As Canções Para Voz e Piano de José Penalva

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA MESTRADO EM MÚSICA GRASIELI CRISTINA DOS SANTOS AS CANÇÕES PARA VOZ E PIANO DE JOSÉ PENALVA: UM ESTUDO CRÍTICO-INTERPRETATIVO CURITIBA 2012

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Artigo sobre piano

Transcript of As Canções Para Voz e Piano de José Penalva

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM MSICA

    MESTRADO EM MSICA

    GRASIELI CRISTINA DOS SANTOS

    AS CANES PARA VOZ E PIANO DE JOS PENALVA:

    UM ESTUDO CRTICO-INTERPRETATIVO

    CURITIBA

    2012

  • GRASIELI CRISTINA DOS SANTOS

    AS CANES PARA VOZ E PIANO DE JOS PENALVA:

    UM ESTUDO CRTICO-INTERPRETATIVO

    Dissertao apresentada como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Msica pelo Programa de Ps-Graduao em Msica do Departamento de Artes da Universidade Federal do Paran Orientador: Dr. Maurcio Dottori

    CURITIBA 2012

  • Ao Alexandre, amor de todas as minhas vidas [], nico capaz de me convencer a casar!, por me ensinar o verdadeiro significado de companheirismo.

  • AGRADECIMENTOS

    Ao criador dos cus e das terras, por me mostrar que a

    racionalidade no exclui, mas complementa a f.

    Aos meus queridos pais, Elen e Jos, pela vida, pelo exemplo,

    pela educao [...] Me, obrigada por colocar tua vida

    temporariamente de lado pela nossa, fez toda a diferena! Pai,

    obrigada pelo exemplo de simplicidade e trabalho duro.

    Hiermit mchte ich mein Herzlichsten Dank ausprchen an

    meine liebe Oma, die immer ein gutes Wort und eine grosse

    Untersttzung fr mich hat. Von Ihr bekam ich meine erste

    Klawiertur und meine erste Konzertkleidung. Nochmals Danke

    Oma!

    Ao meu marido, pela pacincia, pelas contribuies e, [claro!]

    por aceitar que as horas de correpeties fossem pagas com

    trabalho escravo.

    Ao meu irmo que, apesar de distante, sempre torce por mim

    em pensamento.

    Dona Mara, que, onde quer que esteja, tem olhado por ns e

    nos acompanhado em nossa jornada.

    Ao meu querido orientador que me adotou quando me fiz rf

    [...] por toda a pacincia, ajuda, sabedoria, humildade e por

    toda a criatividade e ironia, fundamentais para esse trabalho.

  • Ao prestativo Padre Jaime Snchez Bosch, guardio das obras e

    grande amigo do Padre Penalva, sempre atencioso, nos cedendo

    os materiais, respondendo a inmeros e-mails e nos acolhendo

    como famlia.

    professora Denise Sartori pelas valiosas contribuies e

    indicaes bibliogrficas que me permitiram uma maior

    reflexo cientfica sobre tcnica vocal, interpretao, fisiologia e

    anatomia da voz.

    Aos professores membros da banca de avaliao, Adriana

    Kayama e Edwin Pitre, pela leitura cuidadosa do trabalho e

    todas as consideraes feitas que fizeram essa pesquisa

    amadurecer.

    minha querida fonoaudiloga Teresa Pesenti [especialista em

    voz], por me ajudar a encontrar o que tanto busco. Voc uma

    luz na minha vida!

    soprano Kalinka Damiani, por tudo o que tem ensinado a

    mim e pelas sugestes interpretativas a cerca das canes.

    Aos grandes amigos [especialmente Dani, Hugo, Malu e Cris]

    dos quais tive que me privar da presena para que esse trabalho

    pudesse ser feito.

    CAPES pela bolsa de estudos.

    A todos que contriburam de alguma forma para a realizao

    deste trabalho.

  • Pedi e se voz dar; buscais e achareis; batei porta e se vos abrir; porque todo aquele que pede recebe, quem procura acha, e se abrir quele que bater porta (MATEUS, VII, 7-11).

  • RESUMO Jos Penalva (1924-2002), natural de Campinas SP, foi um dos compositores mais importantes a atuar no estado do Paran. Sua obra vasta e pouco explorada, com exceo do repertrio pianstico e algumas peas orquestrais. Nessa dissertao apresento um estudo sobre suas canes seculares para voz e piano compostas entre os anos de 1953 e 1970. Esse trabalho teve como objetivos: analisar a relao texto/msica que permeia as canes, traar uma trajetria estilstica entre essas canes inseridas no contexto composicional em que foram concebidas e um estudo das dificuldades tcnicas da melodia executado pelo cantor. Como suporte terico para a anlise musical utilizei algumas ferramentas da anlise estilstica de Jean LaRue e da anlise fenomenolgica de James Tenney, aplicada somente na cano Dois Momentos. Para a anlise da poesia fiz uso do modelo proposto por Norma Goldstein, do estudo de versificao em lngua portuguesa de Manuel Bandeira e da pesquisa de Peter Stacey sobre a anlise de msica contempornea. Conclui que suas canes so essencialmente nacionalistas, pela escolha dos temas, ritmos, textos e linguagem composicional utilizada. Nelas, o piano um instrumento ambientador e comentador e em alguns momentos a msica assume funo mimtica. J sua obra Parafolclricas Dois Momentos difere das demais canes para canto e piano, sendo este o instrumento que oferece unidade e coeso ao texto, complementando as idias do canto. Os textos escolhidos para as canes so essencialmente textos folclricos ou poemas modernistas de fase nacionalista. Quanto mtrica, so recorrentes os usos de redondilhas maiores, talvez por um maior conforto do compositor em escrever para esse ritmo potico. Foram tambm discutidas as dificuldades tcnicas do canto nas obras e sugeridas solues para sua execuo alm de sugestes interpretativas para a performance. Palavras-chave: Cano brasileira. Nacionalismo. Texto/msica. Dificuldades tcnicas.

  • ABSTRACT Jos Penalva (1924-2002) born in Campinas, state of So Paulo was one of the most important composers to work in the state of Paran. His work is vast and little explored, except for his piano music and some orchestral pieces. In this dissertation, I present a study of his secular songs for voice and piano, which were composed between 1953 and 1970. In it I aimed to analyze the relationship between text and music that pervades the songs; to draw a line of stylistic development for the songs, according to the compositional background they were conceived; and to study the technical difficulties of the melodies written for the singer. As a theoretical support for the musical analysis I used some tools of stylistic analysis proposed by Jean LaRue and the phenomenological analysis by James Tenney (applied only to the song Dois Momentos). For the analysis of the poetry, I used the model proposed by Norma Goldstein, the study of Portuguese versification by Manuel Bandeira, and Peter Staceys research on the analysis of music and text in contemporary composition. The research revealed that the songs are essentially nationalist in light of the choices of poetic themes, rhythms, texts and compositional idiom. In them, the pianos function is either atmospheric or commentator, and in some moments the music is given a mimetic function. His work Parafolclricas Dois Momentos, however, is different from the other songs for voice and piano, as this instrument bestows unity and cohesion to the text, complementing the ideas given to the voice. The chosen texts are essentially folkloric or modernist poems of the nationalist period. In terms of their meter, the use of seven-syllable traditional verses (redondilhasmaiores) is recurrent, perhaps due to a greater comfort of the composer with this poetic rhythm. The technical difficulties for the singer were discussed and solutions to overcome them were presented, as well as suggestions of interpretation for the performance. Keywords: Brazilian Song. Nationalism. Text/music. Technicaldifficulties.

  • SUMRIO

    INTRODUO .......................................................................................... 14

    1. JOS PENALVA MSICO E SACERDOTE .......................................... 19

    2. A CANO PARA CANTO ..................................................................... 23

    2.1 AS CANES DE JOS PENALVA ................................................................... 26

    2.2 AS APOSTILAS DE HISTRIA DA MSICA ................................................... 29

    3. ANLISE MUSICAL E TEXTUAL DAS CANES ................................. 32

    3.1 SAUDADE ............................................................................................................ 32

    3.2 TRS PEAS PARA VOZ E PIANO ...................................................................... 47

    3.2.1 Pea I .......................................................................................................... 48

    3.2.2 Pea II......................................................................................................... 52

    3.2.3 Pea III ....................................................................................................... 56

    3.3 BOA NOITE .......................................................................................................... 60

    3.4 TRS MELODIAS SIMPLES ................................................................................. 66

    3.4.1 Jangada de Vela .......................................................................................... 67

    3.4.2 Eu nasci naquela serra ................................................................................ 73

    3.4.3 Bentevi ........................................................................................................ 79

    3.5 PARAFOLCLRICAS - DOIS MOMENTOS ......................................................... 85

    3.5.1 Primeiro Movimento - Reis Magos .............................................................. 87

    3.5.2 Segundo Movimento - Me Preta ................................................................ 96

    CONSIDERAES FINAIS ..................................................................... 102

    REFERNCIAS ....................................................................................... 106

    ANEXOS ..................................................................................................110

  • LISTA DE FIGURAS:

    Figura 1:Tema a da sesso A. ............................................................................................... 33

    Figura 2:Tema b da sesso A. .............................................................................................. 33

    Figura 3: Ritmo sincopado do piano reforando a metfora da saudade .............................. 37

    Figura 4:Desenho meldico imitando os bordes de violo tpicos de choro ........................ 37

    Figura 5:Comparao rtmico-meldica da Introduo e 2 parte do tema b. ...................... 40

    Figura 6:Comparao entre tema a e tema a. ...................................................................... 41

    Figura 7:Elemento conectivo cadencial. ............................................................................... 42

    Figura 8:Pontos de maior dificuldade tcnica da cano. ..................................................... 44

    Figura 9:Sugesto de exerccio para melhorar os saltos de oitava. ....................................... 45

    Figura 10:Sugesto de exerccio para melhorar o ataque...................................................... 46

    Figura 11:Exemplo do pulso ternrio implcito em compasso binrio simples. ..................... 46

    Figura 12:Verso para coro de 1966. .................................................................................... 47

    Figura 13:Verso para coro de 1980. .................................................................................... 47

    Figura 14:Delimitao das duas primeiras frases da Pea I antecedente e consequente ................ 49

    Figura 15:Estrutura frasal, meldica e harmnica da Pea I.................................................. 51

    Figura 16:Primeira frase vocal e sugesto de execuo articulatria parte A (pea II) ....... 54

    Figura 17:Frases e sugesto de execuo articulatria parte A (pea II). ........................... 55

    Figura 18:Frase, harmonia e sugesto de execuo articulatria parte A (Pea II).. .......... 55

    Figura 19:Primeira e segunda frases e suas articulaes Pea III. ..................................... 57

    Figura 20:Frases 3 e 4 e sugestes de intensidade Pea III ............................................... 58

    Figura 21:Msica sob os versos da primeira estrofe de Boa Noite parte A ......................... 63

    Figura 22:Mudana de tonalidade e textura para a 2 estrofe do poema Parte B. ............. 64

    Figura 23:Retomada do tema inicial pelo piano Parte A .................................................. 65

