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1 As livrarias dos mosteiros e a interdisciplinaridade na Idade Média: os casos de Santa Cruz de Coimbra e Santa Maria de Alcobaça (séculos XII-XVI) Carolina Chaves Ferro Doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense Professora do Centro Universitário UniCarioca [email protected] Segundo Adorno (2004), as ciências sociais e humanas têm a necessidade de se relacionarem. Para o autor, a relação é promissora, pois a ciência tem a função de tornar o aprendizado social algo concreto, e não meros esquemas classificatórios. Não cabe aqui a discussão da cientificidade da disciplina História 1 , mas, sim, compreender, através do estudo das bibliotecas dos dois principais mosteiros medievais portugueses, que nenhum saber pode ser visto de forma isolada. Se os saberes das ciências sociais como um todo se misturam, o que diferencia uma das outras é o enfoque, o método, as fontes e os objetivos. Neste sentido, as parcerias firmadas entre campos científicos distintos (BOURDIEU, 1983) são essenciais para a produção de um saber que se pretende rigoroso e comprometido com a pesquisa. Esta apresentação pretende focar na análise das obras medievais dos mosteiros de Santa Cruz de Coimbra e de Santa Maria de Alcobaça. Para compreender a formação dessas instituições religiosas e nos debruçar sobre suas obras foi essencial adentrar o campo da filosofia, da linguística, da teologia, da comunicação social, da biblioteconomia, da arquivologia, da antropologia e da sociologia. Sem o aporte de pesquisadores diversos que se debruçaram, de alguma forma, sobre esses manuscritos, seria impossível chegar aos resultados que veremos a seguir, o que comprova a urgência de um diálogo permanente entre os vários saberes. A Idade Média, em especial, talvez seja um dos períodos 1 Um bom livro que aborda essa discussão é de Jurandir Malerba. História & Narrativa: a ciência e a arte da escrita histórica. Petrópolis: Vozes, 2016.

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As livrarias dos mosteiros e a interdisciplinaridade na Idade

Média: os casos de Santa Cruz de Coimbra e Santa Maria de

Alcobaça (séculos XII-XVI)

Carolina Chaves Ferro

Doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense

Professora do Centro Universitário UniCarioca

[email protected]

Segundo Adorno (2004), as ciências sociais e humanas têm a

necessidade de se relacionarem. Para o autor, a relação é promissora, pois a

ciência tem a função de tornar o aprendizado social algo concreto, e não meros

esquemas classificatórios. Não cabe aqui a discussão da cientificidade da

disciplina História1, mas, sim, compreender, através do estudo das bibliotecas

dos dois principais mosteiros medievais portugueses, que nenhum saber pode

ser visto de forma isolada. Se os saberes das ciências sociais como um todo se

misturam, o que diferencia uma das outras é o enfoque, o método, as fontes e

os objetivos. Neste sentido, as parcerias firmadas entre campos científicos

distintos (BOURDIEU, 1983) são essenciais para a produção de um saber que

se pretende rigoroso e comprometido com a pesquisa.

Esta apresentação pretende focar na análise das obras medievais dos

mosteiros de Santa Cruz de Coimbra e de Santa Maria de Alcobaça. Para

compreender a formação dessas instituições religiosas e nos debruçar sobre

suas obras foi essencial adentrar o campo da filosofia, da linguística, da teologia,

da comunicação social, da biblioteconomia, da arquivologia, da antropologia e

da sociologia. Sem o aporte de pesquisadores diversos que se debruçaram, de

alguma forma, sobre esses manuscritos, seria impossível chegar aos resultados

que veremos a seguir, o que comprova a urgência de um diálogo permanente

entre os vários saberes. A Idade Média, em especial, talvez seja um dos períodos

1 Um bom livro que aborda essa discussão é de Jurandir Malerba. História & Narrativa: a ciência e a arte da escrita histórica. Petrópolis: Vozes, 2016.

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históricos que mais dialogue com outros saberes, devido às suas características

específicas, como língua, fontes diversificadas, escrita com caracteres distintos

do que temos hoje. Sendo assim, abordar este tema num grupo de estudos

medievais é quase lugar comum, ainda que sempre necessário.

O Livro na Idade Média

As matérias sobre o livro e as práticas de leitura são bastante complexas.

A Europa medieval, ao contrário do que ficou consagrado pelos renascentistas

e, principalmente, pelos iluministas do século XVIII, nunca abandonou a tradição

clássica nem a questão da razão. Obviamente, a razão encontrava-se num

contexto bastante distinto, onde o papel da Igreja era forte, fazendo-se presente

em diversos âmbitos da vida do homem do medievo. É necessário destacar,

ainda, que os maiores pensadores de boa parte da Idade Média pertenciam a

essa mesma instituição, concentrando seu saber e discussões nos mosteiros

espalhados por cada canto da cristandade.

Pouco a pouco, os homens laicos puderam adentrar esses espaços de

saber, criando uma nova razão, que não era propriamente a da Igreja, mas que,

ao mesmo tempo, não se afastava completamente desta instituição. As escolas,

universidades e, mais efetivamente, o movimento humanista permitiram o

desenvolvimento de uma cultura letrada que se deu de formas variadas pelos

reinos do que chamamos hoje de Europa.

