As Habitações Interrompidas

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    Ficha Tcnica

    Ttulo: As Habitaes Interrompidas

    2011-2012

    www.facebook.com/ashabitacoesinterrompidas

    Autor: Francisco Duarte Azevedo

    Capa: Francisco Duarte Azevedo

    Acrlico s/ tela - 2009

    Edio: Edies Esgotadas | 1 Edio | 2012www.edicoesesgotadas.com

    [email protected]

    Coleo: Versus

    ISBN: 978-989-8514-32-5

    Depsito Legal: ...

    Impresso: ...

    Execuo Grica: Nitah Produes para Edies Esgotadas

    2012, Francisco Duarte Azevedo

    Todos os direitos reservados de acordo com a legislao em vigor

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    AS

    HABITAESINTERROMPIDAS

    Francisco Duarte Azevedo

    2012

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    PrefcioUma morada de sal e luz

    da palavra errante que devemos falar,da distncia das coisas ou da cor do mar.

    Joo Miguel Fernandes Jorge

    Diplomata de carreira, com a condio de errante pelo

    mundo, Francisco Duarte Azevedo busca na palavra literria

    uma habitao na habitao interrompida. O pequeno livro de

    poemas Os cones, de 1998, uma edio blgara com o patrocnio

    e apoio da Associao dos Luso-Falantes na Bulgria, iniciava a

    catedral dessa demanda; o seu romance de estreia, O Trompete

    de Miles Davis, de 2011, talhava excertos de prosa potica

    fulgurante; neste Habitaes Interrompidas, Francisco Duarte

    Azevedo regressa intempestiva forma catica do silncio,

    gua, s linhas que atam / (como a chuva) / o corpo s algasdo mar, ancora-se no sal da deriva e encontra refgio na luz

    grande do mar.

    O esprito do pintor deve assemelhar-se a um espelho que

    adopta a cor dos objectos e se enche de quantas imagens tem

    diante de si, defende Leonardo da Vinci no Tratado de Pintura.

    Francisco Duarte Azevedo cruza a esttica da poesia com a

    esttica da pintura num canto que urde a existncia interior

    do sujeito que interpreta o mundo e luta contra as sombras

    / dos fantasmas, por uma habitao / no interrompida. A

    arte potica de Habitaes Interrompidascarrega um trabalho

    apurado sobre a emoo e a memria, acto de buscar e conhecer,

    recorrendo a uma voz simblica que interroga interrogando-se,a um olhar dinmico que, como janela da alma e espelho do

    mundo, provoca, recolhe e deposita toda a matria no corpo do

    poema, para que a memria sobreviva.

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    Como com a palavra, um quadro feito de pequenos nadas,

    pinta-se com a argamassa / dos detalhes que preenchem / a

    vida, um quadro Intervm, nele est o grito de liberdade dos

    emparedados, os muros das habitaes / transitrias, ossculos da memria / e as histrias das aldeias / dizimadas, um

    quadro denuncia o tempo / traz a memria nas mos, um

    quadro ternura / banhada pelas manhs / de luz, espao

    rendido leitura. Sobretudo, e sendo espao de liberdade e

    de busca, Um quadro espao vedado morte ou, dito ainda

    assim: Procuro o meu ninho / no aconchego / da brancura de

    uma tela.// [] uma simples cor pousada / como a pegada de ave

    / no relexo das guas, / rasgam os sulcos por onde / seguirs na

    direco do mar // Eis a claridade / que segue os meus passos /

    no percurso / entre a vida possvel / e a morte provvel.

    Contra a morte, est este canto lrico de um Ser feito de mar

    que lana ao mar todos os seus textos poticos, para que o sal

    e a luz temperem as palavras. Tambm as razes so claras eassim enunciadas: Nunca possu um lugar a que chamasse /

    habitao permanente e onde o mar / me surpreendesse. Porque

    o mar o bero / desta habitao, o lugar onde voo / sem asas

    e onde escuto a tua voz. E Tudo voa nesta poesia que se

    problematiza a si mesma, cnscia at da fugacidade do trao na

    pgina: o poeta amador das palavras corrodas pelo tempo, a

    poesia simples passatempo, Uma voz vazia, a da poesia ou,

    ainda: trago nada nas mos / a no ser um livro de smbolos, /

    um manual de preces / e a voz sagrada do tempo / beijando-me

    as faces. da voz do silncio que aqui se fala e da capacidade do

    sujeito dar-nos a ouvir o que escuta, silncio que a casa do ser

    e do nada, sendo esse nada a plenitude do ser. O vazio , ainal,

    o lugar do pleno. esse silncio iluminado que encontramosneste livro de poemas como uma janela / voltada para o sol

    que inunda o mar, donde o sujeito Invoca a terra, as aves e todos

    os animais perdidos na loresta, sua semelhana, embebe de

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    sonhos a fragilidade dos seres, comete os sentidos / na espuma

    do tempo, escuta e d-nos a escutar a voz vigilante da memria

    na zoada dos bzios, nas janelas que desvelam / os segredos

    na gua e o corpo da palavra, janelas que, na nsia de horizonte,se rasgam em varandas que do para o mar adejado de gaivotas,

    varandas a quem o sujeito pede que lhe devolvam a luz e toda a

    poalha do azul profundo e ininito.

    Entre um quadro e o ininito h, pois, a luz que, vida,

    traa as rotas de uma viagem vital, espargindo na brancura, da

    tela ou da pgina, cores incandescentes com que se pressentem

    silncios: As minhas cores / sobre a tela transpiram / as insnias

    dos pssaros. Na senda dos limites, o sujeito detm-se na

    voz ilimitada de uma poesia habitada de asas: porque ainal

    para ti que corro / no limite da solido, l-se, solido que se vai

    fundando em metforas e hiplages. preciso ixar a luz efmera

    das manhs efmeras, a luz deslumbrante / da claridade do

    mar, luz estonteante onde aporta / o sussurro do mundo/ e a navegao silente, a luz que madruga os lbios, que

    amornece o corpo absorvido no calor / de um imbondeiro,

    a luz que testemunha o abrao luz do dia / a uma almofada

    vazia, a luz que esclarece os contornos do corpo da palavra,

    a luz que consome as trevas e ilumina a ternura. No centro de

    toda a ternura esto asmos. Elas retm a febre e a luz, levedam

    o silncio, A polpa dos dedos / tacteia a pele da poesia, as

    palmeiras lem e dedilham com facilidade a lquida e secreta

    mensagem, num grito de vida: Sinto as ibras do meu corpo / a

    latejarem de poesia e / j no posso parar. Deixei / de comandar

    a minha mo. / Ela move-se por um impulso / azul que escorre,

    lquido, / nas pginas de um caderno / de notas.. A recolha da

    luz na pgina surge magniicentemente nos poemas narrativosdos pescadores na sua faina: os pescadores lanaram as redes e

    recolheram / o mar dentro de um crculo amarelo. Nele escutei

    tua voz / que um pssaro inquieto / me trouxe at ao varandim

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    / onde poisou num breve aceno / de asas e ternura. Entre ele /

    e o mar icou apenas / a distncia de um sopro., e, ainda, Os

    pescadores regressaram / com os seus crculos amarelos / e

    cercaram o mar. Depois, / puxaram as redes e com / elas o marpara dentro dos / seus barcos. E o mar, na sua / tranquilidade

    lquida, / deixou-se levar. As palmeiras / afagaram o suspiro

    / da ave que se aquietou / no topo de uma habitao. / O mar

    reconheceu-te / e prometeu enviar-te /a chuva na prxima

    estao..

    Na solido desta poesia, reina o tu secreto cuja ausncia

    conigura o vazio do sujeito, d plasticidade e luminosidade

    composio potica que voz, conidente, interlocutor,

    cmplice e espelho do eu. A construo do tu o resultado da

    obsesso pela luz. Um tuque sal, azul ou verde rutilante das

    esmeraldas, zoada dos bzios, razo de respirar do sujeito.

    Ao tu, o sujeito pergunta Escutas?, Sentes?, e roga: Espera

    serenamente a mensagem / do silncio [] / deixa que a chuva/ se torne a lor de sal / que alimentar a minha voz.; um tu

    que ouve as perguntas e, em murmrio sensual, impulsiona o

    canto inquieto e fortiica a morada almejada: Entre um muro

    / branco rodeando a colina / sobre o mar e o caminho / das

    palmeiras e baobs / que envolvem as areias / na maresia, ests

    a. / E tudo o que preciso saber..

    Poesia corprea, tctil, sensorial, com necessidade de ver,

    cheirar as lores e sentir-lhes a respirao por isso as lores

    pintadas numa tela deixam de ser lores , tem de questionar

    a relao com o divino: chama-se por um Deus que chora como

    a humanidade, hirto e humlimo, / como se fosse homem

    enjeitado / na sua prpria mtria, um Deus cuja mo deveria

    ser de humana matria.No exerccio implacvel da criao, as mos desta poesia

    de experincias acumuladas pintam a paisagem, escrevem

    a temporalidade com o estilete da memria, preenchem a

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    habitao transitria; a ausncia contemplar, / luz das manhs

    / os muros brancos rasantes / ao mar onde a voz do Profeta / se

    expande dos minaretes, e o instante de contemplar / desnuda

    a poesia. Munido de hiplages Neste mar senegals / revejoa luz do mar / de Lisboa, ancorada / solido / no cais das

    colunas , o sujeito navega pelas prprias artrias navegando

    pelo mar interior da cidade de Lisboa, a cidade das mil colinas,

    de telhados / pintalgados de gatos e pombos, com varandins /

    de manjericos e lenis / esvoaando como bandeiras, avenidas

    percorridas / luz mortia das tardes de chuva, colinas onde

    as aves habitam, peril das gaivotas atiladas / no cais das

    colunas, acusa a incapacidade das palavras, dos smbolos no

    desenharem o vento e as mos / tecendo a lua / numa rua de

    Lisboa, e reage num gesto de evaso para o futuro: tocaremos

    a poesia nos / miradouros ou, ainda, pela madrugada, voarei /

    na direco do mar em busca da solido..

    voltarei um dia / para te buscar / entre os bzios, l-seneste Habitaes Interrompidas em versos que atingem o futuro

    deixando rastos do presente naqueles dias que viro. Resta-me

    dizer que o leitor da melhor poesia sempre aguarda o regresso

    da palavra desassossegadamente iluminada, como esta de

    Francisco Duarte Azevedo.