    Figura 24:Imitao do balano das ondas na introduo do piano Jangada de Vela. ....... 68

    Figura 25:Harmonias paralelas e extenso vocal da parte A Jangada de Vela................... 70

    Figura 26:Progresso harmnica por 4as e balano das ondas Jangada de Vela ............. 71

    Figura 27:Coda e perturbao da melodia Jangada de Vela .......................................... 72

    Figura 28:Contorno meldico e cadncias das frases da parte A Eu nasci naquela serra. . 76

    Figura 29:Contorno meldico e harmonia da parte B Eu nasci naquela serra. ................ 77

    Figura 30:Contorno meldico e harmonia da Coda Eu nasci naquela serra. .................... 78

    Figura 31: Linha vocal e do piano sincopado da parte A Bentev. ..................................... 82

    Figura 32:Contorno meldico e cadncias do acompanhamento na parte B Bentev. ........ 83

    Figura 33: Linha vocal, harmonia e sugesto de dinmica para a parte C Bentevi. ........... 84

    Figura 34:Srie dodecafnica que serviu de base para a composio de 2 Momentos. ......... 87

  • Figura 35:Clang 1 e seus elementos constituintes 1 pentagrama. .................................... 91

    Figura 36:Clang 2e elementos semelhantes por familiaridade 2 pentagrama. ................ 91

    Figura 37:Clang 3 e elemento semelhante por proximidade 3 pentagrama ..................... 92

    Figura 38:Clang 4, elementos semelhantes por prox. e fam. 4 pentagrama ..................... 94

    Figura 39:Clang 5 e 6, respectivamente 5 e 6 pentagramas. .......................................... 95

    Figura 40:Clang 7 e paralelismo de 4as 7 Pentagrama. .................................................... 95

    Figura 41:Clang 1 e seus trs elementos............................................................................... 98

    Figura 42:Clang 2 e sobreposio de elementos ao bate p ............................................. 100

    Figura 43:Clang 2 e sobreposio de elementos ao bate p .............................................. 101

  • LISTA DE TABELAS:

    Tabela 1: Ano de composio das canes para canto e piano de Jos Penalva. .................... 27

    Tabela 2: Ano e local das canes para voz e piano de Jos Penalva ..................................... 28

    Tabela 3: Escanso Rtmica do Poema Saudade .................................................................. 35

    Tabela 4: Sntese das caractersticas principais da Pea I ..................................................... 52

    Tabela 5:Acordes e notas da melodia escolhidas pelo compositor Pea II ......................... 53

    Tabela 6:Sntese das caractersticas e sugestes de interpretao Pea II.......................... 56

    Tabela 7: Sntese das caractersticas e sugestes de carter Pea III.................................. 59

    Tabela 8:Comparao das caractersticas entre as Trs Peas para Voz e Piano .................. 59

    Tabela 9:Escanso rtmica do poema da cano Boa Noite .................................................. 61

    Tabela 10: Sntese das caractersticas da cano Boa Noite. ................................................. 66

    Tabela 11:Escanso Rtmica do poema Jangada de Vela...................................................... 67

    Tabela 12:Sntese das caractersticas estruturais e musicais de Jangada de Vela ................. 73

    Tabela 13: Escanso rtmica de parte do poema Tristezas do Jeca.. ..................................... 74

    Tabela 14:Sntese das caractersticas de Eu nasci naquela serra .......................................... 79

    Tabela 15:Escanso Rtmica do poema da cano Bentevi.................................................... 81

    Tabela 16: Sntese das caractersticas musicais de Bentevi. .................................................. 85

    Tabela 17:Escanso rtmica do poema Reis Magos .............................................................. 88

    Tabela 18:Sntese analtica e interpretativa do primeiro movimento .................................... 96

    Tabela 19:Escanso Rtmica do poema Me Preta ............................................................... 97

    Tabela 20:Esquema formal do segundo movimento e caracterizao das partes ................. 101

  • 14

    INTRODUO

    Aps o contato com peas do repertrio instrumental de Jos Penalva em

    2007, durante um recital com obras do compositor, despertou-me o interesse em

    conhecer sua obra vocal de cmara. Em uma busca inicial, descobri alguns trabalhos

    acadmicos que apontaram a existncia de um acervo que reunia inmeras obras do

    compositor, documentos sobre a vida religiosa e musical do Padre Jos Penalva e

    tambm parte de sua produo didtica.

    Em visita a este acervo, denominado, na poca, Espao Penalva1, observei

    que grande parte de suas composies aguardava ainda por edio e publicao.

    Dentre os manuscritos encontrados, havia sua obra vocal de cmara, e mais

    especificamente, suas canes para voz e piano, corpus desse trabalho.

    A escolha das canes, em especial, deve-se convergncia entre meus anos

    de estudo em canto erudito e de minha formao em Letras, visto que na cano,

    msica e poesia interagem e essa relao texto/msica sempre me despertou

    interesse. No poderia deixar tambm de atribuir minha opo por essa pesquisa, s

    pesquisas acadmicas recentes que visam o estudo e o resgate da cano brasileira,

    em especial ao projeto homnimo da UFMG2, que tem incentivado seu estudo e

    resgate.

    Dentre suas composies, Penalva escreveu peas para instrumento solo,

    msica de cmara, coro a cappella, obras orquestrais e corais-orquestrais, com

    solistas, atores e declamadores. Observa-se, no catlogo de Prosser3, que predomina a

    msica vocal sobre a instrumental. Tambm em maior quantidade so as obras sacras

    se comparadas s seculares e as obras para coro.

    O Catlogo de Obras do Ministrio das Relaes Exteriores do Brasil4, a obra

    36 Compositores Brasileiros, o Catlogo Comentado e o livro Jos Penalva

    1 Atual Museu Claretiano de Curitiba, inaugurado em outubro de 2011, anexo ao Studium

    Theologicum e Igreja Imaculado Corao de Maria, h um espao dedicado a toda a obra literria e musical de Padre Penalva.

    2 Projeto Resgate da Cano Brasileira (UFMG), disponvel em:

    https://www.grude.ufmg.br/cancaobrasileira 3 Elisabeth Seraphim Prosser, Um olhar sobre a msica de Jos Penalva: Catlogo Comentado

    (Curitiba: Champagnat, 2000), 19. 4Ariede Migliavacca e Lus Milanesi e Paula Ferreira,Jos Penalva: Catlogo de obras(Braslia:

    Ministrio das Relaes Exteriores), 1978.

  • 15

    umavida com a batina e a batuta5, trazem as obras do compositor, sendo o ltimo o

    mais completo. Foi em consulta a esses materiais que pude selecionar um grupo de

    canes para voz e piano que revelam uma trajetria estilstica e composicional no

    repertrio vocal desse compositor.

    Embora no faam parte de uma coletnea ou lbum de canes, quando

    observadas cronologicamente, essas canes apresentam diferentes linguagens

    musicais utilizadas como recursos composicionais, que vo desde o tonalismo

    tradicional nas obras sacras da dcada de 1940 at o atonalismo na dcada de

    1970. Essa pluralidade idiomtica, nas canes tambm, aponta possivelmente para

    fases distintas do compositor, como descrito por Gonalves6 ao analisar a trajetria

    estilstica de Jos Penalva em suas trs sonatas para piano solo.

    H setenta e trs canes catalogadas para voz e instrumento, entre canes

    sacras (59) e seculares (14). O corpus dessa pesquisa, entretanto, compe-se apenas

    das 13 canes seculares compostas para voz e piano, como catalogadas por

    Bojanoski e Prosser7.

    Dentre os recursos composicionais empregados por Penalva, deparei-me com

    a utilizao de tcnica estendida da voz8 em duas das canes Trs Reis Magos e

    Me Preta: especificaes como grito de dor macio, semi-cantado, declamado e

    liberdade para a improvisao do intrprete, por exemplo. Minha formao,

    enquanto cantora, at ento, limitava-se ao repertrio europeu clssico e romntico

    escritos para meu tipo de voz. Nesta pesquisa, utilizarei a classificao vocal sugerida

    por Miller9, a partir da qual minha tessitura vocal seria a de sobrette/coloratura.

    As demais canes tm carter nacionalista e, apesar da aparente

    simplicidade de execuo, tive dificuldade em cantar a cano Saudade. Havia um

    5 Silvana Bojanoski e Elisabeth Prosser, Jos Penalva: uma vida com a batina e a batuta (Curitiba:

    Artes Grficas e Editora Unificado, 2006).

    6 Alexandre Gonalves, As 3 Sonatas para Piano de Jos Penalva: Uma Abordagem Analtico-Interpretativa (Dissertao de mestrado, Universidade Estadual de Santa Catarina, 2009), 25.

    7 Bojanoski e Prosser, 81-85.

    8Tcnica estendida da voz uma denominao que descreve a utilizao no convencional da voz cantada, especialmente a partir do sculo XX, inicialmente com Arnold Schoenberg. Inclui a utilizao de qualquer som possvel de se produzir com a voz humana, a critrio da necessidade esttica do compositor.

    9 Richard Miller, The structure of singing: system and art in vocal technique (Boston: Schirmer,

    1996), 7-8.

  • 16

    salto de oitava em que minha voz sempre apresentava uma quebra, alm de um piano

    sbitoem que minha voz recuava. Surgiu a necessidade, ento, de compreender o

    porqu dessas dificuldades e encontrar solues para sua realizao. Parti, assim,

    inicialmente, de Mrio de Andrade que tanto escreveu sobre a cano brasileira e os

    compositores brasileiros, e que, como escritor e musiclogo, foi grande idealizador da

    msica e cano nacional e influenciou toda uma gerao de compositores alm de

    ter pesquisado a lngua nacional.

    Em 2003, pesquisadoras advertiam que eram escassas as publicaes sobre a

    cano brasileira10. O nmero de trabalhos, desde ento, cresceu consideravelmente,

    mas o acesso a gravaes e partituras ainda restrito e difcil. A escassa produo

    acadmica sobre as obras do Padre Penalva foi outro fator que me estimulou a

    direcionar minha prtica musical e interpretativa para suas obras vocais para canto e

    piano. No h, at o presente momento, nenhum trabalho dirigido a investigar o

    repertrio vocal de cmara de Jos Penalva11.

    Em algumas canes Penalva no determinou nos manuscritos autgrafos

    para qual tipo de voz foram escritas. Algumas delas foram classificadas por Prosser

    como sendo para voz mdia, no especificando se para voz masculina ou feminina.

    Essa classificao, entretanto, vaga para o cantor que deseja interpretar a obra.

    Algumas dessas canes apresentam saltos do registro mdio para o agudo de

    soprano, que a tessitura mais aguda das vozes femininas, o que refora a

    necessidade de uma classificao mais especfica.

    Sendo assim, para delimitar as canes a serem estudadas dentre as

    elencadas, utilizei minha tessitura vocal como parmetro sobrette/coloratura e o

    que lhe cabvel interpretar, dentro de minha extenso vocal. Desse modo, outros

    profissionais com classificao vocal semelhante podero utilizar esta pesquisa como

    suporte para a compreenso e interpretao dessas peas.

