AS CONSTELAÇÕES SISTÊMICAS FAMILIARES NA JUSTIÇA DO RN: uma interface...

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AS CONSTELAÇÕES SISTÊMICAS FAMILIARES NA JUSTIÇA DO RN: uma interface entre a Psicologia e o Direito Taciana Chiquetti ([email protected]) Carlos Henrique Souza da Cruz ([email protected]) Resumo Investigou-se, neste trabalho, o efeito do uso da técnica das Constelações Sistêmicas Familiares, criadas pelo filósofo alemão Bert Hellinger, nas audiências de conciliação da 6ª Vara da Família, no Fórum Miguel Seabra Fagundes, em Natal-RN. Também observou-se de que maneira a intervenção da Constelação contribui para a emergência de conflitos subjacentes e, por meio da tomada de consciência dos mesmos, se tal fato favorece o empoderamento das partes envolvidas no litígio, oportunizando uma maior compreensão, a harmonia nos relacionamentos, o reconhecimento de papeis e a chegada a um consenso. Este estudo exploratório propôs-se verificar as conseqüências da interface entre a Psicologia e o Direito e seus desdobramentos no âmbito do Judiciário. Palavras-chave: constelações familiares, ordens do amor, justiça, litígio, conflitos, consenso, mediação, conciliação. Abstract Investigated whether, in this work, the effect of using the technique of Systemic Constellations Family, created by the German philosopher Bert Hellinger, during hearings of the 6th Family Conciliation Court , Miguel Seabra Fagundes' Court House in Natal-RN. Also noted that way the intervention of Constellation contributes to the emergence of underlying conflict and, through the awareness of ourselves, if this fact favors the empowerment of parties involved in litigation, providing opportunities for greater understanding, harmony in relationships , recognition of roles and to arrive at a consensus. This exploratory study aimed to verify the consequences of the interface between the psychology and the law and its consequences within the judiciary. Keywords: Family Constellations, Orders of love, justice, dispute, conflict, consensus, Mediation, Conciliation. Introdução Conflitos fazem parte da realidade humana tanto quanto os esforços para solucioná- los. Na impossibilidade de êxito, é cada vez mais comum se recorrer à instância jurídica na esperança de que sejam resolvidas tais demandas por justiça. A Psicologia vem ocupando um lugar de relevância no âmbito jurídico, auxiliando na compreensão de aspectos relacionados à subjetividade humana, atingindo níveis diferenciados de compreensão quanto à ambivalência das pessoas em seus aspectos psíquicos. O presente artigo faz uma reflexão sobre essa interface de saberes através de um estudo exploratório realizado nos meses de abril a outubro de 2015, descrevendo o impacto da técnica das Constelações Sistêmicas Familiares nas audiências de conciliação da 6ª Vara da Família da Comarca de Natal/RN. Inseridas em uma cultura litigante, que elege um poder maior, paternalista, para dar conta de questões privadas e íntimas, as pessoas tem buscado cada vez mais a Justiça para

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AS CONSTELAÇÕES SISTÊMICAS FAMILIARES NA JUSTIÇA DO RN: uma

interface entre a Psicologia e o Direito

Taciana Chiquetti

([email protected])

Carlos Henrique Souza da Cruz

([email protected])

Resumo Investigou-se, neste trabalho, o efeito do uso da técnica das Constelações Sistêmicas

Familiares, criadas pelo filósofo alemão Bert Hellinger, nas audiências de conciliação da 6ª

Vara da Família, no Fórum Miguel Seabra Fagundes, em Natal-RN. Também observou-se de

que maneira a intervenção da Constelação contribui para a emergência de conflitos

subjacentes e, por meio da tomada de consciência dos mesmos, se tal fato favorece o

empoderamento das partes envolvidas no litígio, oportunizando uma maior compreensão, a

harmonia nos relacionamentos, o reconhecimento de papeis e a chegada a um consenso. Este

estudo exploratório propôs-se verificar as conseqüências da interface entre a Psicologia e o

Direito e seus desdobramentos no âmbito do Judiciário.

Palavras-chave: constelações familiares, ordens do amor, justiça, litígio, conflitos, consenso,

mediação, conciliação.

Abstract

Investigated whether, in this work, the effect of using the technique of Systemic Constellations

Family, created by the German philosopher Bert Hellinger, during hearings of the 6th Family

Conciliation Court , Miguel Seabra Fagundes' Court House in Natal-RN. Also noted that way

the intervention of Constellation contributes to the emergence of underlying conflict and,

through the awareness of ourselves, if this fact favors the empowerment of parties involved in

litigation, providing opportunities for greater understanding, harmony in relationships ,

recognition of roles and to arrive at a consensus. This exploratory study aimed to verify the

consequences of the interface between the psychology and the law and its consequences

within the judiciary.

Keywords: Family Constellations, Orders of love, justice, dispute, conflict, consensus,

Mediation, Conciliation.

Introdução

Conflitos fazem parte da realidade humana tanto quanto os esforços para solucioná-

los. Na impossibilidade de êxito, é cada vez mais comum se recorrer à instância jurídica na

esperança de que sejam resolvidas tais demandas por justiça. A Psicologia vem ocupando um

lugar de relevância no âmbito jurídico, auxiliando na compreensão de aspectos relacionados à

subjetividade humana, atingindo níveis diferenciados de compreensão quanto à ambivalência

das pessoas em seus aspectos psíquicos.

O presente artigo faz uma reflexão sobre essa interface de saberes através de um

estudo exploratório realizado nos meses de abril a outubro de 2015, descrevendo o impacto da

técnica das Constelações Sistêmicas Familiares nas audiências de conciliação da 6ª Vara da

Família da Comarca de Natal/RN.

Inseridas em uma cultura litigante, que elege um poder maior, paternalista, para dar

conta de questões privadas e íntimas, as pessoas tem buscado cada vez mais a Justiça para

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resolver seus problemas, abrindo mão de sua própria autonomia e poder pessoal para

resolverem suas questões. Atualmente, tramitam na Justiça Brasileira, entre casos antigos e

novos, cerca de 95.139.766 processos, segundo o Relatório “Justiça em Números” de 2014 –

dados de 2013, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). E a tendência é de mais

crescimento, considerando a relação inversamente proporcional entre a demanda de novos

processos e a estrutura de recursos humanos das comarcas.

