortais de pessoas comuns, fossem adultos ou crianças, nas suas

feitiçarias.

Além dos circuitos da propaganda e da distribuição de relíquias autorizadas pela

Igreja, havia também o conhecimento de feitiçarias populares que circulavam entre brancos e

negros, usando outros tipos de “relíquias”. Bem como existiam os circuitos africanos de

difusão de uma visão de mundo onde tinha lugar especial os mortos, os santos, a cruz e os

minkisi.

A experiência de agregar ingredientes diferentes a um objeto remete à tradição dos

centro-africanos em torno dos minkisi, que, em geral, eram objetos esculpidos em madeira por

um artesão, e depois sacralizados por um sacerdote, o ganga. Os minkisi tinham função

coletiva ou individual. Alguns serviam para proteger a comunidade de crises, infortúnios,

epidemias e descobrir ladrões e malfeitores. Outros eram para curar, proteger o indivíduo de

doenças, perigos e feitiços. O seu formato variava muito, pois a sua forma artística não era o

mais importante. Como havia uma liberdade para improvisação na forma, também havia para

os materiais agregados à peça. Os ingredientes variavam conforme o que era requerido ao

ganga, responsável pela dotação de poderes mágicos ao objeto.47

O receptáculo a ser transformado em minkisi pode variar de uma figura de madeira

esculpida, tipo estatueta antropomorfa, para uma panela de barro, concha de caracol,

46

MOTT, “Dedo de anjo, osso de defunto”. Op. cit., p. 118. 47

VOLAVKOVA, Zdenka. “Nkisi figures of the Lower Congo”. Symposium on Traditional African Art,

organized by the Peabody Museum and CAAS at Harvard University on May 4-7, 1971. Disponível em

www.randafricanart.com/index.pdf.

Page 197: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

197

saquinhos, sachês, bolsas, vasos de cerâmica, pacotes de pano, entre outros objetos. Cada

minkisi contém o remédio (bilongo) e o espírito.48

Em seu estudo comparativo sobre os saberes dos centro-africanos difundidos nas

Américas, Robert F. Thompson crê que os cosmogramas do Congo reapareceram no Novo

Mundo, na forma de feitiços-minkisi, e este teria sido um instrumento estratégico da

comunidade negra para efetuar curas.49 Thompson imbuído do objetivo de encontrar as

sobrevivências africanas nas Américas realizou uma leitura aplanadora dos símbolos.

Desconsiderou as influências do impacto do catolicismo na vida dos africanos ainda no

Congo e depois no Novo Mundo.

Nesse sentido é interessante lembrar que no Congo e em Angola, crucifixos e

santos levados pelos missionários eram chamados pelos nativos e pelos próprios missionários

de minkisi. Essa identificação era dada pelo fato dos objetos cristãos serem entendidos como

instrumentos de comunicação com as forças do além, feita por um intermediário de Deus, o

padre, que era chamado de ganga. Quando os nativos eram batizados recebiam cruzes e

medalhinhas dos padres. Os neófitos compreendiam o rito como se fosse uma iniciação e

portavam os símbolos católicos como se fossem saquinhos mágicos e amuletos.50

Diferentemente dos mandingas e outros povos islamizados da Alta Guiné, que

portavam amuletos contendo orações escritas em papel contendo textos islâmicos referentes

ao Alcorão, acompanhados de comentários teológicos e curativos,51 os bantos inseriam outros

tipos de materiais dentro de seus saquinhos.

48

Robert Faris THOMPSON. Flash of the Spirit: African & Afro-American, Art $ Philosophy. New York:

Vintage Books, 1984 49

Entre os vários tipos de minkisi encontrados nas Américas, ele se referiu ao Nkisi Nkita Nsumbu, um saco de

ráfia com argila branca ao fundo, sob sementes, cristais, pedras e outras coisas. Serve para livrar as pessoas de

ferimentos na pele causados por facas e agulhas sobrenaturais, e por isso pode conter esses mesmos materiais

de metal. O Nkisi Mbunda Mbondo é feito com penas, algodão, botões, vidros, tranças de ráfia, miçangas

coloridas e terra de cemitério. Protege a pessoa de inchação do corpo ou inflige doenças nos inimigos

criminosos. No Haiti contemporâneo, o autor encontrou os paquets-congo: eram saquinhos embrulhados em

pano de seda, amarrados com tiras de seda, segurados por alfinetes, adornados com moedas, miçangas. No

topo do saco, são colocados plumas ou panos metalizados. Chamam de Simbi-Makaya (Simbi das folhas) ou

“Rainha do Congo” um tipo de bolsa antropomorfa feita com muitas folhas, plumas, seda e miçangas.

Thompson diz que são representações visuais da crioulização de formas tradicionais dos minkisi do Congo. Na

visão do autor, a forte influência da África-Central no Brasil apareceu na forma dos “pontos de segurar”, feitos

nos centros de Umbanda do Rio de Janeiro do século XX. Os pontos de segurar são pequenos encantamentos

feitos em um pedaço de pano, no qual se desenhava algo para prender um espírito ou atrair uma pessoa. Após

dobrada, era amarrada com cordas apertadas no sentido vertical e horizontal. Essa amarração em forma de cruz

representava que o espírito estava preso ao pacote. Idem, pp. 117-128. 50

Alberto da Costa e SILVA. A Manilha e o Libambo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Biblioteca Nacional,

2002, p. 366. 51

Nikolay DOBRONRAVIN. “O Islã na África do Oeste e no Brasil”, p. 27. Disponivel no site:

http://www.casadasafricas.org.br/site/index.php?id=banco_de_textos. (Este texto se refere a um ciclo de

palestras que o referido autor proferiu em Sao Paulo e Salvador em 2003).

Page 198: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

198

O padre Cavazzi, quando esteve entre os jagas, observou que os gangas usavam

uns “preservativos contras as armas inimigas, especialmente cinturas feitas com pele de

nsengue [crocodilo]. Nessas cinturas atam objectos sem valor, mas que, por causa da

superstição geral, aumentam o prestígio dele.”52

O responsável pela feitura das cintas era o nganga-ia-ita. Eram feitas e

sacralizadas para irem a guerra e eram muito procuradas. Estabelecendo uma comparação

com o cristianismo e o culto às relíquias, Cavazzi expressou sua decepção ao perceber que o

valor dado aos cintos de couro imitava “sacrilegamente a nossa devoção as relíquias”. Dizia

que era grande “o prestígio e tão cega é a credulidade dos Jagas que estes aparecem, às vezes,

todos carregados de pedaços da madeira, de pena, de ossos, de pequenos chifres e de mil

outros amuletos (...)”53

Legenda da gravura: 1. Sacerdote que fala com a leoa; 2.

Encanto do sacerdote; 3. Cinta com relíquias; 4. pulseiras

de ferro; 5. Dois amuletos de chifre cheios de ungüento

pendurados no pescoço.

(Aquarela do Padre Antônio Cavazzi, que esteve em

Angola entre 1672 a 1677).

O nganga-ia-quimbanda também distribuía “cinturas para diversos usos

supersticiosos.” O padre notou que não apenas o povo de Matamba usava amuletos protetores

52

CAVAZZI DE MONTECÚCCOLO, João António. Descrição História dos três Reinos do Congo Matamba

e Angola. Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar, 1965, vol. 2, p. 201. 53

Idem, p. 202.

Page 199: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

199

amarados ao corpo, e que era difícil fazer o povo desacreditar dos poderes dos cintos: “As

populações do interior, que nunca lidaram com europeus, conservam mil ninharias embrulhadas nas

peles dos bichinhos, levando-os ao pescoço ou, mais secretamente, na cintura. Para os operários

evangélicos é muito difícil tira-las completamente”.54

José Francisco Pereira já é bem conhecido entre os historiadores. Foi citado

primeiro por Laura de Mello e Souza em 1986 no Diabo e terra de Santa Cruz, onde estão

reproduzidas as gravuras encontradas dentro das bolsas de mandinga apreendidas com ele.55

Em 1988, Luiz Mott lhe dedicou inteiramente um artigo intitulado “A vida mística e erótica

do escravo José Francisco Pereira 1705-1736”56. Em 2000, Daniela Calainho faz menção ao

seu caso e também reproduziu as gravuras, indicando para as semelhanças com os atuais

desenhos dos pontos riscados da umbanda.57 Em 2001, Didier Lahon retomou o processo e

propôs uma leitura muito original. O autor interpretou os desenhos, como sendo influência

das “cartas de tocar” do catolicismo popular português e das tradições da costa ocidental da

África.58

José Francisco Pereira, declarou ser natural da Costa de Judá. Confessou que

chegou criança num dos muitos navios negreiros que desembarcavam no litoral

pernambucano. Nessa capitania foi batizado. Conheceu Zamita, um feiticeiro que havia lhe

contado que sempre colocava “pedacinhos da mão de uma criança, que encontrara morta

dentro de uma panela, numa praia deserta, deixando-a secar ao sol e dela extraindo migalhas

para compor suas bolsas de mandinga”.59

As primeiras aprendizagens acerca das possibilidades da miscibilidade de

ingredientes de variados referenciais culturais José Francisco teve com o velho Zamita. Em

seguida foi vendido para as Minas Gerais, onde morou e deve ter aprendido outras coisas

importantes para o seu talento de agregador de símbolos. Depois foi para o Rio de Janeiro,

onde, em contato com negros de diversos lugares, se especializou na arte de fazer as bolsas.

54

Idem, vol. 1, p.116. 55

Op. cit., 217-8. 56

Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 92/93, 1988, pp.85-104. 57

CALAINHO, Daniela Buono. Metrópole das Mandingas: Religiosidade Negra e Inquisição Portuguesa no

Antigo Regime. Doutorado em História. UFF, Niterói, RJ, 2000, pp.166, 224-7. 58

Didier LAHON, Esclavage et Confréries Noires au Portugal durant l'Ancien Régime (1441-1830). Tese

de doutorado em Anthropologie Sociale et Culturelle, Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris,

2001; Inquisição, Pacto com Demônio e “magia” africana em Lisboa no século XVIII. Topoi, Rio de Janeiro,

2004, vol.5, n.8, pp. 28-43. 59

MOTT, “Dedo de anjo, osso de defunto”. Op. cit. p. 116.

Page 200: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

200

Acompanhou seu dono numa viagem à Lisboa. No coração do Império aumentou sua

produção de bolsa e se valeria da ajuda de outros escravos para atender sua vasta clientela de

negros que queria ter o corpo fechado dos perigos. Estando muito próximos dos órgãos

reguladores da conduta dos cristãos, foi denunciado e preso nos cárceres secretos da

Inquisição. Com ele foram encontradas bolsas de mandinga e as orações cheias de gravuras

foram anexadas ao seu processo. Dessa forma, temos um dos mais importantes documentos

intermediado pelo pensamento africano.

José Francisco Pereira aprendeu a fazer a bolsa de mandinga no Novo Mundo em

contato com outros africanos. Portanto, a bolsa se tornou um amálgama de conhecimentos de

diferentes nações que se encontraram no circuito Atlântico. O que todos os negros

denunciados ao Santo Ofício tinham em comum era o cristianismo. Embora continuassem

apegados a suas práticas religiosas de origens, aprendiam ao menos os ritos, as fórmulas e

papéis rituais do catolicismo. As bolsas de mandinga eram o resultado inacabado do encontro

entre vários grupos culturais distintos. O conteúdo delas mudava muito, a depender de quem

portava e de quem as produziram. As orações inseridas nas bolsas eram escritas de acordo

com o objetivo esperado pelo portador.

A capacidade dos povos africanos de recriarem suas tradições na diáspora está

presente nos novos sentidos atribuídos à bolsinha. Na bolsa, pode aparecer a junção das

manifestações das religiosidades baconga e católica. O uso de gravuras que remetem a relação

entre o mundo dos vivos e dos mortos e o saquinhos contendo ingredientes católicos

formavam uma espécie de minkisi, como remédio preventivo.

Cabe lembrar que o poder das bolsas era atribuído à sacralização delas. O padre

fazia as vezes do ganga. Não se colocava o produto pronto embaixo da mesa do altar para

evitar que fossem descobertos. Embaixo do pano do altar, eram colocadas as partes que

compunham o amuleto: as orações com os desenhos. A hóstia a ser inserida devia ser

consagrada, por isso muitos não engoliam, retirando-a da boca. O sanguinho, a pedra d‟ara e

pedaços do círios pascal, eram todos ingredientes já dotadas de poderes mágicos, porque

faziam parte do rito da missa, sempre no altar. Quanto aos pedaços de corpo humano, vivo ou

morto, que freqüentemente também continham, como já dito, associavam-se a

reinterpretações dos sentidos atribuídos às relíquias pela Igreja Católica.

Além da análise acerca dos ingredientes de composição das bolsas, é importante

investigar acerca do sentido das orações e dos desenhos contidos nelas. Os desenhos das

bolsas de José Francisco Pereira podem ser lidos como uma representação da visão de mundo

Page 201: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

201

dos bacongo, aprendida no contato com centro-africanos. Suponho que não tenha sido José

Francisco quem fizera os desenhos, pois além dos estudantes, aos quais ele pagava para

transcrever as orações, tinha outros assistentes para ajudá-lo na confecção das bolsas.

Sugiro que as cruzes que aparecem desenhadas nas bolsas não fazem referência

apenas com o Jesus Cristo crucificado. A cruz pode ser uma alusão ao “signo do cosmo e da

Fig. 8. Manuscrito encontrado dentro da bolsa de

Mandinga, anexado ao processo de Jose Francisco,

homem preto, natural de Judá, Costa da Mina.

Processo 11774, Inquisição de Lisboa, 1731.

Page 202: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

202

continuidade humana” da cultura dos bacongo. As encruzilhadas seriam os ponto de

intersecção entre os mortos e os vivos.60

A forma básica do cosmograma bacongo é uma cruz dentro de um círculo. Este

símbolo representa as quatro posições que o sol ocupa, os diferentes momentos da vida dos

homens, nesse mundo e no outro, não visível, e a divisão entre o mundo dos vivos e o dos

mortos e espíritos, conforme o pensamento dos habitantes do Congo. Os quatro momentos do

sol cercam o ciclo da vida inteira da humanidade, bem como a estrutura do universo. Acima

da linha horizontal, é o mundo dos vivos. Abaixo, o outro mundo, o sobrenatural, o mundo

dos mortos. A combinação entre esses mundos corresponde ao círculo completo de vida.

A primeira tentativa de “decifrar” os desenhos das bolsas de mandinga, salvo

engano, foi realizada por Didier Lahon. Sua interpretação dos elementos gráficos, embora

original, foi marcada pela associação dos desenhos das orações com as “cartas de tocar”,

largamente usadas em Portugal com finalidade protetora. Por isso, o autor manteve-se muito

preso aos significados cristãos. Muito influenciado pelos pesquisadores do sincretismo na

Bahia (Artur Ramos, Roger Bastide e Pierre Verger), Lahon, acabou olhando o “lado

africano” fazendo correspondências entre orixás e o cristianismo.61

Penso que as gravuras não podem ser lidas apenas numa chave cognitiva cristã,

como se fossem uma simples reprodução rudimentar da Morte de Cristo. A presença de

elementos familiares aos bacongos possibilita uma leitura dos desenhos partindo da idéia de

reinterpretação dos símbolos cristãos, à luz de um pensamento bacongo.

A leitura das gravuras na bolsa de Jose Francisco Pereira, aqui proposta, mostra

que esses pequenos pedaços de papéis desenhados exprimiam uma forma especial de

relacionamento com a morte de Cristo e o mundo dos mortos, próprio do sistema de

pensamento banto.

Na parte de cima, do lado esquerdo, no mundo dos vivos, há o sol, representando o

meio-dia; aparece na parte mais alta, onde habita Deus, o auge do poder da pessoa na terra. A

inscrição no topo da cruz INRI é, certamente, uma alusão às imagens que o escravo via da

Paixão de Cristo nas igrejas e casas de seus senhores.

60

Robert Faris THOMPSON, Flash of the Spirit: African & Afro-American, Art & Philosophy. New York:

Vintage Books, 1984. p. 108. 61

Didier LAHON, Esclavage et Confréries Noires au Portugal durant l'Ancien Régime (1441-1830), Op.

cit.; Inquisição, Pacto com Demônio e “magia” africana em Lisboa no século XVIII, Op. cit.

Page 203: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

203

O triângulo isóscele invertido é uma forquilha. Thompson informa que a

bifurcação ou a forquilha “podem aludir crucialmente ao símbolo da passagem e comunicação

entre mundos”.62 A forquilha do desenho cruza exatamente no centro da linha horizontal que

conduz a Deus e está sustentada por dois pontos situados no mundo dos vivos, próximo a

Deus. O que seriam os dois pontos? Didier nada diz sobre eles. São dois pequenos espirais,

um alusão ao cosmograma do mundo que nunca acaba. O ponto central de onde parte a

forquilha é um losango idêntico ao que seria um prego. Entre os bantos, o ponto dentro de um

losango significa o ser humano, mas se for desenhada num contexto de arte funerária remete

aos espíritos dos mortos, os ancestrais.63

A cruz formada por duas linhas tem outro significado: a linha vertical une o

mundo dos vivos ao mundo dos mortos. A linha horizontal é a fronteira que divide os dois

mundos, freqüentemente representada pelas águas. Nessa linha, há duas figuras minúsculas,

destacadas nas extremidades. Didier Lahon supõe que representem os pregos que pregaram as

mãos de Jesus na cruz. Penso que as figuras representam os sujeitos situados na fronteira, no

mundo das águas, que podem morrer a qualquer momento. As duas figuras acima da parte

horizontal da cruz não são iguais. A da direita está circundada por linhas com movimentos

idênticos ao da sepultura ao pé da cruz. A figura da esquerda é mais simplificada.

O círculo com pequenos riscos em volta, localizado exatamente na intersecção da

cruz pode ser uma coroa de espinhos, uma das cinco chagas de Cristo, como pensou Didier

Lahon. Mas cabe observar que é semelhante ao círculo cheio de riscos que está ao lado

esquerdo. A diferença entre ambos é que a circunferência do lado esquerdo, situada abaixo do

sol, abriga outra circunferência, que está dividida internamente em seis partes, cujas linhas

partem de um ponto comum. Se observarmos o movimento do sol (no sentido horário), esse

círculo pintado de vermelho, refere-se ao momento do pôr-do-sol, justamente a hora em que

Cristo morreu. Na tradição baconga entre o pôr-do-sol e meia noite é o momento mais

profundo das almas desencarnadas da terra. O círculo dividido em partes iguais é o

movimento contínuo, cíclico – aquilo que nunca acaba.

Ao lado desse anel cíclico, localizado na “montanha do mundo dos vivos”,

símbolo da reencarnação, há uma coluna com linhas inclinadas, segurada por um pássaro e

por penas, que aparecem em movimento ascendente, em direção ao mundo dos vivos. Elas

62

Didier LAHON, Esclavage et Confréries Noires au Portugal durant l'Ancien Régime (1441-1830), Op.

cit., p. 109. 63

Robert THOMPSON & Joseph Cornet. The four moments of the sun: Kongo Art in two worlds. Revista

National Gallery of Art Washington. Nova York, p. 48.

Page 204: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

204

representam os espíritos dos mortos. A base triangular cheia de linhas em movimento é uma

referência à água, o mundo dos mortos, de onde o espírito saiu novamente para atravessar o

mundo dos vivos.

Do lado direito, há um desenho que lembra uma lua crescente, o contrário do sol e

à esquerda desse, outra gravura menor pintada de cor avermelhada, que parece um coração

com uma flecha trespassada de cima para baixo e uma espada fincada da esquerda para a

direita. Juntas formam uma cruz com pontas que indicam caminhos. Didien Lahon supõe que

fosse uma cruz de Santo André. Discordo. Lembra novamente o movimento do ciclo de toda a

vida da yowa: parece representar os quatro movimentos do sol, cujo ponto de intersecção é o

centro do coração, que simboliza a vida.