    Nos captulos iniciais dessa dissertao, fao uma reviso histrico-

    bibliogrfica e documental sobre Jos Penalva, sua obra como um todo, e mais

    10 Luciana de Castro, Margarida Borgoff e Mnica Pdua, Em defesa da cano de cmara

    brasileira. Revista PerMusi, v.8. (Belo Horizonte: UFMG, 2003), 74. 11 At o momento, sabe-se da existncia dos trabalhos de Fregoneze (1993), sobre a obra para piano

    de Jos Penalva; o Catlogo Comentado (2000) e a biografia do compositor (2006), ambos da pesquisadora Elisabeth Prosser; um artigo que apresenta a anlise musical sobre a Mini-Sute N. 1 para piano de Jos Penalva, de Albrecht e Pascoal (2004); e a dissertao de mestrado de Gonalves (2009), que analisa musical e estilisticamente, as trs sonatas para piano de Jos Penalva.

  • 17

    especificamente, sobre suas obras vocais. Foram revistos os trabalhos de Fregoneze12,

    Prosser13, Bojanoski e Prosser14, Albrecht e Pascoal15, e Gonalves16. Tambm foi

    realizada pesquisa sobre a cano brasileira de cmara, o nacionalismo musical no

    Brasil e a lngua nacional17 nos escritos de Vasco Mariz, Luiz Heitor Correia de

    Azevedo, Mrio de Andrade e Dante Pignatari.

    A partir dessas revises reuni informaes que nortearam a observao da

    trajetria estilstica na linguagem composicional de Jos Penalva, compreendendo os

    caminhos escolhidos por ele durante a composio das canes. Inclui-se nessa etapa

    o estudo das apostilas de Histria da Msica escritas pelo compositor, nas quais

    explicitou alguns conceitos que orientaram sua prtica composicional.

    Num segundo momento, apresento a anlise musical propriamente dita das

    canes e a observao da relao texto/msica existente. Meu objetivo foi ressaltar

    caractersticas harmnicas e meldicas que sustentam as idias dos poemas

    utilizados, com base nas ferramentas de anlise harmnica e fraseolgica

    tradicionais. Fiz uso tambm de algumas idias propostas por Jan LaRue18, por

    James Tenney19, o material de histria da msica desenvolvido por Jos Penalva e as

    12 Carmem Fregonese,A Obra Pianstica do Padre Jos de Almeida Penalva (Dissertao de

    Mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1992). 13Prosser, Um olhar 14Bojanoski e Prosser. 15 Cintia Albrecht e Maria Lcia Pascoal. As estruturas de conjuntos na tcnica de doze sons: Mini-

    suiten.1 de Jos Penalva: anlise e performance. Revista Eletrnica de Musicologia. Vol. 8 (Dez 2004). http://www.rem.ufpr.br/_REM/REMv8/penalva.html (acessado em 3 Nov, 2009).

    16 Gonalves. 17 Os estudos sobre o portugus brasileiro cantado, idealizado por Mrio de Andrade, tiveram

    continuidade com um grupo de pesquisadores e cantores brasileiros no XIV Congresso da ANNPOM - Associao nacional de Pesquisa e Ps-Graduao em Msica. Foram sistematizadas e consolidadas um grupo de norma para a pronncia do portugus brasileiro cantado, que esto disponveis em: http://www.anppom.com.br/opus/data/issues/archive/13.2/files/OPUS_13_2_Kayama_Carvalho_Castro_Herr_Rubim_Padua_Mattos.pdf

    18Jean La Rue, Guidelines for style analysis (New York: W. W. Norton & Company, 1970). 19James Tenney, Meta Hodos: A Phenomenology of 20th-Century Musical Materials and an

    Approach to the Study of Form (Larry Polansky: Oakland, 1976).

  • 18

    sugestes analticas de Peter Stacey20, que apontam exemplos de ferramentas

    composicionais da msica do sculo XX e da juno texto/msica na composio

    contempornea. Para a anlise dos poemas das canes, foi utilizada a proposta de

    Norma Goldstein21, que secciona o poema com finalidade didtica e o estuda sob

    vrios aspectos, sem deixar que a unidade do texto se perca e tambm a proposta de

    Manuel Bandeira22 sobre versificao em lngua portuguesa.

    A partir dessas anlises distintas, pude traar um paralelo entre msica e

    poesia, observando o modo como se relacionam e interagem na composio. Ainda

    com base no estudo da letra e da msica, alm das pesquisas de Mrio de Andrade23

    sobre os compositores e a lngua nacional, das pesquisas sobre fisiologia e anatomia

    (Pinho e Pontes24) e tcnica vocal (Miller25), foram observadas as dificuldades

    tcnico-vocais encontradas no estudo das obras e apresentadas sugestes

    interpretativas para a execuo das peas. certo que interpretar uma obra algo

    subjetivo e a interpretao diverge de um intrprete para o outro, por isso apresento

    meus pareceres interpretativos apenas como sugestes ao final de cada anlise.

    Atravs desse processo, buscou-se construir um olhar musicolgico e crtico

    de cada cano, contribuindo com a investigao mais sistematizada da cano de

    cmara brasileira e da obra de Jos Penalva. O nome do compositor j figura em

    publicaes recentes sobre a histria da msica brasileira, mas a maior parte de suas

    obras, infelizmente, ainda possui repercusso apenas regional.

    20 Peter Stacey, Towards the analysis of the relationship between music and text in contemporary

    compositions, Contemporary music Review, vol. 5, n. 1 (Set, 1989). http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/07494468900640501 (acessado em 11 out. 2011).

    21 Norma Goldstein, Versos, sons, ritmos, 11 ed. (So Paulo: tica, 1999). 22 Manuel Bandeira, A versificao em Lngua Portuguesa. In Seleta em Prosa, org. por Jlio

    Castaon Guimares (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997), 531-557. 23 Mrio de Andrade, Aspectos da msica brasileira, 2 Ed. (So Paulo: Martins Editora; Braslia:

    INL, 1975). 24 Slvia Pinho e Paulo Pontes, Msculos Intrnsecos da Laringe e Dinmica Vocal (Rio de Janeiro:

    Revinter, 2008). 25 Miller, The structure of singing...

  • 19

    1. JOS PENALVA MSICO E SACERDOTE

    Jos de Almeida Penalva (1924-2002) desenvolveu diversas atividades ao

    longo de sua vida: a de compositor, sacerdote, professor, musiclogo, crtico, regente

    e escritor. No prefcio ao catlogo comentado de Elisabeth Prosser, Almeida Prado

    afirmou considerar Jos Penalva um grande compositor brasileiro com o qual muito

    aprendeu e teve a honra de conviver1.

    Natural de Campinas-SP, mudou-se para Curitiba em 1942 para estudar

    Filosofia e Teologia no Seminrio Maior, dando continuidade a sua formao

    religiosa2. O contato com a msica teria acontecido desde a infncia, atravs de seus

    pais que tocavam instrumento musical e cantavam (seu pai, o violo e sua me, o

    piano). Pertenceu a uma famlia bastante religiosa e assim como a msica, a religio

    que alguns anos depois determinaria sua vida foi seguida desde cedo.

    O tempo em que cursou o seminrio na dcada de 1940 Penalva frequentou

    escolas catlicas desde onze anos de idade propiciou o contato com pessoas

    importantes que o auxiliaram e influenciaram. Entre 1947 a 1949, assumiu a regncia

    do Coro Claretiano, e de seu perodo como seminarista datam suas primeiras

    composies, algumas delas sacras. Essas obras primeiras, mais tarde, Penalva

    consideraria exerccios de composio ou obras de sua juventude3. Sobre suas

    composies, Penalva dizia ainda que sempre fugiu da Tnica-Dominante-Tnica.

    Aps sua ordenao em 1949, Penalva passou trs anos em Guarulhos,

    perodo em que estudou Contraponto, Fuga e Composio com o maestro Savino de

    Benedictis (1883-1971). Retornou Curitiba em 1953 e assumiu as funes de padre

    coadjutor, auxiliando a formao dos alunos de teologia. At 1955 foi tambm o

    diretor da revista Vida Claretiana.

    No ano de 1956 viajou para So Paulo e Roma, onde desenvolveu sua tese de

    doutoramento, defendida em 1958: De credibilitate rationali Fidei Christianae juxta

    Guglielmum Alvernum. A tese foi posteriormente publicada, em 1987, com as

    devidas modificaes sugeridas pelos avaliadores. Enquanto esteve em Roma

    especializou-se em Msica da Renascena com Domenico Bartolucci (1917) e em

    1Almeida Prado, 2000, prefcio em Prosser, Um olhar sobre a msica de Jos Penalva: catlogo

    comentado, Curitiba: Champagnat, 2000. 2 Bojanoski e Prosser, 14. 3Bojanoski e Prosser, 21.

  • 20

    Canto Gregoriano com Raffaele Baratta (1889-1973) no Pontifcio Instituto de Msica

    Sacra.

    Assim que retornou a Curitiba em 1958, Penalva iniciou um perodo prspero

    em sua atividade composicional, intelectual (e cultural), desenvolvendo inmeras

    atividades com desenvoltura e autoridade 4. Em 1959 e 1960 especializou-se em

    Msica Contempornea com Damiano Cozzella (1928) em So Paulo, e nesse perodo,

    rompeu definitivamente com a tonalidade.

    Elisabeth Prosser5afirma que Penalva possuiu fases distintas quanto a

    caractersticas estilsticas. Ela as dividiu por dcadas, a partir de 1940 at a de 1980.

    Explica que o compositor partiu do tonalismo tradicional (1940), introduzindo e

    incorporando progressivamente cromatismos e dissonncias em suas obras,

    chegando ao atonalismo e aleatoriedade na dcada de 1970 e, finalmente, em sua fase

    harmonicamente livre e ecltica nas dcadas de 1980-90.

    A dcada de 1960 foi marcada por uma intensificao das atividades

    religiosas de Jos Penalva. Alm de suas obrigaes de sacerdote, Penalva reassumiu

    em 1958 suas atividades de docncia no Instituto Teolgico, auxiliando nas

    negociaes para a implantao do Studium Theologicum. Em 1959 teve incio a sua

    carreira docente na Escola de Msica e Belas Artes do Paran, que se seguiu por mais

    de quatro dcadas, perodo em que ministrou diversos cursos, oficinas e palestras.

    Em 1964 cria o Coro Pr-Msica que, em 1982, passou a denominar-se Madrigal

    Vocale.

    De 1965 at 1977, aps a fundao da Sociedade Pr-Msica (por Jos

    Penalva, Aristides Severo Athade, Maria Leonor Mello de Macedo e Henriqueta

    Garcez Duarte), foram promovidos em Curitiba os Cursos e Festivais Internacionais

    de Msica de Curitiba. Juntamente com Roberto Schnorrenberg e Henriqueta Garcez

    Duarte, coordenou o XXI Curso Internacional de Frias de Terespolis.

    Por exercer atividades docentes, Jos Penalva costumava se preparar durante

    meses para as aulas que viria a lecionar e criava material prprio: suas apostilas.

