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505 As carnes secas do Ceará e o mercado atlântico no século XVIII Almir Leal de Oliveira Universidade Federal do Ceará O principal objetivo deste trabalho é evidenciar a inserção do charque produzido no Ceará durante o século XVIII nos circuitos mercantis do Império Português. As indicações de que o charque foi um produto estratégico no comércio colonial se encontram dispersas e sem sistematização, impossibilitando o pesquisador de visualizar historicamente a comple- xa operação produtiva e mercantil das carnes secas no Ceará. Sobretudo quando se trata do período anterior à década de 1790, quando se iniciou a produção do charque no Rio Grande do Sul, as indicações da produção e consumo do charque se limitam a uma historiografia local, e, quando muito, aparecem ligadas aos interesses mercantis da praça do Recife, com especial ênfase no monopólio do comércio exercido pela Companhia Geral de Comércio de Pernambuco e Paraíba. Assim, procuramos analisar essas referências, situando a produção e a comercialização do charque a partir do movimento do porto da vila de Santa Cruz do Aracati, capitania do Siará grande. Salta aos olhos do pesquisador a carência de estudos sobre as particularidades da eco- nomia da pecuária, sobre a produção e comercialização do charque no século XVIII. As expli- cações clássicas analisam a pecuária dentro de sínteses gerais, geralmente referenciando-se em Capistrano de Abreu e Caio Prado Júnior. As generalizações partem da caracterização da pecuária como resultante da adaptação do gado ao meio físico propício, da proibição da Coroa de instalação de currais no litoral, do caráter subsidiário da pecuária frente à lavoura canavieira e a economia mineradora, e, para a área da pecuária conhecida como sertões pernambucanos, destaca-se a facilidade na montagem da estrutura produtiva da fazenda e a caracterização das rotas de boiadas. Foi Capistrano de Abreu que lançou em 1899 as bases dessa interpretação geral. Num artigo publicado na Revista do Instituto Histórico do Ceará, comentando um livro de Guilher- me Studart, Capistrano resumiu a conquista do Ceará, a redução dos índios e a introdução do gado, a partir do encontro dos caminhos de boiadas de Pernambuco e da Bahia. Capistrano comentou que deveria haver uma interpretação própria para as colônias exploradas através da pecuária. Segundo ele, “o fato de uma colônia ser ou não pastoril trraz uma série de con- seqüências a que até hoje não se tem atendido devidamente”. Ao buscar uma interpretação particular para as áreas da pecuária nos sertões, Capistrano afirmou que a principal fonte de pesquisa para o assunto era o Roteiro Do Maranhão a Goiás pela capitania do Piauí, de

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As carnes secas do Ceará e o mercado atlântico no século XVIII

Almir Leal de OliveiraUniversidade Federal do Ceará

O principal objetivo deste trabalho é evidenciar a inserção do charque produzido no Ceará durante o século XVIII nos circuitos mercantis do Império Português. As indicações de que o charque foi um produto estratégico no comércio colonial se encontram dispersas e sem sistematização, impossibilitando o pesquisador de visualizar historicamente a comple-xa operação produtiva e mercantil das carnes secas no Ceará. Sobretudo quando se trata do período anterior à década de 1790, quando se iniciou a produção do charque no Rio Grande do Sul, as indicações da produção e consumo do charque se limitam a uma historiografia local, e, quando muito, aparecem ligadas aos interesses mercantis da praça do Recife, com especial ênfase no monopólio do comércio exercido pela Companhia Geral de Comércio de Pernambuco e Paraíba. Assim, procuramos analisar essas referências, situando a produção e a comercialização do charque a partir do movimento do porto da vila de Santa Cruz do Aracati, capitania do Siará grande.

Salta aos olhos do pesquisador a carência de estudos sobre as particularidades da eco-nomia da pecuária, sobre a produção e comercialização do charque no século XVIII. As expli-cações clássicas analisam a pecuária dentro de sínteses gerais, geralmente referenciando-se em Capistrano de Abreu e Caio Prado Júnior. As generalizações partem da caracterização da pecuária como resultante da adaptação do gado ao meio físico propício, da proibição da Coroa de instalação de currais no litoral, do caráter subsidiário da pecuária frente à lavoura canavieira e a economia mineradora, e, para a área da pecuária conhecida como sertões pernambucanos, destaca-se a facilidade na montagem da estrutura produtiva da fazenda e a caracterização das rotas de boiadas.

Foi Capistrano de Abreu que lançou em 1899 as bases dessa interpretação geral. Num artigo publicado na Revista do Instituto Histórico do Ceará, comentando um livro de Guilher-me Studart, Capistrano resumiu a conquista do Ceará, a redução dos índios e a introdução do gado, a partir do encontro dos caminhos de boiadas de Pernambuco e da Bahia. Capistrano comentou que deveria haver uma interpretação própria para as colônias exploradas através da pecuária. Segundo ele, “o fato de uma colônia ser ou não pastoril trraz uma série de con-seqüências a que até hoje não se tem atendido devidamente”. Ao buscar uma interpretação particular para as áreas da pecuária nos sertões, Capistrano afirmou que a principal fonte de pesquisa para o assunto era o Roteiro Do Maranhão a Goiás pela capitania do Piauí, de