Há uma escada com degraus, todos em linhas verticais. Didier Lahon encontrou

similitude com a “poteau-mitan”, o pilar que fica no meio do templo do culto do voudou

haitiano, que servia como escada para os espíritos celestiais descerem para a terra e ficar em

meio aos homens, quando chamados pelos cânticos e atabaques. Creio que se trate de um

sentido mais complexo, como explica a cosmologia bacongo: a escada está localizada entre a

linha vertical (que leva o homem a Deus), e um arbusto (símbolo de vida). A escada é o meio

de ligação entre o mundo dos vivos e dos mortos. Não deve ser por acaso que ao pé da escada

está uma pequena figura humana com braços abertos, como se fosse subir por ela.

Do lado direto dessa grande escada há um tufo de penas feita com cor

avermelhada. A pena para os bantos é um indicador comum de aproximação com o mundo

dos espíritos.64

A metade do papel é exatamente onde se localiza a parte retangular da escada

carregada pelo pássaro, que faz alusão ao movimento da água. A água aparece ao meio,

porque divide o mundo em dois. A água separa o mundo dos vivos e dos mortos – é o elo de

transição. Para os africanos trazidos para o Novo Mundo, a travessia pelo Atlântico

significava a transição para o mundo dos mortos.

A parte inferior da linha é a kalunga, o mundo dos mortos. A pessoa que morre vai

para a kalunga e se torna completa, pois conhece os caminhos e poderes dos dois mundos.65 A

morte é o reflexo da vida. Há uma simetria plena da vida no mundo dos mortos. Duas caveiras

simbolizam a morte, seus ossos estão cruzados como uma cruz, A caveira está incrustada na

64

Marina de Mello e SOUZA. Catolicismo negro no Brasil, Op. cit., pp. 135-7. 65

Robert THOMPSON & Joseph Cornet. Op. cit

Page 205: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

205

pemba (a terra dos mortos). Dessa forma, a sepultura, simboliza o mundo dos mortos na sua

plenitude.

As duas figuras humanas atrás da sepultura, com braços abertos, como se fossem

assas, representam os espíritos dos mortos. A pena fincada ao lado da tumba é o símbolo

desses espíritos. Observe que a mesma pena aparece depois carregando a escada da esquerda.

Os desenhos do lado esquerdo, Didier Lahon interpretou como uma coroa e um

brasão real. Penso que se trata do portão de um cemitério encimado por uma coroa em

formato arabesco. Ladeando o portão do cemitério há duas figurinhas, que parecem dois

animais guardando o lar dos mortos, onde residiam os poderes sobrenaturais. Para mim é

nitidamente um brasão – símbolo de poder, de nobreza. Mas não saberia interpretar.

O que representariam os dois homens, um do lado direito empunhando um arco e

flecha, e o outro do lado esquerdo com um sabre curto? Didier Lahon viu como uma

“interpretação pouco clássica” dos soldados romanos da cena da Paixão de Cristo, o da

direita, com a lança que furou o flanco de Jesus, e o da esquerda estaria com uma vara com

esponja que passou na boca de Jesus quando ele teve sede. Divirjo novamente do autor. A

figura da esquerda é um negro, cuja carapinha aparece destacada, daí o arco e flecha. Do outro

lado, é a representação de um homem com espada e escudo. Minha interpretação é que depois

de atravessado o oceano, os negros acreditavam que estavam no mundo da kalunga, no auge

do seu poder sobrenatural. Portanto, aparecem com armas que lembram as usadas na África.

Um protege a escada que conduz aos dois mundos, o outro protege o cemitério, que guarda os

mortos. Cabe lembrar que no sistema do cosmograma bacongo, tudo que está na órbita da

circunferência da cruz, é o mundo da reencarnação.

A última caveira feita com sangue, abaixo da figura da outra caveira inserida num

desenho que lembra uma tumba, pode representar o poder supremo da morte ou os espíritos

que não estão aptos a regressar ao mundo dos vivos. Esses vagarão atormentando vivos. Para

cuidar destes há os banganga bisimbi (sacerdotes especializados no domínio do poder dessas

entidades da alta classe dos mortos – os bisimbi são esppiritos das águas...). Mas é importante

lembrar que a cor vermelha, sinaliza tradicionalmente transição e mediação para os bacongo.66

Como vimos, para alguns africanos do Brasil, especialmente, os vindos de São

Tomé, Congo e Angola, os símbolos do cristianismo não lhes eram estranhos. Na África

66

Robert Faris THOMPSON, Flash of the Spirit, Op. cit.

Page 206: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

206

Centro-Ocidental, os missionários portugueses estiveram presentes desde o final do século

XV, quando nobres do Congo foram convertidos. Portanto, a conversão não estava ligada à

escravidão, uma vez que a nobreza e muitas pessoas livres se converteram.

Diferente dos escravos vindos da África Central, que haviam passado por uma

experiência mais forte com o cristianismo na colônia angolana, os africanos da Guiné não

tiveram um contato importante com o catolicismo porque as missões ali foram rarefeitas, e

não havia igrejas nem padres para oferecer assistência correta nem aos nobres. A Guiné não

era uma colônia, como Angola e Brasil foram. Com exceção dos lançados, grumetes,

comerciantes, padres e funcionários da Coroa, havia poucos portugueses morando na região

dos rios da Guiné. Portanto, não se pode dizer que os africanos dessa região tenham sido

marcados pela experiência cristã. Entretanto, foram marcados pela heterogeneidade de povos

vizinhos, com os quais compartilhavam códigos culturais profundos, como a crença nos

poderes protetores dos amuletos.

Nikolay Dobronravin, especialista em estudos dos povos do Oeste da África

praticantes do Islã, ensina que os amuletos entre estes povos eram de uso muito comum. Ele

deu um exemplo dos fulanis, que usavam amuletos por vários motivos:

[...] para proteger-se contra um sultão; para proteger-se contra armas e também contra a

má sorte; amuleto contra as maldades dos homens e do diabo; para separar um casal, um

amuleto com pêlos de gato ou cachorro; para proteger os campos contra aves e grilos;

contra uma doença e também contra ladrões; para escapar de má sorte, parar atrair o bem e

para combater o adultério (todas essas funções em um único amuleto); um compêndio

com alguns amuletos para evitar uma queda, para não cair do cavalo, para vencer um

sultão injusto, para proteger o campo contra as aves e para vencer uma cidade inteira; para

obter presentes de um sultão, mesmo que seja avarento; para proteger um viajante contra o

mal, contra a guerra, para proteger-se contra a fuga de um escravo; para se fazer amar;

para proteger-se contra o fogo; para fazer o mal; para fazer aparecer um djin [espírito];

parar proteger as crianças; para proteger o gado; para ser respeitado como um leão; para

causar dores a um inimigo; para obter os bens de um inimigo.67

As missões cristãs que existiram entre os nativos da Guiné foram superficiais,

rarefeitas e duraram menos de meio século. Portanto os africanos embarcados para o Brasil,

oriundos dos portos de Cacheu, Joala, Cabo Verde, entre o fim do século e XVII e início do

XVIII não vieram marcados pela experiência com o cristianismo, a não ser o batismo no

navio. Mas esses povos já tinha tido um contato anterior com o Islã e outras crenças

tradicionais, que não implicava em abandonar as práticas tradicionais, mas na combinação de

67

Nikolay DOBRONRAVIN,“O Islã na África do Oeste e no Brasil”. Op. Cit., p. 37.

Page 207: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

207

todas. Se pensarmos a cultura como algo dinâmico, construída no contato com outras culturas,

e não como códigos de comportamentos, costumes e tradições puros e estáticos, entenderemos

que os africanos e seus descendentes deram significados velhos a práticas novas.

A bolsa de mandinga é o resultado da miscigenação ocorrida no mundo Atlântico.

Os primeiros processos aparecem em Lisboa, onde os povos da Guiné levados para o Reino,

“animistas” e conhecedores do Islã usavam amuletos e misturaram suas crenças em torno

destes com elementos do catolicismo. No Brasil, essas duas combinações se misturaram ao

conhecimento dos bantos em torno do poder do mundo dos espíritos, para dar mais poder aos

objetos que podiam ser dotados de poderes mágicos.

A Bolsa de mandinga é um produto do mundo atlântico da escravidão, da

colonização. Do contato entre diferentes culturas numa situação de opressão, infortúnio e

demonização de práticas não católicas. É o produto de misturas diversas, resultado de

processos ocorridos no mundo Atlântico, num momento de opressão do escravismo e de

preconceito contra o não europeu.

4.3. Sem irmandades nem calundus: mandingueiros na Bahia setecentista

A ação da Inquisição no Brasil tinha como foco os cristãos-novos e os praticantes

de sodomia e concubinato.68 Prova disso foram os resultados das primeira e segunda visitação

do Santo Ofício ao Brasil, em 1591 e em 1623, respectivamente.

Na América Portuguesa, os negros foram quantitativamente inferiores no total de

processos e denúncias. Mas cabe destacar que dentre as queixas, havia uma tendência do clero

e da população branca de demonizar as práticas mágicas dos negros.

O conhecimento das práticas mágicas dos negros no Brasil tem sido descortinado

por meio de estudo dos livros de devassa da justiça eclesiástica e de processos inquisitoriais

no século XVIII.69 Os processos arrolados pela Inquisição envolvendo práticas mágicas,

permitem ao historiador compreender as relações de tensão e conflito entre as diferentes

camadas da sociedade. Nos casos estudados aqui, é possível notar como vivia a população

rural, em relação a assistência religiosa dificultada pela escassez de padres e lonjura da

Capital. As práticas cotidianas da população pobre, liberta, escrava e até mesmo de brancos

68

Ronaldo VAINFAS, Trópico dos pecados. 2. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1989. 69

Laura de Mello e SOUZA. “As devassas eclesiásticas da Arquidiocese de Mariana: fontes primárias para a

História das Mentalidades” Anais do Museu Paulista, São Paulo, 1984, pp.65-73.

Page 208: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

208

no sertão da Bahia no século XVIII, envolviam o recurso às práticas mágicas combinadas com

o catolicismo.

Nos estudos sobre mentalidade colonial, nas quais destacam-se as pesquisas sobre

feitiçarias e práticas mágicas de africanos e seus descendentes, há uma tendência dos

historiadores a buscar nas denúncias as motivações dos supostos crimes contra a fé. A maioria

das pesquisas tendem a identificar a intenção deles em provocar malefícios contra os seus

senhores e as suas propriedades.70 Alguns realmente usaram o magismo para proteger-se do

senhor e dos perigos inerentes ao ofício que desempenhavam, buscando segurança e alivio no

contexto escravista. Mas o feitiço também foi usado como recurso contra desavenças

pessoais, e para resolver disputas entre libertos, entre escravos ou entre as duas categorias.

Há muitos casos de africanos e descendentes que foram perseguidos cuja atividade

visava apenas proteção pessoal e não malefícios contra alguém. Entretanto, a busca por

proteção e segurança por meio de magia, feita às escondidas, não eram bem vistas. Aos olhos

dos inquisidores, qualquer tipo de ajuda particular solicitada só poderia ser feito por meio de

pacto diabólico. Pois Deus só faz o bem a todos.71

Na primeira metade do século XVIII, um grupo de negros católicos, no sertão da

Bahia foi denunciado pela população ao vigário-geral João Mendes, que encaminhou as

queixas para a Inquisição de Lisboa. No coração do Império, vários negros estavam sendo

frequentemente presos por esse mesmo delito. As denúncias ecoaram forte aos ouvidos dos

inquisidores, que logo acataram as denúncias e solicitaram Sumário de Culpas dos negros. Os

familiares do Santo Ofício foram hábeis e auxiliaram na busca de testemunhas. Não demorou

para que os denunciados fossem enviados do porto de Salvador e atravessassem o Atlântico

para Lisboa.

A Inquisição não perseguia gentios pagãos. Somente cristãos. Por isso que na

África, tanto na Guiné como em São Tomé e Angola, a ação do Santo Ofício contra os negros,

não foi tão expressiva. Proporcionalmente, no Brasil e Portugal as práticas mágicas dos

africanos ficaram na mira dos zeladores do cristianismo.

70

James SWEET, “Not a Thing for white Men to see”: Central African Divination in Seventeenth-Century Brazil.

In: CURTO, José C. & LOVEJOY, Paul. Enslaving Connections: Changing Cultures of Africa and Brazil during

the Era of Slavery. New York: Humanity Books, 2004. André NOGUEIRA, Da trama: Práticas mágicas/feitiçaria

como espelho das relações sociais – Minas Gerais, século XVIII. Mnme – Revista Virtual de Humanidade, n. 11,

vol. 5, 2004. (Consultado no sítio www.seol.com.br/mneme)

71

Pedro PAIVA, Bruxaria e superstição num país sem caça às bruxas (1600-1774). Lisboa: Notícias Editorial,

1997.

Page 209: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

209

Como já apontamos no capítulo anterior, o africano trazido para o Brasil fazia

parte do projeto missionário de Portugal. A transmigração do africano era o meio pelo qual

ele seria retirado das trevas do paganismo e trazido à luz do cristianismo para obter a

salvação. Posto em contato com os europeus na Colônia da América Portuguesa, estes

comumente viram com temor as danças e músicas dos negros. Via-se o demônio em quase

todas as práticas dos negros que não tivesse um formato ibérico. Mesmo sabendo que muitos

negros vieram de lugares onde era marcante a presença do cristianismo, a exemplo do Congo

e Angola, suas manifestações de fé, foram vistas com desconfiança e não raro identificou-se o

Diabo como auxiliar das atividades em que os negros se envolviam.

A obrigatoriedade da instrução religiosa cabia aos religiosos e aos senhores. Em

decorrência das distâncias entre as paróquias da capitania que chegavam a cem léguas, era

impossível aos padres prestar assistência religiosa aos brancos e negros. Portanto, muitas

vezes, ficava sob a responsabilidade dos proprietários a instrução do escravo. A catequese do

escravo delegada ao senhor propiciou o catolicismo doméstico. A instrução superficial que o

escravo recebia permitiu que ele preservasse ou recriasse em certa medida sua vida espiritual

herdada dos antepassados.

O catolicismo ensinado pelos padres era “resumido”, fosse no ensino das fórmulas,

como na atribuição dos sacramentos. O Arcebispo D. Sebastião Monteiro da Vide declarou

que era preciso dar aos escravos apenas batismo, penitência, matrimônio e extrema-unção.72

O principal rito era o batismo. Em geral, era o mais praticado pelos proprietários,

que cumpriam as regras da Igreja e inseria o africano no mundo dos brancos. No contexto

colonial, para o africano também era importante deixar de ser pagão, diante da visão de

brancos e negros. O viajante inglês Koster, ao discorrer sobre o catolicismo praticado pelos

escravos em Pernambuco no início do século XIX, ressalta que era grande insulto quando um

negro chamava o outro de pagão.73

Em fins do século XVII Pedro Barbosa Leal descobriu ouro em Jacobina. A

informação foi abafada. Mas o povo foi em busca do ouro e começou uma exploração

clandestina. Em 1705, já havia ordem da Coroa para construção da Igreja da Matriz. A

liberação das minas em 1722 provocou a criação da vila em 1725. A elevação a vila, indica

72

Henry KOSTER, Viagens ao Nordeste do Brasil. Trad. de notas de Luiz da Câmara Cascudo. Companhia

Editorial Nacional, 1942. [1809-14] 73

“O próprio escravo deseja ser cristão porque seus companheiros em cada rixa ou pequenina discussão com ele,

terminam seus insultos com oprobriosos epitetos, com o nome de pagão! O negro não batizado sente que é um

ser inferior e mesmo não podendo calcular o valor que os brancos dão ao batismo, deseja que o estigma que o

mancha, seja lavado, ancioso [sic] de ser igual aos camaradas”. Henry KOSTER. Viagens a Nordeste do

Brasil. Companhia Editora Nacional, 1942, pp. 498-9 (grifos do autor).

Page 210: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

210

que já havia uma considerável população. Ao mesmo tempo foi criada a paróquia. A liberação

da exploração das minas de ouro era apenas a oficialização de algo que já era conhecido de

todos na Bahia, mas causou uma afluência de gente: portugueses e africanos foram morar em

uma região que era habitada pelos “tapuias”.

No ano de criação da vila, o conde de Sabugosa, Vasco Fernandes César de

Menezes, vice-rei do Brasil, enviou carta ao rei D. João V. Informava sobre a devassa que

instalou na vila de Jacobina em decorrência de casos de mortes com arma de fogo ocorridos

antes de se erigir a dita vila.74 Quatro meses depois dessa carta, a vila foi erigida. Com isso,

também instituído a cobrança do quinto. Para evitar desvio do ouro, dois anos depois foi

criada a casa de fundição de Jacobina.75

Em 1747, o padre Jose Monteiro solicitava mantimentos para a Igreja de Santo

Antônio.76 Entre 1725 e 1750 houve envio regular de ouro para o Reino, conforme consta das

várias correspondências enviadas pelo vice-rei do Brasil comunicando o envio do ouro de

Jacobina pelas naus que seguiam. Ao que parece houve diminuição do ouro fundido devido ao

contrabando. A Coroa mandou fechar a casa de fundição de Jacobina em 1750 para reabri-la

em 1752. Em 1755, o vice-rei decreta novamente o seu fechamento e transferência para Rio

de Contas ou Minas Novas de Arassuahy.77

Em Jacobina que era o núcleo mais urbanizado da região, distante sete léguas do

povoamento de Riachão, foi criada uma Irmandade de Nossa Senhora do Rosário pela

provisão de 10 de outubro de 1747. No capitulo 1 do Compromisso da Irmandade, que trata

da formação da Mesa, diz que será composta por 3 juizes, 1 escrivão, 1 tesoureiro, 2

procuradores e 6 mordomos, “que não seja escravo ou filho de famílias [escrava]”.78 Tratava-

se de uma irmandade de brancos. Nesse Compromisso, há uma alusão da existência de uma

74

Catalogo de documentos manuscritos avulsos referentes a capitania da Bahia existentes no Arquivo

Ultramarino, Projeto Resgate. Doc.1834, caixa: 20. 75

Catalogo de documentos manuscritos avulsos referentes a capitania da Bahia existentes no Arquivo

Ultramarino, Projeto Resgate. Carta do vice rei e capitão general do estado do Brasil, conde de Sabugosa,

Vasco Fernandes César de Meneses ao rei D. João V sobre o estabelecimento de Casas de Fundição na

Jacobina e rio das Conta. 30/07/1727, doc. 2769 Caixa: 30. 76

Catalogo de documentos manuscritos avulsos referentes a capitania da Bahia existentes no Arquivo

Ultramarino, Projeto Resgate. REQUERIMENTO do padre José de Sousa Monteiro ao rei D. João V

solicitando alvará de mantimento na igreja de Santo António de Jacobina do Arcebispado da Bahia.

09/08/1747. Doc. 7357, caixa 90. 77

Catálogo de documentos manuscritos avulsos referentes a capitania da Bahia existentes no Arquivo

Ultramarino, Projeto Resgate. Doc. 9706,Caixa 124. 78

Segundo e Novo Compromisso para a Irmandade de Nossa Senhora do Rosario, da Villa de Santo

Antonio da Jacobina, por Provizao de 10 de outubro de 1747, lançada no primeiro Compromisso, por

cujos estatutos até agora se tem regido. Arquivo Público do Estado da Bahia, Seção Provincial, Presidência da

Província. Maço 5270, fl.2.

Page 211: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

211

confraria ao Divino Espírito Santo, também de brancos. A população de toda a Comarca, em

fins do século XVIII, estava estimada em 24 mil habitantes.79

Riachão, o local onde ocorreu o fato do qual tratarei agora, era um aglomerado de

moradores, que se formou pela proximidade das minas de ouro, como Canavieyras. Fazia

parte dos “campos” da villa de Santo Antonio da Jacobina, onde havia Igreja desde o início do

século XVIII. Diferentemente da sede, em Riachão não tinha Igreja, nem padre. A população

só recebia assistência religiosa no tempo da desobriga, em geral, na quaresma. A atividade

principal dos moradores era o abastecimento das minas de ouro com provimentos. Ali

moravam alguns senhores que possuíam escravos e os enviavam para as minas. Bem como se

produzia algum tipo de alimento.