Além deste desequilíbrio, constata-se que soluções impostas (por juízes, no caso) têm

muito menos chances de eficácia e de permanecerem funcionando na prática do que soluções

construídas e aceitas conjuntamente: objetivos das conciliações e mediações. Tais

procedimentos, que podem ser judiciais ou extrajudiciais, vêm ganhando cada vez mais

destaque, considerando também a ênfase do novo Código do Processo Civil (CPC).

Paralelamente a isso, emergem as questões emocionais, as quais também figuram não

mais como “detalhes”, mas como importantes componentes do conflito, decisivas para a

solução.

Tanto a mediação quanto a conciliação apostam na premissa de que o ser humano é

capaz de acessar seus próprios recursos para transformar sua vida, lidando melhor com suas

ambivalências e litígios. Essas práticas judiciais preconizam a viabilidade de pacificação das

relações, com vistas ao restabelecimento do vínculo perdido, a partir do reconhecimento e da

aceitação das histórias vividas e da compreensão dos papéis desempenhados pelos envolvidos

em cada contexto. A partir dessa concordância, torna-se possível uma nova síntese (no sentido

hegeliano), posterior à crise.

Por mais que outras abordagens e técnicas da Psicologia também foquem, em última

instância, na conciliação (equilíbrio), no empoderamento dos sujeitos e no reconhecimento de

papéis, o presente trabalho optou pelas Constelações Sistêmicas Familiares, de Bert Hellinger,

por entender que tal instrumento apresenta elevada sintonia e relação direta com o objetivo

final das conciliações, assim como com o fato de favorecer a emergência de conflitos ocultos

subjacentes.

As intervenções psicológicas utilizaram a técnica das Constelações Sistêmicas

Familiares, tanto individualmente, por meio de bonecos, durante as audiências de conciliação,

quanto em grupo, durante o “encontro preparatório” para as audiências do mês.

Posteriormente, os dados resultantes das atividades foram compilados, analisados e

interpretados à luz da teoria de Hellinger, com o objetivo de verificar a hipótese de que a

técnica da Constelação Familiar interfere positivamente nas conciliações dos casos

observados na 6ª Vara de Família, minimizando e/ou solucionando conflitos e ampliando a

compreensão sobre o problema. O trabalho também convida a uma reflexão sobre a presença

de psicólogos diretamente na sala de audiência, colaborando para um enfoque transdisciplinar.

Inicialmente, o presente artigo discorre sobre os aspectos psicológicos dos conflitos,

embasando-se em algumas teorias, como a Psicanálise e a Psicoterapia Corporal em

Biossíntese, além de situar a família como sede dos primeiros conflitos do ser humano e o

Poder Judiciário como entidade social escolhida para a “terceirização” da solução desses

conflitos. Em seguida, apresentam-se os principais fundamentos das Constelações Familiares,

com um breve histórico de seu criador, Bert Hellinger. Posteriormente, é apresentado o relato

da prática e a análise dos dados obtidos, sendo ilustrados com alguns dos casos.

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1 Relações humanas: palco dos conflitos

A teoria psicanalítica, criada por Freud em meados do século XIX, é uma teoria

caucada sob o conflito psíquico. Todos oscilam psicologicamente entre a satisfação de

determinados desejos e a repressão deles. Há no psiquismo uma espécie de balança

energética que visa ao equilíbrio entre forças de ordem concientes e inconscientes. A

homeostase perseguida pelo corpo físico também é objetivo da psique.

Sobre essa harmonia, explica Garcia-Roza:

[...] Um determinado processo mental pertencente ao Ics (inconsciente) procura

acesso à consciência em busca de satisfação. No entanto, a censura opera na

passagem do Ics para o Pcs (pré-consciente)/ Cs (consciente) opõe-se violentamente

a esse propósito, pois a satisfação do desejo inconsciente, que em si mesma provocaria prazer, provocaria também desprazer relativamente às exigências do

Pcs/Cs. Por essa razão, o desejo tem de permanecer inconsciente, podendo retornar

sob a forma de sintoma. (GARCIA-ROZA, 2002, p. 90)

Desde o nascimento, o ser humano se vê diante de situações conflituosas: o percurso

do útero, sede da proteção máxima, até a vida fora dele e a “descoberta” primária de que ele

e sua mãe não são um mesmo corpo, muito menos um mesmo indivíduo expressa interesses

diversos e conflitantes. Seguem-se também intermináveis embates entre rejeições e

inclusões, princípio do prazer versus princípio da realidade (ainda que não necessariamente

como opositores diretos), pulsão de morte versus pulsão de vida e tantas outras batalhas

internas rumo à regulação psíquica. Assim, o ser humano vai realizando movimentos ora de

olhar para algo, ora de voltar as costas para aquilo.

Toda a teoria sobre o desenvolvimento psicossexual do ser humano fundamenta-

se no conflito, em uma dinâmica de expansão e retração, de desejo e repressão/ recalque,

graças às resistências como reguladoras da integridade egóica. Ao longo da vida,

mecanismos de defesa atuam a fim de que o ego possa dar conta de tantos desafios. Os

conflitos, portanto, são constitutivos da vida humana.

A alteridade é a peça-chave para o estabelecimento de conflitos e para a superação

dos mesmos. “A família, por ser um grupo privilegiado, sedia os primeiros conflitos de

interesse, perpetuando-se vida afora”, conforme explica Cruz (2000, p. 73), definindo que as

relações familiares constituem o primeiro grupo que qualquer ser humano integra, desde a

sua concepção. Portanto, habitat essencial dos conflitos.

Viver em grupo é condição fundamental para que alguém se torne sujeito. A

alteridade é fundamental ao deter o poder na constituição psíquica do outro. Nesse sentido, a

família possui um papel essencial, pois além de abrigar o novo ser, torna-o humano e ressoa

em sua subjetividade, transmitindo linguagem, cultura, ideologias.