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autor desconhecido, que indicaria uma “filosofia do gado e dos vaqueiros”. Nesse sentido, e valendo-se principalmente desse registro, Capistrano elencou os temas que seriam predo-minantes nas interpretações sobre a pecuária dos sertões pernambucanos: o modo como ela contribuiu para o povoamento, a ocupação das áreas mais propícias para o gado, a ocupação das ribeiras, a forma de pagamento dos vaqueiros (com um quarto da produção do curral, o que facilitava a expansão da pecuária), o absenteísmo, a natureza do comércio dos sertões com o litoral, e a dependência daquele em relação a este.1 Em Capítulos de História Colonial, Capistrano retomou essas interpretações e falou de uma segunda fase da ocupação dos ser-tões, já com a presença dos fazendeiros, quando foram criadas as vilas nos sertões, ordenan-do, inclusive, o recolhimento dos dízimos cobrados dos criadores. Nessa obra, Capistrano fala das rotas que o gado percorria até as feiras, e, para isso, utiliza-se daquela que será uma outra forte referência empírica em trabalhos que consideraram a depreciação dos valores do gado em suas jornadas até os centros consumidores, a saber, Cultura e Opulência do Brasil, de Antonil. Esses elementos interpretativos da pecuária, e principalmente a análise dessas fontes, encontraram forte ressonância em outros estudos.2

Caio Prado Júnior chamou a atenção para o papel desempenhado pela pecuária como fonte de abastecimento do mundo colonial. Segundo ele, a pecuária poderia ser apontada como “a única [atividade econômica], afora as destinadas aos produtores de exportação, que tem alguma importância”. E mais, Caio Prado diz, e com justiça, que ela é relegada ao segundo plano, uma vez que se escondia às vistas da produção canavieira e da mineração. Entretanto, afirmava ele em 1942, “já sem contar o papel que representa na subsistência da colônia, bastaria a pecuária o que realizou na conquista do território para o Brasil, a fim de colocá-la entre os mais importantes capítulos da nossa historia”.3

A caracterização da pecuária feita por Caio Prado não difere, em linhas gerais, do que foi apontado por Capistrano de Abreu. Ao falar da área mais antiga dedicada ao criatório, os sertões do Norte, Caio Prado relaciona a ocupação dos sertões pelo gado através da adap-tação desta atividade às condições do meio natural. A facilidade na montagem das fazendas e dos currais, a forma de pagamento dos vaqueiros, o absenteísmo, o aproveitamento dos recursos naturais, o sistema de trabalho dos vaqueiros, a manutenção dos rebanhos, enfim, até mesmo as jazidas naturais de sal utilizadas na alimentação do gado são citadas por ele.

Caio Prado utilizou fartamente as fontes indicadas por Capistrano, o Roteiro anônimo e Cultura e Opulência do Brasil. As linhas gerais da interpretação não são contraditórias, embora Caio Prado tenha se dedicado também a falar da extensão das propriedades, da pro-dutividade das fazendas, do baixo nível técnico da criação do gado e da sua comercialização através das boiadas. Mas Caio Prado, para completar sua análise econômica da pecuária, adensou sua análise incluindo outras fontes de pesquisa, principalmente os relatos de cro-nistas e viajantes do início do século XIX, como Saint Hilaire, Henry Koster e Von Martius. Segundo ele, seu objetivo não era o de “acompanhar a evolução da pecuária”, mas delinear a distribuição do gado nas principais áreas de ocupação nos primórdios do século XIX. A forma cuidadosa com que Caio Prado delimitou o tema e abordou as fontes pode ser obser-vada quando ele indicou a necessidade de estudos mais aprofundados sobre a distribuição de sesmarias e os conflitos resultantes desse sistema: “o assunto, do maior interesse para a

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história social e econômica do país, ainda espera seu pesquisador.” Sem objetivar exaurir as fontes de pesquisa, Caio Prado objetivava encontrar o lugar da pecuária como subsidiária da agricultura comercial.

Destacando o papel do abastecimento das áreas do litoral, Caio Prado introduziu um ele-mento interpretativo que passou a ser recorrente para o entendimento do desenvolvimento das charqueadas: a depreciação do valor do gado com o longo caminho percorrido até as feiras, que segundo ele poderia chegar a 50%. Segundo ele, além da baixa produtividade das fazendas, o gado era entregue ao consumo “estropiado pela longa e difícil caminhada, aba-tido incontenti, logo ao chegar, sem qualquer repouso preliminar ou alimentação especial”. A tese de Caio Prado é que a tecnologia das carnes secas “permitiu obviar ao problema do transporte nas distâncias enormes”, tornando o preparo da carne seca “uma indústria local importante”. Caio Prado também fala das condições naturais, como a falta de umidade, como outro fator favorável para o desenvolvimento da atividade da salga das carnes.4 Aliás, esse avanço tecnológico também foi considerado por Geraldo da Silva Nobre na sua tese de livre docência em história econômica na Universidade Federal do Ceará, e que se constitui um dos principais estudos sobre as charqueadas.5

Os estudos de caráter mais empírico sobre a pecuária voltaram-se para analisar a estru-tura fundiária e a organização do trabalho no interior das fazendas de gado. Preocupados principalmente com a reprodução da agricultura comercial de caráter dependente do tráfi-co de escravos e da produção de alimentos, os estudos desenvolvidos a partir dos anos de 1980, principalmente os trabalhos dedicados à compreensão da pecuária como parte de um sistema de subsistência, Luis Mott e Francisco Carlos Teixeira da Silva evidenciaram alguns questionamentos sobre a distribuição de sesmarias, as formas da propriedade da terra e o uso do trabalho escravo nas fazendas de gado do Piauí. Foram relativizados o sistema de tra-balho do vaqueiro e os padrões de ocupação das terras. As principais contribuições desses trabalhos se resumem na forma de entendimento da ocupação dos sertões a partir de um regime de terras distinto daquele baseado na apropriação individual e privada da terra, e de que a pecuária não teria se utilizado da escravidão como força de trabalho nos currais. Ao analisarem as fazendas de criação esses autores destacaram as variadas formas de ocupação da terra, principalmente os aforamentos, e a variedade nas formas de utilização da força de trabalho, inclusive com forte presença do trabalho escravo no Piauí, e os diferentes níveis de especialização do que se entendia como vaqueiro.