Na dispersão da vasta capitania da Bahia a constituição de espaços de

sociabilidade era mais difícil. Por isso a busca individualizada por proteção. Os amuletos, que

estarão no centro do episódio a ser reconstruído, são formas de se recorrer às forças invisíveis

que dispensam organização de um local de culto, de estrutura eclesial, de atividade

devocional, como as existentes nos calundus e mais tarde nos candomblés.

Roger Bastide ao analisar as “continuidades” das religiões africanas no Brasil

afirmou que estas se conservaram mais nas áreas de plantações açucareiras do Nordeste. Nas

áreas onde havia maior concentração de africanos, era possível criar instituições como as

confrarias, festas de reis congo, calundus, candomblés. O mesmo não teria acontecido nas

zonas de mineração, de criação de gado e nem nos sertões.80

Nesse ponto, é importante

observar que a dispersão pelo vasto sertão, a lonjura das Igrejas, o descuido dos senhores, o

catolicismo já impregnado de sincretismo dos colonos que aqui residiam, a ausência de

padres, tudo isso deu abertura para florescer um catolicismo modificado, que permitiu aos

escravos o uso de referenciais africanos para se protegerem. Mas o catolicismo era

insuficiente para solucionar os problemas da vida de infortúnios e medos que os escravos

enfrentavam.

Conforme demonstramos, havia poucas paróquias e igrejas no sertão da Bahia na

primeira metade do século XVIII. Quando os africanos e seus descendentes se tornaram alvo

das denúncias, por volta de 1740, eles residiam em área relativamente urbanizada, como a vila

de Jacobina e/ou no sítio de Riachão, distante 30 quilômetros da sede da vila. Alguns

nasceram em outras vilas como Cachoeira, onde também havia paróquia e igrejas. Daí, a

explicação porque todos os envolvidos no porte de bolsas de mandinga e de roubo de hóstia

79

Kátia Mattoso Bahia, Século XIX. Uma província no Império. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992. 80

Roger BASTIDE. As Religiões Africanas no Brasil. São Paulo: Pioneira, 1989, pp. 73-4.

Page 212: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

212

que são alvo dos processos aqui analisados eram instruídos no catolicismo. São as seguintes

as personagens desse enredo.

O escravo João da Silva nascera em cerca de 172481 em Luanda, Bispado e Reino

de Angola, e teve seu processo de doutrinação ainda em terras africanas, conforme confessou

ao inquisidor que o inquiriu:

Disse que não sabe quem foráo seus paes e avos paternos e maternos porque sahio muita

creança de suas patria e deles nao tem noticia nem sabe com fundaçao algúa mais do que

serem todos pretos da Costa de Angola.

E que elle hé christáo baptisado e o foi na Cidade de Loanda mas não sabe quem nem em

que Igreja e menos quem foraó seus padrinhos.

E que elle ainda naó he chrismado.

E que elle tanto que recebeo o sacramento do Baptismo e lhe encinarao a doutrina Christá

hia as Igrejas e nellas ouvia a Miça e pregação e se confeçava e comungava e fasia as mais

obras de christao.

E logo foi mandado por ... Alguns signaes e benzer e diser a doutrina e saber Padre Nosso

Ave Maria Salve Rainha Credo e os mandamentos da Lei de Deos e aos da Santa Madre

Igreja e tudo o soube.82

Pela confissão de João da Silva, tratava-se de alguém que conhecia a doutrina e os

mistérios da fé. Disse também que recebeu a bolsa de Manoel, escravo fugido que pertencia a

dois padres: Luiz da Rocha e Manoel da Rocha, moradores do Rio dos Cágados, nos campos

da Jacobina.

José Martins, homem preto, livre, filho de Leandro Martins e Josefa Martins,

ambos pretos e forros. Dissera não saber a origem de seus pais e nem deus avós, por já serem

todos falecidos. Contava 22 anos quando foi preso. Era casado com Luíza mulher parda,

natural e moradora do Sitio de Riachão, termo da Vila de Jacobina.83 Contou que foi batizado

na freguesia de Nossa Senhora da Oliveyra do Sobaé, Arcebispado da Bahia. Jose Borges de

Oliveyra e Antonia de Andrade foram seus padrinhos. Não era crismado, mas ia à Igreja,

ouvia missas e pregação, se confessava, comungava e fazia outras obras de Cristo. “E sendo

mandado por dizer persignar e benzer, fez, e disse a doutrina christã a saber: Padre Nosso Ave

Maria, Creyo em Deus Padre, Salve Rainha, que soube mas não lembrava os fundamentos da

Lei de Deos e aos da Santa madre Igreja.” Respondeu que nunca tinha ido a outros lugares do

Reino. Que ele e nem os seus parentes nunca foram denunciado ao Santo Oficio.84

81

Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Inquisição de Lisboa. Processo n. 502 - Escravo João da Silva, natural de

Angola. Quando foi preso, em 1754, declarou ter cerca de 30 anos de idade. 82

Idem. Genealogia, p. 44. 83

Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Inquisição de Lisboa. Processo n. 508 – José Martins, livre, natural de

Jacobina. 84

Idem, pp. 72-83.

Page 213: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

213

Luiz Pereyra de Almeida, crioulo, filho de congolês, natural da vila de Jacobina,

morador do sitio do Riachão, Arcebispado da Bahia, escravo de dona Antonia Pereira de

Almeida. Seus pais se chamavam João Correa, natural do reino do Congo, escravo de João

Rodrigues; sua mãe era Ignacia Pereyra, preta forra, natural de Jacobina; não sabia se seus

avós eram mortos, pois não os conheceu. Era casado com Maria Ferreyra. Disse que foi

batizado na Igreja do Senhor Bom Jesus da Vila de Jacobina. Seus padrinhos foram David de

Mattos e Luiza da Rocha. Não era crismado, mas assim que chegou a idade “de juízo” e

“iniciação” já ia para as igrejas ouvir missa e pregação; confessava-se, comungava-se e fazia

tudo mais que era comum aos cristãos. O inquisidor o mandou persignar, rezar o Padre Nosso,

Ave-Maria, Salve Rainha e Creio em Deus Padre, Mandamentos da Lei de Deus e da Santa

Madre Igreja. Ao que tudo fez.

Matheus Pereyra Machado, natural da freguesia de São José da Pororoca, distrito

da Vila da Cachoeira, morador nos campos da mesma vila, e assistente ao campo de Santo da

Jacobina. Era filho de Jacinta de Andrade Nogueira preta, escrava85 e de José de Castro, preto,

escravo de Costodio de Castro. Seu pai era natural dos campos de S. Simão, e sua mãe de

Salvador. Moravam no sítio do Jacoipe, limite da Vila da Cachoeira. Disse não saber quem

foram seus avós maternos e paternos porque não os conheceu nem ouviu dizer quem eram.

Confessou que foi batizado na Igreja e freguesia de São José da Pororoca. Sua madrinha foi

Catherina de Sá Mestiça, seu padrinho Mathias Cabaleiro. Não tinha certeza dos nomes

porque foi batizado ainda muito pequeno. Declarou que recebeu o sacramento da Crisma na

mesma freguesia onde foi batizado.86 Recordava bem que desde os primeiros anos de juízo, ia

às igrejas, ouvia missa e pregações, confessava-se com o padre, comungava e fazia as mais

obras de Cristão. Sabia fazer o sinal da cruz, o Padre Nosso, Ave Maria, Salve Rainha, Credo,

os Mandamentos da Lei de Deus e os da Santa Madre Igreja. Era solteiro e sem filhos. Não

sabia ler nem escrever nem aprendeu ciência alguma. Jurou que nunca saiu fora dos domínios

de Portugal e residiu apenas o nos Sertões do distrito da Vila de Santo Antonio da Jacobina,

Arcebispado da Bahia.

Todos eles, portanto, nascidos no Brasil ou na África central, tinham tido instrução

religiosa, da qual retiveram o suficiente para mostrar aos inquisidores que conheciam rezas,

85

Matheus Pereyra Machado disse que sua mãe era forra, mas no Sumário de Culpas de José Martins, Francisco

Arão Nogueira, informou ao padre que a mãe de Matheus era sua escrava. Sumário de Culpas do processo de

José Martins, p. 55-6. 86

Processo de Matheus Pereyra Machado, n. 1131, p. 21.

Page 214: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

214

gestos e comportamentos próprios de um cristão. Eram todos parte de uma cultura crioula,

constituída no Brasil ou na África.

Por volta de 1740, João da Silva87 foi denunciado ao padre João Mendes e preso

numa das celas da pequena cadeia pública de Jacobina. Depois de algumas fugas, foi preso

novamente e enviado para Lisboa em 1752. Juntamente com ele foi encaminhado um Sumário

de Culpas, no qual foram arroladas 12 testemunhas, que atestavam a culpa de João da Silva.

Pairava sobre ele a denúncia de portar uma bolsinha de couro que continha objetos cristãos

furtados da Igreja: um pedacinho de pedra d‟ara, e pedacinhos de hóstia consagrada colocada

em um papel com uma oração escrita, que foi dobrado com as partículas; e tinha também

chumbo. Além da crença no poder dos elementos cristãos, interessante observar a crença

depositada no poder do chumbo posto na bolsa, como elemento capaz de defender de armas.88

O escravo João da Silva nasceu em torno de 172489 em Luanda, Bispado e Reino

de Angola, onde tivera seu processo de doutrinação cristã ainda em terras africanas. Pela

confissão de João da Silva, tratava-se de um cristão que conhecia a doutrina e os mistérios da

fé. Mas, deixou de ser um escravo anônimo para a história do Atlântico desde que recebeu e

guardou uma bolsinha de couro contendo uma hóstia consagrada.

Ao desembarcar em Salvador, por volta de 1734, ainda criança, ele foi levado para

a fazenda Olho do Peixe, no “Sertão destricto da Villa de Santo Antonio de Jacobina”. Era

escravo de Manoel Corrêa do Lago. Confessou que um dia, por volta do ano de 1745, estava

na fazenda e passou Manoel de Barros, escravo de dona Ana Antonia de Barros, que fugia de

Minas Gerais e estava passeando ou passando pela Bahia. Embora Manuel tenha lhe dado essa

informação, seis das doze testemunhas arroladas no processo, contaram que o escravo era

conhecido por Manuino e pertencia a dois padres: Luiz da Rocha e Manoel da Rocha,

moradores do Rio dos Cágados, nos campos da Jacobina.

João Curto deu hospedagem e algumas coisas para Manoel comer e continuar a

jornada. Em troca, este lhe ofereceu

de mimo hua bolsinha de couro cozido sem outra abertura dizendo lhe que naquella

bolsinha lhe dava h‟ua reliquia, e perguntando elle conflitante ao dito preto que relíquia

87

Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, n.o

502. Processo de João da Silva. O escrivão

indica que era conhecido por sua alcunha: João Curto ou João preto e por vezes o chama pelo nome de sua

“nação” João Congo. (Agradeço ao padre Carlos Eduardo B. Sanchez o envio de Portugal dos microfilmes desse

processo, bem como os de José Martins e Luís Pereira de Almeida). 88

Na Colônia, a proibição que havia nas Ordenações para não dar armas aos “inimigos infiéis”, ou seja, os

mouros, foi estendida aos índios e aos negros. 89

Idem. Quando João Curto foi preso, em 1754, declarou ter cerca de 30 anos de idade.

Page 215: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

215

era mesmo lhe respondeo que tinha dentro hua particula Comsagrada, eim quisendo elle

mais o para que servia a ditta sagrada reliquia lhe tornou a dizer o dito preto que era boa

para livrar do gentio da terra, e este lhe não fiseze mal lhe encomendou que fiseze

escrever por algum menino o nome dele comfitente e o metesse dentro da ditta bolsinha, e

que pagasse a algu Acóllito para lhe por debaixo da pedra de Ara numa bolsinha para que

o Padre que fosse dizer Missa naquelle Altar a celebrasse sobre ella e por este modo

ficasse benta denovo e mêsmo dando lhe tambem muito que a estimase porque elle a

trazia consigo havia muitos annos, nunca lhe sucedera mal algum.90

João da Silva era vaqueiro e mineiro; escondera a dita bolsa em buraco feito na

parede do casebre onde dormia. Passados uns dois meses que estava em poder do presente que

ganhara, o feitor da fazenda mandou que ele fosse buscar farinha num sítio chamado Piango,

situado a trinta léguas dali. Com medo de seguir viagem sozinho, João retirou do esconderijo

a bolsa de mandinga, a pôs em sua algibeira e seguiu sua jornada. Ao passar pelo sítio,

denominado Recongo contou a Manoel da Silva, contratador de gados, cunhado de José

Ribeiro, Senhor do dito sítio, que tinha uma bolsa que ganhara, mas não sabia o que havia

dentro. O contratador descoseu-a um pouco para ver o que continha. Dissera-lhe que havia

uma oração de São Marcos, e mandou que ele procurasse alguém que soubesse ler para ajudá-

lo, pois ele mesmo não sabia, e devolveu-a. João Congo perguntou-lhe se a oração que havia

dentro era “boa para trazer ao seo corpo”. Manoel da Silva, temendo as conseqüências, disse

nada saber sobre aquilo.

João da Silva seguiu sua jornada para buscar a farinha com a dita bolsa e depois

retornou ao sítio de morada. Ao chegar, o seu senhor, o mandou ir até à Vila de Jacobina levar

umas galinhas para sua senhora, e foi junto. Ao chegarem em Jacobina, Manuel Correia foi

com ele até a casa do vigário-geral. Era uma armadilha para o escravo. O padre João Mendes

já sabia há muito tempo da história da bolsinha. Fora preso pelos oficiais em flagrante: ele

estava com a bolsa na algibeira. O padre abriu-a em presença de todos pra que vissem o

conteúdo. Havia uma pedrinha quadrada, um dente de alho, um grão de chumbo, um papel

com a oração de São Marcos escrita, e embrulhada neste uma hóstia consagrada.91

Não demorou, e o escravo fugiu da cadeia para a fazenda do seu senhor. O padre o

mandou prender novamente. Voltou a fugir para o mesmo lugar. Mas foi preso pela segunda

vez, e desta feita, enviado para Salvador e de lá para Lisboa.

Em Lisboa, insistiu dizendo aos inquisidores que ganhara a bolsa do dito preto

Manoel, escravo dos padres, e que este dissera que a bolsinha era “relíquia boa”, e que dentro

90

Idem. Confissão de João Curto, pp. 23-41. (Grifos meus) 91

Idem, ibidem

Page 216: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

216

havia uma “partícula consagrada”. Declara também que quando recebeu a dita bolsinha não

sabia que obrava mal em trazer junto ao corpo uma “partícula consagrada”. Apelou para a sua

rudeza: disse que a usou “por ignorar o que continha a ditta bolsinha”, e não podia depor se

realmente o que continha ali era ou não consagrada.”92

João da Silva, de alcunha João Curto, por ter porte atarracado, fez parte dos

escravos que já chegavam ao Brasil da África Centro-Ocidental, marcados pela convivência

com europeus e com o catolicismo.

Na mesma área onde morava o angolano João Curto, poucos anos depois, dois

escravos crioulos e um negro livre foram enviados também para Lisboa. A denúncia era a

mesma, o porte de bolsas de mandinga com suspeitas de pacto diabólico.

Pelos idos dos anos de 1740, Matheus Pereyra, escravo, morador do Riachão, Vila

de Jacobina, foi ter com José Martins, preto crioulo, livre. Este dissera a Matheus que tinha

uma bolsa de mandinga, e queria vender, pois precisava de dinheiro. Fez propaganda da bolsa.

Disse que continha uma oração dos santos nomes de Jesus e outra de São Cipriano. Mais do

que isso: a bolsa tinha a virtude de livrar a quem a trazia de ser ferido e de lhe suceder algum

mal; ao que ele confidente respondeu que queria comprar. Pagou com um cachorro que valia

4 mil réis. Dali por diante carregou a bolsa consigo para o fim de não ser ferido e de não lhe

suceder nenhum mal. Jurou que não teve ocasião de ter de experimentar. Passado um mês,

Matheus foi flagrado com a bolsinha por Manoel Arão, que a entregou ao vigário geral. O

padre achou nela “um sangoinho, um pedaço de pedra de cera e huás orações”. 93

Pesava sobre Matheus a notícia de que tinha duas bolsas. A primeira foi

conseguida com José Martins94. A segunda envolveu uma trama mais complexa. Poucos dias

depois dele comprar de José Martins a bolsa de mandinga foi à casa de Luiz Pereyra Porto,

cunhado do seu primeiro senhor Francisco Arão para fazer a desobriga com o coadjutor da

freguesia.

O padre secular Antonio (não sabe de quê) foi realizar uma missa de desobriga da

Semana Santa no sítio de Riachão, nos campos da vila de Jacobina. Matheus Pereyra de

Almeida foi assistir à missa, confessou-se e participou da Sagrada Comunhão do Corpo de

92

Idem, ibidem. 93

Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, n.o

1131. Processo de Matheus Pereyra Machado,

escravo de Veríssimo Pereira, Mineiro, solteiro, filho de José de Castro, natural da Freguesia de São José da

Pororoca, limite da Vila da Cachoeira, morador nos campos da mesma vila e assistente na de Santo Antonio da

Jacobina, p. 12. 94

Esse nome aparece grafado de diversas formas: Jose Martins, Jozé Martins, Jozeph Martins. Por conveniência,

adotarei a grafia modernizada: José Martins.

Page 217: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

217

Cristo. Por falta de Igreja no referido sítio, a desobriga dos fregueses foi realizada em casa da

família Arão. Matheus disse que viu o padre consagrando as “partículas” (hóstias) e dando-a a

“todas as pessoas daquela casa e sitio”. Inclusive Mariana Pereyra, moça branca, natural da

freguesia de Nossa Senhora das Oliveiras dos campos da Cachoeira, moradora no sítio de

Riachão, com seus pais Luiz Pereyra Porto, natural do Porto e de Agueda Nogueira.

Depois de dados os sacramentos obrigatórios, houve um jantar em casa do pai de

Mariana. Matheus se aprontou para ir embora, pois morava perto do rio. Quando já estava

montado no cavalo, Mariana o chamou da porta principal da sua casa e perguntou se ele

queria uma “relíquia”,95 que estava embrulhada em um papel. Ele aceitou, mas lamentou não

ter onde colocá-la. Mariana teria lhe dito que faria uma bolsinha. Na manhã do dia seguinte,

ela entregou a ele uma “bolsinha quadrada de seda encarnada (...) presa a um cordão de

retrós”. O escravo pendurou-a ao pescoço. Não sabia o que continha “pelo não examinar nem

a dita mariana lhe dizer”.96 Tendo passado seis dias que portava o mimo que lhe dera a moça

branca, ficou curioso por saber o que continha. Foi procurá-la novamente. Ela não lhe

declarara “donde nem como”. Passados três dias desse encontro, ele caiu num atoleiro. Todo

sujo de lama, passou na casa onde morava o crioulo Luiz Pereyra de Almeida (escravo de

dona Antonia Pereira, viúva de Mathias Cardoso, mas casada novamente com o sargento-mor

Faustino Pereyra). O escravo Matheus pediu ao crioulo, que se encontrava doente do pé, para

fazer-lhe o favor de guardar as suas roupas e a bolsinha. O enfermo pendurou-a em um torno

da casa. Matheus, a mando de dona Antonia, guiou uns cavalos para o sítio de Itapicuru,

distante sete léguas. Permaneceu cinco dias fora. Retornou para casa de seu senhor e depois

foi visitar seu amigo, o escravo Luiz Pereyra, que ainda continuava enfermo.

Ao retornar à casa de Luiz Pereyra, esse lhe informou que sua senhora, dona

Antonia Pereira, soubera da história da bolsa, foi à casa dele, tomou a bolsinha, descoseu-a,

examinou-a, viu que tinha uma hóstia e a levou ao vigário geral.

