AS EMOÇÕES NO PALCO DA TRAGÉDIA PROMETEU … ·  · 2017-12-20Em A ‘hamartia’...

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www.conedu.com.br AS EMOÇÕES NO PALCO DA TRAGÉDIA PROMETEU CADEEIRO: EDUCAÇÃO E AÇÃO TRÁGICA Michelle Bianca Santos Dantas Universidade Federal da Paraíba Introdução A nossa presente pesquisa, intitulada “ As emoções no palco da tragédia Prometeu Cadeeiro: educação e ação trágica”, pretende analisar os elementos centrais que são suscitados durante a cena trágica e que são fundamentais para a sua compressão. Assim, nosso trabalho justifica-se pelo valor inestimável que nos propicia (desde os tempos mais remotos, até os dias atuais) o debruçar-se diante da averiguação dos sentidos e efeitos múltiplos, decorrentes do desencadear de determinadas emoções. Isso é comprovado, inclusive, ao observarmos que, desde a Antiguidade Clássica, muitos foram os filósofos que discorreram sobre elas e, consequentemente, sobre os seus liames na criação poética, seja na epopeia, tragédia, comédia etc. Portanto, temos como objetivo estudar as múltiplas dimensões representativas que as emoções de piedade e temor exercem na cena trágica, a partir de sua importância, seu valor educativo e sua função no enredo das tragédias. Para tanto, ser-nos-ão importante, ao longo de nossa exposição, as considerações de autores como Aristóteles (1998/2005), Konstan (2006), Lesky (1996), Werner (2003), Luna (2005) entre tantos outros. Prometeu Cadeeiro: um breve contexto Ésquilo (525-456/5 a.c) foi um dos poetas trágicos do século de ouro da Literatura Grega, e compôs por volta de noventa peças, mas só nos chegaram sete. Além de poeta, Ésquilo também participou de alguns combates de guerra, a exemplo da de Salamina. Entre os tragediógrafos gregos, ele é o mais velho, seguido por Sófocles e Eurípedes. Foi ele o responsável por elevar o número de atores nas peças, de um para dois, como nos informa Aristóteles (1988), em sua Poética; além de ter diminuído o papel do coro e de ter dado primazia ao diálogo. Em vida, presenciou o estabelecimento da democracia ateniense, fato que tematizou em algumas de suas obras.

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    AS EMOES NO PALCO DA TRAGDIA PROMETEU CADEEIRO:

    EDUCAO E AO TRGICA

    Michelle Bianca Santos Dantas

    Universidade Federal da Paraba

    Introduo

    A nossa presente pesquisa, intitulada As emoes no palco da tragdia Prometeu

    Cadeeiro: educao e ao trgica, pretende analisar os elementos centrais que so suscitados

    durante a cena trgica e que so fundamentais para a sua compresso. Assim, nosso trabalho

    justifica-se pelo valor inestimvel que nos propicia (desde os tempos mais remotos, at os dias

    atuais) o debruar-se diante da averiguao dos sentidos e efeitos mltiplos, decorrentes do

    desencadear de determinadas emoes. Isso comprovado, inclusive, ao observarmos que, desde a

    Antiguidade Clssica, muitos foram os filsofos que discorreram sobre elas e, consequentemente,

    sobre os seus liames na criao potica, seja na epopeia, tragdia, comdia etc. Portanto, temos

    como objetivo estudar as mltiplas dimenses representativas que as emoes de piedade e temor

    exercem na cena trgica, a partir de sua importncia, seu valor educativo e sua funo no enredo das

    tragdias. Para tanto, ser-nos-o importante, ao longo de nossa exposio, as consideraes de

    autores como Aristteles (1998/2005), Konstan (2006), Lesky (1996), Werner (2003), Luna (2005)

    entre tantos outros.

    Prometeu Cadeeiro: um breve contexto

    squilo (525-456/5 a.c) foi um dos poetas trgicos do sculo de ouro da Literatura Grega, e

    comps por volta de noventa peas, mas s nos chegaram sete. Alm de poeta, squilo tambm

    participou de alguns combates de guerra, a exemplo da de Salamina. Entre os tragedigrafos gregos,

    ele o mais velho, seguido por Sfocles e Eurpedes. Foi ele o responsvel por elevar o nmero de

    atores nas peas, de um para dois, como nos informa Aristteles (1988), em sua Potica; alm de

    ter diminudo o papel do coro e de ter dado primazia ao dilogo. Em vida, presenciou o

    estabelecimento da democracia ateniense, fato que tematizou em algumas de suas obras.

