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IV CONGRESSO SERGIPANO DE HISTÓRIA & IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA DA ANPUH/SE
O CINQUENTENÁRIO DO GOLPE DE 64
AS DROGAS, O TRAFICANTE E A LEI:
NOTAS EM TORNO DE UMA GUERRA
Rogério França1
RESUMO: Compreendendo a “guerra às drogas” enquanto dispositivo de
biopoder, ou seja, enquanto um conjunto de elementos heterogêneos (linguísticos
e não linguísticos), suas relações e sua função estratégica, que atua integrando
procedimentos de uma anátomo-política do corpo, de uma biopolítica da
população e de modos de subjetivação, buscamos aqui uma análise de três figuras
centrais de tal guerra, bem como de seu funcionamento sob a ótica de uma gestão
das ilegalidades. Afinal, cabe perguntar: como tem funcionado a “guerra às
drogas”, para além de seus princípios? Que papeis jogam a lei, as drogas e o
traficante nessas batalhas? Partindo de três noções (re)elaboradas por Giorgio
Agamben e tendo por horizonte um regime de biopoder tal como sugerido por
Michel Foucault é que tentamos responder a tais questionamentos. Neste sentido,
as figuras da droga e do traficante emergem como figuras por excelência de uma
exclusão e de um combate, que se dá na, pela e além da lei.
Palavras- chaves: Drogas, Traficantes, Lei.
A profanação do improfanável é a
tarefa política da geração que vem.
Giorgio Agamben
NOTÍCIAS DO FRONT
A guerra às drogas, na medida em que constitui o tempo forte da política
proibicionista que emerge no início do século XX, nada tem de metafórico em seu
enunciado: a declaração de guerra expressa precisamente o que pretende expressar, ou
seja, uma guerra. E em uma guerra, grosso modo, tem-se objetivos (um mundo livre das
drogas), um direito específico (a legislação de exceção internacional e suas adaptações
1 Doutorando em História pela Universidade Federal da Bahia - UFBA, pesquisador colaborador do
Núcleo de Estudos da Subalternidade – NUES/UNEB, bolsista da Fundação de Amparo a Pesquisa do
Estado da Bahia – FAPESB.
Contato: [email protected]
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locais visando à eliminação das substâncias psicoativas tornadas ilícitas) e, como seria
de se esperar, um inimigo a ser combatido (ora é a drogas em si, signo maior de todo
mal possível, ora é o traficante, mercador da morte, que tanto vende a desgraça quanto
pode causá-la, dado sua indissociabilidade da violência).
Ora, parece não haver dúvidas que o consumo de substâncias psicoativas, em
nosso tempo (fins do século XX e início do XXI), venha a assumir, sob determinados
aspectos, uma feição problemática. Negar isso seria tão absurdo quanto defender a
lógica proibicionista, afinal, não é necessário muito esforço para encontrar nos centros
de cidades como Salvador e Recife grande números de crianças, nas ruas, usando crack,
cola, loló. E isto é apenas um exemplo. Mas é também apenas um dos lados da moeda.
Se for verdade que o exemplo de crianças usando drogas sustente a hipótese de um
“problema das drogas”, por outro lado a política de drogas, expressa atualmente no
modelo bélico da war on drugs, constitui, também, um problema. Dito de forma
simples, se o consumo de psicoativos pode vir a se configurar problemático (adicção,
consumo por parte de crianças, dentre outros), também é correto afirmar que a política
de drogas se configura enquanto problema. Temos então problemas relativos ao
consumo e problemas relacionados ao combate às “drogas”.
É notório que a mídia hegemônica, no desempenho de seu protagonismo
enquanto quarto poder2, tente fazer crer que há apenas um dos problemas acima
2 A relação entre mídia e poder necessitaria, com efeito, de uma ampla matização. Entretanto, tomemos o
caso específico do jornalismo e o topos que o considera enquanto quarto poder. Embora possamos dizer
que tal categoria careça de rigor analítico, ela ainda aponta no sentido de estabelecer a mídia e o
jornalismo enquanto potências. Como coloca André Fontaine, o conceito de quarto poder seria impróprio
por: não corresponder às definições clássicas de poder constituído; carecer de uma articulação em um
centro decisório e unificado por parte dos órgãos de comunicação e das práticas jornalísticas; e,
finalmente, porque o grau de autonomia da mídia e do jornalismo seria reduzido. Entendo a mídia e o
jornalismo em particular enquanto potência no sentido articulado por Deleuze: “...as religiões, os Estados,
o capitalismo, a ciência, o direito, a opinião, a televisão são potências mas não a filosofia (...) não sendo
uma potência a filosofia não pode empreender uma batalha contra as potências; em compensação, trava
com elas uma guerra sem batalhas, uma guerra de guerrilha”.