Assim, o reino português, através das figuras de seus reis, da família real,

nobres abastados, clérigos importantes e uma parte da burguesia, pôde

desenvolver as letras e cultivar o aumento de homens letrados. Se num primeiro

momento, com a dinastia de Borgonha, criou-se a universidade, ao mesmo

tempo em que os scriptoria trabalharam com mais fervor, a dinastia Avisina

proporcionou uma maior integração entre os ideais régios e o desenvolvimento

cultural. Neste aspecto, praticamente todos os reis e regentes tiveram um papel

importante.

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O livro, para as pessoas que o apreciam, é quase um objeto sagrado. Se

hoje, em meio à variedade de exemplares e suportes existentes e às facilidades

do mundo moderno ele continua sendo desejado e guardado com cuidado por

seus possuidores, imaginemos na Idade Média, onde ele era escasso e raro. Em

Portugal, nesse período, houve dois tipos de produção que chamam a atenção

dos estudiosos. O primeiro deles era o livro manuscrito, na maioria das vezes,

produzido nos scriptoria concentrados dentro de monastérios especializados. O

segundo é o livro impresso, mas nos primórdios da invenção de Gutenberg

(século XV) e de sua difusão e entrada em território português. É sobre o primeiro

momento de produção de livros manuscritos e as obras dos principais locais que

possuíam scriptoria que abordaremos neste artigo.

Cada mosteiro possuía uma biblioteca, mas nem todos produziam seus

próprios livros. Os scriptoria medievais estiveram presentes, principalmente, nos

mosteiros beneditinos e agostinianos em Portugal. Dentre esses, destacam-se o

Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra (agostiniano) e o de Santa Maria de

Alcobaça (beneditino), cujas produções e desenvolvimento cultural letrado serão

apresentados. Como abertura da temática, é importante destacarmos que a

produção manuscrita começou no período da Dinastia Borgonhesa, muito antes

de D. Duarte, tendo uma redução no número das cópias nos séculos XIV e XV,

mas aumentando de produção no reinado de D. Manuel I, agora não somente

restrita aos mosteiros (BUESCU, 1999)2.

Santa Cruz de Coimbra

O Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra surgiu no início do século XII,

através de uma ideia que D. Telo (arcediado da Sé de Coimbra) teria tido durante

2 Como salienta a professora Ana Isabel Buescu, o reinado de D. Manuel I e a inserção da imprensa no reino português não representou uma substituição da produção manuscrita em detrimento da tipografia. Ao contrário, ela se desenvolveu e ganhou mais status devido a importância crescente dos livros naquela sociedade e a importância da preservação do escrito. Para mais informações, ver: Ana Isabel Buescu, “Cultura Impressa e Cultura manuscrita em Portugal na Época Moderna: Uma sondagem”, In:__ Penélope, nº 21, 1999, pp. 11-32.

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uma viagem à Jerusalém com D. Maurício (bispo de Coimbra). Segundo

Agostinho Figueiredo Frias (1997), D. Telo teria observado a vida das várias

comunidades religiosas que se estabeleceram em lugares considerados santos

após a conquista de Jerusalém, em 1099. Assim, nessa viagem, D. Telo resolveu

fundar um monastério em Portugal. Apesar da firmeza na realização dessa ideia,

o clérigo não pôde colocá-la em prática imediatamente, demorando ainda cerca

de 20 anos para que se concretizasse. Após várias contendas entre o novo bispo

de Coimbra, o cabido e outros religiosos3, o mosteiro foi fundado no dia 28 de

junho de 1131 e a vida monástica iniciou-se nove meses mais tarde. D. Afonso

Henriques, o primeiro rei português, foi um personagem fundamental para que o

projeto pudesse ser feito, unindo a fundação do mosteiro a de uma nova

monarquia ligada à identidade portuguesa. O Mosteiro de Santa Cruz de

Coimbra virou o espaço privilegiado do rei, tendo se tornado sua última morada,

onde seus restos mortais descansam desde então. Foi neste mosteiro que D.

Afonso Henriques guardou seus tesouros, os documentos de sua chancelaria e

onde buscou seus funcionários mais eruditos.

Segundo Aires do Nascimento (1997), a primeira atividade de escrita

realizada no mosteiro tem data próxima a sua inauguração, em 1140, realizada

pelos seus próprios cônegos. O próprio D. Telo tinha prática de escrita nos

documentos da Sé de Coimbra, o que faz com que o autor acredite que este

mesmo religioso teria interferido diretamente no trabalho dos escribas. De

qualquer forma, esta prática iria acontecer mais cedo ou um pouco mais tarde.

O fato é que os religiosos necessitavam dos livros que regiam a vida monástica,

bem como daqueles para a realização de missas e leituras nos capítulos e

demais espaços coletivos. Ainda que nem todos soubessem ler, havia

necessidade de que alguns o soubessem para que se concretizassem as

práticas religiosas do monastério. Aires do Nascimento (1997) aponta a hipótese

de que os primeiros livros a serem copiados para a biblioteca do mosteiro de

Santa Cruz teriam vindo da Sé de Coimbra, mas, apesar de muito verossímil,

3 Não cabe aqui detalhar as disputas entre os religiosos coimbrenses. Para maiores detalhes sobre a história desse mosteiro, ver: Armando Alberto Martins. O Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra na Idade Média. Lisboa: Centro de História da Universidade de Lisboa, 2003.