Ainda segundo Cruz (2000), as relações com o primeiro grupo repercutem no

comportamento da pessoa nos outros grupos aos quais passará a pertencer e são referências

carregadas por toda a vida. Tal “legado psicológico” (p. 73) é capaz de permitir que

experiências passadas adquiram novo sentido no presente e novas histórias passem a ser

escritas pelo sujeito no futuro, em novos e diferentes contextos grupais.

Desse modo, é natural que socialmente se criasse uma instituição especializada

capaz de tratar de questões que envolva situações conflituosas aparentemente insolúveis no

âmbito intrafamiliar. As Varas de Família do Poder Judiciário se ocupam disso - quer sejam

conflitos relativos à guarda de filhos, pensão alimentícia, testes para confirmar ou não a

paternidade, litígios sobre divisão de bens, entre outros.

Considerando que a ausência de consenso vai muito além da discordância judicial,

começando na subjetividade humana e na relação com o outro, um aspecto que vem sendo

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valorizado no meio jurídico é a humanização da Justiça, por meio da capacitação de

servidores para realizarem a conciliação e a mediação, bem como de se promover a

interdisciplinariedade. O uso das Constelações Sistêmicas Familiares, apresentadas a seguir,

é uma possibilidade de intervenção no Judiciário a fim de contribuir na compreensão dos

aspectos subjacentes aos litígios oriundos de conflitos.

2 Constelações Sistêmicas Familiares: uma possibilidade sistêmica na

resolução de conflitos

A abordagem e o respectivo desenvolvimento das Constelações Sistêmicas

Familiares, pelo filósofo, teólogo e pedagogo Bert Hellinger, têm como período inicial os

anos 80 (DREXLER; WEBER, 2002). A técnica auxilia a harmonizar relacionamentos e a

reconhecer papéis, ampliando a visão sobre o problema e favorecendo a capacidade de os

envolvidos se colocarem no lugar uns dos outros.

Hoje em dia, Hellinger é reconhecido no mundo inteiro, em vários setores, como

na psicoterapia, nas organizações e na educação. É considerado um dos terapeutas mais

relevantes da psicoterapia atual. Viaja pelo globo, disseminando sua teoria em eventos

promovidos por seu instituto, o Hellinger Sciencia.

2.1 Um fenômeno, “algo maior”

As Constelações Sistêmicas Familiares consistem em um trabalho grupal de

projeção da imagem interna de um conflito (familiar, organizacional, pessoal) do constelado,

utilizando pessoas como representantes. O criador da técnica se baseia no pensamento

sistêmico, iniciado com Gregory Bateson, além de outras influências recebidas durante suas

diversas formações. Ele considera haver um “movimento da alma” e uma consciência grupal

comum, uma “consciência inconsciente” ligando membros, atuando sobre eles e visando ao

equilíbrio do grupo (ou sistema), por meio de compensações energéticas.

O constelado escolhe uma questão que deseja trabalhar, sem entrar em detalhes –

fato desnecessário, segundo Hellinger – e, em seguida, escolhe pessoas de um grupo para

representar os “personagens” de sua demanda, colocando-os em um espaço, segundo sua

orientação interior intuitiva. Forma-se um campo, em que constelador, constelado e

representantes estão inseridos, no qual sentirão a experiência de forma distinta, porém em

sintonia, obedecendo às influências energéticas, as quais conectam todos os envolvidos –

presentes e ausentes, vivos ou mortos –, de acordo com o conceito de campos mórficos, o

qual elucidaremos mais a frente.

Em seguida, o facilitador (constelador) solicita aos representantes que se

movimentem de acordo com o que estão sentindo, segundo os “movimentos da alma”. A

partir de então, manifestam-se sensações, sentimentos, palavras e gestos que representam o

sistema do constelado, revelando aspectos importantes que estavam ocultos. Cabe ao

constelador mediar todos esses conteúdos manifestados, organizando de acordo com

posições testadas por Hellinger que levam à organização e ao bem-estar, obedecendo às

possibilidades do sistema naquele determinado momento. Cabe também a ele conduzir frases

de ligação “curativas” e soluções para os emaranhamentos apresentados, trazidos da

condição anterior de estarem ocultos.

O ponto fundamental da técnica é o aspecto fenomenológico. Explica Hellinger:

No caminho fenomenológico, expomo-nos, dentro de um determinado horizonte, à

diversidade dos fenômenos, sem escolha e sem avaliação. Esse caminho do

conhecimento exige, portanto, um esvaziar-se, tanto em relação às ideias

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preexistentes quanto aos movimentos internos, sejam eles da esfera do sentimento,

da vontade e do julgamento. Nesse processo, a atenção é simultaneamente dirigida

e não-dirigida, concentrada e vazia. A postura fenomenológica requer uma

disposição atenta para agir, sem, contudo, passar ao ato. Ela nos torna capazes e

prontos para a percepção [...]. A ausência de intenção e de medo permite a sintonia

com a realidade como ela é, inclusive com seu lado atemorizante, avassalador e

terrível. Dessa maneira, o terapeuta fica em sintonia com a felicidade e a

infelicidade, a inocência e a culpa, a saúde e a doença, a vida e a morte. Justamente

por meio desta sintonia ele adquire a compreensão e a força necessária para encarar

o mal e, às vezes, em sintonia com essa realidade, para revertê-lo. (HELLINGER,

2007b, p. 15).

Neste sentido, as Constelações também podem ser feitas com bonecos, que

substituem os representantes humanos, com a mesma possibilidade de projeção e troca

energética, a partir da ressonância mórfica.

2.2 As Ordens do Amor

Para designar essa consciência que enreda as pessoas inconscientemente na

repetição do destino de outros membros do grupo familiar, Hellinger conceituou as Ordens

do Amor – pilares de sua técnica. Há, segundo ele, três princípios básicos que norteiam a

consciência do clã: a necessidade de pertencimento, a necessidade da precedência ou

hierarquia e a necessidade de equilíbrio entre o dar e o tomar (receber sem reservas) nos

relacionamentos.

