As Constituições Brasileiras_ Notícia, História e Análise Crítica

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Bicentenário do Poder Judiciário no Brasil Edição Comemorativa dos Duzentos Anos de História Independente do Poder Judiciário no Brasil (acompanha CD com a íntegra das Constituições) Brasília, DF 2008

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As Constituições Brasileiras_ Notícia, História e Análise Crítica

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  • Bicentenrio do Poder Judicirio no Brasil

    Edio Comemorativa dos Duzentos Anos de Histria Independente do

    Poder Judicirio no Brasil

    (acompanha CD com a ntegra das Constituies)

    Braslia, DF2008

  • Paulo Bonavides Christian Edward Cyril LynchCludio Pereira de Souza Neto

    Jos Afonso da Silva Fbio Konder Comparato

    Valmir Pontes FilhoLus Roberto Barroso

    AS CONSTITUIES BRASILEIRAS

    Notcia, Histria e Anlise Crtica

    Comisso Organizadora

    Cla Carpi da Rocha (Coordenadora)

    Geraldo Escobar Pinheiro

    Herilda Balduno de Sousa

    Lus Roberto Barroso

    Valmir Pontes Filho

    SUMRIO

  • Ordem dos Advogados do Brasil - Conselho Federal

    Gesto 2007/2010

    DiretOriACezar Britto Presidente

    Vladimir Rossi Loureno Vice-Presidente

    Cla Carpi da Rocha Secretria-Geral

    Alberto Zacharias Toron Secretrio-Geral Adjunto

    Ophir Cavalcante Junior Diretor-Tesoureiro

    COnselheirOs FeDerAisAC: Cesar Augusto Baptista de Carvalho, Renato Castelo de Oliveira e Tito Costa de Oliveira; AL: Marcelo Henrique Brabo Magalhes, Marilma Torres Gouveia de Oliveira e Romany Roland Cansano Mota; AP: Ccero Borges Bordalo, Guaracy da Silva Freitas e Jorge Jos Anaice da Silva; AM: Eloi Pinto de Andrade, Jos Alfredo Ferreira de Andrade e Oldeney S Valente; BA: Durval Julio Ramos Neto, Luiz Viana Queiroz e Marcelo Cintra Zarif; CE: Jorge Hlio Chaves de Oliveira, Paulo Napoleo Gonalves Quezado e Valmir Pontes Filho; DF: Esdras Dantas de Souza, Luiz Filipe Ribeiro Coelho e Marcelo Henriques Ribeiro de Oliveira; ES: Agesandro da Costa Pereira, Gladys Jouffroy Bitran e Luiz Antonio de Souza Baslio; GO: Daylton Anchieta Silveira, Felicssimo Sena e Wanderli Fernandes de Sousa; MA: Jos Brito de Souza, Raimundo Ferreira Marques e Ulisses Csar Martins de Souza; MT: Almino Afonso Fernandes, Francisco Eduardo Torres Esgaib e Ussiel Tavares da Silva Filho; MS: Geraldo Escobar Pinheiro, Lcio Flvio Joichi Sunakozawa e Vladimir Rossi Loureno; MG: Aristoteles Atheniense, Joo Henrique Caf de Souza Novais e Paulo Roberto de Gouva Medina; PA: Frederico Coelho de Souza, Maria Avelina Imbiriba Hesketh e Ophir Cavalcante Junior; PB: Delosmar Domingos de Mendona Junior, Jos Arajo Agra e Jos Edsio Simes Souto; PR: Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Manoel Antonio de Oliveira Franco e Romeu Felipe Bacellar Filho; PE: Octavio de Oliveira Lobo, Ricardo do Nascimento Correia de Carvalho e Slvio Neves Baptista; PI: Marcus Vinicius Furtado Coelho, Reginaldo Santos Furtado e Willian Guimares Santos de Carvalho; RJ: Carlos Roberto Siqueira Castro, Cludio Pereira de Souza Neto e Nelio Roberto Seidl Machado; RN: Adilson Gurgel de Castro, Wagner Soares Ribeiro de Amorim e Srgio Eduardo da Costa Freire; RS: Cla Carpi da Rocha, Luiz Carlos Levenzon e Luiz Carlos Lopes Madeira; RO: Gilberto Piselo do Nascimento, Orestes Muniz Filho e Pedro Origa Neto; RR: Alexander Ladislau Menezes, Ednaldo Gomes Vidal e Francisco das Chagas Batista; SC: Anacleto Canan, Gisela Gondin Ramos e Jos Geraldo Ramos Virmond; SP: Alberto Zacharias Toron, Norberto Moreira da Silva e Raimundo Hermes Barbosa; SE: Carlos Augusto Monteiro Nascimento, Jorge Aurlio Silva e Miguel Eduardo Britto Arago; TO: Dearley Khn, Jlio Solimar Rosa Cavalcanti e Manoel Bonfim Furtado Correia.

    ex-PresiDentes1. Levi Carneiro (1933/1938) 2. Fernando de Melo Viana (1938/1944) 3. Raul Fernandes (1944/1948) 4. Augusto Pinto Lima (1948) 5. Odilon de Andrade (1948/1950) 6. Haroldo Vallado (1950/1952) 7. Attlio Vivqua (1952/1954) 8. Miguel Seabra Fagundes (1954/1956) 9. Nehemias Gueiros (1956/1958) 10. Alcino de Paula Salazar (1958/1960) 11. Jos Eduardo do P. Kelly (1960/1962) 12. Carlos Povina Cavalcanti (1962/1965) 13. Themstocles M. Ferreira (1965) 14. Alberto Barreto de Melo (1965/1967) 15. Samuel Vital Duarte (1967/1969) 16. *Laudo de Almeida Camargo (1969/1971) 17. *Jos Cavalcanti Neves (1971/1973) 18. Jos Ribeiro de Castro Filho (1973/1975) 19. Caio Mrio da Silva Pereira (1975/1977) 20. Raymundo Faoro (1977/1979) 21. *Eduardo Seabra Fagundes (1979/1981) 22. *J. Bernardo Cabral (1981/1983) 23. *Mrio Srgio Duarte Garcia (1983/1985) 24. *Hermann Assis Baeta (1985/1987) 25. *Mrcio Thomaz Bastos (1987/1989) 26. *Ophir Filgueiras Cavalcante (1989/1991) 27. *Marcello Lavenre Machado (1991/1993) 28. *Jos Roberto Batochio (1993/1995) 29. *Ernando Uchoa Lima (1995/1998) 30. *Reginaldo Oscar de Castro (1998/2001) 31. *Rubens Approbato Machado (2001/2004) 32. *Roberto Antonio Busato (2004/2007). *Membros Honorrios Vitalcios

    Comisso de representantes da Ordem dos Advogados do Brasil para participar da organizao das comemoraes dos duzentos anos de histria independente do Poder Jurdico brasileiro

    Cla Carpi da Rocha (Coordenadora)Geraldo Escobar Pinheiro

    Herilda Balduno de SousaLus Roberto BarrosoValmir Pontes Filho

  • Cezar BrittoPresidente da OAB e Presidente Honorrio da OAB EDITORA

    luiz Carlos levenzonPresidente Executivo da OAB EDITORA

    susele Bezerra MirandaCapa e Projeto Grfico

    Aline Machado Costa timmSecretria Executiva

    Ordlia lima FerreiraPaulo torres Guimares

    Produo Tcnica

    Conselho Editorialluiz Carlos levenzon (Editorial)Jorge hlio Chaves de Oliveiralara Cristina de Alencar selem

    Ana Maria Moraisronnie Preuss Duarte

    silvia lopes Burmeister

    SAS Quadra 05 - Lote 01 - Bloco MEdifcio Sede do Conselho Federal da OAB

    Braslia, DF - CEP 70070-939Tel.: (61) 2193-9600

    www.oab.org.brE-mail: [email protected]

    Ficha Catalogrfica

    Bonavides, Paulo. As constituies brasileiras: notcia, histria e anlise crtica / Paulo Bonavides ... [et al.]; coordenao Cla Carpi da Rocha ... [et al.] Braslia: OAB Editora, 2008. 168 p.

    Edio comemorativa dos duzentos anos de histria independente do poder judicirio brasileiro

    ISBN 978-85-87260-93-2

    1.Constituio Brasil. I. Bonavides, Paulo. II. Lynch, Christian Edward Cyril. III. Neto, Cludio Pereira de Souza. IV. Silva, Jos Afonso da. V. Comparato, Fbio Konder. VI. Filho, Valmir Pontes. VII. Barroso, Lus Roberto.

    Suzana Dias da Silva: 340.05

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    PreFCiOCezar Britto ................................................................................................................................................................ 09

    1824A COnstitUiO DO iMPriO e As nAsCentes DO COnstitUCiOnAlisMO BrAsileirOPaulo Bonavides ...................................................................................................................................................... 13

    1891O COnstitUCiOnAlisMO DA ineFetiViDADe: A COnstitUiO De 1891 nO CAtiVeirO DO estADO De stiOChristian Edward Cyril Lynch e Cludio Pereira de Souza Neto ................................................................ 25

    1934A COnstitUiO DA rePBliCA DOs estADOs UniDOs DO BrAsil, De 1934Jos Afonso da Silva ............................................................................................................................................... 61

    1937A COnstitUiO DOs estADOs UniDOs DO BrAsil, De 1937Jos Afonso da Silva ............................................................................................................................................... 79

    1946A COnstitUiO BrAsileirA De 1946. UM interreGnO AGitADO entre DOis AUtOritArisMOsFbio Konder Comparato ..................................................................................................................................... 95

    1967 - 1969 A COnstitUiO DA rePBliCA FeDerAtiVA DO BrAsil De 1967 e A eMenDA n 01, De 1969

    Valmir Pontes Filho ...............................................................................................................................................113

    1988Vinte AnOs DA COnstitUiO BrAsileirA De 1988: O estADO A QUe CheGAMOs

    Lus Roberto Barroso ...........................................................................................................................................129

    SUMRIO

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    PREFCIO

    A histria de nossas constituies a histria da construo de nosso Pas, tarefa ainda em curso. Conhec-la deparar-se com o imenso desafio que isso representa e a trajetria j percorrida, com seus recuos e avanos, heris e viles, mazelas e grandezas.

    Recomp-la, interpret-la e contextualiz-la no tarefa fcil. Exige a pacincia e acuidade do historiador e o senso crtico-analtico do exegeta. Este livro As Constituies Brasileiras: Notcia, Histria e Anlise Crtica -, editado como parte das comemoraes dos 200 anos de histria independente do Poder Judicirio no Brasil, um esforo conjunto nesse sentido.

    Rene sete juristas consagrados - Paulo Bonavides, Christian Edward Cyril Lynch, Cludio Pereira de Souza Neto, Jos Afonso da Silva, Fbio Konder Comparato, Valmir Pontes Filho e Lus Roberto Barroso - que pensam o direito constitucional em suas mltiplas dimenses: histrica, social, tica, ideolgica e poltica. Propiciam, assim, vasto horizonte de reflexo.

    Eles aqui tomaram a si a tarefa de analisar cada uma de nossas seis constituies, bem como o contexto histrico e poltico que as moldou. O resultado um painel ntido e instigante que enriquece a bibliografia de Direito Constitucional brasileira.

    O constitucionalismo brasileiro expressa nossas peculiaridades sociais e culturais, submetidas historicamente a influncias externas diversas. A herana colonial nos imps duas vertentes histrico-jurdicas bsicas: a europia e a norte-americana.