Especial atenção foi dispensada ao beneficiamento da produção da pecuária através do charque. Segundo Teixeira da Silva, o principal fator da introdução das charqueadas foi a con-corrência que as boiadas do Piauí e Ceará tinham com áreas mais próximas do Recife, como as dos sertões do São Francisco. Segundo ele, “por volta de 1740, todo o sistema de comer-cialização sofreria uma mudança radical [...]. As salgadeiras, também chamadas de fábricas ou charqueadas, expandiram-se rapidamente na vila de Santa Cruz do Aracati. Aí, reuniam-se as condições ideais para a indústria: o sal abundante, a ligação direta com o Interior através do rio Jaguaribe, a situação portuária da vila”.6 Mesmo sem indicar suas fontes, Silva é um dos autores que colocou o charque como produto que rapidamente encontrou mercado, inclusive na Bahia, para abastecimento das tropas, das naus, enfim, do comércio atlântico.

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Todos os autores até aqui citados são unânimes em considerar a seca como fator de-sarticulador da economia das carnes secas do Ceará a partir do final do século XVIII, princi-palmente da Seca Grande de 1790 a 1794, que dizimou o gado, impedindo a reorganização das oficinas, e também pela concorrência, a partir daí, com o charque no Rio Grande do Sul. Notamos até aqui que os trabalhos sobre a pecuária valeram-se de relatos gerais sobre, no-tadamente crônicas e relatos de viajantes. Incluem-se igualmente os trabalhos da década de 1980, que tiveram uma base empírica mais alargada, analisando os registros demográficos e sesmarias das capitanias do Piauí e da Bahia, uma vez que tinham por questão teórica a problematizarão do sistema da pecuária como economia de abastecimento da qual dependia a agricultura comercial. Ainda se faz necessário o alargamento da análise empírica para uma melhor compreensão das formas de inserção do charque no abastecimento da colônia e no mercado atlântico.

A dificuldade de encontrar registros mais gerais sobre a atividade da produção do charque e o seu comércio pode ser entendida a partir da relação entre a tributação realiza-da pela Coroa na pecuária. A agricultura comercial foi privilegiada pelos administradores régios na sua tributação, sendo objeto de regulamentações específicas, alvarás, direitos, privilégios, preços de fretes, etc. O mesmo não aconteceu com a pecuária, daí a dificulda-de em mensurar a tributação, mesmo quando se trata do gado fornecido para as feiras, e menos ainda para o gado que transitou dentro da capitania do Ceará para o abastecimento das oficinas de charque. Não encontramos também nenhuma indicação sobre privilégios e regulamentos que orientassem a comercialização do charque. As dificuldades de docu-mentar a produção do charque não se encerram aí. Também não foram contabilizadas pela Companhia Geral de Comércio de Pernambuco e Paraíba, as movimentações do charque, uma vez que não foram exportados com freqüência para Portugal. Se o charque foi enviado para a África, onde encontramos algumas evidências do consumo desse produto, não foi contabilizado pela mesma Companhia.

A pecuária e os registros documentais da sua tributação ainda são bem pouco estudados para a área dos sertões pernambucanos. Para o caso do Ceará, apenas o estudo dos contra-tos de arrematação de dízimos ao longo do século XVIII poderia nos fornecer algum indício de sua produção e comércio. Essa carência de análises dos fluxos econômicos da pecuária decorre em grande parte do fato das sínteses historiográficas se preocuparem mais com a distribuição de terras e ocupação dos sertões, como a distribuição de sesmarias e estrutura-ção dos currais, do que com as redes mercantis que sustentaram essa atividade econômica. Tudo isso dificulta para o pesquisador reunir as informações e observar a complexidade das operações produtivas e comerciais do charque no mercado atlântico.

A primeira indicação da produção das carnes secas no Ceará vem de Rocha Pita. Em 1730, quando foi publicada a História da América Portuguesa, Rocha Pita referiu-se ao porto dos barcos na barra do Jaguaribe, capitania do Siará Grande, aonde os barcos iam “carregar carnes de que abundam naquele país”.7 Entretanto não possuímos dados sobre o nível de comercialização do charque nessa primeira metade do século XVIII.

Ao que tudo indica, a atividade da manufatura e comércio das carnes secas esteve liga-da à expansão dos interesses comerciais de Pernambuco na região. Desde o final do domí-