    Teresa S Couto

    Lisboa, Julho de 2012

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    CRIAR

    Criar um exerccio implacvel. Reparemos na criao do

    mundo, o delrio com que deus se exercitou a fazer e refazer o

    silncio, gota a gota, perante o espanto da sua prpria criao.Reparemos na forma como os jardins suspensos de fogo e as

    construes polidricas estabeleceram o princpio da harmonia

    e modelaram o caos. Reparemos como gua ele chamou gua,

    como separou os rios e os oceanos, a luz e a sombra, a noite e

    o dia e ao clice do teu sangue ele chamou vinho oriundo das

    colinas da nossa crispao universal e terra ele chamou a seiva

    e a me de todos os retornos.

    Reparemos em Picasso, na destreza do trao amadurecido

    sobre os corpos das mulheres triangulares e tridimensionais,

    desatentas em suas delicadezas assombradas, em seus peitos

    esgotados pela maquinao de Guernica, em gritos arqueados

    pelo sofrimento congnito gerador do mel que amamentaestranhas paixes. E reparemos em Dali, ali onde o fogo fode e a

    carne devorada pelo clmax da criao. Voltemos a reparar em

    deus e na sua criao. Fatalmente, Picasso ocupou-lhe o trono.

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    VOO

    Quem no quebrou

    as asas do desejo

    num voo alado e sonhador?

    Quem no foi ave ou pssaro

    buscando o seu ninho

    no corao recndito

    de um regao?

    E, no entanto, o meu voodi, di-me no corpo,

    na alma, nas asas do mar

    desta habitao interrompida.

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    CLARIDADE

    O azul no horizonte

    desta habitao interrompida

    uma pgina ao acaso

    do livro aberto

    sobre os teus joelhos.

    A luz do mundo esbate-se

    nas linhas de um

    caderno adormecido.

    Uma folha de papel voana corrente da brisa matinal.

    Procuro o meu ninho

    no aconchego

    e na brancura de uma tela.

    Um trao de pincel, uma cor,

    uma simples cor pousada

    como a pegada de uma ave

    no relexo das guas,

    rasgam os sulcos que

    seguirs em direco ao mar.

    Eis a claridadeque persegue os meus passos.

    Um percurso entre a vida possvel

    e a morte certeiramente provvel.

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    O QUE EXISTE NUM QUADRO

    Ampliados ou diminudos,

    num quadro gravam-se

    os muros das habitaes

    transitrias, os detalhes

    da imperturbvel serenidade

    das almas, as bandeiras de fogo

    e o grito inconformadodos inocentes. Num quadro

    vivem-se os sculos da memria

    e as estrias das aldeias

    dizimadas pelo fogo das armas

    e pelo dio do sangue.

    Num quadro revive-se Guernica

    ou Wiryamu, por exemplo, My Lai

    e muitos outros lugares onde apenas

    sobram cinzas. Escuta-se at

    o choro dos escravos da antiga

    Babilnia, o grito das almas mortas

    nas masmorras de Toledo e de Lisboa,as vidas roubadas no mar de Gore,

    onde o azul maldito e uiva

    nos muros duma casa transitria...

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    Um quadro denuncia o tempo

    traz a lembrana nas mos

    que as minhas mos prendem

    num gesto reconfortante de remorsos.Relata as estrias de ternura

    e violncia e a dos assassinos

    de Abel. Juro que no foi Caim quem

    o matou. Caim viveu acossado

    nas habitaes interrompidas.

    Foi o destino. Um fado que no sobrevive

    num espao vedado morte.

    Repito, para gravares no teu peito,

    um quadro ternura banhada pela luz

    das manhs que afagam os teus cabelos.

    espao rendido ao olhar que s o teu

    capta nas minhas cores.

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    A MATRIA DE UM QUADRO

    Um quadro feito

    de pequenos nadasoriundos do fogo ntimo

    e no se desgasta

    na correnteza

    dos rios. Absorve

    a seiva e o hmus

    dos leitos. Intervm.

    Fala dos nossos dilogos

    amorveis, desvela

    nas cores

    o princpio imanente da beleza

    e devora amoras,

    como se fosses tu,

    magnico corpo marinho,feito de gua e espuma

    lavando o meu rosto inquieto.

    Vi quadros revoltados

    com o silncio dos choupos

    que ergueram os braos

    perante a lucidez das serpentes

    e no esconderam o assombro

    pelo sangue vertido

    nos campos de batalha.

    Um quadro sara ardente

    gerada nas tuas entranhasmodelando as cores num rebolio

    criativo e genesaco.

    Um quadro grita, no se cala.

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    QUADRO I

    Um quadro espao

    vedado morte

    a minha e a tua casa

    no precisas de bssola

    para nele te indicar

    o sul e o norte

    e saber onde pousar

    o teu sopro, a tua mo forte

    sobre a minha

    pendente na linhade uma cor.

    Um quadro espao

    vedado morte.

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    QUADRO II

    E porque morte

    vedado, nele respirarei

    a pele desta habitao

    gerada nas ravinas

    dos teus rios interiores.

    Nele ixarei a cor

    a liberdade que s tu, mirade

    dos meus olhos inquietos,buscando-te na linha imperceptvel

    que fere o meu corpo. Um quadro

    espao vedado morte.

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    OLHAR UM QUADRO

    Olhar um quadro

    como te olhar no silncio

    dos pincis. Os rudos subtis

    das tessituras de seda

    s as telas os escutam.

    Sento-me na cadeira e escutode braos abertos o rudo das cores

    vogando at onde o engenho

    e o ininito o permitem.

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    COMO SE PINTA UM QUADRO

    Se eu soubesse como sepinta um quadro seria

    um gnio igual a Picasso,

    Dali, Modigliani ou at

    Amadeo de Sousa Cardozo...

    No seria engenhoso

    mas artista concebido

    com o meu nome gravado

    na pedra da glria.

    Mas j diziam as gajinhas

    l na terra dos meus avs,

    quando lhes dedicavaversos por seduo,

    que eu tinha jeito para a prosa,

    mais do que para a dana

    por sentirem meu p pesado

    nos peitos de seus pzinhos

    de aves de acasalao.

    E nem sabia ento

    como se pintava um quadro.

    No dia em que o soube,

    foi na caruma, sob os pinheiros,

    luz do sol ardente.

    A soube que um quadrose pinta com a argamassa

    dos detalhes que preenchem

    a vida.

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    O TEU OLHAR SOBRE UM QUADRO

    O teu olhar sobre um quadro

    no surpreende. Seduz. Mas no temo impacto da notcia de jornal.

    No passageiro. Dele brotam

    as razes que se prendem no meu corpo.

    Um quadro vida,

    p do teu olhar maduro e doce.

    Por isso no morre.

    Nem por tentativas

    nem por coisa nenhuma.

    Tem fronteiras irmes

    de vida deinidas pela luz

    e a liberdade. A luz da tua habitao,

    e da minha habitao interrompida,dos nossos silncios na sumptuosa

    sala donde a morte foge.

    Morte por ali no h.

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    UM ESPAO VEDADO MORTE

    Um quadro um tremendo

    desaio. Interpreta o mundo,

    (vejam como o desaioenfrenta o medo e arrogncia

    dos que ousam dizer que te dispensam

    do lugar em que habitas,

    que te dispensam na tua prpria

    ptria e que podes morrer em terra alheia).

    Um quadro um grito

    num campo de batalha,

    o grito de quem no morre

    e luta contra as sombras

    dos fantasmas por uma habitao

    no interrompida,

    um lugar onde poisarsde novo a tua sobre a minha mo,

    apelando ao silncio nesse

    espao vedado morte.

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    ENTRE UM QUADRO E O INFINITO

    Entre um quadro e o ininitopairas tu, alada igura

    dos meus sonhos que o tempo

    acolhe numa ptala de rosa.

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    A LUZ ENTRE UM QUADRO E O INFINITO

    Como um romance

    aberto sobre a mesa

    onde a luz coada

    pelas vidraas se acomoda,transpareces

    de partculas vidas

    aspergidas com as cores

    da minha tela.

    Na raiz

    das palavras loresce

    uma eternidade

    que entusiasma a terra

    e recusa-se a morrer

    no silencio imposto

    ao mundo. Vives.

    impossvel, por isso,

    suspender a viagem

    entre um quadro e o ininito.

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    AS FLORES NA TELA

    As lores poisam sobre a natureza morta. Olham para ns

    no meio de crianas debruadas de gritos e fazem do amor um

    assunto inquietante. As lores so a sinaltica da natureza no

    se pode escond-las em lugares de silncios ou conin-las s

    cores dispersas num quadro. A passam a ter vidas imaginadas.

    Eu gosto muito dos girassis de Van Gogh e, se pudesse, at lhes

    dava cinco estrelinhas num modelo de avaliao de gostos e

    comentrios prprios de redes sociais. Mas as lores pintadas

    numa tela, oh, essas no as posso cheirar. No exalam perfumes,

    no respiram nem as posso cultivar num jardim. No adornam

    mesas, embora possam reletir-se em espelhos. Num quadro, eusei que as lores adquirem uma vida quase eterna, a vida dos

    nossos sonhos, dos meus e dos teus sonhos. Mas deixaram de

    ser lores.

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    COR

    As minhas cores

    sobre a telatranspiram

    as insnias dos pssaros

    desencontrados nas cantarias

    dos telhados de Lisboa.

    Os traos, indelveis traos

    das cores absorvidas

    nesse espao vedado morteso linhas de liberdade.

    (Summit, 05 de Janeiro de 2009)

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    AS CORES INCANDESCENTES

    Se nada mais houver

    entre as janelas do teu corpo

    e um fogo sem fronteiras,

    h-de permanecer

    o pressentimento

    dos silncios

    com os quais adivinharei

    a tua presena na aventura

    das cores que habitam esta

    paisagem incandescente.

    Todas as artrias ardem

    devorando imagens,

    tempo e circunstncia.

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    AMANHECER I

    No encontro

    no vo dos cus

    outro olhar

    ao amanhecer

    seno o do teu sorrisoque se ilumina

    com a claridade

    e o crepitar do fogo.

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    AMANHECER II

    Que luz resplandecepela manh ao acordar?

    Que maresia invade a janela

    e transborda a cor do mar

    sobre o teu peito?

    Que ptalas lutuam no ar

    cobrindo-nos de rosas e frutos?

    Que verde, que azul,

    que claridade se apodera de ns

    embriagada pelas guas?

    No encontrarei outro lugar

    para aquietar os diasnem chama para

    resplandecer a noite

    seno nesta habitao transitria.

