As Dificuldades de Aprendizagem (Griffo)

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AS DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM NAS DIVERSAS ABORDAGENS TEÓRICAS In: GRIFFO, Clenice. Dificuldades de aprendizagem na alfabetização: perspectivas do aprendiz. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Educação da UFMG, Belo Horizonte, 1966. Pp.10-26 O tema “dificuldades de aprendizagem” tornou-se presente principalmente a partir da década de setenta, entre as questões relacionadas à aquisição da linguagem escrita. Têm sido várias as teorias e as formas de abordar o problema e também têm sido vários os enfoques priorizados em cada abordagem, mas verifica-se, na produção científica sobre o tema, que o fracasso escolar encontra- se sempre fortemente vinculado às dificuldades de aprendizagem no processo de aquisição da língua escrita. Questões de natureza lingüística constituem o grande eixo das explicações para o fracasso de alunos nas séries iniciais do ensino fundamental. É neste sentido que SOARES (1986:17) define o papel da língua e o desempenho daqueles que, na escola, têm fracassado: “É o uso da língua na escola que evidencia mais claramente as diferenças entre grupos sociais e que gera discriminações e fracasso: o uso, pelos alunos provenientes das camadas populares, de variantes lingüísticas social e escolarmente estigmatizadas provoca preconceitos lingüísticos e leva a dificuldades de aprendizagem, já que a escola usa e quer ver usada a variante- padrão socialmente prestigiada”. Na verdade, estudos sobre o fracasso escolar no processo de alfabetização, no Brasil, nas últimas décadas, têm revelado que não são alunos de todas as classes sociais que apresentam problemas no processo de aprendizagem da leitura e da escrita. Análises sobre o fracasso na primeira série do ensino fundamental evidenciam que este se encontra, quase sempre, relacionado à origem social das crianças que fracassam - em sua grande maioria elas pertencem às camadas desfavorecidas da população. A origem sócio-cultural e econômica dos alunos que fracassam tem, assim, se constituído em questão central de grande parte das análises sobre os problemas escolares, fator, por isto, relevante e imprescindível para ser considerado em novas análises.

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AS DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM NAS DIVERSAS ABORDAGENS TEÓRICAS

In: GRIFFO, Clenice. Dificuldades de aprendizagem na alfabetização: perspectivas do aprendiz. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Educação da UFMG, Belo Horizonte, 1966. Pp.10-26

O tema “dificuldades de aprendizagem” tornou-se presente principalmente a partir da década de setenta, entre as questões relacionadas à aquisição da linguagem escrita. Têm sido várias as teorias e as formas de abordar o problema e também têm sido vários os enfoques priorizados em cada abordagem, mas verifica-se, na produção científica sobre o tema, que o fracasso escolar encontra-se sempre fortemente vinculado às dificuldades de aprendizagem no processo de aquisição da língua escrita. Questões de natureza lingüística constituem o grande eixo das explicações para o fracasso de alunos nas séries iniciais do ensino fundamental. É neste sentido que SOARES (1986:17) define o papel da língua e o desempenho daqueles que, na escola, têm fracassado:

“É o uso da língua na escola que evidencia mais claramente as diferenças entre grupos sociais e que gera discriminações e fracasso: o uso, pelos alunos provenientes das camadas populares, de variantes lingüísticas social e escolarmente estigmatizadas provoca preconceitos lingüísticos e leva a dificuldades de aprendizagem, já que a escola usa e quer ver usada a variante-padrão socialmente prestigiada”.

Na verdade, estudos sobre o fracasso escolar no processo de alfabetização, no Brasil, nas últimas décadas, têm revelado que não são alunos de todas as classes sociais que apresentam problemas no processo de aprendizagem da leitura e da escrita. Análises sobre o fracasso na primeira série do ensino fundamental evidenciam que este se encontra, quase sempre, relacionado à origem social das crianças que fracassam - em sua grande maioria elas pertencem às camadas desfavorecidas da população. A origem sócio-cultural e econômica dos alunos que fracassam tem, assim, se constituído em questão central de grande parte das análises sobre os problemas escolares, fator, por isto, relevante e imprescindível para ser considerado em novas análises.

É bastante comum encontrar, nos trabalhos referentes à questão do fracasso nas séries iniciais do ensino básico, uma vertente teórica de análise que se fundamenta nos fatores conjunturais que podem explicar o fracasso, ou seja, procura-se analisar o conjunto de aspectos passíveis de se coadunarem e tornarem possível a produção do fracasso: a organização da escola e o seu papel na reprodução de classes sociais; a competência/ incompetência e preparação/ inadequação dos profissionais da escola para trabalhar com a clientela que atendem; os conceitos de alfabetização que orientam a prática pedagógica; os processos avaliativos e seus possíveis efeitos; etc.

De outro lado, encontra-se uma linha de interpretação que se fundamenta nas teorias do déficit cultural e lingüístico, localizando no aprendiz e no seu meio as causas do não aprendizado escolar. A pobreza é sinônimo de deficiências localizadas no aprendiz que, por sua vez, são traduzidas como impedimento intelectual.

Esta última vertente encontra-se, quase sempre, aliada a uma terceira: a dos distúrbios de aprendizagem - construção do pensamento médico, corrente desde o século passado, e que, embora nunca tenha conseguido bases empíricas para a sua sustentação, é mantida e referendada ainda hoje na produção acadêmica e científica sobre o fracasso na alfabetização.

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Estas duas últimas vertentes são predominantes na produção sobre o tema e têm ampla aceitação no meio escolar, que delas se utiliza sem restrições. Já a primeira vertente citada - o relacionamento do fracasso escolar com as características da escola e de seus profissionais - desenvolvida ainda em âmbito bastante restrito aos estudiosos que se fundamentam na Sociologia e na Psicossociologia, não tem sido considerada e aprofundada de forma satisfatória pelos profissionais da escola básica e por muitos que estudam as causas do fracasso escolar.

1.1 - Diversas abordagens para um mesmo problema

A pesquisa “Dificuldades de Aprendizagem [1970-1990]: Análise Qualitativa da Produção Acadêmica e Científica” desenvolvida entre 1991 e 1993, no Centro de Alfabetização Leitura e Escrita (CEALE) da Faculdade de Educação da UFMG, confirmou que a segunda tendência de análise, muitas vezes aliada à terceira, acima citadas - as que atribuem à criança e seu meio as causas do fracasso na escola - são as mais assumidas pelos autores de obras que abordam o tema. Mesmo quando tentam relativizar o problema apontando para outros fatores, o peso do fracasso continua recaindo sobre o aluno. Essas duas tendências de análise predominantes na produção acadêmica e científica encobrem o caráter patológico e ideológico que carregam, mascarando o fundo social e político do problema.

Desenvolvida por uma equipe interdisciplinar do CEALE constituída por profissionais envolvidos com trabalhos e estudos relacionados às áreas: Psicologia, Pedagogia, Sócio-linguística e Reeducação pedagógica, a pesquisa acima referida fez parte do projeto integrado “Alfabetização no Brasil, 1950-1990: Análise Integrativa de Estudos Empíricos e Teóricos”. Trabalhei junto a esta equipe interdisciplinar, como bolsista de aperfeiçoamento, percorrendo integralmente o processo da pesquisa e desta forma, realizando uma revisão bibliográfica sobre o tema, bem como discutindo a temática e a construção dos conceitos relacionados às dificuldades escolares na perspectiva dos diversos autores que foram analisados.

O tema das Dificuldades de Aprendizagem foi identificado por SOARES (1989) – Coordenadora geral do projeto acima citado – como presente em todas as décadas abrangidas pela pesquisa “Alfabetização no Brasil: O Estado do Conhecimento”, pesquisa que teve como objetivos o levantamento, a organização, e a categorização do conhecimento sobre alfabetização produzido no país a partir da década de cinqüenta. Os resultados da pesquisa conduziram ao novo objetivo de aprofundar os resultados obtidos por diferentes pesquisas sobre um mesmo tema, comparando-os, identificando suas contradições e semelhanças e “verificando a possibilidade de integração dos resultados obtidos e de formulação de generalizações mais consistentes, já que baseadas em dados de várias investigações” (SENA et alii, 1993). Desta forma, a produção identificada seria submetida a uma avaliação qualitativa.