95

Nos documentos da Inquisição, as hóstias são chamadas de “partícula” ou de “relíquia”. O termo relíquia no

Bluteau refere-se aos restos mortais dos santos mártires, que obravam milagres e protegiam as cidades. Infiro

que a extensão do termo para as hóstias seja porque se trate de uma “partícula” do Corpo de Cristo que é

sagrada, segundo a idéia da transubstanciação. “Relíquias. Assim se chamam os pedaços da Cruz & outras

coisas sagradas, das quais usou nosso Senhor Jesus Christo na vida, ou as quais regou com seu Divino Sangue

no tempo da sua paixão, & o mesmo nome se dá ao corpo ou alguma parte do corpo, ou vestidutra, ou outras

coisas santificadas pelo contato de algum santo. O culto das santas relíquias é relativo; é muito antigo, e foi

confirmado por muitos Concílios. (...)”. A grafia da citação foi atualizada para o português contemporâneo.

Rafael BLUTEAU. Vocabulario portuguez, & latino, authorizado com exemplos dos melhores escritores

portuguezes, & latinos, e offerecido a elrey de Portugal Dom Joam V. pelo padre D. Raphael Bluteau. Lisboa:

Na Officina de Pascoal da Sylva, 1716, pp. 223-4. 96

Processo de Matheus Pereyra Machado. Op. cit., pp. 11-2.

Page 218: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

218

Matheus confessou que foi levado a assumir a culpa em lugar de Mariana Pereyra

ao ser preso na vila de Santo Antonio da Jacobina em 1750. Quando estava preso nos estaos

secretos da Inquisição de Lisboa pediu, por meio de seu curador, duas audiências com o

Inquisidor Joaquim Monteiro. A primeira foi em 11/05/1753. A segunda, dois meses depois,

em 09 de julho. Tinha declarações importantes a fazer. Disse que foi induzido a cometer falso

testemunho contra si próprio. Achava que Mariana estava se vingando, porque ele havia

matado a pauladas um porco dela, pelo fato da dita moça ter sido falsa com ele. Entretanto,

enfatizou que suas declarações contra a mesma não era porque estava magoado.

Os escravos Matheus Pereyra e Luiz Pereyra de Almeida foram presos na cadeia

de Jacobina. José Martins fugiu. Em seguida, todos foram soltos.

Matheus fizera as declarações incriminando Mariana em sua primeira confissão

aos inquisidores. Na segunda confissão revelou que Mariana e sua irmã Ignácia Florinda

tinham em poder delas outras relíquias, inseridas em bolsinhas e bentinhos.97

Luiz Pereyra de Almeida, crioulo, 25 anos, preso juntamente com Matheus

também contou sua versão. Ele jurava inocência na trama. Declarou que sua senhora, dona

Antonia Pereyra, mandou chamar em sua casa o escravo Matheus Pereyra, que trabalhava

como almocreve. Certamente era um escravo de aluguel. A almocrevaria consistia na

atividade de transportar animais de carga, com mercadorias para as minas de ouro, localizadas

próximas da localidade de Riachão. Aproveitando a ocasião, Matheus teria pedido à Luiz

Pereyra que guardasse consigo uma camisa dele juntamente com uma bolsinha vermelha,

porque ia fazer uma jornada longa e não poderia levar junto. Luiz Pereyra disse que nesse

momento estava acamado e mandou que Matheus pendurasse as coisas em um torno que

estava pregado na parede da casa de sua senhora. Esse assim o fez e seguiu em sua jornada

com as cargas. Ao chegar nas minas de Canavieyras, o sobrinho do senhor de Matheus, viu o

escravo dormindo no chão com uma bolsinha. Pegou-a a e levou ao seu pai Manoel Arão, que

a abriu. Viu que continha “hum sanguinho, hum pedaço de pedra de ara e huns papeis de

97

O escapulário fazia parte do hábito dos monges monacais. Consistia em duas tiras de pano, usadas sobre os

ombros para evitar o incômodo do capuz. Os bentinhos eram medalhinhas benzidas e usadas pelo povo por

devoção, como se fossem os escapulário ou hábito dos monges. R. BLUTEAU. Op. Cit. Os amuletos que

apareceram nas formas de escapulários, bentinhos, breves e bolsas de mandinga foram práticas comuns entre as

classes populares de Portugal no início da Europa Moderna. Em seu estudo sobre os mágicos da Diocese de

Coimbra do século XVIII, José Paiva já notara que os amuletos eram usados porque tinham função protetora.

Dentro deles geralmente havia substâncias naturais, como ervas, pedrinhas de minerais, raízes, cascas de frutos,

além de objetos sagrados, como hóstias ou suas partículas e orações invocatórias aos santos. José Pedro PAIVA.

Práticas e crenças mágicas. O medo e a necessidade dos mágicos na Diocese de Coimbra. Coimbra: Livraria

Minerva, 1992; e Bruxaria e superstição num país sem caça às bruxas (1600-1774). Lisboa: Notícias

Editorial, 1997.

Page 219: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

219

oracoens que continham palavras blasfemas”.98 Mateus foi repreendido por seu senhor. Com

medo, confessou que tinha duas bolsas: aquela que acabaram de achar e a outra que tinha

dado a Luiz Pereyra para guardar. Manoel Arão comunicou o ocorrido à Antonia Pereyra,

senhora de Luiz. Mas este revelara que a bolsa já não estava mais com ele, pois quando estava

só em casa de sua senhora, José Martins, preto livre, estivera lá, e ao ver a bolsinha, levou-a.

Mandaram-no ir recuperá-la.

Como havia dois escravos envolvidos no caso, seus proprietários entraram no caso

para evitar maiores complicações, como perdê-los para a justiça eclesiástica e posteriormente

para o Santo Ofício. Dona Antonia, senhora de Luiz Pererya, achou que se precipitando ao

padre, contando-lhe pessoalmente o que todos já deviam comentar, livraria o escravo da

prisão e evitaria perdê-lo para o Santo Ofício. O dono de Matheus, Veríssimo Pereira nada

fez. Mas seu irmão Manoel Arão (por conseguinte, tio de Mariana) tomou as dores do caso.

Entregou a bolsa ao vigário geral João Mendes e o próprio Luiz.

Luiz declarou ao inquisidor que, somente quando estava preso, entendeu que havia

contribuído ingenuamente com o delito de Matheus. E acrescentou que no período em que

estiveram encarcerados juntos na cadeia de Jacobina, Matheus lhe fizera duas revelações: a

partícula da bolsinha vermelha que deixara sob sua guarda, era consagrada, pois a tinha tirado

da boca, sob conselho de José Martins, quando fora comungar. A segunda bolsinha ele disse

que comprou do mesmo José, que a vendeu por 4 mil réis.

Os três foram levados juntos para Lisboa colocados no mesmo cárcere. Luiz

Pereyra confessou-se e revelou três fatos mais agravantes. Disse que Matheus estava

forçando-o a declarar falsamente que foi Mariana quem roubou a hóstia. Reforçou que José

Martins foi quem pegou a bolsa que estava em sua casa. Também disse que esse ameaçou

vingar-se dele. Os inquisidores duvidaram de suas declarações, e acharam que suas culpas

eram bastantes o suficiente para ser encarcerados nos estaos secretos sem seqüestro de bens.

Em sua confissão, José Martins contara ao inquisidor a sua versão da história.

Disse que um dia estava no sítio de dona Joana de Andrade, plantando fruta no campo (o que

configura um sistema de arrendamento de terra ao negro livre). Chegou lá o crioulo Luiz

Pereyra, escravo de dona Antonia. Este parou para conversar e disse que estava indo a mando

de sua senhora, levar uma pouca de farinha à Manoel Pereyra dos Santos, vizinho da mesma.

Aproveitando a ocasião, o crioulo teria pedido a José Martins que guardasse a bolsa em lugar

seguro “porque estimava muito a dita bolsa em razão de ser boa e útil para tudo que quisesse”.

98

Processo de Luiz Pereyra de Almeida, escravo de Verissimo Pereira, n. 1134, 1756, p.13.

Page 220: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

220

Por esse motivo, José a guardou em sua algibeira e levou para sua casa. Luiz voltou cinco dias

depois para buscar a dita bolsa. Dissera que precisava tê-la de volta, pois precisava recuperá-

la por ordem e mandado de sua senhora dona Antonia e de Manoel Arão. José, desta feita,

estava na roça plantando milho, foi rapidamente em sua casa, buscou a bolsinha e perguntou o

que tinha dentro dela. Luiz contou que era uma hóstia consagrada e que pertencia ao preto

Mateus Pereyra, que a tirara da boca na hora da comunhão.99

José Martins, desesperado disse que “estavam perdidos”, mas o escravo Luiz

Pereyra o acalmara dizendo que não era nada, pois sabia de muitas pessoas que tinham bolsas

com partículas sagradas na região e que nem por isso lhes ocorriam mal algum.

José Martins acompanhou o crioulo Luiz Pereyra até a casa do branco Luiz Pereira

Porto, pai de Mariana. Chegando lá, entregaram a bolsa à Manoel de Arão. José Martins

confessou aos brancos aquilo que Luiz lhe contara: Mateus Pereira furtou uma partícula

consagrada durante uma missa, “tirara da boca antes do tomar o lavatório e a guardara para

trazer consigo”.100 Tão grave quanto essa acusação contra Matheus, foi a que o próprio

Matheus fez contra o negro livre, quando disse que adquiriu de José Martins sua primeira

bolsa pagando-a não com dinheiro, mas fazendo a permuta por um cachorro.

O inquisidor interpretou que José Martins guardara maliciosamente a bolsa com o

fito de saber o que tinha dentro para aproveitar-se dela em tudo que lhe fosse conveniente.

99

Processo de Jose Martins, n. 508, 1750, livre, natural e morador do Sítio de Riachão, termo da vila de Santo

Antonio da Jacobina. Inquisição de Lisboa, Arquivo Nacional da Torre do Tombo. 100

Idem.

Page 221: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

221

Fotografia atual do sítio de Riachão, distante 30 km da sede da antiga vila de Santo Antonio

da Jacobina, onde moraram os brancos e negros envolvidos na trama das bolsas de

mandinga. Nessa região de rios e serras, havia extração de ouro e solo propício para

agricultura.

Essas versões são as primeiras confissões de cada um deles. Preferi não

acompanhar as sucessivas confissões após as admoestações (torturas) feitas contra os réus

pelos inquisidores porque ocorrem mudanças muito bruscas. E nos casos estudados a maioria

não mudava a opinião com exceção de Matheus que insistia dizendo que Mariana foi quem

pegara a hóstia escondido. Não é objetivo descobrir se houve culpados. Essa tarefa os

inquisidores desempenharam com bastante afinco.

*

A história dos mandingueiros não envolve uma rede de intriga de queixas e

acusações de suspeitas de malefícios praticados por feiticeiros para atingir senhores e nem

contra outros escravos. Eles foram delatados por terceiros ao padre. O dono de João da Silva,

por exemplo, foi avisado por meio de carta enviada pelo padre, mandando que ele

comparecesse com seu escravo à igreja. O problema residia nos objetos que eram agregados e

na circulação de orações escritas cheias de sinas, que geraram suspeitas de pacto diabólico.

Nos cárceres da Inquisição, todos os acusados responderam que não testaram as

virtudes protetoras da bolsa. Essa pergunta do inquisidor tinha a ver com os mandingueiros

presos em Lisboa que testavam os poderes da bolsa nas ruas. Os homens lançavam-se sobre

Page 222: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

222

espadas para provar que estavam de “corpo fechado”.101

Os mandingueiros de Jacobina declararam apenas que carregaram a bolsinha, sem

saber o que tinha dentro, mas que não tinha lhes ocorrido mal algum enquanto portaram a

mesma. As práticas dos negros cristãos em torno da crença no poder da bolsa foram vistas

como desviantes, e legitimavam a ação repressiva. A feitiçaria era crime da alçada do Santo

Ofício, e dependendo do grau, poderia ser enquadrada como heresia. O pacto com o demônio

era o ponto de partida para uma denúncia ser aceita pelos inquisidores.

O catolicismo ensinado aos negros foi marcado pelo temor aos demônios. Sendo

assim, os negros buscaram vários meios de se aproximar das entidades sobrenaturais católicas

como meio de proteção. Alguns utilizaram os santos em suas práticas mágicas a fim de

aumentar o poder delas. Por outro lado, a presença constante do Demônio nos discursos dos

missionários fez com que também fossem devotadas esperanças particulares neles. Não se

pode esquecer que na Colônia, Jesus Cristo era uma divindade que rivalizava com o Diabo.

Portanto, este pode ter representado um poder paralelo, capaz de auxiliar em momentos de

desespero. A opção pelo Diabo indica a circulação e incorporação dos elementos do

catolicismo na Bahia. Da mesma forma que se valiam de orações, santos, hóstias consagradas,

pedras d‟ara em vários rituais, valiam-se também do diabo.

Exemplo disso foi uma das orações contidas na bolsa que se encontrava com José

Martins, que foi anexada ao processo. A Oração é iniciada rogando o poder da pedra d‟ara e

depois passa a invocar os nomes dos judeus que traíram Cristo e alguns da corte do Inferno:

Digo eu Antonio que o mar mede as suas forças e Jesus Cristo o seu poder. A minha pedra

dara que no mar foste criada, em terra achada, em Roma confirmada, peço-vos e rogo-vos

pelas sete donzelas, e por as sete comadres e para sete casados e para os sete religiosos e

por os sete Arcebispos e Sumos Pontífices não podem celebrar missa sem ti, peço-te e

rogo-te pelos setes enforcadas, pelos sete arrastados e por sete mortos a ferro ferio [frio?]

de valente que é Barrabás e Satanás e Caifáz e Lúcifer que é meu Rei, meu duque,

príncipes de minhas batalhas vencedor do exército, estes todos se achem a meu favor a ser

coro [assim como] dos meu intento e a mim me tragam em ventos como Soldado de

Campanha”.102

Houve um dialogo simultâneo entre os dois pólos do catolicismo: da mesma forma

que recorria ao poder da pedra d‟ara, uma espécie de altar sagrado móvel, onde o padre

101

Eduardo França PAIVA. Bruxaria e superstição. Op. Cit., p. 114. 102

Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, n.o

508. Processo de José Martins. p. 12. A

oração está anexada ao processo.

Page 223: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

223

consagrava a hóstia para Comunhão, a oração de José Martins invocava aos demônios.

A conversão dos negros ao cristianismo não significava que tivessem apagado seus

sistemas de pensamento e formas de conceber o mundo. Eles se apropriavam de maneiras

próprias dos discursos dos padres em torno dos símbolos católicos, envoltos de magismo: as

orações, os santos, as pregações dos padres em torno das leituras da bíblia, a cruz, o corpo de

Cristo/hóstia, o sangue de Cristo/vinho, a magia da missa no momento da transubstanciação

do corpo.

No universo do catolicismo tinha também lugar para o cariapemba, uma entidade

espiritual dos cultos da África-central, que foi associada pelos brancos ao demônio. Segundo

estes ele teria poderes sobrenaturais de proteção e destruição, que poderiam ser usados pelo

indivíduo para favorecer a si mesmo e ampliar o seu espaço na comunidade, causando, ao

mesmo tempo, dano a outrem. Cabe lembrar que quando o português Antonio da Costa

Peixoto selecionou algumas palavras do universo religioso dos escravos na sua lista de

vocábulos da língua “mina”, traduziu para o português cariapemba com significado de

demônio.

Além de conter nas orações a invocação ao demônio, que implica em pacto, outro

sinal deste eram os desenhos contidos nas orações. As testemunhas do escravo João da Silva,

natural de Angola, foram unânimes em declarar que sabiam por “ouvir dizer publicamente”

que ele levava consigo “em hum papel com palavras indicativaz e de pacto embrulhada douz

graoz de chumbo e hu‟a pedra quadrada, e humaz cascaz de alho”.103

Os símbolos na oração de João da Silva são os seguintes: na oração de São Marcos

foram colocadas 20 cruzinhas com as pontas recruzadas, separando essa oração da segunda,

que é de São Jorge, há quatro pentagramas. Abaixo da terceira oração, no final do papel há

mais três pentagramas e uma pequena cruz com dois braços, semelhante à cruz patriarcal,

usadas no período Medieval pelos bispos, também conhecida como cruz de Lorena. Na

tradição católica ortodoxa, no braço superior da cruz, que é menor que o de baixo, é colocada

a inscrição INRI.

103

Processo de João Curto. Op. cit, p. 14v.

Page 224: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

224

Desenhada ao lado da cruz de dois braços, há uma estrela maior de cinco pontas.

Em cada ponto de encontro das linhas, as pontas ficam abertas, como se fossem caminhos.

Outro ponto em comum da bolsa de João com os amuletos portados no Congo e Angola é a

agregação de vários tipos de materiais dentro do saquinho onde estava a oração acima. Havia

dente de alho, hóstia, pedra d‟ara e chumbo.

Pelo fato de João da Silva ter declarado que ganhou a oração de Manoel, o escravo

dos padres, podemos considerar a influência de elementos cristãos, mas também é preciso

considerar a experiência anterior do angolano com o cristianismo ainda em sua terra,

mesclado com os valores da sua cultura. Como vimos, para os bacongos, a cruz é o símbolo

Fig. 9. Manuscrito encontrado dentro da bolsa de Mandinga, anexado ao processo de Jose da Silva, natural de Angola. Processo 508, Inquisição de Lisboa, 1745.

Page 225: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

225

de comunicação dos vivos com o mundo sobrenatural, onde habitam os antepassados e os

espíritos da natureza.

Aqui há a possibilidade de decodificação de uma mesma prática, a partir de

diferentes sistemas culturais: lusitano, mandinga, guineense e banto. O importante é que num

contexto escravista e inseridos no universo do catolicismo, a combinação de certos elementos

levou os africanos a buscarem outros que davam poderes à bolsa. O importante é perceber a

lógica que está por trás da combinação de diversos ingredientes, dando-lhes uma força

sobrenatural. Ou a identificação da cruz também como o cosmograma bacongo, enquanto

expressão da conexão entre o mundo dos vivos e dos espíritos ancestrais, de onde vêm a

possibilidade de equilíbrio, ventura, harmonia.

*

Ao buscar o perfil social das pessoas envolvidas nessa micro-história é possível

perceber as práticas mágicas de proteção, bem como a esfera de sociabilidade engendrada na

sociedade mineradora da Bahia, escravista e de certa forma, urbana.

Do ponto de vista da origem, João da Silva era preto, natural de Angola; Luiz

Pereyra, crioulo, natural de Jacobina, filho de congolês; Jose Martins, preto, livre, natural de

Jacobina, filho de forros, mas dissera não lembrar a origem dos pais e avós; Matheus, preto,

escravo, natural de Jacobina, filho de pais crioulos. Apenas em João aparece a alusão à

África: era frequentemente referido no processo por João Congo. Os demais eram crioulos.

Luiz Pereyra, de primeira geração nascido no Brasil. José Martins também. Matheus Pereyra

era crioulo de segunda geração. Talvez, para não se complicarem diante dos inquisidores,

disseram não lembrar a origem dos pais e avós.

Observando a condição jurídica, apenas José Martins nasceu livre, pois declarou

que era filho de pais forros, além disso, no seu processo não consta que teve um curador. O

curador era uma espécie de advogado que (supostamente) defendia o escravo, que não podia

defender-se porque não tinha status de civil. Luiz Pereyra era escravo, tinha pai escravo e mãe

forra. Matheus Pereyra era escravo, e também tinha pai escravo e mãe forra. João da Silva era

escravo, e de seus pais não tinha notícia, pois foi trazido ao Brasil com pouca idade.

Tomando como exemplo o recorte das preferências matrimoniais entre escravos e

grupos étnicos, posso inferir que os escravos de Jacobina, arrolados nos processos

inquisitoriais se casavam com forras e crioulas. Luiz Pereyra de Almeida, crioulo, escravo, era

casado com Maria Ferreyra, preta, forra. Os pais de Luiz Pereyra eram João Correa e Ignacia

Page 226: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

226

Pereyra. Ele, escravo, natural do Congo; ela, forra, natural de Jacobina. Jose Martins, natural

de Jacobina, livre, casado com Luiza, parda, forra. Seus pais eram Leandro Martins e Josefa

Martins, ambos pretos, forros. Matheus Pereyra era solteiro, escravo. Seu pai se chamava Jose

de Castro preto, escravo de Costodio de Castro; e sua mãe se chama Jacinta de Andrade

Nogueira preta forra, ambos crioulos. João da Silva era do Congo, solteiro.

