As (des) venturas do jovem Werther

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AS (DES) VENTURAS DO JOVEM WERTHER

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Werther e Charlotte conheceram-se no Conservatório. Ele já em um estágio mais avançado, aperfeiçoava-se no violino sonhando um dia pertencer a alguma grande orquestra e, um dia quem sabe, tornar-se spala. Ela, embora talentosa, não tinha maiores aspirações de tocar em público sua clarineta, preferindo o fazer para deleite próprio ou em raras ocasiões em que o conservatório organizava pequenas audições para seus alunos…

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AS (DES) VENTURAS DO

JOVEM WERTHER

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O Theatro estava lotado. Em meio da cacofonia dos diversos instrumentos afinando seus instrumentos ou ensaiando pequenos trechos mais complicados da partitura, o publico conversava animadamente. O camarote nobre exibia já o prefeito e os três vetustos componentes do “conselho” da Orquestra Sinfônica de Augusta.

As luzes foram lentamente esmaecendo, até que apenas o palco ficou iluminado. O burburinho dos instrumentos cessou e o Spala levantou-se e tocou por diversas vezes o lá fundamental. Em seguida os instrumentos procuraram sua afinação tendo aquela nota como referencia.

Sorridente, em passos largos e peito estufado entrou o maestro. Com uma mesura agradeceu os aplausos e dirigindo-se ao camarote nobre saudou respeitosamente seus ocupantes.

As tão conhecidas notas iniciais (la, la, la, fa), continham na ultima (fá), uma fermata, significando que sua duração poderia ser estendida para aumentar sua dramaticidade, recurso de que Albert gostava e abusava.Mas,surpreendentemente atacou imediatamente a outra seqüência (sol, sol, sol, mi) e a partir de então começou a reger de forma estranha. Em movimentos desencontrados passou a acelerar o andamento de forma quase histérica até desconcertar completamente os músicos que já não podiam acompanhar a velocidade imposta. No compasso 23 quando um estrondoso “tutti” deveria fechar a apresentação do tema, restava uma confusão de sons desconexos.

Foi quando o maestro, largando a batuta retirou-se abruptamente do pódio.

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Werther e Charlotte conheceram-se no Conservatório.

Ele já em um estágio mais avançado, aperfeiçoava-se no violino sonhando um dia pertencer á alguma grande orquestra e, um dia quem sabe, tornar-se spala. O Spala (vem de espádua, pois se situa logo á esquerda do maestro, como se fora seu ombro) é a peça mais importante da orquestra depois do regente. A ele cabe, além de tocar ostensivamente o La fundamental, para afinação de todos os instrumentos, exercer uma certa liderança não só entre as cordas, que diretamente comanda mas em toda a orquestra.

Ela, embora talentosa, não tinha maiores aspirações de tocar em publico sua clarineta, preferindo o fazer para deleite próprio ou em raras ocasiões em que o conservatório organizava pequenas audições para seus alunos.

Werther era filho adotivo, e sabia disto. Sua mãe, acometida prematuramente de uma doença degenerativa, não pudera ter filhos. Mas seu pai conseguiu a duras penas adotar um menino que foi presenteado á esposa já no seu leito de morte. Apaixonado por Goethe batizou-o com o nome de Werther

Seu pai,embora seco no trato, procurou sempre lhe propiciar a melhor educação e não o desencorajou a procurar a carreira de musico muito embora preferisse que ele cursasse algo mais tangível, como direito ou engenharia. Quando Werther lhe apresentou Charlotte, ele a acolheu reservada porem carinhosamente e emocionou-se no dia em que casaram.

Cabia agora á Werther prover o sustento do casal, pois o Conservatório representava somente despesas. Foi informado que a orquestra de Augusta, no interior do estado, estava recrutando músicos. Para lá viajou e após alguns testes foi aceito no naipe dos primeiros violinos.

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A orquestra fora fundada, juntamente com o Theatro no inicio do século por um grupo de barões do café, aficionados pela ópera, sobretudo (e exclusivamente) italiana. Músicos e cantores eram importados da Itália, proporcionando aos fundadores versões aceitáveis da Traviatta, Rigoletto e até mesmo uma temerária apresentação da Aida, na qual a grandiloqüência dramática do “Ritorna Vincitor” em quase nada foi empanada pelo odor das necessidades dos burricos figurantes.