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    Em Prometeu Cadeeiro, cuja autoria atribuda a squilo, vemos discusses sobre a

    questo do direito e da justia. Nela, Prometeu, benfeitor dos homens, punido por Zeus, por ter

    roubado o seu fogo e dado aos mortais. Os encarregados de realizarem a sua punio foram Fora,

    Poder e Hefestos, que materializa o castigo divino, cumprindo as ordens do Deus supremo. Esta

    pea foi a nica que nos chegou da trilogia esquiliana - Prometeu Acorrentado, Prometeu libertado

    e Prometeu porta-fogo tambm no se sabe ao certo a ordem destas tragdias.

    Ao dizermos, no pargrafo anterior, que a pea tem uma autoria atribuda a squilo,

    chamamos ateno para uma problemtica na compreenso desta pea. Quem nos alerta para este

    fato Jaa Torrano (2009), em sua introduo obra de squilo, onde dedica alguns pargrafos na

    descrio dos processos que existem de contestao de autoria feita por alguns estudiosos. Este

    processo contestatrio comeou, em 1869, quando o helenista alemo R. Westphal observou

    diferenas estruturais entre Prometeu Cadeeiro e as outras peas de squilo. Essa descoberta

    ganhou adeptos que continuaram as pesquisas, numa tentativa de comprovarem quem teria escrito a

    pea, alm de somarem argumentos para afirmar que no seria squilo, o seu compositor. De todo

    modo, preferimos considerar o posicionamento de Vernant, citado por Torrano, de que Mesmo

    que, quanto a esse ponto, tivessem oferecido uma resposta decisiva, nem por isso o problema da

    tragdia estaria resolvido. (VERNANT; apud TORRANO, 2009, p. 325). Essa problemtica

    acentuada por terem sido perdidas duas outras peas que compunham a trilogia, o que afeta, tanto

    na definio da autoria, quanto na interpretao da tragdia. No mais, o que nos importa, para alm

    de descobrir certezas de autoria, a possibilidade de refletirmos e analisarmos to rica obra da

    literatura ocidental.

    Metodologia- Algumas consideraes sobre a ao trgica

    A teorizao acerca da tragdia deve, necessariamente, iniciar por Aristteles, em sua

    Potica, at porque foi ele o responsvel por iniciar o estudo desse gnero, tentando abarc-lo em

    sua definio e caractersticas principais. Isso porque, consideramos que qualquer estudo sobre o

    drama, antigo ou moderno, deve ser embasado pelo conhecimento que esse filsofo nos deixou de

    legado. E, naturalmente, podemos complementar esse estudo, a partir dos outros muitos tericos

    que escreveram sobre este tema, a exemplo de Albin Lesky (1996), Jaqueline de Romily (2008),

    Junito Brando (2005), Yoshie (2008), Sandra Luna (2005) entre outros.

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    Contudo, a respeito do trgico, no podemos dizer o mesmo, j que a maior parte dos

    estudos sobre o tema, que foram realizados pelos filsofos alems, no conseguem de todo, abarcar

    o trgico em toda sua amplitude e flexibilidade; mas no discutiremos isso no trabalho presente. Na

    verdade, o que queremos deixar exposto, que existem ainda algumas dificuldades estruturais no

    estudo do trgico e que, para que possamos realiz-lo, devemos saber lidar com a flexibilidade

    terica; sendo consciente de que alguns dos aspectos que fazem uma pea trgica, no so,

    necessariamente, os mesmos que faro uma outra pea ser trgica. Ou seja, sabemos que a pea

    exemplar da tragicidade dipo Rei, mas o meio pelo qual ela realiza o trgico e o seu efeito, no

    o mesmo percorrido por peas como jaz, Orestia, Prometeu Cadeeiro etc. Dentro dessa

    perspectiva, aqui vale ressaltar o que Albin Lesky (1996), estudioso deste gnero, esclarece-nos a

    respeito desta rea:

    H algo, sem dvida, que podemos afirmar com inteira segurana: os gregos criaram a grande arte trgica e, com isso, realizaram uma das maiores faanhas do

    campo do esprito, mas no desenvolveram nenhuma teoria do trgico, que tentasse ir alm da plasmao deste no drama e chegasse a envolver a concepo do mundo como um todo. (LESKY, 1996, p. 21)