Ou seja, num total de cinco casamentos, 3 foram de escravos com forras, e dois

entre casais forros. Etnicamente falando, há um caso de congolês casado com forra natural de

Jacobina. A maioria dos casamentos, portanto, são entre crioulos.

Há uma maioria de homens portando amuletos. Isso pode significar maioria de

homens na região. Portanto, homens, crioulos, que possuíam um ofício. João da Silva era

roceiro e mineiro, Matheus era mineiro e almocreve, Luiz Pereyra era um escravo que tomava

conta da casa de farinha, José Martins era livre e possuía roça em terras de uma mulher que o

arrendara. A maioria crioula protagonizando a prática indica que era preciso um tempo para

aprendê-la. Inclusive, o angolano envolvido no caso, chegou ao Brasil com pouca idade,

portanto houve o tempo necessário para ele aprender.

Quanto à origem das mulheres que aparecem nos processos, Inacia Pereira, mãe de

Luiz Pereyra, era preta forra, natural de Jacobina. Jacinta de Andrade, mãe de Matheus

Pereyra, era natural de Salvador, forra. Josefa Martins, mãe de José Martins, era forra, mas

não sabia sua origem. Maria Ferreyra, esposa de Luiz Pereyra, era preta forra. Luiza, esposa

de José Martins era parda livre. Não aparece nessa rede nenhuma mulher escrava nem

africana. A não ser que as referidas como pretas, fossem africanas.

Os mandingueiros de Jacobina eram, portanto, homens entre 16 e 30 anos de

idade, africanos e crioulos de primeira e segunda geração. Ou seja, a prática de fazer e/ou usar

a bolsa de mandinga não era exclusiva de uma determinada “nação”. A maioria dos usuários

das bolsas eram escravos.

A predominância de homens usando e confeccionando amuletos no sertão da

Bahia do século XVIII, pode ter três explicações: nas sociedades tradicionais africanas os

homens lideravam os ritos de contato com o sobrenatural, e isso teria “sobrevivido” nesse

momento; segundo, no contexto escravista, os homens eram maioria comprada para o trabalho

pesado; e terceiro, eles desempenhavam atividades mais perigosas e estavam à mercê das

sevícias dos donos, índios, animais e da morte. Ao passo que as mulheres, mesmo sendo

Page 227: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

227

minoria, desenvolviam trabalhos domésticos e conseguiam mais rápido a alforria.104 Todos os

mandingueiros moravam em Riachão, com exceção de João da Silva que morava em

Jacobina. A dinâmica do lugar onde estavam inseridos os mandingueiros era diferente dos

locais de plantação açucareira e fumageira da Bahia. A descoberta de ouro no sertão da Bahia,

em fins do século XVII, a exploração clandestina do metal, e a liberação das minas em 1722,

fez afluir um grande número de brancos que foram explorá-las e levaram seus escravos. Nesse

contexto, chegaram ao sertão as primeiras levas de africanos, que foram adquirindo hábitos da

população heterogênea na qual se inseriam.

O uso dos amuletos era uma forma africanizada de aderir ao catolicismo e buscar

proteção no mundo escravista. Para resolver o problema da autoria do roubo da hóstia e da

confecção das bolsas de mandinga foi acionada uma instituição do mundo dos brancos, o

Santo Ofício. Mas não foram os negros que denunciaram os seus companheiros. Foram os

brancos que quando tiveram notícia delataram ao padre o ocorrido.105

Diferente do Candomblé, onde se verificou que havia pequena presença de

escravos, em detrimento dos forros, os usuários de bolsas de mandinga eram na sua maioria

escravos. O fato da produção de amuletos não exigir dedicação de tempo, como ritos de

reclusão e calendário de festas religiosas, permitia ao escravo se dedicar a essa prática. Podia

ser carregado escondido, porque era pequeno e portátil.

Quem eram os brancos que testemunharam contra os negros? Como sabiam da

prática? Diretamente, a única branca envolvida na história foi Mariana Pereyra. Embora

Matheus tenha dito que a irmã dela também roubava hóstias e usava bentinhos ou bolsinhas.

A longa lista de testemunhas contra os negros permite notar que era uma prática

muito conhecida dos brancos. Aos negros era proibido testemunhar contra qualquer pessoa,

mas nos processos analisados, os envolvidos foram chamados a testemunhar uns contra os

outros. No processo de José Martins, o mais longo de todos, foram arroladas 35 testemunhas.

Apenas dois eram pardos e um crioulo. Os demais eram brancos. 34 eram homens e apenas

uma mulher. A idade dos denunciantes variava entre 20 e 70 anos. A maioria tinha entre 20 e

40 anos.

104

Eduardo França PAIVA, Escravidão e universo cultural na Colônia. Minas Gerais, 1716-1789. Belo

Horizonte: Ed. UFMG, 2001, ver cap. II “Fortuna, poder e objetos mágicos: as forras, a América e o trânsito

cultural”, pp. 217-238. 105

James Wadsworth mostra em seu estudo que alguns senhores de Pernambuco também foram intolerantes com

seus escravos quando sabiam de suas atividades heterodoxas. Jurema, and Batuque indians, africans, and the

Inquisition in colonial Northeastern Brazil. History of Religion. The Chicago University, 2006, n.2, pp.140-

61.

Page 228: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

228

As ocupações dos denunciantes eram em cargos administrativos, eclesiais e

jurídicos. 14 deles eram comerciantes, que viviam de sua agência. Os demais eram

fazendeiros, padres, meirinho, escrivão, alcaide, um ourives e um ferreiro. 25 moravam na

vila de Jacobina. Os outros moravam nos distritos da vila: 5 em Riachão, 3 em Brejo, 1 em

Itapicuru. Quanto ao estado civil, 20 eram solteiros, 10 casados, 04 sacerdotes e uma viúva.

O Sumário de Culpas de Matheus Pereyra foi extraviado na viagem para Portugal.

O escrivão informou nas páginas iniciais do seu processo que seria usado no julgamento dele

o Sumário de José Martins. No processo de Luiz Pereyra, o escrivão remete igualmente ao

processo de José Martins.106

A maioria das testemunhas deu depoimentos bem detalhados das práticas mágicas

realizadas pelos negros mandingueiros. O conhecimento minucioso da prática revela que

havia uma circulação dos saberes africanos na comunidade. Dona Antonia Pereira,

proprietária de Matheus revelou que seu escravo não era feiticeiro nem os demais envolvidos.

Mas disse que soube por uma preta escrava chamada Maria, moradora no Riachão, que havia

no sítio do Timbó um preto cego, forro e casado que “uza curar de feitiços com seus contos e

superstições de suas terras [...]”.107

Francisco Arão Nogueira, viúvo e comerciante em Riachão. Era dono do escravo

Matheus Pereyra, cuja mãe, Jacinta de Andrade, também era escrava dele. Informou que

conhecia Luiz Pereyra porque este era seu compadre. Relatou ainda ao padre que ao ver seu

escravo com a bolsa de couro “marroquino” no pescoço, perguntou o que era. Matheus

respondeu que era uma bolsa com oração de Santa Bárbara, que portava por medo dos

trovões. Ele ainda protegeu Matheus tirando-lhe a culpa de ter matado o porco de seu

cunhado, e que Mariana Pereyra, foi realmente quem deu a partícula a Matheus.

Os donos dos escravos usaram de estratégias diferentes para protegê-los. Dona

Antonia delatou o preto cego africano, que trabalhava com “superstições” de sua terra natal

como se ele fosse feiticeiro e seu escravo não. Francisco Arão Nogueira preferiu dizer que o

seu escravo era católico, devoto de Santa Bárbara, cuja bolsa era uma maneira de defendê-lo

de trovoadas.

O Sumário de culpas de João da Silva, natural do Congo é menor que o de José

Martins, mas permite ter um perfil dos denunciantes. De um total de 12 testemunhas, 11 eram

brancos e apenas um pardo. 11 homens e uma mulher; 10 moravam na vila de Jacobina e dois

106

“As culpas e assento porque este delato foi prezo se achao juntas ao Sumario e processo de Matheus, preto

crioulo, prezo nos cárceres (...) processo de Joze Martins, também preto, para o qual se mudarão, e juntarão

para o mesmo ir ao Conselho”. P.4. Processo de Luiz Pereira, 1134, Inquisição de Lisboa, 1756. 107

Processo de Jose Martins, p.

Page 229: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

229

nos distritos (Porcio e Jaboticaba). Suas idades variavam entre 20 e 60 anos. A maioria tinha

entre 20 e 40 anos. Cinco eram casados, 4 solteiros e 3 padres. Dentre as ocupações, a maioria

eram os clérigos, dois comerciantes, dois intendentes das minas, um meirinho, um advogado,

um sapateiro de cor parda, e dois não foram identificados.

Oito pessoas disseram saber do caso “por ser publico”, três souberam por ver a

bolsa. Uma pessoa sabia “por ver”, pois declarou que João da Silva foi à casa de dona Tereza,

e mostrou-lhe a bolsa.

No processo de João da Silva foi incorporado o papel que estava dentro de sua

bolsa de mandinga, no qual estavam escritas as orações. Eram três orações dirigidas para

santos diferentes: São Marcos, São Jorge, Jesus Cristo e outra para a hóstia consagrada. Todas

evocavam proteção, coragem e valentias.

San Marco de nazares te marque, Jesus Christo se A bande o Espirito Sannto se a humilde

a minha vontade as 3 pessoas da Santisima Trindade, te confirme ao meu querer. Se tu me

vires, mirai-me, e se tu me não vires, por mim suspira, Hostia consagrada + em teu

coracão + em carne viva + esteja e more morais tu por mim, assim como Meu Sñr Jesus

Christo morreu na Vera Cruz, sendo Deus antes. Na caza (...) fiz com contas a que estas +

assim terei eu parte comtigo Deos quer deos, pode Deos acabar tudo quanto quer, assim

acabarei eu tudo quanto eu quizer.

Com arma de Sao Jorge ando armado. Não serei preso e nem tomado e nem meu sangue

derramado e nem minha palavra retraída e nem meu coração afrontado. Andarei de dia e

de noite com alegria. Assim como andou meu Senhor Jesus Cristo nove meses no ventre

da Virgem Maria Mãe Santíssima.

Valei-me hóstia Sagrada na testa [?] Valei-me Jesus na boca. Valei-me [...] Meu Sñr Jesus

Cristo na [...] cruz encravado. Valei-me Jesus na boca da Virgem Maria Rainha, eu vos

peço cinco poder NC, com cinco Ave Maria, com cinco gloria pater oferecido a morte e

paixão de Cristo S.N. Eu vos peço por aquela culana em que foste amarrado, meu corpo

não será ferido nem maltratado de meu inimigos nem meu sangue derramado no chão

[firas] e nem meus inimigos terão mão para mim e as espingardas não tomara fogo, migara

(?) hua para ouvido Missa, eu vos peço meu divino sagrado e nem faca entrará no meu

corpo. Caminharei de dia e de noite. 108

A forma como os negros entenderam o cristianismo é o ponto chave da análise

aqui empreendida. O cristianismo foi interpretado à luz da cosmologia africana. A hóstia,

representando o corpo de cristo, era relíquia consagrada na qual os negros buscavam a

proteção do seu corpo. As orações, não tinham a conotação ortodoxa cristã, de entrar em

contato com deus, mas uma forma de construir um discurso particular de proteção. A pedra de

108

Processo de João da Silva, p. 12. A grafia foi atualizada para facilitar a leitura, pois a oração foi escrita por

pessoa pouco letrada, prevalecendo a fala coloquial.

Page 230: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

230

ara, local de consagração da hóstia, assim como o sanguinho, a cera do sírio pascal e todos os

elementos evocados no sermão da transubstanciação do corpo de Cristo, eram poderosos

elementos que serviriam para as agruras cotidianas.

Na cosmologia centro-africana os objetos cristãos eram minkisi (inquices). Essa

forma de agregar coisas lembra o que fez o escravo congolês chamado Makandal no Haiti.

Em 1750, ele provocou medo na população branca, porque distribuía amuletos aos negros, se

dizia imortal e capaz de envenenar a todos. Foi perseguido, preso e enforcado. Encontraram

com ele elementos católicos que eram usados nas cerimônias Voudou no século XVIII:

[...] água benta, cera santa, pau santo, incenso santo... tudo era amarrado num pedaço

grande de tecido para formar uma espécie de trouxa que seria mergulhada na água benta.

A ação de envelopar e amarrar tudo junto (kanga) com panos e cordas era essencial para

tornar eficaz o objeto.109

Semelhante à bolsa que tinha Makandal era a que Dompete quando foi preso,

carregava consigo. O mulato que o prendeu deixou uma descrição detalhada do conteúdo da

bolsa que ele carregava: “panos vermelhos, brancos e azuis, firmemente amarrados com penas

esticadas, ao lado de pedaços de madeira, ceras brancas, vidros e coisas semelhantes”.110

*

No processo de José Martins foram anexadas duas orações, escritas em pedaços de

papéis separados. Uma delas é o Credo escrito ao contrário:

Eterna vida he, que da carne a ressurreição dos pecados a remissão dos santos da

comunicasão Catholica Igreja na santa Santo no Espírito Creio e os mortos vivos a julgar

vir a declarar de vinda Santa sua esperando estavam já que poderes dos dos santos as

almas o terceiro dia e tirou aos infernos de seu e sepultado morto e cursificado foi pilatos

de pontos poder para no seu padecer virgem Maria no seu santo do Espírito filho seu so

hum Christo Jesus creio e da tera dos céus criados poderoso todo poder em Deos creio.111

As rezas e preces inseridas nas bolsas, que serviam de amuletos, tinham a escrita

como elemento mágico. A oração podia já ser conhecida e recitada mentalmente pelos

escravos. A diferença estava na sua transferência para o papel e colocá-la na bolsa juntamente

com outros ingredientes.

O uso da escrita entre negros em ambiente rural é diferente daquele apontado pelos

109

VANHEE, Hein. Central African Popular Christianity and the Making of Haitian Voodoo Religion. In:

HEYWOOD, Linda M. Central Africans and Cultural Transformations in the American Diaspora.

Cambridge: Cambridge University Press, pp.243-264, 2002. 110

Idem. 111

Processo de José Martins, p. 11.

Page 231: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

231

estudos acerca dos usos da escrita e leitura em áreas urbanas.112 O uso da escrita pelos

mandingueiros estava associado ao seu poder mágico. Todos os negros envolvidos no porte de

bolsas de mandinga contendo oração declararam que não sabiam ler nem escrever.

Maria Cristina Wissenbach observou que, a escravaria pertencente às ordens

religiosas e ao clero tinha conhecimentos de escrita e leitura, transmitidos pelos religiosos,

que supostamente se preocupavam com as condições de vida do plantel. Assim como parte de

trabalhadores urbanos, especialmente os que exerciam e agenciavam por conta própria os seus

ofícios e negócios também sabiam ler e escrever.

Sendo assim, as orações escritas encontradas na bolsa de João da Silva podem ter

sido escritas por Manoel, o escravo fugitivo dos padres Luiz da Rocha e Manoel da Rocha,

moradores do Rio dos Cágados, nos campos da Jacobina.

Acerca das outras orações não temos pistas de quem possa tê-las escrito, mas

percebe-se que alguém mais letrado que a anterior. Até mesmo o conteúdo revela um

conhecimento maior das idéias milenaristas do Apocalipse, faziam alusões aos judeus da

Bíblia envolvidos na morte de Jesus – Barrabás e Caifás – e sabia os nomes de outros

poderosos inimigos de Cristo – Satanás e Lúcifer.

A análise de Nicolai Dobronranvi sobre documentos encontrados no Brasil e em

Trinidad, escritos em caracteres árabes, argumenta no sentido de mostrar a presença dentre a

escravaria de hauçás escolarizados que continuaram a escrever versos do Alcorão na diáspora

e outros versos que serviam para uso em amuletos. A sua análise sobre outra situação e

período diferente do qual estudamos ilumina nossa interpretação das orações escritas em

português. Os negros e aqueles que não sabiam ler certamente tinham admiração pela escrita e

acreditavam no poder mágico da oração copiada no papel. Como os ingredientes que

compunham os minkisi e as bolsas de mandinga, na África, em Portugal e no Brasil, também a

escrita tinha um poder mágico, canalizando forças invisíveis.

*

Alguns estudos mostram que apesar da avidez dos agentes inquisitoriais por

encontrar cristãos-novos, feiticeiros, bruxas, sodomitas, bígamos, em geral, a atitude das

autoridades coloniais não foram tão rigorosas, porque havia uma tolerância aos “usos da

112

Maria Cristina C. WISSENBACH. Cartas, procurações, escapulários e patuás: os múltiplos significados da

escrita entre escravos e forros na sociedade Oitocentista brasileira. Revista Brasileira de História da

Educação. Dossiê: “Negros e a Educação”. São Paulo: SBHE/Editora Autores Associados, n.4, Dez/2002,

pp.110-1.

Page 232: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

232

terra”. Inclusive, em Minas Gerais, há casos de familiares que se relacionavam com os

feiticeiros para obter saúde e resolver problemas.113 Em Pernambuco, os missionários

perderam a paciência com o governador que permitia aos negros fazerem bailes ao som de

tambores com música africana.114

Na situação aqui analisada, o que se denunciava era o uso dos amuletos com

ingredientes cristãos e da natureza que combinados serviam como proteção. Em geral, o

amuleto passa por um rito de sacralização e o usuário passa por um ritual de “fechamento de

corpo”. São cerimônias secretas. Na situação colonial, o padre fez as vezes de ganga.

As bolsas de mandinga eram elementos de um pensamento mágico comum aos

brancos, negros, crioulos, pardos, africanos, europeus brasileiros, escravos, forros e livres.

Apesar do mundo da escravidão separar essas pessoas, elas compartilhavam os mesmos

medos numa região distante dos centros urbanos, cujo poder máximo a lhes socorrer era Deus.

O catolicismo, representado pela desobriga, a visita anual do padre para realização de

sacramentos, reunia todos no mesmo lugar. Nesse contexto, havia uma interpenetração

cultural, pois os valores circulavam entre os grupos que apesar de socialmente distintos

mantinham relações entre si. Vale ressaltar que mesmo os escravos tinham uma liberdade de

movimentos significativa. Matheus era escravo e tropeiro, mas viajava vários dias sozinho

para levar mantimentos para as minas de ouro. E para se protegerem dos perigos que os

espreitavam pelo caminho, esses escravos sobre os quais ficaram registradas algumas

informações, recorreram à solução que lhes pareceu mais eficaz.

O porte das bolsas de mandinga do século XVIII não era exclusivo de um grupo

étnico nem apenas de escravos. A miscigenação em torno da bolsa ocorreu primeiro em

Portugal, onde os povos da Guiné, “animistas” e conhecedores do Islã, misturaram suas

crenças em torno dos amuletos com o catolicismo. No Brasil, esses dois processos de

combinações – os ocorridos primeiro nos circuitos guineenses e depois em Lisboa - se

misturaram com o conhecimento dos bantos. Portanto, tomando as bolsas de mandinga feitas

no sertão baiano como objeto de análise, o mais importante a ser destacado é a miscigenação

ocorrida entre circuitos africanos, metropolitanos e coloniais, unidos pela escravização de

africanos e seu emprego como força de trabalho.

113

Aldair Carlos RODRIGUES. Sociedade e Inquisição em Minas Colonial: Os Familiares do Santo Ofício

(1711-1808). São Paulo, 2007. Dissertação (Mestrado em História Social) - Faculdade de Filosofia Letras e

Ciências Humanas/USP. 114

Jurema, and Batuque indians, africans, and the Inquisition in colonial Northeastern Brazil. History of Religion.