Atendendo à demanda desta análise qualitativa de temas presentes na produção sobre alfabetização é que o subprojeto: “Dificuldades de Aprendizagem [1970-1990] Análise Qualitativa da Produção Acadêmica e Científica”, (dentre outros projetos), definiu-se como estudo das análises já realizadas por outros autores sobre o tema específico das dificuldades de aprendizagem no processo de aquisição da linguagem escrita. O objetivo geral desta pesquisa apresentou-se, portanto, como realização de uma análise qualitativa e integrativa do conhecimento produzido, no Brasil, sobre este tema, no período em que se constatou um aumento significativo de obras abordando-o, ou seja, a partir da década de setenta. Pretendeu-se identificar as concepções de dificuldades de aprendizagem com que operavam os autores das obras do corpus da pesquisa; estabelecer relações entre estas concepções e as suas respectivas bases teóricas; repensar as dificuldades de aprendizagem no interior de um possível modelo de processo de ensino/ aprendizagem da escrita.

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Foram analisadas obras publicadas no Brasil no período de 1970 a 1990 - teses, dissertações e artigos - todas que foi possível identificar e obter no prazo da pesquisa - num total de dezoito trabalhos tendo como tema as dificuldades de aprendizagem no processo de alfabetização. Cada uma das obras pertencentes ao corpus foi analisada a partir das suas condições de produção e do ponto de vista de seus autores. Utilizamos-nos, para isto, do referencial da análise do discurso, visto que este forneceria o suporte para a análise que pretendíamos, ou seja, identificar e analisar as condições de produção de cada obra: o lugar do qual cada autor escrevia e o seu papel dentro do contexto em que estava situado; o momento da produção e as possíveis influências das teorias já existentes; o veículo de publicação da obra e o seu significado dentro da produção da época; características do discurso utilizado pelo autor, bem como suas estratégias de argumentação e o que poderiam significar dentro do conjunto das obras existentes.

A metodologia escolhida para a realização da pesquisa e o referencial de análise (análise integrativa e análise do discurso) possibilitaram uma análise qualitativa do tema em questão, dando-nos a dimensão do conceito de dificuldades de aprendizagem no processo de aquisição da linguagem escrita com o qual, muitos dos autores analisados, trabalharam. É importante destacar que esta pesquisa “não teve como objetivo a homogeinização dos conteúdos fornecidos pelo material da pesquisa”, mas fundamentalmente, “a explicação das várias concepções teóricas e das diversas linhas metodológicas que orientaram a produção objeto de nosso estudo” (SENA et alii, 1993). Os procedimentos adotados pela equipe pesquisadora tornaram possível a obtenção de um quadro demonstrativo de como se pensou, durante as duas últimas décadas, a alfabetização e as dificuldades de aprendizagem na leitura e na escrita.

O conceito de dificuldades de aprendizagem com o qual operaram os autores das obras analisadas pôde ser apreendido através das categorias de análise utilizadas no processo da pesquisa. Essas categorias foram constituídas em processo, à medida em que as identificávamos como aspectos pertinentes, na perspectiva dos autores de cada obra do corpus. Construíamos, assim, uma forma de analisar essa produção, um ponto de vista a respeito da produção existente. Tentamos, a partir de elementos encontrados nos textos de cada autor, explicitar suas concepções a respeito das seguintes categorias: a) dificuldades de aprendizagem; b) objeto de aprendizagem; c) papel do professor; d) papel do aluno; e) ensino aprendizagem; f) alfabetização; g) prontidão; h) escola; i) referencial teórico; j) objeto de estudo; l) metodologia.

A análise demonstrou que o conjunto das obras sobre o tema abordado não se configurava como um corpo teórico estruturado. Ao contrário, revelaram-se incoerências internas e externas a cada obra no que tange aos conceitos trabalhados pelos autores e às relações que estes estabeleceram com os referenciais teóricos de que se utilizaram.

Constataram-se imprecisões, incoerências e contradições, por exemplo, ao se definir o que é alfabetização, o que são as dificuldades de aprendizagem e o que caracteriza um aluno portador de problemas de aprendizagem. Muitas vezes o aluno definido como portador de dificuldades de aprendizagem foi caracterizado através de adjetivos, contraditórios ou incoerentes com o conceito de alfabetização e de dificuldades que um mesmo autor tentava defender.

Encontramos nas obras analisadas uma ampla terminologia utilizada por seus autores para definir o aprendiz com problemas de aprendizagem na escola:

Deficiente mental educável/ anti-intelectual/ criança com desvio de conduta/ criança co desenvolvimento inadequado/ criança com repertório comportamental limitado/ criança com distúrbio de aprendizagem/ criança lenta/ criança com problema de memorização/ criança com linguajar trôpego/ carente cultural/ carente lingüístico/ criança com pobreza vocabular/

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criança com distúrbio psicomotor/ criança disléxica ou com dislexia adquirida/ criança que desviam da média/ alunos com necessidades especiais/ alunos com características especiais para aprender/ criança não preparada para responder/ crianças com desenvolvimento não harmonioso das funções psiconeurológicas/ crianças desastradas, desajeitadas, sem harmonia de movimento/ alunos com padrões de aprendizagem não compatíveis com as exigências do ensino/ alunos que não possuem mínimo de habilidades para iniciar as tarefas/ crianças que apresentam problemas acadêmicos/ crianças em estado de confusão cognitiva/ crianças com raciocínio preso ao dado perceptivo/ crianças com atraso de maturação/ crianças com falta de estímulos adequados na idade pré-escolar/ criança com debilidade psicomotora/ criança com instabilidade psicomotora/ criança com inibição motora/ criança com lateralidade cruzada/ indivíduos com retardo no desenvolvimento/ crianças com déficits comportamentais/ alunos incapazes de acompanhar o programa de ensino/ alunos duros de aprender/ elementos perturbadores da classe/ alunos mentalmente retardados/ alunos com funcionamento intelectual inadequado/ alunos com baixo nível intelectual/ alunos com desajustamento social/ aluno excepcional/ deficiente no desempenho escolar/ crianças com problemas de socialização/

Essas e outras expressões fazem parte de uma coletânea de termos que se encontram disseminados no conjunto das dezoito obras pesquisadas. Pudemos apreender delas, bem como do referencial teórico de cada autor e das demais categorias de análise eu utilizamos, uma concepção de criança incapaz de ter um desempenho escolar aceitável. Em decorrência das concepções veiculadas por esta terminologia, em boa parte das obras encontramos indicações de programas de educação compensatória e de atendimento por profissionais especializados, apresentadas como formas de tratamento dessas crianças incapazes. Alguns trabalhos apresentam propostas de programas especiais dentro das respectivas formas de abordagens das dificuldades de aprendizagem que os autores defendem.

Toda essa terminologia pode ser sintetizada em apenas uma idéia básica: a dos distúrbios de aprendizagem ou das deficiências do aluno, pois os termos definem a criança dentro de um quadro de anormalidade, localizada individualmente em cada criança, ao mesmo tempo enquadrando-a em um grupo de excepcionalidades, desqualificando-a e avaliando-a como despreparada para participar dos processos considerados normais de ensino-aprendizagem escolares.

Somente esta terminologia, disseminada e aceita de forma ampla também no meio escolar, pode ser suficiente para chegarmos a algumas questões fundamentais para a compreensão dos processos de produção do fracasso escolar: quais seriam os critérios para se definir os quadros de anormalidade? A partir de quais aspectos ou a que tipo de avaliação são submetidas essas crianças para serem consideradas como possuidoras de uma baixa produção escolar? Quais são os princípios norteadores de grande parte das análises que têm sido realizadas?