    Se os que criaram o trgico, no desenvolveram uma teoria sobre ele, ficamos ento na

    busca pela descoberta do que seria a sua essncia. De todo modo, Aristteles traz-nos contribuies

    relevantes; segundo o autor da Potica, uma questo importante para que se chegue ao temor e a

    piedade (emoes que levam ktharsis1) que os fatos sejam inesperados, a fim de proporcionar

    mais maravilha que sorte. Diz o filsofo:

    O objeto da imitao, porm, no apenas uma ao completa, mas casos de inspirar temor e pena, e estas emoes so tanto mais fortes quando, decorrendo uns dos outros, so, no obstante, fatos inesperados, pois assim tero mais aspecto de maravilha do que se brotassem do acaso e da sorte; (...)

    (ARISTTELES, 2005, p. 29)

    este fato inesperado que levar o personagem trgico do fortnio ao infortnio, ou o

    contrrio. Quanto ao carter do personagem trgico, Aristteles revela-nos que ele no deve ser nem

    1 O termo ktharsis possui um amplo e complexo significado, mas podemos traduzi-lo como purificao ou purgao,

    pois essa a linha comum da maioria dos tradutores, j que no possumos um equivalente exato em nossa Lngua

    Portuguesa. Isso justifica, inclusive, o fato de muitos autores no realizarem a traduo e usarem a transcrio catartse

    ou katarse para designao do termo.

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    to virtuoso, nem to maldoso. Pois o primeiro provocaria piedade excessiva e o segundo a apatia.

    E este carter deve ser manifestado atravs da ao do personagem, j que a piedade e o temor

    devem surgir pela ao cometida e no pelo carter. J os episdios, para que sejam trgicos, devem

    ocorrer entre pessoas de boa relao, amigos, parentes, porque, de um modo geral, um amigo matar

    amigo, trgico, j no fato de um inimigo matar um inimigo, no conseguimos ver nada de

    comoo trgica, consequentemente, nada que leve a catstrofe/ao pattico.

    O erro trgico, a hamarta (do grego amartia), segundo Aristteles, alcana maior efeito

    quando ele realizado de modo no consciente. Ou seja, o filsofo diz que este erro pode ser

    realizado de modo consciente ou no, todavia este o mais trgico. A respeito da hamarta, muitos

    estudos j foram realizados, numa tentativa de desvendar o real sentido deste erro, fala-se em erro

    involuntrio, transcendental, intelectual etc. Por hora, deteremos nossa anlise ao que o prprio

    Aristteles revela-nos. Na Potica, duas passagens citam a hamarta, vejamos:

    , ,

    . (...)

    2. (Potica, XIII, 1453 a, 10-12/15-17)

    (...) algum erro daqueles de grande glria e boa fortuna, como o de dipo e Tiestes,

    tambm por homens ilustres de famlias tais (...) a partir da fortuna para o

    infortnio, no por maldade, mas atravs de um grande erro, ou como o que foi

    dito, ou de um (erro) melhor ou ainda pior.3

    As passagens em negrito acima, e , possuem dois

    determinantes, ambos realizando a concordncia com o substantivo a que se referem. O

    primeiro um pronome indefinido, que pode ser traduzido, a partir da consulta ao Liddel-Scott

    (1996), por um, algum. J o segundo uma forma adjetiva, proveniente de aj, para qual o

    dicionrio nos d as seguintes opes: large, big, great; ou seja, largo, grande, importante. O

    substantivo significa filure, error (falha, erro) e possui a forma verbal aw, que

    significa to miss, miss the mark (falhar, errar o alvo). Deste modo, podemos concluir que o erro

    2 Os destaques so nossos. Texto disponvel em: http://www.hs-augsburg.de/~harsch/graeca/Chronologia/S_ante04/Aristoteles/ari_poi2.html, s 20:35hs, de 17 de julho

    de 2010. 3 Traduo nossa.

