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1 05. Pedagogia Histórico-Crítica AS CONTRIBUIÇÕES DA PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA PARA O ENSINO DAS CIÊNCIAS NATURAIS: TEORIA DA EVOLUÇÃO X DOUTRINA CRIACIONISTA Hugo Rodrigues da Silva (SEEDUC e SEMED) 1 Resumo: As influências das instituições religiosas, principais veículos de disseminação da doutrina criacionista, na mediação do conhecimento ligado às Ciências Naturais esvaziam os conteúdos ministrados nas escolas de Educação Básica, ao considerar o aluno como um ser desprovido de história e crítica. Esse trabalho aponta as contribuições da Pedagogia Histórico-Crítica na mediação dos conhecimentos das Ciências Naturais, haja vista que ela reúne as categorias da historicidade, da materialidade e da totalidade, também presente nos conhecimentos mediados pelos professores, sobretudo a teoria da evolução darwiniana que se estrutura com bases científicas, históricas e materiais no sentido oposto ao da hipótese ou doutrina criacionista e sua forma atualizada denominada de Design Inteligente. Para isso utilizamos os referenciais presentes nas teorias de Marx& Engels e Darwin, especialmente seus métodos de pesquisa que convergem para os três elementos que denominam o materialismo histórico e dialético, os primeiros referentes as relações político-econômico-sociais entre os seres humanos e o segundo referente as relações existentes entre os seres na economia do mundo natural. Para a compreensão das influências na constituição do pretenso sistema de ensino brasileiro foram de suma importância os escritos de Dermeval Saviani, que também é o principal formulador da teoria pedagógica presente no trabalho. Na análise dos projetos de lei em tramitação no poder legislativo foi possível apontar como a potencialidade das teorias que fundamentam a elaboração dos conteúdos referentes às Ciências Naturais e a mediação dos mesmos nas escolas, está se reduzindo a suposta neutralidade, tirando a finalidade prática social dos mesmos. Palavras-chave: Ciências Naturais; Escola; Pedagogia Histórico-Crítica, Doutrina Criacionista. 1 Hugo Rodrigues da Silva, Secretaria de Estado da Educação e Secretaria Municipal de Educação, Maranhão, Brasil, [email protected].

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05. Pedagogia Histórico-Crítica

AS CONTRIBUIÇÕES DA PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA

PARA O ENSINO DAS CIÊNCIAS NATURAIS: TEORIA DA

EVOLUÇÃO X DOUTRINA CRIACIONISTA

Hugo Rodrigues da Silva (SEEDUC e SEMED)1

Resumo: As influências das instituições religiosas, principais veículos de disseminação

da doutrina criacionista, na mediação do conhecimento ligado às Ciências Naturais

esvaziam os conteúdos ministrados nas escolas de Educação Básica, ao considerar o aluno

como um ser desprovido de história e crítica. Esse trabalho aponta as contribuições da

Pedagogia Histórico-Crítica na mediação dos conhecimentos das Ciências Naturais, haja

vista que ela reúne as categorias da historicidade, da materialidade e da totalidade,

também presente nos conhecimentos mediados pelos professores, sobretudo a teoria da

evolução darwiniana que se estrutura com bases científicas, históricas e materiais no

sentido oposto ao da hipótese ou doutrina criacionista e sua forma atualizada denominada

de Design Inteligente. Para isso utilizamos os referenciais presentes nas teorias de Marx&

Engels e Darwin, especialmente seus métodos de pesquisa que convergem para os três

elementos que denominam o materialismo histórico e dialético, os primeiros referentes

as relações político-econômico-sociais entre os seres humanos e o segundo referente as

relações existentes entre os seres na economia do mundo natural. Para a compreensão das

influências na constituição do pretenso sistema de ensino brasileiro foram de suma

importância os escritos de Dermeval Saviani, que também é o principal formulador da

teoria pedagógica presente no trabalho. Na análise dos projetos de lei em tramitação no

poder legislativo foi possível apontar como a potencialidade das teorias que fundamentam

a elaboração dos conteúdos referentes às Ciências Naturais e a mediação dos mesmos nas

escolas, está se reduzindo a suposta neutralidade, tirando a finalidade prática social dos

mesmos.

Palavras-chave: Ciências Naturais; Escola; Pedagogia Histórico-Crítica, Doutrina

Criacionista.

1Hugo Rodrigues da Silva, Secretaria de Estado da Educação e Secretaria Municipal de Educação,

Maranhão, Brasil, [email protected].

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Introdução

A compreensão do mundo natural e do humano como parte dele, é fundamental

para a humanidade viver plenamente as potencialidades que cada ser do mundo natural

apresenta. No decorrer da história do pensamento humano muitos estudiosos se

debruçaram no sentido de empreender esforços para esse fim, no entanto para a

fundamentação e desenvolvimento dessa pesquisa nos pautamos em um modo e método

específico de analisar o mundo que parte da apreensão dos elementos presentes nele e das

múltiplas determinações e relações entre eles para ter a dimensão de sua totalidade.

Utilizamos três categorias fundamentais para a compreensão do nosso objeto de pesquisa:

a historicidade, como elemento que prescinde a existência dos seres do mundo natural,

incluindo os seres humanos e todos os elementos não vivos; a materialidade ou base

material da existência, como pressuposto para a existência dos seres vivos; e a totalidade,

como elemento que engloba todas as determinações, das mais simples às mais complexas,

de todos os seres e dos elementos do universo em que eles vivem.

Como orientação dos estudos, utilizaremos principalmente os escritos de

Marx&Engels, Darwin e Saviani. Com exceção de Saviani, que é contemporâneo ao

nosso trabalho e compartilha do mesmo método de análise dos outros, os referidos

estudiosos fizeram uso do que havia de mais avançado em suas épocas no campo do

conhecimento científico e desenvolveram em suas pesquisas um método peculiar de

análise. Karl Marx e Friedrich Engels formaram uma dupla de pesquisadores, em que

parece ter havido uma divisão de tarefas entre os dois, cabendo a Engels realizar

investigações no campo das ciências naturais, como afirma Lombardi (2010):

Como se sabe, coube à Engels dar à concepção materialista e dialética

um caráter de elaboração não particularizada dos fatos, processos e

relações sociais dos homens, mas também das relações do homem com

a natureza e, enfim, das relações existentes na própria natureza.