    A Carta Imperial de 1824, outorgada pelo imperador dom Pedro I, aps fechar a Assemblia Constituinte e Legislativa de 1823, foi influenciada pelo recm-surgido constitucionalismo portugus.

    Este, de sua parte, acolhia fundamentos jurdicos da Constituio espanhola de Cdiz, influenciada, por sua vez, pela Revoluo Francesa. A Carta Imperial brasileira, no obstante sucessivas emendas que sofreu no curso de sua vigncia, atravessou todo o perodo monrquico. Durou 65 anos. Foi a mais duradoura.

    A Constituio de 1891, que fundou nossa Repblica, sofreu forte influncia das idias liberais norte-americanas, ao ponto de transportar mecanicamente boa parte de seu formato.

    Mas a Repblica no operou a ruptura da ordem jurdica. O Direito velho projetou-se na nova ordem, e o direito civil colonial subsiste at 1917, quando foi promulgado o primeiro Cdigo Civil da Repblica, que vigorou at o incio do sculo XXI.

    O modelo constitucionalista norte-americano oferecia aos republicanos brasileiros mais atrativos em relao ao figurino francs, pois este estimulava a participao popular na formao do poder. E o perfil da elite brasileira, mais afeito ao carter conspiratrio das mudanas (vide as articulaes pela Independncia e a prpria Proclamao da Repblica), decididas no topo, sem a participao da base, estava mais para Montesquieu que para Rousseau.

    A Repblica, por isso mesmo, no fez as reformas bsicas na educao e na terra, desafios que chegaram aos nossos dias, agravado por dcadas e dcadas de omisso. Alguns historiadores, como Nelson Werneck Sodr, interpretam essa lacuna como decisiva para que a

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    Bicentenrio do Poder Judicirio no Brasil

    elite econmica do Imprio absorvesse sem resistncias a nova ordem. O sistema de clientela e patronagem manteve-se.

    As estruturas scio-econmicas no se alteraram profundamente, perpetuando-se os valores tradicionais elitistas, antidemocrticos e autoritrios.

    A sucesso de constituies que, a partir da assim chamada Revoluo de 1930, que desembocou na Carta de 1934 e, aps ela, em mais quatro outras: 1937, 1946, 1967 e 1988 -, o reflexo dessa dvida social ainda no resgatada pela Repblica.

    Esse o desafio ainda presente.

    O Pas, de 1889 para c, passou por perodos autoritrios e democrticos as sstoles e distoles de que falava o general Golbery do Couto e Silva -, que expressam a resistncia de sua elite governante em suprimir o abismo social que at hoje marca dramaticamente o perfil scio-econmico do Pas.

    essa histria que cada um dos autores deste livro procura contar e traduzir, neste momento em que o Brasil celebra os 20 anos da Constituio de 1988, a Constituio-Cidad, segundo a batizou Ulysses Guimares. J por esse epteto fica claro o seu objetivo de dar-lhe contedo social. uma Constituio imperfeita, mas que criticada mais por suas qualidades que por seus defeitos. uma Constituio generosa, cujo captulo dos Direitos e Garantias Individuais dos mais avanados do mundo.

    Tambm isso discutido aqui, neste livro, desde j leitura fundamental para quem quer entender o Brasil, das origens aos dias de hoje. Entender e transform-lo, pois que o desafio que ensejou a Repblica e, dentro dela, seus mrtires e heris permanece: a construo de uma ordem jurdica que d contedo efetivo ao dstico da Bandeira Nacional - Ordem e Progresso.

    CEZAR BRITTO

    Presidente do Conselho Federal da OAB

  • AS CONSTITUIES BRASILEIRAS

    Notcia, Histria e Anlise Crtica

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    Bicentenrio do Poder Judicirio no Brasil

    *PAULO BONAVIDES Professor Emrito da Universidade Federal do Cear, titular da Medalha Rui Barbosa, Doutor honoris causa da Universidade de Lisboa, Membro do Comit de Iniciativa que fundou em Belgrado a Associao Internacional de Direito Constitucional e Fundador e Diretor da Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais.

    A CONSTITUIO DO IMPRIO E AS NASCENTES DO CONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO

    Paulo Bonavides *

    O Brasil constitucional em suas nascentes histricas compreende trs perodos ou fases distintas: a pr-constituinte, a constituinte propriamente dita, e a ps-constituinte, consideradas conjuntamente.

    Quando empregamos o termo pr-constituinte, estamos a eleger o colgio constituinte, convocado e depois dissolvido por D.Pedro I, como baliza histrica e referencial de um largo processo que, antes, durante e aps aquele ato, transcorreu com distintas vicissitudes, marcando e configurando as nascentes histricas do constitucionalismo ptrio. Este melhor se explica, na clareza didtica de uma exposio, se o repartimos, qual estamos a fazer, em trs perodos diferentes e sucessivos.

    Tomadas conjugadamente produziram essas fases resultados institucionais por inteiro distintos daqueles obtidos nas colnias espanholas do continente, bem como nas 13 americanas, ao se libertarem do domnio colonial ingls.

    Deveras importante a considerao desse aspecto para bem compreendermos a formao do Estado e da nacionalidade no Brasil. Consta de traos bastante originais que fluem ou podem fluir deduzidos da narrao e reflexo subseqentes sobre matria e episdios de suma importncia para a formao e evoluo constitucional do Brasil.

    1. A FAse Pr-COnstitUinte

    Vamos, por conseguinte, fase pr-constituinte em que a querela se fere ao redor da emancipao , quando prevalece, na definio do regime, a alternativa repblica ou monarquia, pela qual combatiam com fervor duas correntes empenhadas em desatar o lao colonial.

    Ao longo da primeira fase as duas correntes assinalam presena, mas correm autnomas, e s vezes paralelas na respectiva linha de ao. Os republicanos de Antonio Carlos, abraados com a Revoluo Pernambucana de 1817. Os monarquistas liberais, do genuno elemento brasileiro, atuando em dois episdios clebres em que fizeram ento o monarca portugus dar dois passos avante e logo retroceder com desaire para a realeza.

    Os dois passos pareciam dirigidos a antecipar a ruptura com Portugal. O primeiro consistiu no decreto da criao de uma junta de procuradores, para executar tarefas afins quelas de uma constituinte, paralela de Lisboa.

    O decreto de D.Joo VI, lavrado debaixo da inspirao de Palmela, estadista liberal, fazia o Reino do Brasil abranger a Madeira, os Aores, Guin e Cabo Verde. Mas foi logo revogado em menos de dois dias por obra de insubordinao e de presso da tropa portuguesa aquartelada no Rio de Janeiro.

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    Bicentenrio do Poder Judicirio no Brasil

    Em seguida, ocorreu o segundo passo: o decreto outorgando a Constituio espanhola de Cdiz ao Brasil. Mas esse decreto se viu igualmente revogado pela reao do elemento militar portugus no Rio de Janeiro. Teve a Constituio de Cdiz portanto vigncia efmera. Durou menos de 24 horas!

    A fase pr-constituinte, de feio e teor republicano, remonta Inconfidncia Mineira. Antecedeu o Reino do Brasil, institudo por D.Joo VI em 1815 e teve por inspirao j a Revoluo Americana, sua fonte externa, j a Conjurao de Tiradentes, sua fonte interna. Mas esta fora tambm ao exterior buscar em Frana, por intermdio do estudante brasileiro de Montpelier, o auxlio do embaixador Tomaz Jefferson, ou seja, a solidariedade americana ao ideal republicano dos patriotas mineiros.

    Essa primeira fase, pelo ngulo da inspirao republicana, logrou seu ponto culminante com a Revoluo Pernambucana de 1817. Do ponto de vista constitucional, no concretizou a convocao de uma constituinte, mas nos legou as Bases de um projeto de Constituio. Essas bases foram elaboradas por Antonio Carlos, irmo de Jos Bonifcio.

    As Bases pernambucanas de autoria do Andrada antecederam as elaboradas pelos revolucionrios do Porto, que nas Cortes de Lisboa promulgaram a Constituio Portuguesa de 1822, a chamada Constituio Vintista, a primeira Lei Magna da velha monarquia lusitana.

    A chama revolucionria do incndio que a reao imperial apagara em 1817 foi reacesa em 1824 pelo efmero movimento da Confederao do Equador debaixo da liderana de Frei Joaquim do Amor Divino Caneca. No alcanou porm o bom xito almejado.

    O mrtir carmelita recusara juramento ao Projeto da Carta outorgada por D.Pedro e fora s armas em protesto contra a dissoluo da Constituinte de 1823. No voto de repdio ao Projeto que se queria jurar sem restrio, disse o frade revolucionrio este artefato poltico um sistema de opresso; nele visualizou a obra dos destruidores da nossa independncia e tambm um sistema mau, opressor e ruinoso e portanto inadmissvel.

    O voto de frei Caneca, inspirado no contratualismo social de Rousseau e Locke, dizia textualmente que uma Constituio no outra coisa, que a ata do pacto social, que fazem entre si os homens, quando se ajuntam e associam para viver em reunio ou sociedade.

    E conclua do seguinte teor esse clebre Voto:

    por todas estas razes, que eu sou de voto, que se no adote e muito menos jure o projeto de que se trata, por ser inteiramente mau, pois no garante a independncia do Brasil, ameaa a sua integridade, oprime a liberdade dos povos, ataca a soberania da nao, e nos arrasta ao maior dos crimes contra a divindade, qual o perjrio, e nos apresentado de maneira mais coativa e tirnica. (Ver Paulo Bonavides e Paes de Andrade Histria Constitucional do Brasil, OAB Editora, 8 edio, 2006, pgs. 581 e 575)

    A Confederao do Equador, dado que tenha ocorrido no perodo ps-constituinte, se inscreve, todavia, por termo final do constitucionalismo republicano da Revoluo de 1817, que desembocou na tragdia dos mrtires constitucionais de 1824 em Pernambuco e Cear, as duas Provncias rebeladas mais importantes da malograda Confederao do Equador.

    A linha monarquista do constitucionalismo brasileiro pr-constituinte, correspondente ainda ao perodo imediatamente anterior Proclamao da Independncia, teve um segundo fracasso, em certa maneira concomitante ao de D.Joo VI, quando a delegao constituinte

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    Bicentenrio do Poder Judicirio no Brasil

    do Reino do Brasil s Cortes de Lisboa, vem malogradas suas diligncias por alcanar pela via constitucional a conservao do Reino Unido, como fora, por sem dvida, a misso atribuda aos nossos delegados desde que entraram a compor o tambm soberano Colgio institudo pelos revolucionrios de 1820.

    Com efeito, a poltica desenvolvida na assemblia magna portuguesa no auscultava nem respeitava o sentimento autonomista dos emissrios do Reino do Brasil, humilhando-nos, por via de conseqncia, e no raro ignorando a estatura poltica de nossa qualidade representativa naquelas Cortes, ao mesmo passo que estas lavravam e expediam os decretos reacionrios de restaurao do sistema colonial.

    Acabaram as Cortes por provocar a ruptura irreparvel de que resultou, primeiro, a desero ou fuga encabeada por Antonio Carlos, de uma parcela de nossos enviados assemblia vintista, signatrios, logo a seguir, do clebre manifesto de Falmouth, e, segundo, a incua assinatura da Carta de 1822 pelos que ficaram em Lisboa, e, obviamente, debaixo de irresistvel coao, tiveram que apor seus nomes ao texto da efmera Constituio promulgada por aquela Casa constituinte.