É necessário explicar que as formas de abordagem das dificuldades de aprendizagem, nas obras pesquisadas, se definem a partir de um referencial teórico (ou da conjugação de dois ou mais) tendo como conseqüência a definição (ou indefinição?) de conceitos imprescindíveis para a concretização do quadro teórico de cada autor, tais como: conceito de alfabetização, de língua e linguagem, metodologia, papel do professor, visão do aprendiz. Assim, torna-se de grande importância dar atenção aos conceitos apresentados em cada obra e ao que eles representam para quem os integra em seu referencial de análise, quando se referem a um aluno como portador de dificuldades de aprendizagem.

A equipe de pesquisadores atentou-se para a articulação efetuada por cada autor assim como para a sua vinculação, ou não, com práticas pedagógicas de alfabetização – fator relevante para os fins da pesquisa, considerando-se a dicotomia teoria/ prática e ao modo como estas se

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referendam mutuamente. É difícil saber como se estabelecem às relações de influência entre uma e outra mas não podemos deixar de considerá-las uma vez que o vínculo entre as teorias para explicação do fracasso escolar e as práticas escolares se encontram em estado de cumplicidade. Considera-se, neste trabalho, que prática e teoria se edificam concomitantemente.

1.2 - Concepção Organicista Quando se classifica uma criança como disléxica ou deficiente mental educável ou quando

se lhe atribui um distúrbio psicomotor ou um distúrbio de aprendizagem, a referência eleita está geralmente relacionada à concepção organicista da educação surgida no século passado, tendo os médicos higienistas como precursores e também os então nascentes médicos sanitaristas, que exerciam grande influência no meio educacional. Dentro desta concepção, os problemas de aprendizagem na leitura localizam-se no cérebro e são de origem neurológica e hereditária. Surgem desta vertente várias explicações para o fracasso escolar, dentre elas a teoria da Disfunção Cerebral Mínima (DCM), que atribui as causas dos problemas do aprendiz ao nascimento prematuro, dificuldades de parto, imaturidade, ou doenças na infância.

Os sujeitos identificados como portadores de DCM apresentariam os seguintes sintomas: dislexia, defeitos na coordenação motora, hiperatividade, desordens na memória, no pensamento e na atenção, distúrbios de linguagem, dentre outros semelhantes – sintomas que podem ser incluídos no que se denomina dislexia. A teoria da Disfunção Cerebral Mínima surgiu em caráter de substituição à Lesão Cerebral Mínima, uma vez que não pôde ser verificada, através de vários métodos de investigação, nenhum tipo de lesão nos sujeitos assim diagnosticados. Mesmo após tal constatação e conseqüente mudança da terminologia, os sintomas continuaram os mesmos e sempre com caráter de manifestações clínicas, não existindo, critérios que pudessem objetivar cada um desses sintomas ou a combinação entre eles (ver Collares e Moysés, 1992).

Embora hoje o termo DCM não seja empregado com tanta intensidade quanto era no início da década de setenta – pois avanços nos estudos neurológicos, realizados por profissionais dessa área, demonstraram equívocos na classificação de alunos portadores deste mal – os termos afins, ou os que definiam o aluno como tal, continuam aparecendo na produção sobre as dificuldades de aprendizagem e na terminologia da prática escolar, como pode ser verificado no quadro apresentado anteriormente.

Ainda a partir da concepção organicista defendeu-se que os antecedentes pré-natais, perinatais e neonatais desencadeariam as possíveis lesões cerebrais responsáveis pelas dificuldades apresentadas pelo aprendiz da leitura e da escrita. Há muitas dúvidas e críticas em relação a este entendimento pois estudos recentes demonstram que é pequena a diferença na aprendizagem entre alunos com antecedentes natais e os alunos sem antecedentes. É importante salientar que os problemas de parto ocorrem em maior número com crianças das camadas mentos favorecidas da população, desta forma, seus problemas podem ser tanto sociais como neurológicos, (GOMES 1995:36, referindo-se a colocação de Fijalkow, 1989).

Na verdade, é a ausência de políticas publicas na área de saúde a responsável pelo maior número de problemas de parto em nascimentos de crianças das classes desfavorecidas; o mesmo ocorre em relação à ausência de políticas públicas eficientes na área de educação, que tem como conseqüência a inversão da responsabilidade, ou seja, um problema político-social acaba se convertendo, no nível das relações sociais e principalmente escolares, em um problema individual, tornando-se responsável o próprio prejudicado. Tanto o primeiro quanto o segundo problema

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atingem as crianças do mesmo extrato social, e por isso não podemos dizer que as causas são inerentes a elas ou ao seu grupo de origem.

Encontramos ainda, dentro da concepção organicista, a defesa do inatismo (características congênitas) como tentativa de atribuir uma origem genética para os problemas escolares do aprendiz. Discute-se também dentro da linha organicista a questão da maturidade/ imaturidade do sistema nervoso central, independentemente da polarização entre inatismo e problema adquirido.

Derivam desta idéia os temos criança imatura, criança lenta ou com problemas de coordenação motora, dentre outros.

Como pode ser verificado no grande freqüência da terminologia que remete a esta concepção, longe de ser superada, a abordagem organicista mantém adeptos na literatura que aborda o tema bem como no meio escolar. Assim, mesmo sendo questionados e criticados por outras vertentes de análise, os processos de patologização e biologização dos problemas de aprendizagem se destacam na explicação do quadro de fracasso do ensino público no Brasil, “isentando de responsabilidades o sistema social vigente e a instituição escolar nele inserida” (COLARES & MOISÉS, 1992:32).

As autoras acima citadas criticam a expressão “distúrbios de aprendizagem” por se referir a uma anormalidade orgânica localizada em quem aprende, significando uma “anormalidade patológica por alteração violenta na ordem natural da aprendizagem”, e por estarem excluídos nos diagnósticos outros fatores que possam interferir no processo de ensino-aprendizagem, exigindo assim um tratamento individualizado também em nível orgânico. As autoras, referindo-se à DCM, a partir de estudos históricos e etimológicos, apontam o fato de que os critérios utilizados não são objetivos para se definir cada um dos sintomas: hiperatividade e agressividade, dentre outros. Estranham o fato de que essa “doença” possa se fundamentar “na ausência obrigatória de qualquer alteração objetiva. Enfim, baseia-se na anormalidade, o oposto do objeto habitual da medicina” (1992:37). As mesmas autoras, ao analisar os fundamentos dessa abordagem questionam ainda: “Como discutir seriamente uma ‘doença’ que se caracteriza por esses ‘sintomas’? Como lidar com tal intensidade de biologização da sociedade?” (1992:45).

Para essas autoras torna-se difícil discutir seriamente um a ”doença” que se caracteriza por sintomas tão indefinidos e imprecisos, numa abordagem, que, contudo, criou “conceitos sofisticados e atraentes” sob um “alicerce irreal” apresentando como conseqüência “crianças rotuladas”, “patologizando o espaço escolar e dificultando transformações” (1992:46).

Outro fator que se acrescenta à imprecisão verificada ao se identificar dificuldades de aprendizagem a partir da abordagem organicista é a constatação de que as mesmas crianças discriminadas com referência nessa abordagem, somente manifestam os “sintomas” após a sua entrada para a escola, pois são crianças que se desempenham outras atividades de forma satisfatória. COSTA (1993:116) verificou, através de pesquisa realizada com alfabetizandos encaminhados à clínica de reeducação pedagógica na qual trabalhava, que a competência das crianças das “classes subalternas” pode ser facilmente percebida:

“As ‘histórias de vida’ das crianças estudadas demonstram que elas, desde cedo, são introduzidas no trabalho, no ‘fazer’. E comprovam, ademais, que elas realizam suas tarefas diárias com bastante competência, sucesso e criatividade. Apesar disso, fracassam na escola”.