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nio holandês, com a centralização administrativa e eclesiástica em Pernambuco, a região subordinou-se a uma hierarquia regional. Evaldo Cabral de Melo, ao estudar a ascendência da praça comercial do Recife no período post bellum, chamou atenção para as estratégias de diversificação comercial dos mascates como fator que possibilitou a formação de uma área de trocas que se estendia desde o Ceará até a foz do rio São Francisco. Esta área teria se submetido comercialmente ao Recife, principalmente pela adoção do sistema de frotas em 1649, que centralizou no porto do Recife as trocas comerciais entre a colônia e o Reino. Segundo ele, “acossado ao norte pela concorrência com São Luis, mas, sobretudo ao sul e oeste pela de Salvador, o Recife compensou-se estendendo-se pelos “portos do sertão”, isto é, pelas ribeiras a Oeste da baia de Touros no Rio Grande do Norte.” Melo ainda nos fornece uma interpretação sobre a ascendência da praça do Recife no período post bellum indicando que a abertura do Caminho do Maranhão teria beneficiado tremendamente o comércio re-cifense. Experientes no abastecimento das propriedades do interior, dominando o comércio de grosso trato com o Reino, explorando trapiches e armazéns, investindo em propriedades urbanas e antecipando créditos aos proprietários rurais, esta passagem do “mercador de loja” ao “mercador de sobrado”, também esteve ligada à montagem de um sistema de trocas comerciais com os portos do sertão.8 Em 1743, o capitão-mor do Ceará, Francisco Ximenes de Aragão, pediu ao rei de Portugal que, pela freqüente presença de barcos que comerciali-zavam charque e couro no Aracati, seria conveniente que a Câmara de Aquirás despachasse para lá um juiz ordinário e um escrivão. As iniciativas posteriores foram de indicar a neces-sidade de criação de uma vila no porto dos barcos. Em 1744, o ouvidor do Ceará Manuel José de Faria propôs ao rei a criação da vila, proposta que, levada ao Conselho Ultramarino, recebeu parecer favorável em 12 de dezembro de 1745, vindo a vila ser criada em 1742 e instalada em 1748. A principal justificativa para a criação da vila era a sua importância co-mercial, uma vez que, além de centralizar a indústria das carnes secas, possuía um comércio atuante com o sertão da capitania.9

Para a segunda metade do século XVIII aumentam significativamente os registros sobre como o charque se inseriu no mercado colonial em resposta aos interesses comerciais da praça do Recife. A partir de 1757, encontramos dados referentes à inserção do charque como produto estratégico para a manutenção do tráfico atlântico de escravos, para a manutenção de tropas, para abastecimento das minas e das cidades do Recife, Bahia e Rio de Janeiro.

A força periférica do charque e as suas relações mercantis na economia do Império, constituídas ao longo da primeira metade do século XVIII com a expansão das atividades ligadas à pecuária na ocupação dos sertões e ribeiras da capitania anexa do Siará grande, estão claramente evidenciadas em 1757, quando os homens de negócio do Recife pediram autorização à Coroa para constituírem uma Companhia Geral de Comércio de Carnes Secas e Couros do Sertão. Talvez estimulados pelas políticas pombalinas de incentivo à produção colonial e pela criação da Companhia do Maranhão e Grão Pará, os homens de negócio de Pernambuco visavam “incrementar a produção de carnes e couros e distribuí-la em Pernam-buco, Bahia e Rio de Janeiro”.10 Essa pode ser a referência mais sistemática e informativa do significado do charque no comércio colonial em meados do século XVIII. O principal motor desse incremento da produção da pecuária sertaneja era o abastecimento com o charque

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dos principais portos do comércio atlântico. Os mesmos comerciantes também propunham a criação de uma Companhia da Costa da África que, junto com comerciantes reinóis e baia-nos, monopolizariam o tráfico de escravos.

A justificativa do governador de Pernambuco, Luis Diogo Lobo da Silva, endossada pelos principais comerciantes do Recife, para a criação das referidas Companhias era o fato de que elas agiriam como financiadoras do comércio de escravos para os senhores de engenho, além de impedir a concorrência em África com comerciantes ingleses e franceses, e evita-riam o contrabando e a evasão de ouro para financiar o comércio de escravos. A criação da Companhia das Carnes Secas tinha como objetivo a expansão do mercado e o aumento dos lucros para os comerciantes e para os criadores. Na proposta, foi sugerido que a companhia tivesse 24 navios (sumacas), que poderiam facilmente transportar a produção de cerca de 28 a 30 mil cabeças de gado. O capital de 450 mil cruzados seria repartido em ações de 4 contos de réis, e viabilizaria a compra dos navios, do gado e das despesas relativas ao pro-cessamento das carnes secas e couros. Alegavam ainda que esse comércio do Recife com os portos do sertão já havia ocupado cerca de 35 barcos, mas que nos últimos anos se encon-trava arruinado.

Podemos indagar sobre a relação dos criadores e charqueadores do Ceará com o capital mercantil do Recife e sobre o papel significativo deste produto no abastecimento interno. Segundo Ribeiro Júnior, o movimento do comércio do Recife com os portos do sertão em 1757 envolvia cerca de 35 barcos. Entretanto, documentar a inserção do charque no merca-do interno e o seu significado para o tráfico atlântico de escravos tem sido um grande desafio para a pesquisa. Eulália Lobo registrou 46 armazéns no Rio de Janeiro que comercializavam o charque em 1779.11 Necessitaríamos maiores informações sobre o comércio praticado en-tre a capitania de Pernambuco e as capitanias da Bahia e do Rio de Janeiro para documentar o comércio interno do charque, entretanto a pesquisa ainda não avançou nessa questão, muito embora seja referência nas fontes e historiografia já citadas a recorrente destinação do charque no mercado interno.