    Escreveu cerca de nove apostilas, dentre as quais: Msica do Sculo XX [...],Msica

    4Bojanoski e Prosser, 29. 5Elisabeth Prosser, Tendncias da composio erudita em Curitiba na segunda metade do sculo

    XX: compositores nascidos entre 1918 e 1936. InAnais do II Simpsio Latino Americano de Musicologia (Curitiba: Fundao Cultural de Curitiba, 1999), 212.

  • 21

    contempornea pr-vanguarda, vanguarda e ps-vanguarda e Estruturas

    fundamentais do contraponto I Modal; II Tonal; III Atonal.

    Na dcada de 1960 aconteceu o Conclio do Vaticano II que, desencadeando

    mudanas importantes na Igreja Catlica, tambm repercutiu no trabalho de Jos

    Penalva. A partir de 1963 fez parte do Movimento de Renovao da Msica Sacra

    (MRMS) e de 1966 a 1971 esteve engajado em criar msica sacra em portugus. A

    partir de 1967 comps obras que no tivessem somente valor funcional. No fim da

    dcada, reuniu-se com Osvaldo Lacerda, Ernst Widmer e Edino Krieger com o

    objetivo de criar uma msica sacra renovada. Mais tarde juntaram-se a eles, outros

    como Lindemberg Cardoso e Henrique de Curitiba. Mas a Conferncia Nacional dos

    Bispos do Brasil (CNBB) em 1970, finalmente optou por uma msica de cunho

    popular, fator que no desestimulou Penalva em seu projeto, passando a produzir,

    cada vez mais, msica sacra e secular com funo primordialmente artstica.

    Enquanto musiclogo pesquisou e escreveu artigos e obras sobre a msica do

    sculo XX, a Msica Colonial Mineira, Carlos Gomes, Canto Coral e o Folclore

    Paranaense. Com seu livro Carlos Gomes o compositor, ganhou o prmio Funarte

    em 1986. De 1961 a 1975 escreveu crticas musicais em jornais de Curitiba e Campinas

    sob o pseudnimo de Affonso Vilhena. Padre Penalva tambm publicou nas dcadas

    seguintes diversos livros sobre teologia. De 1968 a 1972 integrou a comisso

    paranaense de folclore. Ainda em 1968, escreveu, dentre outras, os seguintes textos

    no publicados: Algumas Constncias Folclricas da msica Paranaense e Gnero

    modinha como constncia da msica brasileira.

    Na dcada de 1970, sua composio alcana uma fase atonal, de

    aleatoriedade controlada, dodecafonismo no ortodoxo e msica matrica 6.

    Prosser explica ainda que foi um perodo fecundo para suas composies, revelando

    maior ousadia em relao s linguagens no convencionais. Foi desse perodo

    tambm a explorao da voz em diversas possibilidades por Penalva, desde a voz

    cantada e falada at a glossolalia, a Sprechstimme e os efeitos percussivos e sonoros

    da fala. Tendo participado de um evento em Roma (1972) que contou com a presena

    de Cage, Brio, Boulez, entre outros, Penalva explicou que na ocasio, os

    participantes, concluram que a msica que vinha se fazendo a partir dos anos 1950,

    6 Bojanoski e Prosser, 43.

  • 22

    possua grande hermetismo, determinante para a pouca aceitao e compreenso do

    pblico7.

    A dcada de 1980 contemplou o seu amadurecimento musical e nesse

    perodo que Penalva comps um maior nmero de obras. Foi convidado para

    ministrar inmeros cursos e festivais de msica. Em 1986 retornou Itlia como

    convidado de uma semana de msica e em 1988, novamente foi Europa, aps ser

    contemplado com uma bolsa de estudos do Instituto Goethe. Foi membro fundador

    de sociedades culturais, como a Sociedade Brasileira de Musicologia e a Sociedade

    Brasileira de Msica Contempornea. Foi tambm regente do Teatro Carlos Gomes e

    professor na Escola Superior de Msica de Blumenau e da EMBAP. Participou de

    festivais e bienais, recebendo diversos ttulos por suas composies e, em 1994, foi

    eleito para a Academia Brasileira de Msica. Faleceu em 2002, aos 78 anos, na cidade

    de Curitiba.

    7Bojanoski e Prosser, 43.

  • 23

    2. CANO PARA CANTO E PIANO

    Como sugere Dante Pignatari, a cano necessariamente uma

    interpretao da palavra pela msica1; nela, o compositor privilegia determinados

    aspectos do poema, unificando o poema/poesia sua composio. Diferente da

    msica, a linguagem verbal arbitrria e referencia o mundo ao nosso redor; mesmo

    quando o compositor opta por compor em oposio ao texto, o faz por escolha, por

    esse motivo o texto deve ser sempre analisado.

    A juno entre msica e palavra existe h milnios e h quem diga que a

    origem da msica poderia ser encontrada na linguagem, e vice versa. Curt Sachs2

    afirma que a msica teria comeado com o canto. Apesar de isso no poder ser

    comprovado, sabe-se que o desenvolvimento da msica esteve intimamente

    relacionado linguagem, tendo nela um suporte expressivo ou formal.

    Talvez a cano seja o gnero musical mais antigo a existir; embora isso seja

    apenas especulao j que pouco se sabe sobre a msica pr-histrica. Poucos so os

    fragmentos que restaram da histria da msica na Grcia antiga, mas em seu livro A

    Repblica, Plato j apresentava recomendaes aos compositores relevantes para

    essa pesquisa: respeitar o texto em suas condies primrias de maneira que o ritmo

    da msica seguisse a mtrica do discurso; deveria tambm haver concordncia entre

    o sentido musical e textual, a harmonia e o ritmo da msica serviriam s palavras e

    no o contrrio3.

    A teoria nem sempre representou o que acontecia na prtica, e, como em todas

    as artes, dadas as regras, os artistas (nesse caso compositores) criavam estratgias e

    faziam suas criaes respeitando-as at que aquelas se esgotassem ou que surgisse

    algo novo e diferente. Inicialmente a msica esteve subordinada palavra, aos poucos

    foi sendo interpretada como tendo igual importncia. Os primeiros compositores de

    lieder compunham para que a msica fosse a extenso mais natural do texto,

    acreditando que suas melodias tomavam forma automaticamente a partir de leituras

    1 Dante Pignatari, Canto da Lngua: Alberto Nepomuceno e a inveno da cano brasileira (Tese

    de doutorado, Universidade de So Paulo, 2009), 21. 2Apud Peter Stacey, Towards the analysis of the relationship between music and text in

    contemporary compositions, Contemporary music Review, vol. 5, n.1, 1989, 09. 3Peter Stacey, Towards the analysis, Review 5, n1 (1989), 10.

  • 24

    repetidas do poema4; j no lied desenvolvido por Schubert o papel da msica foi

    consideravelmente ampliado.

    Wagner, inicialmente defensor de uma supremacia textual, anos mais tarde

    aplicou em suas composies os princpios defendidos por Schopenhauer. Para este, a

    msica era mais importante que a linguagem, j que podia falar diretamente alma,

    sem haver interferncia de uma idia ou de aspectos da realidade externa. As idias

    de Schopenhauer foram amplamente defendidas no sculo XIX e incio do sculo XX,

    ao passo que a forma tradicional de compor canes, com a msica a servio do

    texto, continuou (e continua) existindo.

    O que importa nessa discusso no a vitria da palavra sobre a msica ou

    desta arte sobre aquela, mas o fato de que o fim do sculo XX marcado como uma

    era de mltiplas linguagens estilsticas e quebra da tradio. Os anos subseqentes

    Primeira Guerra Mundial testemunharam uma exploso de atividades e inovaes no

    campo da msica vocal5: os futuristas buscaram parole in liberta, os dadastas

    realizavam pesquisas sobre o nvel fontico das palavras, Schwitters afirmavam que o

    material bsico da poesia no era a palavra e sim a letra. A arte havia abandonado seu

    compromisso com a mera representao da natureza, a palavra havia sido liberada de

    seu contexto sinttico e o foco, j no era mais somente no formalismo, na estrutura

    musical e sim, no resultado sonoro, no conceito de som. No havia mais distino

    entre som e rudo, abrindo oportunidade para inovao e explorao6.

    *

    De acordo com Vasco Mariz7, cano brasileira existe h aproximadamente

    300 anos e acredita-se que j fazia parte das peras de Antonio Jos da Silva, o judeu

    (1705-1739). O repertrio brasileiro para canto e piano tem sua raiz na modinha e

    Mrio de Andrade acredita que a modinha teve sua origem na pera italiana, assim

    como o lied romntico. No entanto, na modinha, foram incorporados tambm

    4Stacey,12. 5Stacey, 14. 6Stacey, 13-15. 7Vasco Mariz, A cano brasileira de cmara (Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2002), 29.Vasco

    Mariz diplomata, musiclogo e escritor brasileiro; uma figura de grande influncia social e cultural, especialmente o foino ps-modernismo brasileiro e esteve em contato com diversos compositores e artistas da poca. Escreve seus livros de forma crtica, de um modo que se assemelha aos eruditos do sculo XIX, evitando uma linguagem demasiadamente tcnica e buscando aproximar-se de uma crtica que emane senso comum.

  • 25

    elementos do folclore portugus e brasileiro8. Os precursores da cano brasileira de

    cmara teriam sido, principalmente, o padre Jos Maurcio Nunes Garcia (1767-

    1830), Francisco Manuel da Silva (1795-1865) e Carlos Gomes (1836-1896), autores

    de inmeras modinhas. Carlos Gomes, alm das modinhas em idioma nacional, tem

    inmeras canes de sua autoria, mas escritas em italiano e algumas em francs9. De

    fato, a aceitao do canto brasileiro em lngua nacional s aconteceria no incio do

    sculo XX.

    Alberto Nepomuceno (1864-1920) esforou-se por desenvolver o canto em

    idioma nacional e por compor as primeiras canes baseadas em constncias do

    folclore musical. Preocupou-se essencialmente com o que era brasileiro e a partir de

    1902, passou a compor essencialmente em portugus,10 apoiado pelo critico musical

    Joo Itiber da Cunha (1870-1953) e pelo presidente Rodrigues Alves (1848-1919).

    No foi o nico a escrever canes em portugus, mas, sem dvida foi o que

    implantou o gosto pelo que nacional e deu a cano brasileira, os traos iniciais de

    brasilidade.

    A primeira gerao nacionalista, cujo maior expoente foi Heitor Villa-Lobos

    (1887-1959), iniciou um aproveitamento direto de temas e textos folclricos em suas

    obras. Na cano de cmara, por exemplo, Villa-Lobos inseriu elementos da msica

    popular como a melodia dos seresteiros, o movimento cantante dos baixos, o

    abaixamento da stima e a sncopa11. Seu exemplo foi seguido e aprimorado pelas

    geraes nacionalistas seguintes, cujos maiores expoentes foram Lorenzo Fernndez

    (1897-1948), Francisco Mignone (1897-1986) e Camargo Guarnieri (1907-1993).

    A gerao de 1940, com o surgimento do grupo Msica Viva (criado por de H.