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    30

    LUZ I

    A cidade despertou banhada de azul. O vento amainou. E luz da manh

    intensa, as palmeiras leram-me a tua mensagem. Um burburinho de

    aves soltou-se dos beirais mas no me disseram se a chuva regressar

    depressa. Falaram-me do mar e das areias que acolheram o teu corpo

    coberto pelo lenol de espuma onde gravaste a tua mensagem.

    Fcil para as palmeiras terem-na lido e dedilhado na correnteza de

    um arabesco. Inshalah.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

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    31

    LUZ II

    Tenho a obsesso da luz.

    O estremecimento da tua voz

    na folhagem da palmeira.

    O silncio que colhe de surpresaa quietude das guas onde

    habitas como um ser

    marinho suave e vigilante.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

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    32

    A LUZ III

    A luz deslumbrante

    da claridade do mar.

    A luz estonteante aporta

    o sussurro do mundoe a navegao silente.

    A luz que esclarece

    os contornos do corpo

    absorvido no calor

    dum imbondeiro.

    O abrao luz do dia

    a uma almofada vazia.

    A luz nos minaretes que

    contemplam os muros

    brancos onde a voz do Profeta

    ecoa. A luz que amanhecenos meu lbios, desvenda

    os meus cabelos e amornece

    o meu corpo. A luz.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

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    33

    AS MANHS

    As manhs so radiantes.

    Mesmo as que despertam sob

    o ciclo das brumas e pulverizam

    a vida a preto e branco.

    A luz.

    A luz que clareia as nossas

    ruas, o voo das aves,a vizinhana perturbada

    por uma serenidade

    inesperada,

    a luz que ilumina

    os rostos matinais,

    os passos luz,

    afagam o meu dia.

    Dicil extorquir

    o prazer ntimo

    das manhs do mundo.

    Efmeras, cruzamo-las

    diariamente sob o ciclofrentico da bondade humana.

    Eu gosto muito das manhs.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

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    34

    AS MANHS AZUIS CHEIAS DE MAR

    Transbordantes so as manhs

    azuis cheias de mar que abordam

    os nossos corpos indecisos

    pregados ao cho de uma

    energia incalculvel.

    Transbordante o olhar que,

    sobre as colinas verdes do meu pas,

    rasga as areias e os desertos

    de p para se aquietar no

    alinhamento das palmeiras

    aspergidas pelo vento.

    A voz das almas sussurra

    no cemitrio dos crentes

    aninhado pelo brao da enseada.

    Alah grande e aos mortos

    conceder a sua paz e eternidade.

    As manhs banham

    os corpos duma chuva

    incessante e suave.

    A gua lava os nossos rostos

    em ablues transitrias

    como a paisagem amarelecida

    pelas inconstncias do tempo.

    Transbordantes estas manhs

    onde palpita o meu corao em frica.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

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    35

    A DDIVA DAS MANHS

    As manh oferecem-me

    o mar na sua plenitude azul.

    Ainda no regressei das estrelas

    e a batida das vagas desperta-me

    como se fosses tu, tocando

    os meus cabelos, afagandoa minha nuca e deixando no

    silncio sublime da natureza

    a constancia dos elementos e a luz do dia.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

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    36

    MAR I

    A minha varanda

    d para o mar.

    Uma nesga de azul,

    uma frincha de horizonte

    uma fresta de frescura.

    O zumbido do vento

    espraia o silncio

    fustiga os temporais.

    O mar sem roupagem.

    N e azul em sua lquida

    mensagem banhando-me as mos

    e empurrando a memria

    num voo de gaivotas.

    Noutros lugares haveria

    de aguardar pela pegada das garas

    a caminho do mar.

    Mas aqui bem perto,

    digo minha varanda

    que se debruce sobre o mar,sem hesitaes e me devolva

    a luz e toda a poalha

    de azul profundo.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

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    37

    MAR II

    A luz transcende a paisagem.

    A serra diminui a sua presena alada,

    e o mar recebe, azul, as linhas

    de um imenso eco. A zoada dos bzios

    um esboo do vento em im de tarde.

    A batida das guas nos rochedos

    reanima as vozes marinhas. Renova

    o tempo. Amacia os alicerces da espuma

    de sal sobre as areias e o estremecimentodos bzios anuncia a mar das algas

    verdes com os braos entrelaados

    nas vestes da ondulao.

    H mar e mar e um olhar distendido

    sobre o horizonte de uma ave certeira.

    Recolhe-se a luz, a transcendente

    luz da paisagem. Tudo poalha

    coada no iltro do areal onde repousa

    uma barca e a cega do mar

    onde se lavra o po com a junta

    de bois que vence o silncio.O resto paisagem lquida

    e um casario perdido na estreita faixa

    entre os homens e a claridade.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

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    38

    MAR III

    Sou feito de mar. E no sei

    por que sou feito de mar.

    Pergunto s ondas que lavamos meus ps perdidos na areia

    sobre as circunstancias em que fui

    feito de mar e duvido que

    saibam responder-me. Sob o

    olhar mudo das suas vozes

    batidas nos rochedos, elas

    dizem apenas que sou feito

    de mar. Os bzios sussurram

    e utilizam vozes longnquas,

    mas no contam os segredos

    genesacos da minha gestao

    porque sou feito de mar e tambm

    no sabem quebrar um segredo.

    Resta-me pedir que regresses

    praia e perguntes ao mar

    de que sou feito e ele talvez

    te responda atravs de uma

    sucessiva e forte ondulao.

    Ento, entre a espuma e o corpo

    h-de gerar-se um calafrio

    que a espinha do vento

    a enfurecer-se por no ter,

    de uma forma to certeira,

    a resposta directa pergunta

    sem rudos e ameaa de comoes.

    Apenas uma gaivota, que estar

    a teu lado, no areal, to segredar.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

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    39

    MAR IV

    Lancei os meus versos

    ao mar. Uma pen-drive bastou.

    Liberto-me da tentaode continuar a escrevinhar

    coisas que, enim, deixaram

    de ter sentido.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

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    40

    MAR V

    Escutas as ondas do mar?

    Sentes o vento de poeira

    esbraseando o teu olhar?

    Cobre o teu corpo com a poalha

    das guas e aguarda. Espera

    serenamente a mensagem

    do silncio, abraa

    o meu ombro no teu regao,deixa que a chuva

    se torne a lor de sal

    que alimentar a minha voz.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

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    41

    MAR VI

    Impossvel viver sem o azuldo mar. A sua ausncia

    haveria de causar-me a secura

    da alma. como se de repente

    deixasses de existir ou eu

    deixasse de escutar a tua voz,

    minha razo de respirar.

    Recuperei as palavras do fundo

    marinho para onde as havia

    lanado. O sal e a luz

    temperaram-nas e por isso

    a ternura que me envias

    no voo das aves, d-me a energia

    para sobreviver.

    Impossvel viver sem o azul

    do mar. Eu, que sou feito de mar.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

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    42

    O MAR EM DAKAR

    As manhs azuis e leitosas

    encantam-me

    como as aguarelas

    de Paulo Ossio.

    Neste mar senegals

    revejo a luz do marde Lisboa, ancorada

    solido

    no cais das colunas.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

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    43

    UMA ESTADIA NA PRAIA

    As estadias na praia so feitas

    de areia e mar. De sol e nvens.

    E neblinas. As toalhasencharcam-se de areia

    e sacudimo-las como bandeiras

    esvoaando ao vento.

    A brancura da espuma

    marinha sobrevem das guas azuis.

    Ali se extinguem os cristais

    que amaciaro o teu corpo.

    Sento-me a teu lado repleto

    da inquietao juvenil de te desvendar.

    Tenho os ossos trespassados

    de frio. Trouxe um aquecedor

    para a praia. Uma salamandra.Ainda pensei num garrafo de vinho

    para nos aquecer as entranhas

    e um cesto com po de milho e chourios.

    Mas disseste-me que era um exagero

    e as pessoas haveriam de invejar-nos.

    No lhes diramos que por causa

    de no repousarmos as nossas nucas

    no leito desta habitao interrompida

    que nos acolhemos sob a frescura

    das areias humedecidas

    pelo bamboleio das guas

    e a irritao do vento.

    Entre os rochedos mergulhando no abismo

    e o voo das gaivotas atarantadas pelo rugido

    dos lees marinhos, farei desta estadia

    na praia um momento de jbilo.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

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    O AREAL E DEUS

    Aquietou-se no areal a terra

    dos homens enfeitiados pelo vento.

    Charcos de vento e lama,uma ina lama de areia e p

    ganha luz e amplido. A gua,

    num gesto de sede, sufoca

    todas as gotas disponveis.

    Voltemos ento limipdez,

    claridade dos moinhos

    atiados entre a paisagem marinha

    e a atmosfera amarela dos campos.

    Mar e campo. Areia no corao

    das guas e um vulto acenando

    sorrisos onde as telas prosseguem

    a criao do mundo. Areias polidas,

    movem-se como cristais mnimose imperceptveis. Areias presas

    aos ps de um deus hirto e humlimo,

    como se fosse um homem enjeitado

    na sua mtria. Um deus que no cessa

    de chorar, como ns, humanidade.

    Um deus-criana brincando

    com o mar, vestido de algas e sargao.

    Um deus alivanhado

    entre presente e passado,

    vagamente pressentido

    no sabor a sal de plpebras cintilantes.

    Um deus de esplendor

    hora do sol pr.Um deus de areia regressando ao mar,

    como Neptuno solitrio,

    sentando-se em seu trono lquido.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

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    45

    O ROSTO DE DEUS

    O vento amainou e uma ave

    abriu as suas asas sobre o oceano.

    No temeu a frescura das

    guas nem a inocncia do corpo.

    pele dos vagalhes, os dedos

    dum ser perdido na loresta

    tacteiam a face de deus.E deus espera sentado

    pela genial beleza

    de uma roseira brava.

    Aguarda que loresa para

    a colher nos dias da ira

    e com ela acalmar a fora

    de seu brao vingador.

    No haver por a algum

    que nos d alegrias sumptuosas?

    E os dedos e as mos tacteiam a face de

    deus. Tocam as suas longas barbas.

    Est cada vez mais humano.Digo eu, cada vez mais pecador.

    Est a tornar-se igual a si prprio.

    Deus e as mos sobre o seu rosto.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

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    46

    A MO DE DEUS

    Gostava de pintar a mo

    de deus e o seu dedo indicador

    como princpio e im de todas

    as coisas. Terei de pedir

    conselho a Miguel Angelo,

    analisar os inos traos

    que se suspendementre a mo do homem

    e a mo de deus. A mais

    perfeita mo (de deus)

    encharcada de humana

    matria, delegando no

    homem o seu prprio corpo.