Por um outro lado, sabemos que o charque representou um produto estratégico no comércio de escravos. Diversas evidências indicam o consumo do charque na África, es-pecialmente ligado ao tráfico de escravos e ao abastecimento dos navios. De acordo com Roquinaldo Ferreira, na segunda metade do século XVIII, as praças brasileiras “usufruíam larga vantagem no comércio direto com Angola”, superando em muito a praça de Lisboa. Se-gundo ele, esse predomínio brasileiro no comércio de escravos se dava pelo financiamento do tráfico com os produtos da terra, como o fumo, as cachaças e a carne seca: “Porque não tinham acesso a estas mercadorias, os negociantes metropolitanos, apesar do farto acesso às fazendas de negro após 1772, não conseguiam competir com os brasileiros”.12 Antunes, analisando o incremento das transações comerciais luso-brasileiras em Moçambique, tam-bém documentou a presença das carnes salgadas como produto da terra que influenciou no desenvolvimento do tráfico de escravos.13

Na África, o charque teria ganho notabilidade a partir de sua introdução na alimentação dos escravos que estavam sendo preparados para a travessia do Atlântico. Luis Antônio de Oliveira Mendes documentou em 1793 como teria se dado o consumo das carnes do Ceará

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na alimentação dos escravos. Segundo ele, foi o pernambucano Raimundo Jalamá, adminis-trador da Companhia de Comércio de Pernambuco e Paraíba em Angola entre 1759 e 1763, que, observando as péssimas condições físicas dos escravos embarcados, o que resultava em alta mortalidade e prejuízos para a Companhia, substituiu a savelha (peixe salgado e conservado em azeite) pela carne seca na alimentação. Jalamá teria orientado as escravas a temperar as rações servidas com a carne seca: “quando pela primeira vez a escravatura provou deste gênero de comida assim temperada, e amoldada ao seu paladar, confessa fide-dignamente, que lhe bateram palmas. [...] Na prevenção da economia mandou vir por conta da mesma Companhia de Pernambuco a carne salgada, e seca, a que lhe chamam do sertão, que é escaldada, e sem ossos, que ali custa de 6 [centos] a oitocentos réis a arroba...”.14

Jaime Rodrigues e Luis Felipe de Alencastro incluíram o charque, juntamente com o fei-jão, o milho e a farinha de mandioca, como um dos principais alimentos dos africanos apri-sionados nos portos africanos e também na alimentação consumida durante a travessia: “A carne salgada era secada a sombra; a vantagem desse tipo de carne estava em se conservar por mais tempo, durante a navegação no mar”.15

O charque também foi utilizado na segunda metade do século XVIII na alimentação dos soldados. Juntamente com a farinha de mandioca, chegou a ser usado como pagamento de soldos. Durante a Guerra dos Sete Anos entre Inglaterra e França, o charque foi enviado para Portugal para servir de alimentação das tropas. Uma primeira remessa de 70 toneladas foi enviada em 1761 e outra, com a mesma tonelagem, foi enviada no ano seguinte a pedido do Conde de Oeiras “por conta de Sua Majestade”. Em 1762, o charque embarcado para o reino ficou isento de direitos nos navios da Companhia de Comércio de Pernambuco.16

Mesmo considerando o significado da atividade pastoril para a colonização das capita-nias da costa Leste-Oeste, mesmo ressaltando a sua dependência da área produtora de cana-de-açúcar, mesmo sendo atividade subsidiária, os modelos interpretativos sobre a produção de alimentos e abastecimento das áreas coloniais não avançaram no estudo sistemático des-ses fluxos, ou de seu significados para a formação de uma elite senhorial ligada ao abasteci-mento da Colônia. Tampouco foi considerada a expansão dos interesses metropolitanos na organização do capital mercantil, e ainda, a sua relação com a formação de uma elite senho-rial urbana e mercantil no Ceará.

Cabe, portanto, analisar as atividades ligadas à pecuária e o seu beneficiamento associa-do às novas tendências de estudos sobre os fluxos coloniais. O estudo da produção do char-que e dos couros, das relações mercantis do Ceará com outras áreas coloniais e o perfil (e estratégias) de acumulação nos levam a inquirir sobre a dinâmica destas atividades e os seus desdobramentos na formação das elites cearenses. Visando contribuir para o entendimento das atividades das charqueadas do Ceará para o período anterior a 1777, e para a discussão dos fluxos que sustentavam o mercado interno colonial na segunda metade do século XVIII, apresentamos aqui alguns dados compulsados do Livro de Registro de Entrada dos Barcos no Porto da Vila do Aracati entre 1767 e 1776.

Os registros não oferecem uma homogeneidade dos dados, o que nos impede a monta-gem de uma série completa do decênio. Entretanto, oferecem informações preciosas sobre os charqueadores e as suas atividades econômicas. A documentação nos permite saber, o

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que até agora se desconhecia, quantos eram os barcos que entraram no porto da vila em cada ano desde 1767. Contabilizamos 77 entradas entre 1767 e 1776, realizadas por 57 barcos.17

Os registros das entradas dos barcos eram realizados pelo juiz ordinário do Senado da Câmara, devidamente documentados pelo seu escrivão. Geralmente eram realizados na casa de morada do juiz. Os dados indicam o dia da entrada, a carga trazida e a que seria despacha-da. O mestre da embarcação era o responsável pelo registro, assim sabemos sempre os seus nomes. Para alguns registros também foram apontados os proprietários das embarcações e/ou de seus fretadores. Os barcos faziam o registro uma vez que pagavam a quantia de 10$000 para a Câmara.

Ao que tudo indica, os barcos referidos eram as sumacas (aliás, nome que também desig-nava o charque, ou carne do Ceará). Apenas uma entrada foi registrada como bergantim – bar-co a vela e a remo, de um ou dois mastros de galé e com oito ou dez bancos para remadores.

As sumacas eram barcos a vela menores que os patachos, que se tornariam ao longo do século XIX a principal embarcação nas rotas da costa Leste-Oeste. Sua mastreação era constituída de gurupés (mastro que se lança do bico da proa e que por vezes era decorado com esculturas) e dois mastros inteiriços (o de vante que cruza as duas vergas e o de ré, que enverga vela latina). Segundo Evaldo Cabral de Melo, as sumacas dominaram o transporte na costa Leste-Oeste até o aparecimento das barcaças. A partir do Cabo de São Roque, “a sumaca passou a gozar de um monopólio que não conseguiu adquirir ao longo do litoral per-nambucano e paraibano, onde devia contar com a concorrência de barcos menores, como as canoas do alto e outras”.