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não temos indícios concretos, pois as listagens medievais de sua biblioteca não

chegaram até os historiadores contemporâneos. Não temos a listagem de Santa

Cruz em seus primórdios, contudo, sabe-se que ela recebeu doações de nobres

e do alto clero formando, aos poucos, o seu valioso acervo. Ainda que não

tenhamos essa lista em épocas remotas, temos conhecimento de seus

exemplares através de listas produzidas no século XVI e é nelas que esta análise

dará enfoque.

O livro é um objeto fundamental para as práticas sociais de um mosteiro.

Ele não só é parte das funções de alguns monges, como também está previsto

nas regras dos mesmos. No "Liber Ordinis" - costumeiro de Santa Cruz -, por

exemplo, há uma passagem que diz:

De manhã todos fiquem em silêncio no claustro ou recitando ou cantando; se acaso for leigo e não souber fazer nem uma coisa nem outra, mantenha o livro diante de si e diga a oração dominical e quantas vezes a acabar, tantas volte ao fólio4.

Saul Antonio Gomes (2007, p. 243) aponta, ainda, que os mosteiros

cistercienses tinham que valer os preceitos de São Bento que "(...) determinava

a entrega, no início da quaresma, de livros aos professos para que os lessem e

meditassem durante todo o advento pascal (...)". Além disso, este mosteiro

também se tornou uma importante escola claustral. Sendo assim, a necessidade

de livros aumentou e o trabalho do scriptorium tornou-se cada vez mais

essencial, bem como a formação de uma biblioteca dentro de seus domínios.

Para Aires do Nascimento (1997, p. LXXXIX), entre 1139 e 1237, o

scriptorium de Santa Cruz de Coimbra teve três fases. Na primeira delas, entre

1139 e 1162, esse monastério junto com a Sé de Coimbra e o Mosteiro de Lorvão

apresentaram-se como os únicos centros de produção de livros, onde a tradição

hispânica pôde se fundir com outras tradições, notadamente as provenientes de

Moissac, de Limoges ou de Avignon5. A segunda fase se constituiu entre 1162

4 Liber Ordinis, capítulo 68. Costumeiro de Santa Cruz, obra do final do século XII, trata-se do conjunto de regras que o mosteiro de Santa Cruz deveria seguir. 5 Para mais informações sobre a influência dessas localidades, ver: Joaquim O. Bragança. "L'influence de la liturgie Languedocienne au Portugal (Missel, Pontifical, Rituel)", In:__ Cahiers de Fanjeux, 17, 1982, pp. 173-184 e José Mattoso. "Monges e clérigos portadores da cultura

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até finais do século XII, sendo o primeiro marco temporal coincidente com a

morte do primeiro prior do mosteiro, S. Teotônio. Neste período, o scriptorium de

Santa Cruz continuou funcionando e recebendo influências exteriores, mas

agora concorria com outro grande centro de produção, o Mosteiro de Alcobaça.

Já a terceira fase (do final do XII ao ano de 1237) corresponde à diminuição de

sua influência frente à Alcobaça que, com novas formas, conquistou um espaço

privilegiado de produção manuscrita.

Ainda que Aires do Nascimento (1997) tenha levantado a terceira etapa

como a queda do scriptorium de Santa Cruz, é necessário relativizar com os

números colocados por D. José d'Ave Maria e A. G. da Rocha Mandahil (1927,

p. 409) que já apontavam um aumento da produção dos códices no século XIII

(37 volumes, contra 23 no século XII e 18 no século XIV). Ainda que o mais novo

catálogo dos códices organizado pelo próprio Aires do Nascimento e por José

Francisco Meirinhos (1997, p. 388) apresentem números distintos (34 códices

para o século II e 51 exemplares para o século XIII) e, apesar de algumas

dúvidas pontuais sobre a datação correta de alguns livros, é possível verificar

um aumento no número de códices produzidos se compararmos os séculos XII

e XIII, correspondendo, talvez, num aumento pela demanda das obras. Há que

lembrar, também, que o scriptorium passou, aos poucos, a funcionar não

somente para os seus monges, mas por pedidos externos de reis, nobres e

clérigos letrados que necessitavam de cópias de alguns livros que lá se

encontravam. O que demonstra que a atividade de produção dos códices

cresceu nos séculos XIII, XIV e XV.

Na listagem mais recente que temos do mosteiro de Santa Cruz de

Coimbra (NASCIMENTO; MEIRINHOS, 1997) na Idade Média6, existem 97 livros

medievais, sendo cinco deles descobertos muito recentemente. Este número é

apenas o do que chamamos "biblioteca de mão" do mosteiro, o que significa

dizer que são os livros do armário, aqueles que são guardados com cautela pela

francesa em Portugal", In:__ Actes de Colloque les rapports culturels eu littéraires entre le Portugal et la France. Paris-Lisboa, 1983. 6 Entendo por Idade Média o período desde a fundação do mosteiro no século XII até meados do século XVI. Ou seja, contamos apenas os códices que são caros ao período cronológico retratado neste estudo.

