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As Espíritas Voluntária do Centro Espírita Caminho da Re- denção em visita às casas das famílias carentes assistidas pela instituição / Foto: Niassa Jamena

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Voluntária do Centro Espírita Caminho da Re-denção em visita às casas das famílias carentes assistidas pela instituição / Foto: Niassa Jamena

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Muitas vezes confundido com o can-domblé e a umbanda, o espiritismo vem ganhando cada vez mais adeptos em Salvador. Estimuladas pela curiosidade acerca do fenômeno da mediunidade, pelo sucesso de filmes e novelas que abordam a religião ou por sofrerem de problemas de saúde ou psicológicos não diagnosticados pelos médicos, muitas pessoas têm procu-rado os centros espíritas da cidade onde buscam os princípios da doutrina de Allan Kardec.

Definida pelos adeptos como uma crença que alia ciência, filosofia e religião, o espi-ritismo é uma doutrina cristã que propõe o exercício da fé raciocinada, ou seja, a cren-ça nos fenômenos e princípios pregados seria baseada na constatação científica e no raciocínio lógico. Conhecida principalmen-te por defender a existência de vida após a morte, a reencarnação e a comunicação com espíritos de pessoas que já morre-ram, a religião conseguiu notoriedade, no Brasil, principalmente através dos livros e

das supostas comunicações mediúnicas de Chico Xavier, embora já houvesse grupos espíritas no país desde 1882.

Por ter um caráter mais progressista do que a maior parte das religiões cristãs tradicionais, a doutrina tem atraído muitos adeptos na classe média soteropolitana. Os grandes centros espíritas da cidade, como o Caminho da Redenção, o Cavaleiros da Luz e o Paulo Estevão, são conhecidos no país principalmente pelas obras assis-tenciais e pelos atendimentos espirituais que realizam. A fama de alguns dos seus líderes, como Divaldo Franco, faz com que muitas pessoas, inclusive artistas, vejam os expoentes da religião como verdadeiros gurus espirituais, lotando as palestras e seminários proferidos por eles, as filas de atendimento e de autógrafo de livros, além de pedirem conselhos, orientações e até previsões sobre suas vidas.

Com cerca de 86,5 mil membros em Salvador, segundo o Instituo Brasileiro de

Por Niassa Jamena

Joana de Ângelis é a mentora espiritual do médium Divaldo Fran-co através do qual já escreveu vários livros/ Foto:Reprodução

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Há seis anos Sônia Soares, 58, coordena o Departamento de Assistência Social (DAS) do centro espírita Deus, Cristo e Caridade, no bairro da Sete Portas. Nos dois primeiros domingos de cada mês, ela dedica suas manhãs a realizar um trabalho assistencial com as 75 famílias assistidas pela casa. Para que os que procuram ajuda possam ser cadastrados no atendimento, uma equipe visita suas casas para avaliar as necessidades reais de cada família. “Tudo o que eles precisam aqui, a gente encami-nha”, afirma Sônia.

As primeiras pessoas começam a chegar às 8h da manhã. Durante uma hora assistem a uma palestra, sempre ministrada por um membro da casa. Durante esse tempo, Sônia e outras três ajudantes (duas filhas e uma amiga) organizam, separam e empa-cotam os alimentos que vão ser doados. Todos os produtos são comprados com o dinheiro dos “padrinhos dos assistidos”,

frequentadores do centro que mensal-mente doam uma quantia para adquirir os mantimentos. Sônia trata todos muito bem e se envolve em todas as etapas do traba-lho. Conta e separa os alimentos, carrega as sacolas e faz a triagem das pessoas.