Alguns autores discorreram sobre as dimensões da sumaca e sua capacidade de carga. Cabral de Melo calculou que as sumacas poderiam carregar até 237 passageiros (conforme previa o regulamento do trafico de escravos), mas carregava até mais de 360. “A armação compunha-se de mastro de vante ou traquete, dotado de vela latina, vela de estai (polaca), mastro de mezena com vela redonda ou quadrada, e gurupés; dispunha também de castelo de popa. Ela também arrastava escaler”. Ainda segundo ele, a média de tonelagem das su-macas era de 80 toneladas. “Para atender o aumento do tráfego decorrente não só do incre-mento físico da produção exportável [de Pernambuco], mas, sobretudo da concentração no Recife de todo o comércio exterior de Pernambuco e das chamadas capitanias anexas, era necessário um barco maior”.18

As sumacas passaram a dominar o sempre complicado trecho de navegação a partir do cabo de São Roque por serem mais ágeis e podiam assim vencer as temíveis correntezas. Sua introdução, fundamental para as transações dos portos do sertão com o porto do Recife de Pernambuco no Brasil, teria sido uma adaptação de embarcações holandesas.

A maior parte das sumacas que chegaram ao Aracati era originária do Recife, confir-mando as afirmações de Melo. Algumas vezes era registrada a procedência e o destino da embarcação, e assim podemos saber que a maior parte dos barcos com origem/destino declarados era de Pernambuco (16 barcos dos 19 registros de origem/destino). Também foi registrado um barco em 1767 que tinha a sua origem/destino o porto do Rio de Janeiro, contrariando a Carta Régia de 7 de fevereiro de 1701, que proibia o comércio direto entre as capitanias do norte com as capitanias do sul. Os outros registros indicavam escalas

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realizadas no porto do Assu no Rio Grande do Norte, e no porto de Camossim, no litoral norte do Ceará.

Como vimos, uma das justificativas utilizadas pela historiografia para o aparecimento da atividade das oficinas de carnes secas no Ceará foi o aproveitamento das condições naturais da região: sol, vento e abundância de sal. Essas condições naturais também explicariam o aparecimento das charqueadas na ribeira do Assu, na Capitania do Rio Grande.19

A atividade econômica das salinas no período colonial foi documentada pela historio-grafia. Roberto Simonsen, no seu curso de Historia Econômica em 1931, nos diz que foi no período da ocupação holandesa que foram descobertas as salinas da costa Leste-Oeste, em Mossoró e no Ceará, informação também compartilhada por Evaldo Cabral de Melo. Entre-tanto, Simonsen estava mais preocupado com a comercialização do sal nas capitanias do Estado do Brasil, notadamente nas capitanias de São Vicente e do Rio de Janeiro. Simonsen traçou um quadro de carestia do gênero e dos altos preços que foram objeto dos contratos de sal nessas capitanias, bem como das constantes ações da Coroa proibindo a fatura do produto na Colônia. Os altos preços do produto teriam gerado não só a escassez em alguns momentos, principalmente com a crescente exploração da Minas Gerais, mas também teria contribuído para o sucesso de alguns motins.

Miriam Ellys, em estudo de 1955, também analisou o monopólio do comércio do sal no Estado do Brasil entre 1631 e 1801, quando este foi abolido. Na mesma linha de Simonsen, a autora pouco se deteve na exploração de sal nas capitanias da costa Leste-Oeste. Mais de-talhes encontramos sobre essa atividade em Frederic Mauro. Segundo ele, após a exploração do sal ser iniciada no período da ocupação holandesa, ela teria se desenvolvido nos anos se-guintes. Mauro chegou mesmo a computar a sua produção anual em 2 mil toneladas por ano (aproximadamente 140 mil arrobas), descrevendo que a força de trabalho utilizada nesta tarefa envolvia 12 negros, 10 brancos e 30 índios.20

Mais recentemente, o trabalho de Katinsky sobre mineração no período colonial aponta também as mesmas características já sublinhadas em Simonsen, pouco se referindo à docu-mentação referente às capitanias da costa Leste-Oeste. Entretanto, detalhou a sistemática de trabalho adotada no interior das salinas, baseando-se, possivelmente, para isso em Ellys. Seriam utilizados processos rudimentares e ainda a construção de barragens para cercar a água do mar, por gravidade, evaporação e cristalização. Como sua questão central é o desen-volvimento da técnica no Brasil, o autor considera que as práticas adotadas seriam as mes-mas da Metrópole. Katinsky fala ainda das constantes idas e vindas da Coroa para regular o monopólio e relaxá-lo nos momentos de carestia e escassez, permitindo alguma produção local, notadamente no Rio de Janeiro, em Cabo Frio.

