AS ESPECIFICIDADES DA PRESENÇA DE FAMÍLIAS DE CAMADAS POPULARES NA ESCOLARIZAÇÃO DOS FILHOS

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AS ESPECIFICIDADES DA PRESENÇA DE FAMÍLIAS DE CAMADAS POPULARES NA ESCOLARIZAÇÃO DOS FILHOS - O PAPEL DA FAMÍLIA DE MACHADO DE ASSIS Ana Amélia Chaves Teixeira (Bolsista PIBIC/CNPq - FUNREI). Orientadora: Professora Doutora Maria José Braga Viana (DECED - FUNREI) INTRODUÇÃO: Este trabalho representa o resultado de um estudo que dá continuidade à problemática levantada por Viana (1998) em sua tese de doutorado, Longevidade escolar em famílias de camadas populares: Algumas condições de possibilidades e, coloca a seguinte questão: - de que formas específicas as famílias de camadas populares estão presentes no sucesso escolar de seus filhos, propiciando situações de longevidades escolares nesses meios? Por quê formas específicas? – Porque de acordo com Viana(1998), as práticas e intervenções realizadas pelas famílias de camadas médias, endógenas ao processo escolar, não ocorrem nas camadas populares. Temos como hipótese que estas formas constituem-se de um tipo de presença familiar, e caracterizá-las constituiu nosso objetivo neste trabalho. Analisamos a biografia do renomado escritor – romancista: Machado de Assis e a metodologia utilizada fixou-se basicamente em três princípios norteadores de análise, listados a seguir: Primeiro, a relação que Machado de Assis estabeleceu com o tempo; segundo, as formas socializadoras familiares; terceiro, os processos intergeracionais de continuidades, rupturas e ambivalências no plano simbólico e cultural. Estabelecemos a seguinte subdivisão das etapas da vida do escritor que marcaram passagens importantes, apoiando- nos na metodologia traçada. De acordo com a predominância maior de cada princípio norteador de análise temos: 1) A infância no Morro do Livramento e os primeiros elementos de uma socialização familiar facilitadora. Neste momento da vida do escritor temos a formação de seus valores, hábitos, usos de linguagem em ambiente social favorável, na casa da madrinha, que mais tarde tornará explícita toda uma

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AS ESPECIFICIDADES DA PRESENÇA DE FAMÍLIAS DE CAMADAS POPULARES NA ESCOLARIZAÇÃO DOS FILHOS - O PAPEL DA FAMÍLIA

DE MACHADO DE ASSIS 

Ana Amélia Chaves Teixeira (Bolsista PIBIC/CNPq - FUNREI).Orientadora: Professora Doutora Maria José Braga Viana (DECED - FUNREI)

  

INTRODUÇÃO: 

Este trabalho representa o resultado de um estudo que dá continuidade à problemática levantada por Viana (1998) em sua tese de doutorado, Longevidade escolar em famílias de camadas populares: Algumas condições de possibilidades e, coloca a seguinte questão: - de que formas específicas as famílias de camadas populares estão presentes no sucesso escolar de seus filhos, propiciando situações de longevidades escolares nesses meios?

Por quê formas específicas? – Porque de acordo com Viana(1998), as práticas e intervenções realizadas pelas famílias de camadas médias, endógenas ao processo escolar, não ocorrem nas camadas populares. Temos como hipótese que estas formas constituem-se de um tipo de presença familiar, e caracterizá-las constituiu nosso objetivo neste trabalho.

Analisamos a biografia do renomado escritor – romancista: Machado de Assis e a metodologia utilizada fixou-se basicamente em três princípios norteadores de análise, listados a seguir: Primeiro, a relação que Machado de Assis estabeleceu com o tempo; segundo, as formas socializadoras familiares; terceiro, os processos intergeracionais de continuidades, rupturas e ambivalências no plano simbólico e cultural.