Depois da palestra, todos recebem o café da manhã e são encaminhados para o aten-dimento médico, caso precisem. Têm à disposição, ortopedista, pediatra, cardiolo-gista, dermatologista, nutricionista, geria-tra, acunpuntura, massoterapia e dentista. Após as consultas, Sônia começa a entre-gar os farnéis (semelhantes a uma cesta bá-sica), compostos por feijão, arroz, açúcar, leite, fubá de milho, macarrão e farinha. A atividade toda dura de três a quatro horas. “A gente não se cansa desse trabalho. Eu me realizo fazendo isso aqui. Antes era eu que fazia as compras, agora, devido à idade, deixo isso para outras pessoas. Meus três filhos me ajudam aqui e todo o traba-

Geografia e Estatística (IBGE), a comu-nidade espírita da cidade é bastante ativa. A Federação Espírita do Estado da Bahia (FEEB) e os próprios centros espíritas, de forma independente, promovem eventos, seminários, simpósios e encontros para debater temas variados à luz do espiritis-mo. São exemplos a Confraternização de

Juventudes Espíritas do Estado da Bahia (CONJEB), que acontece de dois em dois anos, o Congresso Espírita da Bahia, tam-bém bienal, e o Workshop com Divaldo Franco, realizado anualmente pelo médium e conferencista, no Centro de Convenções de Salvador.

Quanto ao papel da mulher, o espiritismo diferencia-se de grande parte das religiões cristãs e não impõe restrições às atividades exercidas ou exige comportamento dife-renciado do dos homens. Apesar das prin-cipais lideranças espíritas baianas serem masculinas, as mulheres participam ativa-mente da religião e são maioria nas casas espíritas da Salvador. Elas exercem todo tipo de atividade nos centros: são presi-

dentes, coordenadoras, médiuns, palestran-tes, evangelizadoras, etc. Na doutrina, não há uma separação entre possibilidades de ascensão masculina e feminina.

“O espiritismo vê todos como espírito. A essência do ser é o espírito que pode estar encarnado em forma masculina ou femi-nina, o que é somente biológico. Portanto, não há essa relevância de ser homem ou mulher” explica André Peixinho, presiden-te da Federação Espírita da Bahia (FEEB). Entretanto, geralmente as mulheres estão mais presentes em projetos de caridade ou no trabalho com crianças e adolescentes. A própria religião vê a mulher como deten-tora de características que a aproximam do ideal feminino tradicional. De acordo com a visão da doutrina espírita, o sexo feminino seria mais compreensivo, teria uma maior facilidade para o perdão e seria naturalmente dotado de instinto materno.

As espíritas veem com extrema naturali-dade o lugar que ocupam na religião. A maior igualdade entre os gêneros possibili-tada pela doutrina não é um característica da religião que sequer seja objeto de muita atenção dentro do movimento espírita de Salvador. A maioria das adeptas demons-tra o conhecimento das dificuldades que ainda enfrentam na sociedade, mas não acreditam que isso aconteça no seu meio religioso. A formação de pensamento das espíritas sobre as questões femininas é mais uma questão de trajetória pessoal do que de religiosidade.

Fora da Caridade não há Salvação

Sônia Soares coordena a entrega de alimentos às famílias atendidas no Centro Espírita Deus, Cristo e Cari-dade/Foto: Niassa Jamena

“O espiritismo vê todos como es-pírito. A essência do ser é o espí-rito que pode estar encarnado em forma masculina ou feminina, o que é somente biológico. Portanto, não há essa relevância de ser ho-mem ou mulher” André Peixinho, presidente da FEEB

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outro eu fico muito feliz”, relata Eunice. “Dentro do conceito de caridade espíri-ta estão incluídas várias atitudes, não só ajudar dando comida, roupa ou dinheiro. Escutar alguém aflito também é uma cari-dade. Não falar mal dos outros também é uma caridade”, explica Débora Paiva, 26, membro do Deus, Cristo e Caridade.

As atividades assistenciais mais comuns dentro das casas espíritas em Salvador são atendimentos médicos e tratamentos

espirituais gratuitos, doação de alimentos e roupas e oferecimento de cursos profissio-nalizantes. Há também casas onde há aten-dimento fraterno, em que alguns membros voluntariam-se para ouvir pessoas que chegam aos centros com dificuldades emocionais e as orientam com base nos ensinamentos do espiritismo. Há também grupos de faxina, que realizam limpeza nas casas de pessoas pobres que por alguma razão, não possam realizar.