(LOMBARDI, 2010, p. 51)

Ambos tinham clareza do vínculo necessário entre o que produziam e a

transformação do mundo real, para isso trataram de se ancorar no que havia de mais

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desenvolvido nas ciências, especialmente nas áreas de contribuição para sua pesquisa,

conforme aponta Lombardi (2010):

[...] Partilho, portanto, do entendimento de que foi a partir da crítica à

filosofia clássica alemã, do socialismo anglo-francês e da economia

política clássica inglesa, que se deu a construção dos fundamentos

ontológicos, gnosiológicos e axiológicos de uma nova concepção que

fazia uma contundente análise crítica do modo capitalista de produção,

ao mesmo tempo em que colocava em relevo o revolucionar da

sociedade em direção a novos padrões societários. (LOMBARDI, 2010,

p.48)

Na escrita de suas obras, Marx e Engels inauguraram um novo modo e método de

fazer ciência, que incorporou as contribuições do materialismo, presente nas ciências

naturais e em filósofos como Ludwig Feuerbach, da dialética, cujos elementos já estavam

presentes em Heráclito, Sócrates e mais desenvolvidos em Hegel, e a análise histórica das

atividades humanas e do modo como os homens se organizaram socialmente para

produzir suas vidas. Assim, a síntese do método produzido e utilizado por eles, mas pouco

exposto em suas obras, foi o que ficou conhecido como materialismo histórico e dialético.

Esse método se constitui como ferramenta para analisar a realidade tal como ela é, com

suas contradições e suas múltiplas determinações, das mais simples às mais complexas.

Uma das poucas referências diretas a esse método se encontra na obra “Contribuição

para a Crítica da Economia Política” (1999), já em “O Capital” (1982), encontra-se a

utilização do método na análise de processos históricos e na exposição da pesquisa sobre

a gênese, desenvolvimento, consolidação e condições de crise do sistema capitalista.

Sobre o método utilizado em sua pesquisa Marx dá um exemplo, afirmando que

para analisar um dado país, do ponto de vista da Economia Política, uma de suas âncoras

teóricas, começamos pela população e outras dimensões mais gerais e ao aprofundar essa

análise chegamos a determinações como estados, cidades, campo, divisão em classes, mas

sem estabelecer relações, essas determinações deixam a população vazia de sentido.

Então aponta:

Assim, se começássemos pela população, teríamos uma representação

caótica do todo, e através de uma determinação mais precisa, através de

uma análise, chegaríamos a conceitos cada vez mais simples; do

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concreto idealizado passaríamos a abstrações cada vez mais tênues até

atingirmos determinações mais simples. Chegados a esse ponto,

teríamos que voltar a fazer a viagem de modo inverso, até dar de novo

com a população, mas desta vez não com uma representação caótica de

um todo, porém com uma rica totalidade de determinações e relações

diversas. (MARX, 1999, p.39)

Para Marx a base material do pensamento está fora dele, haja vista que ele se

constitui como a reprodução ideal do concreto existente no mundo real. Sintetiza tal

compreensão com a seguinte passagem:

O concreto é concreto porque é a síntese de muitas determinações, isto

é, unidade do diverso. Por isso o concreto aparece no pensamento como

o processo da síntese, como resultado, não como ponto de partida

também, ainda que seja o ponto de partida efetivo e, portanto, o ponto

de partida também da intuição e da representação. (MARX, 1999, p.39-

40)

Ao analisar o modo como a humanidade se organizou, especialmente no nosso

tempo, o tempo do capitalismo, Marx e Engels utilizaram a ótica da historicidade da

constituição e formação humana a partir da base material ou da materialidade como

pressuposto da existência e da produção e reprodução cotidiana da vida. E num esforço

para compreender que esses elementos estabeleciam inúmeras relações com o universo

de determinações do mundo, consideraram a dimensão da totalidade no sentido de

aproximar-se da leitura do movimento real da humanidade, tal como ele se apresenta,

diferente do método positivista que isola determinado objeto ou fenômeno das várias

determinações que o determinam para assim analisá-los.

A maior afinidade e curiosidade de Engels em relação ao campo das Ciências

Naturais levou-o a apresentar alguns autores a Marx, dentre eles o inglês Charles Darwin,

que como um típico pesquisador de seu país no seu tempo, analisava meticulosamente o

seu objeto de estudo, com a precisão e rigor que a ciência exige. Assim como a dupla

alemã, Darwin incorporou as contribuições de várias áreas do conhecimento das Ciências

Naturais, dentre elas a Geologia, a Botânica e a Zoologia, aliado aos estudos da economia

das populações de Thomas Malthus. Diferente dos historiadores naturais que o

antecederam, Darwin ao estudar as relações entre as espécies do mundo natural e a luta

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pela vida utilizou a historicidade como elemento fundamental para a compreensão de

suas constituições físicas e do papel que ocupam na Economia Natural, admitindo o

desenvolvimento e evolução das espécies por meio de um mecanismo que ele denominou

de seleção natural, na qual o ambiente seleciona os indivíduos mais adequados ao

conjunto de elementos presentes nele como luminosidade, quantidade de recursos

disponíveis, temperatura, bem como o resultado geral da luta das espécies na busca por

esses recursos e na melhor adequação a esse ambiente.

Essa síntese superava a concepção aristotélica de constituição das espécies, que

admitia uma linha linear no processo de evolução das mesmas em busca da perfeição,

haja vista que o processo evolutivo, segundo Darwin não é unidirecional, ou seja, os

indivíduos das espécies não se aperfeiçoam com o tempo, mas se adequam ao ambiente

em que vivem, podendo inclusive serem extintos, caso o ambiente não selecione suas

características como as mais adequadas para o tempo e o espaço em que vivem. Além da

seleção feita pelo ambiente os próprios seres do mundo natural, realizam suas seleções

sexuais para fins reprodutivos, bem como o homem, como ocupa um papel de destaque

na Economia Natural seleciona as características das espécies que utiliza na sua

alimentação e outras finalidades por meio da domesticação dessas espécies.