The Chicago University, 2006/2, pp.140-61.

Page 233: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

233

As bolsas, contendo orações, hóstia consagrada, alho, pedra quadrada, chumbo,

sírio pascal e demais ingredientes tirados da natureza tinham finalidade preventiva – a

proteção. Pelos atos praticados, não carregavam intencionalidade maléfica, nem eram anti-

sociais. Em suma, não se tratava de feitiçaria, no seu sentido stricto sensu.

A produção de amuletos como o de João Curto era resposta a um sistema religioso,

cuja salvação estava prescrita somente após a morte. Isso não correspondia às necessidade de

amparo no mundo do cativeiro. O escravo estava à mercê de todos os perigos: das doenças,

das sevícias do senhor ou senhora, de briga com outro escravo, dos conflitos constantes da

zona mineradora, dos indígenas e da morte.

O modelo fortuna-infortúnio, sugerido por Cramer, Fox e Vansina, destaca um tipo

de religião que se preocupa com a sustentabilidade da vida neste mundo, e que está presente

não só nas situações centro-africanas que provocaram a sua elaboração, mas também no

catolicismo popular, tanto europeu quanto colonial. A produção de amuletos sagrados no

sertão da Bahia se dava fora de uma esfera religiosa institucionalizada, pois eles surgiram na

marginalidade social e não tinham sentido de reforçar as instituições religiosas que

contribuíam para manter as estruturas do poder. O uso dos amuletos sagrados pode ser visto

como uma resposta à Igreja católica, centralizadora e hierárquica, símbolo de poder do mundo

dos brancos, presente no século XVIII no sertão da Bahia.

Bolsa de mandinga era um termo “guarda-chuva” que agregou africanos de

diversas origens, crioulos e brancos. A partir de interesses e traços culturais comuns, a

população colonial aderiu ao uso de saquinhos de pano ou de couro, dentro do qual cabia tudo

que uma colônia marcada pela miscigenação cultural podia comportar.

Page 234: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

234

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No final do século XVIII, Oliveira Mendes, nascido na Bahia, foi morar em Lisboa

para realizar seus estudos. Lá, presenciou a visita de embaixadores do Daomé, e membros de

suas comitivas, que estavam no Reino, enviados pelo rei Agonglo. Aproximou-se com intento

de coletar informações sobre os costumes dos povos do reino daquele reino negro afim de que

“sejam excitados nossos afetos” diante dos “bárbaros costumes.”1

O reino do Daomé era concebido por Mendes como o mais civilizado da África. O

autor começa a descrição daquele povo, narrando o culto em torno do vodum Dan, do grupo

Aido-Huedo, da área gbe, representado por uma grande cobra. Informa ao leitor, com certa

admiração, o respeito de todos ao leopardo, animal totem do clã real. Em momento posterior,

passou a falar dos africanos como um povo muito supersticioso que tem “afeição, credulidade,

amor e respeito a uma certa cousa a que lhe chamam feitiço”2

Diz que os africanos faziam uma bolsa, semelhante ao “breve” católico, que

levavam consigo. Dentro dela, havia “umas relíquias” nas quais os negros tinham profunda

crença: “diversas qualidades de cabelos, certos dentes e bicos de animais e de aves, alfinetes,

pontas de lancetas, penas e entranhas secas das mesmas aves, e as unhas delas, a pele e o

cascavel de diversas cobras e outras muitas cousas (...)”. Contaram também ao incrédulo

acadêmico a função protetora da bolsa:

(...) consideram-se que não podem ser picados pelas cobras e por nenhum outro animal

venenoso e que tal acontecendo, tanto lhes não fará mal. Que em seu corpo não tem

entrada cousa alguma nociva, o veneno a bala, o ferro e o raio, e se acaso este [...]

preservativo, no descuido, fica nas casas de suas moradias, reputando-se infelizes e

desgraçados, apressados o vão tomar (...)3

Após explicar no que consistia a bolsa e as crenças em torno do seu poder de

proteção sobre os corpos dos usuários, Oliveira Mendes diz que os africanos denominavam-

nas de “patuá” ou “bolsa de mandinga”. Tomando a última atribuição, oferece duas

explicações acerca da origem delas:

(...) uns dizem que esse nome (...) fora derivado de um homem preto, sacerdote africano,

que tendo esse nome, ou apelido fora o primeiro inventor de tal manduzagem [?], abuso,

1 Alberto da Costa e SILVA, A Memória História sobre os costumes particulares dos povos africanos, com

relação privativa ao Reino da Guiné, e nele com o respeito ao rei de Daomé, de Luis Antonio de Oliveira

Mendes. Afro-Ásia, 28, 2002, p. 260. 2 Idem, p. 261.

3 Idem, p.262

Page 235: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

235

seita e crença; outros (...) afirmam que deriva a sua etimologia e nome de uma província

africana, bem conhecida, denominada e chamada Mandinga, aonde se inventara e primeiro

se usara de tal cousa, donde se propagara por toda África; porém não devemos fazer

questão do nome, bastando-nos saber, que com espírito de tal juízo, tanto se pratica, ainda

hoje se dura e existe.4

Alberto da Costa e Silva, que pesquisou com acuidade a vida do acadêmico baiano

que escreveu A Memória História sobre os costumes particulares dos povos africanos, afirma

que Mendes, ao tratar dos amuletos, colocou palavras na “boca dos daomeanos”. “Patuá” e

“mandinga” não eram termos conhecidos deles. Patuá é um termo tupi5 e “bolsa de mandinga”

era um termo dos negros islamitas, “especialmente os mandês, mandingas ou malinquês,

mestres do seu fabrico e difusores de seu uso na África Ocidental.”6 No Daomé, o termo

usado era “grigri”.

Oliveira Mendes usou termos da experiência da diáspora africana no Novo Mundo

e no Reino. Ele certamente adicionou informações e palavras acerca do uso de amuletos em

Portugal e Bahia, a partir de sua experiência de vida, àquelas que lhe deram naqueles anos de

fins do XVIII e início do XIX. Portanto, não estava errado de todo o informante baiano.

Embora essa descrição seja tardia em relação ao nosso objeto de estudo, ela é

importante para observar o olhar de um homem branco que viveu entre escravos fons na

Bahia, como proprietário deles, dos quais ouvia histórias e alimentou essas lembranças com a

embaixada dahomena e assim pode dar o seu olhar de quem transitava pelo atlântico.

Passado mais de um século que Oliveira Mendes coletou essas informações e

escreveu a Memória História sem nunca ter ido ao Abomey, Melville Herskovits, o

antropólogo norte americano foi ao Abomey e fez uma série de observações acerca dos

amuletos daomeanos: “era uma cordinha de ráfia que se amarrava de modo especial ao braço

esquerdo. Ou um pequeno pedaço de pau pontudo, com uma cabeça esculpida na parte

superior, e envolto num entrançado de fibra e cabelo que se usava à cintura”7

Os povos do golfo do Benin predominantes na Bahia no início do século XVIII

eram procedentes de Uidá e Daomé, da área gbé-falante. Artur Ramos atribuiu a prática de

amuletos aos povos islamizados da África Ocidental. Dizia que “o essencial nessas formas

religiosas africanas, é o gri-gri ou fetiche, objecto material preparado ou feito, expressão de

4 Idem, ibidem.

5 Idem, p.285. Alberto da Costa e Silva diz que essa explicação é de Antenor Nascentes.

6 Idem, ibidem.

7 Melville Jean HERSKOVITS, Dahomey, an ancient West African kingdom. New York: J. J. Augustin

Publishers, 1938, pp. 245-255.

Page 236: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

236

forças da natureza.” Para ele, a tradição islamizada apresentou-se com mais força na Bahia,

somente no século XIX, devido às guerras entre os fulas e hauçás.

*

O termo bolsa de mandinga tornou-se comum a todo o Império português porque

foi aprendido pelos padres e comerciantes no comercio na costa da Guiné e difundido pelo

tribunal da Inquisição para referir-se genericamente aos amuletos contendo ingredientes de

origens cristã e “animista”.

O Dicionário do padre Rafael Bluteau, publicado em 1712, é considerado pelos

estudiosos, a primeira grande compilação lexicográfica da língua portuguesa. Evocaremos sua

obra e outras, pois o dicionário representa a memória coletiva da sociedade, e revela os usos

que são dados às palavras e seus significados:

MANDINGA. Reyno, & povoação de África, nas terras dos Negros de Guine, ao longo do

Rio Gambea, entre o Reyno de Tombotu ao Norte, & o de Malagueta ao Sul. Segundo

escreve Dapper (...), os negros de Mandinga são grandes feiticeiros, & hum seu sacerdote

principal foy tão celebre na arte Magica, que ensinou ao Rey de Bena a invocar os

demonios, & a usar do seu poder infernal contra os seus inimigos. Parece que deste, &

outros feiticeiros de Mandinga tomarão o nome huas bolsas, que trazem alguns negros,

com que se fazem impenetráveis às estocadas, como se tem experimentado nesta Corte, &

neste Reyno de Portugal em várias occasiões.8

Bluteau baseou-se nos dados etnográficos de Olfert Dapper que esteve na Costa

Atlântica da África no início do século XVII, e agregou informações correntes em Portugal do

início do século XVIII, quando já era popular o uso das bolsas pelos negros nas ruas de

Lisboa.

No Diccionario da Língua Portugueza de Antonio de Moraes Silva, baseado no

anterior, o vocábulo mandinga aparece genericamente designado como originário de África,

“feitiçaria; feitiços”, e “mandingueiro: s.m. O que faz, ou usa de mandinga.”9

Em uma ortografia de 1824, aparece novamente o sentido geográfico, e associação

do povo à magia: “Mandîga e Mandinga são dous Reynos de África; e deste segundo he, que

8 Rafael BLUTEAU, Vocabulario portuguez, & latino, authorizado com exemplos dos melhores escritores

portuguezes, & latinos, e offerecido a elrey de Portugal Dom Joam V. pelo padre D. Raphael Bluteau. Lisboa :

Na Officina de Pascoal da Sylva, 1716, p. 286. 9 Diccionario da Língua Portugueza composto pelo padre D. Rafael Bluteau, reformado e acrescentado por

Antonio de Moraes Silva, natural do Rio de Janeiro. Tomo II. Lisboa: Na Officina de Simão Thaddeo Ferreira,

1789.

Page 237: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

237

os negros são grandes feiticeiros, e usão de hu[m]as bolsas, a que chamam Mandinga, para os

não passar a espada.”10

Consta no glossário do bispo Francisco de São Luiz, inspirado também em

Bluteau, que o termo Mandinga referia-se ao

nome de um reino da Guiné, cujos negros passavão por insignes feiticeiros. O mesmo

nome se dava a humas bolsas, com que alguns negros de faziam impenetráveis ás

estocadas, como se tem experimentado nesta côrte e neste reino de Portugal em varias

occasioes. Desta crença, ou credulidade popular, veio o uso que o vulgo faz do vocabulo

africano, dizendo v.g. que alguem tem mandinga, quando sabe tirar-se airosamente de

lances perigosos; quando tudo lhe corre favoravel; quando talvez gasta largamente sem se

saber de onde lhe vem o dinheiro, etc. como se fizesse ou conseguisse isto por algum

genero de feitiçaria.11

Os dicionários do século XX, apenas reproduzem o que já havia sido dito desde o

padre Rafael Bluteau. No Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de Pedro Machado,

consta que o termo Mandinga “provém do nome geográfico Mandinga, na Guiné, lugar onde

havia insignes feiticeiros".12

Câmara Cascudo, folclorista, no Brasil, registrou o termo a partir das observações

de Henry Koster (1814) e Arthur Ramos (1933), com o sentido mais amplamente divulgado:

“Feitiço, despacho, mau-olhado, ebó. Os negros mandingas eram tidos como feiticeiros

incorrigíveis. Os mandingas ou malinkes, dos vales do Senegal e do Niger, foram guerreiros

conquistadores, tornados muçulmanos.”13

No Dicionário Aurélio, em sua versão mais atualizada, o termo é remetido para o

topônimo – designa o povo, a língua, e também a bruxaria.

O único dicionário consultado onde não há relação do nome com feitiçaria é o

“Vokabulari Kriol – Portugis”, há um significado geográfico e lingüístico do termo:

“mandinga (tribo da África Ocidental); a língua dos mandingas.14

10

Orthographia ou Arte de Escrever e pronunciar com acerto a Lingua Portugueza para uso do

excellentissimo Duque de Lafoens, pelo seu mestre João de Morais Madureira Feijó. Lisboa: Impressão Regia,

1824. 11

Glossário de Vocábulos Portugueses derivados das Línguas Orientaes e Africanas, Excepto a Árabe.

Lisboa: Typografia da Academia Real de Ciências, 1837, p. 67. 12

Jose Pedro MACHADO, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa com a mais antiga documentação

escrita e reconhecida de muitos vocábulos estudados. Lisboa: Editorial Confluência, vol. II, 1959. 13

Câmara CASCUDO. Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, p. 544. 14

P. A. BIASUTTI, Vokabulari Kriol – Portugis. (Esboço – proposta de Vocabulário). Guiné Bissau: Missão

Católica Bafatá, 1982.

Page 238: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

238

Ney Lopes, em seu Novo Dicionário Banto do Brasil, aventa para a possibilidade

da palavra mandinga ter origem banta. No entanto, sua interpretação é tendenciosa. Baseado

nos dicionários dos Padres Karl Laman e Jose da Silva Maia, e no estudo de Jacques

Raymundo. Lopes constrói possibilidades da palavra derivar da expressão mayanga ma-

ndinga, um tipo de gritaria de injúria, praguejamento contra outrem. No uso, teria sofrido uma

contração para mandinga, cuja significação seria a prática do fetichismo entre os congueses,

que também usavam amuletos ao pescoço, feitos de pacotinhos, chamados de masalu ma (e)

dinga, que eram embrulhinhos.15 É impossível a palavra mandinga pertencer ao quimbundo ou

quicongo. Trata-se de empréstimo lingüístico da palavra mandê. Pois não aparece em nenhum

documento pesquisado sobre a África Central dos séculos XVII e XVII, com exceção dos

processos inquisitoriais envolvendo angolanos, nos quais os inquisidores classificam as

práticas mágicas com tal denominação.

15

Sua base são os significados para dinga, que varia de autor para autor: pescoço, plural: mandinga (Laman);

lingua, linguagem (quicongo, Padre Silva Maia). Segundo ele, as palavras têm muita força para os povos

quicongo, por isso dinga tivesse o sentido de praga. Nei LOPES. Novo Dicionário Banto do Brasil. Rio de

Janeiro: Pallas, 2003, p. 137.

Page 239: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

239

FONTES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Fontes Primárias

Manuscritas

- Arquivo Nacional da Torre do Tombo – Inquisição de Lisboa

Processo 502 – João da Silva; Processo 508 – José Martins; Processo 1134 – Luis Pereiyra de

Almeida; Processo 1113 – Matheus Pereira Machado; Processo 5477 – Jose Vicente.

- Arquivo Histórico Ultramarino – Projeto Resgate

Documentos avulsos sobre a província da Bahia no Arquivo Luiza Fonseca (1599-1700)

Caixa: 28, doc.: 3420; Caixa: 28, doc.: 3517; Caixa: 28, doc.: 3518; Caixa: 28, doc.: 3519; Caixa:

29, doc.: 3560, Caixa: 3, doc. 314.

Catálogo de Documentos Manuscritos Avulsos Referentes à Capitania da Bahia existentes

no Arquivo Ultramarino

Caixa: 03, doc.: 313.

Impressas

- Legislação

Ordenações Afonsinas [1446]. Coimbra: Real Imprensa da Universidade, 1786.

Codigo Philippino ou Ordenaçoes e leis do Reino de Portugal. [1521]. Rio de Janeiro : Typ Inst

Philomathico, 1870.

Ordenações Manuelinas [1603]. Edição de Cândido Mendes de Almeida, Rio de Janeiro, 1870.

Regimentos do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal [1552, 1613, 1640, 1774]. In.:

Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, Rio de Janeiro, n. 392, jan./dez., pp.

495-1020, 1996.

Sacrossanto e Ecumenico Concilio de Trento em Latim e Portuguez [O]. Lisboa: Officina

Patriarc. de Francisco Luiz Ameno, 1781. (Acervo da Biblioteca Nacional de Lisboa).

Da VIDE, Sebastião Monteiro. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia propostas

e aceitas em o Synodo Diocesano que o dito Senhor celebrou em 12 de junho do anno de

1707. São Paulo: Typographia de Antonio Louzada Antunes, 1853.

Page 240: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

240

- Viajantes e Memorialistas

ACCIOLI, Ignácio de Cerqueira e Silva. Memórias Históricas e Políticas da Bahia. Mandadas

reeditar e anotar pelo Governo deste Estado. Annotador: Dr. Braz do Amaral. Vol V. Bahia:

Imprensa Oficial do Estado, 1937.

ALMADA, Álvares André. Tratado dos Rios de Guiné do Cabo Verde dês do Rio Sanagá até os

Baixos de Santa Ana de todas as Nações de negros que há na dita costa e de seus costumes,

armas, trajos, juramentos, guerras. In.: Monumenta Missionária Africana. África Ocidental

(1570-1600). Coligida e anotada pelo padre Antonio Brasio. Vol. 3. Lisboa: Agencia Geral do

Ultramar, 1965.

AMAULRY, Thomaz. Relation Universelle de L’Afrique Ancienne et Moderne. Où lón voit

ce quíl y a de remarquable, tant dans la Teere ferme que dans les Iles, avec ce que le Roy a fait de

memorable contre les corsaires de Barbarie, & c. En quatre parties. Par le Sr. De La Croix. Tome

second. Lyon, 1668.

Annaes do Archivo Publico. Anno IV, vol. VI e VII, VIII, XIV. Bahia: Imprensa Official do

Estado, 1920.

ANTONIL, André João. Cultura e Opulência no Brasil por suas Drogas e Minas. Texte de

l‟édition de 1711. Traduction française et comentaire critique para Andrée Mansuy. Paris:

IHEAL, 1968.

BARROS, João de & COUTO, Diogo de. Da Ásia. [1552] Nova edição offerecida a sua

Magestade D. Maria I Fidelíssima. Lisboa: Officina Typographica, 1778.

BENCI, Jorge. A Economia Cristã dos Senhores no Governo dos Escravos. São Paulo,

Grijalbo, 1977. [1707]

BLUTEAU, Rafael. Vocabulario portuguez, & latino, authorizado com exemplos dos melhores

escritores portuguezes, & latinos, e offerecido a elrey de Portugal Dom Joam V. pelo padre D.

Raphael Bluteau. Lisboa : Na Officina de Pascoal da Sylva, 1716.

BRASIO, Antonio Padre. Monumenta Missionária Africana. África Ocidental (1570-1600).

Volumes III, IV e V. Lisboa: Agencia Geral do Ultramar, 1965.

CADORNEGA, António de Oliveira. História Geral das Guerras Angolanas, 1680. Anotado e

corrigido por José Matias Delgado. Tomo III. Lisboa: Agência-Geral do Ultramar. 1972.

CALDAS, Jozé Antonio. Noticia Geral de toda esta Capitania da Bahia desde o seu

Descobrimento até o prezente anno de 1759. Revista do Instituto Geographico e Histórico da

Bahia. Salvador, 1981.

CAVAZZI DE MONTECÚCCOLO, João António. Descrição História dos três Reinos do

Congo Matamba e Angola. Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar, 1965.

CLARKSON, T. Os Gemidos dos Africanos, por causa do Traffico da Escravatura ou breve

exposição das injurias e dos horrores que acompanham este Traffico Homicida. Londres, 1823.

DIAS, Pedro. Arte da Lingua de Angola Offerecida a Virgem Nossa Senhora do Rosário

May, & Senhora dos Mesmos Pretos pelo padre Pedro Dias da Companhia de Jesus. Lisboa,

Page 241: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

241

na Officina de Miguel de Deslandes, Impressor de Sua Magestade com todas a licenças

necessárias. Ano 1697. (Edição fac-simile publicada pela Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro,

2006).