    O ensaio de D.Joo VI, constante do Decreto de 1821, fora talvez no sentido de separar por acomodao constitucional o Reino Unido, com o Brasil preservando competncias autodeterminativas, s quais eram infestas as Cortes de Lisboa.

    O bom monarca malogrou nesse intento, tanto quanto haviam malogrado, conforme se assinalou, aqueles delegados brasileiros que no vingaram estabelecer na Constituio vintista os laos constitucionais da unio firme, slida e estvel do Reino do Brasil com a Coroa Portuguesa.

    Veio abaixo esse projeto pelas razes acima expostas, recebendo o tiro de misericrdia com o grito de D.Pedro I, quando em 7 de setembro de 1822, s margens do Ipiranga, proclamou em So Paulo a Independncia do Brasil.

    Consumara-se assim pela via monrquica pr-constituinte a derradeira tentativa de fazer do Brasil um Reino constitucional em unio com Portugal.

    2. As FAses COnstitUinte e Ps-COnstitUinte DO COnstitUCiOnAlisMO iMPeriAl.

    a) O Perfil do imperador nas comoes do Primeiro reinado. D.Pedro I foi a figura central do constitucionalismo brasileiro, j na fase constituinte propriamente dita, proclamando a independncia e convocando o colgio da soberania nacional, j na fase ps-constituinte, desde a outorga da Carta do Imprio, at a Abdicao, em que a nobreza de seu gesto sacrificou um monarca, mas no sacrificou a monarquia.

    A singular personalidade do Imperador se destaca na viso histrica em matria constitucional pelos subseqentes aspectos de sua ao poltica desenvolvida em dois continentes.

    Na Amrica Portuguesa o protagonista maior da criao do Imprio: proclama a Independncia, funda a ordem constitucional do pas recm-nascido, outorga a Carta poltica de

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    Bicentenrio do Poder Judicirio no Brasil

    1824, sufoca a rebelio republicana e secessionista nas Provncias do Nordeste, manifesta certo pendor autocrtico ao longo do primeiro Reinado e, no podendo recobrar a popularidade que dantes desfrutava, abdica o trono na pessoa do filho menor, o futuro D.Pedro II.

    Na Europa aparece por Autor da Carta de 1826, redigida no Brasil e outorgada em Portugal. Monumento de institucionalizao do pensamento liberal de feio conservadora, ela se segue Constituio vintista das Cortes de Lisboa, obra efmera do liberalismo radical e revolucionrio da poca.

    Mas o perfil de D.Pedro, rei contraditrio na grandeza de sua ndole constitucional, fica mais ntido se considerarmos a imagem que a histria gravou e nos transmitiu a esse respeito.

    Liberal e generoso e resoluto durante os episdios decisivos do Fico, da Independncia e da convocao da Constituinte, estampou ele, todavia, o semblante absolutista e autocrtico no ato de dissoluo da magna assemblia, onde a soberania nacional buscava estabelecer sua sede. E prosseguiu a linha do autoritarismo ao longo do Primeiro Reinado.

    Houve porm quem entendesse que ao abdicar o trono D.Pedro fora magnnimo. J no era o dspota do Primeiro Reinado, o ditador coroado das mudanas ministeriais que infringiam a Constituio do Imprio, j no atuava na segunda dimenso de sua personalidade quando dissolveu a constituinte, exilou os Andradas, reprimiu com violncia o protesto constitucional das Provncias do Nordeste, fuzilou em Fortaleza e no Recife os sacerdotes da Confederao do Equador, instituiu as Comisses Militares, oprimiu e perdeu a Provncia Cisplatina, travou guerra desastrada com a Argentina, censurou a imprensa, perseguiu antigos correligionrios, inclinou-se na ao poltica por um Estado mais afim ao absolutismo que s franquias constitucionais cujo estabelecimento propugnara nas nascentes do Imprio com ardor e fora de convico.

    Mas verdade que a impopularidade do Imperador e dos seus ministros de Estado determinou o ocaso fatal do Primeiro Reinado.

    Contudo, em Portugal, D.Pedro foi a esttua da legitimidade; o legtimo sucessor coroa usurpada pelo irmo D.Miguel.

    Ostenta ttulos de glria. Pedro IV, que outorga a Carta de 1826, to louvada de Alexandre Herculano. o general da liberdade, o pai da Constituio, o restaurador da legitimidade, o heri que ao lado do Duque da Terceira desembarca nas cercanias do Porto e comanda os legionrios da causa liberal, cujas vitrias restabeleceram a tradio legitimista da realeza e puseram termo usurpao.

    Esse D.Pedro e seu pai D.Joo VI figuram na memria de dois sculos e bem merecem esse registro do papel que tiveram ou desempenharam na crnica constitucional de duas nacionalidades.

    Os dois constitucionalismos gmeos de Brasil e Portugal nasceram do ventre liberal de duas Cartas a do Imprio, em 1824, e a da monarquia constitucional portuguesa em 1826; ambas outorgadas pelo mesmo monarca: D.Pedro I no Brasil e D.Pedro IV em Portugal, a saber, duas coroas numa s cabea.

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    Bicentenrio do Poder Judicirio no Brasil

    b) A Fase Constituinte do Constitucionalismo imperial e a crise nas relaes do imperador com a Constituinte.

    Mas vejamos a seguir como transcorreu, luz da histria, a fase constituinte do constitucionalismo imperial, por iniciativa dos dois Braganas, o pai e o filho: D.Joo VI, o precursor malogrado, e D.Pedro I, o ator bem sucedido.

    Com a rubrica de Sua Alteza Real, o Prncipe Regente D.Pedro, expediu Jos Bonifcio de Andrada e Silva em 16 de fevereiro de 1822, portanto antes da proclamao formal da Independncia, o Decreto que mandava convocar um Conselho de Procuradores-Gerais das Provncias do Brasil.

    Era uma espcie de rgo preparatrio e provisrio de organizao do Reino at que pela Constituio da Monarquia se lhe desse uma final organizao sbia, justa e adequada aos seus inalienveis direitos, decoro e futura felicidade(.....)

    Sua finalidade era tambm para utilidade geral do Reino Unido e particular do bom Povo do Brasil, ir de antemo dispondo e arraigando o sistema constitucional, que ele merece(...)

    Esse ato instituindo um colgio de procuradores, afrontara politicamente as Cortes de Lisboa, e foi seguido doutro muito mais profundo em seu alcance, o clebre decreto de 3 de junho de 1822, em certa maneira representativo j da futura e irremedivel ruptura dos dois Reinos.

    Com efeito, as Cortes de Lisboa no haviam ainda completado e promulgado a primeira Constituio portuguesa de 1822 e j o Reino rebelado, aparelhando a separao constitucional, consumava com aquele Decreto a convocao de uma Assemblia Geral Constituinte e Legislativa, composta de Deputados das Provncias do Brasil. Era um passo ousado, mas indeclinvel.

    Em 19 de junho de 1822, vinham a lume as Instrues para eleio dos Deputados constituintes a que se referira o Decreto de 3 de junho.

    O ano seguinte, em 3 de maio de 1823, instalou-se no Rio de Janeiro a Assemblia Constituinte do Imprio, sob a presidncia do Bispo Capelo-Mor D.Jos Caetano da Silva Coutinho.

    Mas a instalao solene somente ocorreu em 31 de maio, com a presena de Sua Majestade, o Imperador. Na Fala imperial perante os constituintes D.Pedro I fez graves recriminaes a Portugal, asseverando que o Brasil por espao de trezentos e tantos anos sofreu o indigno nome de Colnia, e igualmente todos os males provenientes do sistema destruidor ento adotado. Louvou a seguir o seu augusto pai, D.Joo VI, rei de Portugal e Algarve por nos haver elevado categoria de Reino pelo Decreto de 16 de dezembro de 1815.

    Depois de relatar os sacrifcios, as dificuldades, os problemas j enfrentados pelo seu governo para sustentar e defender o pas, D.Pedro reconheceu na Constituinte a assemblia que estava junta para constituir a nao. E exclamou: Que prazer! Que fortuna para todos ns!

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    Bicentenrio do Poder Judicirio no Brasil

    Mas a seguir logo reiterou a advertncia que a histria provou fatal, de que no abdicava sua faculdade soberana de defensor perptuo do Imprio, e se colocou portanto como tutor da assemblia qual dirigia sua Fala no solene ato da instalao.

    Seno vejamos o teor literal das palavras do monarca:

    Como imperador constitucional, e mui principalmente como defensor perptuo deste imprio, disse ao povo no dia 1 de dezembro do ano prximo passado, em que fui coroado e sagrado, que com a minha espada defenderia a ptria, a nao e a Constituio, se fosse digna do Brasil e de mim.

    A frase de D.Pedro, deveras ambgua tocante a soberania da constituinte, ecoou desfavoravelmente, provocando reao de alguns membros da Assemblia, designadamente de Jos Custdio Dias, o qual afirmou:

    (...) e parece-me que o julgar se a Constituio, que se fizer, digna do Brasil, s compete a ns como Representantes do Povo(...) Demais, se ns confiamos tudo nele, porque no confia Ele tambm tudo em ns?

    Depois da interveno mediadora de Antonio Carlos, que propunha uma Constituio digna da nao, digna do Imperador e digna de si, acudiram energicamente em defesa do pronunciamento de D.Pedro, os constituintes Rodrigues de Carvalho e Jos Bonifcio.

    Em rigor, tudo pode resumir-se, respeitante s conseqncias, naquilo que escrevemos:

    A Fala do Trono trouxera j o germe da dissoluo. A Constituinte entrou em crise desde o dia de sua instalao. A frase ambgua, a que se reportaram Tobias Monteiro e Rodrigo Octvio Filho, pendia como uma ameaa sobre a cabea dos Constituintes. Foram seis meses completos de pesada desconfiana e lenta agonia. (Ver Paulo Bonavides e Paes de Andrade Histria Constitucional do Brasil, OAB Editora, 9 edio, 2008, pag. 51)

    Efetivamente, a 12 de novembro de 1823, depois de uma sesso dramtica da Constituinte, D.Pedro com o apoio da tropa, desferiu o golpe mortal da dissoluo.

    Breve, Constituio da legitimidade, sucederia a Constituio da outorga.

    Com o golpe de Estado do Imperador, o constitucionalismo brasileiro mergulhou em crise constituinte. Crise ora latente, ora ostensiva, assim no Imprio como na Repblica. Essa crise se tornou na histria constitucional do Brasil o ponto vexatrio que fez questionvel a legitimidade de todas as nossas Constituies por no havermos nunca logrado sua remoo.

    Com efeito, a dissoluo da Constituinte deflagrou no pas o mais funesto dos distrbios institucionais que o constitucionalismo brasileiro registra: a crise constituinte.

    Com recidiva em distintas pocas, j no Imprio, j na Repblica, essa crise tem demonstrado a fereza e gravidade das leses que ela sempre provoca, minando e destruindo no raro os tecidos mais nobres do organismo poltico da Nao.

    A crise constituinte a crise existencial de um regime. E o por ser a crise mesma da

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    legitimidade. Difcil de conjurar, amarga de conseqncias, ela representa invariavelmente um desastre que fere fundo e faz perecer os sistemas, as formas de governo, as estruturas do poder.

    A Constituio faz a nao. Mas a nao politizada, organizada, juridicizada nos princpios que a liberdade de ltimo fez normativos ao faz-los legtimos, enquanto concretizao de valores superiores, mngua dos quais a democracia no se implanta, o Estado de Direito falcia, a Constituio folha de papel encadernada.