A concepção aristotélica influenciou o estudo das espécies vivas até os dias que

antecederam a publicação de um artigo de autoria de Darwin e de um jovem historiador

natural inglês Alfred Russel Wallace. Na sua obra “A origem das espécies por meio da

seleção natural” (2008) Darwin afirma que na luta pela vida as espécies perpetuam suas

características e as relações estabelecidas com os seres da sua e de outras espécies,

conforme suas necessidades e o papel que ocupam na Economia Natural, que é a base

material ou a materialidade que proporciona a sua existência, dando continuidade ao que

era denominado no seu tempo de História Natural.

O norte-americano Stephen Jay Gould, adepto da teoria sintética da evolução, uma

atualização da teoria da evolução das espécies de Darwin, fez o seguinte apontamento na

obra “Darwin e os grandes enigmas da vida” (1999):

Os mais ardentes materialistas do século 19, Marx e Engels, não

tardaram em reconhecer o que Darwin tinha concluído e em explorar

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seu conteúdo radical. Em 1869, Marx escreveu a Engels sobre The

origin, de Darwin:

Embora desenvolvido no rústico estilo inglês, este é o livro que contém

a base, em história natural, para nossa tese.

Mais tarde, Marx ofereceu-se para dedicar o volume 2 de Das Kapital

(O Capital) a Darwin que rejeitou a oferta, dizendo que não gostaria de

sugerir seu apoio a um livro que não tinha lido. (Vi o exemplar de

Darwin do volume 1 em sua biblioteca, em Down House. Tem uma

dedicatória de Marx, que se assina um “admirador sincero” de Darwin.

As páginas não tinham sido cortadas. Darwin não era devotado à língua

alemã.). (GOULD, 1999, p.16)

Numa carta de Darwin escrita a Marx, ele relata sua preocupação com a

compreensão e o impacto de sua pesquisa, como relata Gould (1999):

Parece-me (certo ou errado) que os argumentos diretos contra o

Cristianismo e o Teísmo não têm praticamente efeito algum sobre o

público, e que a liberdade de pensamento será melhor promovida com

o esclarecimento gradativo da compreensão humana que se segue ao

progresso da ciência. Por isso sempre evitei escrever sobre religião,

limitando-me a falar de ciência. (GOULD, 1999, p. 17-18)

Ainda que Darwin houvesse evitado o embate direto com a igreja e os defensores

da hipótese criacionista, ele se viu obrigado a defender a teoria por ele elaborada. Os

desdobramentos práticos desse embate foram expressos ao longo de suas obras.

Como parte de um movimento para produção de conhecimento e reprodução de

tudo o que a humanidade já havia produzido, incluindo as descobertas de Marx&Engels

e Darwin, no campo da educação, emergiu no Brasil nos anos 1970 e 1980 uma teoria

pedagógica intitulada Pedagogia Histórico-Crítica, que tem como principal formulador

Dermeval Saviani. A produção dessa teoria ainda está em andamento, com recentes

descobertas e desdobramentos nas áreas da psicologia histórico-cultural e dos

fundamentos da educação. Ela se fundamenta na categoria de trabalho como princípio

educativo definido por Saviani como:

O ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo

singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo

conjunto dos homens. Assim, o objeto da educação diz respeito, de um

lado, à identificação dos elementos culturais que precisam ser

assimilados pelos indivíduos da espécie humana para que eles se tornem

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humanos, e, de outro lado e, concomitantemente, à descoberta das

formas mais adequadas para atingir esse objetivo. (SAVIANI, 2003,

p.13)

Os movimentos de influxo da pós-graduação nas universidades brasileiras nos

finais dos anos 1970 e inícios dos anos 1980 combinavam com a ascensão do movimento

operário no Brasil, momento em que as principais organizações de trabalhadores

surgiram, como o Partido dos Trabalhadores, a Central Única dos Trabalhadores e o

Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Sem Terra. Essa combinação repercutiu,

no interior das universidades, na produção de uma teoria que instrumentalizasse os

trabalhadores da educação no sentido de mediarem às novas gerações, especialmente aos

filhos da classe trabalhadora e demais desfavorecidos, todo o conhecimento já elaborado

pela humanidade, a fim de criar as condições para a transformação social rumo a

emancipação humana, que segundo a teoria só será alcançada numa sociedade sob outras

bases de produção da existência humana.

Para atingir esse objetivo a Pedagogia Histórico-Crítica entende que o método

adotado deve ser como o descrito a seguir por Saviani (1995):

O movimento que vai da síncrese (“a visão caótica do todo”) à síntese

(“uma rica totalidade de determinações e de relações numerosas”), pela

mediação da análise (“as abstrações e determinações mais simples”)

constitui uma orientação segura tanto para o processo de descoberta de

novos conhecimentos (o método científico) como para o processo de

transmissão-assimilação de conhecimento (o método de ensino)

(SAVIANI, 1995, p. 83)

A coincidência do modus operandi dos dois métodos (o científico e o método de

ensino) revela a intrínseca relação entre o processo de descoberta de novos conhecimentos

e o processo de transmissão-assimilação do conhecimento, considerando que ambos

partem do empírico e pela mediação da análise, alcançam o concreto pensado. A

Pedagogia Histórico-Crítica assume a defesa da escola pública, universal e gratuita e o

compromisso com o processo ensino-aprendizagem das camadas populares, tendo em

vista que esse segmento foi historicamente discriminado e alienado da apropriação do

saber. Nesse sentido, consideramos que a Pedagogia Histórico-Crítica é a teoria

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pedagógica com maior potencialidade para difundir o conhecimento elaborado, uma vez

que ela se propõe a articular num todo as diversas dimensões fragmentadas.

Propõe, a luz da categoria da historicidade que a produção do conhecimento

humano é um resultado de trabalho coletivo, social e histórico que tornou e ainda torna o

homem um ser ao mesmo tempo singular e genérico, o único capaz de reproduzir

idealmente todo o mundo a sua volta, bem como de transformá-lo num lugar que

proporcione sua perpetuação enquanto espécie, constituindo-se num dos pólos de uma

relação triádica com a natureza e o conhecimento, produzindo a tecnologia, a filosofia, a

ciência e as artes.