Costa comprova, através de trabalho realizado com crianças identificadas pela escola como portadoras de dificuldades de aprendizagem, que, no prazo de um ano, utilizando metodologias iguais às utilizadas pelas escolas regulares, essas crianças se alfabetizam sem grandes dificuldades:

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“Ao desmistificar o conceito de patologia e deficiência atribuídas a essas crianças, buscou-se negar tal concepção, mostrando o seu contrário, isto é, como na prática, essas crianças aprendem, bem como sua capacidade no desenvolvimento das atividades não-formais (não escolares) e formais (escolares propriamente ditas). Além de demonstrar seu desempenho nas tarefas do cotidiano, através de suas ‘histórias de vida’, revelou-se também a construção lógica de suas respostas consideradas erradas em testes psico-pedagógicos. E, finalmente, pôde-se demonstrar sua capacidade na aquisição da língua escrita padrão, isto é, como elas demonstram concretamente capacidade para aprender; para assimilar, sem grandes contratempos, a língua padrão escrita”. COSTA (1993:117)

É importante ressaltar que a pesquisa de COSTA, acima citada, vem colocar em questão não somente a abordagem organicista de explicação para as dificuldades de aprendizagem, mas todas as abordagens que consideram incapazes ou portadoras de deficiências as crianças das classes dominadas.

Quanto ao conceito de alfabetização na abordagem organicista, podemos dizer que, segundo ele, o processo de aprendizado da leitura e da escrita é a aquisição de habilidades psicomotoras, sustentando-se a existência de seqüências de aprendizagens maturativas. Ignora-se, desta forma, a língua escrita enquanto objeto específico de aprendizagem assim como todas as variáveis socioculturais e pedagógicas envolvidas no processo educativo/ escolar.

Dentre os termos utilizados para classificar a criança como portadora de problemas de aprendizagem na leitura e na escrita na abordagem organicista (e também, como veremos, em outras abordagens) há um que merece destaque por ter sido objeto de estudo da área clínica, a partir d final do século passado: a dislexia, definida por SANTOS (1975:3) como o termo que “designa somente dificuldades à leitura e à escrita em indivíduos sem problemas outros de aprendizado e sem déficit sensorial ou de adaptação”. SANTOS usa o termo em sentido estrito, isto é, com sentido de “dislexia específica de evolução”, pois esta seria “uma denominação que se presta bem para delimitar o quadro clínico da síndrome. Diz-se de evolução porque os sintomas tendem, como o tempo, a desaparecer espontaneamente, e específica para circunscrever bem a questão, que se refere apenas ao campo em que entram leitura e escrita” (1975:3).

Os estudos sobre dislexia se realizaram de forma extensa e minuciosa, tendo-se chegando até mesmo a uma categorização dos problemas apresentados pelos disléxicos quanto às suas características, intensidade, freqüência, gravidade. Foram também estudadas as suas possíveis bases congênitas e hereditárias, bem como outros sintomas apresentados pelos sujeitos pesquisados, tais como canhotismo, problemas de visão e de audição, problemas de comportamento, noções espaço-temporais, falta de destreza em geral, dificuldade de discriminação e de reconhecimento de símbolos, lateralidade cruzada, espelhamento, sonambulismo, esgotamento materno, dentre outros. Pesquisou-se até mesmo a freqüência maior ou menor da dislexia segunda o gênero, e verificou-se que esta se apresentava com maior incidência em sujeitos do sexo masculino, “traduzindo-se por incapacidade, determinada geneticamente, de aprender a ler e a escrever de maneira normal” SANTOS (1975:27).

No entanto, a dislexia poderia não estar associada a defasagens de inteligência. SANTOS (1975:24) afirma que “a dislexia não está relacionada com déficit de inteligência, embora possa haver concomitância dos dois quadros. Costuma apresentar-se em pessoas de nível intelectual normal e parece mesmo ser mais freqüente em indivíduos de inteligência superior”.

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Chegou-se a buscar, nos estudos sobre dislexia, uma base neurológica para ela atribuindo-se como causa uma possível lesão. Essa hipótese, no entanto, não pode ser sustentada devido à ausência de comprovações. SANTOS (1975:27) afirma também que “sobre o que seja dislexia, em essência, ainda há somente hipóteses”, mas legitima didaticamente como “um defeito, existente no disléxico, em se tratando do ato da leitura e da escrita em si” . Acrescentando ainda um entendimento de SANTOS(1975:28) a dislexia se configuraria como “um defeito de visão ou de audição na ausência de distúrbio de ordem sensorial, a falha sendo de discriminação e relacionando-se especificamente com a palavra que se lê e que se escreve”.

À luz de novos estudos, desenvolvidos na década de oitenta, como os de Emília Ferreiro, fundamentados na teoria psicogenética de Piaget, e os estudos de Lingüística e, principalmente de Sócio-linguística, muitos sintomas que sustentavam a dislexia específica de evolução transfiguraram-se em especificidade do aprendizado da língua escrita. Quando, por exemplo, SANTOS disserta sobre a disortografia, apontando a escrita em espelho como um dos sintomas apresentados pelo disléxico, estava apresentando uma característica que, hoje, podemos entender de forma distinta.

Sabemos que o chamado espelhamento nada mais é do que o desconhecimento, da parte de quem assim escreve, de uma convenção da nossa escrita, ou seja, de que deve-se escrever da esquerda para a direita. Esta convenção pode não ter sido adquirida pelo aprendiz iniciante que a pratica. Desta forma, o que antes configurava-se como um sintoma de um problema localizado no aprendiz, hoje representa apenas uma etapa pela qual o aprendiz pode passar no processo de aquisição da linguagem escrita.

SANTOS, apontando os erros de omissão, também considerando-os sintoma de disortografia, exemplifica:

“o mais freqüente é suprimir-se letras mudas ou vogais – escreve BNDT (por BENEDITO), por exemplo. É comum a tendência à união de duas ou mais palavras numa só, mas se pode verificar a divisão de uma palavra, que o disléxico escreve em duas partes” (1975:13)

Estes mesmos sujeitos, identificados por Santos como disléxicos, hoje, segundo estudos mais recentes, estariam apenas passando por uma das etapas do processo de aquisição do código escrito – etapa em que o aprendiz trabalha com a “hipótese de que a escrita representa partes sonoras da fala” FERREIRO (1986:193): estaria passando pela etapa silábica da alfabetização, em que cada valor sonoro teria como correspondente, na escrita, a uma representação gráfica.

Quanto à tendência, apontada por Santos, de os disléxicos unirem duas ou mais palavras em

uma ou de dividirem uma palavra em partes, GAGLIARI (1993:142), assim como outros sócio-linguistas, analisando os chamados “erros ortográficos”, classificaria essa categoria de “erros” como juntura intervocabular, o primeiro caso, e segmentação, o segundo. Essas junturas e segmentações refletiriam os critérios utilizados pelo aprendiz para analisar a fala, pois, nesta, “não existe segmentação de palavra, a não ser quando marcada pela entonação do falante”.

Desta forma, percebemos que, em grande parte, o que se chamou dislexia deixa de ser um problema neurológico, psiquiátrico e se converte em um entendimento de ordem conceitual. O que era visto como um problema grave, com muitas implicações e critérios indefinidos para realização de diagnóstico, passa a ser somente uma característica do momento inicial de aquisição do código escrito, quando a criança se baseia na linguagem oral.

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Os estudos da concepção organicista para explicação do fracasso escolar e os estudos da dislexia foram desenvolvidos paralelamente, ambos buscando as bases físicas e biológicas para a confirmação de suas hipóteses. Nas obras sobre dificuldades de aprendizagem na leitura e na escrita, a dislexia aparece ora como a própria justificativa para os problemas de aprendizagem, como se os seus sintomas, em si, fossem as próprias causas dos problemas, ora como sintomas que deveriam instigar a busca das suas causas.