Em sua linguagem poética, Hellinger (2007b) esclarece que o Amor é como a

água e as Ordens são como o jarro, cooperando entre si harmonicamente. Portanto, “a Ordem

precede ao Amor” (2007b, p. 36).

Ele enfatiza que as Ordens não são opiniões possíveis de se ter ou mudar à

vontade, mas são como são e trabalham apesar de qualquer incompreensão. Não são criadas,

mas sim descobertas.

O princípio do pertencimento define que todos os membros do sistema têm o

direito de pertencer ao grupo e que, desta maneira, ninguém pode ser excluído por quaisquer

que sejam os motivos. Inclusive os que violaram leis da vida, (como os assassinos), os

mortos, os abortados, os natimortos devem ser incluídos, devem fazer parte. Um membro

excluído ou esquecido será compensado por outro membro da família. Frequentemente, em

uma geração posterior, ele representará ou imitará inconscientemente aquele que foi excluído

ou esquecido.

Os mortos são constantemente abordados nas Constelações, em uma espécie de

referência moderna aos antigos rituais xamânicos. Hellinger acredita que

ninguém pode deixar o campo. A imagem do campo está estreitamente associada à

consciência arcaica. O excluído permanece no campo, continua em ressonância

com todos os que pertencem a ele e se manifesta no campo. (HELLINGER, 2007c,

p. 60).

A hierarquia pela origem é uma das ordens mais básicas: tem prioridade quem

vem primeiro, seguido pelos que vieram depois, ordenadamente. Desta forma, no contexto

familiar, os pais vêm antes dos filhos e os irmãos devem seguir a ordem do nascimento,

incluindo os abortados e mortos. Para Hellinger, isso significa que a sobrevivência dos pais

tem precedência sobre a dos filhos, uma vez que a sobrevivência dos pais assegura uma nova

geração mais rapidamente do que a sobrevivência dos filhos. Segundo Schneider (2004), a

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hierarquia pela origem é completada pela “hierarquia pelo progresso”: entre dois sistemas

diferentes, o novo sistema tem precedência sobre o anterior. Logo, quando os filhos se casam

e formam nova família, esta tem precedência sobre a de origem. Assim também é em relação

aos relacionamentos: o atual tem precedência sobre o relacionamento anterior.

O “dar e receber” (“tomar”, como prefere Hellinger) é uma dinâmica elementar

nas relações; pressupõem troca. Ele acredita que se deve buscar um equilíbrio entre esses

movimentos, considerando a possibilidade de doação de acordo com os papéis. Por exemplo:

no caso da relação pais e filhos, sempre desigual, os pais sempre dão e os filhos sempre

recebem. Uma inversão nessa ordem acarreta emaranhamentos. Filhos são, portanto, eternos

devedores dos pais e somente podem lhes honrar ao doarem uma nova vida (dando

continuidade à família) ou uma nova ideia, um projeto, uma realização para a Humanidade

(em um sistema maior).

Já nos relacionamentos conjugais, tal equilíbrio deve ser perseguido visando às

compensações. Se por acaso, um cônjuge der mais, o outro tem que devolver um pouco mais

para compensar. Em uma situação de lesar o outro, por exemplo, o mal deve ser devolvido,

porém, com um pouco menos de intensidade, de forma a manter a dignidade de ambos e um

adequado balanço. Hellinger também enfatiza que vantagens à custa de outrem serão

compensadas, muitas vezes, somente em uma geração posterior.

Sintetiza Schneider (2004, p.7): “as ‘ordens do amor’ representam talvez uma

transposição do pensamento e da ação ecológica para o domínio das relações”.

Explica Schneider:

As Constelações Familiares se referem, de uma nova maneira, àquilo que

chamamos de ‘alma’. Podemos denominar assim a força invisível que animando (ou

pelo menos no mundo animado) congrega partes num todo, de tal maneira que o

todo é mais do que a soma das partes e de suas funções dentro dele. A alma não se

identifica com nossa consciência, pois inclui o inconsciente. E não se identifica com

os processos fisiológicos e físicos em nosso corpo e em nosso cérebro, embora

esteja inseparavelmente unida a eles. Não se identifica tampouco com nossos

sentimentos, embora o sentir seja o modo de expressão por onde se experimenta a

alma. Ela é antes como o espaço ou o campo que une, ultrapassando espaço e tempo, tudo que constitui uma pessoa, criando uma identidade. (SCHNEIDER,

2004, p.1).

As Constelações, que trabalham a alma das relações, partem do princípio do

reconhecimento, da aceitação plena (mais do que isso, da concordância) e da não

expectativa, tanto em relação ao que acontece durante sua prática, como em relação aos

resultados.

Julgamentos morais, de acordo com o método de Bert Hellinger são totalmente

dispensáveis, desagregadores e desestruturantes. Em um seminário da Hellinger Sciencia, na

Polônia, transcrito do vídeo disponível no Youtube, postado por Eva Jacinto, em 7 de junho

de 2014, Bert diz que o crescimento é o processo de integrar aquilo que havia sido rejeitado,

e completa:

O que se opõe a este tipo de crescimento? O julgamento moral. O julgamento moral

significa ‘eu rejeito alguma coisa’. Se eu não rejeitar nada nunca mais, deixo, desta

forma, de ser um ser moral, mas estou mais conectado com as pessoas e com as coisas. Eu observei que, na realidade, aquilo que rejeitamos são pessoas. O que é

rejeitado na alma são pessoas de nossa família. Esses sentimentos estão conectados

com certas pessoas e, portanto, nós crescemos se recebermos estas pessoas de volta

a nossa alma e ao nosso coração. Isso que fazemos nas constelações é uma forma de

crescimento (2014).

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Neste sentido, ele se dedicou também a observar o conflito “culpa versus

inocência” e percebeu que as pessoas que se colocam nesses extremos permanecem

paralisadas em relação ao crescimento saudável. O 100% inocente e o 100% culpado acabam

por ficarem em um mesmo patamar, subtraindo de si mesmos a possibilidade de mudança e a

própria dignidade.