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apontados, ou seja, que o “problema das drogas” refira-se exclusivamente ao tráfico e
ao consumo, com as suposta características imanentes associadas a essas duas práticas:
a violência do tráfico, a doença e violência do usuário, o consumo exclusivamente
problemático (adicto), o perigo para a saúde e segurança pública. O jornalismo nosso de
cada dia não só não questiona os resultados genocidas do combate às drogas como o
legitima, faz deles seu espetáculo diário. Não seria de estranhar se, tal qual em obra de
José Saramago, com a suspensão dos trabalhos por parte da Morte, os primeiros a
perder seus empregos fossem os profissionais do dito “jornalismo policial”.
Assim, o ponto que gostaria de explorar aqui é precisamente este: em que
medida a guerra às drogas constitui um problema mais letal que o alardeado “problema
das drogas” (fundamento e justificativa para a guerra)? Sustentei em outros momentos
que, esse combate às drogas, expresso nas premissas de uma guerra, configura um
dispositivo de biopoder, desdobrado em uma lógica que articula tanto procedimentos de
totalização (uma biopolítica da população) quanto de individualização (disciplinas e
processos de subjetivação). Tratava-se, então, de observar como a guerra contra as
drogas ocupa um lugar estratégico no regime de poder, como pode ser vista sob o
ângulo de uma gestão das ilegalidades (FRANÇA, 2013; 2012).
Seguindo essas inferências, cumpre aqui um passo a mais, explorando três
figuras-chave da guerra às drogas: a própria droga (abordada em sua dimensão sacra ou
religiosa, ou seja, daquilo que foi subtraída ao uso livre dos homens e mulheres); o
traficante (signo contemporâneo do homo sacer, a vida matável sem que se cometa
crime, aquela que é incluída no ordenamento via sua exclusão, ou seja, sua
matabilidade); e, finalmente, a lei, (no caso a lei de drogas, enquanto dispositivo que
viabiliza um estado de exceção permanente – na medida em que o estado de exceção
deixa de ser uma suspensão temporal do ordenamento para se converter em regra).
Cf. FONTAINE, 2003; DELEUZE, 1992.
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Esses três conceitos (religiosidade, homo sacer e estado de exceção) que são
convocados para pensar os três componentes da guerra contra as drogas são tomados em
suas (re)elaborações a partir dos trabalhos de Giorgio Agamben. Efetivamente, o
horizonte biopolítico permanece ativo, tanto aqui quanto nos desenvolvimentos
agambenianos. A questão central, e que parece ser umas das contribuições decisivas de
Agamben quando se propõe fazer o encontro entre os trabalhos de Michel Foucault e
Hannah Arendt3, é que embora Foucault tenha identificado na modernidade uma
crescente inclusão da vida natural dos indivíduos nos mecanismos e nos cálculos do
poder (ao que chamou de biopolítica), o que é urgente pensar é em que medida a
exceção torna-se, em todos os lugares, a regra, e como a vida nua (como a do homo
sacer) converte-se numa vida nua com existência política, ou seja, em ponto de
articulação entre vida natural (zoé) e vida qualificada, a forma de viver de um indivíduo
ou grupo (bíos). Esse avanço de Agamben com relação às pesquisas de Foucault, no que
tange à biopolítica, aparece de forma precisa quando o filósofo italiano coloca que “[...]
o rendimento fundamental do poder soberano [que é aquele que decide sobre o estado
de exceção] é a produção da vida nua como elemento político original e como limiar de
articulação entre natureza e cultura, zoé e bíos” (AGAMBEN, 2007a, p. 187. Grifo
nosso).