    D.Pedro era homem poltico de dupla personalidade; uma absolutista, que recolhia a herana dos Bourbons e da casa de Bragana; outra, constitucional que fundava o Imprio, proclamava a Independncia, convocava a Constituinte.

    No Brasil desempenhou os dois papis, perfeitamente ilustrados e conciliados com o ato de outorga da Carta do Imprio: ato de um poder pessoal e monrquico que estabelecia, todavia, um poder limitado, o da monarquia constitucional. A este porm no soube o Imperador guardar inteira fidelidade, maculando o Primeiro Reinado com as medidas repressivas de autoritarismo, cujo desfecho foi a Abdicao, conforme j vimos em lugares antecedentes.

    Depois do 7 de abril, a histria embarcou no Brasil o resignatrio da Coroa como um absolutista e o desembarcou em Portugal como um libertador.

    Em verdade, ficou de D.Pedro o perfil de fundador de duas ptrias constitucionais. Este homem, portanto, sem embargo de falhas inerentes natureza do ser humano, a glria de duas nacionalidades: a brasileira, porque nos alforriou do domnio externo prevenindo a recada do Pas em trs sculos de colonialismo predatrio; a segunda, porque restaurou ali o trono constitucional que o absolutismo confiscara.

    c) Consideraes sobre a Carta do imprio

    A Carta Poltica do Imprio de 25 de maro de 1824 sui generis no constitucionalismo latino-americano: este se inspira na obra dos constituintes de Filadlfia, a saber, nos autores da Lei Maior da Unio Americana, ao passo que ns nos inspiramos diretamente no modelo constitucional europeu.

    Vejamos, a seguir outros traos relevantes de contraste da Carta Imperial em face das Constituies dos demais pases do continente, cuja constitucionalizao se fez em moldes americanos.

    Aqui, uma constituio monrquica; ali uma constituio republicana; a primeira, obra do compromisso e da outorga, evolui para a forma parlamentar de governo, de raiz europia; a segunda, obra da revoluo, do poder constituinte originrio e da promulgao, adota a forma presidencial de governo, extrada do sistema americano. No Brasil o Imprio Estado unitrio, nas principais repblicas da Amrica Latina predomina o Estado federal, criado pelo gnio poltico dos constituintes americanos.

    O nosso constitucionalismo imperial inova ousadamente, ao sopro doutro ramo da doutrina francesa que no foi o de Montesquieu, mas o de Benjamim Constant, quando este

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    instituiu a figura do quarto poder na distribuio de competncia aos rgos de soberania. Este poder, o clebre Poder Moderador; aparece em nossa Constituio imperial, a nica do mundo que lhe deu acolhida, enquanto as demais Constituies das Amricas se conservaram fiis clssica diviso dos trs poderes elaborada por Montesquieu no Esprito das Leis, a saber, Executivo, Legislativo e Judicirio.

    Por outra parte, no de nosso conhecimento que alguma das constituies republicanas do continente haja adotado na mesma Carta disposies rgidas e disposies flexveis, normas constitucionais materiais e normas constitucionais meramente formais, umas de garantia maior, outras de garantia menor tocante possibilidade de introduzir alteraes ou emendas intentadas pelo poder de reforma ou poder constituinte de segundo grau, como fez a Constituio do Imprio. Leia-se a originalidade criativa e terica constante do teor normativo do art.178, que reza: s constitucional o que diz respeito aos limites e atribuies respectivas do Poderes Polticos e dos direitos polticos e individuais dos cidados; tudo o que no constitucional pode ser alterado, sem as formalidades referidas, pelas Legislaturas ordinrias.

    Em matria de direitos fundamentais de segunda gerao a Carta do Imprio de 1824 precursora; a Constituio Republicana de 1891 omissa; a primeira fala nos incisos 31,32 e 33 do art.179, de socorros pblicos e instruo pblica a todos os cidados, bem como de colgios e universidades, ao passo que a segunda silencia a esse respeito em todas as suas disposies.

    d) traos diferenciais na origem dos dois constitucionalismos da Amrica latina

    O primeiro trao divergente ou diferencial entre o constitucionalismo da Amrica Portuguesa e o da Amrica Espanhola reside em que ali houve um esforo conjunto para produzir instituies comuns ou unificadas debaixo de uma s Constituio, como prova o trabalho das Cortes de Lisboa aps a revoluo vintista que abalou os alicerces do absolutismo em Portugal.

    s Cortes constituintes esteve presente uma deputao brasileira que antes da ruptura, j na fase final de elaborao da primeira Constituio portuguesa (de feio aparentemente revolucionria), desempenhava ali certo papel como expresso de um pensamento de unidade do sistema luso-brasileiro, em plena evoluo poltica de carter associativo, marcado em bases institucionais desde a fundao do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve.

    Fora esta a conseqncia primeira e maior do processo inaugurado com a trasladao de D. Joo VI e da Famlia Real da antiga metrpole europia para a nova metrpole americana; uma espcie de inverso de papeis na geografia poltica da velha monarquia portuguesa, em que o Brasil, por obra da invaso napolenica na extremidade da pennsula, passava a ser a cabea do Reino, e Portugal a Colnia. Razes estas desgastaram profundamente o trono portugus, regido por um monarca a duas mil lguas de distncia e inclinaram os sditos europeus ao apelo armado, como ocorreu no levante do Porto, bero militar do ciclo constitucional iniciado pelos constituintes das Cortes de Lisboa. A estas, como assinalamos, o Brasil esteve associado, posto que parte de sua deputao haja desertado e os que no puderam fugir no auge da crise foram obviamente coagidos a jurar a Carta promulgada pelas Cortes em 1822.

    Outra singularidade do cotejo entre o desenvolvimento constitucional na Amrica Portuguesa e seu smile na Amrica Espanhola deriva da ausncia no Brasil de uma erupo revolucionria semelhana daquela que partiu os laos entre as colnias e o imprio

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    castelhano, com recurso s armas e emprego de meios violentos as campanhas militares da secesso fazendo nascer, assim, por obra dos libertadores, repblicas emancipadas cujo credo e inspirao se acercava mais de Filadlfia o modelo norte-americano que de Cdiz e Paris, donde procedeu alis a sugesto recepcionada nas Cortes de Lisboa, por portugueses livres e brasileiros coactos, quando se promulgou em Portugal a Constituio de 1822.

    O Brasil constitucional seguiu em certa maneira em seus primrdios uma trajetria relativamente pacfica, embora intercalada de episdios de luta, rebelio e resistncia, que no lograram, todavia, alcanar o significado de uma revoluo.

    Alis, os primeiros passos que demos no sentido de formar a nacionalidade livre se encaminharam na direo do modelo americano, que inspirou, por exemplo, a malograda Inconfidncia mineira de Tiradentes. Nesse sentido h o testemunho do documento histrico relativo ao contacto de um estudante brasileiro com Toms Jefferson em Paris, conforme j referimos.

    Em verdade, essa fora a linha ou vertente de um constitucionalismo republicano que esteve na alma e no nimo dos primeiros mrtires da causa nacional e que voltou a manifestar-se na cognominada Revoluo Pernambucana de 1817.

    Nessa ocasio se proclamou uma repblica cujas Bases constitucionais, as primeiras j formuladas em lngua portuguesa, foram obra de Antonio Carlos, um dos Andradas que fizeram com D.Pedro I a independncia do Brasil, e que desempenhou, depois, notvel papel nos trabalhos da Constituinte, que o Imperador dissolveu manu militari, mediante um golpe de Estado, de funestssimas conseqncias na evoluo poltica imediata do Imprio.

    A Revoluo de 1817 foi sufocada, mas a chama que a inspirou, esteve novamente acesa nos eventos da chamada Confederao do Equador, movimento revolucionrio que aglutinou as Provncias de Pernambuco (onde a rebelio teve incio), Paraba, Rio Grande do Norte, Cear e Piau; movimento nascido de um vigoroso protesto contra o ato truculento do Imperador, dissolvendo a Assemblia geral e Constituinte em 12 de novembro de 1823.

    As foras imperiais de terra e mar, desarticularam porm o poder militar dos confederados e os derrotaram em poucos meses de campanha.

    Frei Caneca, principal lder da insurreio, teve em 1824 o mesmo destino de Tiradentes em 1792: a morte afrontosa; o primeiro varado pelas balas de um peloto de fuzilamento, o segundo sacrificado no cadafalso.

    O derradeiro estertor dos que seguiam a divisa republicana e intentavam fundar no Brasil o mesmo sistema que prevalecera nos pases irmos do continente ocorreu com a guerra dos Farrapos. Durou dez anos a insurreio na extremidade do Imprio, ou seja, no Rio Grande do Sul, a provncia historicamente mais estratgica do Pas; no entanto, acabou sem alcanar os resultados almejados.

    de assinalar que em matria de constitucionalismo, os farrapos, fundadores da Repblica Rio-Grandense, chegaram a congregar em Alegrete uma constituinte, sem completar, todavia, a tarefa de promulgar a Constituio.

    Como se v, a linha paralela do constitucionalismo republicano do Brasil, similar quela

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    vitoriosa na Amrica Espanhola, fracassou aqui por completo, e se perdeu pela sua debilidade e por circunstncias e motivaes que fizeram a nao inclinar-se, em virtude da natureza mesma do processo institucional em curso, adoo do modelo europeu.

    Demais disso, se eficazes e triunfantes os surtos republicanos de independncia na Amrica Portuguesa, fieis portanto ao padro americano implantado nas ex-colnias hispnicas do continente, o mais que teriam logrado estabelecer fora a criao de repblicas minsculas ou seja deplorvel mosaico de Estados dbeis oriundos do quebrantamento da unidade nacional.

    A linha europia da monarquia constitucional, a cujo exame tornamos, fez o milagre poltico de conservao do Imprio enquanto centro de um poder que no fragmentou a nacionalidade brasileira.

    Repblica o Brasil um dia chegaria, na confluncia institucional do destino que partilhou com as demais coletividades do continente, mas sem desintegrar-se, como ocorrera na Amrica Espanhola, onde se formaram tantos Estados, nascidos da mesma famlia poltica, da mesma identidade, dos mesmos valores de civilizao.

    e) O papel do rei na monarquia constitucional

    Trs realezas se sucederam at aos nossos dias no ocidente depois da queda do Imprio Romano: a do rei feudal, a do rei absoluto e a do rei constitucional.

    O primeiro, um rei sem soberania, mais suzerano que propriamente monarca; o segundo, um rei de poderes soberanos; o terceiro, um rei de poderes restritos, atado aos freios representativos do sistema.

    Aps estabelecer com soberania o poder absoluto, fazendo submissas e vassalas as antigas aristocracias feudais, o rei da idade moderna passou depois pelo constrangimento de ter que repartir o poder poltico com o terceiro estado, debaixo das irresistveis presses econmicas e sociais da burguesia revolucionria, que forjou a realidade do sculo XIX, cifrada na frmula monrquica e parlamentar dos reis constitucionais.

    Na monarquia constitucional, o rei, que dantes inaugurara com a soberania o imprio absoluto sobre os sditos, tornando tributrios e dependentes os estamentos feudais, teve porm ao transcurso da idade moderna, a partir das transformaes oriundas da elevao econmica e social da burguesia, que dividir o poder poltico com o terceiro estado o estamento burgus e travar com este uma surda batalha de hegemonia e conservao de prerrogativas.