A consciência, definida por Hellinger (2007b), como “um órgão de equilíbrio

sistêmico”, que varia de acordo com o grupo e pode ser “sentida” ou “oculta”, ajuda a

perceber imediatamente se a pessoa se encontra ou não em sintonia com o sistema. O

conflito entre essas consciências acaba por contribuir para “empurrar” os membros para o

lugar de culpados ou inocentes, em nome da “lei do pertencimento”, desorganizando o

sistema por meio de emaranhamentos.

Portanto, neste contexto, a boa consciência significa apenas: ‘posso estar seguro de

que pertenço ao meu grupo’. E a má consciência significa: ‘receio não fazer mais

parte do grupo’. Assim, consciência pouco tem a ver com leis e verdades universais,

mas é relativa e varia de um grupo para outro [...]. Contudo, a principal diferença

que se evidenciou nesse contexto é a que existe entre a consciência sentida e a

consciência oculta [...]. Embora a primeira nos declare inocentes, a segunda pune

esse ato como culpa. A oposição entre essas consciências é a base de toda tragédia –

o que, no fundo, nada mais significa do que uma tragédia familiar. Ela provoca os

enredamentos sistêmicos responsáveis por doenças graves, acidentes e suicídios.

Essa oposição é igualmente responsável por muitas tragédias de relacionamento, quando uma relação entre um homem e uma mulher se desfaz, apesar de um grande

amor recíproco. (HELLINGER, 2007b, p. 16-17).

Em linhas gerais, as Constelações Familiares ensinam a necessidade imperiosa do

reconhecimento, da aceitação e de se assumir as consequências dos atos. Sobre a

possibilidade de integrar o velho ao novo, escrevendo novas histórias com desfechos

diferentes das anteriores, Hellinger (2007c, p. 67) é categórico: “Somente existe futuro

quando o passado pode ser esquecido”. Ao que corrobora, em outras palavras, Boadella, "se

eu não cuido da minha história, estou condenado a repeti-la”1.

3 O uso das Constelações em Audiências de Conciliação

A aplicação da técnica de Hellinger na Justiça brasileira teve início em 2011 pelo

juiz Sami Storch, no interior do Estado da Bahia, na Comarca do município de Amargosa. O

magistrado, que foi pioneiro no mundo a introduzir as Constelações no Judiciário, conseguiu

índices de acordo muito eficazes nos processos judiciais em que as partes participaram do

método terapêutico. Depois de conseguir tais feitos e receber o Prêmio “Conciliar é Legal”,

do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), pelo projeto “Constelações na Justiça”, o

magistrado agora viaja pelo Brasil disseminando o que ele chama de “Direito Sistêmico”,

baseado nas ordens superiores que regem as relações humanas, segundo a ciência das

Constelações.

3.1 Prática na 6ª Vara da Família

A prática desenvolvida na 6ª Vara da Família, da Comarca de Natal, ocorreu

especificamente nas audiências de conciliação, realizadas às segundas-feiras, das 8h30 às 12h.

O início da aplicação foi no dia 27 de abril de 2015 e o término em 05 de outubro do mesmo

1 Frase citada por David Boadella, durante um treinamento do Instituto Internacional de Biossíntese,

em Haiden, na Suíça, em setembro de 2014.

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ano. Ao todo, foram 59 audiências, conduzidas pela equipe que incluiu a conciliadora e os

psicólogos. No Rio Grande do Norte foi adotado um formato diferente da prática na Bahia,

pois se incluiu profissionais de Psicologia diretamente nas audiências, em interação com os

profissionais do Judiciário. As Constelações foram aplicadas quando se identificava, no

campo criado, conflitos subjacentes, os quais apontavam para a viabilidade da intervenção,

assim como quando as partes concordavam em submeterem-se à técnica.

Nas audiências foi utilizada a técnica com bonecos: as partes dispunham os bonecos

como se fossem as pessoas a serem representadas, posicionando-os uns em relação aos outros,

segundo sua imagem interna. Em seguida, o facilitador dava seguimento à constelação. Após

a constelação, seguia-se com os procedimentos processuais específicos da audiência de

conciliação.

Embora seja possível trabalhar diversos conteúdos em uma Constelação, no caso da

intervenção na Justiça, observou-se a necessidade de uma atuação focal, limitando o campo ao

ponto “essencial” do conflito, àquele que motivara o pleito judicial. Aliás, “essencial” é uma

palavra-chave para Hellinger, situando-a como referencial básico na condução de sua técnica;

cerne orientador para se intervir no campo sistêmico de alguém. Ponto de largada e, ao

mesmo tempo, ponto de chegada a partir do qual um constelador direciona seu trabalho, com

base na proposta de esvaziamento interior, não julgamento e ausência de intencionalidade.

Somente, assim, é possível constelar.

Explica Hellinger:

É preciso confiar em um movimento interior. Um movimento humilde. Assim, a

força divina ganha espaço para dizer o que é essencial. No final, tudo depende do

amor. Não o amor que imaginamos. Somos levados pessoalmente por esta força,

para outra dimensão. Se vocês se direcionarem neste sentido, ganharam outra grandeza. Uma grandeza humilde. E os clientes se sentem, ao final, abençoados. O

essencial sempre vem à tona. Não importa onde começamos. A raiz do problema

vem à tona. A vida tem muitas camadas. Da mente, não temos acesso a outra

dimensão, onde tudo fica armazenado. O que é importante é a falta de intenção. Nós

não fazemos constelações. Apenas as deixamos acontecer. Não fazemos nada,

apenas deixamos acontecer2

Questionamentos sempre vinham à tona e foram tratados como relevantes aspectos

deste estudo exploratório, redirecionando, inclusive, as próprias intervenções, ao longo de

todo o processo. Questões que permearam a prática na 6ª Vara foram: as Constelações estão

sendo feitas a serviço de quem? Da Justiça? Das partes? Do próprio projeto?

Com base no pensamento de Hellinger de que sua técnica é para ser usada “a serviço

de algo maior”, tendo o “essencial” como “norte”, o compromisso ficou direcionado ao

próprio fenômeno e resolveu-se então não condicionar a constelação necessariamente a um

acordo (ainda que em muitos casos, tal objetivo foi conquistado), mas sim a uma ajuda

emocional e energética ofertada às partes. O trabalho passou a ter como foco principal

propiciar uma maior compreensão dos envolvidos sobre seus próprios problemas.

