As lutas sociais dos trabalhadores ... - Análise...

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Análise Social, vol. XVI (61-62), 1980-l.º-2.º, 135-l56 José Pacheco Pereira As lutas sociais dos trabalhadores alentejanos: do banditismo à greve 1. INTRODUÇÃO A criminalidade e o banditismo assumem no Alentejo as características de uma forma de revolta social latente e, mesmo nalguns casos, entroncam, enquanto movimento social arcaico, em formas modernas de agitação e acção social e política. Antes das greves de 1910-11, a criminalidade e o banditismo são mesmo a manifestação mais saliente da luta dos trabalha- dores rurais, assumindo principalmente as formas dominantes do roubo, da violência contra a propriedade (fogo posto em par- ticular), da vadiagem, da violência contra pessoas (agressões e homicídios). A investigação sobre a criminalidade no Portugal oito- centista está em grande parte por fazer. Para além das conhecidas insuficiências documentais, em particular estatís- ticas, encontrar-se-á no caso do Alentejo uma dificuldade suple- mentar: o facto de um número elevado de crimes passarem completamente à margem das instituições administrativas e policiais e por isso não conheceram registo criminal. Nesta matéria, o Alentejo é uma província «selvagem», em cujos campos a lei e a autoridade pouco entravam. Isto encorajava o crime, como muitos observadores locais se queixavam, e favorecia a vingança e a justiça privada. No entanto, existe um conjunto de fontes que poderiam ser convenientemente investi- gadas, incluindo os arquivos camarários e das companhias de seguros (para crimes como o fogo posto) e da imprensa local. Se os dois primeiros permitirão obter uma visão esta- tística mínima e esboçar uma tipologia da criminalidade, a imprensa tem um interesse particular porque revela, por via do comentário, as características sociais da criminalidade. Existe, no entanto, o óbice da escassez e pouca periodicidade da imprensa local para o século xix e a sua centralização nas capitais de distrito. * Escola Secundária Infanta D. Maria, Coimbra. 135

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Análise Social, vol. XVI (61-62), 1980-l.º-2.º, 135-l56

José Pacheco Pereira

As lutas sociaisdos trabalhadores alentejanos:do banditismo à greve

1. INTRODUÇÃO

A criminalidade e o banditismo assumem no Alentejo ascaracterísticas de uma forma de revolta social latente e, mesmonalguns casos, entroncam, enquanto movimento social arcaico,em formas modernas de agitação e acção social e política.

Antes das greves de 1910-11, a criminalidade e o banditismosão mesmo a manifestação mais saliente da luta dos trabalha-dores rurais, assumindo principalmente as formas dominantesdo roubo, da violência contra a propriedade (fogo posto em par-ticular), da vadiagem, da violência contra pessoas (agressõese homicídios).

A investigação sobre a criminalidade no Portugal oito-centista está em grande parte por fazer. Para além dasconhecidas insuficiências documentais, em particular estatís-ticas, encontrar-se-á no caso do Alentejo uma dificuldade suple-mentar: o facto de um número elevado de crimes passaremcompletamente à margem das instituições administrativas epoliciais e por isso não conheceram registo criminal. Nestamatéria, o Alentejo é uma província «selvagem», em cujoscampos a lei e a autoridade pouco entravam. Isto encorajavao crime, como muitos observadores locais se queixavam, efavorecia a vingança e a justiça privada. No entanto, existe umconjunto de fontes que poderiam ser convenientemente investi-gadas, incluindo os arquivos camarários e das companhias deseguros (para crimes como o fogo posto) e da imprensa local.

Se os dois primeiros permitirão obter uma visão esta-tística mínima e esboçar uma tipologia da criminalidade, aimprensa tem um interesse particular porque revela, por viado comentário, as características sociais da criminalidade.Existe, no entanto, o óbice da escassez e pouca periodicidadeda imprensa local para o século xix e a sua centralização nascapitais de distrito.