    Foi desta luta do sculo XIX em busca da supremacia que resultou na realidade institucional a frmula monrquica dos reis constitucionais.

    Toda essa evoluo do poder constitucional em que a realeza ainda prepondera, mas sempre na defensiva, sempre contestada, no raro intimidada, se tornou bastante clara com os fatos histricos ocorridos na Amrica Portuguesa.

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    A, D. Pedro, convocando a constituinte e dirigindo-se soberana assemblia nas falas do trono, teceu um discurso poltico em que a arrogncia do Imperador reiterava com energia sua qualidade de titular mximo do poder constituinte e corroborava depois a dura assertiva dessa supremacia com a dissoluo do grande Colgio, e com o ato de outorga de duas Cartas.

    A primeira aos brasileiros: a Carta Poltica do Imprio, em 1824. A segunda aos portugueses em 1826, a qual ele ditara ao Chalaa, seu secretrio particular, e fez chegar a Lisboa pela mo do embaixador ingls no Brasil, Mr. Brown, em trnsito para a Inglaterra.

    Era como se v, a certido da plida autolimitao de um poder que a monarquia no abdicara por inteiro, mas consentia partilhar com o terceiro estado, segundo condies restritivas supostamente declinadas e homologadas no pacto constitucional.

    As Constituies monrquicas eram, em geral, nos anais da liberdade moderna, salvo uma ou outra exceo, a frmula da democracia ascendente, sem afetar a continuidade das dinastias.

    Ao longo do Imprio, durante os dois Reinados, o rei governava mais que as assemblias, e muito mais que o povo.

    Demais disso, D. Pedro I exercia o poder em tamanha escala que a resistncia e irritao dos sditos redundou na revoluo silenciosa de 7 de abril: a abdicao do rei, o advento da Regncia e depois a promulgao do Ato Adicional que reformava a Constituio do Imprio.

    Mas a desfigurao do poder na monarquia constitucional no parou a. Prosseguiu na fase da ps-maioridade quando o absolutismo remanescente tornou a coroar a cabea do rei com a titularidade constitucional de dois Poderes: o Moderador e o Executivo. Isto estava na Constituio. Era o direito positivo do Imprio constitucional. Constava dos artigos 98 a 101, que se ocupavam do Poder Moderador no Ttulo V da Lei Maior.

    Nos termos da Carta o Poder Moderador era institudo como a chave de toda a organizao poltica e delegado privativamente ao Imperador como chefe supremo da nao e seu primeiro representante, para que, incessantemente, vele sobre a manuteno da independncia, equilbrio e harmonia dos demais poderes polticos (art. 98).

    O artigo seguinte declarava textualmente inviolvel e sagrada a pessoa do Imperador, dispondo que ele no estava sujeito a responsabilidade alguma.

    Por derradeiro, no art. 101 determinava o modo de exerccio do poder moderador pelo Imperador atribuindo-lhe a nomeao de senadores, a convocao da Assemblia Geral Extraordinria, a sano de decretos e resolues dessa Assemblia para que tivessem fora de lei, a aprovao e suspenso inteira das resolues dos conselhos provinciais, a prorrogao ou adiamento da Assemblia Geral, a dissoluo da Cmara dos Deputados nos casos em que o exigisse a salvao do Estado, a convocao imediata doutra que a substitusse, a livre nomeao e demisso dos ministros de Estado, a suspenso dos magistrados em determinados casos, o perdo ou a moderao das penas impostas aos rus condenados por sentena e, por derradeiro, a concesso de anistia em caso urgente se a humanidade e o bem do Estado assim aconselhar.

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    Toda essa concentrao magna de Poder poltico ao dispor de um rei sagrado e inviolvel e irresponsvel, titular constitucional de dois Poderes da soberania o Moderador e o Executivo podia fazer do monarca um dspota coroado e da Constituio um cdigo do despotismo. Ficava anos-luz de distncia da neutralidade e imparcialidade daquele Poder que Benjamin Constant, seu criador, teorizou como uma espcie de poder judicirio dos demais Poderes.

    O constituinte D.Pedro I ao outorgar aquela Carta, de rosto to absolutista, no podia ser outro seno o que dissolveu a Assemblia Geral Legislativa e Constituinte que no senhorio da legitimidade votava a primeira Constituio da soberania nacional no Brasil, cuja promulgao no se pde fazer em razo do golpe de Estado de novembro de 1823.

    Contudo, promulgada a Carta de 1824, s um rei santo com as virtudes de D.Pedro II podia fazer daquele poder a chave de uma democracia imperial, transformando trevas de prerrogativas em luz e chama de moderao, a saber, o dom de converter a fora em direito; fora que a Constituio lhe pusera ao alcance com a legitimidade formal de competncias constitucionalmente estabelecidas.

    Exercitava o rei to vastas atribuies na linha de uma legitimidade material que seu senso de justia, observncia do bem comum e fidelidade ao interesse pblico lhe recomendavam.

    Eis o paradoxo: a Constituio nos termos dos artigos 98 a 101 no passava de uma carta rgia do absolutismo; j o Imperador, no exerccio das competncias ali fixadas, era porm a efgie da prudncia e da absteno no emprego da fora e da coero.

    O Segundo Reinado foi o coroamento de uma poca constitucional de nossa histria que transcorreu sem ocorrncia de um nico golpe de Estado, salvo aquele dos republicanos que consumaram a queda do Imprio. Mas o Imprio no foi o reino da virtude. Atravessou crises e comoes de grande calibre. Que o digam as mazelas da escravido, as contendas partidrias, a semelhana de lioberais e conservadores, o imobilismo ministerial, os vcios do unitarismo sufocante e centralizador que emperrava e corrompia a mquina administrativa, as crises da Questo servil, da Questo religiosa, da Questo militar e, por derradeiro, da Questo federativa, que fez Rui Barbosa trocar a monarquia pela repblica. A monarquia era o Velho Mundo, a repblica o Novo Mundo. Com a Repblica emigramos politicamente da Europa para a Amrica.

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    O CONSTITUCIONALISMO DA INEFETIVIDADE: A CONSTITUIO DE 1891 NO CATIVEIRO DO ESTADO DE STIO

    Christian Edward Cyril Lynch* e Cludio Pereira de Souza Neto**

    O estado de stio (...) no salvou a Constituio: entronizou a ditadura.

    Rui Barbosa1

    introduo

    Nenhuma das constituies brasileiras foi cercada de tantas expectativas e consideraes como aquela que primeiro serviu de marco legal Repblica. Quando, no fim do Imprio, os republicanos democratas volviam os olhos para a vizinha Argentina, ficavam extasiados com o seu crescimento econmico e o atribuam ao seu modelo constitucional, elaborado imagem e semelhana dos Estados Unidos. Para eles, a Constituio do Imprio continha um vcio de origem: o fato de ter sido outorgada por Pedro I depois da dissoluo da Constituinte. Agora tudo seria diferente. Derrocada a monarquia unitria que supostamente entravava o progresso e adotada a repblica federativa, legitimada por uma Constituio elaborada pelos representantes do povo, o Pas seria refundado; tudo seria diferente. Para esses entusiastas, a Constituio de 24 de fevereiro de 1891 (pois era assim que ela era conhecida) preparava o Pas para uma era de verdadeira democracia, grandeza e prosperidade, que nos associava definitivamente ao movimento do continente americano. No poderia ser diferente: o principal autor do anteprojeto constitucional enviado pelo Governo Provisrio quela assemblia havia sido Rui Barbosa, o mais legtimo dos liberais democratas brasileiros, jurisconsulto verdadeiramente prodigioso.

    Entretanto, as promessas da Constituio de 1891 no se realizaram. Apesar da excelncia de seus autores e de sua relativa longevidade para os padres nacionais quase 40 anos , a primeira Carta republicana entrou para a histria brasileira como o smbolo da inefetividade constitucional, do ideal frustrado pela realidade.2 Um ano depois de promulgada a Constituio, s voltas com a ditadura florianista e os efeitos do primeiro estado de stio inconstitucional, o senador Amaro Cavalcanti j declararia querer a Constituio como lei viva, no como letra morta. Para ele, a inefetividade das garantias liberais parecia uma constante entre ns: sempre assim na histria poltica do nosso Pas. Escrevem-se nas pginas do direito preceitos to adiantados, to liberais, que as naes que precederam o Brasil na civilizao ainda no puderam adotar; mas, desgraadamente, * Professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Universidade Gama Filho (UGF). Pesquisador da Fundao Casa de Rui Barbosa (FCRB). Mestre em Direito Constitucional pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Doutor em Cincias Humanas pelo Instituto Universitrio de Pesquisa do Rio de Janeiro (IUPERJ).** Professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Universidade Gama Filho (UGF). Mestre em Direito Constitucional pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Doutor em Direito Pblico pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Advogado e Conselheiro Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).1 BARBOSA, Rui. O Estado de Stio: sua natureza, seus efeitos, seus limites. Rio de Janeiro, Companhia Impressora, 1892, p. 242.2 A histria constitucional brasileira tem se caracterizado pela predominncia de constituies inefetivas. A partir desse diagnstico, o consitucionalismo brasileiro ps-1988 tem buscado se constituir como constitucionalismo da efetividade (SOUZA NETO, Cludio Pereira de.Fundamentao e normatividade dos direitos fundamentais: uma reconstruo terica do princpio democrtico; In: BARROSO, Lus Roberto (org.). A Nova interpretao constitucional: ponderao, direitos fundamentais e relaes privadas. 3.edio revista. Rio de Janeiro, Renovar, 2008, p.285.

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    quando chega a vez da aplicao vem o sofisma, o esprito partidrio, a convenincia do momento, o desejo de no desagradar ao amigo, a ambio do poder e a lei subsiste como morta, imprestvel, na prtica, ao regime verdadeiro3. Do outro lado do plenrio do Senado, o conservadorismo j havia articulado uma resposta contra aqueles que reclamavam, com menos de um ano de ordem constitucional, que aquela no era a repblica com que haviam sonhado. Para o patriarca conservador da Repblica, o senador Campos Sales, o caminho para a repblica verdadeira exigia a ordem contra os agitadores, que s poderia ser garantida cercando do mximo de fora a autoridade do Executivo:

    Por minha parte, tambm direi que esta no a Repblica que eu sonhava; mas, com uma diferena: nunca me passou pelo esprito a fantasia de ver a Repblica com que sonhava, perfeitamente organizada dentro de to pouco tempo depois da destruio da Monarquia. No esta a repblica que eu sonhava, mas, este seguramente o caminho por onde se h de chegar a faz-la; atravs dessas dificuldades, dessas agitaes, de todas essas comoes, que ns havemos de chegar ao regime definitivo da forma republicana em nosso Pas. Mas, para isso (...), o meio principal, seno o nico, dar fora a esta entidade que representa uma sentinela ao lado da Repblica o governo do Pas. Pela minha parte, declaro que presto apoio absoluto e incondicional a este governo, ao qual no pedi e no pedirei outra coisa seno que tenha coragem, resoluo e energia para manter a ordem e a paz pblicas, e para garantir a estabilidade das instituies republicanas4.