Estabelecemos a seguinte subdivisão das etapas da vida do escritor que marcaram passagens importantes, apoiando-nos na metodologia traçada. De acordo com a predominância maior de cada princípio norteador de análise temos: 1) A infância no Morro do Livramento e os primeiros elementos de uma socialização familiar facilitadora. Neste momento da vida do escritor temos a formação de seus valores, hábitos, usos de linguagem em ambiente social favorável, na casa da madrinha, que mais tarde tornará explícita toda uma constituição de personalidade que facilitou o sucesso obtido. 2) O segundo casamento do pai de Machado de Assis e a possibilidade de contato com o universo letrado. Neste segundo momento, observamos mobilizações familiares no sentido de propiciarem que Machado de Assis se emancipasse culturalmente. A acolhida pela madrasta e a possibilidade de convivência dentro de uma escola, como vendedor de quitutes, na sua companhia. 3) A saída de casa e a difícil conciliação de dois mundos. Neste terceiro momento, visualizamos os resultados daquela educação recebida em casa, aliada aos esforços de possibilitar que Machado de Assis fosse criado com melhores condições de vida que o distanciou das referências sociais e culturais de origem. 4) O reencontro da identidade perdida. Neste último momento, percebemos a poeira se assentar. Quando Machado de Assis encontra Carolina, esta aparece como que um conforto para sua alma atribulada, porque ela era a única pessoa que conseguia reconciliar os valores que o romancista trazia de casa e o universo sociocultural ao qual se integrara, amenizando os impactos e todo o sofrimento pelos quais o escritor passava.

Joaquim Maria Machado de Assis nasceu e passou sua infância no período de 21/06/1839 (data de seu nascimento) até mais ou menos 1849, logo após a morte de sua mãe, em terras da chácara do Livramento,na cidade do Rio de Janeiro. "Nesta casa

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sempre habitada por famílias importantes, com fumaças e hábitos de grandeza, passou-se a primeira infância do romancista"(Pereira, 1988, pp.29). Sua família estabelecia vínculos muito fortes nesta chácara em função do uso da terra e das relações de trabalho que possuíam, como agregados.

As relações estabelecidas entre os pais de Machado de Assis e os proprietários da casa era uma relação de proximidade, com algum vínculo de conhecimento, com o fazendeiro ou mais especificamente, com Dona Maria José de Mendonça Barroso. Tal consideração deve-se ao fato de que seu pai, tendo sido alforriado, permaneceu vinculados à estas pessoas e, ainda instauravam-se boas relações de convivência entre eles.

Machado de Assis viveu o lugar de criança filho de não proprietário mas, afilhado dos proprietários do Livramento. Neste mundo social marcado pelo pouco distanciamento entre os ocupantes de diferentes lugares sociais, a criança filha de quatro gerações da fazenda teve acesso ao interior da casa. Certamente essa sua posição dentro dos salões senhoriais muito favoreceu a posse de disposições culturais. Por exemplo, Machado de Assis conhecia pinturas, livros e gravuras da casa da madrinha, que possibilitaram, segundo meu entendimento, sua trajetória de emancipação social e cultural.

Torna-se importante fazer uma breve consideração histórica acerca das condições sociais e culturais em que se processou a trajetória de escolarização de Machado de Assis para compreendermos como aconteceu sua longevidade escolar num tempo em que o sistema educacional vigente era ainda muito precário.

Segundo Werebe(1985), embora a Constituição Imperial de 11 de dezembro de 1823 determinasse instrução primária gratuita a todos os brasileiros, muito pouco se fez pelo ensino da massa popular, tanto nos anos que precederam, quanto nos que sucederam a independência. O analfabetismo disputava lugar, na conformação da história da educação brasileira, com um pequeno grupo de profissionais que exercia, bem ou mal, os seus ofícios e, um outro saído da elite proprietária de terras, cujos diplomas serviam tão somente para satisfazer vaidades pessoais ou, para obtenção de altos postos legislativos ou administrativos, politicamente úteis na conservação dos interesses que representavam.