    Mas tambm a mais imperfeita

    e corrupta das metamorfoses.

    Fixemo-nos na imagem

    da mo. Eis o que resta da

    matria de deus. As suas barbas

    olmpicas poderiam empenhar-secomo Joo de Castro

    empenhou as suas para

    manter a nossa honra ndica.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

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    47

    HUMANIDADE

    Deus seria muito maior

    se fosse homem. Haveramos

    de bisturizar no seu corpo

    as veias e o sangue a ferver,

    compor a seu lado uma orquestra

    de anjos querubins e aguardarna gua do tempo a cristalina

    frescura dos rios da terra.

    Haveramos de voar sem asas

    na orla de nossos voos metlicos.

    Haveramos de ser leves

    e anunciaramos a chegada

    dos seres varados

    pela macieza das paisagens,

    lutuando sobre a nudez

    dos campos e amando-se

    sob os lenis de nuvens

    que deus absorve para sobreviver.Seria muito maior

    se fosse homem, assim,

    de carne e osso, como ns.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

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    48

    GNESIS

    Regresso ao livro do gnesis

    e sua msica celestial

    ao princpio gerador do verbo

    a palavra, a cronologia da criao.

    Regresso permanente-

    mente gensaca habitao

    de um tero, criador

    de solides, ao magmada palavra verdadeira

    ao sortilgio de deus.

    Regresso intempestiva

    forma catica do silncio,

    pergunta exacta constante

    das gramticas universais

    produzidas em Babel.

    Ao nu de Ado e Eva,

    singeleza da inocncia

    cruelmente perdida.

    Perdida por nada.

    Por um gosto a ma

    e ao seu aroma oriunda darvore plantada no jardim

    dos avs. Pudera. An apple a day

    keeps the doctor away.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

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    49

    AS DIVINDADES

    Reclamo das divindades as suas presenas em carne e osso. Fui enganado

    com a treta das divindades existirem sob a forma de ludos invisveis sem

    lhes podermos tocar. Tenho de as ver e cheirar.

    Reclamo por isso a substancia e o imperativo de cumprirem promessas adiadas,tocarem o presente com as suas longas mos se que as tm acomodarem

    o futuro datando-o especiicamente para no termos de andar por aqui a

    vaguear, espera de quem nunca chega, nunca aparece, nunca se v. No

    pago conversa iada nem previses dos nmeros da sorte. No me contem

    estrias.

    Das lendas que se fazem e desfazem, acredito no tear de Penlope a mulher

    deveria ser gira para caramba e no castigo de Ssifo ainda assim, pergunto-me

    como que o tipo no haveria de ter icado com hrnias discais e artroses

    por carregar ou empurrar at ao im da vida um calhau gigante ? e acredito

    ainda nos heris do nosso descontentamento nacional.

    Por isso, proclamo que as divindades conquistadoras, castigadoras devencidos e pecadores, so uma absoluta desnecessidade e de todo esprias

    por se manterem imunes humanidade dos nossos rostos, dos nossos beijos,

    dos nossos sexos. Divindades assim no servem para nada, no prestam.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

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    50

    A SACERDOTISA

    Apelamos para que se proceda

    ao ungido divino entre as colunas

    dos templos onde lorescem as

    mulheres envoltas de vus trans-

    parentes. As mulheres de

    Ulissipo e as mulheres de Atenas.

    As de Alexandria e as mulheres

    com a macieza arrancada

    carne dos deuses perturbados

    pela sua beleza. A consagrao

    h-de fazer-se com os leos perfumados

    que encerram o destino dos sculos.

    E a sacerdotisa h-de banhar os seiosnas guas de oceanos violetas

    e os seus guerreiros ho-de parar

    o sol como h muito j no acontecia.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

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    51

    OS SMBOLOS

    Trago nada nas mos

    a no ser um pssaro

    silencioso

    que deixou as memrias

    gravadas nas rvoresdo bosque

    na cidade vizinha.

    Um duende curioso

    desvenda

    o elixir da alegria.

    A musa, arrebatada,

    traz-me nada.

    Apenas mos vazias

    crepitando no fogo das palavras.

    Por isso, trago nada nas mos

    a no ser um livro de smbolos,um manual de preces

    e a voz sagrada do tempo

    beijando-me as faces. Trago o nada.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

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    OS SMBOLOS DE LISBOA

    Os smbolos

    que encontrmos

    na cidade

    tinham o formato

    das estrelas cintilantes.

    Iluminaram caminhos,

    conduziram deuses

    e gravaram na pedra

    os seus orculos,

    amaram as sacerdotisas

    violaram sagradamente

    a poesia

    e apoderaram-seda casa rutilante

    com vista sobre o rio.

    Na areia,

    na espuma pousada

    da barra,

    havia uma pegada

    passageira.

    Os homens desenharam

    os seres marinhos

    que a desvendaram

    sobre as pedras .

    S no desenharamo vento e as mos

    tecendo a lua

    numa rua de Lisboa.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

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    53

    ORATRIA TERRA DE LISBOA

    Na terra tocaremos a polpa

    dos nossos dedos livres,

    cidade das mil colinas

    encantadas onde germinam

    os dias e as tardes clidas

    de um vero anunciado.

    Tocaremos a poesia nos

    miradouros onde guardas

    a crosta dos castelos e escutaremos

    a voz do fado chorando por ti,

    cidade de Ulisses

    desencantado.

    Na cidade dos telhados

    pintalgados de gatos e pombos,

    nos telhados vermelhos

    e nos varandins

    de manjericos e lenis

    esvoaando como bandeiras,teceremos arabescos

    no basalto das avenidas

    luz mortia da tarde.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

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    54

    Na cidade das vozes

    ticas repartidas

    nessas colinas

    onde as aves habitamencontrar-te-ei no po

    e nos frutos da primavera,

    aguardarei a tua partida

    a caminho do poente

    para escapar, ao crepsculo,

    das gaivotas atiladas

    no cais das colunas.

    De madrugada, voarei

    para o mar em busca da solido.

    (Oeiras, 1998)

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

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    55

    AS FONTES DA CIDADE

    A maioria das fontes secou.

    A boca dos deuses de pedra

    secou. Os homens e o tempo

    praticaram o exercciodo desgaste e os grafitti

    recomendam violncias

    que impelem a cidade

    a esconder-se na folhagem.

    Os animais de trazer por casa

    e os mticos seres da loresta

    j no vo fonte porque

    os cntaros tambm no.

    O silncio das egies bordadas

    como os memoriais nos

    cemitrios interrompido

    apenas pela esplndida

    ressonncia do vinho mesa dos contadores

    de estrias e dos guardadores

    de sonhos. A cidade dormita

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    56/160

    56

    no ar, no linho decomposto

    pelo fogo, na palavra livre

    dos argonautas em rota contra

    as sombras repartidas e ausentes.A cidade degolou as antigas

    fontes de mrmore, trocou-as

    pela companhia das guas

    gastas pelo cio onde respira

    ainda a lquida, cristalina

    matria da memria.

    Das fontes restam as pedras

    de outrora com as quais

    engalanamos agora

    nossos roteiros tursticos.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

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    57

    PALCIO DA PENA

    As aves, o sonho

    e a ligeireza do andar.

    No haveria mais

    do que o sopro

    de um fantasma atribuladovagueando nas lorestas

    adormecidas do cu.

    Como um rumor

    de caminhar suave

    entre nuvens.

    Voltarei ao sonho

    do prncipe

    desencantado,

    enclausurado no seu

    palcio como um animal

    suspenso no universo da poesia.

    Digo eu,

    apenas por um rumor

    de caminhar suave entre as nuvens.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

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    58

    SERRA DE SINTRA

    O castelo assombra a noite,

    e o choro de um vizir clamando

    pelos seus mortos. Alah

    enviou-lhe o anjo que o libertar

    da lei da vida e amaciar

    os seus dios. As palavras

    amainaro o vento agreste

    da montanha. No se dar

    conta do palcio onde

    brilham as cores e os espelhos,

    os nichos e um ptio

    onde brincam os sonhos

    despedaados de um rei espantado.As lajes so a memria

    de pedra entre o frio da madrugada

    e o zumbido dos pinheiros.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

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    59

    UM DIA DE SOL

    A via lctea mudou-separa o mundo.

    Fez-se nuvem e o sol penetra-a.

    Acolhem-se nos braos um do outro

    aninhados num salo do palcio

    suspenso na aurora.

    Os dedos entrelaam-se

    o sol rasga o horizonte.

    Longe, nas colinas

    da cidade, os homens espreitam

    a unio dos elementos csmicos.

    Os homens querem

    saber da comunhode um corpo no dorso do mundo.

    Sol e via lctea.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

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    60

    A ROTA MARTIMA DO TEU CORPO

    A espuma do mar habita

    a rota martima do teu corpo.

    A zoada dos bzios

    um segredo preso no tempo.Se eu soubesse como cantam

    deixar-me-ia levar no voo

    das gaivotas at s balizas da barra.

    A saberia do trnsito de amigos

    impacientes, da ptina das rochas

    descobertas em tua navegao

    silente e alcanaria o mar,

    esse segredo de espuma que afaga

    o teu corpo e traa o meu destino.

    O frio e a chuva seriam recordaes

    abandonadas. No mar, a chuva o corpoe a alma da tua voz. E na poalha do cu

    e a das guas azuis, regurgitar

    dos teus lbios o nome desta lrica inquieta.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    61/160

    61

    O QUE O MAR ME TROUXE

    Esta manh, os pescadores

    lanaram as redes e recolheram

    o mar dentro de um crculo

    amarelo. Nele escutei a voz

    que uma ave inquieta

    me trouxe at ao varandim

    onde poisou num breve acenode asas e ternura. Entre ela

    e o mar icou apenas

    a distncia de um sopro.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    62/160

    62

    O REGRESSO DOS PESCADORES

    Os pescadores regressaram

    com os seus crculos

    amarelos e cercaram o mar.

    Puxaram as redes e - com

    elas as guas para dentro dos

    seus barcos. E o mar, na sua

    tranquilidade lquida,

    deixou-se levar. As palmeiras

    afagaram o suspiro

    da ave que se aquietou

    no topo da habitao.O mar reconheceu-te

    e prometeu-te a chuva

    na prxima estao.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    63/160

    63

    O APELO CHUVA

    O teu sopro a minha razo

    de vida e a minha exaltao no

    relectida. Como todas as coisas

    sedentas de gua, aguardo

    janela do teu cenculo

    que a chuva regresse depressa.