1.3 - Concepção Instrumental ou Cognitivista

Quando se classifica um aprendiz como lento ou que possui problemas de memorização, que não se expressa com facilidade ou que é anti-intelectual, é possível que a referência teórica eleita seja a instrumental ou cognitivista. Desenvolveu-se primeiramente em parte da Europa e EUA após a segunda guerra mundial, apresentando-se como Psicologia da Educação ou Psicologia Escolar. Nascida de uma vertente da Psicologia, esta abordagem tentou fazer a crítica da concepção organicista e da dislexia (GOMES, 1995:38).

A concepção instrumental ou cognitivista classificou quatro tipos de déficits correspondentes aos processos psicológicos: percepção, memória, linguagem e pensamento. As dificuldades de aprendizagem seriam conseqüências de perturbações de um desses quatro processos, ou da conjugação de dois ou mais, conforme defende Vernon (1987), citado por Gomes (1995:38).

Portando, para os cognitivistas as dificuldades de aprendizagem se devem, basicamente, a imprecisões perceptivas auditivas, visuais, transtornos motores, transtornos de linguagem, buscando-se, assim, as origens das dificuldades de aprendizagem na inteligência, nas imagens, percepção e integração dos sentidos audiovisuais, na memória, na atenção seletiva e na linguagem. Desta forma, os possíveis “transtornos” observados no aprendiz são traduzidos como déficits cognitivos. Entretanto, há questionamentos em torno dos resultados obtidos pois pretendem comprovar um déficit na inteligência. Seria óbvio que este déficit afetasse outras áreas da inteligência da criança, comprometendo inclusive outras aprendizagens, e não somente a linguagem, como se verifica nos aprendizes testados. Questiona-se também a situação de teste a que são submetidas as crianças para possível comprovação de problemas. Tais situações não são neutras, pois os conceitos e valores veiculados pelos testes provocam distinção de compreensão entre as crianças de classes sociais diferentes. A relação adulto/criança também é um fator a ser considerado numa situação de teste. Por tudo isto, a avaliação de aprendizes como maus leitores, feita através de testes de memória imediata, atenção seletiva, discriminação visual e auditiva e teste de linguagem, não deve ser considerada como um prognóstico neutro nem tão pouco definitivo e imutável.

Outro fator relevante a ser considerado ao analisarmos a teoria cognitivista diz respeito à natureza de suas investigações, que ocorrem na esfera intelectual: o estudo do campo funcional e psicológico substitui o estudo do desenvolvimento físico enfocado na teoria organicista. Há uma certa relação de continuidade da teoria organicista para a cognitivista, pois uma corrente de psicólogos escolares continuou afirmando a presença de determinantes biológicos nas dificuldades dos alunos alfabetizandos. Mesmo com a separação entre cognitivistas e organicistas após a década de cinqüenta continua presente em toda a produção científica sobre os problemas de aprendizagem na alfabetização o conceito de maturação bem como o uso das expressões relacionadas aos transtornos fisiológicos, ao definir os quadros de dificuldades de aprendizagem com referência nesta teoria.

A partir da década de oitenta, os cognitivistas, se subdividem em duas correntes, uma delas defendendo que as crianças das camadas populares possuem defasagens no desempenho cognitivo e

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a outra apontando para diferenças culturais e lingüísticas nestas crianças. Ainda nesta mesma década, com o avanço dos estudos na área de alfabetização realizados por Emília Ferreiro, Ana Teberosky e outros, uma vertente da teoria cognitivista rompe com a teoria organicista ao evidenciar que a aprendizagem da linguagem escrita é uma aquisição conceitual e que os aspectos maturacionais e Perceptivos-motores podem apenas influenciar o processo de alfabetização, não podendo, contudo, determiná-lo.

É interessante evidenciar que somente ao se mudar o conceito de alfabetização é que ocorre mudança na forma de se perceber os problemas de aprendizagem, que passam a não ser mais exclusivamente de ordem orgânica ou intelectual, mas também de ordem sócio-cultural. Anteriormente às pesquisas da década de oitenta, o processo de alfabetização era entendido pelos cognitivistas como aquisição de habilidades motoras, perceptivas e intelectuais; somente ao passar a ser percebido como uma aquisição conceitual foi possível romper com a teoria organicista. Este rompimento não significou, no entanto, que o foco das responsabilidades pelo fracasso escolar deslocara-se do aluno para o plano social, pois o aluno passa a fracassar por não ser considerado capaz de fazer transposições no nível simbólico. Muda-se somente o tipo de problema, permanecendo, no entanto, o mesmo portador. Percebe-se então que o rompimento se dá apenas no nível do conceito de alfabetização e não se dá no entendimento do que sejam as dificuldades de aprendizagem, prevalecendo, desta forma, a mesma explicação para o fracasso.

1.4 - Concepção dos Transtornos Afetivos da Personalidade

Quando se diz do aprendiz que ele apresenta desvios de conduta ou que possui um repertório comportamental indesejável é possível que o referencial utilizado seja o dos transtornos afetivos da personalidade. Esta concepção aponta como fatores determinantes das dificuldades de aprendizagem as perturbações afetivas e as características de personalidade apresentadas pela criança. Fundamentada numa corrente da teoria psicanalítica, esta concepção remete aos conflitos familiares vividos pelo aprendiz, deslocando o foco dos problemas individuais para as relações familiares, deixando também de priorizar os aspectos físicos e fisio-patológicos e intelectuais para centrar-se nos “sintomas” vinculados ao desenvolvimento emocional apresentados pelo sujeito em questão.

Para esta vertente de estudos da Psicanálise, a dislexia se configura como um sintoma neurótico ou psicótico e pode ser uma forma de linguagem da criança – meio encontrado por ela para evidenciar suas dificuldades no plano afetivo. As dificuldades de aprendizagem, consideradas como um sintoma, por esta vertente teórica, coloca o objeto de aprendizagem – a leitura e a escrita – em plano secundário ao delimitar a causa das dificuldades no plano afetivo.

Os conflitos da dinâmica familiar como eixo de análise na concepção dos transtornos afetivos da personalidade podem resultar no mesmo determinismo e nas mesmas generalizações das teorias organicista e cognitivista. Seria pertinente, então, os estudiosos e defensores desta perspectiva realizarem a distinção entre os sintomas que expressam uma mensagem da criança e do seu campo afetivo e os sintomas que não o expressam. Seria possível, como fazem os adeptos desta abordagem, realizar a distinção entre sintoma e causa?

A abordagem dos transtornos afetivos deveria abrir espaço para se pensar o percurso inverso da relação de causalidade proposta por esta vertente da teoria psicanalítica, ou seja, é possível se pensar nos transtornos afetivos, apresentados pelo aprendiz, atuando como conseqüência das dificuldades de aprendizagem? – inversão que poderia ampliar todo o ângulo da análise, pois desta forma outros aspectos envolvidos efetivamente com o processo ensino/ aprendizagem estariam em foco.

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Esta inversão poderia se constituir em significativo ponto de reflexão para os profissionais da educação, que sempre aceitaram, de uma forma geral, com muita naturalidade, as justificativas que dirigem ao aluno e ao seu meio as culpas pelo quadro de fracasso enfrentado na escola. Contribuindo com as teorias descritas anteriormente, a Psicologia veio acrescentar à terminologia que caracteriza o aprendiz com problemas escolares termos como criança problema, pretendendo corrigir os desajustes infantis através da higiene mental escolar (termos citados/ analisados por PATTO, 1990:44), contribuindo na manutenção ou continuidade das idéias vigentes. Este referencial desencadeia um processo desenvolvido pelos psicólogos clínicos e culminam no que PATTO define como “psicologização do fracasso escolar”.