    Os sintomas de esclerose precoce da ordem constitucional, atacada de paralisia conservadora, persistiram por todo o perodo at a dcada de 1920, quando se erodiu a f de que ela poderia ser resgatada para se efetivar no plano da vida. Num quadro de baixssima competio poltica e de escassa alternncia no poder, causado pelo monoplio oligrquico e pela prtica sistemtica da fraude eleitoral, a oposio e a situao jamais chegaram a um consenso mnimo acerca do modo como deveriam funcionar os institutos constitucionais, como os limites e hipteses de decretao do estado de stio, da interveno federal, do controle de constitucionalidade, do habeas corpus e das normas centrais da organizao federativa. Esta situao se arrastou durante quarenta anos, apesar de a Carta consagrar um Supremo Tribunal encarregado de exercer o controle normativo da constitucionalidade e um Congresso incumbido de conferir inteligncia s questes polticas. O desaparecimento do Poder Moderador e, com ele, de uma instituio competente para operar pelo alto a alternncia do poder, no deu lugar criao de um consenso constitucional mnimo visto como legtimo pela maioria dos atores envolvidos. Quase 25 anos depois, um jovem expoente da nova gerao conservadora, o deputado sergipano Gilberto Amado, aludiria inevitvel e necessria natureza ficcional da Constituio brasileira. Numa sociedade incapaz de recepcion-la, a Carta forosamente ficaria pairando no ar, como uma cpula, sem conexo com a terra; erguida no alto, ela era uma fico, um smbolo, uma figura de retrica destinada ao uso dos oradores5.

    3 Anais do Senado Federal, sesso de 17 de maio de 1892.4 Anais do Senado Federal, sesso de 1. de junho de 1892.5 AMADO, Gilberto. As Instituies Polticas e o Meio Social no Brasil. In: Trs Livros: A Chave de Salomo e outros escritos, Gro de Areia e Estudos Brasileiros, e A Dana sobre o Abismo. Rio de Janeiro, Editora Jos Olmpio, 1963, p. 237.

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    Bicentenrio do Poder Judicirio no Brasil

    As pginas seguintes tentaro lanar luzes sobre alguns aspectos jurdicos, polticos e ideolgicos que envolveram o drama da inefetividade da Constituio de 1891. Nossa abordagem tomar como referncia a disputa poltica e ideolgica dos liberais e conservadores em torno da interpretao da Carta, disputa que se originara no Imprio e se repetia na Repblica, embora de modo menos evidente pela dificuldade de se institucionalizar o conflito em partidos nacionais. Para tanto, recorreremos ao exame de textos legais e reconstruo histrica dos debates travados no Congresso Nacional, responsvel pela definio das questes polticas, que escapavam ento jurisdio do Supremo Tribunal Federal.

    1. A reao aristocrtica dos ltimos anos da monarquia. O manifesto republicano. A dimenso conservadora do republicanismo agrrio.

    O Imprio havia sido conformado pelo liberalismo da tradio francesa. Embora seu modelo institucional fosse o do governo parlamentar britnico, ele o era explicado pelos tericos franceses da Monarquia de Julho, para quem o liberalismo no implicava a rejeio do unitarismo, da justia administrativa e de um governo parlamentar baseado na confiana da Coroa e do Parlamento. Esses traos do regime orleanista foram adaptados no final da dcada de 1830 pelos conservadores brasileiros, como Vasconcelos e Uruguai, para organizar e estabilizar as instituies consagradas pela Carta de 1824. Esse modelo poltico caracterizado pelo governo parlamentar e unitrio, tutelado pela Coroa, era justificado com dois argumentos bsicos. O primeiro reivindicava a preeminncia democrtica do Imperador: sua aclamao popular, antes de reunida a Constituinte de 1823, fizera dele, e no da representao parlamentar, o intrprete privilegiado da vontade nacional.6 O segundo argumento, de natureza sociolgica, residia na invertebrao da sociedade nacional, cuja pobreza e atraso intelectual se refletiriam na vacuidade da vida poltica e no individualismo de seus estadistas. Na falta de um ponto qualquer na base social, onde o sistema pudesse se apoiar, o sistema constitucional e representativo s poderia se organizar de cima, a partir da legitimidade de que a monarquia havia sido investida pela aclamao popular. Da a centralidade adquirida pelo Poder Moderador da Coroa, forma estrutural de controle constitucional criada por Benjamin Constant que se tornara o piv da estabilidade do Estado, ao proporcionar, do alto, a filtragem de uma liderana poltica relativamente autnoma das oligarquias e uma alternncia artificial, mas eficaz, entre os partidos polticos, levando-os a renunciar s armas7. A relativa autonomia do Estado por sobre a sociedade inorgnica e oligrquica era a condio mesma da sua estabilidade, permitindo-lhe organizar a poltica para submeter os potentados rurais.8

    6 LYNCH, Christian Edward Cyril. O discurso poltico monarquiano e a recepo do conceito de Poder Moderador no Brasil (1822-1824). Dados, Rio de Janeiro, v. 48, n. 3, p.611-654, set. 2005.7 Idem, A voz do Leviat pela boca de Behemoth: o estado de exceo, o poder moderador e o controle normativo de constitucionalidade como meios de expresso da unidade da soberania popular. In: II Congresso Brasileiro de Direito e Poltica, 2005, Florianpolis. Direito e Poltica - Anais do II Congresso Brasileiro. Curitiba : Juru, 2005. p. 31-40.8 MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema: a formao do Estado imperial. 3. ed. Rio de Janeiro: ACESS, 1994.

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    Entretanto, a ideologia que justificava a hegemonia do modelo poltico conservador do Imprio comeou a ser seriamente contestada a partir de 1867-1875, quando a segunda reforma eleitoral inglesa e a consolidao da Repblica na Frana marcaram a inevitveldemocratizao de seus respectivos governos representativos; as teorias do governo misto e do governo parlamentar foram ento substitudas pelas da democracia e do parlamentarismo. Referncia de todas as monarquias constitucionais, na Inglaterra vigia um parlamentarismo que retirara a Coroa do centro decisrio da poltica; por isso, ela deveria limitar-se a reinar e no governar.9 Esse momento coincidiu com a queixa das oligarquias brasileiras contra a compresso exercida pelo governo nacional e suas reivindicaes por maior autonomia poltica, administrativa e tributria para as provncias. Da o seu apoio, aparentemente contraditrio, campanha promovida pelo Partido Liberal por reformas que incluam a eleio direta, a descentralizao, a autonomia do Judicirio, a extino da justia administrativa, a temporariedade do Senado e a neutralizao do Poder Moderador. A ala esquerda dos liberais brasileiros, acreditando representar uma conscincia pblica democrtica gerada pelo conhecimento cientfico, props romper as frmulas de transigncia que at ento caracterizavam a poltica, pregando a separao entre Igreja e Estado, a democratizao do sufrgio, a instruo pblica universal e, eventualmente, o federalismo medidas necessrias a uma sociedade moderna e, como tal, autenticamente liberal10.

    Ocorre que, se os liberais urbanos pretendiam na dcada de 1870 ampliar a esfera pblica pela reduo da autonomia do monarca, do Senado vitalcio e do Conselho de Estado, em benefcio das provncias e da Cmara dos Deputados, o intuito dos liberais e conservadores rurais era, ao contrrio, o de reduzir o eleitorado para firmar a hegemonia direta da lavoura na poltica brasileira. A perspectiva da abolio da escravatura j se achava no horizonte e, com ela, o receio de que os escravos libertos pudessem participar da poltica ou usar seus votos para barganhar, com seus senhores, condies mais suaves de trabalho e moradia (como j faziam os trabalhadores livres). A tendncia dos fazendeiros do sudeste no final da monarquia havia sido a de combater a autonomia da Coroa, que outrora desejaram para garantir o primado da ordem, mas que agora rejeitavam. Preocupada com seu status, ameaado pela falta de mo-de-obra, a aristocracia rural passou a se organizar em congressos agrcolas para criticar a pretenso da Coroa de intervir no mercado de trabalho, a pretexto de promover a abolio da escravatura. O discurso reformista liberal da dcada de 1870 acabou sendo incorporado, na verdade, por uma reao aristocrtica que pretendia instalar um parlamentarismo aristocrtico onde apenas as elites estivessem no controle do Estado. Desse modo, o campo poderia evitar ou retardar a abolio da escravatura e melhor direcionar os recursos pblicos em seu benefcio, na forma de financiamento pblico por emprstimos, promoo da imigrao estrangeira e construo de mais ferrovias que escoassem a produo11. A reforma eleitoral de 1881, efetuada em nome da democracia, embora tenha

    9 BAGEHOT, Walter. The British Constitution. Disponvel em . Acesso em jun. 2007.10 SIMON, Jules. La politique radicale. 2.ed. Paris: Librarie Internationale, 1868.11 LYNCH, Christian Edward Cyril. O Momento Monarquiano: o Poder Moderador e o Pensamento Poltico Imperial. Rio de Janeiro, 2007. Tese de Doutorado em Cincia Poltica IUPERJ.

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    suprimido a regra da eleio indireta, reduziu em mais de dez vezes o eleitorado, ao excluir do direito de voto os analfabetos, que eram 90 % da populao12.

    No entanto, a retomada do processo de abolio da escravatura em 1884 logo revelou lavoura os limites do parlamentarismo aristocrtico. Na busca de outras frmulas que eliminassem a autonomia do estado, a aristocracia rural aderiu sucessivamente ao federalismo e ao republicanismo, especialmente depois da Lei urea. J eram perceptveis as diferenas ideolgicas entre as duas propostas de repblica ento disponveis sob o guarda-chuva geral de adeso ao modelo republicano norte-americano: primeiro, a republicana liberal, vinculada a determinados setores urbanos do Rio de Janeiro; segundo, a republicana agrria, vinculada aristocracia rural de So Paulo. Grosso modo, os dois projetos representavam a radicalizao das posturas dos dois partidos monrquicos, agora numa moldura republicana e federalizada. A tradio republicana brasileira da dcada de 1830, essencialmente urbana e democrtica, havia sido preservada pelos liberais histricos; deles o basto passara para os radicais e, da por diante, para os republicanos propriamente ditos.

    As idias democrticas do partido foram condensadas em 1870 num manifesto de Quintino Bocaiva conhecido como Manifesto Republicano. Os republicanos sabiam que a pedra de toque da monarquia brasileira era a teoria do governo misto e por isso buscaram vulner-la em nome da democracia pura e do progresso. Para Bocaiva, a monarquia constitucional era uma soluo espria de compromisso entre o absolutismo e a democracia, que no poderia mais ser tolerada pela evoluo natural das sociedades: era um regime de privilgio, na medida em que uma famlia tinha o monoplio da chefia de Estado. A repblica era uma forma de governo mais adiantada e, como tal, inevitvel e necessria ao progresso do Pas. No conjunto, porm, o manifesto era antes um libelo antimonrquico do que um conjunto claro de proposies de reforma poltica. Alm de no tocarem na questo social leia-se: na escravido , os republicanos eram vagos a respeito do desenho institucional proposto, limitando-se a advogar uma repblica democrtica, um executivo responsvel e provncias unidas por um vnculo federal. Embora houvesse federalistas monrquicos, os republicanos frisaram que, do ponto de vista doutrinrio e emprico, a instituio da monarquia era incompatvel com a federao das provncias, que s seria possvel, portanto, dentro do modelo norte-americano. O federalismo era apresentado como a nica possibilidade de preservar a unidade nacional brasileira e ao mesmo tempo coibir o intervencionismo estatal sobre o espao privado, social e principalmente econmico13. Na verdade, o republicanismo liberal urbano somente adquirir caractersticas definidas com o fim do perodo monrquico, quando Rui Barbosa assumiu o papel de vice-chefe do Governo Provisrio.