    J. Koellreutter), representou um movimento anti-folclrico e, na poca, ansiava-se

    por uma renovao dos mtodos de aproveitamento do folclore nacional12. Csar

    Guerra-Peixe, Cludio Santoro, Eunice Katunda e Edino Krieger fizeram parte desse

    8Pignatari, 24. 9 Mariz, 45. 10Mariz, 58. 11Mariz, 34. 12Mariz, 161.

  • 26

    movimento e para eles, o dodecafonismo era apenas mais uma tcnica composicional

    que viria a enriquecer a composio nacional.

    A partir de ento, muitos compositores brasileiros buscaram criar uma

    msica nacional sem nacionalismo e isso se reflete nas canes contemporneas.

    Alguns compositores mais recentes continuaram compondo moda nacionalista.

    Guerra-Peixe no teve a preocupao de ser moderno e continuou a esforar-se por

    conhecer melhor o folclore para super-lo13; talvez, por essa razo, parece-me, tenha

    sido um dos que atingiu o ideal de composio nacional proposto por Mrio de

    Andrade.

    A gerao de Edino Krieger, Osvaldo Lacerda, Cludio Santoro, Guerra-Peixe

    e Eunice Katunda , praticamente, a mesma gerao de Jos Penalva. Penalva

    procurou estar atento composio de Vanguarda; no entanto, o gnero cano no

    corresponde sua produo de maior importncia e destaque.

    2.1 AS CANES DE JOS PENALVA

    A catalogao mais recente das obras do compositor aponta a existncia de

    554 peas14 compostas em cerca de seis dcadas e, como j explicado no captulo

    introdutrio, hpredominncia da msica sacra sobre a secular e da vocal sobre a

    instrumental. Foram compostas 73 canes para voz e instrumento (59 canes

    sacras e 14 canes seculares), das quais 17 so para voz e piano. Apesar do longo

    perodo de atividade composicional de Jos Penalva, todas as suas canes foram

    compostas em menos de quarenta anos e com grandes intervalos de tempo.

    13Mariz, 170. 14 Bojanoski e Prosser, 75-105.

  • 27

    TABELA 1 ANO DE COMPOSIO DAS CANES SACRAS E SECULARES PARA CANTO E

    PIANO DE JOS PENALVA.

    CANES PARA VOZ E PIANO

    SACRAS SECULARES Dedicado a Nossa Senhora I (1940) Hino ao Colgio So Jos (1953) Dedicado a Nossa Senhora II (1940) Saudade (1953)

    A Santo Expedito (1946) Trs peas para Voz e Piano (1954) Doce Corao (1955) Parabns [I] (1960) obra Felicitaes

    Fita Azul (1955) Boa Noite (1960) Prprio de So Toms (1960) Feliz Natal (1960) obra Felicitaes

    Pie Pelicane (1947) Duas Saudaes (1960) obra Felicitaes Trs Melodias Simples (1962) Parafolclricas Dois Momentos (1970) Verso Mutilada (1979)

    As canes sacras da dcada de 40 e 50 so obras tonais simples, escritas

    para cerimnias religiosas. Da dcada de 40, tambm, so as obras que Penalva

    considerava meros exerccios composicionais. Por esse motivo optei por exclu-las

    dessa pesquisa. Sua ltima obra sacra para canto e piano, Prprio de So Toms

    (1960), revela um Penalva que comea a se preocupar com o valor esttico de sua

    obra e em busca de uma sonoridade diferente das obras anteriores.

    Tambm no sero estudados o Hino do Colgio So Jos (1953),

    estritamente funcional, e trs das peas seculares para voz e piano Parabns [I],

    Feliz Natal e Duas Saudaes (encontrada apenas uma partitura) que fazem parte

    de uma obra maior, com composies para coro, intitulada Felicitaes (1960-61).

    Essa ltima obra citada assemelha-se s Canes de Cordialidade compostas por

    Villa-Lobos em 1945; canes simples, de fcil aprendizado, cantadas em substituio

    s tradicionais canes de aniversrio, Ano Novo e Natal. H tambm uma cano

    composta para bartono e piano, intitulada Verso Mutilada (1979), que no ser

    analisada por ser especfica para outra tessitura que no a minha.

    Jos Penalva dividia sua obra em dois grandes blocos: as composies que ele

    chamava de Gebrauchmusik, sua obra sacra de funo litrgica, composta para a

    igreja em sua funo de mestre-capela; e as composies que ele dizia ser dele ou

    ele mesmo: uma msica independente, com linguagem de Vanguarda e Ps

    Vanguarda, de funo esttica15. Como dito, as canes selecionadas para essa

    pesquisa obedecem ento, a trs critrios de seleo: obras de concerto para canto e

    15Bojanoski e Prosser, 52.

  • 28

    piano, que estejam na tessitura vocal da pesquisadora, e representam o compositor

    que Penalva buscava ser ou ele mesmo.

    TABELA 2: ANO E LOCAL DAS CANES PARA VOZ MDIA E PIANO DE JOS PENALVA.

    Elisabeth Prosser16 pensou a obra de Jos Penalva em cinco momentos

    distintos 1940, 1950, 1960, 1970 e 1980-90 partindo da msica de funo

    estritamente litrgica e tonal, para, aps longo perodo de descobertas, chegar a uma

    obra madura, harmonicamente livre e ecltica. No entanto, as canes selecionadas,

    compostas num espao de tempo menor, nos oferecem um recorte e uma

    possibilidade de anlise mais minuciosa desse perodo de dezessete anos (1953-1970).

    Penalva no comps nenhuma cano para canto e piano em sua fase

    harmonicamente livre; suas canes no perpassaram toda sua trajetria estilstica.

    A primeira cano secular para voz e piano foi Saudade, composta em 1953,

    ao retornar de Guarulhos. J em 1954, enquanto assumia suas funes sacerdotais,

    comps Trs peas para Voz e Piano. Passou ento por um perodo de seis anos sem

    compor canes, fato que pode ser justificado por ter realizado estudos em So Paulo,

    seguido de dois anos em Roma, tempo em que desenvolveu sua tese de

    doutoramento. Sua composio seguinte, Boa Noite (1960), foi seguida de Trs

    Melodias Simples Jangada de Vela, Bentevi e Eu nasci naquela Serra (1962),

    sobre melodias populares brasileiras.

    16 Prosser, Tendncias...", 212.

  • 29

    Novamente h uma interrupo na composio de canes, dessa vez, de oito

    anos. A partir de 1963, a ateno do Padre Penalva estaria voltada para o Movimento

    de Renovao da Msica Sacra. S comporia Parafolclricas Dois Momentos em

    1970, antes de retornar a Roma para se especializar com Boris Porena (1927), antes

    ainda de elaborar suas apostilas sobre a msica da Vanguarda e Ps-Vanguarda.

    Penalva considerava-se um compositor de ps-vanguarda, que transitava

    livremente entre as diversas linguagens composicionais, modificando-as,

    metamorfoseando-as, transitando confortavelmente entre o pessoal e o universal. Seu

    ponto central, em cada composio era sempre o texto, a idia17. Os instrumentos

    deveriam servir ao texto, assim como as sonoridades e as tcnicas idia. Acreditava

    tambm que com a descoberta/surgimento de novos mtodos composicionais,

    aumentava a palheta de recursos a serem utilizados pelo compositor, cujo objetivo

    maior seria sempre a idia.

    2.2 AS APOSTILAS DE HISTRIA DA MSICA

    Conforme explicado no captulo anterior, Jos Penalva, sempre que

    convidado a lecionar em algum curso ou assumir uma disciplina na universidade,

    dedicava-se a um perodo de pesquisa para redao de apostilas. Alguns de seus

    alunos, ainda hoje, guardam as apostilas recebidas nas aulas; no entanto, foi

    encontrado apenas parte desse material. Nessa pesquisa utilizarei duas de suas

    apostilas, cedidas pela pesquisadora Elisabeth Prosser, as quais julgo mais relevantes

    para a compreenso do pensamento musical do compositor, j que nelas Penalva

    incorporou textos e materiais publicados em apostilas anteriores:Msica do Sculo XX,

    referenciais (1985) e Msica do Sculo XX Ps-Vanguarda. Anos 70... Volta

    grande tradio (1988).

    Na primeira apostila, Penalva fala do movimento de Pr-Vanguarda (1900-

    1922), explicando como ocorreu a dissoluo do tonalismoe o que foi o Futurismo.

    Discorre tambm sobre a Vanguarda Histrica, subdividindo-a em Serialismo,

    Ruidismo, Msica Concreta, Msica Eletrnica, Msica Matrica, o Fenmeno Cage,

    Msica Minimalista, Msica Stokstica e Msica Computadorizada. Encerra essa

    apostila introduzindo a Ps-Vanguarda, apontando alguns compositores que julgava

    17 Elisabeth Prosser, A trajetria de Jos Penalva, In: Neto, Manuel de Souza (org.), A

    [ds]construo da msica na cultura paranaense(Curitiba: Aos quatro Ventos, 2004), 198.

  • 30

    trazerem uma Expressividade Nova. Na segunda apostila dedicou-se exclusivamente

    Ps-Vanguarda, discorrendo sobre compositores e obras desse perodo.

    J nas primeiras pginas da primeira apostila, Jos Penalva explica que

    considera toda a sistematizao enganosa e que toda a sntese filtra e empobrece a

    realidade 18. Para ele, a histria consiste em uma interpretao dos fatos por parte do

    historiador e de que no se pode enquadrar os compositores em um nico padro

    ou dividi-los cartesianamente em fases acredito que este material didtico ilustre

    seu pensamento composicional assim como as estratgias composicionais usadas por

    ele.

    Penalva tinha preferncia pelos movimentos de Vanguarda e tambm teve

    contato com grandes expoentes da msica em seu tempo, tanto no Brasil quanto na

    Europa. Mas, como seguia suas idias prprias, no podemos inseri-lo em uma escola

    composicional especfica. preciso considerar tambm que ele vivia fora do eixo

    Rio/So Paulo e tambm que suas viagens Europa foram espordicas, portanto,

    entendemos que a aplicao de determinadas ferramentas ou estratgias

    vanguardistas ocorreram em defasagem se comparadas composio europia.

    Quando escreveu essas apostilas, 1985 e 1988, Jos Penalva j havia

    composto sua ltima cano de cmara para canto e piano. As canes estudadas

    nessa dissertao foram compostas nos anos de 1953, 1954, 1960, 1962 e 1970.

    Portanto, todas se enquadrariam no perodo denominado por Penalva em suas

    apostilas como Vanguarda Histrica. Entretanto as canes escritas at 1962 se

    aplicariam ao nacionalismo brasileiro por seu carter, pela escolha dos temas e pelo

    uso do tonalismo e do modalismo. possvel enquadr-las ento, a partir de sua

    apostila, no captulo inicial que chamou de Pr-Vanguarda (1900-1922), e do

    subttulo Dissoluo do Tonalismo que dividiu entre Cromatismo e Diatonismo.