O processo de aquisição da leitura e da escrita não se coloca como referencial de análise no conjunto da Psicologia Clínica, pois seu pressuposto norteador é o de que, se o estado afetivo-emocional da criança estiver saudável, conseqüentemente, ela não apresentará problemas de aprendizagem.

Desta forma, as variáveis do processo ensino-aprendizagem não se encontram integradas no arcabouço de análise da abordagem dos transtornos afetivos e familiares.

1.5 - Concepção do Handicap Sócio-cultural

A partir da década de sessenta, novas explicações para o fracasso escolar começaram a surgir nos Estados Unidos expandindo-se, muito rapidamente, por diversos países da Europa, América Latina e Brasil. Essas novas abordagens originaram-se da necessidade de pobres da população, sem contudo entrar no mérito da questão: “a desigual distribuição de riqueza numa sociedade dividida em classes” SOARES (1986:19).

Surge então a concepção do Handicap sócio-cultural ou teoria da carência cultural, no quadro da qual o aluno que fracassa na escola passa a ser designado como carente cultural, carente lingüístico, criança com linguajar trôpego e outros termos afins. Esta teoria mascarava os fundamentos da ideologia dominante, utilizando-se dos estudos da Antropologia Cultural para explicar o baixo rendimento das crianças pobres. Os indicativos utilizados para diferenciar estas das crianças das classes dominantes eram de ordem valorativa, privilegiando este último grupo por seus hábitos, normas e práticas de vida, considerados corretos, em detrimento dos valores das classes sociais economicamente desfavorecidas. Assim, defendeu-se a idéia de culturas inferiores ou diferentes, contextos considerados geradores de crianças problemáticas.

No contexto das definições que apontavam o meio sócio-cultural como responsável pelo fracasso escolar, apareceram algumas explicações de cunho eminentemente ideológico, que foram estudadas e desmascaradas pela Sociologia e pela Sociologia da Linguagem. A primeira explicação para o fracasso escolar insere-se no quadro da Ideologia do Dom, que postulava a existência de desigualdades naturais e diferenças individuais. A tentativa de estabelecer essas diferenças seria legitimada pela Psicologia, que pretendia mensurar aptidões intelectuais dos alunos e o fazia através de testes e provas supostamente científicos e neutros. Segundo esta ideologia, a escola não seria contra o povo e sim este contra ela “por incapacidade de responder adequadamente às oportunidades que lhe são oferecidas” SOARES (1986:11). Em meio aos defensores desta ideologia não faltou quem apontasse as diferenças de aptidão e inteligência como responsáveis pelas diferenças sociais, assim, os alunos considerados menos dotados pertenceriam às classes desfavorecidas exatamente por causa de sua condição de inferioridade intelectual.

Esta inversão político-ideológica apresentada nesta concepção, embora aceita amplamente no meio escolar, ainda hoje, não obteve estatuto de cientificidade, pois evidenciou-se que as supostas “diferenças individuais”, na verdade, eram características de uma classe social. Assim, “as desigualdades sociais têm, pois, origens econômicas, e nada têm a ver com desigualdades naturais ou desigualdades de dom, aptidão ou inteligência” SOARES, (1986:12).

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Outra explicação para as dificuldades de aprendizagem escolar insere-se no quadro da ideologia da deficiência cultural, em que as desigualdades sociais são responsabilizadas pela diferenciação verificada no rendimento escolar. Assim, as condições de vidas e as formas de socialização da criança das classes dominadas seriam desfavoráveis à aquisição de atitudes, habilidades, interesses e hábitos, e a ausência deles desencadearia os problemas de aprendizagem. Os defensores desta explicação não se preocuparam com a estrutura social responsável pelas deficiências, defendendo a “superioridade” das classes dominantes em contraste com “pobreza cultural” das classes dominadas. Os alunos das classes dominadas seriam portadores de “déficits” em decorrência de suas condições de “carência cultural”. Na suposta precariedade de estímulos sociais e sensório-perceptivos, na ausência de contatos com objetos da cultura dominante nas diferentes situações de comunicação e interação das crianças das classes dominadas estariam as bases do problema escolar. Da pobreza social e familiar adviria o fracasso das crianças das classes dominadas, pois estas apresentariam deficiências no campo afetivo, cognitivo e lingüístico. A este estado patológico apresentado pelas crianças pobres a escola, deveria oferecer “tratamento”, na tentativa de “compensar” a suas “deficiências” provenientes da sua condição de “privação cultural”.

Esta segunda explicação também não pôde se sustentar na perspectiva das ciências sociais e antropológicas – embora seja um discurso recorrente no meio escolar – pois os conceitos de deficiência e carência cultural não são aceitos por esses campos de investigação. Para estes campos de conhecimento, é inaceitável identificar uma cultura como superior ou inferior, mais pobre ou mais rica que outras, pois culturas não diferem em grau de complexidade, são, apenas, diferentes. Considera-se cientificamente incorreto atribuir carência ou ausência de cultura a um determinado grupo, pois, segundo a Antropologia, cultura

“significa precisamente a maneira pela qual um grupo social se identifica como grupo, através de comportamentos, valores, costumes, tradições, comuns e partilhados. Negar a existência de cultura em determinado grupo é negar a existência do próprio grupo” SOARES, (1986:14).

Deste entendimento surge uma terceira explicação para o fracasso escolar inspirada por uma ideologia das diferenças culturais, que pretende estabelecer a distinção entre deficiências e diferenças, apontando para o reconhecimento de diversidade culturais, constatação de culturas diferentes entre si mas igualmente complexas, coerentes e estruturadas. Entretanto, o reconhecimento das diversidades culturais toma outra dimensão se considerarmos que, nas sociedades capitalistas, onde convive uma grande diversidade de culturas, continuam prevalecendo os padrões culturais dos grupos dominantes, que se configuram como a cultura considerada superior e legítima. Os outros grupos são considerados subculturas comparando-se ao dominante que é privilegiado economicamente. Concordando com SOARES (1986:15):

“É assim que a diferença se transforma em deficiência, em privação, em carência. Trata-se, na verdade, de uma atitude etnocêntrica, para a qual ser diferente das classes dominantes é ser inferior”.

No que se refere à escola, é imprescindível constatar seu papel no processo de marginalização das culturas dominadas. O padrão cultural do aluno de classe econômico-social desfavorecida é ignorado e/ ou desvalorizado, ou ainda, considerado incorreto. O padrão dominante é o modelo construído a partir dos valores da classe dominante, e a escola reproduz a marginalização transformando as diferenças em deficiências.

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Á posição teórica das diferenças e deficiências culturais e lingüísticas PATTO (1990:340), se contrapõe ao dizer que:

“As explicações do fracasso escolar baseadas nas teorias do déficit e da diferença cultural precisam ser revistas a partir do conhecimento dos mecanismos escolares produtores das dificuldades de aprendizagem”. “A inadequação da escola decorre muito mais de sua má qualidade, da suposição de que os alunos pobres não têm habilidades que na realidade muitas vezes possuem, da expectativa de que a clientela não aprenda ou que o faça em condições em vários sentidos adversas à aprendizagem, tudo isso a partir e uma desvalorização social dos usuários mais empobrecidos da escola pública elementar”.

1.6 – Pontos comuns entre as abordagens

Como podemos verificar, embora cada teoria desenvolvida para explicar o fracasso escolar através das denominadas dificuldades de aprendizagem tenha suas especificidades, é possível extrair do conjunto de suas concepções alguns aspectos que, em maior ou menor escala, estão presentes em todas elas. Um primeiro aspecto comum encontrado em todas as teorias apresentadas é o foco do problema localizado no aprendiz. É como se as teorias se desenvolvesse em busca de um responsável, um culpado.

Como já descrito anteriormente, para a concepção organicista o aprendiz já nasce com esta responsabilidade localizada no seu cérebro, portanto, sua inaptidão para aprender em condições escolares consideradas normais permanecerá indefinidamente e, mesmo que venha a aprender, o problema continuará existindo e pertencendo a ele e poderá se apresentar novamente.