    http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=a%28marti%2Fan&la=greek&prior=%5dhttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=tina%2F&la=greek&prior=a(marti/anhttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=tw%3Dn&la=greek&prior=tina/http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=e%29n&la=greek&prior=tw=nhttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=mega%2Flh%7C&la=greek&prior=e)nhttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=do%2Fch%7C&la=greek&prior=mega/lh|http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=o%29%2Fntwn&la=greek&prior=do/ch|http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=kai%5C&la=greek&prior=o)/ntwnhttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=eu%29tuxi%2Fa%7C&la=greek&prior=kai/http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=oi%28%3Don&la=greek&prior=eu)tuxi/a|http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=*oi%29di%2Fpous&la=greek&prior=oi(=onhttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=kai%5C&la=greek&prior=*oi)di/poushttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=*que%2Fsths&la=greek&prior=kai/http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=kai%5C&la=greek&prior=*que/sthshttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=oi%28&la=greek&prior=kai/http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=e%29k&la=greek&prior=oi(http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=tw%3Dn&la=greek&prior=e)khttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=toiou%2Ftwn&la=greek&prior=tw=nhttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=genw%3Dn&la=greek&prior=toiou/twnhttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=e%29pifanei%3Ds&la=greek&prior=genw=nhttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=a%29%2Fndres&la=greek&prior=e)pifanei=shttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=e%29c&la=greek&prior=%5dhttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=eu%29tuxi%2Fas&la=greek&prior=e)chttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=ei%29s&la=greek&prior=eu)tuxi/ashttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=dustuxi%2Fan&la=greek&prior=ei)shttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=mh%5C&la=greek&prior=dustuxi/anhttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=dia%5C&la=greek&prior=mh/http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=moxqhri%2Fan&la=greek&prior=dia/http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=a%29lla%5C&la=greek&prior=moxqhri/anhttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=di%27&la=greek&prior=a)lla/http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=a%28marti%2Fan&la=greek&prior=di'http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=mega%2Flhn&la=greek&prior=a(marti/anhttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=h%29%5C&la=greek&prior=mega/lhnhttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=oi%28%2Fou&la=greek&prior=h)/http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=ei%29%2Frhtai&la=greek&prior=oi(/ouhttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=h%29%5C&la=greek&prior=ei)/rhtaihttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=belti%2Fonos&la=greek&prior=h)/http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=ma%3Dllon&la=greek&prior=belti/onoshttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=h%29%5C&la=greek&prior=ma=llonhttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=xei%2Fronos&la=greek&prior=h)/http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=a%28marti%2Fan&la=greek&prior=%5dhttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=tina%2F&la=greek&prior=a(marti/anhttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=a%28marti%2Fan&la=greek&prior=di'http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=mega%2Flhn&la=greek&prior=a(marti/anhttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=a%28marti%2Fan&la=greek&prior=di'http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=a%28marti%2Fan&la=greek&prior=%5dhttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=a%28marti%2Fan&la=greek&prior=%5d

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    trgico, to importante na estrutura da tragdia, , ou seja, indefinido; podendo ser proveniente

    de aes diversas. Contudo, apesar de indefinido, ele , ou seja, grande, importante. E,

    como j dissemos, possuir maior efeito trgico se for realizado de modo no consciente.

    Em A hamartia aristotliaca e a tragdia grega, Filomena Yoshie (2008) relaciona os

    conceitos do erro trgico (hamarta) e do reconhecimento (anagnrisis), com base tambm na

    Potica e em A tica a Nicmago. Ela considera, em concordncia com Eudoro de Sousa, que a

    hamarta o elemento principal para a mudana na fortuna do heri, e completa A essncia da

    hamarta a ignorncia combinada com a ausncia de inteno criminosa. Segundo Lucas, a

    simples falta de conhecimento gnoia; hamarta falta do conhecimento necessrio se decises

    corretas devem ser tomadas. (YOSHIE, 2008, p. 89).

    Albin Lesky (1996), em A tragdia grega, concorda com Benno Wiese, ao falar que no h

    uma mgica formula para se desvendar o trgico. O autor tenta indicar a ktharsis como a essncia

    do trgico, e comenta que a hamarta (o erro, a falha trgica) est associada a incapacidade humana

    de reconhecer o certo. Para o autor, outros elementos tambm so importantes como a dignidade na

    queda, o conflito e a conscincia.