Nesse sentido, retomando a discussão de que a war on drugs configure um
dispositivo de biopoder4, espero reafirmar a literalidade da guerra contra os psicoativos
3 Tal articulação se dá na medida em que, como coloca Agamben, Arendt não estabeleceu nenhuma
conexão entre o processo de ocupação do centro da política moderna pela vida biológica e suas análises
sobre o poder totalitário; por outro lado, Foucault não deslocou suas investigações para o terreno par
excellence da biopolítica moderna, ou seja, o campo de concentração e estrutura dos estados totalitários
do século XX. 4 De forma esquemática: “(...) os conceitos de dispositivo e biopoder se relacionam na medida em que,
para Foucault, um regime de biopoder constitui aquilo que ele chama de tecnologia política de uma
época. Essa tecnologia se desenvolve em torno de uma anátomo-política do corpo humano e de uma
biopolítica da população, sendo composta pelas disciplinas do corpo e as regulações da população, e cuja
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e seus usuários, bem como salientar que tal guerra não falhou, ou seja, os seus
resultados nada tem de contraproducentes e sua operacionalidade é absolutamente letal,
convertendo as periferias do mundo em campos onde o poder soberano se expressa sem
meios termos frente à vida nua.
LEI DE DROGAS E EXCEÇÃO
A legislação brasileira sobre drogas acompanha desde o início a conformação
internacional do proibicionismo e, já em 1915, tem-se promulgada no país a Convenção
do Ópio de 1912. Essa tendência segue-se ao longo do século XX e, em 1964, o Brasil
se insere na tentativa de uniformização internacional da legislação proibicionista, ao
promulgar a Convenção Única de Nova Iorque sobre Entorpecentes, de 1961. A lei de
drogas de 1976 traduz todos os anseios proibicionista, como a criminalização dos
consumidores, penas altíssimas para o crime de tráfico e dispositivos altamente
invasivos. Após trinta anos, e depois de repetidos diagnósticos de falha da política de
guerra às drogas, em 2006 veio a lume a lei 11.343, que não obstante os alardeados
avanços em relação à legislação anterior, situa-se ainda na seara proibicionista e acaba
mesmo por radicalizar alguns dos seus postulados em comparação à lei 6.368/76.
A lei de 2006, ao contrário do que vez por outra se ouve, não descriminalizou a
conduta de consumidor. A posse para uso pessoal apenas deixa de se passível de pena
privativa de liberdade, o que de resto já se configurava enquanto possibilidade a partir
da noção de “infração de menor potencial ofensivo”. A questão que se coloca é
obviamente a imprecisão da legislação, uma vez que não define de forma clara o que
articulação [de tais técnicas de poder] se dá precisamente pelos dispositivos”. (FRANÇA, 2013). Sobre
dispositivos de poder ver FOUCAULT, 1977. A discussão sobre biopolítica está mais precisamente
colocada em FOUCAULT, 1999 (o último capítulo) e FOUCAULT, 2008, embora nesta última o
liberalismo enquanto lócus biopolítico assuma a proeminência.
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seria uma quantidade de determinada substância para “uso pessoal”, e a quantidade que
transgrediria essa condição deixando o portador na categoria de “traficante”.
No Capítulo III (Dos crimes e das penas), do Título III da lei de 2006, o artigo
28 estabelece que quem
[...] adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer
consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em
desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido
às seguintes penas: I- advertência sobre os efeitos das drogas; II-
prestação de serviços à comunidade; III- medida educativa de
comparecimento a programa ou curso educativo [...] (BRASIL,
2006, s/p).
Nessas mesmas penas também incorrem aqueles que, para consumo pessoal,
semeiam, cultivam ou colhem (grower) “[...] plantas destinadas à preparação de
pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou
psíquica [...]” (BRASIL, 2006, s/p).
Como colocamos, o uso pessoal não deixa de ser crime passível de pena (bem
como a prática do grower), apenas se exclui a possibilidade de pena privativa de
liberdade. Mas eis que a imprecisão compromete o avanço que se pretendia face à
conduta de usuário. No segundo parágrafo do mesmo artigo 28, a norma estabelece que
[...] para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o
juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida,
ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às
circunstancias sociais e pessoais, bem como à conduta e
antecedente do agente [...] (BRASIL, 2006, s/p).
De tão vago, esse parágrafo bem poderia ser suprimido. Isso se não fosse suas
implicações que nos fazem vislumbrar sua positividade nefasta. Primeiro, que antes que
o juiz possa determinar a quantidade, esse poder é todo do agente de polícia. Certamente
a determinação precisa de uma quantidade para consumo não impossibilitaria que um
policial inescrupuloso fraudasse a conduta do usuário, implicando-o no crime de tráfico.
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Isso só reforça o caráter de exceção de tal legislação, na medida em que criminaliza o
consumo de psicoativos. Outro aspecto significativo é a “natureza da substância”.