Na concepção instrumental cognitivista, a responsabilidade se desloca do nível físico (hereditário ou neurológico) para o psicológico. Os problemas serão localizados no campo das percepções do aprendiz e a sua inteligência será acusada de deficitária, se constituindo como um problema de caráter eminentemente irreversível, caso o aluno não seja submetido a um processo de reversão. Muitas vezes os programas de educação compensatória se propõem a realizar esse “tratamento” – medidas que não têm obtido resultados satisfatórios.

A concepção dos transtornos afetivos da personalidade aponta como fator determinante das dificuldades de aprendizagem as perturbações afetivas e as características da personalidade da criança, centrando-se, assim, nos sintomas apresentados. Embora esta concepção deixe de priorizar aspectos físicos ou intelectuais de caráter irreversível, continua focalizando o aluno e seu meio como responsáveis e indicando que os seus sintomas podem afetar o seu campo cognitivo, assim prejudicando seu aprendizado. Essa corrente teórica dá margem para que o aluno seja classificado como incompetente para aprender na escola, uma vez que quem determina o grau de inabilidade do aluno e as possibilidades de superação do problema poderá fazê-lo através de critérios imprecisos e arbitrários, até mesmo dissociados de suas circunstâncias reais. Desta forma, o destino do aluno, na escola, poderá ser determinado, também de forma irreversível, tendo-se como referência esta concepção.

As explicações decorrentes das teorias do Handicap sócio-cultural atribuem à criança que fracassa na escola, de uma forma geral, deficiências, carência ou diferenças que vão desde comparações e atribuições valorativas de seus hábitos cotidianos até sua incompetência lingüística, desta forma, percebendo afetados o campo físico(na inabilidade de utilizar objetos que não conhecem, por exemplo), o campo sócio-afetivo (na inabilidade se comunicarem de forma eficiente ou aprenderem na escola). É interessante verificar que esta concepção, considerada avançada no meio científico, contém em seu arcabouço teórico aspectos que foram desmascarados e

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considerados não científicos em suas teorias de origem. Mesmo quando se diz que há apenas diferenças entre os alunos que fracassam e os outros, estão embutidas nesta expressão atribuições valorativas que provocam distinção de percepção entre um e outro aluno. Esta distinção está relacionada à maior ou menor competência e habilidade para aprender. Sendo assim, é apenas um termo de distinção não se constituindo, portanto, como um desvio de foco de responsabilidade pelo fracasso.

Há um segundo aspecto que pode ser considerado comum a todas as teorias e pode ser visto como decorrente do primeiro. No conjunto das obras analisadas pela pesquisa referida anteriormente, e que se respaldam nas teorias apresentadas para explicar as dificuldades de aprendizagem, podemos encontrar os aspectos maturacionais ocupando lugar de destaque. Em todas as abordagens descritas acima há indícios de que a maturidade seria um fator determinante nos processos de aprendizagem escolar. Embora este termo nem sempre esteja presente nas teorias ou nas obras que abordam as dificuldades de aprendizagem, e ainda que se apresentem com conotação diferenciada em cada teoria, esta idéia encontra-se, implícita ou explicitamente, fazendo referência à mesma massa de alunos que têm fracassado nas escolas públicas brasileiras desde o início do século: os alunos das camadas desfavorecidas da sociedade brasileira.

Na teoria organicista a maturidade aparece como sendo de natureza fisio-neurológica; na concepção cognitivista é indicada como pertencendo ao campo das percepções e d intelecto; na concepção dos transtornos afetivos da personalidade refere-se aos estados maturacionais dos aspectos afetivos emocionais da criança fracassada; nas diversas vertentes da teoria do Handicap sócio-cultural aparece como ausência de requisitos indispensáveis ao processo de aquisição dos aprendizados escolares.

Imaturidade sugere, quase sempre, ausência ou baixa qualidade/ quantidade de características consideradas imprescindíveis para o sucesso na aprendizagem. Esta idéia de ausência ou deficiência decorre o fato de que o aluno é percebido como responsável pelo fracasso pois a imaturidade sempre está localizada nele, determinando o seu estágio de desenvolvimento geral. Imaturidade associada ao conceito de prontidão, que significa estar pronto para participar de algum evento que exige certas condições; quem não as possuir pode ser barrado na entrada.

Percebe-se que de uma teoria para outra o conceito de maturidade mudou apenas de roupagem, permanecendo, no entanto, com o mesmo conteúdo conceitual-ideológico.

Um terceiro aspecto comum às teorias sobre as dificuldades de aprendizagem, constatado no estudo das obras que tratam das dificuldades no processo de aquisição da linguagem escrita, refere-se à ausência de abordagens relacionadas às especificidades da língua, da linguagem oral e escrita, e, conseqüentemente do próprio objeto de conhecimento, ou seja, não se considera a escrita como objeto de conhecimento no processo de sua aprendizagem. Na negligência ao tratamento da leitura e da escrita parece estar implícita a idéia da falta de utilidade (como e por quê?) se discutir sobre o processo de alfabetização e suas especificidades se anteriormente ao aprendizado da escrita, propriamente, têm que ser resolvidos outros impasses tais como os aspectos maturacionais do aluno. Desta forma este terceiro ponto comum pode ser avaliado como decorrente do entendimento que se tem dos dois primeiros.

Mais uma vez podemos verificar que o pressuposto básico dessas teorias se assenta nas supostas deficiências do aprendiz, visto como a própria personificação das dificuldades que apresenta: o aprendiz é identificado pelo olhar dos profissionais como o próprio problema, portanto, ele próprio, é uma etapa a ser transposta. Assim, devem ser antes resolvidos os problemas da/ na criança, para depois (se este momento chegar), inseri-la no mundo da aprendizagem. Uma

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confirmação desta postura é o fato de se perceber a aprendizagem. Uma confirmação desta postura é o fato de se perceber a aprendizagem como uma seqüência de etapas – das consideradas mais rudimentares até os níveis mais sofisticados de conhecimento. Desta concepção de aprendizagem decorre a idéia de estados maturacionais a serem atingidos como pré-requisitos para aquisição gradual de conhecimentos. As concepções de aprendizagem e de aluno – no caso, alunos percebidos como portadores de dificuldades de aprendizagem – norteiam as teorias e as análises a respeito do fracasso na alfabetização.

No entanto, como dito no início deste capítulo, “é o uso da língua na escola que evidencia mais claramente as diferenças entre grupos sociais e que gera discriminação e fracasso” SOARES (1986:17). Qual seria então o fundamento da aparente contradição entre ser o uso da língua fator determinante de discriminação da criança que fracassa na escola e a quase ausência de abordagens sobre alfabetização propriamente?

Foi possível verificar, através das articulações conceituais realizadas na meta-pesquisa sobre dificuldades de aprendizagem na leitura e na escrita, que as concepções tanto de alfabetização quanto de dificuldades indicam que os autores das obras analisadas “privilegiam sempre aspectos do processo de aprendizagem, não considerando a totalidade dos fatores constituintes do processo de ensino-aprendizagem e, muito menos, sua interação na constituição deste processo” SENA et alii (1993:26).

O processo de ensino-aprendizagem da leitura e da escrita, para a maioria dos autores, é constituído de situações de treino de habilidades pré-definidas, sempre obedecendo a uma seqüência de etapas. A aquisição da linguagem escrita é percebida como um aprendizado mecanizado que deve ser automatizado pelo aprendiz. Conseqüentemente, o não aprendizado é visto como um distúrbio residente na própria criança, que por isso, deverá ser submetida a um processo de correção.