    Obscurecendo a pureza diatnica da tradio e desconsiderando a urgncia da volta imediata aos centros tonais aps as modulaes, o cromatismo foi um dos maiores responsveis pela dissoluo do tonalismo e pelo advento do atonalismo. Importa distinguir trs tipos de cromatismo: o chamado orgnico ou funcional, o inorgnico, no funcional ou incidental e o microcromatismo19.

    18 Jos Penalva, Msica do sculo XX, referenciais, Apostila do Curso de Msica Contempornea

    da V Oficina de Msica de Curitiba (Curitiba, 1985), 01. 19Penalva, "referenciais..." 06.

  • 31

    Em algumas de suas canes para canto e piano, encontramos o que ele

    chama de cromatismo inorgnico. Mas , certamente, o captulo do Diatonismo

    que melhor explica as ferramentas composicionais utilizadas nas canes at 1962.

    Para ele, existem trs tipos de diatonismo. O primeiro que, estabelecido nos clssicos

    modos maior e menor, tenta abrir caminho para novas situaes20; um segundo que

    parte para novos modos ou revive os modos antigos medievais, orientais e modos

    de tons inteiros e um terceiro que dissocia cada nota meldica atribuindo-lhe

    acorde de qualquer tonalidade. J sua cano de 1970 pode ser pensada como

    pertencente Vanguarda Histrica, com o uso do serialismo e blocos sonoros.

    Em entrevista concedida Elisabeth Prosser, em 1993, Penalva falou sobre

    suas composies:

    Passei pela Vanguarda. Vivi e me decidi por ela. Depois, me apaixonei pela Ps-Vanguarda, que significou uma revoluo contra o exclusivismo da Vanguarda. Hoje estamos num paraso: cada um pode compor da maneira que quiser: pode-se escrever um acorde perfeito ao lado de um cluster, empregar melodias folclricas dentro de um tecido atonal! Durante muito tempo escrevi msica no figurativa que nem eu mesmo entendia, uma msica hermtica. Hoje prefiro uma msica que comunique, que atinja21.

    Encerrou sua ltima apostila com uma tese sobre a contemporaneidade.

    Acreditava que o minimalismo j existia muito antes dos movimentos de Ps-

    Vanguarda, mas que foi a complexidade das ferramentas composicionais de

    Vanguarda que o fizeram ressurgir, devido sua simplicidade, expressividade, seu

    estilo galante e sua inspirao no passado. Para o compositor, o minimalismo no

    representava a nica sada para a ps-vanguarda, mas representava uma tima

    alternativa 22.

    20 Penalva, "referenciais", 11. 21 Prosser, A trajetria..., 198. 22 Jose Penalva, Msica do sculo XX Ps-Vanguarda. Anos 70... Volta grande tradio.

    (Curitiba: Fundao Cultural de Curitiba, 1988), 76.

  • 32

    3. A ANLISE MUSICAL E TEXTUAL DAS CANES

    O objetivo a ser alcanado atravs da anlise da msica e do texto nas canes

    compreender a interao/relao existente entre ambos, percebendo a influncia de um

    sobre o outro (e vice e versa) e as estratgias utilizadas pelo compositor para dar

    expresso sua composio, reunindo informaes que fundamentem minhas escolhas

    interpretativas.

    Para tal utilizei alguns princpios de anlise harmnica e meldica tradicionais, e

    ferramentas da anlise estilstica de Jan LaRue1 nas as canes tonais. A interpretao e

    anlise dos poemas foi desenvolvida com base no artigo de Manuel Bandeira2 e na

    tcnica analtica de Norma Goldstein3 integrando a anlise da relao texto msica. Na

    cano Dois Momentos, a nica atonal e pertencente ao perodo vanguardista de Jos

    Penalva, aplico alguns conceitos da anlise fenomenolgica desenvolvida por James

    Tenney4 que pensa a obra a partir de seu resultado sonoro e de Peter Stacey5 que sugere

    formas de se abordar a relao texto/msica na msica contempornea. As ferramentas

    utilizadas, extradas dos autores supracitados so complementares e no seguem

    nenhuma ordem especial, sendo pensadas a partir de sua relevncia em cada cano.

    3.1. SAUDADE6

    A cano Saudade foi composta no ano de 1953, quando o compositor havia

    retornado cidade de Curitiba para assumir suas funes religiosas. Ao retornar,

    Penalva deparou-se com uma cidade repleta de mudanas idealizadas pelo Governador

    1 La Rue, Guidelines... 2 Bandeira, A versificao..., 533-557. 3 Goldstein, Versos, sons... 4 Tenney, Meta Hodos: A Phenomenology... 5 Stacey, Towards the analysis..." 6 Os exemplos musicais apresentados no decorrer do trabalho foram extrados de digitalizaes do

    manuscrito autgrafo, disponveis nos anexos desta pesquisa.

  • 33

    Bento Munhoz da Rocha em razo do Centenrio de Emancipao Poltica do Paran.7

    Foi adaptada, posteriormente, para coro a cappella (por duas vezes) em 1966 e 1980.

    Jos Penalva costumava adaptar as obras que compunha para o uso, sempre que

    necessrio.

    Saudade a cano de Jos Penalva com maior extenso vocal (Mi3-L4) que

    implica numa impostao vocal mais lrica8 e na utilizao de voz mista nos tons

    mdio/agudos e de cabea a partir de Sol4, j que sem essa impostao erudita no

    possvel executar a obra com a laringe baixa e produzir um timbre de voz com mais

    espao e maior equilbrio entre os harmnicos graves e agudos. O estilo nacionalista da

    cano e o perodo em que foi composta tambm sugerem que o timbre vocal deva ser

    mais homogneo9.

    Foi estruturada em Introduo-A-A; escrita em compasso binrio simples tem

    sua parte A subdividida em dois temas: o primeiro a anacrsico, e o segundo b

    ttico.

    FIGURA 1: SAUDADE TEMA a DA SESSO A.

    FIGURA 2: SAUDADE TEMA b DA SESSO A.

    7 Bojanoski e Prosser, 22. 8 Lrico: (it. lrico; fr. lyrique; al. lyrish; ing. liric.). 1. Na msica para canto, tipo de voz de soprano (e

    s vezes tenor) de caractersticas mais leves, em oposio ao chamado SOPRANO DRAMTICO. 2. Originalmente, referia-se a voz acompanhada de uma LIRA, mas gradualmente passou a designar de maneira genrica qualquer canto de carter melodioso. 3. Sonhador, sentimental. (Dourado 2004, 186-187).

    9 Homogneo significando aqui uma voz com pouca ou nenhuma quebra de passagem ou contraste

    timbrstico excessivo entre os registros.

  • 34

    A introduo consiste em uma melodia cromtica executada somente pelo piano,

    sem acompanhamento harmnico, que ambienta a cano. Essa melodia introdutria,

    variada rtmica e melodicamente, a segunda metade do tema b. O tema introdutrio,

    para piano solo, sugere um afeto de tristeza. Reaparece no ponto culminante e no

    desfecho da cano, como se o compositor buscasse ressalt-lo ou, lembr-lo ao ouvinte.

    Penso que, por isso, a introduo poderia ser executada pelo piano de modo sombrio e

    misterioso com o cantor representando descontentamento ou dor.

    Embora a msica tenha a forma mencionada anteriormente (A-A), nessa cano

    o texto assume forma distinta da msica. A poesia tem forma estrfica binria (A-B), em

    que cada estrofe possui carter distinto. Saudade foi escrita por Menotti Del Picchia10

    em 1925 e publicada na obra Chuva de Pedra.

    Os versos do poema esto organizados em duas estrofes, uma quintilha e um

    terceto. Foi escrito em redondilha maior, considerada a mtrica mais simples em lngua

    portuguesa11 e , juntamente com versos hexasslabos, a mtrica de preferncia

    popular12. Suas slabas mtricas no tm acento fixo. A acentuao varivel pode ser

    notada no quadro pelo esquema rtmico13 dos versos:

    10 Moiss, Massaud. Histria da literatura brasileira Modernismo (3 vol.). 6 ed (So Paulo:

    Cultrix, 2001), 74. O autor explica que Menotti Del Picchia, com a obra Chuva de Pedra, tinha o desejo de ser modernista e que algumas poesias causaram certo escndalo na poca. No entanto, apesar de uma ou outra composio representar o prosasmo que se iniciou a partir de 1922, outras no eram nada modernistas, como no caso de Saudade.

    11 Goldstein, 27. 12 Bandeira, 540. 13 Esquema Rtmico (E.R.) o nome que se d frmula que indica quantas slabas poticas tem o

    verso (indicado fora dos parnteses) e quais slabas so acentuadas (dentro dos parnteses).

  • 35

    TABELA 3: ESCANSO RTMICA DO POEMA SAUDADE.

    V01 Sau da de chei a de gra (a) E.R. 7(2-4-7) a 1 2 3 4 5 6 7 V02 a le gri a em dor di fu (sa) E.R. 7(3-5-7) b 1 2 3 4 5 6 7 V03 do en a da mi nha ra (a) E.R. 7(2-5-7) a 1 2 3 4 5 6 7 V04 pran to que a gui tar ra lu (sa) E.R. 7(1-5-7) b 1 2 3 4 5 6 7 V05 em seu e xi lio ver teu... E.R. 7(2-4-7) c

    1 2 3 4 5 6 7

    V06 Ai quem sen tir te no h (-de) E.R. 7(1-4-7) d 1 2 3 4 5 6 7 V07 se foi den - tro da sau da (de) E.R. 7(3-7) d 1 2 3 4 5 6 7 V08 que a mi nha p tria nas ceu. E.R. 7(4-7) c 1 2 3 4 5 6 7

    As rimas a (graa, raa) e b (difusa, lusa) so cruzadas e graves14; a rima c

    (verteu, nasceu) enlaada e aguda e a rima d (h-de, saudade) emparelhada e grave,

    resultando na forma: ababc|ddc. Somente a rima D rica, por ser composta por palavras

    de classe gramatical diferente e todas as rimas so externas e consoantes.

    Quanto aos nveis lexicais, sintticos e semnticos, nota-se que na primeira

    estrofe h o predomnio de substantivos e adjetivos, e um nico verbo no ltimo verso

    (verteu). Esse verbo reforado na msica pela linha meldica ascendente em

    crescendo, e foram dedicados a ele dois compassos inteiros (c. 16 e 17). Devido ao

    predomnio de adjetivos e, em nvel sinttico, de locues adjetivas, o verbo de ligao

    14 De acordo com Manuel Bandeira e Norma Goldstein, as rimas podem ser classificadas por sua

    posio no verso, pela semelhana de letras, por sua distribuio ao longo do poema, pela tonicidade, pela categoria gramatical e pela extenso dos sons que rimam. Para classificar as rimas, utilizamos letras minsculas do alfabeto, os versos que rimam apresentam a mesma letra: abbacdcf (por exemplo). Existem quatro modos de dispor as rimas em um poema: emparelhadas, cruzadas, enlaadas e misturadas. Rimas emparelhadas so as que se sucedem duas a duas: aa. Cruzadas so aquelas que, ao invs de serem parelhas, se alternam: abab. Nas rimas enlaadas, rimam em parelha dois versos entre outros dois tambm rimados: abba. Rimas misturadas ocorrem quando a sucesso de rimas livre. Quanto tonicidade so agudas quando rimam palavras oxtonas ou monosslabas; graves quando rimam paroxtonas e esdrxulas quando proparoxtonas. Quanto categoria gramatical, so pobres rimas formadas pela mesma classe gramatical e ricas compostas por classes gramaticais diferentes. Por fim, pela extenso dos sons que rimam, so pobres quando rimam a partir da vogal tnica em diante, so ricas quando sua rima j inicia antes da vogal tnica.