Essa teoria pedagógica se propõe explicitar a relação orgânica entre o

conhecimento e a sociedade que o produziu, visto que esse conhecimento, como toda

produção humana é histórico e carrega na sua constituição parte do espaço e do tempo

em que foi produzido, logo, assim como ele foi produzido socialmente, deve ser

apropriado socialmente, bem como seus desdobramentos tecnológicos e aplicações.

Nesse sentido, é possível inferir que a Pedagogia Histórico-Crítica é seguramente a teoria

pedagógica que possibilita a mediação dos conhecimentos que buscam a compreensão do

mundo natural na perspectiva da totalidade, sem cair no idealismo de defender que a

simples mudança do trabalho educativo em sala de aula, por si só, seja uma solução para

os dilemas educacionais, ao contrário, tais dilemas são decorrência intrínseca da

sociedade que vivemos. A mudança de que se trata é mais ampla e atinge o conjunto das

instituições sociais e a própria base material de produção da existência humana, ou a

assim denominada materialidade, nas suas dimensões objetiva e subjetiva.

Os estudos e escritos desses quatro cientistas, que exerceram e continuam

exercendo grande influência no campo científico nos dias atuais, só foi possível pelas

condições de desenvolvimento das ciências sociais e naturais em suas épocas. O número

de referências e citações presentes em suas obras mostra o caráter coletivo da produção

do pensamento humano em todos os tempos históricos, que carrega em cada trabalho os

traços de identidade do tempo e espaço em que foi produzido.

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Metodologia da pesquisa

O mundo natural e a especificidade dele, o mundo criado pelos homens, é rico de

elementos e fenômenos. A medida em que os homens buscam compreendê-los, inúmeras

questões são feitas. Na tentativa de respondê-las, eles analisam parte dessa realidade,

determinando objetos de análise e/ou pesquisa. A análise de qualquer objeto de pesquisa

requer a adoção de um método com categorias que articulam os elementos presentes nele.

O presente trabalho adota o método do materialismo histórico e dialético que denomina

de determinações os elementos presentes no objeto de pesquisa. Esses, por sua vez, têm

intrínseca relação com o universo em que ele está inserido e utiliza categorias para melhor

compreender o objeto e o movimento real e concreto da realidade onde ele se manifesta.

Dentre as categorias de análise, a totalidade é utilizada para relacionar as

múltiplas determinações presentes no objeto, bem como as relações dele com o mundo

real. Nesse mundo, as espécies do mundo natural satisfazem suas necessidades e os

homens, especificamente, são seres capazes de produzir e reproduzir sua existência

cotidiana com uma base real e material: a satisfação da fome, da sede e proteção ao frio

e às intempéries do ambiente, da necessidade sexual e de reprodução. O objeto de

pesquisa para o método apontado tem essa base material ou a denominada materialidade

como um dos pressupostos de análise. Os homens organizados em sociedade descobrem

as melhores formas de satisfazer suas necessidades e as transmitem para as novas

gerações num processo histórico que também faz parte da produção de sua existência e

perpetuação enquanto espécie, por isso outra categoria fundamental para análise é a

historicidade, para não perder de vista a continuidade do processo de formação das

espécies naturais e da espécie humana em particular ao longo da história de sua existência.

O presente trabalho analisou a maneira como o objeto das Ciências Naturais é

mediado nas escolas, por meio do cotidiano do trabalho do autor em escolas da educação

básica, bem como de um levantamento de trabalhos de análise dos livros didáticos das

disciplinas de Ensino Religioso, a fim de verificar como os referidos materiais didáticos

abordam temas que se constituem como objeto de estudo típicos das Ciência Naturais. A

partir de evidências históricas e levantamento bibliográfico, é demonstrada a importância

da ligação da teoria darwiniana com a marxiana, como sínteses de estudos que utilizaram

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um método e categorias de análise em comum para apreender e explicar seus objetos de

estudo e pesquisa, bem como a utilização da teoria da Pedagogia Histórico-Crítica como

orientação na mediação desses conhecimentos para as novas gerações.

Escola, Ciências Naturais e Ensino Religioso no Brasil

O ensino das Ciências Naturais, especialmente os conhecimentos referentes à área

da Biologia, mediados historicamente nas escolas, tem sofrido bastante influência da

visão de mundo pautada no criacionismo, disseminada sobretudo pelas instituições

religiosas, que tem articulado os ensinamentos presentes nas escrituras sagradas,

mesclando as passagens bíblicas com as recentes descobertas científicas, algo que nos

Estados Unidos e Reino Unido foi denominado de Design Inteligente. Essa nova forma

de apresentar a hipótese ou, como alguns de seus adeptos afirmam, doutrina criacionista,

que tem milênios de elaboração, destaca que há uma intencionalidade dirigida na

evolução e desenvolvimento das espécies naturais pautadas no seguinte pressuposto:

A forma de informação que observamos é produzida por uma ação

inteligente, e assim indica seguramente o design, que é geralmente

verificado por características como a “complexidade especificada” ou a

“informação complexa e especificada” (ICE). Um objeto ou evento é

complexo se ele for improvável, e especificado se corresponder a algum

padrão independente. (EBERLIN, 2014, p. 1)2

Ainda que utilizando argumentos pretensamente científicos o pressuposto se

fundamenta numa regra geral de funcionamento dos organismos para determinar suas

características, essas, por sua vez, se manifestariam como parte de uma “complexidade

especificada”. Ora, o que é complexo, constitui-se por um sistema de elementos que se

relacionam interna e externamente com o universo, reduzir a determinação de

complexidade especificada à qualidade de ser improvável, não o define, apenas o

qualifica. Além disso, o caráter improvável da complexidade dos seres ou dos eventos

ocorridos nele ou fora dele, depõem contra a afirmação primeira da hipótese criacionista,

2 O link para acesso a essa informação encontra-se aqui http://www.criacionismo.com.br/2014/10/o-que-e-

teoria-do-design-inteligente.html

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que afirma ser o mundo um produto da criação de um ser com capacidades e habilidades

superiores aos seres humanos. Tudo no mundo, portanto, seria criado com uma

intencionalidade, sendo por isso previsível e não improvável.