Segundo Hellinger:

Quanto mais nos desviamos do essencial tanto mais irrequietos, desatentos e

confusos nos tornamos. Por isso, podemos ler nas linhas de nossa vivência até que

ponto estamos conectados a ele ou até que ponto nos afastamos dele (...) Como se

chega ao essencial? Sobretudo através do esperar, pois o essencial não se mostra

imediatamente, apenas no momento certo. Às vezes, quando já nos desviamos do

2 Trecho dito por Bert Hellinger, durante Seminário Bert e Sophie Hellinger ao vivo, promovido pelo Instituto Hellinger Sciencia, em São Paulo-SP, no dia 07 de agosto de 2015

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essencial, pode demorar muito até que o alcancemos novamente, pois ele também

requer despedidas. (HELLINGER, 2006, p.87)

O exercício da espera fez parte do cotidiano do projeto, não somente nas próprias

intervenções, aguardando que o campo revelasse o que podia vir à luz, mas também no

entendimento de que, em muitos casos, até mesmo se houvesse uma conciliação, tal feito não

seria saudável para as partes. Desta forma, o momento peculiar inerente à pessoa humana e os

movimentos da alma poderiam vir a ser indevidamente antecipados. Curioso observar que, em

determinadas situações, a audiência de instrução pôde se desvelar como o melhor caminho

para o litígio, contrariando expectativas.

Por diversas vezes, constatou-se que as partes não estavam suficientemente prontas

para reconhecerem o movimento de ajuda proposto por meio das Constelações Familiares.

Desse modo, só restaria à conciliadora, à magistrada, aos consteladores e aos advogados uma

postura de humildade em aceitar a situação como ela estava posta naquele instante, em

lealdade aos preceitos de Hellinger e coerentemente com a abordagem das Constelações.

O objetivo primeiro era que os envolvidos entrassem em contato com algo mais

profundo relacionado ao litígio, aquilo mais subterrâneo, inconsciente, sistêmico, detonador

dos emaranhamentos familiares. Assim, desvinculava-se a Constelação realizada a um

resultado de acordo imediato. Até porque a alma leva um tempo maior para operar.

Finalizada a audiência, as partes e seus advogados, espontaneamente, já manifestavam

suas opiniões e impressões sobre a intervenção, as quais eram anotadas para posterior análise.

Mesmo assim, na segunda fase do presente trabalho, em meados de julho, optou-se por

convidá-los a responder um questionário, no intuito de avaliar o projeto e os efeitos da

realização da Constelação. Os resultados obtidos serão apresentados detalhadamente mais à

frente.

3.2 Casos e Histórias

“A agressão sempre é uma forma de autodefesa”.3 Esta frase, dita por Sophie

Hellinger, traduz o cotidiano na 6ª Vara da Família. Quase sempre as partes chegavam

abatidas à sala de audiência, demonstrando raiva, medo, pesar, rancor, despeito, ódio, tristeza,

arrependimento e uma gama de emoções e sentimentos, que, unidos, tornaram-se combustível

para o litígio.

Sem saber como conduzir suas próprias questões íntimas na dinâmica familiar, essas

pessoas se viam obrigadas a recorrer ao Judiciário, em busca de um equilíbrio que jamais

conseguiram em suas relações até então. Também era frequente que os advogados

adentrassem a sala em postura litigante, com um “ganha x perde” internalizado, ansiando por

vencer a causa e derrotar os argumentos do colega em oposição, mesmo se tratando de um

momento conciliatório prévio à intervenção da magistrada.

À medida que aconteciam as Constelações e as intervenções da conciliadora, a

animosidade se desnudava na “autodefesa”. Lágrimas estiveram constantemente presentes,

transbordando a necessidade de proteger egos feridos e dar vazão a conteúdos inconscientes.

Em um dos casos, um pai reclamava ser vítima de alienação parental. Tratava-se da 9ª

vez que o homem, um militar que dispunha de acesso gratuito a advogados, procurava a

Justiça para restabelecer a convivência e o direito de visitar seus dois filhos pré-adolescentes.

A mãe alegava que os filhos não desejavam comparecer às visitas e que, quando as mesmas,

ocorriam, eles reclamavam que o pai não promovia atividades e o fim de semana com o

genitor se resumia a assistir à televisão na casa dele. Muitas vezes sem sequer ele estar

3 Frase dita por Sophie Hellinger, durante Seminário Bert e Sophie Hellinger ao vivo, promovido pelo Instituto Hellinger Sciencia, em São Paulo-SP, no dia 08 de agosto de 2015

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presente no mesmo ambiente físico. As crianças foram, paulatinamente, perdendo o interesse

em manter contato com o pai. Segundo a genitora, havia também dificuldade de comunicação

entre eles. O pai não conseguia, por exemplo, perguntar sobre a rotina dos filhos.

Com a Constelação colocada, desnudaram-se situações ocultas, até mesmo não

apontadas pelo laudo psicossocial. O pai, de acordo com a Constelação, não estava

conseguindo ser pai, situação identificada quando sua linhagem masculina foi representada.

De forma ratificadora, a mãe não dava “permissão” para que ele exercesse sua paternidade e

ocupasse seu lugar no sistema. Questões como o desligamento entre o casal e a tomada para si

das responsabilidades foram trabalhadas. O fato de o militar não sentir a força de seus

antepassados foi confirmada por ele próprio, ao dizer que não visitava seus pais há mais de 20

anos. Dizia estar muito ocupado com suas atividades profissionais.

Muito embora, procurasse a disputa judicial para afirmar que não desistia de seus filhos,

na prática, não conseguia conviver com eles, deixando-os quase sempre em segundo plano no

roll de prioridades. Para isso, usava a mesma justificativa adotada anteriormente, a de não ter

tempo devido a sua rotina no trabalho. Revelou-se, com a intervenção, que, durante o

casamento, o pai também não se fazia presente na convivência com os filhos.

