As eleições e a regra do jogo (2)

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AS ELEIÇÕES E A REGRA DO JOGO O ativismo judicial do TSE avança sobre o sistema eleitoral brasileiro Fábio Torres 1 O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) já no curso final das campanhas proferiu uma decisão que muda radicalmente as regras do jogo eleitoral e, virtualmente, tornará inelegível boa parte dos atuais gestores públicos de todo o Brasil. É, certamente, um terremoto político-eleitoral. O que mais impressiona é que diante da magnitude e da gravidade da decisão, ela passou silente pela imprensa nacional e, ao que parece, será levada ao Supremo sem que haja uma ampla discussão pelos interessados, que somente despertarão com o retumbar da trovoada. Apesar das recentes iniciativas legislativas visando mitigar o viés ‘legislador’ do TSE, Ele é hoje um dos órgãos de maior poder sobre o processo eleitoral brasileiro, perdendo em importância apenas para o STF – Há muito o Congresso perdeu seu papel de protagonista nesta área. 1 Fábio Torres é advogado especialista em Direito Eleitoral e Municipal pela Universidade Federal da Bahia, sócio da J. Pires & Advogados Associados, autor de diversos livros sobre Direito Eleitoral e ex- coordenador jurídico da UPB. A Constituição Federal, em matéria eleitoral, estabeleceu o postulado da segurança jurídica, constituindo o princípio da anterioridade ou anualidade em relação à alteração da lei eleitoral. Em bom português, exige que a ‘regra do jogo’ eleitoral seja definida pelo menos um ano antes das eleições. O STF, por sua vez, interpretando a Constituição, estabeleceu que as decisões do TSE que modifiquem o processo eleitoral também devem obedecer a este princípio, ou seja, somente valem para as eleições que se realizarem no ano subsequente. A Corte Eleitoral, no entanto, ao analisar o recurso ordinário nº 401-37/CE, modificou de forma severa seu entendimento, para afirmar que as decisões proferidas pelos Tribunais de Contas em Denúncias e Termos de Ocorrência, sem julgamento pelas Câmaras ou Assembleias Legislativas, também geram inelegibilidade, deixando seus responsáveis fora das eleições. A decisão parte de uma interpretação extensiva do mesmo dispositivo que, antes, a Corte Eleitoral entendia não ter este efeito. A questão decorre da interpretação da Lei da Ficha Limpa. A regra é clara: atualmente as contas anuais de Prefeitos e Governadores são analisadas pelos Tribunais de Contas, que emitem um parecer prévio, posteriormente

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AS ELEIÇÕES E A REGRA DO JOGO O ativismo judicial do TSE avança sobre o sistema eleitoral

brasileiro

Fábio Torres1

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) já no curso final das campanhas proferiu uma decisão que muda radicalmente as regras do jogo eleitoral e, virtualmente, tornará inelegível boa parte dos atuais gestores públicos de todo o Brasil. É, certamente, um terremoto político-eleitoral.

O que mais impressiona é que diante da magnitude e da gravidade da decisão, ela passou silente pela imprensa nacional e, ao que parece, será levada ao Supremo sem que haja uma ampla discussão pelos interessados, que somente despertarão com o retumbar da trovoada.

Apesar das recentes iniciativas legislativas visando mitigar o viés ‘legislador’ do TSE, Ele é hoje um dos órgãos de maior poder sobre o processo eleitoral brasileiro, perdendo em importância apenas para o STF – Há muito o Congresso perdeu seu papel de protagonista nesta área. 1 Fábio Torres é advogado especialista em Direito Eleitoral e Municipal pela Universidade Federal da Bahia, sócio da J. Pires & Advogados Associados, autor de diversos livros sobre Direito Eleitoral e ex-coordenador jurídico da UPB.

A Constituição Federal, em matéria eleitoral, estabeleceu o postulado da segurança jurídica, constituindo o princípio da anterioridade ou anualidade em relação à alteração da lei eleitoral. Em bom português, exige que a ‘regra do jogo’ eleitoral seja definida pelo menos um ano antes das eleições.

O STF, por sua vez, interpretando a Constituição, estabeleceu que as decisões do TSE que modifiquem o processo eleitoral também devem obedecer a este princípio, ou seja, somente valem para as eleições que se realizarem no ano subsequente.

