As interrelações entre Música e Artes Visuais

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As interrelações entre Música e Artes Visuais Migração dos Sentidos

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As interrelações entre Música e Artes Visuais

Migração dos Sentidos

Introdução

• O artigo de Cintia Cristiá, propõe uma tipologia que poderia ser usada como ferramenta conceitual no sentido de caracterizar todas as produções ou práticas artísticas que articulem dimensões sonoras e visuais no processo criativo ou no resultado final.

• Combinando dados sobre o processo criativo e as estratégias empregadas pelos artistas com a análise dos trabalhos, especialmente em relação aos materiais e suas configurações, a autora observa dois tipos básicos de relação entre as artes envolvidas: ‘migração’ e ‘convergência’;

• Inspirado por um artigo de Rachel B. Kreichmann (1992), Cristiá define ‘migração’ como a passagem de um elemento, de uma técnica ou de uma temática de uma arte para outra. Para ‘convergência’, a autora segue a postura de Adorno que descreve a interação entre duas ou mais artes no mesmo trabalho. Na ópera, por exemplo, música, drama, literatura e artes visuais convergem.

O fenômeno da migração

• Cristiá coloca as seguintes questões:

• Como um desenho se torna uma melodia?• Que tipo de operação permite a passagem de

um material para outro?

• A migração de um meio para outro, de uma arte para outra parece acontecer em cinco níveis:

• Emocional• Material• Morfológico• Textural • Conceitual

• Mesmo estando evidente que esse esquete teórico deve ser testado e aprofundado, podemos provisionalmente definir suas características básicas da seguinte maneira:

1- nível emocional

• Este é o primeiro nível de intercâmbio de natureza holística. Pintar um quadro “deixando-se levar” ou tentando evocar a atmosfera de uma peça de música enquanto a escutamos constitui dois exemplos. É um dos níveis mais empregados nas experiências pedagógicas que visam desenvolver a consciência artística e perceptual.

2- nível material• Se baseia na correspondência ou associação de pares de

elementos constitutivos e / ou parâmetros análogos. Eles podem ser previamente estabelecidos ou apontados espontaneamente, justificados teoricamente ou arbitrários. Alguns pares de elementos associados normalmente incluem cor e pitch (isto é, quanto mais agudo for a altura, mais clara a cor), cor e timbre (por exemplo, a cor amarela pode ser usada para representar o som de um trompete), ou forma gráfica e configuração de som, como em Kandinsky (1991) que faz correspondência entre um ponto e um único som percussivo.

3- nível morfológico• Envolve a imitação da macro –forma -

estrutura de uma obra -, ou micro-forma - a configuração do material em um meio artístico diferente. Certos paralelismos relativos ao nível de material e os parâmetros geralmente relacionadas com a partitura musical e as convenções a ela associadas são tacitamente estabelecidos. Desnecessário dizer que a notação musical ocidental é o ponto de encontro da música e da expressão visual.

• Assim, a associação entre a posição de um símbolo no pentagrama e sua altura (ou seja, quanto mais alto for o símbolo de acordo com o eixo vertical, quanto mais aguda a nota) tende a ser usado como fundamental para associações morfológicas (ou seja, uma linha ondulada geralmente se transforma em uma melodia que sobe e desce por graus conjuntos). Relações simétricas ou assimétricas e articulações internas entre outros aspectos são susceptíveis de passar de uma arte para a outra através deste nível.

4- nível textural

• Relacionado com o nível anterior, este nível refere-se especificamente a relação interna ou sincrônica dos materiais entre si.

5- nível conceitual

• Finalmente, este é o caso em que a migração de um campo para o outro é obtida por recurso à uma ideia ou um conceito.

Xul Solar – ‘entierro’

• Exemplo musical: possível rítmo sugerido pela disposição em sentido horário das figuras em ‘entierro’.

Coral Bach [Bach's Chorale], 1950.

• Em “Coral Bach”, a migração transita do nível textural (o fundo da pintura é construída por estratificação planar e imitação motívica) e o nível conceitual (o pensamento religioso age como o nexo entre a música e o texto de Bach e a restrição cromática da imagem). As figuras voadoras que vemos na pintura poderia ser representações de diferentes vozes de um coral, o que implicaria o nível material (voz = figura) e, ao mesmo tempo o nível textural (a superposição da vozes e a imitação), mesmo que a sua direção contrarie a direção convencional da linhas vocais numa partitura musical.

• Mas também devemos considerar que “Coral Bach” poderia ser um exemplo dessas técnicas "que tentam trazer para a tela o mundo sensorial, emocional que uma suite chopiniana, um prelúdio wagneriano ou uma estrofe cantada por Beniamino Gigli pode produzir no ouvinte". Isto aponta para um nível emocional. Se este for o caso, então poderíamos dizer que esta pintura integra quatro níveis de migração (todos, menos o nível morfológico).

Impromptu de Chopin, 1949

• Enquanto “Coral Bach” parece evocar a religiosidade de seu modelo musical através de ascetismo cromático e da escrita polifônica, por meio da imitação e estratificação de formas pontiagudas triangulares, “Impromptu de Chopin” é até hoje a única prova de uma aplicação prática de seus princípios de tradução músico-visual. De fato, embora parecia ser uma variante mais específica das polifonias visuais de Xul Solar, relacionados a elas pela sua composição estratificada, quando comparamos o motivos montanhescos com os compassos iniciais do Impromptu Opus 29 de Chopin em lá bemol maior, os princípios de tradução são evidentes.

Começo do Impromptu de Chopin

Detalhe da notação plástica empregada em “Impromptu de Chopin”

Algumas considerações finais

• Do mesmo modo que o nível emocional, fica evidente que para se falar do uso do nível conceitual será necessário contar com informações sobre as intenções do compositor ou do artista, ou seja, do nível poiético.

• Ao provar a tipologia, vemos aqui que às vezes fica difícil discriminar entre os níveis material, morfológico e textural, visto que o segundo e o terceiro implicam o primeiro. Talvez fosse melhor definir três níveis principais de migração (emocional, material e conceitual) e subdividir o segundo em três outras possibilidades (elemental, morfológico e textural).

• Também caberia ver, posto que esse esboço teórico se centra no fenômeno da migração entre a música e as artes plásticas, se pode ser aplicado à passagem entre outras áreas (música e literatura, por exemplo) e/ou adequado ao estudo da convergência, em plena etapa de expansão. De fato, resta considerar as possibilidades (e dificuldades) do fenômeno de convergência, como observou Adorno (2000):

• “A dificuldade é baseada no fato de que a convergência não está localizada somente nesses procedimentos, tensões, elementos linguísticos (embora, na verdade, ela só pode ser realizada neles); e os materiais mesmo estão empurrando nessa direção, embora eles (os materiais) fazem de bobo os artistas que esperam que a convergência parta desses materiais, ao invés do processo de articulação”.

• O processo de articulação dos materiais seria, então, o local a partir de onde seria possível a convergência dessas artes. De qualquer maneira, é evidente que as categorias Adornianas de Zeitkunst (música = uma arte do tempo) e Raumkunst (pintura = uma arte do espaço), estão não somente longe de serem absolutas, como guardam uma relação dialética entre si. Como vemos, é essa tensão que permite diferentes tipos de experimentação e encoraja um crítica incisiva no sentido de caracterizar suas áreas de conflito e resolução.

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