    Junito Brando (2007) comenta que a tragdia esquiliana mais de teomorfizao, que de

    antropomorfizao, e que possui mensagens como gnthe sautn (conhece-te a ti mesmo) e medn

    gan (nada em demasia). Para Brando, o homem v-se limitado diante de sua condio, j que o

    grande trgico busca nervosa e desesperadamente uma conciliao entre dke, o princpio da

    justia, e a Moira, o destino cego, j que a polis a casa dos homens e a pracij, praxis dos

    deuses (BRANDO, 2007, p. 17).

    Para Jacqueline de Romilly (2008), o trgico encontra-se tambm na limitao intrnseca

    da condio humana, inclusive, cintando H. D. F. Kitto, que compartilha do mesmo pensamento.

    Para ela, o erro impe-se como trgico, principalmente, por ser necessrio, e, consequentemente,

    proporcionar o temor e a piedade (phbos ka leos), j que o homem precisa dobrar-se diante da

    imposio da necessidade. Segundo a autora, mesmo na fatalidade, existe a responsabilidade

    humana, ou seja, mesmo adversidade, o indivduo age e, por meio de sua prpria ao, chega ao

    destino trgico. De modo geral, o heri tenta (...) agir bem. E tudo aquilo que se faz, de bem ou de

    mal, revela-se com consequncias particularmente pesadas. (ROMILY, 2008, p. 174-175). A

    autora ressalta tambm o contexto como um fator importante para a reiterao trgica, j que o

    esprito presente, no sculo V a.C, cheio de confiana no homem, no progresso e na civilizao,

    confrontava o homem e sua limitao, que o grande mote da tragdia grega.

    http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=tina%2F&la=greek&prior=a(marti/anhttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph.jsp?l=mega%2Flhn&la=greek&prior=a(marti/an

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    Sandra Luna (2005), em Arqueologia da ao trgica, retoma os conceitos aristotlicos, a

    fim de elucid-los e chegar a uma concluso terica do trgico. Alguns elementos como a empatia,

    o distanciamento e a necessidade da ao errnea do personagem so fundamentais para a

    realizao da ktharsis. A autora tambm destaca a importncia da hbris (ubrij), ou seja, da

    soberba, da desmedida, do excesso e da arrogncia; e da at (ath), que significa a cegueira que

    leva o indivduo catstrofe. Luna (2005) tambm compartilha da ideia de que o erro involuntrio

    o mais trgico, contudo, alerta-nos para um recurso que o da valorizao da empatia, nos casos em

    que o erro voluntrio, para que se possa compensar a diminuio no efeito trgico.

    Resultados e discusses- As emoes no palco da tragdia Prometeu Cadeeiro: educao e

    ao trgica

    De incio, achamos importante destacar que, ao falarmos de emoes trgicas, estamos nos

    referindo, mais especificamente, a piedade e o temor, emoes essas fundamentais no enredo

    trgico. Isso porque, entendemos que as emoes envolvidas, no contexto de discurso, determinam

    e/ou influenciam na forma como a mensagem ser repassada. Para Aristteles (2005), as emoes

    so responsveis por causar alteraes no ser humano, tendo o poder, inclusive, de mudar o seu

    juzo a respeito de algo. Elas seriam, portanto, uma espcie de virtude intelectual, facultada atravs

    de uma razo prtica. Para ele, elas comportariam dor e prazer, seriam a saber: a ira, a calma, o

    amor, a inimizade, o temor, a confiana, a vergonha, a desvergonha, a amabilidade, a piedade, a

    indignao, a inveja e a emulao; compreendendo, como vemos, os seus semelhantes e os seus

    contrrios.

    Aristteles (2005) considerava o medo (foboj) como uma emoo proveniente de uma

    situao de aflio ou perturbao, que fosse advinda de algum mal iminente, sendo, ento, o

    contrrio do medo, a confiana. O filsofo tambm destaca que nem todos os males so temveis,

    mas sim aqueles dos quais poder decorrer grandes destruies, que estejam prximas, j que a

    distncia de algum mal no nos coloca medo. Assim, tememos o dio, a ira, a injustia e tudo aquilo

    possa vir destruir, abalar profundamente e promover grandes tristezas. O autor tambm nos elucida

    de que o temor est relacionado aos males que so inesperados, j que no h como haver uma

    preparao para a sua aceitao; e tambm quando h um erro grave, seja por ser impossvel de

    resolver, ou porque um outro detm o seu poder de resoluo.