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instituição. Mais concretamente, isto significa que o número de exemplares que

pertenceram ao mosteiro foi maior, pois existiam livros em diversos locais de

seus prédios. Além disso, Aires do Nascimento (1997, p. LXXXIX) levanta a

hipótese de a própria biblioteca de mão ter sido bem mais ampla, dizendo que:

O caráter fragmentário do fundo de Santa Cruz, certamente devido a perdas sofridas, constitui obstáculo a determinar condicionamentos da execução dos seus códices ou a definir a sua origem concreta (...)

Os livros eram guardados no armarium ou em qualquer outro ponto

próximo da entrada da igreja ou do local de leitura. Ainda que a biblioteca de

mão apresentasse 97 códices, é preciso salientar que cada exemplar podia

conter mais de uma obra ou fragmento dela. Lembremos que o pergaminho e a

encadernação eram muito caros, sendo comum aproveitar um mesmo material

para escrever mais de uma obra. Ainda que nem todas as obras tenham sido

feitas em seu scriptorium, o que é revelado neste trabalho é o número de

exemplares disponíveis aos monges e laicos que frequentavam a sua biblioteca.

Além dos códices que se encontram hoje na Biblioteca Pública Municipal

do Porto, graças aos esforços de Alexandre Herculano7, há, também, obras que

se encontram no Arquivo Nacional da Torre do Tombo - tais como os cartulários

(notícias hagiográficas e memoriais), o "Livro Santo" e o "Livro de D. João

Teotónio - e no Museu Grão Vasco - como o "Livro da Noa". Segundo Saul

Gomes (2007, p. 250), dentre os códices que não foram produzidos pelo

mosteiro, estão o "Librum Sacramentorum", o "Librum Epistolarum" e um

"Officiale" doados pelo presbítero Mendo Rúbeo, em 1139. Além disso, há obras

patrocinadas como a de São Gregório, "Moralia in Iob", por Dona Teresa Soares

entre 1140 e 1150. Outras que Martinho Domingues mandou fazer à custa de

doações ao mosteiro como dois "antifanes nouos". Além disso, sabe-se que

estão perdidos dois saltérios de cônegos de Santa Cruz, um de Vicente Peres

7 Alexandre Herculano foi o intelectual responsável pela salvaguarda da biblioteca do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra no momento de sua extinção, em 1834. Ela ocorreu por meio de uma "Reforma eclesiástica" promovida pelo ministro e secretário de Estado, Joaquim Antonio de Aguiar, que mandou abolir todos os mosteiros, conventos, hospícios e casas de religiosos. Herculano foi o responsável pela organização e abrigo dos exemplares na Biblioteca Pública Municipal do Porto.

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Batalha (1195) e outro de Mócio Peres (1234). Além dos empréstimos sem

devolução, causas naturais foram responsáveis pelo desaparecimento destes e

de outros códices. Foi o caso de uma inundação ocorrida em 1411. Já os

empréstimos, segundo Saul Gomes (2007, p. 245), eram bastante frequentes

sendo o perigo do não retorno tão preocupante que antes de ser efetuado, era

feita a averiguação do valor do livro para que a pessoa ou instituição que o pegou

não o avariasse ou deixasse de devolver. Tudo isso nos leva a crer que o número

de exemplares da biblioteca de mão do mosteiro era maior do que a lista que

chegou até a contemporaneidade (SANTOS, 1988).

A grande maioria dos exemplares corresponde a livros litúrgicos e

religiosos, o que não é de se estranhar tendo em vista que se trata de uma

biblioteca monacal. Também é possível observar que a maioria dos códices

coimbrenses foi feita entre os séculos XII e XIII, momento áureo da produção

nos scriptoria monásticos portugueses.

À época de D. Manuel e pelo comando do bispo da Guarda e capelão-mor

do rei, D. Pedro Gavião, foi feita uma reforma na livraria litúrgica. Segundo D.

Nicolau de Santa Maria, este monarca:

mandou fazer muitos livros grandes de pergaminho de canto chão para o coro, de letra e ponto, que se pudesse cantar, e rezar por eles da maior distância do mesmo coro, de que alcançamos alguns com as ditas suas armas dos gaviões na ferragem de fora8.

Os livros de Santa Cruz de Coimbra eram mais simples em termos de

ornamentação. Apenas a bíblia e algumas obras selecionadas eram

encadernadas em couro e ouro e, para que isso ocorresse, o mosteiro precisava

contratar um ourives para fazê-lo. Eles também não possuíram grandes

especialistas em iluminura. Quando esta era necessária, o mosteiro contratava

iluminadores externos que impunham seu modo de desenhar segundo a escola

e o período aos quais eles pertenciam.

Com os indícios apresentados, pode-se dizer que a biblioteca de mão de

um dos principais mosteiros da época medieval portuguesa como a do Mosteiro

8 D. Nicolau de Santa Maria. Chronica da Ordem dos Conegos de S. Agostinho, Parte II, Livro IX, p. 275.

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de Santa Cruz de Coimbra é mediana. O Mosteiro de São Vicente de Fora, em

Lisboa, por exemplo, tinha 115 volumes por volta de 1250 (NASCIMENTO,

1985). Já o mosteiro de Alcobaça, como veremos, tinha 344 exemplares

anteriores a 1500 (NASCIMENTO, 1991). Se compararmos a outras bibliotecas

de mosteiros cistercienses pelo mundo no mesmo período, a biblioteca de Santa

Cruz seria considerada pequenina. No mesmo século XIII, em outras

localidades, esses mosteiros possuíam cerca de mil obras em sua posse.