Evangelizadoras

A evangelização infanto-juvenil é uma ati-vidade muito comum nos centros espíritas de Salvador. Apesar de também haver uma quantidade considerável de homens nessa função, a atividade ainda é majoritaria-mente feminina, principalmente quando se trata de crianças pequenas. É raro uma casa não ter um departamento de evangeli-zação. Evangelizar é passar os ensinamen-tos da doutrina para crianças e adolescen-tes. A atividade é dividida por faixa etária

e consiste em adequar todos os conteúdos da religião à idade dos que assistem às “aulas”. Quando se trata de crianças, são realizadas atividades mais lúdicas e brin-cadeiras. Já com os adolescentes há mais debates e atividades em grupo.

Marialva Gomes, 49, é jornalista e há cerca de 20 anos evangeliza adolescentes no Centro Espírita Caminho da Redenção, em Pau da Lima, única casa espírita que

lho é feito com doação. Espero que Deus e os espíritos de luz continuem me dando forças para permanecer aqui por muito tempo”, acrescenta Sônia, que também co-ordena um bazar na instituição, cuja renda é toda revertida para as famílias.O Evangelho Segundo o Espiritismo, uma das cinco obras básicas da religião (além do Livro dos Espíritos, Livro dos Médiuns, Céu e Inferno e A Gênesis, que juntas são chamadas de pentateuco) afirma que fora da caridade não há salvação. Esse é o principal lema moral da doutrina. Os espíritas não acreditam em salvação so-mente pela fé. Segundo a religião, além da crença, é preciso que os homens ajudem uns aos outros e modifiquem suas caracte-rísticas negativas. Para o espiritismo, todas as pessoas são espíritos que precisam evoluir e, a melhor forma de conseguir essa evolução, é através da eliminação dos defeitos e da prática da caridade, seja de forma material ou moral.

De modo geral, os trabalhos assistenciais são comandados ou têm uma grande parti-cipação de mulheres. Sendo maior presen-ça nos corpos de voluntários dos centros, quase sempre partem delas as ideias de realizarem novas atividades para anga-riar fundos para a casa ou ajudar pessoas carentes. Um significativo número das en-trevistadas realiza pelo menos um trabalho social dentro da casa espírita que frequen-ta. “A mulher tem a questão da sensibili-dade. Ela é mais sensível, mais flexível. Ela vai mais à luta com relação a essas ques-tões. É mais voltada para a solidariedade e

para o sofrimento do outro”, afirma Zilda Martins, que realiza atendimentos espiritu-ais e promove cursos gratuitos no Centro União e Amor, entidade da qual é presi-dente, localizado no bairro de Santa Cruz.

“Nos centros, há uma grande quantidade de trabalhadoras. As mulheres se doam mais. Muitas, apesar de terem suas pro-fissões e seus afazeres em casa, sempre reservam um tempo para as atividades assistenciais. Elas têm mais tendência para esse tipo de trabalho do que os homens. Elas são mais amorosas”, afirma Euni-ce Mercês, 68, frequentadora do Centro Deus, Luz e Verdade, na Vila Laura, onde atende idosos. A explicação do espiritismo para os sofrimentos humanos são os atos negativos cometidos em vidas passadas, já que a doutrina acredita na reencarnação (quando um mesmo espírito renasce várias vezes e em corpos diferentes). Os homens nascem para se redimir dos erros cometi-dos em outras encarnações. As situações difíceis, chamadas de provas ou expiações, pelas quais as pessoas passam serviriam para reparar seus erros pretéritos e ajudar a eliminar os defeitos ou más tendências. Para a crença, é tarefa de todos ajudar as pessoas que sofrem a passar pelas provas da vida.