Foi nesse contexto histórico adverso que Joaquim Maria Machado de Assis, a despeito de não apresentar diplomas, teve seu sucesso com as letras. Sucesso marcado pelo domínio da leitura num país de analfabetos, acrescido do poder da compreensão arguta do mundo histórico-social que o rodeava, coroado pelo domínio da escrita que usava para retratar sarcasticamente as incoerências sociais em curso.

Assim, gostaríamos de ajustar o conceito de longevidade escolar em se tratando de Joaquim Maria Machado de Assis. Nesse caso, o conceito se mostraria muito mais adequado à idéia de domínio de conhecimento do que à permanência restrita em bancos escolares por longos períodos de tempo. Tal transferência pode ser perfeitamente defendida, avalio, através do contexto educacional vigente no período imperial. EmConto de Escola, Machado de Assis descreve a rotina, o cotidiano de uma escola muito bem. No entanto, não existem provas de que ele tenha freqüentado uma instituição de ensino.

Desta forma, a trajetória de aquisição de conhecimento realizada por Machado de Assis se efetivou com a posse de disposições culturais e sociais desenvolvidas, primeiramente, na casa onde nascera.

  

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ANÁLISE DE ALGUNS DADOS ACERCA DA PRESENÇA DA FAMÍLIA NO CONTEXTO DA BIOGRAFIA DE MACHADO DE ASSIS

 Abordando o primeiro destes princípios, que foi a relação estabelecida com o

tempo por parte de Machado de Assis. Percebemos que, em geral, o romancista não fazia planos em relação ao futuro mais distante. Ele vivia as oportunidades que o presente lhe apresentava. Numa relação de perseverança de que amanhã se alcançaria uma vitória, seja como fosse e no tempo que fosse preciso. Somente na posse de uma tal conquista poderia se dar o próximo passo. Vivia-se o presente. As vitórias iam se dando ao acaso. Neste processo não tínhamos uma única vitória de longo alcance mas, vitórias diárias que se iam efetivando. O resultado de cada dia era muito importante para que se pudesse chegar a algum lugar.

A importância destas disposições temporais de futuro para o que nos interessa nesse estudo tem seus fundamentos na seguinte fala de Mercure(1995, apud Viana, 1998):

 “Numerosas contribuições científicas nos ensinam que o estudo das diversas maneiras de tomar consciência do tempo, para tomar apenas um exemplo, contribui muito para a compreensão de certos fenômenos sociais, precisamente porque esquemas temporais, formas de simbolização do tempo, concepções e atitudes particulares em relação ao tempo, podem ter implicações mais ou menos diretas sobre os diversos modos de atividades.”( Mercure,1995, pp.15,apud Viana, 1998,pp.61) 

Essas disposições aparecem na trajetória de Machado de Assis como uma forma própria de tomar consciência do tempo. A partir de uma noção de tempo concreta ou, de tempo na medida do que fosse possível, ele aproveitava as suas experiências, o seu momento. Como também, assumia uma concepção de futuro como produto de suas próprias ações. Como podemos perceber nas citações a seguir:

 “O pequeno gago, esquivo, pouco comunicativo, não deve ter sido o ideal dos vendedores [de quitandas]. Certamente, nas horas de folga, procurava ouvir trechos das lições dadas às meninas ricas, pescar aqui e ali uma noção, um esclarecimento. Não lhe seria possível penetrar nas classes, mas os moleques têm mil manhas, sabem escutar às portas, esgueirar-se pelos corredores, esconder-se nos desvãos escuros. Imóvel o coração batendo de susto, enquanto esperava o tabuleiro de quitandas, Joaquim Maria ouviria as aulas que não lhe eram destinadas.” (Pereira, 1988, pp.42) “Metido na sua roupinha surrada esforçando-se por não gaguejar, corria para casa de Madame Gallot. Apenas tinha uma folga e lá ficava a falar, a conversar, todo ouvidos, todo atenção, certo de que assim estava preparando o futuro.” (Pereira, 1988, pp. 44) 