Com o tempo e o declínio da economia cafeeira, a orquestra passou a receber subsídios da Prefeitura, sem prejuízo, entretanto do controle de seus fundadores, muitos deles já falecidos, mas representados por apenas três sobreviventes, obviamente idosos, que compunham o que chamavam de “Conselho Tutelar”, cuja prerrogativa era a de contratar ou demitir qualquer membro da orquestra, inclusive o regente

A orquestra passara a apresentar uns poucos concertos anuais. Embora sua qualidade continuasse boa, fruto de toda uma geração de professores e alunos, o titular, Senhor Leopoldo - cujo verdadeiro nome era Oscar, Leopoldo seria homenagem ao Stokovski ou talvez ao Miguez - já não tinha energia e criatividade para ousar repertórios mais audaciosos do que as valsas de Strauss ou a Protofonia do Guarani.

Mesmo assim, a orquestra constituía o orgulho da cidade, quase um monumento que devia ser preservado. Naquele ano, coincidentemente aniversário dos quatrocentos anos da fundação da cidade e cinqüenta anos da criação da orquestra, estava programado um grande concerto de comemoração.

Estavam previstas as presenças do prefeito e do governador (já confirmados) e até do Presidente da Republica, esta não

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confirmada. Seria um acontecimento memorável, não só para o Theatro e para a Orquestra, mas para toda a cidade.

Durante uma semana os velhinhos do Conselho Curador ficaram reunidos para organizar o evento. Primeiro o programa. Seria impensável qualquer peça mais elaborada que exigissem demais dos executantes, mas eles já haviam executado no passado, embora de uma maneira choxa, a quinta sinfonia de Beethoven, que possuía a grandeza dramática necessária para a abertura do concerto.

Mas para tal, era imperioso encontrarem um novo maestro, uma vez que Leopoldo não estaria mais á altura de tão importante evento. De tanto fuçar acabaram encontrando um regente, recém saído de uma orquestra municipal em outro estado, que estava procurando colocação. Suas referencias eram boas e após ser sabatinado pelo Conselho foi nomeado regente titular da Orquestra Sinfônica de Augusta. Já o spala, sexagenário e nada motivado, caberia ao novo regente substituí-lo.

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Pontualmente, ás cinco da tarde, Leocadia marcou seu cartão de ponto e foi para casa. Estava ali desde as nove horas, sem muita coisa que faze além de varrer os corredores do Theatro e arrumar os camarins do Maestro e do Spala. Fora-se o tempo em que o antigo Senhor Leopoldo abonara seu ponto para ela chegar mais tarde. Agora, com o novo Maestro, o horário era rígido o que a levava a ficar horas sentada em um banquinho em uma ociosidade angustiante.

Nada havia em sua vida que gostasse de se lembrar. Na juventude apaixonara-se por um jovem flautista oriundi, com quem manteve tórrido romance. Era entretanto uma época tumultuada, na qual o fascismo italiano empolgava o mundo com suas conquistas e Luigi,o flautista, optou por substituir seu romance tupiniquim por juntar-se aos Camicie nere “camisas negras” da patria de seus pais.No cais de embarque para a Itália, entre os apaixonados beijos e promessas de retorno, Leocádia, banhada em lagrimas não revelou que estava grávida. Leocadia nunca mais ouvira nada dele. Mas a aquele que habitava em sua barriga não a permitia esquecer que em breve, o fruto de seu impensado amor iria se transformar em uma pessoa.

Mal tinha meios para se manter e o advento de um filho iria obrigá-la a deixar o emprego. Orientada pelo seu confessor, entregou a criança, um belo menino, aos cuidados das freiras do hospital para adoção.

Sua vida havia perdido o sentido. Sem o amante,sem o filho e sem recursos conseguiu afinal um emprego de faxineira no Theatro de Augusta e para lá se mudou. Com o tempo foi-se afeiçoando aos músicos, que a tratavam bem e compensavam em parte o vazio de sua vida.