“Quem faz é o primeiro beneficiado com a caridade, principalmente a caridade que é feita com desinteresse. O espiritismo prega que é melhor dar do que receber. É melhor ser do que ter. Quando eu perce-bo que eu pude atender a necessidade do

As famílias assistidas no Deus, Cristo e Caridade recebem atendimento médico quinzenalmente/Foto: Niassa Jamena

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fizeram de bom essa semana?”, pergunta Débora Paiva para os seus evangelizandos, que têm entre seis e oito anos. “Eu ajudei a alimentar um cachorro de rua” responde Glenda, de 6 anos. “Eu ajudei minha mãe a lavar os pratos”, diz Glauber, também da mesma idade. “Eu sempre tive muito jeito com criança. Desde os 18 anos eu ficava aqui na parte de evangelização como apoio [pessoa que não evangeliza, mas ajuda na organização e na contenção das crianças]. Um dia, a coordenadora do departamento me fez o convite para que eu fosse evan-gelizar porque viu o meu jeito com as crianças. Só que na época eu não me sentia preparada. Via que ainda precisava estudar a doutrina e só comecei mesmo o trabalho com 22 anos. Trabalhava com meninos de 4 a 6 anos. Gostei muito da experiência e vi que só precisa estudar e saber ensinar o conteúdo de forma segura”, conta Débo-ra, que é espírita desde criança e também foi evangelizada no Grupo Espírita Deus, Cristo e Caridade, onde trabalha hoje.

Débora faz atividades de recorte e co-lagem para falar com as crianças sobre

Deus. A proposta é recortar e colar cenas que mostrem coisas que Deus gostaria de ver. As crianças fazem o que é orientado, mas se dispersam em vários momentos. Conversam, correm pela sala, fazem brin-cadeiras com os colegas. Débora reclama, mas não parece perder a calma em ne-nhum momento. “Já estou acostumada”, justifica.

A evangelização se assemelha a um pro-grama de educação escolar. Muitas vezes é oferecida também para os filhos das pesso-as carentes que são atendidas nos projetos sociais dos centros (apesar de muitos vezes os assistidos não serem espíritas) como acontece no Grupo de Ação Comunitária Lygia Banhos (GACLB), do Caminho da Redenção, que atende a crianças e jovens da comunidade dos bairros Pau da Lima, São Marcos e adjacências. A evangelização é bastante incentivada e valorizada dentro dos centros espíritas e geralmente não há uma idade específica para se começar a realizar atividade. Existem pessoas muito jovens, até mesmo adolescentes, que rea-lizam o trabalho. Apenas se recomenda o

frequentou. Ela, que procurou a doutrina após a manifestação da sua mediunida-de, atua hoje com um grupo de 19 a 21 anos, da Juventude Espírita Nina Arueira (JENA), cuja as atividades são realizadas aos domingos pela manhã. “Eu acho que a mulher é muito importante na evangeliza-ção. É a figura materna que se faz presen-te. Óbvio que a criança e o jovem têm suas mães em casa. Porém, a presença da evan-gelizadora é essencial porque muitas vezes os jovens não se sentem à vontade para conversar certos assuntos com os pais em casa e com a evangelizadora eles se sentem mais tranquilos. Não tendo a responsabili-dade direta da mãe, nós conversamos com os jovens mais informalmente, sem ter aquela austeridade, a autoridade materna”, opina a evangelizadora.

Marialva se sente à vontade no meio dos jovens. Ela coordena a turma juntamente com dois homens. No entanto, a maior parte da atividade fica sob seu comando. O trabalho é iniciado com uma prece e logo após a sala é dividida em grupos.

Todos a chamam de tia Mari. Cada grupo recebe uma história de vida de pessoas que já morreram. A atividade consiste em pla-nejar a reencarnação da pessoa de acordo com a história lida.

Depois de um tempo, abre-se o debate coletivo. “Ainda bem que vocês não são Deus, viu?!”, brinca ela abismada com as dificuldades que alguns jovens planejaram para a nova vida dos personagens que receberam. Todos riem. Ela intermedeia o debate e continua com as brincadeiras em vários momentos, apesar de manter o controle para que os jovens não dispersem já que, em vários momentos, fazem piadas acerca do assunto debatido. “Para identifi-car quem fomos nas encarnações passadas, precisamos observar nossas tendências, aquilo que faz com que a gente caia em tentação, o que nos faz pensar. Para ajudar, temos o evangelho de Jesus”, diz ela ao finalizar a atividade.