Esta questão de aproveitar o tempo, pode ser percebida, neste estudo, da seguinte maneira: Primeiro, não encontrei nenhuma fala ou ação dos pais de Machado de Assis ou de sua madrinha que estabelecesse que ele deveria ser um grande escritor. Segundo, percebe-se em Machado de Assis uma assiduidade em ir buscar livros na biblioteca, o que me levou a concluir que ele valorizava seu tempo a fim de buscar construir um futuro melhor para si. Desse modo, o tempo lhe era muito caro e ele gastava-o lendo. O

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dia-a-dia fez-se muito importante para o alcance de sucesso alcançado por Machado de Assis. Podemos constatar também, que numa atitude de perseverança o romancista ia pouco a pouco delineando suas perspectivas de futuro. Como podemos verificar na passagem abaixo, temos em Machado de Assis uma forma muito específica de apropriação do tempo e diferente para outros elementos de igual procedência social:

 “A barca vinha cedo para a cidade, e voltava à tarde, conduzindo sempre os mesmos passageiros, gente que tinha empregos no centro. Como era natural, a camaradagem se estabeleceu entre esses companheiros diários, todos conversavam para matar o tempo. Só o mocinho magro, sempre com um livro na mão, nunca dirigiu a palavra a ninguém. Mal se sentava, logo afundava na leitura, e assim ia e voltava, parecendo ignorar os que o cercavam. Sem levantar os olhos do livro, indiferente aos espetáculos da viagem, à beleza da baía, às embarcações que encontravam. Era Machado de Assis.” (Pereira, 1988, pp.45) 

O segundo princípio que norteou a nossa pesquisa foram as formas socializadoras familiares produtoras, segundo nossa compreensão, de disposições sociais favorecedoras de longevidade escolar nos meios populares. Por formas socializadoras familiares entendemos todos os processos e mecanismos através dos quais a família repassa para os filhos os seus valores e os constitui enquanto sujeitos sociais.

Quando buscamos as origens de Machado de Assis percebemos que, embora mulato, fora criado no palacete da madrinha, acostumado com pinturas, livros e boas maneiras; tudo isto proporcionado por um capital social dos pais. Machado de Assis colhia os frutos de uma boa rede de relacionamentos derivados do meio social ao qual estavam inseridos e que muito lhe favoreceu a adoção de disposições culturais. Estas experiências constituíam importantes referências de base para o romancista. Assim, podemos demonstrar, segundo a citação que se segue, que Machado de Assis teve seu desenvolvimento intelectual em meio fértil.

 "Nas minhas reminiscências de infância, tenho ainda viva a idéia de ter visto quase diariamente a tela a que alude a anedota do cônego e do pintor; lá estava a árvore, atrás da qual o cônego figurava estar escondido para não ser visto de Susana."(Pereira, 1988, pp.31) 

Identificamos, na história de Machado de Assis uma educação familiar que lhe abriu portas no mundo. Exemplo disso foi no jornal de Paula Brito onde ele, mesmo sendo um mal tipógrafo, conseguiu cativar Manuel Antônio de Almeida, seu chefe, e este lhe deu uma promoção: para o cargo de revisor de textos(provas). Manuel Antônio de Almeida percebeu em Machado de Assis talento e formação superiores ao de simples trabalhador tipográfico.