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    Na pea Prometeu Cadeeiro, conseguimos observar vrios momentos em que o medo toma

    conta de alguns personagens, principalmente daqueles que observam o deus em deplorvel

    circunstncia, mas tambm por meio do relato das perseguies que princesa Io estava a sofrer e

    viria sofrer, ainda mais, por causa da ciumenta Hera, devido a mais um caso amoroso de Zeus.

    Destacamos um momento em que, aps Prometeu contar todo o seu porvir, ao final, entre os versos

    877 e 886, a sacerdotisa de Hera expe todo o seu pavor. Em um momento, no verso 881, ela

    explicita que o seu corao est tomada pelo fobwi, ou seja, pelo medo, que toma o seu corpo,

    mesmo sem ela ter vivido, s pelo fato de ela saber o que lhe vir ocorrer. A revelao de seu

    destino, propicia a Io uma atividade corporal tomada pela emoo do medo. Inclusive, antes mesmo

    da revelao de todas as provaes que Io ainda viria passar, o Coro j expressava temor ao v-la

    vagando perdida e sofrida, por isso, no verso 696, Prometeu diz que cedo eles esto se

    desesperando, j que o mal maior ainda estaria por vir, e, para tanto, utiliza a expresso fobou.

    J em relao a piedade (ele/oj), Aristteles (2005) expe que ela est na pena sentida por

    algo que aflige e faz sofrer a si ou ao outro, ainda mais, quando esse outro prximo de ns e

    quando essa ameaa tambm no nos distante. A piedade ocorre quando se percebe a iminncia de

    passar pelo mesmo que sofre aquele que digno de sua compaixo. Dessa maneira, ao longo da

    leitura de Prometeu Cadeeiro, conseguimos observar momentos em que os personagens se apiedam,

    seja de Prometeu, seja de Io e, at mesmo, de outros personagens, tomados pelas emoes

    desencadeadas nas cenas trgicas. Entre tantos momentos, destacamos um no qual o Coro, tomado

    de compaixo pelo estado de Prometeu, entre os versos 397-405, diz que derramam lgrimas sem

    fim, por sofrerem pelo destino funesto do deus, devido a deciso de Zeus, por punir-lhe por ajudar

    os mortais. Em outro momento, nos versos 687-695, o Coro diz-se estar estremecido em ver a

    situao de perdio e perseguio na qual Io se encontra.

    Ressaltamos que, nesses dois momentos ilustrados, o Coro exerce o papel de intermdio,

    entre a proximidade e o afastamento, que necessrio para realizao da piedade, pois, como afirma

    Aristteles (2005), o afastamento no possibilita compaixo e a proximidade extrema promove o

    horrvel. Alm do mais, temos, nesses versos referidos, o fator de imerecimento, de injustia, o que

    so importantes para acentuar a tragicidade do fato.

    Ressaltamos, ainda mais, o que o filsofo coloca: para apiedar-se, necessrio termos

    alguma proximidade com a outra pessoa, mas, ao mesmo tempo, essa proximidade no pode ser

    muito significativa, pois, da, teramos, no a piedade, mas o horrvel. O sofrimento imerecido, que

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    ocorre no momento em que uma pessoa honrada sofre algum mal, tambm nos causa compaixo,

    devido a ocasio de injustia.

    Nesse percurso, para compreendermos o papel educativo das emoes, destacamos o que

    nos diz Elisa Possebon (2017), acerca dessa jornada, iniciada na tradio filosfica, por meio de

    Aristteles, e que passa pela perspectiva biolgica de Charles Darwin, e das investigaes

    psicofisiolgicas de William James. Assim, vemos que no to simples tentarmos abarcar toda a

    complexidade e magnitude que nos exige o estudo das emoes. A autora tambm destaca que a

    emoo surge, por meio de algum estmulo diverso, vejamos:

    Para que a emoo surja necessrio que exista um estmulo, um acontecimento, algo que provoque o seu desencadeamento. O acontecimento pode ser externo (uma situao) ou interno (um pensamento, uma recordao); pode ser atual, passado ou futuro; pode ser real ou imaginrio; consciente ou inconsciente. Assim o indivduo pode se emocionar quando for sujeito de uma ao externa a ele, como tambm, por trazer em si mesmo, atravs de suas experincias, histrias e marcas

    imemoriais, evocando contedos que tem o poder de emocion-lo. (POSSEBON, 2017, P. 19-20)

    Assim, pelo entendimento da citao acima, podemos dizer que as emoes suscitadas pela

    arte trgica provocam e atingem o indivduo, seja por meio de seu contato direto com o texto, ou

    por meio de uma encenao ou uma narrao da histria. Enfim, as emoes trgicas podem ser

    desencadeadas atravs de fatores externos e/ou internos, medida que o contato com o enredo

    trgico propicia uma experincia, pois esta, seja real ou imaginria, afeta o indivduo.