“O que foi que vocês fizeram essa sema-na que acham que Deus gostou? O que

Marialva Gomes (em pé à direita) prefere realizar o trabalho de evangelização com adolescentes/Foto: Niassa Jamena

Débora Paiva (de blusa foral) evangeliza crianças com idades entre seis e oito anos/Foto: Niassa Jamena

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espírita da Bahia a participação da mulher é muito efetiva. Existem muitas mulheres palestrantes e coordenadoras de departa-mento. A própria FEEB foi presidida por uma mulher durante um longo tempo”, relata Marialva. “Aqui os homens e as mu-lheres trabalham em comum acordo. Não há essa separação de espaços. A gente olha é a vontade de trabalhar e de colaborar com a casa e com o próximo”, diz Sônia.

A naturalidade com que a maior parte dos espíritas vê a igualdade de oportunidades dentro da doutrina muitas vezes se reflete em uma falta de discussão sobre questões ligadas à emancipação feminina. A ênfase do espiritismo na caridade e na reforma in-terior muitas vezes faz com que os adeptos da doutrina deixem de lado determinados assuntos discutidos na sociedade, dentre eles, as dificuldades que as mulheres ainda enfrentam, apesar dos grandes avanços.

“Eu percebo essa ausência de debate. Mas não creio que isso faça grande diferença. É importante que se tenha essa consciência

de que na sociedade o papel da mulher ainda não é reconhecido, mas dentro da casa espírita eu não vejo isso. A formação espírita religiosa consolidada faz com que você não tenha tanto essa necessidade do debate porque você já vai ter as suas opiniões formadas”, afirma Marialva, que também atua no atendimento fraterno do Caminho da Redenção em Pau da Lima.

Dentro das casas espíritas não se prega a desigualdade, mas a equiparação também não é abertamente defendida. As mulhe-res espíritas conseguem espaço dentro da religião muito mais por uma ausência de proibições do que por uma atuação efetiva da maioria delas para que isso aconteça. Apesar de muitos temas do cotidiano serem discutidos à luz da doutrina nos centros, a questão da mulher e o seu espa-ço na sociedade são temas pouco abor-dados. Nesse contexto, algumas espíritas afirmam que, mesmo com essa igualdade o meio espírita não é totalmente despido de preconceitos de gênero.

Desafio

A cada quinze dias Zilda Martins, 56, realiza tratamento espiritual no centro que preside. Os atendimentos acontecem aos domingos pela manhã e são gratuitos. Às 9h30 a líder e toda a equipe de colabora-dores da casa se reúnem para começar o atendimento. Zilda inicia uma oração e, ao final da prece, o irmão Jubiabá já se faz

presente. Jubiabá é o espírito que Zilda afirma incorporar nos dias de tratamento espiritual. Seria ele, através do corpo dela, a fazer os atendimentos. Ao entrar em transe mediúnico (ato de estar incorpora-do por um espírito) Zilda assume uma voz mais masculina, apesar de não modificar totalmente o seu próprio timbre e a sua

estudo da doutrina e que se faça o trabalho com amor.

“Para mim, é um trabalho extremamente gratificante. Por incrível que pareça é uma troca de experiência. Muitas vezes essas crianças me perguntam coisas sobre as

quais eu nunca tinha parado para pensar. E além de refletir sobre o assunto, sou obri-gada a procurar um jeito de falar para elas sobre a questão de forma que entendam. Gosto de estar com crianças, conviver e interagir com elas. Sinto muito prazer com esse trabalho”, conta Débora.

Ausência de Debate

Para o espiritismo não há diferenças entre o homem e a mulher do ponto de vista das possibilidades de crescimento dentro da religião, que só tem cargos administrativos e não possui uma hierarquia litúrgica. Em O Livro dos Espíritos, obra lançada, em 1857, na França, e que marca o nascimen-to da doutrina, está escrito que os homens e as mulheres devem ter igualdades de direitos. A publicação também justifica a situação de inferioridade a que a mulher está submetida em determinados países como fruto do atraso moral dos homens. “Desde que a doutrina foi criada, em 1857, que ela prega a igualdade, o respeito mú-

tuo e as mesmas possibilidade para ambos os sexos”, afirma José Medrado, presiden-te da casa espírita Cavaleiros da Luz em Pituaçu, na orla de Salvador.