Machado de Assis se sentia à vontade ao transitar em outros meios sociais. Tanto no modo de se vestir como no modo como conversar. Era uma pessoa letrada, que conhecia a moda, através da mãe, que era costureira da proprietária da chácara. Tinha contato com arte na casa da madrinha, onde ele tinha livre trânsito, e seu pai assinava o almanaque Laemmert. O que demonstrava uma determinado domínio cultural ou segundo Bourdieu(1998), possuíam certo habitus que os diferenciavam de outros sujeitos de igual procedência social. A importante influência da mãe na desenvoltura apresentada por Machado de Assis, no modo de se vestir e se portar, pode ser constatada neste relato de Fonseca(1960):

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 "Acreditamos que tenha sido ele o cronista mais elegante da Marmota de 1855, 1856 e 1857. Vêmo-lo mais tarde no Jornal da Família e noutros de índole feminina, sempre à vontade, sem o menor recalque, o que de sua parte revela, segundo cremos muito equilíbrio interior."(Fonseca, 1960, pp.25) 

Apesar de sua origem humilde, a formação intelectual de Machado de Assis se deu em um ambiente favorável à aquisição de disposições culturais, onde estabeleceu para si outros grupos de referência, por exemplo, a madrinha. A contribuição de seus pais nesse aspecto foi a de propiciar uma mediação ou, facilitação de inserção social de Machado de Assis em outros grupos sociais. Como podemos verificar na citação que se segue:

 “Seu super –ego não se formou apenas em casa, junto dos pais, mas no palacete do padrinho e no da madrinha, que lhe deram os próprios nomes e o batizaram em capela particular.” (Fonseca, 1960, pp.54) 

A mãe de Machado de Assis, Maria Leopoldina, era branca e tinha uma condição superior na casa onde trabalhava. De acordo com Fonseca(1960), apesar de não possuírem bens de fortuna procediam em conformidade com os varões da casa. Do que podemos deduzir que seu habitus de classe era formado em ambiente muito diferente do meio social de origem.

Quanto ao pai de Machado de Assis, Sr. Francisco José de Assis, há fortes indícios de que ele era filho de um padre que o ajudou a se tornar pintor – decorador, profissão que exigia algum estudo na época. Sobre este fato, Pereira(1988), comenta sobre a condição de vida dos pais de Machado de Assis, que eram “gente humilde mas organizada, legitimamente casada e benquista no Morro do Livramento. Senão não teriam sido padrinhos de Machado de Assis tão alta senhora e tão importante veador." A partir de tal comentário podemos inferir que embora a condição de vida dos pais de Machado de Assis fosse precária, eles eram amparados e protegidos por pessoas ricas da sociedade do Rio de Janeiro, do séc. XIX.

Segundo esta disposição moral familiar, o fato de serem legitimamente casados, gente honesta e trabalhadora muito contribuíram para que se pudessem vislumbrar oportunidades que não seriam possíveis se a família não fosse tão bem constituída. Assim, por exemplo, o carinho com o qual Machado de Assis era tratado, e que muito lhe beneficiou, devia-se à situação de seus pais dentro daquela propriedade. Concluímos então, que a "facilidade" encontrada por Machado de Assis para inserir-se em outros grupos sociais tem sua explicação, antes de tudo, na educação que recebera dos pais, assim como, na influência herdada pela família da madrinha de Machado de Assis.

Quanto à trajetória de escolarização, quem ensinou as primeiras letras a Machado de Assis foi sua mãe. No entanto, não existem provas de que ele tenha freqüentado alguma escola. Existem algumas hipóteses dele ter tido acesso às aulas como ouvinte. Há também uma citação de Fonseca(1960) em que este biógrafo fala que Machado de Assis foi coroinha. E essa questão de ser coroinha era importante porque, nessa função se aprendia o latim e isso constituía uma forma de estar estudando. Somente eram coroinhas os filhos das pessoas mais abastadas da época.