    O teu sopro depende da chuva

    e a vida nesta habitao transitria

    depende de ti. Sabers que o cordoumbilical to antigo

    como os livros sagrados

    onde repousa a tua serenidade.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    64/160

    64

    CHUVA

    Gritos de prata retumbam

    na noite entrecortada

    pela luz mortia dos candeeiros.

    Gritos lquidos de prata

    que as luzes fugazes iluminam.

    A chuva asperge as estrelas

    e enche de carpas um lago de estanho.

    Acomodam-se as folhas

    na berma dos caminhos

    e as combustes poluentes

    provocam um aquecimentoartiicial das razes da terra.

    Nada como a chuva

    para refrescar os nossos rostos.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    65/160

    65

    OS DIAS DA CHUVA

    Ferroadas de frio rasgam

    como lminas aiadas

    as manhs aninhadas

    por detrs dos muros escorregadios.

    As libelinhas j no saltitam,os seres da terra

    aquietam-se nos beirais

    aconchegados ao calor

    estiado dos joelhos,

    os corpos embebem-se

    da suavidade dos musgos,

    e as rvores suspendem

    o tempo e anunciam

    a estao das chuvas.

    Tudo se conjuga nas guas

    fustigando as nossas janelas

    atarantadas. A cinza do tempoinvade as manhs. As tardes

    adormecem pela noite dentro

    e a chuva repassa a mo dos dias.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    66/160

    66

    A AUSNCIA DA CHUVA

    Imagina a ausncia da chuva

    e todos os animais perdidos

    na loresta haveriam

    de desconhecer a esperana.

    Por isso, as janelas destahabitao transitria desvelam

    os segredos na gua

    e os elementos do teu corpo.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    67/160

    67

    OS DIAS CINZENTOS

    H dias cinzentos nos quais

    pressinto o teu jbilo

    pelo regresso da chuva.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    68/160

    68

    A ENERGIA DA CHUVA

    Tivesse a minha voz

    a energia do teu corpo

    e sentir-me-iacomo a luz, o mar,

    as aves, as palmeiras e...

    a chuva.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    69/160

    69

    REGAO DE CHUVA

    Sob a frescura

    da manh leitosa

    que moveu a poeira do deserto

    para os fundos marinhos,

    aquieta-se uma ave

    na ramagem da palmeira

    e sada a terra

    perdida na bruma. L

    se prescrutam os passosde uma voz sublime

    que me traz a ternura

    num regao de chuva.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    70/160

    70

    SOB UM CU GRISALHO

    Cus grisalhos ameaam

    a terra do lado do mar

    oceano. No se enxerga

    a poalha marinha, no sevislumbra a linha

    que separa o cu e as guas.

    No meio, uma pradaria,

    desvanece-se como uma tapearia

    verde que o azul cobalto envolve.

    H seres alados com os quais

    nos habitumos a conviver.

    Os sonhos povoam-nos

    de multides de esperana.

    E uma lagoa rejuvenesce.

    tempo de pousar a palavra

    e entorpecer o silncio.

    Tal como a cantaria rasgada

    nos muros, aguarda-se agora

    uma enorme chuvada.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    71/160

    71

    AS CHUVAS SURPREENDENTES DE MAIO

    Tiritas sobre a terra fresca

    e hmida das chuvas de Maio.

    No h degelo nestes lugares,

    existem apenas as tempestades

    elctricas que percorrem o cu

    e no se do conta das aves

    pousadas nas rvores

    na outra margem em frente de ti.

    Os cristais lquidos deslizam

    nos arroios, estalam nos leitos

    como massa folhada entre os dentes,retm os sons da natureza

    e aguardam as mudanas do tempo.

    A tua voz deslizar no meio da chuva.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    72/160

    72

    CHOVENDO SOBRE UM QUADRO

    A chuva tem o rosto nublado

    leitoso e jorra sobre

    os seres adormecidos

    nas habitaes interrompidas

    pela voracidade do tempo.

    Na cauda da chuva

    h um rasto de solido,

    uma suave embriaguez,

    um gosto liquefeito, uma chama

    ateada, que a minha mo arqueia

    no espao de uma tela.

    Um quadro feito de chuva

    no o mesmo que um quadro

    chuva. Um quadro feito de chuva

    une a matria das cores

    ao cinzento divino, propagado

    pelo incenso que a mirra

    conservar. A chuva asperge

    as mos, as humanas mos

    que ousam recriar o mundo.

    Eu gosto muito da chuva.

    Se no houvesse chuva seramos

    secos e feitos de poeira como a lua.A lua parece brilhar por si mesma

    mas rouba a luz na casa dos outros.

    E a chuva uma ddiva.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    73/160

    73

    SERIGRAFIA DE MOLINA

    Molina enche de poesia

    um espao soturnoe incongruente.

    Na parede esfarelada

    sustem-se a serigraia

    que pende entre o desaio

    do olhar preso rotina

    e o azul do rio, onde

    o casario lutua. Brancos,

    azuis, rosas e vermelhos

    invadem a serena agitao

    das palmeiras aguardando

    o instante de contemplar

    desnuda, a poesia.

    Assim Lisboa na regra,

    na serigraia de Molina,

    cheia de luz, prenhe de alegria.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    74/160

    74

    AS MOS

    To pequenas as mos

    que l no cabem sequer

    mnimas pores de cu.

    To pequenas as memriascom to escassas linhas

    que sobram tantas

    imensas palavras

    pintalgadas de sol

    luz das manhs

    despegadas. To subtis

    as mutaes que no

    se distinguem nem rvores

    nem ramos, folhas,

    lores ou frutos

    sem o recurso magia

    dos daguerretipos

    suspensos numa caixade surpresas. Tudo voa.

    As habitaes interrompidas

    tambm.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    75/160

    75

    REFLEXES SOBRE A POESIA I

    A poesia no conta o tempo.

    Refere-se a ele.

    No vive obcecadacomo ns

    a contar o tempo.

    Nos relgios,

    nos autocarros,

    nos carros,

    no comboio,

    no metropolitano,

    no emprego,

    nos cafs

    nem a justiicar

    a falta de tempo

    aos amigos.

    A poesia no tem pressa.E graceja com essa correria

    desenfreada dos homens

    atrs do tempo.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    76/160

    76

    REFLEXES SOBRE A POESIA II

    A poesia arte menor

    para a maioria dos mortais.

    Mas ouve-se muitas vezes o seguinte:

    Olha o querido (a querida)

    com muito jeitinho para a poesia.

    Na escola, havia professoresque obrigavam os alunos

    a esse exerccio enfadonho

    de escreverem uma poesia.

    No esperavam que se manifestassem

    espontaneamente. E j escutei

    muitas vezes: Aquela pessoa

    - quando o dizem poeta.

    Escreve poemas. Como um

    sortilgio ou um sacrilgio.

    Ainda por cima, a poesia

    no enche as livrarias.

    As livrarias que conheciadedicadas apenas poesia

    fecharam as portas ou ainda

    resistem como sarcfagos egpcios.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    77/160

    77

    REFLEXES SOBRE A POESIA III

    Os crticos, os sbios,

    os gnios, as pessoas normais

    tm ideias distintas e diferentes

    sobre a poesia. Mas podem

    muito bem viver sem ela.

    O que se escreve na poesia

    no importa para nada.

    No enche barrigas,

    no enche cofres

    nem armas vende. A poesia

    poderia at ser uma arma.Mas j no . Um grafitti

    tem muito mais fora. Depreende-se

    alguma poesia das escritas

    nas paredes. No importa.

    E a quem no importa mesmo nada

    aos nossos animais de estimao.

    Eles no sabem ler nem escrever

    poesia. Percepcionam sons

    de palavras que se usam na poesia.

    Abanam a cauda, movem as orelhas

    quando escutam as palavras rua,

    comida, pipi, pp,

    essas merdas biolgicasque todos fazem e os nossos animais

    de estimao tambm.

    Mas no entendem nada de poesia.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    78/160

    78

    REFLEXES SOBRE A POESIA IV

    De todos os seres vivos

    o homem o nico

    que escreve poesia.

    E nesta habitao transtriaas palavras estalam

    na tua voz como uma splica

    e como o zumbido de abelha.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    79/160

    79

    A MISSO DA POESIA I

    A poesia estranha

    s falsas invocaes,

    decifra segredos e acolhe-se

    no teu regao. o seu ninho.

    Tem por misso

    despertar vozes

    e ser bandeira.

    Porque no h segredo como tu,na transparncia da invocao

    no momento em que as sensaes

    se agitam sem emoes por a alm.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    80/160

    80

    A MISSO DA POESIA II

    A misso da poesia

    mostrar como lutamos

    pela igualdade das palavras.

    Pela fraternidade de cada slaba

    cada letra cada consoante

    cada contorno rtmico,

    para que a dor se ausente

    quando me citas tua cabeceira.

    A misso da poesia

    juntos lutarmos pela liberdade

    a tua, a minha, a de todos ns

    e a do poeta sentado no cimo

    de cada frase, cada parapeito

    onde poisam as aves

    refrescando-se com o ventoe a gua cristalina e com elas

    cantarmos a fraternidade neste

    recanto de inisterra.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    81/160

    81

    A CAPACIDADE DA POESIA

    Gostava de ter a capacidadede interpretao da poesia,

    embrenhar-me nos corredores

    da palavra, empunhar nos dedos

    a agitao das bandeiras

    e macerar o mundo,

    essa coisa redonda rolando

    na sucesso dos dias e das noites.

    Gostava de ir ao mercado

    de Bagdad antiga

    e descobrir os labirintos,

    os rendilhados dourados

    das janelas ondepermanece clara a voz

    do tempo pela voz zublime

    da poesia. Simplesmente gostava.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    82/160

    82

    A MINHA ZANGA COM A POESIA

    A poesia no tem de ser

    a voz da alma. Nem da

    sua sombra. Se o poeta

    um ingidor, a poesia no relete

    nada nem pena nem dor

    nem um cabelo do poeta

    sequer, amador de palavras,das palavras corrodas

    pelo tempo, a voz de todos os ingidores.

    A poesia no arma de combate,

    j no vai guerra,

    quem vai guerra

    d e leva e a poesia nem d

    nem leva, nem sequer

    arma de arremesso,

    simples passatempo e entretm,

    no d de comer a ningum

    e a maior parte

    dos poetas que conheomorreram sem ter um vintem.