    David Konstan (2006), em The emotions of the Ancient Greeks: studies in Aristotle and

    classical literature, salienta que as emoes dos gregos antigos possuam diferenas significativas

    em relao s nossas. Por isso ele defende a necessidade de sabermos identific-las, a fim de termos

    um melhor entendimento da literatura grega e da universal. O autor faz um longo estudo sobre as

    diversas emoes do mundo antigo, por meio de fundamentao filosfica e literria, analisando e

    demonstrando como determinadas emoes exerciam diferentes representatividades. Contudo,

    iremos nos deter ao momento em que ele interroga sobre as diferenas entre temor e piedade,

    Konstan (2006, p. 155) questiona: How, then, does tragic fear differ from pity? (traduo nossa:

    Como, ento, o medo trgico diferente da piedade?). A resposta dada pelo prprio autor, que

    considera que esse medo, fruto da ao trgica, no um erro comum, mas algo advindo de uma

    experincia profunda, porque no est fora do sujeito, e sim em sua prpria constituio, est no ser

    prprio ser. Mas isso no significa que esse medo no pode vir de algo decorrente no outro, ao

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    contrrio, Konstan (2006, p. 155), citando Aritteles, lembra (...) fear for others analogous to fear

    for ourselves., quer dizer, podemos sentir medo pela experincia do meu semelhante ou pela nossa

    prpria, assim, a nossa simpatia pela dor do outro pode fazer com que possamos comparti lhar as

    emoes.

    Diante do exposto, no podemos deixar de fazer a correlao entre as emoes presentes

    no enredo trgico com a sua funo formadora, educativa. Sobre isso, auxilia-nos Werner Jaeger

    (2003), ao explicar-nos que, para os antigos, educao e cultura no eram formas abstratas, distintas

    e isoladas da formao histrica e espiritual de um povo, isso porque (...) para eles, tais valores

    concretizavam-se na literatura, que a expresso real de toda cultura superior. (JAEGER, 2003,

    p.1). por isso, inclusive, que o autor justifica no utilizar o termo educao, optando por paidia,

    a fim de se aproximar da coerncia etimolgica e semntica do que seria a sua essncia, e no

    apenas uma designao simblica, como explica o autor.

    Para exemplificarmos o papel desse processo formativo, na pea Prometeu Cadeeiro, de

    squilo, ocorridas no primeiro episdio da tragdia, na qual Oceano chega at o deus acorrentado e

    oferece-lhe ajuda, dizendo que no h amigo maior que ele, pois tudo ele estaria disposto a fazer

    para o seu bem. Aps longa e instigante conversa que eles tm, inclusive, intermediada pelo Coro, o

    personagem Oceano, em duas situaes desse dilogo, utiliza-se da expresso ensinar. Na

    primeira, presente no verso 382, ele diz: didaske me.4, ou seja, ensina-me. Com o verbo no

    imperativo, Oceano solicita que o seu amigo, mesmo em situao to deplorvel, permeados de

    emoes dolorosas e dignas de piedade, mesmo assim, seja o seu mestre. Alguns versos depois, a

    conversa continua, e Oceano expe a sua tristeza pela situao do amigo, demonstrando tambm

    bastante revolta. Prometeu o acalma e aconselha que ele possa voltar para casa, sem dio, e, ao

    ouvir-lhe as palavras, no verso 391, Oceano diz: h sh, Promhqeu, sumfora\ didaskaloj.5,

    quer dizer, A sua vivncia, Prometeu, ensina.6 Tais observaes nos fazem interpretar que as

    emoes trgicas ensinam, por isso afirma Jaerger (2003):

    Sem dvida, os verdadeiros representantes da paidia grega no so os artistas

    mudos- escultores, pintores, arquitetos, - mas os poetas e os msicos, os filsofos,

    4 Texto no original retirado da obra em verso bilngue de Torrano (2006, p.380). 5 Destaque nosso (Ibidem, p. 382). 6 Torrano traduz: A tua conjuntura, Prometeu, ensina. (2006, p. 383), mas ns preferimos usar o termo vivncia

    para traduzir sumfora\, por considerarmos, que, no contexto do nosso trabalho, a melhor que traduz a expresso

    desse dilogo.