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Werther, que até aquela época havia mantido boas relações com o pouco exigente Senhor Leopoldo, ficou meio preocupado com a chegada do substituto, que tinha fama de exigente e severo. No entanto, Albert mostrou-se extremamente amistoso com ele, e pouco a pouco foi-se criando uma relação mais pessoal entre os dois. Ele era simpático e alegre, Charlotte o achava divertido e não custou muito para se freqüentarem.

Uma tarde, Albert foi falar com ele.

-Werther, vai haver esta semana um curso de especialização em São Paulo. Será dado pelo Pelegrini e quero que você vá.. Afinal, é mais um passo para voce subir na carreira. Não se preocupe, a Orquestra pagará as despesas.

Subir na carreira significava tornar-se spala. Werther não hesitou:

_Claro, estarei lá. Muito obrigado.

Exultante, foi para casa fazer as malas, mas encontrou Charlotte chorando em um canto.

_ Que aconteceu, meu amor?

Charlotte estendeu um telegrama que avisava do falecimento da mãe em Munique.

Werther acarinhou-a durante algum tempo. É verdade que Charlotte já não via a mãe durante anos, casada que fora com um quarto marido fagotista em alguma orquestra da Bavária. Mas, mesmo assim, mãe é mãe e a dor e o choque da filha eram autênticos.

No final da tarde, Charlotte estava mais conformada. Foi quando Werther lhe disse que iria partir aquela noite para o curso de especialização:

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_Sinto te deixar agora meu bem, mas eu preciso deste curso. É a minha chance de virar spala e isto é importantíssimo para a minha carreira.

Ela demonstrou tristeza e desapontamento, mas não fez drama:

_Está bem...

Uma semana depois, Werther voltou. Charlotte o recebeu normalmente, mas ele notou que algo havia mudado. Quando á noite ele a procurou ela estava fria, quase indiferente ás suas caricias. Estava evidentemente magoada com ele por te-la deixado naquela noite, quando ela precisava de seu conforto.

Inutilmente Werther se desculpou. Embora gentil e mesmo solicita, Charlotte estava distante, melancólica, quase apática. Werther entendeu que só o tempo poderia superar aquela situação.

Foi portanto com enorme surpresa que quando após um ensaio de cordas, entrou no camarim de Albert, a pedido dele, e lá encontrou Charlotte e Albert, que, junto com uma garrafa de champanhe disseram alegremente

_Surprise!!

Albert então participou que ele passaria a ser o novo spala da orquestra e que havia convidado sua mulher para comemorarem juntos a promoção.

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Werther voltou para casa eufórico. Havia conquistado por fim seu almejado lugar na orquestra e sabia que estaria qualificado para no futuro fazer uma especialização e tornar-se regente. Sentia-se também aliviado por ter ido Charlotte comemorar sua promoção, sinal de que ela superara finalmente o mal estar entre ambos. Não parou de falar sobre o assunto durante todo o jantar, sob o olhar complacente da esposa que, calada, ouvia sorridente os projetos do marido. Após o jantar, contudo, Werther sentiu-se estranhamente inquieto e inseguro. Não atinava por que, uma vez que só tivera boas noticias aquela tarde, mas alguma coisa, no fundo de sua mente, o estava incomodando.

Quando levou Charlotte para cama, sofreu, pela primeira vez em todo o casamento, a humilhação de falhar. Charlotte, compreensiva, o consolou dizendo que ele deveria estar cansado depois da emoção do dia.

Mas no dia seguinte, a mesma coisa, e aí Charlotte não disse nada. Na falha do terceiro dia, á inquietude inicial sucedeu-se á uma profunda angustia. Estava impotente!

Durante alguns dias não procurou Charlotte. Esta, aparentemente indiferente ao que acontecia com o marido limitava-se á um formal “boa noite” e se virava para dormir.

Até que uma noite, já deitados, Werther não mais agüentou:

_Meu amor, o que está acontecendo conosco?

O longo silencio de Charlotte foi resposta suficiente para Werther entender. Suas desconfianças, jamais confessadas para si mesmo haviam saído do fundo de sua mente e se convertido em realidade.

Dura.

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_É o Albert não é?

Charlotte assentiu com a cabeça

_Quando começou?

_Quando voce estava fora, naquele curso

_ Voce está apaixonada?

_ Não sei, não sei. Estou muito confusa.