    Uma voz vazia, a da poesia.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    83/160

    83

    AS FIBRAS DA POESIA

    Sinto as ibras do meu corpo

    a latejarem de poesia ej no posso parar. Deixei

    de comandar a minha mo.

    Ela move-se por um impulso

    azul que escorre, lquido,

    nas pginas de um caderno

    de notas. A caneta, o lpis,

    a esferogrica, um instrumento

    adequado escrita so apenas

    o sintoma visvel dessa

    inquietao. Na presena

    elementar do universo

    sabe-se apenas que a muitas milhas

    martimas de distnciauma voz permanece vigilante

    e viva ao mnimo arrebatamento

    dos meus passos. A da poesia.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    84/160

    84

    A POESIA DO SENHOR DOUTOR

    A poesia do senhor doutor

    um desassossego. O senhor

    doutor no dorme nem deixa

    dormir e tem um apego

    do caraas mania de escrever

    palavras com que somente

    as velhas carcaas se preo-

    pam. Palavras que despertam

    sentidos. Os zombies no fariam

    melhor. Mesmo no pas dos

    zombies h quem no consiga

    escrever poesia como a escreveo senhor doutor que s tem vida

    para a poesia, muitas vidas

    como os gatos, sim senhor,

    (mais at do que os gatos, cheios

    de sete vidas, mais do que

    essas sete) contando ainda

    com a vida que se leva nesta

    terra que no est para poesias

    nem derrames sanguneos de poemas,

    estirados nas bandas dos casacos

    como os louvores ou algemas

    de honras mutuamente consentidas

    celebradas apenas entre gatose com arranhadelas nas costas

    onde naturalmente, no faltar

    a poesia da ordem do senhor doutor.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    85/160

    85

    AS GRAMTICAS

    A gramtica dos sorrisos

    tem surpresas coloridas.

    Pulula na sala dos espelhos,

    joga ao esconde-esconde

    e esconde-se do mundo

    assim que a luz se apaga.

    A complexa gramtica

    dos espelhos relete sorrisos

    e lgrimas que no podemos tocar.

    A gramtica dos sorrisostraz-nos a madureza do tempo.

    O sorriso que fenece envelhecendo,

    o sorriso verdadeiro, de sentimento,

    como a memria escrita

    em pginas de alumbramento.

    A gramtica de uma tela

    transluz os sorrisos da gente,

    autnticos,

    consistentes

    e acarreta o princpio de todas

    as coisas, embaladas pela voz

    das cores. As cores e a sua gramtica.As cores tristes, alegres, suaves,

    carrregadas, brilhantes, quentes,

    mordazes, frias, cnicas e sorridentes.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    86/160

    86

    As cores que choram e danam,

    se movem no corao das formas

    e ixam os detalhes de um retrato.

    Como falar com uma cor sorrindo?

    Perguntaremos aos criadores

    que dominam as tcnicas da alma.

    Perguntaremos como fazem

    quando a gua jorra de livros

    e signiicados gastos

    pela voracidade do tempo.

    Perguntaremos aos oiciantes

    das palavras como fazem para

    dar cor s letras, s simples

    tessituras de complexos arabescos

    postos ao alto no mosaico dos

    lugares sagrados.No perguntaremos s gramticas.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    87/160

    87

    LIVRO DE POESIA I

    Livro de poesia,

    aberto como a ramagem

    das accias,

    suspensa a escrita

    nos braos da folhagem.

    Livro em versculos de ouro

    como os livros sagrados

    de qualquer religio,

    a Tora, a Bbliae o Coro. Espontneo,

    como a beleza do verso

    ao estilo de uma sura.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    88/160

    88

    LIVRO DE POESIA II

    L-se nas entrelinhas

    sem constrangimentos

    dispensa os textos

    dos crticos e funhas

    e a traduo das aparncias.Sem grilhetas onde imperam

    os vcios que entorpecem

    os caminhos da liberdade.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    89/160

    89

    LIVRO DE POESIA III

    Livro de poesia

    sobre a mesa do salo

    aberto de par em par

    como uma janela

    voltada para o sol.

    Livro onde se escreve

    a memria

    de cada linha e na tua voz

    segura a minha

    como uma ncora de abrigo.

    Como o porto tranquilo

    e sem perigo,

    sem tempestades,ondulando suave sobre

    a tua pele em busca da palavra,

    do fogo da tua escrita ardente.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    90/160

    90

    LIVRO DE POESIA IV

    Livro aberto de poesia invocandoa terra e os bosques onde

    nos aguardam as aves e todos

    os animais perdidos na loresta.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    91/160

    91

    LIVRO DE POESIA V

    A poesia dos livros

    tem o poder das antigas

    poes universais

    embebe de sonhos

    a fragilidade dos seres,

    comete os sentidos

    na espuma do tempo.Se a houvesse um mar,

    abriramos uma pgina para

    caminhar sobre as guas.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    92/160

    92

    AS ESTANTES

    As estantes no dormem.

    Postas ao alto, abrem-se

    como sacrrios velhos

    dessacralizados da obrigao

    de guardarem os smbolos

    dum tempo de cristos imperfeitos

    e oferecem a leitura aos cegos

    e o po zimo s folhas.

    As estantes no inquietam.

    Os recheios das estantes sim.

    So o alvo da cobia.

    Da mesquinhez, da inveja,da ausncia luminosa

    de cabeorras que adoram

    mandar queimar os livros,

    censur-los, amarfanh-los

    no mago da pequenez letal

    de dinossauros excelentssimos.

    Os recheios das estantes desaiam

    as ideias pequeninas dum pas

    pequenino, e h quem se lance

    contra as estantes

    como os soldados ao inimigo

    num campo de batalha.

    O recheio das estantes

    assusta muita gente.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    93/160

    93

    Nas prateleiras

    repousam palavras

    que recobram flego

    para uma nova aventura.E os sbios

    que adoram aprender,

    a cada dedada

    dos colquios dos simples,

    reinventam a cincia

    nos livros de poesia.

    (Uma enorme heresia

    para quem mandou matar

    e queimar num campo de

    lores um homem que ofereceu

    ao mundo toda a luz ininita

    da nossa liberdade.

    As estantes so a minha

    vida. A tua vida a nossa

    vida e feitas de vidro

    ou apenas com o p

    dos livros. E as mos

    deixam tactear os dedos

    com vigor, vibrao

    como um diapaso

    musical nas folhas

    dos livros que estremecem.

    Neles se escutam vozes,

    as dos mortos e vivos,

    ausentes e presentesou apenas furtivos

    seres imaginrios

    das estrias de iluso.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    94/160

    94

    As estantes conservam

    humanas derrotas e vitrias

    demasiadas ou escassas.

    Ali esto nossa esperae, gota a gota, como

    a chuva deslizando

    nas vidraas se acumulam

    nas cantarias do tempo

    e dos sculos dos sculos.

    As estantes no dormem.

    Merda. Mas tambm conservam

    a traa que as h-de roer

    como aos livros os autos da f.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    95/160

    95

    MEMRIAS QUE A POESIA TECE

    Emprestamos o silncio ao frio.

    Sobre os nossos ossos aninha-se

    a mornada terna de vozes,

    trepidaes e aconchegos.

    Lentamente

    Libertamo-nos da lei dos deuses,

    e damos lugar s humanas estaesamadurecidas no ocaso onde

    os teus cabelos relectem a esperana

    sob o ritual do amor.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    96/160

    96

    MEMRIA

    Lamento no ter adormecido emteu regao, no ter conquistado

    a tua serenidade, no ter

    composto o sopro de todas as coisas

    com o ar que transpiras e respiras.

    Porque o silncio foi crescer mesmo

    dentro da palavra. E no momento

    em que as pedras sangraram, perdi-me

    no mar e de ti apenas sobraram

    as tpidas mos com que te desem-

    baraaste da memria. Havia ptalas

    turquesas calcorreando as vagas

    e no me recordo de muito mais.Foi h tanto tempo que j no ixo

    sequer o teu rosto. Retenho a febre. A febre

    dos teus lbios e o teu estremecimento.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    97/160

    97

    AUSNCIA

    Se estranho a tua ausncia

    porque sinto nas palavras

    a presena cclica dos frutos

    e a madureza do olhar.

    Bem perto avizinha-se

    sobre o meu leito o sabor

    amendoado da pelee a concepo do fogo

    entre os gemidos que resvalam

    das tuas entranhas marinhas.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    98/160

    98

    NO TEU REGRESSO

    No teu regresso

    sobrevm a surpresa

    de ver-te a noite inteira

    diferente da chuva

    e da alvura

    no frio da madrugada.

    Respiro o aromados caminhos que entontecem

    o meu corpo ao pressentir

    os teus passos.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    99/160

    99

    ABRAO

    Por vezes, s precisamos

    de abraar algum. Deixar

    as palavras numa gaveta

    e ter um gesto subtil

    de ternura que preencha

    a dimenso desta habitaointerrompida. Excluir

    os excessivos porqus,

    as linhagens e dar a mo.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    100/160

    100

    AS MOS II

    No instante em que as manhsbeijam de luz os muros interiores

    desta habitao transitria,

    projecto-me nas mos

    cujos dedos se tocam simtricos

    em forma de abbada. Sob os seus

    arcos desenha-se uma catedral.

    Podiam ser as tuas, essas mos de ddiva

    que os deuses invejam. Mas ao olh-las

    sob a timidez de as ver sem ter visto,

    saberei que nos caminhos do p

    encontrarei mulheres afagando

    a ternura e oferecendo o leite e o vinhocom que amamentaro os seres perdidos

    na loresta. Porque para mim

    so as tuas, essas mos que eu adoro.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    101/160

    101

    INFNCIA

    Como os barcos em visita

    enseada onde todas as manhs

    o mar se enreda, assim os teus cabelos

    envolvem a nuca onde depositei

    um nico beijo sem estremecimentos.

    De ti, conservo o sorriso quedespertou a luz nesta habitao

    transitria. Tocarei ainda as tuas

    tranas onde baloumos nos jardins da infncia.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    102/160

    102

    CANO DE EMBALAR I

    Quisera ser lor

    nos dias da primavera

    e deslizar no teu peitocomo um cravo de abril,

    ser malmequer entre estevas

    e viajar como o plen

    no silncio do teu arfar.