A Corte Eleitoral, no entanto, ao analisar o recurso ordinário nº 401-37/CE, modificou de forma severa seu entendimento, para afirmar que as decisões proferidas pelos Tribunais de Contas em Denúncias e Termos de Ocorrência, sem julgamento pelas Câmaras ou Assembleias Legislativas, também geram inelegibilidade, deixando seus responsáveis fora das eleições. A decisão parte de uma interpretação extensiva do mesmo dispositivo que, antes, a Corte Eleitoral entendia não ter este efeito.

A questão decorre da interpretação da Lei da Ficha Limpa. A regra é clara: atualmente as contas anuais de Prefeitos e Governadores são analisadas pelos Tribunais de Contas, que emitem um parecer prévio, posteriormente

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encaminhado às Câmaras Municipais ou às Assembleias Legislativas para julgamento. Somente a desaprovação das contas pelo Legislativo gera inelegibilidade, isto é, o impedimento dos gestores em participar dos pleitos vindouros. Por esta regra (art. 71, I e II da Constituição Federal e art. 1º, I, ‘g’ da LC 64/90), as decisões proferidas pelos tribunais de contas em denúncias ou termos de ocorrência (onde o tribunal de contas julga a regularidade de contratos individuais ou licitações dos governantes, na condição de ordenadores de despesa) por não se tratar de contas anuais, não gerariam inelegibilidade.

A nova postura do TSE, portanto, faz incidir inelegibilidade onde a constituição não a prevê, expressamente.

Esta decisão constitui, em verdade, a maior reforma política desde a lei que passou a punir a compra de votos com a perda do mandato, já que, em uma pesquisa por amostragem efetuada junto ao TCM/BA, quase todos os gestores pesquisados tiveram denúncias ou termos de ocorrência julgados procedentes e, virtualmente, todos eles estariam impedidos de concorrer nestas e nas próximas eleições, vez que, pela nova posição do TSE, poderão ser declarados inelegíveis pelo prazo de 8 anos.

Três pontos se destacam nesta inédita decisão: o primeiro é que esta mesma matéria já havia sido analisada e rejeitada

pelo TSE nas eleições de 2010 e 2012 (vide RO 751-79.2010). A mudança radical da postura do tribunal é vocacionada pela modificação de sua composição, já que não houve, desde então, alteração da legislação. E há mais um ponto a ser observado: dos sete ministros do TSE três são também membros do STF, o que leva a crer que este entendimento tem chance de prevalecer no Supremo.

A decisão é ainda mais grave porque a mudança de entendimento foi adotada já no curso da campanha, a 25 dias das eleições, constituindo uma grave mudança da regra no curso do jogo e indo de encontro a uma decisão do STF que, em oportunidades anteriores, decidiu que viola o postulado da segurança jurídica as decisões do TSE que, no curso do pleito eleitoral, impliquem mudança de jurisprudência e dessa forma repercutam sobre a segurança jurídica dos candidatos (RE 637.485), como é o caso presente.

E o que nos parece mais grave. Houve empate no plenário do TSE, com três votos contrários e três votos favoráveis à tese, que foi decidida pelo voto do presidente, Min. Dias Tóffoli, também membro do STF, que a sufragou. Ocorre que o próprio Tóffoli já havia votado contra esta tese no Supremo, o que causou grande surpresa no meio jurídico.

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A decisão, que parte de uma

interpretação ampliativa da lei, pode significar, em verdade, um duro golpe ao instituto da reeleição, haja vista que a maior parte dos gestores tem denúncias julgadas procedentes pelos tribunais de contas e estariam, inevitavelmente, excluídos do processo eleitoral pelos próximos 8 anos.

O ativismo do poder judiciário, invadindo, de certa forma, os limites de atuação do legislativo e do executivo vem causando perplexidade aos operadores do direito. A tese, como princípio, é viável, desde que houvesse clara e tempestiva modificação da regra na forma estabelecida pela Constituição. A posição do TSE pode colocar a corte no epicentro de uma nova crise de poder, causando ainda mais desgastes em nossa tão incipiente democracia.