Certamente a ideia de que determinadas substâncias são menos prejudiciais que outras
(menos perigosas para a saúde do indivíduo e da sociedade) e como tal gozam de um
grau de aceitabilidade maior se imporá: aqueles que forem pegos com quantidades
equivalentes de maconha terão maior condescendência que os apanhados com cocaína?
Por fim, a atenção à “conduta e antecedentes do agente” não disfarça o horizonte moral
no qual a lei se escora.
A legislação portuguesa, que descriminalizou o consumo de drogas em 2001,
prevê no segundo artigo da lei 30/2000 que a
[...] aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias
referidas [...] - leia-se, praticamente todas e aquelas que porventura
venham a existir, como fica explicitado nas tabelas anexas ao
Decreto-Lei nº 15/93] – [...] não poderão exceder a quantidade
necessária para o consumo médio individual durante o período de
10 dias [...] (PORTUGAL, 2000, p. 6829).
Embora a definição de “consumo médio individual” permaneça com certo grau de
imprecisão, a norma portuguesa avança bastante em relação à proibicionista lei
brasileira. A legislação brasileira inaugurada em 2006 não demorou a receber críticas.
Maria Lúcia Karam, problematizando a manutenção do consumo pessoal enquanto
crime, coloca de forma clara que
[...] a simples posse para uso pessoal das drogas qualificadas de
ilícitas, ou seu consumo em circunstâncias que não envolvam
perigo concreto, direto e imediato para terceiros, são condutas que
não afetam nenhum bem público alheio, dizendo unicamente ao
indivíduo, à sua intimidade e às suas opções pessoais. Não estando
autorizado a penetrar no âmbito da vida privada, não pode o Estado
intervir sobre condutas de tal natureza. Enquanto não afete
concretamente direitos de terceiros, o indivíduo pode ser e fazer o
que bem quiser [...] (KARAM, 2006, p. 6).
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O diagnóstico de Karam parece deixar escapar precisamente o ponto que estamos
tocando: em que medida a lei de drogas funciona justamente viabilizando a “penetração
no âmbito da vida privada” por parte do Estado, possibilitando que legisle sobre a
“intimidade e as opções pessoais”? Na medida em que a esse mais íntimo dos
indivíduos, que é sua própria vida biológica, entra nos cálculos e nos mecanismos do
poder, quando a vida nua ganha existência política e se converte em categoria
fundamental da política, o horizonte biopolítico está estabelecido.
Essa legislação sobre o mais íntimo, bem como seu estatuto de exceção, ficam
bastante claros nas recentes políticas de internação involuntária/compulsória dos
usuários de crack em cidades como o Rio de Janeiro e São Paulo. O poder que é
atribuído ao médico tanto para proceder à internação involuntária/compulsória quanto
pra por fim a tal procedimento faz ecoar as palavras de Agamben, quando coloca que,
“[...] no horizonte biopolítico que caracteriza a modernidade, o médico e o cientista
movem-se naquela terra de ninguém onde, outrora, somente o soberano podia penetrar
[...]” (AGAMBEN, 2007a, p. 166). Na atualidade, quando se trata de gerir o “problema
das drogas”, o médico e o soberano também trocam de papéis e complementam-se no
exercício do poder.
É nesse sentido que colocamos a possibilidade de pensar a lei de drogas como
dispositivo de poder que viabiliza um estado de exceção permanente. Agamben define o
estado de exceção como a suspensão temporal (total ou parcial) do ordenamento
jurídico normal, mas que atualmente tem tido cada vez mais a disposição de se tornar
regra. O ponto central é que a exceção é sempre chamada em nome da defesa da
democracia, ou seja, como na fórmula que propões a suspensão da Constituição em
nome de sua defesa. A intervenção do biopoder no caso daqueles identificado enquanto
dependentes químicos procede por meios semelhantes: identificada a impossibilidade do
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individuo responder por si, a intervenção de terceiros ou da justiça se faz necessária
(conta a vontade do indivíduo) para protegê-lo, bem como para proteger a sociedade.
Aquela impossibilidade de intervenção estatal na esfera privada advogada por
Karam perde o sentido. Como coloca Agamben,
[...] o estado de exceção não é uma ditadura (constitucional ou
inconstitucional, comissária), mas um espaço vazio de direito, uma
zona de anomia em que todas as determinações jurídicas – e, antes
de tudo, a própria distinção entre público e privado – estão
desativadas [...] (AGAMBEN, 2003, p. 78. Grifo nosso).