Numa entrevista de Pereira(1988) com dona Francisca Basto Cordeiro, filha dos Barões Smith Vasconcelos e cuja avó, a condessa de São Mamede que fora aluna do Colégio São Cristóvão, contava que conheceu Machado de Assis baleiro. Nesta escola,

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segundo relatos de família de Dona Francisca, enquanto Machado de Assis vendia as quitandas de sua madrasta este aproveitava para escutar as aulas que não lhe eram destinadas. Uma outra forma de presença da família de Machado de Assis através da socialização foi a contribuição paterna que lhe estimulara a paixão apresentada pela leitura, como podemos perceber no relato citado abaixo:

 “E o pequeno vivia na chácara de dona Maria José de Mendonça Barroso, alheio a necessidades. Não ignoramos que Francisco [pai de Machado de Assis] amava os livros e é de crer que alguns houvesse no palacete da madrinha para o pequeno Joaquim Maria se distrair vendo gravuras.” (Fonseca, 1960, pp.29) 

Desta maneira concluímos que, houveram significativas referências familiares no âmbito da socialização para que Machado de Assis se tornasse o brilhante escritor em que ele se tornou e que, esta herança paterna como também toda a herança legada pela mãe foram de fundamental importância para o sucesso alcançado pelo romancista.

Por fim, o último princípio norteador da análise foram os processos intergeracionais de continuidades, rupturas e ambivalências no plano cultural e simbólico que tem como razão de ser a permanência no sistema escolar.

Entendemos por processos intergeracionais as relações estabelecidas entre pais e filhos e que tem a escola como mediadora. Tais relações podem ocasionar continuidades, rupturas e/ou ambivalências no âmbito cultural e simbólico.

Segundo Berger(1986), a nossa identidade é atribuída em atos de reconhecimento social e as primeiras pessoas, as quais nos identificamos, como se olhássemos em um espelho, são com os nossos pais. Assim a nossa identidade não é uma coisa pré–existente, ela vai sendo constituída e formada no meio ao qual nos integramos.

A convivência com um sistema simbólico divergente do nosso ambiente social de origem pode acarretar conflitos entre as gerações. Tal descontinuidade acontece quando a reprodução dos valores, usos de linguagem e atitudes não são compatíveis entre as duas gerações. O contrário seria a continuidade entre o socializado e a sua família, as duas gerações se identificam, se prolongam apesar de emancipações culturais.

A ambivalência se caracteriza por uma ruptura parcial, pela manutenção de alguns valores da família ou, alguma identidade com as origens. A ambivalência seria o estado de quem experimenta, ao mesmo tempo, numa determinada situação, sentimentos opostos, falta integração com o meio. Por exemplo: ir a uma festa de socialização no trabalho e não se reconhecer integrado àquelas pessoas, hábitos e trocas simbólicas ali instauradas.

Desta maneira, Richard Hoggart(1957) trabalha bastante com esta idéia do conflito e da ambivalência experienciada pelas pessoas que realizam este tipo de emancipação cultural e explicita os comportamentos sintomáticos praticados por estas pessoas. Ele coloca que geralmente as pessoas que vivenciam esse deslocamento social e cultural sentem-se desenraizadas e não se sentem bem em nenhum grupo. Por isso, elas tendem a ser mais fechadas e mais reservadas que o normal.

Tal fato se deve, segundo Hoggart(1957), por uma ausência de equilíbrio e certeza necessários para constituir-lhes a personalidade. Assim, por exemplo, identificamos em Machado de Assis que ele era bastante reservado, que ele gostava de se enclausurar dentro de casa, onde ele somente confiava em Carolina (sua esposa). Supomos que até mesmo na escolha de sua companheira e amada, Machado de Assis

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deixou exposta esta questão do conflito interno pelo qual passava, e que era forte nele. O sofrimento presente na citação abaixo mostra o sofrimento que muito o atormentava:

 “... Tu não te pareces nada com as mulheres vulgares que tenho conhecido. Espírito e coração como os teus são prendas raras; alma tão boa e tão elevada, sensibilidade tão melindrosa, razão tão reta não são bens que a natureza espalhasse às mãos-cheias pelo teu sexo. Tu pertences ao pequeno número de mulheres que ainda sabem amar, sentir e pensar. Como te não amaria eu? Além disso tens para mim um dote que realça os mais: sofreste”. (Facioli, 1982, pp.29) 