DONELHA, André. Descrição da Serra Leoa e dos Rios de Guiné do Cabo Verde. (1625).

Edição do texto português, introdução, notas e apêndices por Avelino Teixeira da Mota. Notas

por P.E. H. Hair. Tradução francesa por Leon Bourdon. Lisboa: Junta de Investigações

Cientificas do Ultramar, 1977.

FREIRE, Felisberto. História Territorial do Brazil. Edição Fac-similar. SECT/IGHB: Salvador,

1998.

Glossário de Vocábulos Portugueses derivados das Línguas Orientaes e Africanas, Excepto

a Árabe. Lisboa: Typographia da Academia Real de Ciências, 1837.

HERSKOVITS, Melville Jean. Dahomey, an ancient West African kingdom. New York: J. J.

Augustin Publishers, 1938.

KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil. Trad. de notas de Luiz da Câmara Cascudo.

Companhia Editorial Nacional, 1942. [1809-14]

LAS CASAS, Frei Bartolomé de. Brevíssima Relação da destruição de África: Prelúdio da

destruição das Índias, Primeira Defesa dos guanches e dos negros contra a sua escravização.

Estudo preliminar, edição e notas de Isácio Pérez Fernández. Trad. de Júlio Henriques. Lisboa:

Edições Antígona, 1996.

LEITE, Serafim. Historia da Companhia de Jesus. Século XVI – a Obra. Tomo II. Lisboa:

Livraria Portugal; Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1938.

_______. Jesuítas do Brasil, naturais de Angola. Brotéria. Lisboa, 1940, vol.31.

_______. Padre Pedro Dias. (autor da Arte da Lingua de Angola, apóstolo dos negros no Brasil).

Portugal em África. Lisboa: n. 4, v. 2, 1947.

_______. História da Companhia de Jesus no Brasil (Tomo V da Bahia ao Nordeste –

Estabelecimentos e Assuntos locais). Lisboa: Livraria Portugália; Rio de Janeiro: Instituto

Nacional do Livro, 1945.

MACHADO, Jose Pedro. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa com a mais antiga

documentação escrita e reconhecida de muitos vocábulos estudados. Lisboa: Editorial

Confluência, vol. II, 1959.

MENDES, Antonio de Oliveira. A Memória História sobre os costumes particulares dos

povos africanos, com relação privativa ao Reino da Guiné, e nele com o respeito ao rei de

Daomé. In.: COSTA E SILVA, Alberto. Salvador, Afro-Ásia, 28, 2002.

Orthographia ou Arte de Escrever e pronunciar com acerto a Lingua Portugueza para uso

do excellentissimo Duque de Lafoens, pelo seu mestre João de Morais Madureira Feijó. Lisboa:

Impressão Regia, 1824.

PAIVA MANSO, Visconde de. História do Congo (Documentos). Lisboa: Typographia da

Academia, 1877.

Page 242: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

242

PEIXOTO, Antonio Costa. Obra nova de lingua geral de mina. Manuscrito da Biblioteca

Pública de Évora, 1741. In.: Silvia Margarete Cunha SOUZA. A predicação da “língua geral de

mina”: uma proposta de descrição. São Paulo: 2001. (Dissertação apresentada ao departamento

de Lingüística da FFLCH-USP)

MORAES SILVA, Antonio de. Diccionario da Língua Portugueza composto pelo padre D.

Rafael Bluteau. Tomo II. Lisboa: Na Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789.

SANDOVAL, Alonso de. Un Tratado sobre la Esclavitud. Madrid: Alianza Editorial, 1987.

SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo das Coisas do Brasil em 1587. Comentários de

Francisco Adolfo Varnhagen. 5. ed. Brasília: Minc/PRÓ MEMÓRIA e INSTITUTO

NACIONAL DO LIVRO, 1987.

Viagens de Luis de Cadamosto e de Pedro de Sintra. Lisboa: Academia Portuguesa de

História, 1988.

VIDE, D. Sebastião Monteiro da. Noticias do Arcebispado da Bahia para suplicar a sua

Magestade Em favor do culto divino e salvação das almas. Revista do Instituto Historico e

Geographico Brazileiro. Rio de Janeiro, 1891, Parte I.

VILHENA, Luís dos Santos. A Bahia no Século XVIII. Bahia: Itapuã, vol. 2., 1969.

ZURARA, Gomes Eanes. Crônica da Guiné. Lisboa: Livraria Civilização, 1972. (Col.

Biblioteca Histórica - Série Ultramarina)

- Regimento

Segundo e Novo Compromisso para a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário da Vila de Santo

Antônio de Jacobina (1846), por Provizão de 10 de outubro de 1747, lançada no Primeiro

Compromisso.

- Digital

ELTIS, David. et all. The TransAtlantic Slave Trade DataBase on Cd Rom. Cambridge

University Press. s/d.

Page 243: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

243

LIVROS E ARTIGOS

ALENCASTRO, Luis F. O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São

Paulo: Cia. das Letras, 2000.

BASTIDE, Roger. As Religiões Africanas no Brasil. São Paulo: Pioneira, 1989.

______. As Américas Negras: civilizações africanas no Novo Mundo. São Paulo: Difel, 1974.

BATISTA, Ronaldo de Oliveira. Regras gerais e comparações na syntaxe da Arte da Lingua de

Angola. Revista Estudos Lingüísticos. GEL/UNESP, São Paulo, n. 33, 2004.

BETHENCOURT, Francisco. O imaginário da magia: Feiticeiros, saludadores e nigromantes.

Lisboa: Universidade Aberta, 1987,

______. História das Inquisições. Portugal, Espanha e Itália. Séculos XV-XIX. São Paulo: Cia.

das Letras, 2000.

______ & HAVIK, Philip. A África e a Inquisição portuguesa: novas perspectivas. Revista

Lusófona de Ciência das Religiões, Lisboa, v. 5/6, pp. 21-7, 2004.

BIASUTTI, P. A. Vokabulari Kriol – Portugis. (Esboço – proposta de Vocabulário). Guiné

Bissau: Missão Católica Bafatá, 1982.

BICALHO, M. F. & SOUZA, Laura de Mello e. O Império deste mundo: 1680-1720. São

Paulo: Cia. das Letras, 2000.

BITTAR, Marisa &. Amarilio Jr. FERREIRA, “Casas de bê-á-bá” e Colégios Jesuíticos no Brasil

do século XVI. Universidade Federal de São Carlos. [Consultado no sítio

www.faced.ufu.br/colubhe06/anais/arquivos/531AmarilioJunior_e_MarisaBittar.pdf -]

BLOCH, March. A Apologia da História. Ou o Ofício do Historiador. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar Editor 2001.

BOM MEIHI, José Carlos Sebe. A ética colonial e a questão jesuítica: dos cativeiros índio e

negro. Afro-Ásia, 21-22. Salvador, 1998-1999, pp.9-44.

BONVINI, Emilio. Línguas africanas e português falado no Brasil. 2008. (No prelo).

BOSCHI, Caio. As Visitas Diocesanas e a Inquisição na Colônia. Revista Brasileira de

História, São Paulo, Marco Zero, v. 14, 1987.

BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2003.

BOXER, Charles. A Idade do Ouro do Brasil. Trad. Nair de Lacerda. São Paulo: Companhia

Editora Nacional, 1963.

______. A Igreja e a Expansão Ibérica (1440-1770). Trad. de Lucena Barros e Sá Contreiras.

Lisboa: Edições 70; São Paulo: Martins Fontes, 1978.

Page 244: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

244

______. O Império Marítimo Português. 1415-1825. São Paulo: Cia. das Letras, 2002.

BUNKESI-LUMANSIA, Fu-Kiau. Le Mukongo et le Monde qui l’entourait: Cosmogonie-

Kôngo. Tradução para o francês por C. Zamenga Batukezanga. Kinshasa: Office National de la

Recherches et de Development, 1969.

BURKE, P. Hibridismo Cultural. São Leopoldo: Unisinos, 2003.

CALAINHO, Daniela Buono. Metrópole das Mandingas: Religiosidade Negra e Inquisição

Portuguesa no Antigo Regime. Niterói, 2000. (Tese apresentada ao departamento de História da

UFF)

_______. Jambacousses e gangazambes: feiticeiros negros em Portugal. Afro-Ásia, Salvador,

v.25-26, p.141-176, 2001.

______. Africanos penitenciados pela Inquisição Portuguesa. Revista Lusófona de Ciência das

Religiões, Lisboa, v.5/6, pp. 47-63, 2004.

CARNEIRO, Édison. O quilombo dos Palmares. São Paulo: Brasiliense, 1947.

CARREIRA, António. Símbolos, ritualistas e ritualismos ânimo-fetichistas na Guiné Portuguesa.

Boletim Cultural da Guine Portuguesa. Vol. XVI, 1961, no 63.

______. As Companhias Pombalinas de Grão-Pará e Maranhão, Pernambuco e Paraíba.

Porto: Editorial Presença, 1983.

CASCUDO, Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro [1954]. Rio de Janeiro: Ediouro, 1972.

CASTRO, Eduardo Viveiro de. A Inconstância da Alma Selvagem e outros ensaios de

Antropologia. São Paulo: Cosac&Naify, 2002.

CYMBALISTA, Renato. Sangue, ossos e terras: os mortos e a ocupação do território luso-

brasileiro séculos XVI-XVII. São Paulo, 2006. (Tese apresentada ao departamento de Estruturas

Ambientais Urbanas da FAU-USP)

______. Relíquias sagradas e a construção do território cristão na Idade Moderna. Anais do

Museu Paulista. História e Cultura Material. Vol 14, 2006, pp. 11-50.

______. A Cidade na América Portuguesa: Uma Comunidade de Vivos e Mortos. XII Encontro

Nacional da ANPUR, Belém, 2007. (Sessão Temática: História, Cidade e Urbanismo).

CLARK, Stuart. Pensando com Demônios. A idéia de Bruxaria no Princípio da Europa

Moderna. Tradução de Celso Mauro Parcionik. São Paulo: Edusp, 2006.

CORREA, Marcus Silvio da. A Imagem do negro no Relato de Viagem de Cadamosto (1455-

1456). Politeia: Historia e Sociologia. Vitória da Conquista, Vol. 2, n.1, 2002, pp.99-129.

CRAEMER, Willy de; VANSINA, Jan; FOX, Renée C. Religious Movements in Central Africa:

A Theorical Study. Comparatives Studies in Society and History, 18, 4, 1976, 458-475.

Page 245: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

245

CURTO, Diogo Ramada. A Língua e o Império. In.: Francisco BETHENCOURT & Kirti

CHAUDHURI. História da Expansão Portuguesa. Vol 1. A Formação do Império. Lisboa:

Temas e Debates, 1998-2000.

CURTIN, Philip. The Atlantic Slave Trade: a census. Madison: Wisconsin University Press,

1969.

DANTAS, Mônica Duarte. Povoamento e colonização do Sertão de Dentro baiano (Itapicuru,

1549-1822). Penélope: Revista de História e Ciências Sociais. Lisboa, vol.23, pp.9-30, 2000.

DOBRONRAVIN, Nikolai. Escritos multilingües em caracteres árabes: novas fontes de Trinidad

e Brasil no século XVIII. Afro-Asia, Salvador: UFBA, n. 31, pp.297-326, 2004.

Nikolay DOBRONRAVIN. O Islã na África do Oeste e no Brasil. (Consultado no sítio

http://www.casadasafricas.org.br/site/index.php?id=banco_de_textos)

ELTHIS, David, BEHRENDT, Stephen & RICHARDSON David. A participação dos países da

Europa e das Américas no tráfico transatlântico de escravos: novas evidências. Salvador, Afro-

Ásia, n. 24, pp. 9-50, 2000.

EVANS-PRITCHARD, E. E. Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar Editor, 2005.

FAGE, J. D. História da África. Lisboa: Edições 70, 1995.

FALCON, Francisco C. A crise dos valores morais, religiosos e artísticos. In.: F. C. FALCON e

A. E. RODRIGUES. Tempos Modernos: Ensaios de História Cultural, 2000.

FERREIRA, Jackson. „Por hoje se acaba a lida‟: suicídio escravo na Bahia (1850-1888).

Salvador, Afro-Ásia, 31, 197-234, 2004.

FERREIRA, Roquinaldo. Dinâmica do Comércio Intracolonial: geribitas, panos asiáticos e

guerra no tráfico angolano de escravos (Séc. XVIII). In.: O Antigo Regime nos Trópicos – a

dinâmica imperial Portuguesa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. pp. 341-78.

FLEXOR, Maria Helena. Abreviaturas: manuscritos do Século XVI-XVIII. São Paulo:

EDUNESP, 1991.

FLORENTINO, Manolo; RIBEIRO, Alexandre & SILVA, Daniel D. da. Aspectos comparativos

do tráfico de africanos para o Brasil (séculos XVIII e XIX). Salvador, Afro-Ásia, n. 31, pp. 83-

126, 2004.

FONSECA, Luís Adão da. O Imaginário dos navegantes dos séculos 15 e 16. São Paulo, Estudos

Avançados, n. 16, pp. 35-51, 1992.

FREYRE, Gilberto. Casa grande & Senzala. São Paulo: Global, 2006.

FRY, Peter; VOGT, Carlos. Cafundó A África no Brasil: linguagem e sociedade. São Paulo:

Cia. das Letras, 1996.

GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido

pela Inquisição. Trad. Betânia Amoroso. São Paulo: Cia. das Letras, 1987.

Page 246: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

246

_______ O Inquisidor como antropólogo – uma antologia e as suas implicações. In: A Micro-

História e outros ensaios. Rio de Janeiro: Difel, 1991.

______. Estranhamento: Pré-História de um procedimento Literário. Olhos de Madeira. Nove

reflexões sobre a distância. São Paulo: Cia. das Letras, 2001.

______. Mitos, emblemas, sinais. São Paulo: Cia. das Letras, 1989.

GRUZINSKI, Serge. Os mundos misturados da monarquia católica e outras connected histories.

Topoi. Rio de Janeiro, março, n.2, pp.175-95, 2001.

GROSSI, Ramon Fernandes. O caso de Ignácio Mina: tensões sociais e práticas “mágicas” nas

minas. Vitória da Conquista, Varia História, n. 20, pp. 118-9, 1999.

HAIR, P. E. H. Heretics, Slaves, and Witches – as seen by Guinea Jesuits c. 1610. Lisboa:

Instituto de Investigação Científica Tropical, 2002. (Serie Separatas)

HALL, Gwendolyn Midlo. Africans in Colonial Louisiana. The development of Afro-Creole

culture in the Eighteenth Century. Louisiana State University Press, 1995.

HAVIK, Philip J. Silences and Soundbytes. The gendered dynamics of trade and brokerage in

the colonial Guinea-Bissau region. Muenster/ New Brunswick, Lit Verlag/Transaction

Publishers, 2004.

______. Comerciantes e Concubinas: sócios estratégicos no comércio Atlântico na Costa da

Guiné. Rio de Janeiro, Revista Internacional de História de África – A Dimensão Atlântica da

África, pp. 161-79, 1996.

______. La sorcellerie, l‟acculturation et le genre: la persécution religieuse de l‟Inquisition

portugaise contre les femmes africaines converties en Haut Guinée (XVIIe siècle). Revista

Lusófona de Ciência das Religiões. Lisboa, Ano III, n. 5/6, pp. 99-116. 2004.

HOORNAERT, E. História da Igreja no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1979. Tomo 2.

HORTA, José da Silva. A inquisição em Angola e Congo: o inquérito de 1596-98 e o papel

mediador das justiças locais. In: Arqueologia do Estado. Primeira jornada sobre forma de

organização e exercício dos poderes na Europa do sul, séculos XIII-XVIII. Lisboa: História e

Crítica, vol. 1, 1988. pp. 387-425.

______. Africanos e Portugueses na Documentação Inquisitorial, de Luanda a Mbanza Kongo.

In: Actas do Seminário Encontro de Povos e Culturas em Angola. Luanda (1995). Lisboa:

CNCDP, 1997.

KI-ZERBO, Joseph. História da África Negra. Edição revista e atualizada pelo autor. Paris: Ed

Europa-America, 1972.

LARA, Silvia Hunold. Linguagem, domínio senhorial e identidade étnica nas Minas Gerais de

meados do Século XVIII. In.: Bela FELDMAN-BIANCO; Miguel Vale de ALMEIDA; Cristiana

BASTOS. (Org.). Trânsitos Coloniais: diálogos críticos luso-brasileiros. Lisboa: Imprensa de

Ciências Sociais, 2002.

Page 247: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

247

LAHON, Didier. Esclavage et Confréries Noires au Portugal durant l'Ancien Régime (1441-

1830). Paris, 2001. (Tese apresentada ao departamento de Anthropologie Sociale et Culturelle,

Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales)

______. Negros hereges, agentes do diabo, religiosidade negra e Inquisição em Portugal -

séculos XVI-XVIII. In.: FLORENTINO, M. & MACHADO, C. Ensaios sobre Escravidão (I).

Belo Horizonte: UFMG, 2003.

______. Inquisição, Pacto com Demônio e “magia” africana em Lisboa no século XVIII. Rio de

Janeiro, Topoi, vol.5, n.8, pp. 28-43, 2004.

LOPES, Carlos. KAABUNKÉ: Espaço, território e poder na Guiné-Bissau, Gâmbia e

Casamance pré-coloniais. Lisboa, 1999.

______. O Kaabu e os seus vizinhos: uma leitura espacial e histórica explicativa de conflitos.

Salvador, Afro-Ásia, n. 32, pp. 9-28, 2005.

LOPES, Nei. Novo Dicionário Banto do Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2003.

LOVEJOY, Paul. A escravidão no Califado de Socoto. In.: FLORENTINO, M.& MACHADO,

C. Ensaios sobre escravidão. Belo Horizonte: UFMG, 2003.

MACEDO, José Rivair. Os filhos de Cam: a África e o saber enciclopédico medieval. SIGNUM:

Revista da ABREM, vol. 3, pp. 101-32, 2001.

MACGAFFEY, Wyatt. The West in Congolese Experience. In.: CURTIN, P. Africa The West

Intellectual Responses to European Culture. Madison: University Wisconsin Press, 1972.

______. Dialogues of the deaf: Europeans on the Atlantic coast of Africa. In: SCHWARTZ,

Stuart (org.). Implicit Understandings. Observing, reporting, and reflecting on the encounters

between Europeans and other peoples in the Early Modern Era. Cambridge: Cambridge

University Press, 1994.

MAGGIE, Yvonne. Fetiche, feitiço, magia e religião. In.: ESTERCI, N,; FRY, P.; e

GOLDENBERG, M. (Org.). Fazendo Antropologia no Brasil. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.

MARCUSSI, Alexandre Almeida. Estratégias de mediação simbólica em um calundu colonial.

São Paulo, Revista de História, n. 155, pp. 97-124, 2006.

MARQUESE, Rafael de Bivar. Ideologia Imperial, poder patricarcal e o governo dos escravos

nas Américas, 1620-1700. Salvador, Afro-Ásia, 31, pp.39-82, 2004.

MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Bahia, Século XIX. Uma província no Império. Rio de

Janeiro: Nova Fronteira, 1992.

McMILLAN, J. Timothy. Black Magic: witchcraft, race, and resistance in colonial New England.

Journal of Blacks Studies, Sage Publications, Vol. 25, n. 1, pp.99-117, 1994.

MENDONÇA, José Lourenço de & MOREIRA, Antonio Joaquim. Historia dos principais

actos e procedimentos da Inquisição em Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda,

1980.

Page 248: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

248

MEYER, Marlise. Feitiços de Amor. São Paulo, Revista USP, 31, pp. 112-119, 1996.

MILLER, Joseph. Poder Político e parentesco. Os antigos estados Mbundu em Angola. Trad.

Maria da Conceição Neto. Luanda: Arquivo Histórico Nacional/Ministério da Cultura, 1995.

_______. O Atlântico escravista: açúcar, escravos e engenhos. Salvador, Afro-Ásia, n. 19/20, pp.

9-36, 1997.