A Constelação, portanto, ajudou que a situação fosse vista por um prisma diferente.

Aquilo que chegou como sendo uma alienação parental, provocada pela mãe e que vitimava o

genitor, revelou-se como a dificuldade do pai em se aproximar de seus filhos. De alguma

forma, os comportamentos do pai e da mãe se complementavam, buscando na Justiça essa

forma de ressignificação.

Finda a Constelação, foi notória a mudança no campo e nos discursos de todos os que

estavam presentes na audiência: partes, advogados, magistrada, conciliadora e promotora do

Ministério Público, todos engajados em solucionar a situação. Apesar de nos termos da

Justiça não ter havido acordo, sistemicamente esse pai foi responsabilizado e passou a ocupar

seu lugar, ao passo que a mãe autorizou energeticamente tal fato.

A repetição de destinos, apontada por Hellinger como forma de compensação sistêmica,

foi um aspecto recorrente na prática do presente trabalho. Em outro caso, em que um pai

recusava-se a registrar seu filho e também a pagar-lhe os alimentos, foi constatado que ele

próprio não possuía o nome de seu pai em seu documento de identidade. Fato pontuado para a

parte, que passou a compreender com mais clareza os motivos ocultos de seu desinteresse pela

criança.

Além da repetição de destinos, a necessidade de reconhecimento também foi elemento

identificado na maioria das constelações realizadas. Muitas vezes, as partes autoras estavam

dispostas a abrirem mão dos pleitos financeiros caso fosse promovido um reconhecimento

afetivo e emocional. Eram comuns frases como: “queria que ele se preocupasse com o filho

dele, não é só o dinheiro”. O fato de as mães dificultarem a relação entre pai e filho era

recorrente. Nesses casos, elas queriam condicionar as visitas ao pagamento dos alimentos.

Os casos e histórias na 6ª Vara da Família demonstraram o que resume Sophie

Hellinger com o pensamento: “Sofrer é mais fácil que agir. Muitos levam o peso como se

fosse uma condecoração. Tudo aquilo que quero me livrar, me persegue. Somente quem está

pronto internamente pode receber ajuda. Quando o segredo é olhado, a alma responde”4. Tais

enredos da “vida real” corroboraram também com o que Bert Hellinger relata, quando

classifica a “solução” (organização do sistema através da dissolução dos emaranhamentos)

como “’perigosa’ porque traz solidão”, aludindo ao receio do abandono “por tudo e por

todos”:

4 Frase dita por Sophie Hellinger, durante Seminário Bert e Sophie Hellinger ao vivo, promovido pelo

Instituto Hellinger Sciencia, em São Paulo-SP, no dia 08 de agosto de 2015

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No problema e na infelicidade, temos companhia. O problema e a infelicidade se

associam a sentimentos de inocência e fidelidade. A solução e a felicidade, ao

contrário, estão associados a sentimentos de traição e culpa. Por isso, a felicidade e a

solução só são possíveis, quando enfrentamos esses sentimentos de culpa. Não que a

culpa seja racional, mas é experimentada como se fosse. Por esta razão, também é

difícil passar do problema para a solução (HELLINGER, 2007b, p. 25).

Diante disso, é possível inferir que as partes apresentavam uma espécie de gozo com o

litígio, como resultado da própria ambivalência existencial. Por isso, permaneciam nele,

usando a “instância-limite” do Judiciário para continuarem nesse prazer inconsciente,

ancorado nas tendências sadomasoquistas de todo ser humano. Tal relação confusa de

sofrimento e deleite somente pode cessar através de uma renúncia, obtida a partir de um novo

olhar sobre a realidade. A Constelação constitui ferramenta especial para este fim: olhar para

o que precisa ser olhado, colocar-se no lugar do outro e reconhecer que situações precisam ser

abdicadas para novas surgirem.

4 Análise dos Resultados

Durante o período da realização do presente trabalho, dentre as 59 audiências de

conciliação que houve, foram realizadas 20 constelações com bonecos. Após cada uma, as

partes e seus advogados receberam um questionário avaliativo, totalizando 33 formulários

respondidos.

Os litígios contemplaram principalmente alimentos e divórcio. Porém, houve também

casos de guarda, pensão, e alienação parental. De acordo com esses questionários, 80% da

parte autora era do gênero feminino.

Os resultados mostraram que 88% das partes e seus advogados não conheciam a

técnica das Constelações, reafirmando o ineditismo do presente trabalho, conforme já

explicado anteriormente.

Você já tinha ouvido falar sobre as

Constelações Sistêmicas Familiares?sim

12%

não

88%

Figura 1 – Ciência da existência das constelações familiares

Com relação ao fato de as Constelações terem contribuído de algum modo em sua

audiência, 47% considerou que a Constelação de alguma maneira foi eficaz; 41% acharam

que a Constelação ajudou “em parte” no consenso e 12% considerou que a técnica não

19

contribuiu. Desse modo, 88% reconheceu a ajuda da técnica, quer total ou parcialmente no

processo conciliatório.

Figura 2 – Contribuição das constelações nas audiências de conciliação

Quando questionados se a Constelação ajudou a compreender melhor a situação de

conflito, 53% declarou que “sim” e 41% afirmou que “em parte”. Apenas 6% não relacionou

a Constelação a uma melhor compreensão do conflito. Um percentual de 94%, portanto,

revelou que o método contribuiu para ampliar o entendimento sobre o problema.

Figura 3 – A Constelação na compreensão do conflito

Em se tratando de sentimentos, sensações e emoções experimentados durante a

realização da Constelação, 81% das partes e advogados afirmaram terem sido sensibilizados

pelo processo. Os principais sentimentos, sensações e emoções relatados foram: lembranças

negativas, tristeza, mágoas, amor, esperança (“possibilidade de mudar”), insegurança,

compreensão, pacificação (“quebra no ódio”), alívio, empatia e vinculação (“laço familiar”).

20

Figura 4 – Sentimentos experimentados durante a Constelação

Outro fenômeno observado foi a mudança no campo energético da sala de audiência.