Contudo, é importante lembrar que não havia apenas o armarium no

mosteiro de Santa Cruz. Existia, também, uma espécie de "biblioteca de igreja",

cuidada pelo sacristão como um tesouro, onde ficavam os livros litúrgicos do

cotidiano dos monges sobre os quais não temos conhecimento. Além disso,

havia os livros de "silêncio", ou a biblioteca do convento, cujas obras eram

principalmente a bíblia e os comentários de teólogos importantes. A listagem

dessa biblioteca também não chegou até nós.

D. Manuel I, de fato, não era só um monarca religioso, assim como a

maioria dos homens da nobreza medieval portuguesa, mas também era um rei

preocupado com os livros e a salvaguarda da cultura letrada. No início do século

XVI, este monarca promoveu uma reforma grandiosa nas livrarias dos dois

mosteiros abordados neste artigo. No caso de Santa Cruz, ele recebeu uma nova

casa da livraria com "13 braças de comprido e 46 palmos de largo". Segundo

Saul Gomes:

situava-se esta sobre a crasta nova (e por cima do palratório, de uma capela e da casa da lenha), claustro hoje desaparecido, mas paralelo ao do Silêncio. A biblioteca manuelina era toda forrada de bordos em três paineis com suas pechivas envitalamentos e cordões e felliteiras e ladrilhada de tigello, partindo com o cartório por hum portal de pedra. Era casa bem iluminada por luz natural (tem 4 frestas de pedraria da parte da crasta nova), refere uma descrição assinada pelo cartorário quinhentista D. Vicente; tem da parte do oriente quatro janelas ferradas e de parte do ponente outras tantas vidraças, descreve o conhecido texto da 'Descripçam e debuxo do moesteyro', de D. Francisco de Mendanha, datável de 1540 (GOMES, 2007, p. 329).

D. Manuel I soube empregar a cultura letrada em sua propaganda régia.

Além de mandar fazer diversos livros, este monarca também cuidou da estrutura

na qual eles eram conservados, fosse nos mosteiros ou no próprio arquivo da

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Torre do Tombo. A preservação da memória do reino era essencial para os

projetos políticos eduardino e manuelino e tinha como objetivos principais a

reafirmação da Dinastia Avisina e o papel de monarca cristão perfeito para a

sociedade portuguesa.

Santa Maria de Alcobaça

Apresentadas as obras pertencentes ao Mosteiro de Santa Cruz de

Coimbra, é necessário falar sobre àquelas pertencentes ao Mosteiro de Santa

Maria de Alcobaça. Esta instituição, sendo criada posteriormente ao mosteiro

coimbrense, foi palco de encontros políticos, leituras de letrados, escola de

religiosos e laicos, tendo sua biblioteca recebido visitas das mais variadas. É

impressionante a quantidade de obras encontradas nos códices de Alcobaça, o

que a historiografia tem negligenciado frente à afirmação da existência apenas

do número de códices e não do seu conteúdo. Dentre obras cuja autoria é

possível presumir e outras tantas sem autor definido existem 802 exemplares

completos e incompletos.

Este número prova que as livrarias dos mosteiros portugueses não foram

tão pequenas como se vem afirmando. A comparação entre as livrarias é sempre

feita entre grandes mosteiros europeus, conhecidos por sua erudição, escolas

monacais e influência por toda a Europa, mas ela é falha. É preciso compará-los

com mosteiros de origens semelhantes, em locais distintos da França e da

Península Itálica, o que nos faz crer que a produção monástica e o interesse

pelos livros eram mais significativos do que vem sendo apresentado pela

historiografia portuguesa.

Há algumas coincidências entre as obras dos dois principais mosteiros

que possuíam scriptoria na Baixa Idade Média portuguesa. Sabe-se que essas

instituições emprestavam exemplares uma a outra para que um determinado

livro fosse copiado em seu interior. Infelizmente, ainda temos poucos trabalhos

que comparem os títulos semelhantes entre os dois mosteiros, correspondendo

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a uma temática na qual os historiadores ainda podem se debruçar com bastante

originalidade nas pesquisas sobre a história do livro medieval em Portugal.

Alcobaça surge em meados do século XII. Os cronistas medievais dizem

que o mosteiro surgiu no dia dois de fevereiro de 1148, mas os historiadores

preferem a data de 1153 (NASCIMENTO, 1979). Ele pertencia à regra de São

Bento que prevê o equilíbrio harmônico de três atividades básicas: "opus Dei",

"lectio divina" e "opus manuum" (liturgia diária, meditação especulativa e afetiva

da palavra inspirada na Escritura e prática da pobreza inspirada no evangelho),

além do trabalho manual, muito caro ao scriptorium medieval.

De acordo com esta mesma regra que regia o monastério, a biblioteca

deveria possuir um número de livros que fosse suficiente para a leitura pública e

individual dos monges. No caso da leitura individual, esta ocorria de tempos em

tempos, como no caso da quaresma, onde cada monge recebia um códice para

ler por inteiro. Sendo assim, segundo estas exigências, era necessário que

existisse pelo menos um códice para cada monge.