Esse posicionamento se mostra no pen-samento das mulheres espíritas sobre o espaço reservado a elas dentro da religião. “Dentro do movimento espírita e em par-ticipação doutrinária, a atuação da mulher equipara-se à do homem. Porque para a re-alização de trabalhos, atividades e palestras o que conta é o intelecto e o intelecto é do espírito. Não importa se é homem ou se é mulher. Eu percebo que no movimento

O médium José Medrado afirma que no espiritismo nunca houve segregação entre homem e mulher/ Foto: Reprodução

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Maternidade

A maternidade é extremamente valorizada dentro da doutrina espírita. A possibilida-de de gerar filhos é considerada uma fun-ção sublime para a mulher, porque assim ela tem a oportunidade de trazer à vida espíritos que necessitam passar pela reen-carnação para se aprimorarem. É também considerada uma forma de a mulher exer-citar o amor incondicional e o desapego. A religião ainda acredita que a maternidade pode ser uma possibilidade de reparação e aprendizado para a própria mãe, já que, de acordo com a crença, geralmente os filhos são espíritos que estão de alguma forma vinculados aos espíritos dos pais.

Educar os descendentes é, para a doutrina, uma tarefa de extrema importância, pois a orientação dos pais influenciaria aquela criança até a fase adulta, em nível cons-ciente e inconsciente. Para o espiritismo, os filhos são ‘emprestados’ por Deus, que vai ‘cobrar’ o que os pais fizeram daquele

espírito que esteve sob a sua responsa-bilidade. Na literatura espírita sempre há destaque para a atuação das mães em suas tarefas de proteger e orientar os filhos tanto no plano físico (o mundo em que as pessoas vivem) como no plano espiritual (dimensão invisível para onde todos vão depois da morte).

“O banho do bebê não é um banho qual-quer. Não é só um banho de higiene, mas também um banho de irrigação. A menina precisa de um cuidado maior do que o me-nino”, explica Ana Clara Alves, 56, como deve ser a higiene de crianças recém--nascidas. Enfermeira obstetra, há cinco anos ela ministra no Centro Deus, Luz e Verdade na Vila Laura, um curso de ges-tantes para mulheres carentes. “O espírito não tem sexo, porém, nascer mulher é uma oportunidade ímpar que Deus dá. Além da maternidade consanguínea se pode exercer a maternidade universal. Mesmo mulheres

expressão facial mudar um pouco. “Como vai, moça?”, pergunta o espírito à entrada da primeira paciente que está grávida. “Es-tou bem. Só tive um problema no sangue, mas está tudo bem”, responde Elane Mar-

tins. “Esse seu problema já vem sendo tra-tado há muito tempo”, afirma irmão Jubia-bá, através de Zilda. Elane pergunta como está o bebê. “Está ótimo. Não vê a festa que ele está fazendo agora?”, diz Jubiabá, pegando na barriga e avisando que outro espírito já consertou a posição da criança que estava fora do lugar, tranquilizando-a: “Se der alguma alteração no exame não se preocupe. Ele já está no lugar”.

Todo o atendimento dura cerca de 3 horas. Zilda não é médium consciente (não se lembra de nada que ocorre durante o tran-se). Irmão Jubiabá receita sempre remé-dios naturais para seus pacientes. Ao fim da prece de encerramento dos trabalhos ele vai embora e Zilda “retorna”. A presi-dente relata que se tornou espírita porque tinha um câncer e a filha paralisia infantil.

Médium desde a infância, relata que teve uma visão em que alguém lhe dizia para procurar ajuda em um centro espírita. “Me disseram que viesse aqui e pedisse socorro. Eu vim e fiquei. Conheço essa casa há 30 anos”, afirma ela, líder do Centro União e Amor há cinco anos.