* Escola Secundária Infanta D. Maria, Coimbra. 135

Nesta primeira abordagem da questão da criminalidadealentejana utilizamos principalmente as estatísticas dos últimosdez anos do século Xix e a imprensa local, inclusive dos pri-meiros anos do século xx, época em que surgiram vários jor-nais alentejanos ao nível concelhio, que permitem ter uma visãoglobal dos actos criminosos e das implicações sociais que ti-nham.

Embora o trabalho trate em geral da criminalidade e dobanditismo no Alentejo, referimo-nos quase sempre ao distritode Évora, sobre o qual possuímos a maioria dos dados signifi-cativos e que é, do ponto de vista social, o mais interessante,dada a esmagadora percentagem de trabalhadores rurais emrelação ao conjunto da população. Para além disso, referimo--nos, salvo indicação em contrário, à criminalidade masculina,dado que a criminalidade feminina não é significativa no Alen-tejo, quer de um ponto de vista global, quer socialmente.

A noção de crime que utilizamos neste trabalho é a quecorresponde à ideia vulgar do termo: comportamento que violaa lei estabelecida e que é, por isso, susceptível de sanção. Estadefinição de crime não é isenta de ambiguidades e simplismos,mas pode ser utilizada como ponto de partida. Na realidade,a noção empírica de crime é ela própria o resultado de umprocesso social cuja expressão jurídica nem sempre corres-ponde ao consenso comum (o que é verdade para crimes comoo contrabando). Na referência a crimes concretos utilizamosa classificação jurídica existente nas estatísticas criminaisutilizadas.

2. ASPECTOS GENÉRICOS DA CRIMINALIDADE ALEN-TEJANA

A observação e a análise das estatísticas criminais mascu-linas para os anos 1891-95 no distrito de Évora revela algumasdas características próprias da criminalidade alentejana \

Note-se, em primeiro lugar, que, quer em termos absolutos,quer em termos relativos, a criminalidade no distrito de Évoratem uma importância relevante no conjunto da criminalidadeportuguesa. O crime é no Alentejo um aspecto importante da«paisagem» social, como muitos relatos testemunham e asestatísticas confirmam.

De 1891 a 1895, Évora encontra-se em 3.° lugar, ao nívelnacional, em número de criminosos masculinos julgados e con-denados por 1000 habitantes, imediatamente a seguir aosdistritos e às comarcas da cidade de Lisboa (cf. quadro n.° 1).

Percentualmente, Évora encontra-se acima da média nacio-nal: 6,9 criminosos/1000 habitantes, acima dos 5,96/1000 habi-tantes da média nacional. Saliente-se que a criminalidade é

1 As indicações estatísticas são, salvo indicação em contrário, retiradasde Alfredo Luís Lopes, Estudo Estatístico da Criminalidade em Portugal

186 nos Annos de 1891 a 1895, Lisboa, 1897.

quase exclusivamente masculina, dado que a percentagem demulheres criminosas por 1000 habitantes é das mais baixas doPaís e inferior à média nacional. Para além disso, a esmagadoramaioria dos criminosos que são julgados e condenados nodistrito de Évora são daí naturais.

Proporção de criminosos julgados e condenados por cada 1000 habitantes(1891-95)

[QUADRO N.° 1]

Homens

Distritos

Mulheres

Distritos

j . b íDistritos da cidade• • \ Restantes comarcas

ÉvoraPorto (distritos da cidade) ...BragançaBragaBejaSantarémGuardaPorto (fora os distritos da

cidade)AveiroCastelo BrancoViseuParoVila RealPortalegreLeiriaCoimbraViana

Média

19,37,16,96,76,25,75,24,84,6

4,5

4,4

4,34,14,03,43,33,0

5,96

Lisboa (distritos da cidade)Porto (distritos da cidade) ...BragançaVila RealAveiroBragaPorto (fora os distritos da

cidade)ViseuCastelo BrancoGuardaVianaCoimbrafivoraLisboa (fora os distritos da

cidade)SantarémBejaFaroLeiriaPortalegre

Média

5,92,11,61,51,4

1,3

1,0

0,9

0,7

0,60,5

0,4

1,44

Fonte: Alfredo Luís Lopes, Estudo Estatístico da Criminalidade em Portugalnos Anos de 1891 a 1895, Lisboa, 1897.