Todos os autores relatam as constantes ordens da Coroa proibindo a instalação de sa-linas nos seus domínios coloniais. Dentre outras medidas, desde o Decreto que introduziu o monopólio em 1631, a Carta Régia de 1690, que proibira até mesmo a coleta do sal pro-duzido naturalmente, as iniciativas da Coroa foram todas no sentido de manter o privilégio das áreas produtoras de Setúbal, Alverca e Figueira, em Portugal. Mesmo que esses autores se refiram ao fim do monopólio em Pernambuco nos últimos anos do século XVIII, quan-do as capitanias do Rio Grande, Cabo Frio e Pernambuco passaram a poder, legitimamente,

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utilizar, mas não exportar, o sal encontrado em seus domínios, não ficam esclarecidas as relações entre a produção do sal e a manufatura das carnes secas. Katinsky ainda apontou que, geralmente, o sal era utilizado na salga das carnes, secas ao sol, mas não se refere es-pecificamente ao processo de produção da carne do Ceará como dependente da produção e do comércio do sal. Sobre a política da metrópole, o autor aponta que, por vezes, a Coroa permitia a instalação de salinas em períodos de escassez. Esta política irregular de permitir ou não a exploração das salinas na colônia perdurou por todo o século XVIII. “Assim é que, no final do século XVIII, as capitanias nordestinas obtiveram a permissão para explorar suas salinas, desde que seu consumo fosse exclusivamente local”.21

Os dados compilados até agora sobre o movimento do porto do Aracati na segunda me-tade do século XVIII nos mostram que havia uma intensa atividade de produção e comércio de sal entre as capitanias do Rio Grande e do Ceará, contrariando a Carta Regia de 1690. No que se refere às cargas declaradas que entraram no porto do Aracati entre 1767 e 1778, das 78 entradas de barcos, 33 declararam trazer sal “para a factura das carnes secas”. Esse dado esclarece que a atividade dos charqueadores era interligada com outros sistemas de explo-ração econômica na costa Leste-Oeste, compondo uma rede de negócios entre as capitanias do Seará Grande, Pernambuco e Rio Grande. A partir desses dados podemos saber que se os charqueadores utilizavam a exploração do sal marinho do Ceará, utilizavam também de outra área, o que indica um grau de complexidade do beneficiamento das carnes, que envol-via, inclusive, um comércio inter-capitanias. Certamente os interesses na exploração do sal na região da ribeira do Assu, origem declarada das cargas de sal das embarcações, estavam associados aos interesses dos charqueadores e comerciantes.

Até agora desconsiderado pela literatura, o comércio do sal entre as capitanias da costa Leste-Oeste e Pernambuco foi bastante intenso na década de 1770. Se computarmos os bar-cos que declararam carregar apenas sal, contamos 23 carregamentos exclusivos. Conside-rando que a sumaca tinha capacidade para carregar cerca de 80 toneladas, o comércio entre essas capitanias teria atingido a quantidade de 184 toneladas, isso sem contar os outros 10 barcos que entraram com carga mista. Podemos razoavelmente considerar que nesses 10 anos o comércio movimentou cerca de 200 toneladas do produto. Em termos comparativos podemos observar que em 1766, a capitania das Minas Gerais teria consumido, segundo Si-monsen, 35 mil alqueires. Ou seja, a atividade dos charqueadores do Aracati consumiu quase que o equivalente a 2/3 do sal consumido nas Minas Gerais em uma década, isso sem levar em conta a produção local do sal que, infelizmente, não temos documentado.

Também foram declaradas, além de passageiros, cargas de aguardente, mel, fazendas, miudezas, fretes, lastro (o que indicava vir o navio apenas para tomar cargas) e de secos e molhados. A farinha de mandioca era um produto encontrado também com uma grande recorrência: 23 embarcações levaram ao Aracati o referido produto, sendo que no ano de 1770 foram importadas mais de 150 toneladas em quatro entradas declaradas. Prosperaram no período as atividades mercantis ligadas às atividades dos charqueadores. Não apenas o comércio do charque movimentava o porto como também era significativa a entrada de produtos que vinham do porto do Recife. Apenas cinco navios declararam entrar sem merca-dorias. O registro da saída de mercadorias para o período analisado com carnes secas foi de

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36 barcos. Nove navios declararam entrar no Aracati para carregar couro, sola e courama e outros 17 barcos declararam buscar fretes. O ano de 1776 foi um ano de seca parcial, quando apenas um barco foi registrado no porto. Entre 1777 e 1780 o Ceará enfrentou uma grande seca e em 1776 cessaram os registros de barcos, que só reapareceram em 1787.

Até agora a pesquisa nos indica que a atividade dos charqueadores do Aracati deve ser entendida a partir de uma dinâmica rede de trocas comerciais entre as capitanias do Norte do Brasil, subordinando, inclusive, o comércio de gado e gêneros para o sertão. A operação produtiva vinculava-se à atividade mercantil e estabelecia-se através de uma rede de com-plexas relações. Em alguns casos, como a fatura do sal e o comércio entre capitanias, essas relações contrariavam explicitamente as Ordens Régias. A atividade do mercador-charquea-dor, por mais que subsidiária e voltada para o mercado interno, expandiu seu mercado como produto estratégico para o tráfico atlântico de escravos. As estratégias de investimentos desses grupos mercantis, manipuladores do beneficiamento das carnes e do comércio com o sertão, seguiam os padrões dos mascates pernambucanos, investindo em diferentes ativi-dades e regiões. Atualmente estamos analisando dados do movimento do porto do Aracati para o período de 1783 a 1802, momento em que, segundo a historiografia, a economia do charque foi desarticulada e substituída pelo comércio do algodão. Tentamos avaliar, a par-tir da análise de outras fontes, como Requerimentos, Cartas Patente, e nos Documentos de Pernambuco do Arquivo Histórico Ultramarino, o perfil desses mercadores-charqueadores e suas relações com Pernambuco. Estamos ainda organizando o levantamento dos inventários post mortem de Aracati, e das vilas do sertão para melhor entender as intrincadas redes de hierarquização regional que a pecuária e o beneficiamento de sua produção propiciaram.