Como que anestesiado, Werther levantou-se, tirou uma mala do armário e lá colocou algumas peças de roupa. Não mais estava inseguro nem surpreso, mas frente á uma situação para a qual não estava preparado.

_Voce vai embora?

_Vou

_Para onde?

_Não te interessa.

Mala pronta e vestido, Werther dirigiu-se á porta.

_Não vai me dar um beijo?

_Não

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Werther estava desorientado. Saiu de casa sem ter realmente para onde ir. Pensou no motel na estrada, mas lembrou-se de que lá havia estado algumas vezes com Charlotte, só de brincadeirinha, para fingirem-se de amantes. Lembrou-se então do Francisco, seu assistente. Era um cara legal e havia ficado genuinamente satisfeito quando ele passara a ser spala. Divorciado, vivia sozinho em seu quarto e sala, portanto ele não iria incomodar ninguém, além do amigo.

Embora já fossem onze horas da noite, telefonou-o do orelhão.

_Desculpe,estava dormindo?

_Ainda não

_Posso ir para aí?

_Claro, venha.

Sem qualquer pergunta Francisco o acomodou no sofá da sala e foram ambos dormir. Werther caiu imediatamente em um sono pesado e só acordou lá pelas nove horas. De inicio, sentiu-se estranhamente relaxado, em completa paz. Mas logo a horrenda realidade aflorou. Não conseguia conter as lágrimas e acabou se entregando a um choro que não conseguia mais disfarçar.

Francisco entrou na sala constrangido, mas não surpreso. Somente disse:

_É meu amigo, é duro, eu sei....

E naquele instante Werther entendeu que seu drama não era segredo para ninguém.

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Passou a viver como um autômato. Sua vida era vazia, burra e melancólica. Levantava-se cedo, tomava café na padaria e entrava pontualmente no Theatro para os ensaios, mas seu desempenho havia caído. No inicio Albert tentara manter com ele uma postura jovial e descomprometida, mas Werther passara a respondê-lo com monossilábicos até que a relação finalmente se esgotou. Passaram então a ser freqüentes as observações de Albert sobre seus enganos nas entradas e nos andamentos, sempre acompanhados por um leve sorriso zombeteiro. Passou a notar uma sutil mudança no comportamento dos colegas, antes expansivos e irreverentes, mas agora, embora muito afáveis, eram reservados.Como todos estivessem com pena dele.

Nos intervalos, quando os colegas se reuniam alegremente para relaxar. Werther se isolava em seu camarim.

Havia tentado tirar Charlotte da cabeça e se dedicar ao trabalho mas era um exercício frustro que resultava em uma insuportável onda de desespero e mágoa. Não sentia raiva, nem amor, nem nada. Mas sentia uma puta falta dela.

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Uma tarde, pouco antes das cinco, Leocadia,como sempre fazia,entrou no camarim do Spala. Lá estava ele se arrumando, mas qualquer olhar menos avisado perceberia que ele estivera chorando. Com um tímido “desculpe” Leocadia se retirou.

Leocadia não era burra. Longe disto. Estava ciente do que acontecia e estava com o coração pequeno ao ver o sofrimento daquele jovem por quem sentia particular carinho.

Através das cartas das amigas, conhecia a fama do Senhor Maestro em outras orquestras, que não hesitava em se prevalecer da sua autoridade para dormir com suas jovens executantes, sem qualquer consideração pelas conseqüências familiares decorrentes.

Em sua triste vida, Leocadia sempre fora de mera espectadora. Chegara o momento em que, pela primeira vez, iria tomar uma atitude.

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Aproximava-se o dia do tão badalado concerto, os anúncios afixados nas portas do Theatro e a imprensa faziam o alarde necessário para esgotar todas as entradas para o evento. Mas Werther estava apavorado. Temia comprometer o nível da apresentação com uma atuação fraca e desatenta.

Resolveu demitir-se. Na manhã seguinte iria solicitar ao Albert trocar com Francisco o lugar de spala. Francisco era um ótimo violinista e a troca seria oportuna para o sucesso do concerto. Voltou para casa com o coração mais leve. Decidiu também que haveria de procurar logo um apartamento para morar, apesar dos protestos de Francisco que tão generosamente o havia acolhido por tanto tempo.