Parece-nos que é no horizonte desse regime de biopoder que temos que nos mover
quando tratamos da lei de drogas, pois o que está em jogo é precisamente a atuação de
uma anátomo-política do corpo e um biopolítica da população, bem como de eficazes
procedimentos de subjetivação. É nessa perspectiva que se pode vislumbrar a legislação
brasileira sobre drogas enquanto condição de possibilidade de disseminação de uma
exceção permanente.
O TRAFICANTE: HOMO SACER CONTEMPORÂNEO
A lei de 2006 trouxe de novidade o aumento da pena para o delito de tráfico.
Seria preciso lembrar que tal conduta ocupa o hall dos crimes hediondos (equiparado a),
de acordo com a lei 8.072/90. Ao aumentar de três para cinco anos a pena mínima para
o delito de tráfico de drogas a legislação não só incrementa o rigor punitivo, como
também a população carcerária. Luciana Boiteux vem demonstrando sistematicamente a
relação existente entre aumento da repressão ao tráfico e aumento da população
carcerária (BOITEUX, 2006; 2009).
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Seguindo essa linha de raciocínio, observamos o mesmo fenômeno de aumento
da população carcerária em decorrência da lei 11.343/2006 na Bahia. Em Biopoder e
guerra às drogas: notas em torno de um dispositivo (2013) sustentamos que
[...] Em termos bastante simples, desde a entrada em vigor da nova
lei de drogas, a lei 11.343, de agosto de 2006, que revogou a lei
6.368, de 1976, o crime de tráfico de drogas passou a ocupar o topo
das estatísticas de encarceramento no Estado. Para efeito de
comparação, em 2005, antes da entrada em vigor da nova lei de
drogas, a população carcerária na Bahia era, de acordo com dados
oficiais, de 5.256 homens e mulheres, dos quais 848 respondiam
pelo crime de tráfico, ou seja, cerca de dezesseis por cento da
população carcerária, ocupando o terceiro lugar em números de
encarceramentos. Em 2006 e 2007 o delito permanece em segundo
e terceiro lugar, respectivamente, no número de detenções na
Bahia, atrás apenas dos chamados crimes contra o patrimônio e
contra a pessoa. A partir de 2008 o tráfico de “entorpecentes”
assume o primeiro lugar no número de encarceramentos no Estado.
É possível observar que, em 2006, o tráfico respondia por 19% das
prisões, e embora esse número tenha caído para cerca de 13%,
entre 2007 e 2010, os dados de 2012 demonstram que mais de 21%
da população carcerária da Bahia responde pelo crime de tráfico de
drogas.
Na medida em que o crime de tráfico é elevado à condição de crime hediondo, a
obrigatoriedade do cumprimento de dois terços da pena e a impossibilidade de
condicional para os reincidentes contribuem para manter o infrator mais tempo na
prisão, impactando diretamente no aumento da população carcerária.
Dessa forma, é possível observa uma íntima ligação entre política de drogas e
cárcere. Se acreditarmos que a política de drogas falhou (o que não nos parece
plausível), podemos utilizar tais dados do aumento da população carcerária para
justificar tal posição, já que a proposição primeira da war on drugs é um “mundo livre
das drogas” e não um mundo convertido em cárcere generalizado. Em contrapartida, se
pensarmos que a guerra às drogas vem funcionando enquanto dispositivo de biopoder,
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não nos espantará a disponibilidade cada vez maior de usuário e pequenos comerciantes
frente ao poder estatal e a conversão das periferias das cidades em verdadeiros campos
(no sentido agambeniano de que o campo de concentração tornou-se um paradigma
dominante).
Outro aspecto que necessita de ressalva é a questão da seletividade do sistema
penal. Como colocou Boiteux (2009), é muito claro que a atuação das autoridades
responsáveis por gerir a ilegalidade do comércio se substâncias psicoativas tornadas
ilícitas está direcionada para as camadas subalternas da sociedade, dado esse que reflete
na presença massiva desses grupos subalternos no sistema carcerário brasileiro. O
aumento da pena mínima, bem como as implicações da equiparação do comércio ilegal
de psicoativos a crime hediondo tem um custo muito específico para a grande maioria
dos que são capturados pela lei de drogas e enquadrados no delito de tráfico. Para
Boiteux,
[...] muito pior, sem dúvidas, será a condenação de pequenos
traficantes a penas de, no mínimo, cinco anos, por retirar os
pequenos traficantes de seu convívio familiar, integrando-os nas
facções criminosas, além de submetê-los à estigmatização,
humilhação e violência dentro das prisões” (2006, p. 8-9).