“Criança com linguajar trôpego, carente lingüístico, criança com pobreza vocabular” são alguns dos termos responsáveis pela rotulação do aluno que não apresenta, aos olhos da escola, o domínio da linguagem oral necessário para ingressar no processo de aquisição da linguagem escrita. Vários outros termos não se referem à linguagem propriamente dita porque dizem respeito a aspectos considerados anteriores à aquisição do desempenho lingüístico tais como: habilidades psico-motoras, comportamentos adequados, etc. Portanto, não é difícil supor que as teorias que tentam explicar as dificuldades de aprendizagem consideram, na grade maioria dos casos, que o aluno percebido como portador de dificuldades não é capaz de falar bem a sua língua, se ainda não possui habilidades consideradas primárias, desta forma, não podendo ser submetido ao aprendizado da escrita.

O uso da língua no meio escolar constitui-se então como uma espécie de radar para detectar e classificar a competência da criança para aprender ou não a ler e escrever. Cada teoria denominará de forma distinta o aluno considerado por ela como portador de dificuldades de aprendizagem na leitura e na escrita, embora nem sempre esteja explicitada uma concepção de língua/ linguagem e de alfabetização nos trabalhos que abordam o tema. É possível fazer esta afirmação se nos lembramos de que a quase totalidade dos alunos que fracassam na escola são provenientes das camadas mais pobres da sociedade e que por isto estão sujeitos a vários tipos de discriminação. A discriminação lingüística parece estar presente em todas as teorias, ainda que de forma dissimulada.

Além disto, devemos considerar que a utilização dos termos é bastante vulnerável, pois uma mesma terminologia poderá ter múltiplos significados, dependendo de quem a utiliza, de como é utilizada e para designar que se usa um termo ou outro. Desta forma, podemos dizer que uma

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mesma expressão pode ser utilizada por diversas teorias, fato que muito compromete a rotulação existente, pois esta não parece obedecer a critérios definidos de classificação.

Finalmente, podemos dizer, fundamentados nos estudos da Lingüística e, principalmente da Sociolingüística, que as teorias e abordagens sobre as dificuldades de aprendizagem desconsideram ou consideram de forma equivocada o uso da língua das crianças que fracassam na escola.

As explicações apresentadas para as dificuldades de aprendizagem na leitura e a escrita omitem inúmeros aspectos do contexto onde ocorre o processo de aquisição da linguagem escrita: a escola. Esquecem-se de mencionar que esta instituição ignora, muitas vezes, o conhecimento trazido pela criança a respeito do objeto de conhecimento, no caso, a escrita.

Segundo os fundamentos da Sociolingüística da alfabetização, o processo de aquisição da escrita está relacionado aos usos e funções sociais da língua, desta forma considerando que este aprendizado ocorre “... antes da escola, fora da escola e até mesmo apesar da escola” SOARES (1988:24). No entanto, por ignorar o conhecimento que o aluno traz consigo antes de ingressar na escola, esta instituição “impõe uma escrita falsa, descontextualizada; impõe à leitura um texto, o texto das cartilhas e dos livros didáticos, sem outra função que a função escolar” SOARES (1988:24).

O aprendizado da língua escrita não é percebido como um fenômeno lingüístico, sócio e/ ou psicolingüístico, visão que mudaria o lugar do aprendiz no processo de aprendizagem escolar, uma vez que seria reconhecida a sua fala e o conhecimento que tem da língua materna como mediadores do processo de aquisição da escrita. O desempenho cognitivo e os usos da língua (oral e escrita) pelo aprendiz seriam integrantes do processo de aprendizagem escolar.

Toda essa mudança de entendimento a respeito do processo de aquisição da linguagem escrita ocasionaria uma nova forma de se definir as dificuldades de aprendizagem, e conseqüentemente, reduziria significativamente o índice de reprovação da primeira para a segunda série do ensino fundamental – passagem que denuncia o fracasso na alfabetização.

Todavia, essa mudança conceitual exigiria a revisão de outros conceitos correlacionados à questão, tais como: papel do professor no processo de ensino-aprendizagem; metodologia adotada pela escola; visão de aprendiz. Tais mudanças, na prática, têm se mostrado complexas, uma vez que interferem em uma conjuntura escolar rígida e cerceada por condicionais externos a ela.

Ocorrência semelhantes às verificadas nas teorias que explicam as dificuldades de aprendizagem podem ser encontradas na escola por esta obedecer às mesmas normas das primeiras, ou seja, a ordenação, a sequenciação pré-definida e sua inflexibilidade, a hierarquização tanto de transmissão/ aquisição de saberes quanto do sujeitos envolvidos no processo de ensino aprendizagem. As concepções de problemas de aprendizagem e as normas e condutas escolares parecem ter sido edificadas uma em conformidade com a outra.

Estudo da Sociolingüística denunciam o preconceito lingüístico presente nas praticas escolares, não somente ao redefinir as bases para o aprendizado da leitura e da escrita, mas ao dizer que o dialeto culto é predominantemente discriminativo na medida em que é o único aceito no meio escolar, fato que exclui, a priori, as crianças das classes dominadas, visto que “as crianças das classes privilegiadas, por suas condições de existência, adaptam-se mais facilmente às expectativas da escola, tanto em relação às funções e usos da língua escrita, quando em relação ao padrão culto da língua oral” SOARES (1985:23). Decorrem daí as rotulações de

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incapacidade para o aprendizado da escrita, pois a escola não aceita as características dos dialetos das crianças pobres, gerando, desta forma preconceitos lingüísticos e culturais.

A soluça apontada por aqueles que pensam através do prisma dos preconceitos, das supostas carências e deficiências, tem sido o desenvolvimento de inúmeros programas de educação compensatória – medida que não tem alcançado resultados positivos além de reforçar

“a discriminação das crianças das classes populares: se os programas fracassam, as próprias crianças e suas famílias serão responsabilizadas, na medida em que se considera que lhes foram dadas as oportunidades educacionais e, como não progrediram, são mesmo incapazes” (Soares citando KRAMER, 1982).

É possível perceber, então, que as teorias existentes para explicar as dificuldades de aprendizagem e o peso destas no fracasso escolar da alfabetização se encontram fortemente vinculadas às práticas escolares e exercem papel importante na consagração da ideologia dominante. As teorias atendem, portanto, a interesses escolares e principalmente sócio-políticos.

As variações lingüísticas funcionam como fator de discriminação e instrumento de uso de autoridade e poder dentro das escolas. Como afirma CAGLIARI (1993:48) “Se lingüisticamente não existe o certo e o errado, mas o diferente, socialmente as coisas não caminham desse modo. A sociedade se apega a fatos lingüísticos, que por si são neutros, a fim de usá-los como argumento para seus preconceitos”. No entanto, a descriminação lingüística não aparece de forma clara nas abordagens sobre as dificuldades de aprendizagem na leitura e na escrita. A ausência de discussão sobre os conceitos de alfabetização, língua e linguagem apresenta-se como forma de desvio da questão central: o preconceito para com os alunos das classes desfavorecidas.

Partindo da constatação de que ainda não foi possível comprovar de forma eficiente à inabilidade/ incapacidade das crianças que, na escola, não aprendem a ler e a escrever, este trabalho opera com a seguinte hipótese: grande parte dos alunos que têm fracassado no processo de alfabetização, nas escolas públicas brasileiras, não padece, como se tem acreditado, de distúrbios de aprendizagem ou de alguma deficiência individual capaz de impedi-los de aprender. Consideraremos que o não aprendizado verificado faz parte de um conjunto articulado de circunstâncias desfavoráveis ao processo de aquisição da escrita, também passíveis de serem verificadas nas práticas escolares, como, dentre outras: metodologias desvinculadas da natureza lingüística do objeto a ser ensinado/ aprendido; falta de reconhecimento, da parte dos profissionais da escola, da capacidade cognitiva do aprendiz das camadas pobres da população; despreparo da escola para receber a clientela que atende; auto-estima do aluno afetada em decorrência das discriminações lingüísticas e ressaltar que não consideramos estes aspectos como originários da escola, e sim de um complexo social mais amplo – assunto que não será abordado neste trabalho.

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