Ao entrar no apartamento deparou-se com Charlotte, sentada na poltrona. Foi tão inesperada aquela cena que Werther somente disse:

_Voce aqui!!

Não a via dês daquela noite fatídica. Estava mais magra, mais séria, mas igualmente bela.

_Werther não estou aqui para te pedir nada. Somente para te dizer que estarei em casa sempre esperando por voce.

A duvida e a felicidade despertados por aquela declaração levaram Werther a um prolongado silencio.

_Voce tem certeza?

E ela, petulante:

_Se não tivesse não estaria aqui

_E eu, como posso ter certeza?

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_Não pode. Terá que confiar em mim.

Conversaram durante horas. Francisco delicadamente havia saído e puderam passar a limpo todo aquele período de intenso sofrimento mutuo.

_Voce nunca deveria ter-me deixado aquela noite

_Eu sei, foi a maior mancada de minha vida

_Como aconteceu?

_Logo no dia seguinte,que você saiu, Albert me procurou e convidou-me para um drink na sua casa. Eu estava sozinha, magoada com voce e perguntei-me: Porque não?Albert era simpático, nosso amigo e não achei nada de mais ir ao apartamento dele. Mas ali, a coisa não ficou só no drink. O que sucedeu voce pode imaginar.Mas nunca uma tranza se resume a uma só. Passei a encontrar-me com ele com freqüência, fiquei dividida, confusa e infeliz. Descobri que ele era meu amante, mas ele não me considerava assim. Passei a sentir que eu era mais uma de suas conquistas e a relação, que alias já estava meio desgastada pela rotina, esmoeceu. Foi quando percebi que eu estava trocando uma vida boa e amorosa com voce por uma aventura que eu não mais prezava.

Outro prolongado silencio

_Charlotte, quando voce foi ao camarim dele para comemorarmos minha promoção, vocês já estavam tranzando?

_Estávamos sim, e eu me arrependo muito . Queria apenas te dar um prazer e não suspeitava que ele tinha feito aquilo para tentar comprar sua cumplicidade.

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_Voce ainda está confusa?

Charlotte abriu se então em um sorriso matreiro:

_Werther, a única confusão que tenho agora é o que vou preparar para o nosso jantar

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Poucas horas antes do concerto, Werther procurou Albert em seu camarim. Iria solicitar,como desejava, a sua dispensa como spala e substituição pelo Francisco.

Mas não precisou. Sem qualquer explicação, Albert secamente o comunicou que já havia feita a substituição e que deveria a partir de amanhã procurar outro emprego.Impassível,Werther,sem dizer uma só palavra, retirou-se.

Afinal era isto mesmo que ele queria. Ia ser despedido, poderia retirar seu fundo de garantia e mudar-se para outra cidade onde junto com Charlotte recomeçariam a vida.

O que Charlotte não lhe havia contado, e por certo jamais contaria foi a frase de Albert quando ela terminou o caso:

_Vocês vão se arrepender

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Já eram quase oito horas e Leocadia precisava se desincumbir do ultimo trabalho da noite. Foi até ao camarim do Senhor Maestro e como sempre fazia, arrumou em cima do sofá toda a fatiota de gala que estava pendurada. Escovou as calças e o casaco do smoking, separou a gravata e até os sapatos de verniz. Dobrou cuidadosamente a camisa de colarinho alto, sem antes deixar de borrifar com talco seu interior, para absorver o suor e ficar colada ao corpo de Sua Majestade.

Dirigiu-se então para a porta, parou, respirou profundamente e fez o que tinha que fazer.

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Após arrumar o camarim do Maestro, Leocadia dirigiu-se ao camarim do spala. Lá estava Werther sentado, não mais se preparando, pois o camarim já não era mais seu, mas simplesmente despedindo-se do local.

Leocadia, sem uma palavra puxou sua cabeça para o seu regaço o que Werther o fez com toda a naturalidade, sentindo pela primeira vez um regaço materno que nunca em sua vida havia experimentado.

Ali Ficaram alguns minutos, ou horas ou sempre, até que a campainha quebrou o encanto. Leocadia beijou a testa do filho e retirou-se apressada.