É preciso colocar em termos bastante claros a questão do tráfico de drogas. Com efeito,
trata-se de umas das atividades mais lucrativas do mundo. Estimativas da Organização
das Nações Unidas através de seu Escritório sobre drogas e crimes sugerem que o
trafico internacionais de drogas movimente algo entre quatrocentos e quinhentos bilhões
de dólares estadunidenses a cada ano. Seria necessário perguntar por quanto dessa
quantia responde os pequenos comerciantes. Seria preciso perguntar, também, como é
lavada essa enorme quantia. Perto de tão vultosos números, a caçada de cada dia
empreendida pelas polícias nas periferias das cidades, em nome da guerra às drogas e da
defesa da sociedade, ganha outro contornos.
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Nesse sentido, o aprisionamento em massa de pequenos traficantes, de
comerciantes que o fazem para sustentar o seu uso, dentre outros, assume feições que
vão além do simples combate às drogas. Na medida em que o arquétipo do “grande e
perigoso” traficante, indissociável da violência, se vê rachado pela existência de
comerciantes que não se enquadram na imagem que a mídia hegemônica insiste em
colocar como única possível, o custo social da agência do biopoder se expressa mais
claramente.
A importância de colocar em cena essa questão do papel que os traficantes de
drogas – e aqui falo mais especificamente dos pequenos e facilmente substituíveis -
jogam na biopolítica é fundamental frente a todo um barulhento movimento que prega a
descriminalização de uma ou outra droga para uso pessoal. Maria Lúcia Karam colocou
de forma impecável o lugar da participação de setores conservadores ou moderados no
debate sobre as políticas sobre drogas no Brasil. A autora, referindo à aparição e atuação
do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso no debate, assinala que
[...] para se apresentar como reformador nesse tema deveria, antes
de tudo, fazer uma profunda autocrítica sobre a política
desenvolvida em seu governo [...] O relatório da Comissão Latino-
americana sobre Drogas e Democracia, da qual é um dos líderes,
afirma o fracasso e aponta danos da “guerra às drogas”. No
entanto, paradoxalmente, apoia ações repressivas, inclusive com a
intervenção das Forças Armadas, propondo apenas a mera adoção
de programas de saúde fundados no paradigma de redução de risco
e danos e a mera descriminalização da posse para uso pessoal tão
somente da maconha (KARAM, 2010, s/p, Grifo nosso).
Karam compreende que a simples descriminalização da maconha para uso pessoal
sequer arranha a problemática posta em cena pela lógica proibicionista. Restaria ainda
uma infinidade de substâncias alçadas à condição de ilegalidade, assim como não traria
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solução para a questão do tráfico. O traficante se afiguraria nesse posicionamento de
forma tão insignificante quanto se afigura para o poder estatal que investe contra ele.
Essa insignificância é de extremo significado para o biopoder. A figura do
traficante é inserida na lógica apenas a partir de sua total exclusão. Daí que
identifiquemos esse personagem contemporâneo com aquele do direito romano, o homo
sacer. O conceito de homo sacer é retomado por Agamben a partir de uma definição de
Festo:
Homem sacro é, portanto, aquele que o povo julgou por um delito;
e não é lícito sacrificá-lo, mas quem o mata não será condenado
por homicídio; na verdade, na primeira lei tribunícia se adverte que
“se alguém matar aquele que por plebiscito é sacro, não será
considerado homicida”. Disso advém que um homem malvado ou
impuro costuma ser chamado sacro (APUD: AGAMBEN, 2007a,
p. 196, nota nº18).
Em outras palavras, sacra é a vida que não pode ser oferecida em sacrifício e que é
matável sem que se cometa homicídio: insacraficável e matável. Disso decorre uma
dupla exclusão: o homo sacer é subtraído tanto da esfera do direito divino quanto
humano. Agamben coloca que “[...] o que define a condição do homo sacer [...] [é],
sobretudo, o caráter particular da dupla exclusão em que se encontra preso e da
violência à qual se encontra exposto” (AGAMBEN, 2007a, p. 90). A inclusão da vida
sacra se dá a partir de sua matabilidade na medida em que foi excluída por sua
insacraficabilidade.
Quando identificamos o comerciante de psicoativos ilegais com a figura do
homo sacer temos em vista essa paradoxal exclusão/inclusão, e a violência ao qual está
exposto por tal condição. Tal implicação do indivíduo em uma sacralidade decorre de
sua íntima relação com o poder soberano. Como coloca Agamben, “[...] soberana é a
esfera na qual se pode matar sem cometer homicídio e sem celebrar um sacrifício, e
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sacra, isto é, matável e insacrificável, é a vida que foi capturada nesta esfera”
(AGAMBEN, 2007a, p. 91. Grifo do autor).