Percebendo o avanço e a institucionalização desse movimento, um grupo de 30

cientistas organizou um manifesto reivindicando a mediação dos conhecimentos da teoria

científica da evolução biológica das espécies para crianças desde os cinco anos de idade

(O GLOBO, 2011)3. Isso possibilitaria que as novas gerações, desde a mais tenra idade

compreendessem a natureza, o mundo a sua volta e eles mesmos sob uma ótica científica,

afim de evitar o “pensamento mágico” disseminado pela doutrina criacionista, que mais

encanta e divinamente ilude os seus leitores e adeptos do que explica os fenômenos

naturais.

No Brasil, a forma como os conhecimentos referentes a origem do universo e da

vida são abordados tem forte influência da doutrina criacionista, sobretudo num contexto

em que a disciplina de Ensino Religioso é obrigatória e a matrícula dos alunos é

facultativa de acordo com o artigo 210 da Constituição Federal Brasileira de 1988, a lei

9.394/96 (a LDB) e a alteração ocorrida em 1997, no artigo 33 dessa lei. Segundo Diniz

et.al. (2010):

[...] o artigo 33 da LDB, em desarmonia com o conjunto das legislações

sobre o ensino fundamental que prevê diretrizes curriculares nacionais

para a educação básica, permite que o conteúdo do ensino religioso seja

definido pelos sistemas de ensino sem que haja formas de regulação ou

acompanhamento pelo Ministério da Educação. Em nenhuma outra

disciplina da educação básica o Estado abriu mão de seu poder

fiscalizador ou de definições de conteúdo. (DINIZ et.al, 2010, p. 18)

Como expressão do processo ainda em andamento de escolarização do ensino

religioso, já tramita no legislativo federal o Projeto de Lei 309/2011, de autoria do

deputado federal e pastor Marcos Feliciano, que busca incluir “o ensino da doutrina

criacionista”, como afirma o pastor, na estrutura curricular das escolas de Educação

Básica4. Além desse PL, há também os de nº7180/2014, 7181/2014 e 867/2015 que

3Dentre os cientistas que assinam o manifesto estão Richard Dawkins e David Attenborough. Para consultar

a notícia acesse http://oglobo.globo.com/sociedade/ciencia/um-manifesto-contra-criacionismo-2696439. 4Para consultar o PL309/2011 acesse:

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tramitam no Congresso Nacional e referenciam-se nos postulados do Movimento

Associação Escola Sem Partido, criado em 2004 e transformado em Associação em 2015,

inspirada no movimento norte americano de pais de alunos intitulado No Indoctrination

(Sem Doutrinação), propõem alterações no currículo escolar e a instituição do Programa

Escola Sem Partido (PESP) mediante alteração da LDB.

Acrescido a estes, os PL 1411/2015 e 2731/2015 referem-se à criação de leis de

disciplinamento e punição dos docentes que praticarem ações consideradas por seus

autores como “doutrinação ideológica”, segundo o Sindicato Nacional dos Docente de

Ensino Superior (ANDES-SN, 2016, p. 15). Esses PLs pretendem alterar a LDB e os

PCN´s no sentido de dar precedência aos valores de ordem familiar sobre a educação

escolar, respeitando a convicção dos alunos, pais e responsáveis e proibir a

transversalidade ou similares no currículo escolar, prevendo pena de detenção de três

meses a um ano e multa, conforme aponta o ANDES-SN.

De acordo com a Cartilha Projeto do Capital para a educação: análise e ações

para a luta, o ANDES-SN afirma:

O substitutivo ao PL nº 7.180/14 propõe em seu artigo primeiro a

inclusão do Programa Escola Sem Partido nas diretrizes e bases da Lei

9.394/96 e, no artigo 2º, estabelece novos princípios para a estruturação

da educação nacional, quais sejam: “I- neutralidade política, ideológica

e religiosa do Estado; II- pluralismo de ideias no ambiente acadêmico;

III- liberdade de consciência e de crença; IV- reconhecimento da

vulnerabilidade do educando como parte mais fraca na relação de

aprendizado; V- educação e informação dos estudantes quanto aos

direitos compreendidos em sua liberdade de consciência e de crença;

VI- direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que

esteja de acordo com suas próprias convicções. (ANDES-SN, 2016,

p.16)

E argumenta que:

Tais argumentos expressam a forte perspectiva conservadora do PL,

uma vez que compreendemos como inaceitável a defesa da neutralidade

do conhecimento e da ausência de componentes político-ideológicos no

exercício do trabalho docente. A análise contida na justificativa do PL

http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1286780&filename=PL+8099/

2014.

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desconsidera os determinantes históricos, sociais, culturais e

ideológicos que perpassam a produção e transmissão do conhecimento,

bem como as contradições sociais concretas que se manifestam nas

diferenças de classe, gênero, etnia, etc. Nega-se, também, a educação

como práxis humana e como um ato político e a escola como um espaço

de disputa de projetos, de construção de potencialidades, de

conhecimentos críticos e do exercício da cidadania das crianças e

adolescentes. Assim, coloca-se o falso dilema de uma educação sem

ideologia, residindo aí as suas fragilidades e seu anacronismo.

(ANDES-SN, 2016, p.16)

Ainda na análise desse PL, observa-se o tratamento dado às instituições

confessionais e particulares, sendo permitido a elas explicitar em suas práticas educativas

orientações de concepções, de princípios e valores morais, desde que haja ciência e o

consentimento expressos dos pais ou responsáveis pelos estudantes.