Classificando por ordem os distritos conforme a percenta-gem de criminosos que daí são naturais, Évora vem em 2.°lugar, depois de Bragança. (Ver quadro n.° 2.)

Esta situação, no último decénio do século xix, não se vaialterar significativamente nos anos seguintes. À data da im-plantação da República, Bvora encontra-se em 2.° lugar nonúmero de réus condenados em relação à população residente,imediatamente a seguir a Lisboa, e, se se tiver em conta só a 137

população com mais de 14 anos, está em 1.° lugar, eoc-aequo comLisboa, com 5,12 condenados por 1000 habitantes2.

Muitos outros indicadores revelam a importância da crimi-nalidade alentejana, em particular no distrito de Évora. Évoraestá em 1.° lugar na proporção entre as penas maiores por1000 condenações, como se pode observar pelo quadro n.° 3.O número de condenações masculinas a pena maior é de 31,6por 1000, o dobro da média nacional, de 15,0, e muito acimado 2.° lugar, Leiria, com 25,7.

Classificação dos distrito» por ordem de criminosos daí naturais(1891-95)

[QUADRO N.o 2]

Homens

Classificação dosdistritos pela

ordem numéricadecrescente dos

crimes nelespraticados

Lisboa.fivora.Porto.Bragança.Braga.Beja.Santarém.Guarda.Aveiro.Castelo Branco.Viseu.Faro.Vila Real.Portalegre.Leiria.Coimbra.Viana.

Classificação dosdistritos pela

ordem numéricadecrescente doscriminosos deles

naturais

Bragança.Évora.Beja.Braga.Lisboa.Aveiro.Guarda.Faro.Porto.Portalegre.Viseu.Santarém.Castelo Branco.Vila Real.Coimbra.Leiria.Viana.

Mulheres

Classificação dosdistritos pela

ordem numéricadecrescente dos

crimes nelespraticados

Lisboa.Porto.Bragança.Vila Real.Aveiro.Braga.Viseu.Castelo Branco.Guarda.Viana.Coimbra.Évora.Santarém.Beja.Faro.Leiria.Portalegre.

Classificação dosdistritos pela

ordem numéricadecrescente dascriminosas deles

naturais

Bragança.Aveiro.Vila Real.Braga.Porto.Viseu.Lisboa.Castelo Branco.Coimbra.Bvora.Guarda.Viana.Beja.Portalegre,Faro.Leiria.Santarém.

Fonte: ver quadro n.° 1.

138

Mas parte da importância de Évora no conjunto da crimi-nalidade nacional vem também do facto de este distrito serum daqueles a que mais afluem criminosos que dele não sãonaturais, factor que não é arriscado associar aos movimentosinternos de população associados com os trabalhos agrícolase que distinguem a região alentejana do conjunto do País.Assim, Évora é o 2.° distrito, sendo Portalegre o 3.°, depoisde Lisboa e antes do Porto, por ordem de afluência de homensresponsáveis por crimes, ao nível nacional (ver quadro n.° 5).

a Anuário Estatístico de Portugal, 1910-14, vol. n, fase. 1, 1917.

Proporção de penas maiores por 1000 condenações (1891-95)

[QUADRO N.o 3]

Distritos SexosNúmero totaldos criminosos

Númerodas

condena-ções apenas

maiores

Proporçãode penasmaiores

para cada1000 con-denações

Aveiro

Beja

Braga

Bragança

Castelo Branco

Coimbra

Évora ...

Faro

Guarda

Leiria

r Comarcas da cidadeLisboa, l

[Restantes comarcas

Portalegre

f Comarcas da cidade

[ Restantes comarcas

Santarém

Viana

Vila Real

Viseu

Porto....