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Ante tão inusitado incidente, a sala ficou em completo silencio. Os músicos, consternados fitavam apenas seus instrumentos sem coragem de olhar para a platéia que, ansiosa esperava o desenrolar daquele vexame. Foi quando algumas tosses quebraram aquela perplexidade coletiva. No camarote nobre os velhinhos se levantaram seguidos imediatamente pelo prefeito e pelo governador.

Naquele instante, um violinista levantou-se e subiu ao pódio. Imediatamente os músicos colocaram seus instrumentos nas posições de ataque e fitaram ansiosos o novo regente que os livrariam daquele pesadelo.

Sem qualquer hesitação, Werther apanhou a batuta, sorriu para a orquestra indicando com os dedos dois e cinco, os compassos que deveriam começar. Iria retomar o movimento exatamente onde havia sido interrompido.

Não se pode dizer que a condução do restante da sinfonia fora perfeito. Tanto o estado emocional do regente quanto o dos músicos permitiram algumas imperfeições, tanto no andamento quanto em algumas entradas. Mas fora bastante boa naquelas circunstancias e recebeu do publico merecidos aplausos.

Como não mais possuía um camarim, Werther se recolheu ao banheiro do homens para tomar fôlego e se refrescar.O local estava vazio e fresco mas logo que tirou o casaco foi invadido, se não pela orquestra toda, pelo menos grande parte dela, que, ao meio de grande algazarra efusivamente abraçaram seu salvador. No meio do tumulto, um dos velhinhos do Conselho entrou no apinhado recinto e se aproximou de Werther.

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_Senhor Werther, em nome do Conselho, não temos como lhe agradecer ter-nos salvado esta noite. É imperativo, porém que o senhor conduza a segunda parte deste concerto.

Werther ficou preocupado. Teria que voltar ao pódio, ali não mais como um improvisado “quebra galho” mas entronizado como o verdadeiro regente do concerto.

Alem disto, a Sinfonia N0 40 de Mozart era extremamente banalizada, pouco exigindo da orquestra e do maestro, chegando-se a dizer que os músicos a tocavam por piloto automático. Mas era um erro. A peça era uma das mais alentadas criações do compositor austríaco, que nas mãos de um condutor experiente e sensível evidenciariam uma obra de arte.

E ele deveria estar á altura dela.

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Werther subiu novamente ao pódio. Parte dos instrumentistas já havia saído, pois a orquestra Mozartiana exigia muitos menos instrumentos que a portentosa orquestra romântica de Beethoven.

A sinfonia ocorreu como o esperado, malgrado os esforços do regente para realçar algumas partes que poderiam quebrar a monotonia orquestral. Foi no entanto uma apresentação correta e o publico a aplaudiu como devia. Werther foi chamado por duas vezes ao palco onde depositaram uma cesta de flores. Quando ia finalmente se retirar, notou que os músicos continuavam firmes em seus lugares. Espantou-se quando viu colocarem uma cadeira do lado esquerdo do pódio e espantou-se ainda mais, quando adentrou ao palco uma jovem,que de inicio não reconheceu, mas foi aplaudida pela orquestra em peso. Mesmerizado, observou Charlotte sentar-se calmamente, e a primeira clarinetista levantar-se e entregar a ela seu instrumento.

Imóvel em sua perplexidade, sentiu que os olhos dos músicos não mais o fitavam mas ao spala, que, independente do maestro, iniciou o primeiro movimento do Concerto para Clarineta de Mozart.

Era a peça preferida de Charlotte, que haviam tocado juntos varias noites, ela na clarineta acompanhada por ele, que fazia no violino as vezes da orquestra. Quando, ao chegar ao compasso 29 a clarineta entrou sozinha, repetindo o tema original, Werther desbundou. Era um ato de coragem e afirmação, que ela ali assumia se expondo completamente naquele solo, sem medo nem constrangimento, quase como uma mensagem. Embora a emoção do momento a atrapalhasse um pouco nas difíceis passagens virtuosísticas do primeiro movimento, aquela execução foi memorável.

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Mas foi no Adágio em que todo o Theatro viveu um momento mágico. A seqüência tranqüila daquelas notas, e o profundo sentimento com que eram tocadas, transmitiam uma paz e um amor que impregnou toda a platéia. Embora o concerto ainda não estivesse acabado, pois faltava o Rondó, os músicos, contrariando todos os costumes, se levantaram e a aplaudiram delirantemente, no que foram secundados pela platéia, que embora desavisados, haviam se contaminado com a emoção daquele hino de amor.