    Quisera ser lua

    brilhando na noite,

    resgatar a luz,

    ser ave no voo sazonal

    ter o mar a chuva

    e o sabor tropical

    das palmeiras

    que adormecemno teu regao

    para escutar

    a tua voz na cano de embalar.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    103/160

    103

    CANO DE EMBALAR II

    Abordemos a noite

    num copo de gua. Numa formadescontnua e absorvente

    da melancolia atendida

    numa voz tranquila

    como a das fontes. Um tnue

    io lils de ptalas desliza

    na corrente, embrenha-se

    no bosque. Despe-se sob

    a frescura dos caules,

    amacia os musgos,

    deleita-se com o som dos dias

    e a sombra dos pltanos

    sussurra.

    to triste aquela cano

    e to suave como a noite.

    Abordemos a noite.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    104/160

    104

    ENCANTAMENTOS

    Gostava de encantar

    como a poesia e a sua nudez

    ininita. Percorrer

    a palavra

    no trilho dos livros,

    emboscar as emoes

    as luzes agoniadas

    do crepsculo

    no poema,

    na casa, na solido.

    Gostava de aninhar-me

    num crculo fechadoalcanado apenas

    pelas razes da tua nudez

    singular. Gostava.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    105/160

    105

    GOSTAVA DE SER COMO A NATUREZA

    E tambm gostava de ser

    como a natureza, reinventar os dias

    recriar as estaes do ano,

    regressar a todos os comeos

    seguir o voo das aves migratrias,

    agarrar o frio nos dedos

    e tactear a mansido

    e o tumulto, o tremor de terra

    que se gera dentro de ti e alcanara penumbra das madrugadas

    que clareiam mais cedo

    e despertam o teu olhar.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    106/160

    106

    HMUS I

    Regresso natureza, aos elementos

    do hmus, raiz, ao cauleda rvore dourada

    onde poisa o universo.

    A rvore , no entanto, estril

    e no d mas.

    A sua macieza metlica

    no deixa que germine

    como simples macieira.

    No fulgura

    na nossa pulsao

    ardente,

    no d a beber do clice

    e do vinho gerado no lugar

    onde o sol se une terra.Tenta possuir-nos

    com uma estria brava

    de lendas e magia.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    107/160

    107

    HMUS II

    A rvore no procria.

    Cercou-se de serpentes de fogo

    e conia apenas na deciso

    dos deuses sentados

    no alinhamento das estrelas.

    Quem poder assim

    viver ausente da esperana?

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    108/160

    108

    HMUS III

    J no h luas

    que abordem o mrmore

    onde se estabelece o amor

    em mudana e a gua

    se esvanece nas torrentes

    do teu olhar.

    Por isso, regresso natureza

    e aos seus elementos.

    Acolherei nos braosa ansiedade da rvore

    dourada exumando-a

    da esterilidade vingadora.

    Regressarei s artes

    de talhar um banco de jardim,

    a minha habitao residente,

    onde me sentarei

    a ler os ltimos poemas

    de amor de Paul luard

    e os vinte poemas de amor

    de Pablo Neruda.

    Sabers porqu.

    Esse o nico lugar onde seivas

    a serena delicadeza de um lrio.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    109/160

    109

    OS PSSAROS E A POESIA I

    A poesia o lugar onde os pssaros desenvolvem as suas actividades

    ldicas. Saltitam de folha em folha abanando as asas numa cantarolada

    alegre e sedutora. Tocam os seus bicos, beijam as suas pequeninas nucas

    com gestos de ternura inigualveis. Ao pisarem o cho de carumas,

    escolhem as vigas com que ho-de construir os seus ninhos.

    Nos dias de sol encantam a terra de melodias que uma partitura

    barroca imita muito bem. Nos dias de chuva, aninhados e melanclicos,

    aguardam por um regao que os acolha. Os ninhos encharcaram-se e

    nas rvores no h mais espao para novas habitaes. Eles sabemdas palavras recolhidas pelos poetas e das suas entoaes rtmicas.

    Os pssaros habitam a poesia

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    110/160

    110

    OS PSSAROS E A POESIA II

    A poesia o ninho dos pssaros. Vejam como volteiam e chilreiam num

    apego desprendido de cantares. Cruzam cnticos pelos ares onde o vento

    acalmou a aspereza das palavras. Os pssaros pedem que se lhes escrevamas cartas como num tempo antigo as escreviam os fazedores das cartas

    de amor. Os pssaros pedem aos poetas palavras sbias. Versculos que

    relitam a compaixo e a alegria na ondulao da tua voz sagrada.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    111/160

    111

    AS AMORAS

    Os silvados so as habitaesinterrompidas da infncia.

    Os picos tangentes das silvas

    agrestes marcam os corpos

    com linhas tracejadas a sangue.

    (H um sabor de punio entre

    as rosas feito perfume

    no momento dos beijos).

    Nas silvas escondem-se

    os bagos vermelhos

    e roxos da terra

    debruados em teu lbiossedentos do aroma

    com que uma amora invade

    teus braos.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    112/160

    112

    Uma ininita ousadia

    leva-me a perseguir

    esse deus inquieto que,

    para defender seu fruto,no precisou de uma serpente

    dourada, no camulou

    a sabedoria, nem desdenhou

    o arrojo das infancias.

    Se houvesse paraso na terra,

    ench-lo-ia de silvas para

    te proteger e aspergir.

    E aguardaria na seiva

    de tua boca o suor das amoras

    e a estonteante seduo

    do teu aroma.

    Como no haveriam de coroar

    o teu arroz doce?

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    113/160

    113

    TOALHA DE MESA

    J vi toalhas de uma brancura

    estonteante. como eu gosto

    das toalhas de mesa. Na tua,

    porm, acomoda-se uma toalha

    bordada, de branco intenso

    e os rendilhados so as linhas

    tecidas de ternura pousadas

    no instante em que me olhas

    e retns o meu gesto de levar

    o garfo boca com um montculo

    de arroz branco.

    Nada como saborear esses

    pequenos gros to tenroscomo os teus lbios.

    Sobre a toalha de mesa

    rendilhada de arabescos.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    114/160

    114

    CH DE MENTA

    O ch de menta

    que me aquece as entranhas,

    traz-me as recordaes

    das montanhas azuis

    onde imperavam os granitose as escarpas condodas

    pela solido dos seres

    trespassados de melancolia.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    115/160

    115

    LRICA I

    Ainda no vi acciasque se tivessem assustado

    por lavarem as suas razes

    de azul e espuma.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    116/160

    116

    LRICA II

    Amanh

    saberei

    de silncios

    espectaculares

    absorvidospela constante

    mutao

    das geograias.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    117/160

    117

    TERRA I

    No princpio

    era o verbo e o verbo

    fez-se terra,

    lugar informe e vazio.

    O verbo sem forma esem sintonia, ao fazer-se luz

    deu ao caos a luz do dia

    e a harmonia aos sons.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    118/160

    118

    TERRA II

    Terra, ntimo desejo

    lugar hereditrio

    do p,dos rios de fogo

    regressados

    ntima biologia

    e s transies

    elementares.

    Terra das estaes do ano

    da humana quimera

    do desejo surpreendido

    da viso das estrelas,

    das altas montanhas,

    dos mananciais do vento

    do gelodo po

    da seiva

    do sagrado selo

    e do trovo.

    Terra, lugar azul

    da ininitude dos mundos,

    da pedra sob o fogo oculto

    do mistrio do sol

    do nascente

    e do poente

    das talmdicas paisagens,

    bola redondagirando sobre si mesma

    em torno da resplandecente

    estrela.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    119/160

    119

    PARQUE I

    O parque uma habitao

    transitria e frgil.

    A natureza converge

    em sua nudez tranquila

    renovada pelas estaes do ano.

    Um vasto silncio verde

    onde paira o canto das aves

    sobrevive oriundode um tempo antigo.

    As raizes, os caules,

    os ramos, a folhagem

    so o lar de muitos dos seres

    digo eu perdidos na loresta.

    A relva espraia-se

    como as ondas do mar

    sobre a qual reclinas

    o teu dorso magnico

    e eu me deito a teu lado

    e nos rebolamos.

    O parque acolhe-nos como

    nos recebem os lenis de linho,

    tecidos pela ternura dos teus gestos.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    120/160

    120

    PARQUE II

    No parque alcano o rosto

    das aves migratrias, frenticas

    com o voo do plen.

    A passagem do tempo como o zumbido dos moscardos

    e as mos que o digam, vistas luz

    das linhas cartomantes no colo

    de uma feiticeira voraz.

    No parque procuro as colmeias

    onde depositas pensamentos

    de mel. Encontrarei nas suas fontes

    os segredos cristalinos do granito.

    A energia redentora das lores

    que adornam o parque

    ho-de implodir na nossa habitaoe humedecer os teus beijos.

    No parque, reencarnarei de novo.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    121/160

    121

    NA SENDA DOS LIMITES I

    Limites do cu e da terra.

    Do corpo restringido composio elementar.

    Pertencerei palavra colhida

    nas torrentes das fontes

    que transpiram o rosto fresco

    das mulheres bblicas.

    A elas tambm pertencerei

    limitado pela emanncia

    dos seus ventres. A terra-me,

    mulher como qualquer

    emanao feminina

    nos limites da cidade,

    nos jardins limitados

    pela cartograia urbana,por cada cruzamento

    de hesitaes e estremecimentos

    permanece oculta no interior das mastabas.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    122/160

    122

    NA SENDA DOS LIMITES II

    As cantarias denunciam o limite

    do aconchego interior, curvadas

    perante a indeciso de pequenos

    nadas, as junes esquematizadas

    da planta de uma casa, os limites

    da sombra nos varandins onde se

    rendilham as estrofes da noite.

    As cantarias curvadas sobre o corpo.

    Num domnio de limites. Sob o sangue

    da intimidade, a lava do vulco

    aspergida nas quilhas das rochasmarinhas, deine o limite de uma

    nova ilha onde se tornaro delicados

    e quentes a seiva e os musgos.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    123/160

    123

    NA SENDA DOS LIMITES III

    So delicadas as linhas

    que separam uma vida ardente

    da paixo avassaladora dos amantes.

    Delicados os limites das mulheres

    camponesas silenciadas no hmus

    da terra frtil. Metamorfoses gerando

    novos limites. O de criar recriando

    num regresso ao mesmo, sem parar,

    num imparvel ciclo de fmeasno centro da terra, ntimo limite

    dos reprodutores que se acolhem

    nos sonhos empolgantes.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    124/160

    124

    NA SENDA DOS LIMITES IV

    Ilimitada, porm, a voz

    da poesia. E, no entanto,

    absorvmo-la no canto do vento,

    das guas e do sangue.