  • 36

    fica subentendido. Os trs primeiros, no modo indicativo e no presente, acrescentam

    objetividade e arbitrariedade ao poema.

    Saudade () cheia de graa.

    () alegria em dor difusa,

    () doena da minha raa,

    () pranto que a guitarra lusa

    em seu exlio verteu

    O poeta descreve o que a saudade para ele. Os dois ltimos versos so ligados

    por encadeamento e o nico verbo da estrofe, no passado, referencia a saudade dos

    portugueses desbravadores que tiveram de deixar sua ptria para se estabelecerem no

    Brasil. As palavras lusa e exlio reforam essa idia. Caracterstica dessa estrofe tambm

    o uso de metforas, j que, para o poeta, a saudade alegria, doena e o pranto que a

    guitarra lusa verteu. O sentimento de saudade ambguo e isso que o poeta expressa

    em seu poema, j que ao mesmo tempo um estado de alegria por sentir falta de algo ou

    algum que se gosta e de melancolia e pesar por no poder ter ou estar na presena de.

    O piano acompanhador, com ritmos sincopados caractersticos da msica

    brasileira, refora a idia das metforas, tornando a saudade menos dolorosa, mais

    alegre. Essa mesma idia da msica oferecer suporte ao texto , ocorre em mais dois

    momentos do tema a: 1) entre os c. 9 e 10, o salto de oitava da linha vocal, aliado ao

    aumento de intensidade (de mf para f ) enfatiza a metfora da saudade ser doena da

    raa brasileira; 2) entre os c. 11 ao 17, o piano executa desenhos meldicos imitando os

    bordes dos violes tpicos do choro, enquanto o poema versa pranto que a guitarra

    lusa em seu exlio verteu.

  • 37

    FIGURA 3: SAUDADE RITMO SINCOPADO DO PIANO REFORANDO A METFORA DA SAUDADE

    (FRAGMENTO).

    FIGURA 4: SAUDADE DESENHO MELDICO IMITANDO OS BORDES DE VIOLO TPICOS DE

    CHRO.

    Pensando na interpretao da cano, ao surgir o tema A, mais rpido, alegre e

    ritmado, o cantor poderia cantar se apoiando15 na palavra com boa articulao (no

    exagerada, claro, pois o objetivo no ridicularizar a obra e sim mostrar felicidade,

    contentamento). o momento de ser brincalho, irnico, com um timbre mais

    suave/leve, mas com o cuidado de no baixar a ressonncia vocal para o registro de peito

    ou cantar com intensidade excessiva; peso excessivo na voz prejudicaria a subida para a

    regio aguda e acentuaria a quebra de passagem que pode ocorrer nos c. 10-11 devido

    15 Apoiar-se na palavra, no canto, significa dar importncia articulao das palavras, transmitindo

    ao ouvinte o que diz o texto.

  • 38

    hiperatividade do msculo tireoaritenideo (TA) to recrutado nesses casos (ver pgina

    32).

    Toda essa sesso tambm contrasta da seguinte pelo elemento dinmica: alegre

    = mf, f; triste = p, pp e ppp. A execuo dos planos de dinmica vai variar

    consideravelmente de um cantor para outro16 e tambm vai depender das caractersticas

    acsticas do ambiente em que a performance acontece. O importante que cada cantor,

    dentro de suas possibilidades, acentue os planos de dinmica das sesses o mximo que

    puder.

    O compositor escreveu um crescendo iniciado no verso dor difusa at doena

    da minha raa. O crescendo do piano tem incio j um compasso antes e pelo contorno

    meldico descendente desde alegria em dor difusa, assim, indico ao cantor iniciar o

    aumento da dinmica gradativamente desde o c. 8, caminhando para o f no c. 11; essa

    inteno facilita a preparao do corpo para o salto de oitava. Tambm facilita apoiar na

    nota Mi#4 (doena) no permanecendo tempo demais na nota de passagem e em vogal

    frontal nasal. Acredito que a escolha do compositor por um salto com a slaba en" tenha

    o objetivo de gerar esse som agressivo acentuando a metfora da saudade ser doena da

    minha raa, por isso, penso que o cantor no deve se preocupar com o resultado um

    pouco estridente dessa combinao causado pela constrio naso-farngea resultado da

    vogal frontal ''.

    Nos c. 16-18 o ouvinte pode apreciar o solo do piano que imita os bordes do

    choro, fazendo meno guitarra lusa em seu exlio verteu. Durante o solo

    importante que o cantor no esmorea e nem perca o apoio diafragmtico17 ou a

    colocao alta da voz (visto estar numa zona de conforto), j que, nesse momento, deve

    haver a inteno e preparao para o p em L4. possvel marcar uma respirao entre

    lusa e em seu exlio, evitando fazer uso de todo o ar j que no h pausa para retomar

    o flego antes da sesso B.

    16 As vozes mais dramticas (mais pesadas), diferentemente das vozes mais leves e geis, conseguem ter

    uma paleta maior de nveis de dinmica, contrastando mais entre p e f, por exemplo, podendo atingir um maior grau de contraste (no necessariamente de expressividade).

    17 O termo apoio diafragmtico, apesar de muito popular, pode dar uma idia errada do ato de gerenciar o ar, sustentar o som e at mesmo de garantir a colocao da voz. Apoiar um som, no significa estancar o abdmen, tampouco dar pequenos impulsos com a barriga. No ouso, neste momento, criar um novo termo, mas sugiro um termo em ingls, utilizado por Richard Miller: breath managment (gerenciamento ou administrao da expirao ou da coluna de ar) que melhor descreve o processo que sugiro acima.

  • 39

    A segunda estrofe traz frases mais completas, do ponto de vista sinttico, com a

    presena de outras classes gramaticais. Inicia a estrofe, com uma interjeio, Ai,

    evocando a melancolia da saudade descrita na primeira estrofe. Musicalmente, trata-se

    do ponto culminante da cano, embora executada em intensidade fraca (p) e em

    andamento lento, a nota mais aguda da pea.

    Ai, quem sentir-te no h-de

    se foi dentro da saudade

    que a minha ptria nasceu.

    Nessa estrofe, o modo subjuntivo sugere o desejo de concretizar ou realizar o que

    se afirma18. O primeiro verso dessa estrofe consiste em uma orao subordinada

    condicional incompleta: quem sentir-te no h-de (o que?), seguido dos dois versos

    finais ligados por cavalgamento19. Esses versos iniciam com a conjuno condicional

    se, que indica uma hiptese para o que foi afirmado no primeiro verso. A estrofe curta

    e possui carter melanclico, acrescido, entretanto, de humor e ironia, em que o poeta (e

    o compositor) v a saudade pelo seu aspecto positivo.

    Na msica, a segunda estrofe do poema corresponde ao tema b da sesso A, em

    que o compositor assume definitivamente a regio de mediante (F#m) como tom

    principal. Apesar da armadura de R Maior ter sido escolhida para iniciar a pea, o

    compositor conduziu o texto musical, harmonicamente, sobre a regio de mediante

    (F#m), assumindo a armadura deste ltimo tom somente no c. 18. Esse compasso

    marcado tambm pela alterao de andamento (semnima igual a 69), reduo da

    dinmica para piano somado indicao de tenuto.

    O ritmo harmnico fica mais lento, alterando-se de dois em dois compassos.

    Contrastando com o tema a, vemos a presena de apenas dois acordes do campo

    harmnico de F#m (tnica e dominante) executados em blocos ascendentemente, e em

    contratempo. A ausncia em alguns compassos de acompanhamento do piano auxilia no

    carter contemplativo desse tema. A intensidade, que varia de p a ppp, e a reduo do

    18 Goldstein, 60. 19 Bandeira, 539. O cavalgamento do francs enjambement ocorre quando um verso fica

    incompleto, tendo seu sentido completado no verso seguinte, transferindo a pausa final que existe ao final de cada verso, para o verso subsequente.

  • 40

    andamento, constituem elementos essenciais na construo do carter evocativo da

    linha meldica do canto. Na segunda metade do tema b, conforme mencionado no incio

    desse captulo (c. 21 ao 27), encontra-se a linha meldica matriz que gerou a introduo

    da cano. Note-se, na figura a seguir, as modificaes rtmico-meldicas entre as duas

    apresentaes meldicas:

    FIGURA 5: SAUDADE COMPARAO RTMICO-MELDICA DA INTRODUO E 2 PARTE DO

    TEMA b.

    Essa mudana de humor na sesso B deve dar lugar a um timbre mais choroso

    para o intrprete mais velar, contido e com mais espao. Apenas da dinmica indicada

    ser p, essa passagem precisa ser bem calculada, j que depois dela o autor escreve ainda

    pp e ppp. Todo esse segundo tema deve ser mais legato, com a idia de lamento. O

    andamento diminui, o ritmo harmnico tambm e h a escrita de um glissando no c. 20

    para o canto que deve ser executado com leve afrouxamento no apoio gerando uma

    idia de desiluso, sem rigidez e mais livre deixando a cargo do ouvinte, a interpretao

    do texto que no foi completado pelo poeta. A cada nova frase o cantor deve reduzir a

    dinmica, at atingir o pianssimo pedido pelo compositor.

    A retomada do andamento rpido (semnima igual a 84) no c. 29 marca o incio

    da sesso A. Nela, os trechos que correspondem aos temas a e b, so sutilmente

    modificados rtmica e melodicamente. Alm de ser e executado somente pelo piano, o

    primeiro tema dessa sesso est transposto uma tera maior acima. Por conta dessas

    variaes, consideraremos como sendo o tema a.

  • 41

    FIGURA 6: SAUDADE COMPARAO ENTRE TEMA a E TEMA a.

    Ao repetir o tema da introduo, dessa vez na linha do canto, preciso fazer do

    mesmo modo que o piano no incio, relembrando o ouvinte desse tema, que em seguida

    se repete e deve ser mais contido ainda ppp. A cano tem em seu desfecho a

    recapitulao da alegria da saudade, iniciada somente com o piano (com melodia

    transposta), de carter vigoroso, rtmico e marcado, no mesmo andamento do incio da

    cano, at ressurgir o tema B, lamentado pontuando o fim da cano. Por no cantar

    novamente o tema a com o piano, para no perder o apoio e a referncia de lugar, o

    cantor deve manter-se preparado, idealizando antecipadamente a linha vocal que ir

    cantar.

    Em b da sesso A, ocorre variao na direo da linha vocal se comparada a b, e

    idntica aos c. 3 a 5 da introduo, auxiliando o desfecho da cano. Nesse aspecto

    comparativo, nota-se o entrosamento composicional entre a linha vocal e o

  • 42

    acompanhamento do piano. O piano inicia a cano e a voz a termina, apoiada apenas

    por um acorde arpejado de F#m executado pelo piano.