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    os retricos e os oradores, quer dizer, os homens de Estado. No pensamento grego,

    o legislador encontra-se, em certo aspecto, muito mais prximo do poeta que o

    artista plstico: que ambos tm uma misso educadora, e s o escultor que forma

    o Homem vivo tem direito a este ttulo. (JAEGER, 2003, p.18)

    Desse modo, por meio das consideraes feitas acima, compreendemos que as emoes

    trgicas exerciam um carter educativo na Antiguidade, j que cultura e educao no eram fatores

    isolados, e sim elementos intrnsecos e constituintes da formao de uma nao.

    Concluso

    Atravs do nosso trabalho, As emoes no palco da tragdia Prometeu Cadeeiro:

    educao e ao trgica, consideramos que conseguimos realizar a nossa pretenso de analisar os

    elementos centrais suscitados no decorrer da cena trgica: piedade e temor. Percebemos, assim, que

    as emoes na Antiguidade tinham uma representao esttica, por meio de um gnero literrio- a

    tragdia grega, e uma finalidade educativa, a fim de alcanar os espectadores nas suas mais nfimas

    sensaes. A nossa pesquisa permitiu-nos o debruar-se diante da desses sentidos e efeitos

    mltiplos, decorrentes da cena trgica presente na tragdia Prometeu Cadeeiro, de squilo,

    permeada de emoes e finalidades didticas em prol de uma formao global do indivduo na

    Antiguidade- a paidia. Por isso consideramos que:

    A palavra, o e o som, o ritmo e a harmonia, na medida em que atuam pela palavra, pelo som ou por ambos, so as nicas foras formadoras da alma, pois o fator decisivo em toda a paidia a energia, mais importante ainda para a formao do esprito que para a aquisio das aptides corporais no agon. (JAEGER, 2003, p.18)

    E, para que posamos ter alcanado a objetividade de nossa pesquisa, utilizamo-nos de

    autores fundamentais que corroboraram significativamente com a fundamentao terica do nosso

    trabalho, a saber: Aristteles (1998/2005), Konstan (2006), Lesky (1996), Possebon (2017), Werner

    (2003), Luna (2005) entre tantos outros.

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    Referncias

    Aristteles. A potica clssica. Trad. Jaime Bruna. 3 ed. So Paulo: Cultrix, 1988.

    _______. Retrica das Paixes. Trad. Isis Borges B. da Fonseca. 2 ed. So Paulo: Martins Fontes,

    2003.

    BRANDO, Junito de Souza. Teatro Grego: tragdia e comdia. 10.ed. Petrpolis: Vozes, 2007.

    SQUILO. Prometeu Cadeeiro. In: Tragdias. Trad. Jaa Torrano. So Paulo: Iluminuras, 2009.

    JAEGER, Werner. Paidia; a formao do homem grego. , 4 ed. Trad. Artur M. Parreira. So

    Paulo: Martins Fontes, 2003.

    KONSTAN, David. The emotions of the Ancient Greeks; studies in Aristotle and classical

    literature. Canad: University of Toronto Press Incorporated, 2006.

    LESKY, Albin. A tragdia grega. Trad. J. Guinsburg, Geraldo Gerson de Souza e Alberto Guzik.

    3.ed. So Paulo: Perspectiva, 1996.

    LUNA, Sandra. Arqueologia da Ao Trgica: o legado grego. Joo Pessoa: Idia, 2005.

    POSSEBON, Elisa Gonalves. O universo das emoes; uma introduo. Joo Pessoa: Libellus,

    2017.

    ROMILLY, Jacqueline de. A Tragdia Grega. Trad. Leonor Santa. 2 ed. Lisboa: Edies 70, 2008.

    YOSHIE, Filomena. A hamarta aristotlica e a tragdia grega. In: Anais de Filosofia, vol. 2, n

    3, 2008. Acessado em www.ifcs.ufrj.br/~afc/2008/FILOMENA.pdf

    http://www.ifcs.ufrj.br/~afc/2008/FILOMENA.pdf