As mortes na “guerra às drogas” ou ainda na variante “guerra do tráfico”
parecem não contar, parecem suspensas da esfera do crime. O jornalismo policial da
Bahia, por exemplo, bombardeia diariamente os telespectadores com tais mortes, e o
fazem acreditando que basta uma menção a um suposto envolvimento da vítima com
“as drogas” ou com o “tráfico de drogas” para justificar sua morte, para que tal não se
converta em um crime – aliás, não há clamor algum por parte dos exaltados
apresentadores por uma investigação que desvele o assassinato: vida que se mata sem
que se cometa crime. O “heroísmo” da polícia é construído dia-a-dia através das ações
nas periferias de Salvador e demais cidades, frequentemente com transmissão ao vivo e
demonstrando o acesso do poder estatal aos indivíduos via dispositivos das drogas (Cf.
SAMPAIO et al., s/d).
A importância do recurso a essa noção de “homem sacro”, trabalhada por
Agamben, é que ela sintetiza o avanço desse filósofo face às investigações foucaultianas
sobre o terreno da biopolítica. O horizonte do regime de biopoder permanece, como
afirmamos, mas não se trata apenas e tão somente da inserção da vida natural nos
cálculos do poder, mas como a vida nua/sacra constitui o limiar de articulação entre zoé
e bíos, tornando os indivíduos disponíveis a uma exceção permanente. Como sintetiza
Agamben, “[...] somente esse limiar, que não é nem a simples vida natural, nem a vida
social, mas a vida nua ou vida sacra, é o pressuposto sempre presente e operante da
soberania” [...] (AGAMBEN, 2007a, p. 113).
PROFANAR O IMPROFANÁVEL
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Agamben recorre aos juristas romanos para pensar a tarefa de uma profanação
do improfanável, tarefa política por excelência. De acordo com o filósofo, as coisas
eram designadas pelos romanos enquanto sagradas ou religiosas na medida em
pertenciam aos deuses. Assim, isso implicava que tais coisas eram retiradas ao livre uso
dos homens. A violação dessa indisponibilidade constituía sacrilégio, uma vez que as
coisas, pessoas etc., eram de domínio sagrado (quando se tratava dos deuses celestiais)
ou religioso (quando se referiam aos deuses infernais).
Ainda nessa perspectiva, Agamben vai colocar que “[...] pode se definir como
religião aquilo que subtrai coisas, lugares, animais ou pessoas ao uso comum e as
transfere para uma esfera separada [...]” (2007b, p. 65). Seria possível perguntar se,
dada a demonização da “droga” (ou seja, no sentido aqui estereotipado que pretende
referir-se apenas aos psicoativos elevados à condição de ilícitos), sua construção
enquanto mal em si ou portadora de uma negatividade imanente, não estamos diante de
um fenômeno que busca estabelecer um corte e transferir algo que seria da esfera
humana para a divina (no caso, religiosa, já que diz dos deuses infernais tal como na
definição dos romanos). Essa “consagração” (sacrare), que traduz a saída das coisas da
esfera humana para a divina, tem seu oposto na noção de “profanar” (profanare), ou
seja, no ato que restitui tais coisas ao livre uso dos homens.
Com efeito, esse aspecto da “consagração da droga”, como acima mencionado,
diz mais de sua dimensão moral, de como foi, por exemplo, operacionalizada na
publicidade estatal (e continua sendo) para justificar e legitimar as políticas
proibicionistas. Há outro aspecto dessa sacrare que configura um problema tão ou mais
decisivo.
Ora, na medida em que o uso, ou (re)uso, constitui uma forma de passagem do
sagrado ao profano, bastaria um uso incongruente com a apocalíptica visão hegemônica
do consumo de drogas para que se proceda a um processo de profanação – e então, dada
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a popularização do consumo de drogas ilícitas (ritualístico, recreativo, terapêutico, etc.),
talvez fosse lícito falar em uma profanação generalizada. Mas eis que o uso que retira da
esfera religiosa e devolve à humana não pode ser confundido com o consumismo que
caracteriza a fase espetacular do capitalismo. E, na medida em que o grande tráfico de
drogas possa ser considerado uma empresa capitalística5, faz-se fundamental pensar de
que forma um “consumismo da droga” configura a negação do uso que desloca seja lá o
que for da esfera sagrada para profana. Isso seria justamente o improfanável, ou seja, o
aprisionamento ou distração de uma intenção profanatória.