    O carter ambguo do termo saudade retratado ora com humor ora com ironia

    pelo poeta, em versos com forma A-B, e tambm pelo compositor, musicalmente, em

    forma A-A. A ambiguidade qual me refiro, deve permear a interpretao da obra:

    cantor e pianista podem acentuar as diferenas musicais e expressivas entre a alegria e

    a tristeza (parte A e B do poema, respectivamente), de acordo com o texto e com as

    indicaes musicais. O efeito desse contraste pode ser alcanado atravs de expresso

    facial (corporal), mudana de timbre, inflexo vocal (enfatizando o texto ou palavra a ser

    evidenciada), por exemplo.

    H ainda que se observar a funo conectiva que assume uma cadncia

    especfica nos c. 5, 23, e 42 (somente para o piano), 16 a 18 (para o canto), e nos c. 36 e

    37 (entre piano e voz). Esse elemento conectivo cadencial inicia, interliga os temas, ou

    fragmentos deles, conferindo coerncia entre a forma A-A da msica e a forma A-B da

    poesia.

    FIGURA 7: SAUDADE ELEMENTO CONECTIVO CADENCIAL.

  • 43

    Diferente das outras canes para voz e piano compostas por Jos Penalva e

    estudadas nessa dissertao, Saudade explora o registro mdio/agudo da voz aguda

    feminina (soprano) e trabalha as notas de passagem entre esses registros, podendo

    trazer dificuldade ao intrprete. Na definio de Pinho e Pontes20, registros21 vocais so:

    Sries de tons homogneos que se caracterizam por um especial timbre sonoro, distinto dos outros registros e independente da frequncia do tom emitido. um evento totalmente larngeo consistindo de sries de frequncias ou, de uma faixa de frequncias vocais que podem ser produzidas com qualidades aproximadamente idnticas.

    Na cano Saudade h dois pontos de maior dificuldade tcnica e que exigem

    reflexo do cantor para uma boa performance: os c. 9-10 e os 18-20. Mim 9-10 temos um

    salto de oitava anacrsico do F#3 para o F#4 (esse ltimo, passagem do registro

    mdio para o agudo nas sopranos). Mi nos c. 18-20 necessrio atacar um L4 (nota

    aguda), direto, sem nenhuma preparao ou nota prxima anterior em dinmica p.

    20 Pinho e Pontes, Msculos Intrnsecos..., 49. 21 Na literatura existe certa concordncia entre a existncia de diferentes registros de vozes nas

    tessituras vocais masculinas e femininas: registro de peito ou grave, registro mdio e registro de cabea. Entretanto h divergncia ao definir quais seriam exatamente as notas de passagem e quais seriam os limites desses registros. Nessa pesquisa utilizo duas fontes bsicas para a definio dos registros e notas de passagem: Miller (2000, 23) e Pinho & Pontes (2008, 49-51). A definio de registro defendida por Richard Miller21 de que, na voz do soprano, o registro de peito corresponde regio Sol2-Mib3, o registro mdio entre Mib3-F#4 ou Sol4 (dependendo do cantor) e o registro agudo encontra-se entre Sol4 e D5 ou D#5. Essa definio por tons no precisa ser to rgida ou fixada por tons exatos podendo variar um ou dois semitons para regio mais aguda ou mais grave. Para Pinho e Pontes, a passagem entre o registro de peito e mdio ocorre em torno de 400 Hz (aproximadamente Sol3) e entre o registro mdio e de cabea em torno de 660 Hz (aproximadamente Mi4). Atualmente, atravs de exames de eletromiografia (EMG) sabe-se que existe uma relao entre os diferentes registros e a contrao de grupos musculares intrnsecos larngeos especficos. No registro modal h a predominncia da atividade de dois msculos tensores da prega vocal, o tireoaritenideo (TA) e o cricotireideo (CT). O TA predomina no registro de peito e responsvel por aumentar a resistncia gltica e encurtar a prega vocal; o CT predomina no registro agudo e responsvel por along-las. Assim, entre o registro mdio e agudo para Pinho & Pontes acima do Mi4 e para Miller entre F4 e F#4 devido atividade muscular antagnica, que se d a diferena de registros mais evidente e a voz do cantor pode apresentar quebra ou falhas.

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    FIGURA 08: SAUDADE PONTOS DE MAIOR DIFICULDADE TCNICA DA CANO.

    No primeiro caso, a dificuldade consiste nesse salto do grave para o agudo, em

    nota de passagem, que, quando feito sem preparao muscular anterior sem idealizar o

    som agudo e prover espao suficiente para que esse acontea quebra, falha ou temos

    a sensao de que o som ficou espremido/apertado na garganta.

    Segundo Pinho & Pontes22 a melhor forma de se driblar as quebras nas notas

    de passagem est em elevar progressivamente o palato mole e, consequentemente,

    baixar a laringe ou abrir a garganta, expresso comum no canto sem comprimir a

    lngua produzindo um som mais coberto sempre que a direo meldica for ascendente;

    quando for descendente, realiza-se exatamente o contrrio, uma des-cobertura do som.

    Pinho & Pontes sugerem como exerccio de cobertura do som nas escalas ascendentes,

    transformar o em u, em i, a em , utilizando o biquinho francs que abre

    espaos ressonantais.

    Alm da cobertura dos sons, necessrio o apoio23 dos msculos plvicos,

    abdominais e intercostais. Miller24 refora a importncia de no compreender por apoio

    uma espcie de soco abdominal, seja empurrando ou encolhendo a barriga, explicando

    que o canto deve ser o mais natural possvel e menos tenso, mas atenta para a

    necessidade de se manter o pescoo e ombros relaxados, o osso externo projetado para

    frente e, talvez o mais importante, se manter as costelas abertas a fim de evitar o

    22 Pinho e Pontes, 51. 23 No me estenderei aqui no conceito do apoio no canto, bastante complexo e divergente nas diversas

    escolas de canto existentes. Para maiores esclarecimentos, consultar a Monografia de Javier Venegas, disponvel em: http://www.pergamumweb.udesc.br/dados-bu/000000/00000000000C/00000C4E.pdf

    24 Miller, Training soprano..., 38.

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    antagonismo entre os msculos da respirao e diminuir a presso subgltica que no

    pode ser ineficiente nem excessiva e sim eficiente. Para o autor, apoio uma forma de

    coordenar o gerenciamento do ar que deve ser dominado por qualquer cantor para

    adquirir, ao mesmo tempo, energia e liberdade na fonao. O exerccio abaixo sugerido

    por Miller25 executado primeiramente com vogais laterais, seguidos de vogais

    arredondadas, e cantados em tons transpostos auxiliam no controle do apoio, aumento

    de presso do ar e equalizao dos registros:

    FIGURA 09: SUGESTO DE EXERCCIO PARA MELHORAR OS SALTOS DE OITAVA (MILLER, 2000,

    P.127).

    Outro exerccio que ajuda em passagens difceis ou de quebra no agudo retirar

    todas as consoantes e cantar somente com vogais: primeiramente com vogais laterais e

    vogais arredondadas. Em seguida, cantar as somente as vogais do texto a ser

    interpretado na msica estudada e, por fim, acrescentando suas as consoantes.

    Na segunda dificuldade apontada na cano, o ataque repentino no agudo,

    tambm pode levantar a laringe, fazendo com que o som no saia, ou tambm fique

    espremido. Nesse caso, o ataque na vogal a, considerada a mais natural a ser emitida.

    Miller26 atenta tambm para a importncia de no se pensar no som em p ou pp como

    um som recolhido e sim com a mesma inteno de um som em f s que mais suave e

    tambm explica que no se pode deixar entrar mais ar no som para a reduo de

    dinmica. Sugiro o exerccio abaixo para auxiliar nessa passagem. Deve ser cantado a

    partir do L4, sempre em saltos de oitava descendentes e subindo em intervalos de

    semitons at onde for possvel.

    25 Miller, Training soprano..., 127. 26 Miller, Training soprano..., 152.

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    FIGURA 10: SUGESTO DE EXERCCIO PARA MELHORAR O ATAQUE SBITO EM NOTA AGUDA.

    No poema do segundo trecho difcil da cano Saudade, Menotti del Pichia

    escreveu originalmente: Ai, quem sentir-te no h de e Penalva, ao utilizar a interjeio

    na cano, modificou-a para Ah. Ao utilizar um 'h' e no um 'i', o compositor mostra

    conhecimentos do canto. A vogal 'i', apesar de dar projeo ao cantor e ser a vogal de

    maior vibrao e harmnicos agudos, possui maior obstruo e, como dito

    anteriormente. Alm do mais, um 'i', poderia no causar um efeito esttico desejado de

    contemplao e nostalgia.

    H tambm uma questo rtmica a ser discutida, que Mrio de Andrade

    consideraria um erro de prosdia. No c. 6, temos a paroxtona cheia e o acento

    empregado por Penalva, do compasso binrio, recai sobre slaba a em melodia

    ascendente, ficando a impresso de uma falsa oxtona. Para resolver essa falsa

    acentuao necessrio pensar que, juntamente ao acento regular do compasso binrio,

    nesse ritmo brasileiro existe um pulso ternrio que ocorre, talvez, por assimilao de

    algumas caractersticas da msica africana27:

    FIGURA 11: SAUDADE EXEMPLO DO PULSO TERNRIO IMPLCITO EM COMPASSO BINRIO

    SIMPLES.

    O autor explica que sncope (assim como a hemola), com origem na msica

    africana, esto presentes tambm na msica afro-americana e, por isso, no podemos

    encarar um compasso binrio da forma equitativa como as culturas europias o fazem

    (em grupos de duas semnimas ou quatro colcheias, por exemplo), j que na msica de

    27Carlos Velsquez Rueda, Mdia: novo totem para um casamento dessacralizado, Revista

    Humanidades 21, n. 2 (Fortaleza, Jul./Dez. 2006) 131, http://www.unifor.br/images/ pdfs/pdfs_notitia/2585.pdf (acessado em 13 Mai, 2011).

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    influncia africana, comumente, obedecem a propores desiguais28. Pensar nesse pulso

    ternrio implcito auxilia o cantor a no acentuar demasiadamente a segunda slaba de

    cheia, tornando a letra mais natural e no soando algo forado ou incorreto. Penalva

    parece no ter ficado satisfeito com a soluo rtmica dada pelos intrpretes a palavra

    cheia na verso para voz e piano j que nas adaptaes ou releituras da cano

    posteriores, feitas para coro em 1966 e 1980, primeiramente, ainda em compasso binrio

    simples adicionou quilteras de trs colcheias para alterar a acentuao da palavra e,

    posteriormente alterou o ritmo binrio simples para composto, como no exemplo

    abaixo:

    FIGURA 12: SAUDADE VERSO PARA CORO DE 1966.

    FIGURA 13: SAUDADE VERSO PARA CORO DE 1980.

    3.2 TRS PEAS PARA VOZ E PIANO