MINTZ, Sidney & PRICE, Richard. O Nascimento da Cultura Afro-Americana: uma

perspectiva antropológica. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Pallas, 2003.

MOTT, Luiz. Acotundá: Raízes Setecentistas do sincretismo religioso afro-brasileiro. São Paulo,

Revista do Museu Paulista, n.31, pp. 124-147, 1986.

______. A Vida Mística e Erótica do Escravo José Francisco Pedreira 1705-1736. Rio de Janeiro,

Revista Tempo Brasileiro, n. 92/93, pp.85-104, 1988.

______. O Calundu-Angola de Luzia Pinta: Sabará, 1739. Ouro Preto, Revista do IAC, n.1,

pp.73-82, 1994.

______. Quatro Mandingueiros de Jacobina na Inquisição de Lisboa. Salvador, Afro-Ásia, n. 16,

pp.149-62, 1995.

______. Dedo de anjo e osso de defunto: os restos mortais na feitiçaria Afro-Luso-Brasileira. São

Paulo, Revista USP, n. 31, pp. 112-9, 1996.

_______. Santo Antônio, o divino Capitão-do-Mato. In.: REIS, João & GOMES, Flávio dos

Santos. Liberdade por um fio. História dos quilombos no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras,

1996.

______. Cotidiano e Vida Religiosa: entre a capela e o calundu. In.: SOUZA, Laura de M.

(org.). História da Vida no Brasil: cotidiano e vida privada na América Portuguesa. São Paulo:

Cia. das Letras, 1997.

______. Paulistas e colonos de São Paulo nas garras da Inquisição Portuguesa. Boletim do

Museu do Folclore, São Paulo, n.2, pp.31-43, 2002.

NAVARRETE, Federico. As relações inter-étnicas no México. México: UNAM, 2004.

NOVINSKY, Anita. Cristãos Novos na Bahia (1624-1654). São Paulo: Perspectiva, 1972.

NOGUEIRA, André. Minas Infernais: relações de alteridade e demonização de africanos e afro-

descendentes – Minas Gerais, século XVIII. Outra – Revista Eletrônica de História, 2005, no 2.

(Consultado no sítio www.revistaoutra.com.br)

______. Da trama: Práticas mágicas/feitiçaria como espelho das relações sociais – Minas Gerais,

século XVIII. Mnme – Revista Virtual de Humanidade, n. 11, vol. 5, 2004. (Consultado no

sítio www.seol.com.br/mneme)

NUNES, Manuel Dias. A Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão, 1755-1778. Belém:

UFPA, 1970.

Page 249: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

249

OLIVEIRA, Maria Inês Cortez. Quem eram os „Negros da Guiné‟? A Origem dos Africanos na

Bahia. Salvador, Afro-Ásia, n. 19/20, pp. 37-74, 1997.

ORTIGUES, Marie-Cécile e Edmond. Édipo Africano. Trad. Cláudia Berliner. São Paulo:

Escuta, 1989.

OSWALD, Maria Cristina. São Francisco Xavier no Oriente – Aspectos de devoção e

iconografia. São Francisco Xavier: nos 500 anos do nascimento de São Francisco Xavier: da

Europa para o mundo 1506-2006. Porto: Centro Interuniversitário de História da

Espiritualidade, 2007.

PAIVA, Eduardo França. Escravidão de universo cultural na Colônia. Minas Gerais, 1716-

1789. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001.

______. De corpo fechado: Gênero masculino, milícias e trânsito de culturas entre a África dos

mandingas e as Minas Gerais da América, no início do seculo XVIII. In.: LIBBY, Douglas Cole;

FURTADO, Júnia Ferreira (Org.). Trabalho livre, trabalho escravo: Brasil e Europa, séculos

XVIII e XIX. São Paulo: Annablume, 2006.

PAIVA, José Pedro. Práticas e crenças mágicas. O medo e a necessidade dos mágicos na

Diocese de Coimbra. Coimbra: Livraria Minerva, 1992.

_______. Bruxaria e superstição num país sem caça às bruxas (1600-1774). Lisboa: Notícias

Editorial, 1997.

PANTOJA, Selma & SARAIVA, José Flávio Sombra. Angola e Brasil nas rotas do Atlântico.

Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.

______. Inquisição, degredo e mestiçagem em Angola no século XVIII. Lisboa, Revista

Lusófona de Ciência das Religiões, ano III, n. 5/6. pp. 117-36, 2004.

______. Angola com os gangas e os zumbis nas redes da Inquisição no século XVIII. In.:

ISAIA, Artur César (Org.). Orixás e espíritos: o debate interdisciplinar na pesquisa

contemporânea. Uberlândia: EDUFU, 2006.

PARÉS, Luis Nicolau. A Formação do Candomblé: História e ritual da nação jeje na Bahia.

Campinas: Editora da Unicamp, 2006.

______. Tranformations of the Sea and Thunder Voduns in Gbe Speaking Área and in the

Bahina Jeje Candomblé. In.: CURTO, Jose, SOULODRE- LA FRANCE. & Renne. Africa and

the America: Interconnections during the Slave Trade. Trenton: Africa World Press, 2005.

______. O Processo de crioulização no Recôncavo baiano. Afro-Ásia, UFBA/CEAO, Salvador,

n. 33, pp. 87-132, 2005.

PINTO, Mário, Gabriel & SOUSA, Jorge Pedro SILVA. A Génese do Jornalismo Lusófono e

as Relações de Manuel Severim de Faria (1626-1628).

POLIAKOV, Léon. De Maomé aos Marranos: História do Anti-semitismo II. Trad. Ana M.

Coelho e J. Ginsburg. São Paulo: Perspectiva, 1979.

Page 250: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

250

POMPA, Cristina. As muitas línguas da conversão: missionários, Tupi e “tapuias” no Brasil

colonial. Rio de Janeiro, Tempo, n. 11, pp. 27-44, 2001.

_______. Religião como Tradução: missionários, Tupi e Tapuia no Brasil Colonail. Bauru:

EDUSC, 2003.

PRICE, Richard. O milagre da crioulização: retrospectiva. Rio de Janeiro, Estudos Afro-

Asiáticos, Rio de Janeiro, n.25, 383-419, 2003.

PROSPERI, Adriano. As Missões no Brasil, vistas de Roma. São Paulo, 2007. (Texto impresso

apresentado no Colóquio Internacional Poder e Religião no Império Português de 1 a 5 de

outubro de 2007)

PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: povos indígenas e a colonização do sertão.

Nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo: EDUSP/FAPESP, 2002.

RAMOS, Arthur. O Negro Brasileiro: Etnografia Religiosa. São Paulo/Porto Alegre: Cia

Editora Nacional/Universidade de São Paulo, 1940.

REGINALDO, Lucilene. Os Rosários dos Angolas: Irmandades Negras, experiências escravas e

identidades africanas na Bahia setecentista. Campinas, 2005. (Tese apresentada ao departamento

de História do IFCH-UNICAMP)

REIS, João José & SILVA, Eduardo. Negociação e Conflito. A resistência negra no Brasil

Escravista. São Paulo: Cia. das Letras, 1989.

REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil: A história do levante dos malês em 1835. São

Paulo: Cia. das Letras, 2003.

______. REIS, João J. Magia Jeje na Bahia: a invasão do Calundu de Cachoeira, 1785. São

Paulo, Revista Brasileira de História, v.6, n. 16, pp. 57-81, 1988.

______. Sacerdotes, devotos e clientes no Candomblé da Bahia oitocentista. In.: Orixás e

espíritos: o debate interdisciplinar na pesquisa contemporânea. Uberlândia: EDUFU, 2006.

______. Domingos Pereira Sodré: um sacerdote africano na Bahia oitocentista. Salvador, Afro-

Ásia, 34, pp. 237-313, 2006.

_______. Quilombos e revoltas escravas no Brasil: “Nos achamos em campo a tratar da

liberdade”. São Paulo, Revista USP, n. 28, pp. 14-38, 1996.

RIBEIRO, Alexandre V. Estimativas sobre o volume do tráfico Transatlântico de escravos para a

Bahia, 1582-1851 Londrina, 2005 (XXIII Simpósio Nacional de História, ANPUH)

______. The Trans-Atlantic Slave Trade to Bahia (1582-1851). In.: David ELTIS; David

RICHARDSON. (Orgs.). Extending the Frontiers: Essays on the New Transatlantic Slave

Trade Database. Yale University Press, (no prelo).

RODRIGUES, Aldair Carlos. Sociedade e Inquisição em Minas Colonial: Os Familiares do

Santo Ofício (1711-1808). São Paulo, 2007. (Dissertação apresentada ao departamento de

História da FFLCH-USP)

Page 251: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

251

RODRIGUES, Nina. Os Africanos no Brasil. São Paulo: Nacional, Brasília: INL, 1976. (Col.

Brasiliana).

RUSSEL-WOOD, A. J. R. Através de um prisma Africano. Uma abordagem ao estudo da

diáspora africana no Brasil colonial. Rio de Janeiro, Tempo, 12, pp. 11-50, 2002.

_______. Um mundo em movimento. Os portugueses na África, Ásia e América (1415-1808).

Lisboa: Difel, 1999.

_______. Escravos e Libertos no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

RYDER, A. F. C. Missionary Activity in the Kingdom of Warry to the early nineteenth century.

In: Journal of the Historical Society of Nigeria, Vol.2, pp.1-24, 1960.

SANCHIS, Pierre. As tramas sincréticas da História: Sincretismo e modernidades no espaço

luso-brasileiro. São Paulo, Revista Brasileira de Ciências Sociais-ANPOCS, ano 10, n. 28,

pp.123-138, 1995.

SARAIVA, Antônio José. Inquisição e cristãos-novos. Lisboa: Estampa, 1985.

SCARANO, Julita. Escravidão e Devoção. A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos

Pretos no Distrito Diamantino no Século XVIII. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1975.

(Col. Brasiliana).

SENNA, Ronaldo & AGUIAR, Itamar. Jarê: Instalação africana na Chapada Diamantina. In.:

PRANDI, Reginaldo. Encantaria brasileira: o livro dos mestres, caboclos e encantados. 1. ed.

Rio de Janeiro: Pallas, 2001.

SERAFIM, João Carlos G. Relíquias e propaganda religiosa no Portugal pós-tridentino. Porto,

Via Spiritus, Centro Inter-Universitário de História da Espiritualidade da Universidade do Porto,

n. 8, p.157-184, 2001.

SERRANO, C. M. Os Senhores da Terra e os Homens do Mar: antropologia poética de um

reino africano. São Paulo: FFLCH-USP, 1983.

______. O Imaginário e o sentido apotropaico no simbolismo gráfico da arte africana. Coimbra,

Perspectivas Sobre Angola, v. 1, p. 19-24, 2001.

SILVA, Alberto da Costa e. A Enxada e a Lança: a África antes dos Portugueses. Rio de

Janeiro: Nova Fronteira; S. Paulo: EDUSP, 1992.

______. A Manilha e o Libambo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.

______. A Memória História sobre os costumes particulares dos povos africanos, com relação

privativa ao Reino da Guiné, e nele com o respeito ao rei de Daomé, de Luis Antonio de Oliveira

Mendes. Salvador, Afro-Ásia, n. 28, pp. 251-94, 2002.

_______. Francisco Félix de Sousa: um mercador de escravos. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 2004.

_______.Sobre a Rebelião de 1835 na Bahia. In.: FLORENTINO, M. & MACHADO, C.

Ensaios sobre escravidão. Belo Horizonte: UFMG, pp.219-234, 2003.

Page 252: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

252

______ Um rio chamado Atlântico: a África no Brasil e o Brasil na África. Rio de Janeiro:

Nova Fronteira, 2003.

SILVA, Cândido da Costa e. Os segadores e a Messe. O clero oitocentista na Bahia. Salvador:

EDUFBA, 2000.

SILVA, Eduardo. Dom Obá II D`África, O Príncipe do Povo: Vida, Tempo e Pensamento de

um Homem Livre de Cor. São Paulo: Cia das Letras, 1997.

SILVA, Filipa Ribeiro da. A Inquisição em Cabo Verde, Guiné, S. Tomé e Príncipe (1536-

1821): Contributo para o estudo da política do Santo Oficio nos territórios africanos. Vol 1.

Lisboa, 2002 (Dissertação apresentada ao departamento de História dos Descobrimentos e da

Expansão Portuguesa apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade

Nova de Lisboa).

______. Inquisição em África: A Inquisição na Guiné, nas Ilhas de Cabo Verde e São Tomé e

Príncipe. Lisboa, Revista Lusófona de Ciências da Religião, ano III, n. 5/6, pp. 157-73, 2004.

SLENES, Robert. “Malungu Ngoma Vem!” África coberta e descoberta no Brasil. São Paulo,

Revista USP, n. 28, 1991-2.

______. . “Malungu Ngoma Vem!” África coberta e descoberta no Brasil. In: ARAUJO, M.

Negras Memórias, Memórias de Negros. São Paulo, 2002.

______. A árvore de Nsanda transplantada: cultos kongo de aflição e identidade escrava no

Sudeste brasileiro (século XIX). In.: LIBBY, Douglas Cole; FURTADO, Júnia Ferreira (Orgs.).

Trabalho livre, trabalho escravo: Brasil e Europa, séculos XVIII e XIX. São Paulo:

Annablume, 2006.

SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Cia. das Letras, 2002.

_______. As devassas eclesiásticas da Arquidiocese de Mariana: fontes primarias para a História

das Mentalidades. Anais do Museu Paulista, São Paulo, tomo XXXIII, São Paulo, pp. 65-73,

1984.

_______. Curas Mágicas e Sexualidade no século XVIII Luso-Brasileiro. São Paulo, Revista

USP, 31, pp. 112-119, 1996.

______. Revisitando o Calundu. In.: Lina Gorenstein e Maria L. Tucci Carneiro (Org.) Ensaios

sobre a Intolerância: Inquisição, Marranismo e Anti-Semitismo. São Paulo: Humanitas/

Fapesp, 2002.

SOUZA, Marina de Mello & VAINFAS, Ronaldo. Catolicização e poder no tempo do

tráfico: o reino do Congo da conversão coroada ao movimento antoniano, séculos XV-

XVIII. Rio de Janeiro, Tempo, vol. 3, n 6, pp. 95-118, 1998.

SOUZA, Marina de Mello e. Santo Antônio de nó-de-pinho e o catolicismo afro-brasileiro. Rio

de Janeiro, Tempo, n. 11, pp.171-88, 2001.

______. Reis negros no Brasil escravista. História da Festa de Coroação de Rei Congo. Belo

Horizonte, Editora UFMG, 2002.

Page 253: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

253

______. Catolicismo Negro No Brasil: Santos e Minkisi, Uma Reflexão Sobre Miscigenação

Cultural. Salvador, Afro-Ásia, n. 28, 125-146, 2002.

______. A rainha Jinga de Matamba e o catolicismo - África Central, século XVII. Madrid, 2007

(Comunicação apresentada no Congresso Internacional Las relaciones discretas entre las

monarquías hispana y portuguesa: Las casas de las reinas (siglos XV-XIX). Madrid,

Universidade Autônoma de Madrid; 11 e 14/ dezembro/2007)

SOARES, Mariza Carvalho. Devotos da cor. Identidade étnica, religiosidade e escravidão. Rio

de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

______. Mina, Angola, Guine: nomes d‟África no Rio de Janeiro Setecentista. Niterói, Tempo,

vol. 3, n. 6, pp. 95-118, 1998.

SWEET, James H. Recreating Africa: Culture, Kinship, and Religion in the African-Portuguese

World 1441-1770. Carolina: The University of North Carolina Press, 2003.

______. “Not a Thing for white Men to see”: Central African Divination in Seventeenth-Century

Brazil. In: CURTO, José C. & LOVEJOY, Paul. Enslaving Connections: Changing Cultures of

Africa and Brazil during the Era of Slavery. New York: Humanity Books, 2004.

THORNTON, John. The Kingdom of Kongo: Civil War and Transition 1641-1718. University

of Wisconsin Press, 1983.

______. On the Trail of Voodoo: African Christianity in Africa and the Americas. The

Americas, n. 55, pp. 261-78, 1991.

______. 'I am the Subject of the King of Congo': African Ideology in the Haitian Revolution.

Journal of World History, n. 4, pp.181-214, 1993.

______. A África e os africanos na formação do mundo atlântico (1400-1800). Trad. Marisa

Rocha Mota. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

THOMPSON, Robert Faris. Flash of the Spirit: African & Afro-American, Art & Philosophy.

New York: Vintage Books, 1984.

THOMPSON, Robert F. & CORNET, Joseph. The four moments of the sun: Kongo Art in two

worlds. National Gallery of Art, Washington, 1981.

TORRES, J. Veiga. Da repressão religiosa para a promoção social: A Inquisição como instância

legitimadora da promoção social da burguesia mercantil. São Paulo, Revista de Ciências

Sociais, n. 40, pp.109-135, 1994.

VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados. 2. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1989.

______. Ideologia e Escravidão: os letrados e a sociedade escravista no Brasil colonial.

Petrópolis: Vozes, 1986.

______. A Heresia dos Índios. Catolicismo e rebeldia no Brasil Colonial. São Paulo: Cia. das

Letras, 1995.

Page 254: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

254

______. Deus contra Palmares – representações senhoriais e idéias jesuíticas. In.: REIS, João &

GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio. História dos quilombos no Brasil. São

Paulo: Cia. das Letras, 1996.

______. Confissões da Bahia: Santo Ofício da Inquisição de Lisboa. São Paulo: Cia. das

Letras, 1997.

VERGER, Pierre. Fluxo e Refluxo: comércio entre a Bahia de Todos os Santos e o Golfo do

Benim. Sao Paulo: Corrupio, 1997.

VANHEE, Hein. Central African popular christianity and the making of haitian voodoo

religion. In.: HEYWOOD, Linda M. Central Africans and Cultural Transformations in the

American Diaspora. Cambridge: Cambridge University Press, 2002.

VANSINA, Jan. A África Equatorial e Angola: as migrações e o surgimento dos primeiros

Estados. In.: NIANE, D. T. (org) História Geral da África. IV. A África do século XII ao

século XVI. São Paulo: Ática/Unesco, 1982.

VASCONCELOS, Albertina Lima. Ouro, conquistas, tensões, poder: Mineração e Escravidão

– Bahia do Século XVIII. Campinas, 1997. (Dissertação apresentada ao departamento de História

do IFCH- UNICAMP).

VAUCHEZ, André. A Espiritualidade na Idade Média Ocidental, séculos VIII a XIII. Séculos

VIII a XIII. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.

VIEIRA FILHO, Raphael Rodrigues. Os negros em Jacobina (Bahia) no século XIX. São

Paulo, 2006 (Tese apresentada ao Programa de Pós-Gradução em História da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo).

VOVELLE, Michel. Ideologias e Mentalidades. São Paulo: Brasiliense, 1991.

VOLAVKOVA, Zdenka. Nkisi figures of the Lower Congo. Symposium on Traditional

African Art, organized by the Peabody Museum and CAAS at Harvard University on May 4-7,

1971.

WADSWORTH, James E. Jurema, and Batuque indians, africans, and the Inquisition in colonial

Northeastern Brazil. Chicago, History of Religion, n. 2, pp. 140-61, 2006.

WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Cartas, procurações, escapulários e patuás: os múltiplos

significados da escrita entre escravos e forros na sociedade oitocentista brasileira. São Paulo,

Revista Brasileira de História da Educação, n. 4, pp. 103-22, 2002.

ZERON, Carlos Alberto de Moura R. Pombeiros e Tangomaus, intermediários do tráfico de

escravos na África. In.: LOUREIRO, R. M. & GRUZINSKI (coord.). Passar as Fronteiras.

Lagos, 1999.

______. O debate sobre a escravidão ameríndia e africana nas universidades de Salamanca

e Évora. In.: CAROLINO, Luis M. & GAMENIETZKI, Carlos Z. Jesuítas, Ensino e Ciência.

Séc. XVI-XVIII. Portugal: Caleidoscópio, 2005.

Page 255: As bolsas de mandinga no espaço atlântico: século XVIII

255