    Se esta era a verso liberal e urbana do republicanismo, elaborada na Corte, havia tambm a sua verso conservadora e rural, formulada pelos fazendeiros republicanos paulistas. Aqui, o filsofo que servia de referncia era Herbert Spencer, figura de proa do

    12 CARVALHO, Jos Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio, Civilizao Brasileira, 2001.13 BOCAIVA, Quintino. Manifesto Republicano. In: Idias Polticas de Quintino Bocaiva. Seleo e organizao de Eduardo Silva. Volume I. Rio de Janeiro, Fundao Casa de Rui Barbosa, 1986.

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    conservadorismo ingls. O darwinismo social spenceriano aplicava organizao social o ideal de mercado de uma concorrncia perfeita entre os produtores econmicos, cobrando do Estado absteno, sob pena de brecar a evoluo social e comprometer a sobrevivncia dos mais aptos. A pobreza era fruto da incapacidade congnita dos menos aptos na luta pela vida, que por isso deveriam ser deixados prpria sorte. Spencer condenava a legislao social, o socialismo, o direito de greve e a sindicalizao, que interferiam no natural processo de competitividade, isto , de luta pela vida14. Essas idias constituram o ncleo ideolgico do republicanismo agrrio, cujo maior doutrinador foi Alberto Sales. Embora respeitasse o princpio da igualdade perante a lei indispensvel perfeita concorrncia dos indivduos , toda e qualquer outra noo de igualdade era soterrada por determinismos geogrficos, tnicos ou hereditrios dos indivduos em luta pela vida, alados condio de fatores determinantes das explicaes15. Quando transpostas para o plano da ao poltica, as conseqncias da naturalizao da hegemonia paulista eram claras. Em primeiro lugar, o Estado brasileiro deveria se retirar da cena econmica e social, adotando-se o federalismo, a separao entre a Igreja e o Estado, a liberdade de ensino, e a mais absoluta liberdade comercial e industrial. Em segundo lugar, emergia o direito natural da aristocracia rural paulista de dispor dos dinheiros pblicos provinciais como bem lhe aprouvesse. Era tambm So Paulo que deveria dirigir a futura Repblica: para o discurso conservador, as elites nordestinas e fluminenses eram dotadas de formao racial inferior, razo pela qual haviam se revelado decadentes e gerencialmente incompetentes16. Em terceiro lugar, e intimamente ligada demanda federalista e separatista, estava a postergao do processo de abolio de escravatura.17

    Apesar de formalmente expresso num discurso republicano, o mbito da repblica defendida pelo republicanismo agrrio paulista coincidia com aquele da nao da monarquia parlamentarista idealizada pelos conservadores e liberais do campo um espao pblico restrito aos proprietrios de terras, aos profissionais liberais e aos altos funcionrios do Estado ou seja, aos patres; ficando fora dela todo o resto da populao, isto , a fora de trabalho que os abolicionistas queriam elevar categoria de cidados plenos. Da que o discurso republicano da aristocracia paulista acabasse tomando, na prtica, contornos de um liberalismo muito mais autoritrio que o do Imprio. sombra da mesma ideologia liberal democrtica do republicanismo urbano, surgiu um republicanismo militante do campo, amparado

    14 SPENCER, Herbert. Political Writings. Cambridge University Press, 1997.15 Assim, por exemplo, Sales atribua a riqueza paulista superioridade racial, psicolgica e cultural da sua aristocracia, descendente de colonizadores da melhor cepa portuguesa. A decadncia das demais provncias era explicada pela mistura de sangue do branco com o negro e com o ndio, ao passo que a pureza racial das linhagens paulistas explicava o notvel desenvolvimento moral e intelectual de So Paulo. SALES, Alberto. A Ptria Paulista. Braslia, UnB, 1983, p. 102.16 A repblica e o federalismo dariam um fim a este regime do privilgio e do monoplio, que atualmente caracteriza a nossa vida poltica, a ponto de serem as funes governamentais exercidas pelos menos competentes e no pelos mais aptos, como alis o deveria ser numa boa organizao social. SALES, Joo Alberto. Catecismo Republicano. In: VITA, Lus Washington. Alberto Sales Idelogo da Repblica. So Paulo, Companhia Editora Nacional, 1965, p. 175.17 No final de 1887, os republicanos agrrios paulistas aceitaram a abolio sem indenizao, resolvendo impor aos associados do partido que, para comemorar o centenrio da Revoluo Francesa, deveriam libertar os seus escravos at... 14 de julho de 1889! Quando a data chegou, a monarquia j abolira a escravido fazia mais de ano... SANTOS, Jos Maria dos. Os Republicanos Paulistas e a Abolio. So Paulo, Livraria Martins, 1942.

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    ideologicamente no darwinismo social, oligrquico e hierrquico, autoritrio e racista, que sedutoramente acenava a toda a aristocracia rural como a soluo definitiva de seus problemas polticos. Indispostos com o reformismo imperial, os principais conservadores monarquistas aceitaram sem pesar a ruptura institucional e o governo provisrio dela decorrente; de fato, poucos dias depois, praticamente toda a grande aristocracia rural j estava nas fileiras do Partido Republicano18. Nesse quadro, no causar estranheza que, depois de assentado o novo regime, fosse ele elogiosamente descrito por um dos mais eminentes prceres paulistas, a esta altura senador, como uma democracia autoritria19.

    2. no Governo Provisrio: os decretos norteadores, o anteprojeto constitucional e a modelagem do supremo tribunal Federal.

    Instaurada a Repblica, foi editado, para institucionaliz-la provisoriamente, o Decreto n. 1, de 15 de novembro de 1889. Ele foi precedido de uma proclamao do Governo Provisrio que tentava justificar como produto da perfeita comunho de sentimentos entre o povo, o Exrcito e a Marinha o golpe que extinguira a monarquia. Embora timbrasse em apresentar o novo governo como agente da paz, da liberdade, da fraternidade e da ordem, a proclamao mandava fechar o Congresso Nacional. A ditadura era introduzida, porm, a ttulo de introduzir um governo mais liberal e democrtico que o anterior, promessa contida j na designao do novo regime de governo, no referido Decreto n. 1, como repblica federativa (art. 1.). As antigas provncias, por suas vezes, passavam condio de Estados, para formar, em seu conjunto, os Estados Unidos do Brasil (art. 2.). Esses Estados eram qualificados como detentores de legtima soberania (art. 3), expresso que, como veremos, oporia conservadores ultrafederalistas e liberais unionistas no Congresso Constituinte. Os trs artigos seguintes instituram legalmente o Governo Provisrio da Repblica e previram regras para que, em caso de reao monarquista, ele pudesse intervir militarmente nos Estados. O art. 7 previa que a Repblica deveria ser confirmada pelo pronunciamento definitivo do voto da Nao livremente expressado pelo sufrgio universal, idia logo deixada de lado. Depois do Decreto n. 1, outros decretos tambm foram editados versando sobre matria constitucional como o de n. 6, que confirmou o sufrgio universal masculino como novo critrio de eleio dos futuros representantes polticos, em substituio ao voto censitrio. Na prtica, a ampliao da esfera pblica foi praticamente nula, porque no revogava a proibio do voto do analfabeto que, introduzido em 1881, fora a responsvel pela reduo abissal da participao eleitoral. O Decreto n. 7 mandou fechar as assemblias legislativas estaduais e fixou as competnciasdos governadores, tarefa tpica das constituies federais. O Decreto de 19 de novembro de

    18 Embora os novos governos preferissem os republicanos histricos para ocupar cargos pblicos, os ex-conservadores monrquicos, agora adesistas, no foram discriminados: o prprio Antnio Prado, chefe do Partido Conservador de So Paulo, foi eleito deputado Constituinte de 1890 pelo Partido Republicano e ocuparia a prefeitura de So Paulo por treze anos consecutivos. Por sua vez, escolhido pelo antecessor Campos Sales (um republicano histrico), o conselheiro da monarquia Rodrigues Alves chegaria doze anos depois presidncia da Repblica. Como se percebe, a afinidade essencial aqui entre o esprito conservador da lavoura e no de regimes de governo. ARANHA, Jos Pereira da Graa Aranha. A vida realista de Antnio Prado. In: PRADO, Nazar. Antnio Prado no Imprio e na Repblica. Rio de Janeiro, F. Briguiet & Cia, 1929, p. 41. 19 GLICRIO, Francisco. As Idias Polticas de Francisco Glicrio. Organizao e seleo de Joo Sebastio Witter. Volume II. Fundao Casa de Rui Barbosa, 1982, p. 392.

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    1889 instituiu o sufrgio universal; o de 7 de janeiro de 1890, a separao entre Igreja e Estado; o de 24 de janeiro, o casamento civil; o de 11 de outubro, a Justia Federal.

    Esses decretos, que deram forma legal ao Governo Provisrio, foram firmados por todos os seus membros. Essa forma colegiada de atuao dos integrantes do novo governo, em contrariedade ao princpio presidencialista que os guiava e seguindo as prticas parlamentaristas, manifesta principalmente a desconfiana recproca no interior da prpria coligao civil e militar que patrocinara o golpe de Estado. Era evidente que a coalizo reunira elementos que, por uma questo de oportunidade, haviam se juntado para ajudar a derrubar a monarquia unitria, mas que pouco tinham a ver entre si. O governo reunia generais como Deodoro e Floriano, inclinados ditadura pura e simples; militares e civis positivistas, como Benjamin Botelho e Demtrio Ribeiro, propensos a uma democracia autoritria; aristocratas rurais conservadores, como Campos Sales e Francisco Glicrio, que aspiravam a uma repblica oligrquica como a Argentina, e jornalistas at ento liberais e democratas, como Aristides Lobo e Quintino Bocaiva, que logo passariam para o campo conservador. Monarquista at os estertores do regime, Rui Barbosa compensou o fato de no ser militar nem republicano histrico graas ciclpica cultura jurdica e administrativa, com o que manteve a ascendncia sobre Deodoro. Manobrando para que a ditadura fosse, dentro do possvel, um breve interregno para a organizao democrtica e liberal da nova Repblica, Rui aproveitou o carter colegiado do governo para, apesar de ser Ministro da Fazenda, influenciar boa parte da legislao institucional do perodo; por outro lado, sua conduta liberal e absorvente causou crises que resultaram na retirada de colegas e na eterna antipatia de outros, como o conservador Campos Sales. Ministro da Justia e irmo de Alberto, Campos Sales seria o grande artfice do conservadorismo oligrquico da Primeira Repblica e, como tal, adversrio poltico de Rui, campeo da causa perdida do liberalismo urbano20. No seio do Governo Provisrio j comeava a larvar, pois, a tenso entre o conservadorismo do Ministro da Justia e o liberalismo do Ministro da Fazenda, que encarnariam os dois plos ideolgicos antagnicos em que se dividiria a interpretao constitucional do novo regime.