Inicialmente tenso e pesado, após a técnica e a condução da conciliadora, tornou-se mais

acolhedor e esperançoso. Foi o que se evidenciou no escore obtido no item que trata de como

as partes e advogados se sentiram após a Constelação: 63% disse que saiu da audiência

melhor do que entrou.

Figura 5 – A sensação após a Constelação

Outro quesito investigado foi se houve motivos a respeito do conflito até então

desconhecidos que foram revelados com a técnica. Neste item, 57% afirmaram que “sim”,

sendo os principais conflitos subjacentes: problemas relacionados à mãe, ausências,

comportamento de posse e alienação parental e dificuldades na relação com o pai.

21

Figura 6 – Motivos subjacentes ao conflito

O presente trabalho também introduziu um aspecto diferenciado no Judiciário

potiguar: a presença de psicólogos, acompanhando as audiências. Segundo relatos das partes e

de seus advogados, tal iniciativa foi considerada “necessária” por se tratar de questões

familiares. Eles afirmaram sentir o Judiciário mais próximo da sua realidade e com uma visão

mais humanizada do conflito, funcionando como elemento facilitador das demandas.

Os envolvidos nos litígios demonstraram se sentirem mais amparados, fato que se

deve provavelmente à percepção social do profissional de psicologia, associada especialmente

ao equilíbrio e ao acolhimento. Unindo tal imagem social com a da figura do conciliador,

alguém intencionado a contribuir para a solução, e com a do magistrado, aquele que resolve

pendências percebidas como indissolúveis, criou-se um ambiente seguro na 6ª Vara da

Família.

Os juízes de Família buscam a realização de acordos, o que, embora muitas vezes

seja conseguido, nem sempre produz efeitos concretos, no sentido amplo, uma vez

que, sem a minimização dos conflitos emocionais subjacentes, os conflitos jurídicos tendem a reanimar-se (...). O Judiciário, no entanto, na interface psicojurídica, pode

ser um lócus apropriado como intermediário da utilização de modernos recursos de

ajuda psicológica, viabilizados por meio de práticas sistêmicas conduzidas dentro

da visão sistêmico-construtivista (...) Famílias que passam por crises podem ser

ajudadas. (CEZAR-FERREIRA, 2004, p. 55)

O clima de acolhimento e segurança, fomentado pela presença dos psicólogos pode ser

avaliado a partir das respostas ao questionário. 63% dos colaboradores consideraram “ótima”

a presença de psicólogos em conciliações na Justiça. 34% percebeu como “boa” e 3%

disseram não ter opinião formada. Logo, 97% teve uma percepção positiva da participação

dos profissionais de Psicologia diretamente nas audiências da Justiça.

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Figura 7 – O (s) psicólogo (s) na Justiça usando as Constelações

Considerações Finais

A prática das Constelações Sistêmicas Familiares nas audiências de conciliação da 6ª

Vara da Família, na Comarca de Natal, pode se constituir como uma contribuição inicial para

uma tendência que, cada vez mais, se acentua: a de mesclar saberes no intuito de auxiliar

quem procura o Poder Judiciário. Tal movimento já se expande pelo Brasil com o próprio uso

da técnica de Bert Hellinger em diversos estados brasileiros, seja na área de Família, Criminal

e nos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc), deflagrado pelo juiz

Sami Storch, na Bahia, pioneiro no mundo nesta intersecção. O avanço da Justiça

Restaurativa e da busca por privilegiar procedimentos de conciliação e mediação ao invés da

instrução também servem como exemplos da expansão de uma nova maneira de se

compreender situações de conflito.

No Rio Grande do Norte, a utilização das Constelações no âmbito da Justiça se

apresentou como fato ainda não observado anteriormente, tal como a presença de psicólogos

diretamente em audiências, participando como facilitadores da ampliação de consciência

sobre o conflito, tanto para as partes envolvidas quanto para seus advogados, e para a própria

conciliadora e magistrada.

Com o método abordado neste trabalho foi possível constatar: aumento na

compreensão dos envolvidos a respeito do litígio; maior capacidade de colocarem-se no lugar

um do outro; a partir de um ambiente acolhedor, a possibilidade de se reduzirem as defesas e

também a disposição para entrarem em contato com suas emoções, procurando descobrir os

motivos subjacentes à falta de consenso.

As intervenções na 6ª Vara também puderam sinalizar passos iniciais rumo a uma

cultura de paz, rompendo com a cultura litigante tão arraigada na sociedade contemporânea,

especialmente no Brasil. Por meio do reconhecimento de papeis e o consequente

empoderamento dos envolvidos, a solução para os impasses ficou mais visível, o que pôde

contribuir, ainda que embrionariamente, na desconstrução da tendência vigente de se colocar

a Justiça em um papel paternalista.

As Constelações promoveram ainda, na medida em que desvelaram questões ocultas, o

despertar para o autoconhecimento, para a aceitação das emoções e da realidade como ela é,

23

subsidiado pelo amparo da imagem social dos psicólogos, assim como redirecionando a visão

individual para a visão sistêmica, em que não existem culpados nem inocentes.

Observou-se que, em consequência do método, algumas informações e alguns

conteúdos que emergiram favoreceram o discurso da conciliadora e da juíza, no sentido de

uma compreensão mais profunda do conflito. Aspectos puramente “práticos e jurídicos”,

como determinar uma porcentagem de pensão alimentícia, por exemplo, puderam integrar

situações mais complexas, como “ganhar um pai”, no instante em que um genitor passava a

reconhecer seu filho.

O presente trabalho pode ainda sinalizar possibilidades de contribuição para que a

interface Psicologia e Direito se intensifique sob novas e criativas maneiras. Como exemplo,

teríamos a Justiça se tornando mais humanizada ao privilegiar o entendimento da família

como célula social de fundamental relevância para tantos fenômenos sócio-históricos e não

somente focando no litígio em questão. O estudo exploratório também pode sugerir, ainda que

de forma discreta, caminhos na disseminação da cultura do consenso, do “ganha-ganha”,

possibilitando o enfraquecimento do hábito instaurado no imaginário coletivo de procurar a

Justiça em qualquer situação de não concordância.

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