O livro é extremamente importante para os mosteiros beneditinos. Ele

permite que as tarefas dos monges sejam feitas, ao mesmo tempo em que é

matéria da terceira atividade básica da regra de São Bento. De qualquer forma,

é importante a compreensão do conceito de livro para o mosteiro. Ele não é,

como hoje, considerado um mediador da erudição, mas um meio que auxilia a

prática de um tipo específico de vida cristã organizada por um abade e inspirada

na regra.

O que restou da biblioteca de Alcobaça hoje se encontra no fundo

Alcobacense da Biblioteca Nacional de Lisboa, mas é importante destacar que é

provável que tenham existido mais livros do que os que chegaram até o século

XXI. Nela, eles são divididos entre livros de espiritualidade, de liturgia, da vida

intelectual, de organização monástica, da imprensa no mosteiro de Alcobaça e

a biblioteca impressa do mosteiro. Neste trabalho, não interessam os livros da

imprensa do mosteiro de Alcobaça, uma vez que sua primeira prensa foi

estabelecida apenas no reinado de D. João III, o que ultrapassa o limite

cronológico proposto para análise. Sobre o último item, também só nos interessa

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o Sacramental (de Clemente Sanchez de Vercial), impresso em 1502 por João

Pedro de Cremona. Este é o único livro impresso no período de D. Manuel I, mas

cujo trabalho de impressão não foi realizado no mosteiro. Este fato é muito

importante. Ainda que a Imprensa tenha chegado à Portugal no período de D.

João II, ela só se estabelecerá nos mosteiros muito depois, não produzindo

nenhum incunábulo. Além disso, o Sacramental foi considerado um livro proibido

no reinado de D. João III, o que torna o mosteiro um espaço de guarda de livros

censurados pela Igreja, não condizendo com seu papel de instituição fiel aos

seus preceitos.

O mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, apesar de mais jovem que Santa

Cruz de Coimbra, possuiu tanto mais códices, como mais obras em sua

biblioteca de mão. Aires do Nascimento (1979), no entanto, acha que a biblioteca

do mosteiro de Alcobaça ainda era muito pequena. Mas, isto, depende do

parâmetro de comparação estabelecido. Obviamente, se compararmos com

grandes mosteiros europeus (como o mosteiro de Cluny, por exemplo), o número

de exemplares é bem pequeno. Mas se compararmos com outras bibliotecas

portuguesas do mesmo período, ela é a maior de todas. Além disso, ela não

deixa a desejar, também, a outros mosteiros menores de outras localidades da

Europa.

O fundo de Alcobaça possui 454 códices que foram produzidos entre os

séculos XII e XVIII. Aqui, procurou-se explorar apenas aqueles feitos até 1521,

último ano do reinado de D. Manuel I. Lembremos que um códice podia ter muito

mais de uma obra, ou uma obra pode estar contida em mais de um códice, o que

modifica substancialmente o olhar e a importância dados a esta biblioteca.

Dentre os códices, noventa e três eram de liturgia, sessenta e três eram

textos bíblicos e seus comentários, oitenta e quatro eram de patrística, quarenta

e seis eram obras hagiográficas e de espiritualidade cristã, quarenta e cinco

eram sermonários, quarenta e cinco eram livros escolares e mais de cinquenta

obras de direito, e de teologia cada um.

Não havia obras de recreação cultural, mas havia autores da antiguidade

como Laércio e Aristóteles. Além disso, alguns monges do mosteiro também

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foram autores, como João de Alcobaça, João Claro e Francisco Machado. Isto

significa que havia uma produção intelectual que deve ser mencionada no

mosteiro, para além das cópias feitas em seu Scriptorium.

Também se verifica a tradução de diversas obras do latim para o

português vulgar. É o caso da "Regra de São Bento"; dos "Diálogos" de S.

Gregório Magno; "Estabelecimentos dos mosteiros"; "Instituições", de João

Cassiano; "Escada Celestial"; "Sermão do pastor", de João Clímaco; "Vita

Christi", de Ludolfo de Saxónia; "Vergel da Consolação"; "Vidas de Santos";

"Castelo Perigoso" ou "Livro das Confissões de Martin Perez"; "O Collectum" ou

"Ajuntamento de boos dictos e palavras", de Santo Isidoro e "Speculum

Hebraeorum" de Frei João de Alcobaça.

Além dos códices já citados, é provável que alguns tenham se perdido.

Frei Fortunato de São Boaventura (s/d) afirma que existiram três códices de Frei

João Claro que desapareceram. Segundo o mesmo autor, o próprio Frei João

Claro afirmou que a biblioteca de Alcobaça, em meados do século XVI, tinha

menos de 600 exemplares. Não se sabe onde foram parar os livros faltantes,

pois o primeiro levantamento da biblioteca alcobacense se deu em 1775, com o

Index Codicum, que enumerou 476 exemplares, como já comentado. Também é

conhecimento dos pesquisadores que algumas obras saíram do mosteiro, tais

como "Antiquitates Iudaicae", de Flávio Josefo. Isto comprova que, tal como

Santa Cruz de Coimbra, o mosteiro emprestava exemplares que nem sempre

retornavam.