“Eu sinto a necessidade de um trabalho mais voltado para a mulher dentro do espi-ritismo. Ainda há dificuldade de aceitação, mesmo dentro do espiritismo. Eu senti isso como presidente da casa. Eu enfrentei dificuldades por parte de algumas pessoas. Algumas achavam que, por eu ser mulher, eu não daria conta. Eu tive que me dedicar e me esforçar mais e fazer um planejamen-to estratégico para provar que era capaz. Foi um desafio muito grande para mim. No espiritismo tem sido a mesma luta que nos outros espaços da sociedade. Não é com facilidade, não”, assegura Zilda.

Íris Sinoti, 39, frequentadora do Cami-nho da Redenção, também afirma que as mulheres ainda enfrentam dificuldades dentro do movimento espírita baiano. “Nós chegamos nos centros e vemos que mais da metade dos membros são mulhe-res. Mas a maior parte dos palestrantes e dos dirigentes são homens. As mulheres ainda fazem muito artesanato, trabalham com crianças, ajudam em trabalhos mais manuais. São papéis muito parecidos com cuidar da casa, dos filhos e da cozinha. O lugar da mulher no espiritismo precisa ser revisto. Ela pode ser muito melhor apro-veitada”, critica.

A enfermeira obstetra Ana Clara Alves em curso para gestantes carentes no Centro Espírita Deus, Luz e Verdade/Foto: Niassa Jamena

“[...]Ainda há dificuldade de acei-tação, mesmo dentro do espiritis-mo. Eu senti isso como presidente da casa. Eu enfrentei dificuldades por parte de algumas pessoas. Algumas achavam que, por eu ser mulher, eu não daria conta[...]”Zilda Martins, presidente do C.E. União e Amor

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que não podem ou não querem ter filhos podem ser mães”, afirma a enfermeira e voluntária.

Ana Clara não tem pudores para falar com as gestantes e faz do curso um momento divertido. Utiliza uma linguagem muito simples para se fazer entender pelas 40 mulheres que assistem a sua palestra. Ela aborda assuntos ligados ao cuidado com os bebês, assim como os relativos à vida das mães durante a gestação e o pós-parto. Explica sobre laqueadura, sexo na gravi-dez, pré-natal, cuidados com curativos, parto humanizado, etc. Muitas vezes acaba dando conselhos sentimentais. Quase todas as mulheres vão sozinhas ao curso e são, em sua maioria, jovens. Muitas delas não têm o apoio do pai da criança. Apenas um homem acompanhava a esposa duran-te o curso.

“Tem gente que pergunta até quando pode fazer sexo na gravidez. Até a hora de parir. Deu vontade? É até bom que faça porque lubrifica o canal vaginal. Gente, não tem problema nenhum fazer sexo na gravidez. O bebê é protegido por três bolsas. Não há perigo de machucar. Deus faz tudo

certo. O colo do útero só abre na hora do parto”, explica Ana Clara. O riso é geral na sala. As gestantes fazem perguntas e participam ativamente da aula, fazendo simulações de banho, troca de fraldas, etc. Quando estão perto do parto todas recebem um enxoval para os seis primeiros meses de vida do filho.

O espiritismo acredita que o espírito é assexuado. Ele assume polaridades (gênero feminino ou masculino) quando encar-nado. A polaridade feminina seria mais afetiva, sentimental, propensa ao cuidado, ao perdão e mais compreensiva do que a masculina. Por essas características a mulher já traria em si todas as característi-cas necessárias para exercer a maternidade, o que, para a religião, exige uma doação extrema. “A afetividade é muito presente na mulher. Isso se traduz no lado materno. Há tam-bém uma apuração estética maior. Acredi-to também que a mulher é mais forte que o homem, espiritualmente falando, e se detém mais aos detalhes”, afirma Mônica Rocha, 42, palestrante do Centro Espírita União e Amor. “Inegavelmente, o que mais se exercita na polaridade feminina é a sensibilidade para o belo e para o cuidar”, afirma Medrado. Já íris Sinoti, palestrante do Caminho da Redenção, não acredita que essas características sejam intrínsecas à mulher. “Eu não sei o que mais se exer-cita, mas com certeza o mais cobrado é a maternidade. Muitas vezes, quando o filho não dá certo, a culpa é da mãe. Mas se ele