Se esses PLs forem aprovados, a mediação dos conhecimentos das Ciências

Naturais, e mais especificamente aqueles referentes à Biologia Evolutiva, poderá ser feita

a partir da perspectiva do criacionismo, agora com amparo legal. Sobre esse tema DINIZ

et. al. (2010) afirma:

[...] Assim como as questões relativas à origem da vida e a controvérsia

entre criacionismo e evolucionismo, a sexualidade é um tema cuja

indefinição de conteúdo é o ponto de partida. As diretrizes deveriam ser

claras sobre como o ensino religioso deve discutí-la: se em uma

perspectiva laica, tal como previsto nos Parâmetros Curriculares

Nacionais para os temas transversais, ou se como uma questão moral

sob a ótica das confissões religiosas. (DINIZ et al, 2010, p. 73)

Assim ao mediar o eixo interdisciplinar referente à Educação Sexual e

Sexualidade, previsto nos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio (PCNEM,

1998), tanto a ciência, produção humana elaborada histórica e coletivamente,

fundamentada na elaboração de problemas, hipóteses, comprovações materiais, teorias e

modelos, quanto a religião, produção também humana, fundamentada em revelações

divinas oriundas de criaturas divinas e divindades não humanas, estariam dando suas

contribuições, agradando todos os públicos, mas empobrecendo a escola que deixaria de

cumprir o seu papel específico, que segundo Saviani (2003) é assegurar a cada aluno, por

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meio da apropriação do conhecimento, a sua humanização, assimilando os elementos da

cultura sistematizada, ou seja, as ciências, a filosofia, as artes.

A escola foi criada historicamente como o lugar onde se realizaria por excelência

a mediação do conhecimento elaborado pelo conjunto da humanidade, e a forma mais

elaborada que esse conhecimento é mediado, expresso na leitura e compreensão do

mundo real e especialmente o natural, é a ciência.

Os materiais didáticos da disciplina de Ensino Religioso utilizam estratégias para

aliar religião à ciência ou subjugar a segunda à primeira, na mediação dos conteúdos

coincidentes, como afirma Diniz et. al. (2010):

Os livros didáticos utilizam três estratégias argumentativas: a primeira

que se baseia na ciência e na religião como um ato de fé, a segunda que

se fundamenta na incerteza das descobertas científicas e a terceira que

tenta conciliar ciência e religião, sendo a primeira subjugada à ética e

valores da segunda. (DINIZ et al, 2010, p. 77)

Além disso, o resultado da avaliação de livros didáticos feita por Diniz et.al.

(2010) mostraram que há expressões de confessionalidade e etnocentrismo cristãos,

discriminação contra religiões afro-brasileiras, indígenas e exclusões sociais das pessoas

com deficiência, denotando o caráter seletivo dos conteúdos.

No que tange a forma como o Ensino Religioso é ministrado no Brasil, Diniz et.al.

(2010) aponta que o Estado brasileiro pauta-se numa suposta anterioridade do fato

religioso sobre os demais fatos sociais, delegando superioridade para as autoridades

religiosas definirem o modo como a disciplina deve ser operacionalizada. Essa disciplina

não conta com currículo mínimo nas escolas públicas, a autora afirma que na ordem

pública da sociedade brasileira seria um saber para sábios e não para especialistas em

história, arte, música ou sociologia da religião.

Diniz et.al. (2010) classificou o ensino religioso em 3 categorias analíticas em

território nacional, presentes num glossário:

a) ensino confessional: o objeto do ensino religioso é a promoção de

uma ou mais confissões religiosas. O ensino religioso é clerical e

de preferência ministrado por um representante de comunidades

religiosas. É o caso de Acre, Bahia, Ceará e Rio de Janeiro;

15

b) ensino interconfessional: o objetivo do ensino religioso é a

promoção de valores e práticas religiosas em um consenso

sobreposto em torno de algumas religiões hegemônicas à sociedade

brasileira. É passível de ser ministrado por representantes de

comunidades religiosas ou por professores sem filiação religiosa

declarada. É o caso de Alagoas, Amapá, Amazonas, Distrito

Federal, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Mato

Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Paraná, Pernambuco,

Piauí, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Rondônia,

Roraima, Santa Catarina, Sergipe e Tocantins;

c) ensino de história das religiões: o objetivo do ensino religioso é

instruir sobre a história das religiões, assumindo a religião como

um fenômeno sociológico das culturas. O ensino religioso é secular,

devendo ser ministrado por professores de sociologia, filosofia e ou

história. É o caso de São Paulo. (DINIZ et al, 2010, p. 45-46)

Isso demonstra que diferente das outras disciplinas do currículo escolar o ensino

religioso não apresenta um conjunto de conteúdos que oriente para o estudo e

compreensão do seu objeto de estudo, que parece não estar bem definido para a disciplina,

haja vista que ela é ministrada de diferentes formas no território brasileiro. Das três

categorias analíticas apenas o ensino de história das religiões parece contar com um objeto

de estudo bem definido com amparo nos métodos da história e nas manifestações,

costumes e valores das denominações religiosas de todo o mundo, e ela está presente

somente num estado do país, São Paulo.

Influência das instituições religiosas na constituição do sistema de ensino brasileiro

O sistema de ensino brasileiro foi primeiramente organizado pelas instituições

religiosas, especialmente as de orientação católica com base na ordem dos jesuítas,

segundo Saviani:

A primeira fase da educação jesuítica foi marcada pelo plano de

instrução elaborado por Nóbrega. O plano iniciava-se com o

aprendizado do português (para os indígenas); prosseguia com a

doutrina cristã, a escola de ler e escrever e, opcionalmente, canto

orfeônico e música instrumental; e culminava, de um lado, com o

aprendizado profissional e agrícola e, de outro lado, com a gramática

latina para aqueles que se destinavam a realização de estudos superiores

na Europa (Universidade de Coimbra). Esse plano não deixava de

16

conter uma preocupação realista, procurando levar em conta as

condições específicas da colônia. Contudo, sua aplicação foi precária,

tendo cedo encontrado oposição no interior da Ordem jesuítica, sendo

finalmente suplantado pelo plano geral de estudos organizado pela

Companhia de Jesus e consubstanciado no Ratio Studiorum.