    Naquele momento, todavia, uns e outros precisavam da recproca colaborao para atingir objetivos comuns. O primeiro deles, que era garantir o novo regime contra a reao monrquica, foi alcanado por uma legislao draconiana contra a liberdade de expresso, pelo empastelamento de jornais e pela edio de um regulamento eleitoral que impediria, pela interveno do governo, a eleio de monarquistas para a Constituinte.21 O segundo objetivo comum foi impor o modelo institucional norte-americano contra o grupo positivista, convocando uma comisso para elaborar o projeto constitucional comprometida com aquele modelo. Assim, o decreto n. 29 de 3.12.1889 nomeou uma comisso de cinco juristas Saldanha Marinho, Amrico Brasiliense, Santos Werneck, Rangel Pestana e Magalhes de Castro , a maior parte dos quais vinculados grande propriedade rural. O anteprojeto foi revisto por Rui Barbosa em 25 dias a pedido de todos

    20 Para Sales, Rui era a negao formal de todas as qualidades de homem de governo. Empenhado sempre em obras da desordem e da destruio, Rui era um revolucionrio de sangue. Onde aparece uma conspirao, ou uma revolta, l est ele. Assim tem sido sempre (DEBES, Clio. Campos Sales: perfil de um estadista. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1978. v. 2, p. 591-593). Rui tambm no gostava de Sales. Quando as atas do governo provisrio vieram a lume, em 1901, sua primeira reao foi a de contestar a veracidade dos documentos, e a segunda, a de acusar o secretrio de Deodoro, Fonseca Hermes, de estar mancomunado com Sales e Cesrio Alvim para exaltar-lhes os atos e diminuir as dos outros ministros principalmente as dele, Rui. (MAGALHES JR., Raimundo. Rui, o homem e o mito. 2. ed., corrigida e aumentada. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira 1965. p. 150-152). A m vontade recproca comprova a durabilidade da animadverso, pessoal e ideolgica.21 ABRANCHES, Dunshee de. Atas e atos do Governo Provisrio. Introduo de Octaciano Nogueira. Edio fac-similar. Braslia: Senado Federal, 1998. p. 124, 236, 249.

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    os ministros para que, em conjunto, pudessem solidariamente imp-lo a Deodoro, que queria incluir na Constituio a possibilidade de dissoluo da Cmara dos Deputados pelo Chefe do Estado e a organizao de um Judicirio unitrio, mecanismos da Carta de 1824.22 Vencido Deodoro, o anteprojeto foi promulgado pelo decreto n. 510 como Constituio Provisria da Repblica, a 22 de junho de 1890, cujos dispositivos relativos estruturao dos poderes j passavam a vigorar. Em parte, o Decreto 510 significou um ato constituinte. A Constituio Provisria era umatentativa consciente dos atores republicanos de romper a autonomia do Estado sobre a sociedade e superar a hegemonia da moldura intelectual francesa, para lhe sobrepor a norte-americana; na prtica, isso foi feito substituindo-se o unitarismo pelo federalismo (art. 1.), o parlamentarismo pelo presidencialismo (art. 39), a dualidade entre justia administrativa e justia comum por um judicirio uno e autnomo (art. 54), o tribunal de cassao por um supremo tribunal soberano (art. 55) e o poder moderador do chefe do Estado pelo controle jurisdicional da constitucionalidade (art. 58, 1, alneas a e b).

    Na confeco desse anteprojeto, a atuao de Rui Barbosa foi fundamental. Ele fez umas poucas alteraes no modelo constitucional estadunidense, tendo em vista a evoluo poltica daquele pas desde 1787. Com receio da deficiente educao do povo, ele tambm adotou a eleio indireta para presidente e senadores; para evitar que as eleies presidenciais fossem tumulturias, fixou uma durao mais longa, de seis anos, para o mandato presidencial. Receoso de que o Presidente manipulasse o Supremo Tribunal, fixou seu nmero de integrantes na Constituio; temendo o excesso de federalismo, fortaleceu a Unio, concedendo-lhe o poder de emitir moeda, a propriedade das terras devolutas e a competncia para legislar sobre direito civil, penal e processual. No mais, com o propsito firme de transplantar as instituies anglo-americanas, com um olho na Constituio da Argentina, Rui se valeu de toda a sua expertise em direito pblico para reescrever o anteprojeto da comisso dos cinco, modificando-o para alm de seu estilo, tcnico ou vernculo, ao enxertar novas normas, consagrar novas instituies e aprimorar a redao de quase todas as outras.23 Ele melhorou os dispositivos referentes interveno federal, para permitir que os poderes judicirios e legislativos dos Estados pudessem requisit-la, e ao estado de stio, frisando a necessidade de que o Congresso Nacional fiscalizasse os atos do governo. Quanto ao controle normativo da constitucionalidade, foi ele quem o enxertou no captulo do Poder Judicirio, quase todo reescrito. Ficaram tambm por sua conta a inviolabilidade parlamentar e a ampliao da declarao de direitos, evitando que ela fosse inferior da Constituio de 1824.24

    A adoo do presidencialismo merece uma anlise mais circunstanciada, por constituir uma aparente contradio com a campanha parlamentarista movida pela oposio liberal desde pelo menos 1862, e radicalizada desde 1868/1871, que justamente combatia o poder pessoal. Ao consagrar as doutrinas da separao dos poderes e dos freios e contrapesos, o arcabouo horizontal do projeto republicano ficava muito parecido com o da prpria Constituio do Imprio, cuja primeira interpretao, no Primeiro Reinado e na Regncia, respaldara o poder pessoal de Pedro I e do Regente Feij poder pessoal muito superior quele exercido por Pedro II no quadro de um sistema parlamentar dualista e que tanto havia sido criticado por Rui. A existncia de um poder pessoal do chefe do Executivo, ao menos teoricamente, no era um problema para os conservadores agrrios, que apreciavam um chefe de Estado forte, enrgico, capaz de manter

    22 MONTEIRO, Tobias. Como se fez a Constituio da Repblica. In: BARBOSA, Rui. A Constituio de 1891. Rio de Janeiro: Ministrio da Educao e Sade, 1946. p. 371-374. (Obras Completas de Rui Barbosa, v. 17, 1890, t. 1.)23 CARNEIRO, Levi. Dois arautos da democracia: Rui Barbosa e Joaquim Nabuco. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1954.24 CALMON, Pedro. Prefcio. In: BARBOSA, Rui. A Constituio de 1891. Rio de Janeiro: Ministrio da Educao e Sade, 1946.

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    a ordem social contra as reivindicaes dos setores alijados. A rejeio do regime monrquico pelos senhores rurais, na verdade, havia radicado menos no carter pessoal do governo, por eles apreciado, do que no fato de sentirem, desde o incio do processo da abolio, em 1871, que aquele poder no vinha sendo empregado em seu benefcio, ou seja, da ordem social, mas contra eles, desorganizando o trabalho da lavoura e subvertendo a hierarquia social. Da o apoio dado ento campanha parlamentarista. Com a queda da monarquia e o advento de um presidente eleito, as coisas mudavam de figura. Como explicava Campos Sales, a vantagem de substituir a monarquia parlamentar pela repblica presidencial estava na conjugao de um governo forte e pessoal, de um lado, com sua responsabilidade direta frente aos representantes do latifndio reunidos no Congresso, de outro. Para ele, a repblica presidencial era a garantia de governo forte a servio do establishment oligrquico25.

    Este no era o caso de Rui, liberal apaixonado pelo parlamentarismo que aderira ao presidencialismo por pura rigidez doutrinria. Embora acreditasse que, dado o histrico latino-americano, o sistema presidencial pudesse converter-se num veculo do arbtrio do Chefe do Estado, mas no vendo, por outro lado, o precedente anglo-americano de uma repblica federativa que comportasse a frmula parlamentarista, Rui evitou incorrer em hibridismo.26 Para ele, a elaborao constitucional exigia ortodoxia na transposio das instituies estrangeiras para o ambiente nacional. Alm de envolverem contemporizaes com o atraso poltico, as frmulas hbridas aumentavam a imprevisibilidade do experimento e, com ela, o risco de um governo arbitrrio. Da que a boa Constituio no era a que correspondia ao estado sociocultural do povo, mas a que servia de bitola ou corretor ortopdico para aprumar o crescimento irregular do organismo social num caminho diverso daquele da liberdade. Se os valores morais da justia eram universais e eternos, como ele acreditava, e encontravam nas instituies anglo-americanas sua mais acabada expresso, os povos atrasados precisavam urgentemente import-las e pratic-las, para terem condies polticas de acelerar seu desenvolvimento. A ferramenta essencial para a adequada inoculao institucional do germe da liberdade num ambiente que lhe era hostil era, para Rui, o direito constitucional comparado. O relativismo cultural, a histria ou a intuio sociolgica tinham pouca ou nenhuma relevncia. Por esse motivo, Joaquim Nabuco o acusaria de ser no um organizador, um criador de instituies, mas um copista de gnio, o jurista constitucional do regime republicano.27 A esperana de Rui era a de que as derivas autoritrias do governo presidencialista ou do Congresso fossem coibidas pelo Judicirio, cujo poder, por isso mesmo, tratara de fortalecer. Fixada sua competncia para declarar a nulidade dos atos e leis incompatveis com a Constituio e de julgar os conflitos entre os estados, e entre estes e a Unio Federal, o Supremo Tribunal Federal deveria exercer o papel de um poder neutral, arbitral, terminal, que afaste os contendores, restabelecendo o domnio da Constituio.28 Entretanto, no era nova e nem privativa dos republicanos a noo, corrente na poca, de que o equivalente do Poder Moderador do monarca nas

    25 Os que ainda no puderam ainda compreender bem a essncia do regime, tal como o concebeu o nosso mecanismo institucional, mostram-se ingenuamente apavorados ante esta influncia exercida legitimamente pela autoridade presidencial, supondo estarem na presena desse fantasma do poder pessoal, que outrora atribuamos, ns, os republicanos principalmente, ao Imperador, buscando ai valiosssimo subsdio para os ataques Monarquia. Existe, certo, no regime presidencial, um poder pessoal; mas nisso que se diferencia do poder pessoal dos soberanos um poder constitucionalmente organizado, sujeito a um tribunal poltico de julgamento. SALES, Manuel Ferraz de Campos. Da propaganda presidncia. So Paulo: [s.n.], 1908. p.215. 26 BARBOSA, Rui. Escritos e discursos seletos. Seleo, organizao e notas de Virgnia Cortes de Lacerda. Rio de Janeiro: Nova Aguilar: Fundao Casa de Rui Barbosa , 1960. p. 352.27 ARQUIVOS da Fundao Joaquim Nabuco.28 DELGADO, Luiz. Rui Barbosa: tentativa de compreenso e sntese. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1945. p. 141.

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    Bicentenrio do Poder Judicirio no Brasil

    repblicas presidenciais e federativas era uma Suprema Corte dotada de poderes para declarar a inconstitucionalidade das leis e dos atos normativos. J em 1841, por exemplo, o liberal histrico Tefilo Otoni aludira a um supremo Poder Moderador que, detido pela Suprema Corte, teria o poder de declarar a inconstitucionalidade das normas nos Estados Unidos29; vinte anos depois, ele voltou a defender a tese de que Judicirio brasileiro tinha ou deveria ter a mesma funo30. Em 1870, foi a vez de Tavares Bastos definir o Judicirio norte-americano como o grande Poder Moderador da sociedade, preservando a arca da aliana de agresses, ou venham do governo federal ou dos governos particulares31. Por fim, a crer-se no depoimento do republicano Salvador de Mendona, o prprio Imperador Dom Pedro II teria cogitado em 1889 de criar um tribunal semelhante Suprema Corte norte-americana para lhe transferir as competncias do Poder Moderador32. Tambm no era nova a idia de fortalecimento do Poder Judicirio. Pregando contra a justia administrativa imperial, em 1869 Nabuco de Arajo e outros liberais haviam insistido que os juzes eram os nicos rbitros adequados das contendas individuais e mesmo eleitorais33.