Notas

ABREU, Capistrano de. “Sobre uma História do Ceará”. In: Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Tipografia Studart, 1899, p. 29. Nesse texto, Capistrano de Abreu comenta o lançamento do livro Dactas e Factos para a História do Ceará – Colônia, de Guilherme Studart. O estudo também foi publicado em Caminhos Antigos e Povoamento do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria Briquiet/Sociedade Capistrano de Abreu, 1931, pp. 219-231.2 ABREU, Capistrano de. Capítulos de História Colonial (1500-1800). 6ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasi-leira, 1976, principalmente o capítulo: O Sertão. 3 PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987, p. 187.4 PRADO Jr., op. cit., p. 195 e 196.5 NOBRE, Geraldo da Silva. As Oficinas de Carnes do Ceará: uma solução local para uma pecuária em crise. Fortaleza: Gráfica Editorial Cearense, 1977. Em linhas gerais a historiografia cearense reproduz as interpreta-ções de Capistrano de Abreu e Caio Prado Júnior. Destacam-se os autores Renato Braga, com um artigo sobre as charqueadas na Revista do Instituto Histórico do Ceará em 1947, Raimundo Girão, na sua síntese de história econômica, também de 1947, e, Valdelice Carneiro Girão, que em dissertação de mestrado na Universidade Federal de Pernambuco analisou especificamente as charqueadas.6 SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. “Pecuária, agricultura de alimentos e recursos naturais no Brasil Colô-nia”. In: SZMRECSÁNYI, Tamás (org.) História Econômica do Período Colonial. São Paulo: Edusp/Hucitec, 2002, p. 151, onde são citados outros trabalhos que analisaram a pecuária do Piauí e Bahia.7 PITA, Sebastião da Rocha. História da América Portuguesa. São Paulo: Itatiaia, 1976, p. 55.

8 MELO, Evaldo Cabral de. A ferida de Narciso: ensaio de historiografia regional. SãoPaulo: Editora SENAC, 2001, p. 53. Ver ainda do mesmo autor: A fronda dos mazombos: nobres contra mascates. Pernambuco, 1666-1715, São Paulo: Editora 34, 2003. 9 STUDART, Guilherme. Dactas e Factos para a História do Ceará. Fortaleza: Tipografia Studart, 1896, pp. 220, 222, 227, 231 e seguintes.10 RIBEIRO Jr., José. Colonização e monopólio no Nordeste do Brasil: a Companhia Geral de Comércio de Per-nambuco e Paraíba (1759-1780). São Paulo: Hucitec, 2004, p. 80.11 LOBO, Eulália Maria Lameyer. História do Rio de Janeiro: Do Capital Comercial ao Capital Industrial e Financeiro. Rio de Janeiro: IBMEC, 1978, p. 69.12 FERREIRA, Roquinaldo “Dinâmica do comércio intracolonial: Geribitas, panos asiáticos e guerra no trá-fico angolano de escravos (século XVIII)”. In: FRAGOSO, João et alli. O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, pp. 345 e 365.13 ANTUNES, Luis Frederico Dias. “Nichos e redes: interesses e relações comerciais luso-brasileiras na Áfri-ca Oriental (1750-1800)”. In: BICALHO, Maria Fernanda e FERLINI, Vera Lúcia do Amaral. Modos de Governo: idéias e práticas políticas no Império Português, séculos XVI-XIX. São Paulo: Alameda, 1005, p. 217.14 MENDES, Luis Antônio de Oliveira. “Discurso Acadêmico – Memórias econômicas da Academia Real das Sciências de Lisboa (1793)”. In: CARREIRA, Antônio. As Companhias Pombalinas. Lisboa: Editorial Presença, 1982, p. 401.15 HUTTER, Lucy Maiffei. Navegação nos séculos XVII e XVIII Rumo: Brasil. São Paulo, Edusp, 2005, p. 332; RODRIGUES, Jaime. De Costa a Costa: Escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola ao Rio de Janeiro (1780-1860). São Paulo: Cia. Das Letras, 2005, pp. 243 e 262 e ALENCASTRO, Luis Felipe de. O Trato dos Viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Cia. Das Letras, 2000, pp. 251-256.16 RIBEIRO Jr., op.cit., pp. 104-106 e HUTTER, op. cit., p. 367.17 Entrada de barcos por ano: 1767 – 10 entradas, 1768 – 17 entradas, 1769 – 8 entradas, 1770 – 8 entra-das, 1771 – uma entrada, 1772 – Não há registro de entrada de embarcações, 1773 – 18 entradas, 1774 – uma entrada, 1775 – 14 entradas e 1776 – uma entrada. Faltam as 20 primeiras paginas do Livro. Os registros do ano de 1767 iniciam em julho. 1772 e 1776 foram anos de seca. FONTE: Livro de Notas do Senado da Câmara da Vila de Santa Cruz dos Barcos do Aracati (1767-1801), número 23.18 MELO, Evaldo Cabral de. Um Imenso Portugal: História e Historiografia. São Paulo: Editora 34, 2002, p. 194.19 MONTEIRO, Denise Matos. Introdução a História do Rio Grande do Norte. Natal: Ed.UFRN, 2000, p. 85. 20 SIMONSEN, Roberto. História Econômica do Brasil (1500-1820). São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1931. ELLYS, Miriam. O monopólio do sal no estado do Brasil (1631-1801). São Paulo: FFCL/USP, 1955. MAURO, Fre-deric. “Pode-se falar em uma indústria brasileira na época colonial?”. In: Estudos Econômicos, Vol. 13, número especial, 1983.21 KATINSKY, Julio Roberto. “Notas sobre a mineração no Brasil Colonial”. In: VARGAS, Milton (org.). Histó-ria da Ciência e da Tecnologia no Brasil. São Paulo: UNESP/CEETEPS, 1994, p. 100.

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