Anima e Animus

é bem encaminhado e se dá bem na vida, ela não recebe o mérito”, critica.Essa valorização extrema da maternidade também é visível através do posicionamen-to do espiritismo em relação ao aborto. A doutrina é terminantemente contra a prática. O procedimento só é recomendado

em caso de risco de vida para a mãe, porque não se deve abdicar de uma vida já em cur-so por outra que ainda não começou. Abor-tar é considerado um crime porque a vida começaria na concepção. O espírito que irá encarnar no futuro corpo já estaria ligado ao embrião no momento da fecundação.

De acordo com a doutrina, o gênero femi-nino seria mais impregnado de anima e o masculino de animus. Os conceitos derivam da psicologia junguiana. Anima é a energia feminina e animus a masculina. Devido a essas energias, o homem seria mais prático, direto e firme. Já a mulher seria mais volta-da para as questões ligadas à sensibilidade, à estética e ao sentimento. No entanto, as energias não necessariamente têm relação com o corpo biológico. Cada espírito traz a sua personalidade e não é obrigatório que seja assim com todos.

“O anima e o animus são arquétipos da psique. O anima é o interior da mulher.

O animus, o interior do homem. A reen-carnação explica isso. Como os espíritos passam por experiências masculinas e

femininas, todos têm as duas energias,

Íris Sinoti em aula do curso sobre os livros de psicologia de autoria do espírito Joana de Ângelis psicografados pelo médium Divaldo Franco/Foto Niassa Jamena

“Essa valorização extrema da maternidade também é visível através do posicionamento do es-piritismo em relação ao aborto. A doutrina é terminantemente con-tra a prática”

“Essas energias estão sempre mi-grando já que nós somos produtos de diversas reencarnações. Isso explica porque muitas vezes uma mulher tem um jeito mais masculino e um homem mais feminino sem que ne-cessariamente sejam homossexuais”José Medrado, presidente do C. E. Cavaleiros da Luz

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apenas uma se destaca mais”, explica Íris Sinoti, terapeuta e coordenadora de um curso sobre os livros do espírito Joana de

Ângelis psicografados por Divaldo Franco, que tratam de psicologia. “Essas energias estão sempre migrando já que nós somos produtos de diversas reencarnações. Isso explica porque muitas vezes uma mulher tem um jeito mais masculino e um homem

mais feminino sem que necessariamente sejam homossexuais”, declara Medrado.Questionado se o fato de o espiritismo atribuir à mulher características tão pró-ximas do ideal feminino tradicional não contrastaria com a proposta progressista da religião, o presidente da FEEB, André Peixinho, nega e afirma que esta é uma questão que deve ser analisada a partir do ângulo que se observa. “Uma coisa são características femininas. Outra coisa é a mulher. O feminino não é exclusividade da mulher e nem o masculino é exclusividade do homem. O feminino predomina mais na mulher e o masculino no homem pela facilitação orgânica, hormonal, neuroen-dócrina de modo geral. Não é a mulher, é o espírito que desenvolveu qualidades femininas. A nossa sociedade é centrada na polaridade masculina. Por isso todo movimento feminista é movimento de afirmação do masculino. Não afirma nada de feminino, só de masculino. O problema é que os homens não tentaram o contrário. O fato de as qualidades femininas serem essas não quer dizer que a mulher é inca-paz. A mulher é capaz de tudo”, avalia.

André Peixinho afirma que sociedade atual é baseada em valores masculinos/Foto: Niassa Jamena

“O feminino não é exclusividade da mulher e nem o masculino é exclusividade do homem. O femi-nino predomina mais na mulher e o masculino no homem pela faci-litação orgânica, hormonal, neuro-endócrina de modo geral. Não é a mulher, é o espírito que desenvol-veu qualidades femininas. A nos-sa sociedade é centrada na polari-dade masculina.”André Peixinho, presidente da FEEB

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