Machado de Assis, segundo autores pesquisados, sempre foi uma pessoa introvertida, tímida, disciplinada e “aparentemente” desligada do mundo exterior. Outra característica marcante ressaltada por Hoggart(1957) quanto aos desenraizados, pessoas que realizam trajetórias de emancipação social e cultural com o meio social de origem, é que eles retardam sua maturidade sexual em função do êxito escolar. Isto se deve à necessidade de ter que escolher entre, casar mais cedo e logo iniciar sua vida profissional ou, estudar. Machado de Assis não tivera outros relacionamentos afetivos e casara-se com 30 anos de idade.(idade avançada para a época)

Muito importante também, segundo Hoggart(1957), é que os desenraizados vivem mais sob a influência feminina que da masculina. O fato de Machado de Assis ter desenvolvido o gosto pelas modas deve-se à constante presença do menino junto à mãe enquanto, esta costurava. Fonseca(1960) nos fala uma pouco mais sobre isto:

 “No Rio de 1839(e ainda no de 60 anos após, no Rio em que nascemos), as costureiras trabalhavam nas residências das freguesas. Vestidos de grande gala importavam-se de Paris. Os outros preparavam-se em casa. Do convívio diuturno com a mãe costureira é que Machado de Assis pegou o gosto das modas.”( Fonseca, 1960, pp.25) 

Depois, ao lado da madrasta vendendo doces e mais tarde junto à Carolina percebemos Machado de Assis sempre sob a tutela feminina. Quantas mulheres e ele parecia se dar muito bem com elas. Esta é, segundo Hoggart(1957), uma condição que diferencia, nas camadas populares, os filhos "desenraizados", ou sujeitos sociais marcados por emancipações culturais dolorosas.

"...Começa a sentir-se mais próximo das mulheres da casa do que dos homens. Isto acontece mesmo quando o pai não é daqueles que acham que os livros e a leitura são <<coisas de mulheres>>. O rapaz passa grande parte de seu tempo no centro físico do lar, dominado pelo espírito feminino, estudando em silêncio enquanto a mãe faz o trabalho de casa - o pai volta tarde do trabalho, ou foi tomar uma bebida com os amigos. O pai e os irmãos do rapaz estão lá fora, no mundo dos homens; este fica no mundo das mulheres."(Hoggart, 1957, pp.165)

 Apesar de não ter valor enquanto prova, nas obras de Machado de Assis

podemos perceber o poder das mulheres e como elas são influentes nos seus personagens tal consideração nos remete segundo Massa(1971), as importantes influências femininas na vida do escritor. No entanto, quanto às influências masculinas,

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estas são bem menos visíveis ou, quase inexistentes. Por isso, percebemos mais um fator para a ausência de identidade ou vínculos culturais com as origens.

Segundo Nicolaci-da-Costa(1982) em todo processo de socialização há, em potencial, descontinuidades entre sistemas simbólicos. Segundo Bourdieu(1998), o filho para perpetuar a herança paterna precisa se distinguir do pai, ultrapassá-lo e, em certo sentido negá-lo. Assim, de acordo com estes autores, colocamos como hipótese que Machado de Assis para efetivar sua transposição sociocultural apresentou certo distanciamento, até mesmo físico, daquela que poderia denunciar uma procedência social e cultural mais humilde, sua madrasta. Tal comportamento, como também, o disfarce e ocultamento do pertencimento de classe vivido como marca de um destino singular e não como fato social, foram detectados em Machado de Assis. A citação abaixo revela isso, e através dela podemos perceber também porque, desde muito novo, o menino começa a sentir a necessidade da solidão e do distanciamento com as origens:

 “A madrasta, tão boa e tão humilde, era um testemunho vivo, insofismável, do passado a que Joaquim Maria queria fugir. Era a prisão à condição modesta. E na alma do moço escritor em conflito se há de ter  travado um doloroso drama íntimo entre a gratidão e a ambição. Deixou-se afinal levar pela segunda, mas não sem lutas, lutas que o marcaram fundamente, a ponto de ecoarem ainda nos romances escritos tantos anos depois, e devem ter feito sofrer muito esse introvertido que tudo tentava para sair de si mesmo, para se alçar acima do seu destino normal, para compensar pela personalidade construída as deficiências trazidas pelo berço.”(Pereira, 1988, pp.71) 

 Desta forma, o que gostaríamos de ressaltar é que segundo os processos

intergeracionais vivenciados, a trajetória de Machado de Assis foi marcada por ruptura entre sistemas simbólicos com a "autorização" de sua família. No entanto, isto não quer dizer que tal processo não se revestiu de dor, conflitos e inseguranças como podemos perceber na descrição acima realizada.

  

CONSIDERAÇÕES FINAIS 

Como uma conclusão mais geral identificamos que, a família de Machado de Assis, facilitando-lhe uma rede de relações sociais exteriores ao núcleo familiar condicionou a emancipação de sua situação social e cultural de origem. Através de uma atribuição de valor e de mobilizações em relação a tudo o que se referia `a cultura num sentido mais amplo, como leitura, pintura, arte de bordar e costurar, prática de boas maneiras deduzimos que, a família constituiu o fator que possibilitou o sucesso com as letras alcançado pelo romancista.

Mais especificamente, Machado de Assis estabeleceu uma ruptura simbólica com o seu meio social de origem. Experienciou conflitos semelhantes aos caracterizados por Richard Hoggart(1957) para efetivar sua transposição social e teve como referência outras categorias sociais, como a madrinha, sendo estas referências intermediadas por sua família.

A família de Machado de Assis deu-lhe os subsídios para se integrar num novo grupo social. No entanto, a ruptura que se estabeleceu com o seu meio social de origem aconteceu quando ele precisou manter novas integrações e com isto tinha que deixar

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para trás antigos hábitos e valores, como podemos observar no caso retratado sobre sua madrasta, que fora tão boa para ele, na ausência da mãe, mas trazia consigo um passado ao qual ele queria se distanciar, qual seja, o de não possuir aquilo de que sua alma se alimenta: outras conversas, outros grupos sociais, outra visão de mundo, outras práticas e relacionamentos socioculturais. Machado de Assis não se identificava mais com as origens.

A família, através da formação, propiciou a Machado de Assis que ele fosse criado diferente dos hábitos com os quais estavam acostumados, com outras referências fora da restrição familiar. E isto, implicou em rupturas simbólicas entre eles.

Podemos perceber também, que a família de Machado de Assis mobilizou-se em ensinar-lhe as primeiras letras, o que demostrava o domínio de um capital cultural que fora repassado ao filho. Tal fato, deixa transparecer que realmente valorizavam a educação e desejavam que o menino se emancipasse culturalmente.

Concluímos que, a trajetória de aquisição de conhecimento de Machado de Assis se deu, de acordo com as disposições temporais, com a inexistência de projetos de longo prazo. Sendo assim, cada passo dado abria horizontes novos. Cada etapa da vida do escritor era superada com êxito e estas se davam ao acaso.

Concluímos também, que o casamento realizado pelo romancista, deixa entrever que ele era mais um dos desenraizados de Hoggart(1957). Tal consideração se faz porque segundo relatos do próprio Machado de Assis ela possuía duas características que ele muito prezava. Primeiro, o fato de Carolina ter conhecido a dor e a outra, é que ela era inteligente. Era a única pessoa com a qual poderia se identificar. Carolina representava o universo sociocultural que Machado de Assis integrara e ao mesmo tempo, tinha experienciado a dor como o nosso romancista.

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