(SAVIANI, 2007, p.43)

Na gênese da organização do sistema de ensino brasileiro a ordem jesuítica

impunha a religião, a língua, os valores e costumes dos colonos portugueses,

desvalorizando assim a cultura e toda a organização social existente antes da chegada dos

portugueses em terras brasileiras. Para Saviani:

Assim se Marx (1968, pp.90-91, nota 33;1985, p.115) pôde dizer que,

para os teólogos, a sua própria religião é considerada obra de Deus, ao

passo que a religião dos outros é obra dos homens, para os jesuítas a

religião católica era considerada obra de Deus, enquanto a religião dos

índios e dos negros vindos da África eram obra do demônio. Eis como

se cumpriu, pela catequese e pela instrução, o processo de aculturação

da população colonial nas tradições e costumes do colonizador. As

ideias pedagógicas postas em prática por Nóbrega e Anchieta,

secundados por Leonardo Nunes, Antonio Pires, Azpilcueta Navarro,

Diogo Jácome, Vicente Rijo Rodrigues, Manuel de Paiva, Afonso Braz,

Francisco Pires, Salvador Rodrigues, Lourenço Braz, Ambrósio Pires,

Gregório Serrão, Antonio Blasques, João Gonçalves e Pero Correia

configuraram uma verdadeira pedagogia brasílica, isto é uma pedagogia

formulada e praticada sob medida para as condições encontradas pelos

jesuítas nas ocidentais terras descobertas pelos portugueses.

(SAVIANI, 2007, p.47)

Na história de constituição do Brasil as elites, sejam elas de além mar, sejam elas

oriundas do próprio país, impuseram seus privilégios e interesses por meio de lutas

religiosas na base da intolerância, desrespeito e imposição de credos sobre os negros

escravizados, índios reduzidos e brancos conflitantes, como afirma Cury (2004).

De acordo com o mesmo autor:

De um país oficialmente católico pela Constituição Imperial, nos

fizemos laicos pela Carta Magna de 1891 com o reconhecimento da

liberdade de religião e de expressão religiosa, vedando-se ao Estado o

estabelecimento de cultos, sua subvenção ou formas de aliança. Essa

primeira Constituição Republicana, ao mesmo tempo em que reconhece

17

a mais ampla liberdade de cultos, pune também a ofensa a estes como

crimes contra o sentimento religioso das pessoas. O ensino oficial, em

qualquer nível de governo e da escolarização, tornou-se laico, ao

contrário do Império em que a obrigatoriedade do ensino religioso se

fazia presente. (CURY, 2004, p.188-189)

As instituições religiosas, no entanto, especialmente a igreja católica se

empenharam em reestabelecer a disciplina de Ensino Religioso nas escolas no âmbito dos

estados e em âmbito nacional nas reformas constitucionais de 1926, 1931 e 1934, quando

a disciplina foi considerada obrigatória com matrícula facultativa e assim continua até os

dias atuais. No entanto tal permanência não se deu sem conflitos, de um lado estavam as

instituições religiosas e de outro seus críticos dentro e fora do parlamento.

De um regime imperial em que o Estado contava com uma religião oficial e a

igreja católica como uma instituição que legitimava os poderes do imperador, passamos

ao regime republicano que no seu nascedouro se identificava com a laicidade do Estado

e de seu sistema de ensino, mas devido às pressões da igreja católica e com seu prestígio

entre os membros dos poderes legislativo e executivo, retomou o ensino religioso nas

instituições de ensino, constando na Constituição Federal Brasileira e na Lei de Diretrizes

e Bases da Educação Nacional (nº9.394/96).

Ensino de Biologia Evolutiva e as Contribuições da Pedagogia

Histórico-Crítica

Este trabalho busca preliminarmente discutir as influências da concepção de

mundo criacionista nas escolas de Educação Básica e as contribuições da Pedagogia

Histórico-Crítica no processo ensino-aprendizagem das Ciências Naturais, especialmente

os conhecimentos referentes à Biologia Evolutiva. A atenção especial dada à Biologia

Evolutiva se justifica por ela prescindir dos conhecimentos referentes às demais áreas da

biologia, da química, da física e da matemática e por se tratar do estudo científico acerca

da transformação dos ancestrais das espécies nas espécies atuais, incluindo o homem.

No que diz respeito ao processo ensino-aprendizagem de Biologia Evolutiva, de

acordo com Almeida e Falcão (2005) a Teoria Sintética da Evolução (que é o principal

18

conteúdo da Biologia Evolutiva) é considerada a teoria mais unificadora dentre todas as

teorias biológicas, sendo responsável pelo surgimento da Biologia com o seu estatuto e

paradigmas unificadores como ciência. Considerando o caráter articulador da Biologia

Evolutiva, a escolha pela Pedagogia Histórico-Crítica se deu por se constituir numa teoria

pedagógica de fundamentação teórica marxista que trata o conhecimento na perspectiva

da totalidade. Compreende a educação como uma “atividade mediadora no seio da prática

social global”.

Objetivamos com o trabalho didático-pedagógico proposto demonstrar a

viabilidade do método de ensino da Pedagogia Histórico-Crítica no sentido de superar o

esvaziamento de conhecimento vivido pela escola pública que resulta, entre outros

aspectos, na desqualificação do trabalho de professores, subtraindo-lhes o sentido

histórico de sua atividade educativa.

Tais métodos situar-se-ão para além dos métodos tradicionais e novos,

superando por incorporação as contribuições de uns e de outros. Serão

métodos que estimularão a atividade e iniciativa dos alunos sem abrir

mão, porém, da iniciativa do professor; favorecerão o diálogo dos

alunos entre si e com o professor, mas sem deixar de valorizar o

diálogo com a cultura acumulada historicamente; levarão em conta os

interesses dos alunos, os ritmos de aprendizagem e o desenvolvimento

psicológico, mas sem perder de vista a sistematização lógica dos

conhecimentos, sua ordenação e gradação para efeitos do processo de

transmissão-assimilação dos conteúdos cognitivos (SAVIANI, 1995,

p. 69).

Esse diagnóstico é de fundamental importância para que o professor identifique o

estágio de desenvolvimento em que se encontram os alunos, de modo a não incorrer no

erro de organizar o ensino a revelia do que ele já sabe, por um lado, e por outro do que

ele ainda não sabe, mas é capaz de aprender mediante seu trabalho pedagógico.

No bojo do nosso trabalho é possível incorporar tal contribuição no trato dos

conteúdos abordados nas aulas de Biologia Evolutiva, uma vez que é muito relevante que

o professor saiba se o estudante domina, por exemplo, o conceito de seleção natural, base

para o entendimento da teoria evolutiva de Darwin.