Como coloca Agamben, acerca da intenção do capitalismo na construção de algo
absolutamente improfanável:
[...] agora tudo o que é feito, produzido e vivido – também o corpo
humano, também a sexualidade, também a linguagem – acaba
sendo dividido por si mesmo e deslocado para uma esfera separada
que já não define nenhuma divisão substancial [transformação em
fetiche inapreensível] e na qual todo uso se trona duravelmente
impossível. Esta esfera é o consumo. Se, conforme foi sugerido,
denominamos a fase extrema do capitalismo que estamos vivendo
como espetáculo, na qual todas as coisas são exibidas na sua
5 As estimativas são de que o tráfico internacional de drogas movimente entre 400 e 500 bilhões de
dólares estadunidenses anualmente. Para caracterizar sua faceta capitalista poderíamos evocar a ligação
orgânica entre o tráfico e o sistema financeiro global via lavagem de dinheiro. De acordo com a ONU, as
diferentes atividades criminosas (tráfico de drogas, armas, humanos, dentre outras) movimentaram algo
como US$ 2.1 trilhões em 2009, dos quais US$ 1.6 trilhões foram lavados. O Tráfico de drogas
corresponde a aproximadamente 20% deste montante, representando entre 0,6% e 0,9% do PIB mundial,
sendo que os valores lavados podem ser situados entre 0,4% e 0,6% deste mesmo PIB global, ou seja,
US$ 290 bilhões em números aproximados. Impossível pensar em tais quantias sem levar em
consideração alguma cumplicidade dos banqueiros. Decorre disto outro aspecto capitalista por excelência
do tráfico de drogas: a exploração dos produtores. Tomemos o exemplo da cocaína, substância que
corresponde à maior fatia dos lucros desse mercado. Ainda de acordo com a ONU, a cocaína produziu um
lucro de US$ 85 bilhões em 2009. Dessa quantia, US$ 1 bilhão teria ido para os produtores da região
Andina (em termos de custo de produção, etc.), enquanto que a maior parte dos ganhos foi gerada na
América do Norte e na Europa Ocidental e Central: US$ 35 e US$ 26 bilhões respectivamente. É sob a
luz dessas cifras que se observa que há algo de errado (ou de estratégico) na caçada aos pequenos
traficantes que superlotam as penitenciárias (e também os cemitérios) não só do Brasil. Cf. UNODC –
UNITED NATIONS OFFICE ON DRUG AND CRIME, 2011.
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separação de si mesmas, então espetáculo e consumo são duas
faces de uma única impossibilidade de usar. O que não pode ser
usado acaba, como tal, entregue ao consumo ou à exibição
espetacular [...] (AGAMBEN, 2007b, p. 71).
Aqui estaríamos frente a algo que se tornou praticamente impossível de profanar, do
improfanável. Não seria a constituição de um improfanável da droga, a partir da difusão
de um consumismo e de um espetáculo que destrói o uso, bem mais perigoso que a
sacrare moralista?
Nesse sentido, se é verdade que a “guerra às drogas” constitua um dispositivo de
poder (de biopoder), acreditamos que as três figuras aqui apresentadas, bem como o
papel que cada uma delas joga nos cálculo e estratégias do poder, configuram elementos
fundamentais para a compreensão do desenrolar-se dessa guerra. De um lado, a lei
compreendida como dispositivo que viabiliza a instauração de um estado de exceção
permanente; de outro, o comerciante de psicoativos ilícitos tomado em sua condição de
homo sacer, da vida matável se que se cometa crime; por fim, a “droga” tomada em sua
dimensão “religiosa”, ou seja, que pertenceria aos deuses infernais, bem como a
implicação do desvio que corrompe a tarefa profanatória.
Se for correta a lúcida colocação de Antonio Escohotado (2007, p. 1367),
quando sugere que a apresentação do uso de drogas como enfermidade e delito foi uns
dos grandes negócios do século passado [século XX], fazendo com que se tomassem os
psicoativos não a partir de suas propriedades e efeitos concretos, mas pelo
pertencimento a categorias excêntricas como a de “substâncias criminais”, talvez seja
verdade que a profanação daquilo que se pretende improfanável é uma das tarefas
políticas da qual nossa geração não pode se esquivar.
BIBLIOGRAFIA
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