Não havia mais espaço para o terceiro movimento. O concerto havia acabado.

Charlotte exausta inclinou-se para o publico e, voltando-se para a orquestra enviou alegremente um beijo para aqueles amigos. Depois, sem qualquer ostentação, tomou Werther pela mão e tranquilamente o conduziu aos bastidores.

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Naquela mesma noite, Leocadia morreu. Na manhã seguinte, sua vizinha, sempre pressurosa, foi levar o jornal, a Gazeta de Augusta que, por falta de outras noticias, exibia em primeira página a foto de Werther e a noticia sobre o inusitado concerto da véspera. Em letras miúdas, como um comentário do editor, falava-se que, dado o misterioso desaparecimento do maestro titular, o Senhor Werther seria possivelmente apontado pelo Conselho de Curadores como sucessor do desaparecido.

Mas não teve como mostrar o jornal á amiga. Leocadia estava deitada, imóvel, com um sorriso de paz e tranqüilidade. Em uma das mãos segurava um terço e na outra, curiosamente, uma latinha de Pastilhas Valda.

A policia, logo chamada limitou-se a fotografar o corpo junto com o terço e a misteriosa caixinha, providenciando logo á remoção do cadáver ao IML local.

Logo que avisado, Werther e Charlotte foram para o necrotério. Mas Leocadia ainda não estava lá. A morte súbita e principalmente a presença da latinha sobre seu corpo haviam despertado suspeitas de suicídio, e exames mais acurados deviam ainda serem feitos pelo legista

Pouco a pouco foram chegando os demais membros da orquestra, para homenagear aquela senhora humilde que durante tanto tempo os servira.

Mas para Werther ela era mais do que uma obscura serviçal. Naquela ultima noite que a vira, instalara-se em sua cabeça uma verdade, que jamais seria explicitada ou revelada.

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Já eram quase nove horas quando o doutor Queiroz, o médico legista, deu por findos os exames do corpo e passou a preencher o laudo. Nele atestava que dona Leocádia havia falecido de causas naturais,provavelmente originaria de deficiências cardíacas que há muito apresentava,tendo sido atendida em vários episódios naquele nosocômio. Nada indicava no cadáver qualquer substancia suspeita o que confirmava sua conclusão. Concluído o laudo, pediu ao Robinson, seu auxiliar, que o encaminhasse á delegacia para então liberarem o corpo para sepultamento.

_Depois engavete o corpo na geladeira, limpe tudo e vá pra casa.

_E doutor, o que faço com esta latinha?

Era uma latinha de “Pastilhas Valda”, com uma etiqueta colada “substancia desconhecida” que havia sido arrolada pelos policiais para exame.

_O pessoal do laboratório não sabe o que é. Não acharam qualquer indicio de substancias tóxicas nem de veneno nem de cocaína, portanto jogue fora.

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Mas Robinson ao invés de jogar fora, embolsou a latinha e voltou para casa...

Robinson não procurava esconder suas origens africanas. Pelo contrário, exibia orgulhosamente seus cabelos em múltiplas trancinhas,cuidadosamente elaboradas, dois brincos e uma corrente no pescoço. Além disto, sua postura jovial, sempre alegre e comunicativa mais sugeria um filho de orixás do que um funcionário do necrotério. Mas ali, longe dos Pais de Santo, era totalmente competente, compensando sua aparente indolência com inventividade que tornavam seu trabalho mais eficaz. O doutor Queiroz, gostava dele,embora o irritasse um pouco o cantarolar ininterrupto de algum reggae obscuro, cuja letra não conseguia entender.

A latinha no bolso o incomodava. Haveria ali qualquer coisa sinistra que o intrigava. Já havia visto Leocadia (ou alguém muito parecida com o corpo) uma vez, em plena sessão do terreiro, ido falar com a Tia Olinda, velha e respeitada sabedora de todas as mandingas da comunidade.

Decidiu consultá-la.

A Velha o recebeu sentada no chão, abriu a latinha, provou seu conteúdo e abriu-se em um gostoso riso desdentado:

É pó de mico meu fio.. E dos bão.... _

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