    Ilimitada nos limites

    possveis da palavra,

    sua conjugao essencial,sua fora jugular.

    Ilimitada nos limites das mos

    que percebem o golpear

    dos girassis. Vede como

    se estabelecem os limites

    ao fogo e ao crepitar

    das estrelas cadentes.

    Tudo ter princpio

    e im, ao mesmo tempo que

    uma revoluo celeste

    ecoar na chuva e da chuva

    nascero as gotculas

    da primavera. No seio da poesia,na senda dos limites...

    ... porque ainal para ti que corro

    no limite da solido.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    125/160

    125

    NOVAS DO MAR AZUL

    Um dia saberemos muito mais

    sobre o mar e o vento que o fustiga.

    E saberei de ti, cantadora

    dos cantares de amigo e achareina poalha aspergida nos rochedos

    as palavras que no disseste,

    os silncios que retiveste

    e a aura que envolve a tua nuca

    de fmea frgil e cintilante.

    Saberei como tudo se transforma

    na vastido lquida e azul

    e agradecerei a chegada dos seres

    marinhos que me traro novas

    de ti... ai deus! Saberei ainda

    como voltaro a repetir-se

    os dias antigos nas mensagens

    arrastadas pelo vento. As ondas saberei que so correntes

    profundas do teu peito ho-de

    trazer-me novas de ti... ai deus!

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    126/160

    126

    AS NOITES FEBRIS DE TI

    As noites tornaram-se febris.

    A gua desliza ao longo dos teus

    braos e agarra o vento que sobe

    na correnteza das rvores.

    Uma nica e intensa luz persegue-nos.

    Entre a claridade das estrelas

    e os locos de sombra nas colinas,

    habita o grito dos animais

    espantados pelos astros e o relexo

    de prata na poeira do mar.Quantas luas faltam para que

    regresses? Quanta poesia perdida

    nos limites da tua febre...

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    127/160

    127

    PERSPECTIVA

    Da prxima vez que abrires

    as janelas dos casulos verdes

    suspensos sobre o mar,

    vers na ilha de prata

    adormecida sob um azul

    intenso o ponto exato

    desta habitao interrompida.Ali se detm as garas

    e o sol. O vento apenas

    uma nvoa de p esvoaante.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    128/160

    128

    SILNCIOS

    Sei nada de ti.

    Sei do teu ventre

    restolhando no interior

    de lquidas paisagens. Sei

    da tua febre. Para l disso,

    sei muito pouco.

    Diria no saberabsolutamente

    nada sobre a tua pele,

    a tua nudez desamparada.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    129/160

    129

    UM SBITO SILNCIO I

    Nesta presena sbita

    do silncio,

    um esgar luminoso

    corta o vento.

    Tudo se aquieta.

    Os seres no falam.

    Respiram suavemente

    e um eco

    fere os tmpanos.

    Junto do teu olhar

    adormecem

    as palmeiras. Entreroupagens de sonhos

    sabem apenas

    que o silncio te absorve.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    130/160

    130

    UM SBITO SILNCIO II

    Como uma esttua

    de sal, a memria

    ixa-se num gesto

    de silncios. Falarei

    por isso da raiz

    das rvores seculares

    que lanam seus braos

    na nervura das pedras.

    No sei os nomes.

    Saberei apenas queicaro gravados

    nas lajes

    dum campo santo.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    131/160

    131

    UM SBITO SILNCIO III

    Uma sbita presena

    do silncio traz de novo

    os teus olhos para o mundo

    inquieto da poesia.

    Sei os nomes que

    decompuseste

    em partculasonde as migalhas

    so constelaes

    impolutas e avassaladoras.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    132/160

    132

    UM SBITO SILNCIO IV

    Um silncio de sbita

    presena apaga a voze o queixume das tuas razes

    ancestrais. Arfante,

    exala, por im, o rudo

    dos pssaros

    que a noite acolhe

    no seu golpe de asa.

    Colada ao muro

    de um outro rosto

    depositas a parte

    vivente, sbito

    silncio de puro amor.

    E nesta presena sbitae ltima do silncio

    retenho partculas de ti

    que o meu corpo devora

    e, como um livro

    que asixio pgina a pgina

    sorvo os rios, as lagunas,

    as pequenas enseadas

    os ntimos oceanos

    onde a minha navegao

    persiste em busca

    da margem na qual

    possa morrer todos os dias

    um pouco mais. At ao silncioinal, o segredo foi ter-te

    e no te ter movido pelo sangue

    que corre nos arroios destas veias.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    133/160

    133

    A CASA

    Construirei esta casa

    pedra a pedra

    lao a lao

    e em cada trao

    dos seus recantos

    ver-te-ei de abrao

    dado ao mundo

    abrindo o teu corpo

    luz que a janelaacolhe como um porto

    de chegada

    e de partida.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    134/160

    134

    VOLTEMOS GUA

    Voltemos gua,

    s linhas que atam

    (como a chuva)

    o corpo s algas do mar.

    Entre ondulaes

    e luz retem-se a voz,

    a sublime voz

    de um ser magnico

    tocado pela mansido

    do tempo.

    Se soubesse ondeparam os teus sussurros

    mergulharia no vento

    em busca do teu olhar verde.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    135/160

    135

    MADRIGAL I

    No sei

    verdadeiramente

    onde inicias e acabas,

    porventura,

    nada saberei de ti.

    Apenas saberei

    que ainda existes nas guas

    deste mar reinventado

    no sal da tua boca.

    Saber-te-ei onda,frescura dos frutos

    que me acolhem.

    Ainal, fomos

    rei e rainha

    de todos os mundos

    inventados

    e navegmos

    distncia de costa

    para que os ventos

    no perturbassem

    a calmaria.

    Voltarei um dia

    para te buscar

    entre os bzios.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    136/160

    136

    MADRIGAL II

    Na loresta,

    as sombras azuis

    liquefazem a alegria.

    A tua voz ecoa

    nas escarpas

    que respiram o eco

    dos rios. Na margemverde, do lado de c,

    confundo os teus olhos

    com os das garas

    que pressentiram

    a tua presena.

    No teu peito, os guisos

    das montanhas despertam

    antigos fantasmas,

    perdidos no regresso

    ao paraso. As fontes

    aspergem a poalha dos

    pressgios e entre lianasque balanceio o vento.

    Os teus cabelos voam.

    E a tua voz? Onde ests?

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    137/160

    137

    AS CIDADES QUE HABITAMOS

    As cidades decrescem na memria. So mera recordao projectada no ecrn

    gigante que domina a infancia. Os edicios, os lugares que habitamos, diminuem

    em altura perante a imposio do corpo amadurecido do olhar saltitante dos

    telhados de Lisboa e estremecem. A fenecem nas claras cores dos muros e paredes

    cercados pelos grafittis ousados, fuorescentes e prenhes de gritos de revolta.

    Troco os nomes aos detalhes das cidades. E s cidades. Nesta terra troco os nomes

    a tudo e a todos os lugares. Porque me apetece. A quinta avenida de Lisboa no

    a Avenida da Liberdade em Manhattan. Nem a Rotunda do Columbus a PlazaMarqus com seu Leo sentado no mirante de Alcntara ou o Central Park o

    parque de Monsanto. Nem ainda a crepuscular Praa de Espanha a Washington

    Square onde se derrama a voz de uma mulher presa nos recantos dos varandins

    de manjericos, de Alfama at Chinatown e Litlle Italy ou no Po, restaurante do

    meu pas que devolve entre o parque de recolha da UPS e a Greenwich Street o

    sabor secreto de Lisboa. Nem as vinhas de Napa Valley so rigorosamente uma

    coincidncia das uvas soalheiras do Douro ou das lezrias secas do Tejo sangradas

    nos sabores das mesas portuguesas de Nova Iorque e Newark.

    A liberdade misturar os lugares, atear a chama ntima e sagrada rasgar

    as certides lgicas e inquebrantveis da matemtica, da geograia, da

    incongruncia poltica e da razo.

    Esta casa da poesia, uma habitao interrompida que devolve a neve e o inverno

    ao tremor sazonal, a casa das transies dos nossos corpos, nossas secretas

    biologias, nossos ntimos desejos do retorno a uma natureza que o homem deiica.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    138/160

    138

    AS HABITAES INTERROMPIDAS I

    Habitamos as luzes amarelas

    da noite azul. O exerccio

    dirio das estrelas, o silncio

    dum corao antigo. Habitamos

    lugares estranhos onde as serpentes

    se enroscam na ironia das palavras.

    Habitamos o mundo das melancolias.

    Interrompidamente.Habitamos

    secretamente nas veias

    um do outro com um mar de fogo

    a unir as nossas entranhas.

    Habitamos o ciclo interrompidoda poesia. Os meses que nos escaparam

    das mos, a dolorosa luz da eternidade.

    Mas no habitamos a eternidade.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    139/160

    139

    AS HABITAES INTERROMPIDAS II

    Habitamos as veias e a memria. E as ruas onde registamos o tempo que escorre.

    Nos passeios. As viaturas extorquiram o espao democracia das habitaes e

    impomos mecanicamente o direito de habitar porta dos edicios. Imolamo-nos

    numa luta feroz de vizinhanas proprietrias.

    Entre ns e os motores, os ces passeiam alegremente os seus donos na solido

    ocupada dos lugares que habitamos.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    140/160

    140

    AS HABITAES INTERROMPIDAS III

    Habitamos o sonho.

    e as colinas da cidade.

    Habitamos o interior

    das cidades

    como se habitssemossob a pele de um casulo.

    Habitamos um insistente

    silncio perceptvel

    nos olhos das mulheres

    concebidas no dorso

    dos animais pastoris.

    Elas adoram o rudo

    das palavras e a linguagem

    da remisso, o princpio

    bsico de todos os incios.

    Elas habitam a costela de ado.

    Mas ns, ah, ns

    habitamos o lugar dos deuses,simples e nico lugar disponvel

    na abstraco dos cus.

    Habitamos o cu.

  • 7/25/2019 As Habitaes Interrompidas

    141/160

    141

    AS HABITALOES INTERROMPIDAS IV

    Interrompo o curso dos dias

    para mudar de habitao. O tempo

    conjuga as inconstncias

    humanas e faz delas a seiva

    com que afagas a chuva.

    Procurarei uma habitao.

    Onde o silncio me escute

    e o casulo de tua presena

    no se pressinta. At uma ave busca

    o seu ninho. Com o retomar

    dos dias verei o haloda primavera. No sei o que

    me vai trazer. No tu, porm.

    No mais.

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