Outras práticas foram a de empréstimos, compras e trocas feitos pelo

próprio mosteiro. Sabe-se que o códice 2, de Pedro de Montemor, veio de Paris;

os códices 53, 54, 273 e 276 vieram de Lisboa; o códice 14, de São Paulo, veio

de Coimbra; o códice 143 veio de Lorvão; o códice 358 veio de Tarouca; o códice

279 veio de Salzedas; o 85 veio de Bouro; o 261 veio de Paris através de um

estudante cisterciense chamado Petrus de Hispania e o 182 veio de Arruda. É

importante notar a variedade de locais que o mosteiro mantinha um contato

letrado, o que condiz com sua importância no reino português. Além disso, é

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mais uma prova de que os monges não eram tão isolados assim, fazendo

negociações com outras instituições do mesmo gênero.

Ainda há poucas informações sobre as cópias realizadas no próprio

mosteiro. Aires do Nascimento (1979) aponta alguns indícios numéricos. Entre

1431 e 1446, teriam sido feitas onze cópias de códices escritos por Frei Bernardo

e por Frei Nicolau Vieira. No século XIII, um copista de nome João teria feito dez

códices e Pedro Soares teria escrito dez livros de missa.

Há poucos casos explícitos nos códices alcobacenses onde é possível

identificar detalhes como quem copiou, a mando de quem, com que objetivo,

etc.. Um dos casos emblemáticos foi o do "Livro das Colações dos Santos

Padres do Egipto", de João Cassiano, copiado no século XV. Logo no começo

da obra está escrito:

Explicit: Aqueste livro mandou trelladar o muyto honrrado e virtuoso padre dom Stevam d'Aguyar do Moesteiro d'Alcobaça, do Conselho del rey e seu smoler moor, per Frey Nicollaao monge do dito mosteiro. Porem peço a todos aquelles que per elle leerem pois foy feto pera salvaçom das almas que por o cuydado que o dito senhor tem de o mandar trelladar e por o trabalho que eu levey de o screpuer queiram por ele por mym devotamente dizer hua ave maria. Laus tibi Christe, quum liber explicit iste9.

Neste caso há tanto o copista, Frey Nicolau, como o mandante da

tradução, Dom Estevão de Aguiar que além de pertencer ao Mosteiro de

Alcobaça, era do Conselho do Rei e Esmoleiro-mor. Como prova da dificuldade

de fazer uma tradução manuscrita na Idade Média, o copista pede que aqueles

que lessem o livro rezassem uma "ave maria" por sua alma. Lembro aqui, que

neste caso, trata-se de uma tradução, mas que a palavra "Trasladar" pode

significar tanto a própria tradução, como apenas uma cópia (BOAVENTURA,

s/d). Sendo assim, para se ter certeza, é preciso verificar diretamente a fonte e

cruzá-la com outras do mesmo período. Nem sempre é possível chegar a esta

conclusão.

Sobre a relação do mosteiro com a dinastia avisina, ela pode ser verificada

desde o início da mesma. Segundo Maria Zulmira Albuquerque Furtado Marques

9 Códice 386, Fundo Alcobacense, Biblioteca Nacional de Lisboa.

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(1999), o próprio rei D. João I pediu aos cistercienses que traduzissem os

"Evangelhos", os "Actos dos Apóstolos", as "Epístolas de São Paulo" e "Vidas

de Santos". Já o "Conto de Gui de Warwik", que teria sido copiado no scriptorium

do mosteiro de Alcobaça, foi uma obra inglesa trazida por Dona Filipa de

Lencastre, personagem que fez o pedido da cópia. Durante o reinado de D.

Afonso V, o Frei Bernardo de Alcobaça teria traduzido a "Vita Christi", de Ludolfo

da Saxônia, à mando da rainha D. Isabel, esposa do monarca. E D. João II foi

mais além na importância dada ao mosteiro pelos reis avisinos. Era prática em

seu governo que o seu conselho se reunisse nas dependências desta instituição.

Maria Zulmira Marques (1999) demonstra que a partir do século XV há

uma diminuição na produção de códices. Mas os monges não param

completamente. Na passagem do século XV para o XVI, o scriptorium voltou a

ter uma atividade considerável. Em 1520, o abade Frei João Claro escreve ao

Rei D. Manuel I dizendo que a livraria do mosteiro possuía mais de 500 códices.

É interessante notar que este número também não condiz com o volume

apresentado neste trabalho, o que comprova, mais uma vez, que existiam mais

exemplares que, por algum motivo, ficaram perdidos. Nesta mesma carta, o

abade disse que os livros deveriam ser acessíveis a muitas pessoas, pedindo

providências para que os livros de Alcobaça pudessem "estar em lição", dizendo

que a livraria era frequentada não somente pelos monges, mas, também, por

"hóspedes letrados". É mais uma comprovação de que diversos estudantes,

homens cultos e mesmo cronistas do reino frequentavam seus aposentos. Foi o

caso de Damião de Góis, escritor da Crônica da vida de D. Manuel, que faleceu

a caminho do mosteiro de Alcobaça após ter sido libertado da acusação de

heresia, estando idoso e doente. É provável que este cronista fosse muito

próximo deste mosteiro, por isso havia decidido passar os últimos anos de sua

vida nesta instituição, o que reforça a ideia de que ele frequentou a livraria em

diversos outros momentos. A influência do mosteiro se nota, também, no

Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende, cujo narrador da segunda parte é uma

espécie de alcaide-mor de Alcobaça.