Para a apreensão dos conteúdos na perspectiva da totalidade faz-se necessária a

adoção de textos clássicos, que geralmente é visto como algo impossível de ser ensinado

19

em nível médio, resguardando seu uso a etapas posteriores da formação do jovem. Em

contrapartida, esse trabalho ressalta a importância da adoção dos clássicos na escola, não

como um acessório dos livros didáticos, mas como um instrumento de mediação direta

do conhecimento, por estes trazerem um conhecimento de primeira mão (guardadas as

dificuldades oriundas das traduções), diferentemente dos “manuais didáticos” que são

uma síntese rebaixada da sistematização do saber. Portanto, não defendemos aqui a

simples inserção no livro didático de biografias dos autores clássicos (a estilo de vida e

obra, comum em vários livros de Ensino Médio), sem um estudo mais meticuloso de suas

contribuições teóricas, pelo contato direto com suas fontes originais, ou ainda pelo

contato com estudos mais elaborados de outros autores sobre as obras clássicas.

Esse trabalho resultou das inquietações da minha experiência docente, vivenciada

em escolas de ensino médio da rede pública e privada. Inquietações essas decorrentes da

abordagem dos conhecimentos de Química (muito embora não estejam relacionados de

forma direta com o nosso objeto de trabalho) e Biologia que, seguindo a tradição

positivista, de compartimentação do saber, “venda nosso olhar” para a perspectiva da

totalidade, ponto de partida e de chegada da Pedagogia Histórico-Crítica.

Com isso, o trabalho pretende, mesmo modestamente, considerando as limitações

inerentes ao autor, apontar uma perspectiva teórico-prática cuja ênfase é o humano, visto

como ser capaz de desenvolver suas potencialidades, “apropriando-se do seu ser como

um ‘homem total’” (KONDER, 2007, p. 21). A compreensão da teoria que alicerça a

prática do professor é uma necessidade que antecede sua utilização, pois toda prática é

uma tomada de posição, uma vez que não é neutra, mas está sempre fundamentada

teoricamente, refletindo uma concepção de homem, de educação e de sociedade.

A Pedagogia Histórico-Crítica assume a defesa da escola pública, universal e

gratuita e o compromisso com o processo ensino-aprendizagem das camadas populares,

tendo em vista que esse segmento foi historicamente discriminado e alienado da

apropriação do saber. Nesse sentido, a importância da pesquisa está pautada na

necessidade da investigação do processo histórico de formação dos professores de

Ciências e Biologia, bem como da estruturação dos conhecimentos transmitidos nas

escolas tendo como eixos as categorias da historicidade, materialidade e totalidade,

20

relacionando áreas como as ciências sociais com as ciências naturais para que as novas

gerações compreendam o mundo e a si mesmos como sujeitos da transformação social.

Considerações Finais

As influências das instituições religiosas e os elementos que constituem o sistema

de ensino brasileiro corroboram para a resistência em mediar alguns temas ligados as

Ciências Naturais, como o estudo da origem do universo e da vida no nosso planeta, a

Sexualidade, a Educação Sexual e a teoria científica da evolução das espécies. Essa

influência não está presente apenas nas escolas, mas também nas inúmeras igrejas de

diversas denominações religiosas. Estas, por sua vez, crescem a passos largos,

especialmente nas periferias das cidades, onde as condições materiais de vida da

população são mais precárias e se constituem em terreno fértil para disseminação de suas

doutrinas.

Os projetos de lei em tramitação no poder legislativo tem em comum o objetivo

de restringir a transmissão dos conteúdos de modo pretensamente neutro, esvaziando-os

de toda a potencialidade transformadora. Em suma, isso significa neutralizar toda e

qualquer teoria que carregue essa potencialidade na sua elaboração e no uso de seus

métodos, como a teoria marxiana, darwiniana e a Pedagogia Histórico-Crítica.

Nesse sentido, é de suma importância o papel dos professores enquanto

mediadores do conhecimento humano elaborado às novas gerações, especialmente

àquelas oriundas das camadas sociais mais populares, a fim de que os indivíduos se

tornem agentes da transformação social e, a partir da mudança da base material da

existência humana, vivam na plenitude as potencialidade típicas da nossa espécie. Para

isso, faz-se necessário a tomada de posição político-pedagógica por parte desses

profissionais para que desenvolvam um trabalho com base numa fundamentação teórica

e com uma finalidade teórico-prática social.

Por entendermos que os conhecimentos das Ciências Naturais são tão fundantes

para a compreensão do mundo como são os das demais ciências elaboradas pela

humanidade ao longo da história, é que fazemos o uso da teoria pedagógica Histórico-

Crítica que articula os elementos presentes na realidade empírica dos alunos ao conjunto

21

de conteúdos elaborados nas escolas, evidenciando a finalidade social de cada um deles.

Sendo assim a compreensão do mundo natural nas escolas (por meio do método de

ensino) se dá do mesmo modo em que são feitas e expostas as descobertas científico-

tecnológicas (por meio do método científico). Para demonstrar tal afirmação podemos

tomar como ponto de partida os elementos presentes na natureza (a água, os rios, as

espécies vivas, o ar, as rochas, a vegetação, os fenômenos naturais e as relações entre as

espécies do mundo natural), para identificar e compreender as determinações presentes

em cada um desses elementos (a constituição molecular da água, a composição e as

relações tróficas presentes nos rios, os tecidos, sistemas e forma de organização presente

em cada organismo vivo, o ciclo do ar, da água, a composição das rochas e dos tipos de

vegetação, as forças químicas e físicas que atuam nos fenômenos naturais e as relações

ecológicas e evolutivas presentes entre as espécies do mundo natural), e pela mediação

das teorias, modelos e todos os desdobramentos elaborados e sistematizados nas ciências

da Biologia, da Química, da Física, apontar uma finalidade racional e socialmente

equilibrada dos recursos naturais e das riquezas produzidas por eles, com a mediação da

ação humana.

Esse movimento realizado pelos professores e alunos, típico do trabalho educativo

tal como o entendemos, pode levar as novas gerações a compreender no seu processo de

desenvolvimento que a produção da vida e do mundo, tal qual o conhecemos, é fruto da

ação coletiva humana, acumulada historicamente e não da criação mágica de divindades

e entes externos.

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