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D. Manuel I mandou fazer várias obras no mosteiro10 e colocou dois de

seus filhos como seus abades, os infantes D. Henrique e D. Afonso. Com isso,

é possível notar que Alcobaça manteve sua influência por mais tempo que o

mosteiro de Coimbra. Ele também manteve o scriptorium funcionando por um

período mais longo, tendo produzido um número maior de exemplares. Alguns

deles são semelhantes aos que encontramos na biblioteca de mão do mosteiro

de Santa Cruz. Não há como ser negligente não apontando a importância dessas

livrarias nas práticas de leitura e na construção de coleções da baixa idade média

portuguesa. A principal fonte deste artigo é o Inventário dos códices

albobacenses da Biblioteca Nacional de Lisboa (NASCIMENTO, 1978), mas a

análise foi focada nas obras produzidas até 1521.

Importante salientar que há alguns equívocos no inventário mencionado.

O primeiro deles é que alguns códices possuem mais de uma temporalidade. É

o caso, por exemplo, dos números 424, 425 e 426 que foram colocados ao

mesmo tempo no final do século XII e no início do XIII. Obviamente são poucos

anos de distância, mas trata-se de um fator indispensável na datação de uma

obra. Neste caso, um mesmo códice pode ter obras que foram feitas em períodos

distintos, mas o inventário não faz esta distinção importante. Outro problema do

inventário é a ausência de informações dos códices 365 [1190 ca,], 188 [século

XIII], 422 [início do século XIII], 43 [entre os séculos XIII e XIV], 371 [início do

século XIV], 47 e 190 [século XV], 231 [1414-1427], 67 [1442] e 278 [1444].

Esses códices numerados na lista cronológica do inventário não existem na lista

de títulos, confundindo os pesquisadores da história do livro em Portugal. Afinal,

eles existiriam mesmo ou foi um equívoco dos pesquisadores? O mesmo ocorre

com as repetições? Infelizmente são dúvidas que não temos ainda como

responder.

10 Para mais informações sobre o assunto, ver a tese: FERRO, Carolina Chaves. As livrarias régias de D. Duarte e de D. Manuel I – um estudo comparativo: construções de coleções e práticas de leitura em Portugal entre 1433 e 1521. (Tese de Doutorado). Departamento de História, Niterói: Universidade Federal Fluminense, 424f.

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Conclusão

Além dos famosos scriptoria citados, é possível destacar outras formas de

produção manuscritas que adentraram os reinos lusos. Destacam-se as

produções dos demais mosteiros menos influentes; profissionais da escrita que

trabalhavam, sobretudo, para a universidade; homens nobres próximos ao rei

que faziam cópias sob sua ordem, produção dos próprios membros da família

real, escritos por um letrado de sua confiança e encomendas a ateliês

estrangeiros, como o caso dos livros de horas.

Sobre os dois mosteiros destacados, não se deve confundir número de

códices com número de obras. Num mesmo códice é possível encontrar muito

mais de uma obra e uma obra pode estar contida em muitos códices. Sendo

assim, afirma-se que em Santa Cruz de Coimbra, havia 192 obras completas e

incompletas. Já em Alcobaça, existiam 802 obras completas e incompletas que

temos conhecimento, sendo 40 delas exemplares semelhantes aos que tinham

em Santa Cruz de Coimbra e 762 originais de Alcobaça. Este número referente

ao mosteiro alcobacense é equivalente a quase o dobro do número de códices

existentes. Significa que tantos seus monges como os "homens letrados" que

frequentavam sua livraria tinham acesso a inúmeras obras frequentemente

utilizadas no período em Portugal e em outros locais da Europa.

Ainda que o número de obras de Alcobaça seja bastante superior ao

número de obras de Santa Cruz de Coimbra, cabe ressaltar o caráter pioneiro

do segundo mosteiro. Foi em Coimbra onde se estabeleceu o primeiro

scriptorium medieval português e onde Alcobaça conseguiu suas primeiras obras

importantes para o cotidiano dos monges beneditinos.

Outro fator importante é que o número de exemplares semelhantes entre

os dois mosteiros - se compararmos com a totalidade de obras de Coimbra - é

bastante considerável. Mesmo assim, é provável que a biblioteca de mão de

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Alcobaça tenha sido mais utilizada pelos cronistas e homens letrados da dinastia

avisina que a do mosteiro coimbrense.

Por último, não há como negar a influência desses dois centros religiosos

e de saber da Idade Média portuguesa. Muitos estudos foram realizados em seu

interior e, por este motivo, as obras que lá existiam influenciaram muito mais os

homens letrados portugueses do que outros exemplares que possam ter

entusiasmado os homens de letras dos outros reinos. Muitas delas foram,

inclusive, utilizadas nas crônicas medievais, nas obras escritas pelos príncipes

da Dinastia de Avis e estavam presentes em suas livrarias. Ressalta-se também,

a inexistência da imprensa no período proposto para esta análise, sendo esta

arte implementada nos mosteiros apenas no reinado de D. João III.

Como foi possível verificar, não há como estudar as práticas de leitura, a

história do livro e das bibliotecas medievais sem uma apuração interdisciplinar.

Se os medievalistas já realizam essa discussão em suas pesquisas escritas e

em apresentação em congressos do gênero, ainda é necessário que a troca seja

mais efetiva. A necessidade de parcerias, grupos e núcleos de estudos

interdisciplinares e congressos que promovam essas discussões ainda se faz

presente. Quem sabe num futuro próximo?

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