HomensMulheresHomensMulheresHomensMulheresHomensMulheresHomensMulheresHomensMulheresHomensMulheresHomensMulheresHomensMulheresHomensMulheresHomensMulheresHomensMulheresHomensMulheresHomensMulheresHomensMulheresHomensMulheresHomensMulheresHomensMulheresHomensMulheres

Soma do continente

3 271

2131

4 392

2 836

2 261

2 481

2120

2 517

2 810

1865

16192

5 352

1168

4 627

2 644

3 030

1407

2 382

4 006

67 492

1167

202

1378

700

551

806

212

325

649

233

4 801

525

125

1597

952

421

632

958

1373

73

35

63

58

38

25

67

17

51

48

201

62

18

32

38

32

30

47

78

17 007 1013

11

2

4

8

11

7

4

4

4

3

21

1

6

8

11

5

3

9

14

21,7

16,4

14,3

20,4

16,7

10,0

31,6

6,7

18,1

25,7

11,7

15,3

6,9

10,5

21,3

19,7

19,4

136 15,0

9,4

9,9

2,9

1,1

1,9

8,6

18,8

12,3

6,1

12,8

^ 3

1,9

48,0

5,0

11,5

11,8

4,7

9,3

10,1

7,7

Fonte: ver quadro n.° 1.

É difícil, dadas as deficiências das estatísticas, atribuir comclareza os crimes na região que estudamos a classes sociaisespecíficas.

O tipo de classificação utilizada nas estatísticas para aprofissão é pouco exacto e baseado no carácter da actividadeprofissional, classificando-se como «agricultores» todos os quetinham qualquer relação com a terra, fossem eles «lavradores»ou trabalhadores rurais, (ver quadro n.° 4) 139

Mapa indicativo das profissões dos criminosos condenados no continente durante o quinquénio de 1891 a 1895

[QUADRO N.o 4]

Distritos Sexos

Profissões dos criminosos

O

Total

Aveiro

Beja

Braga

Bragança ...

Castelo Branco

Coimbra

Évora ,

Paro

Guarda

Leiria

HomensMulheresHomensMulheresHomensMulheresHomensMulheresHomensMulheresHomensMulheresHomensMulheresHomensMulheresHomensMulheresHomensMulheres

1402429859

431395

4301288

13633520

68099

6249

33011

81816443928

36892

2152

130414213539

2479

40336

2032

2714

18012754

10633297

8612152

27

5222232

321

422

39

22363

1146

36185

37168

27139

4038531

23218

439135223

9

8

27

45

8

311

251

14

27

20

18

8

10

3021

14

8

7

416

11055527831136

1006578997338

1240443812540939171

1490234

1197313890157

2982678847561814531410972715379

1037

7215201772216618125399

150211044171147628

3 27111672131202

4 39213782 836700

2 264551

2 481806

2 120212

2 517325

2 810649

1865233

Distritos Sexos

Profissões dos criminosos

i Total

í Comarcas da cidadeLisboa..!

[ Restantes comarcas

Portalegre

í Comarcas da cidadePorto . . .]

[ Restantes comarcas

Santarém

Viana

Vila Real

Viseu

Soma

HomensMulheresHomensMulheresHomensMulheresHomensMulheresHomensMulheresHomensMulheres

f Homens* \ Mulheres

í Homens' 1 Mulheres

í Homens' l Mulheresf Homens' 1 Mulheres

83135

1695152049

43171831296

129932

728272823231

1837650

2 052491961

742

510487872143966

28043

2182749054

7669595319

94534411005787

4468619

5085131217316

137212347730119465

521194741208

1019

43

16

286

41

18

21

191

263

3

1

8

91

11

12

892

6 6953 2172 770463696103

2 5461321516258854333201241677470554337

1560613421392

17668704121131630492115256

2 49874119613

1183

69756622430132529238

8747

10 8503 090

8 404792

1827262

54991106

1480 4146

25 98610180

2 590931

4 4421171

161924 8015 352575

1168125

4 62715972 644952

3 030421

1407632

2 382958

4 0031373

67 49217 607

Fonte: ver quadro n.° 1.

15

Afluência de homens reaponsóveis por crime» (1891-95)

[QUADRO N.o 5]

Distritos Homens

78,681,180,826,4

132,978,5

316,047,041,6

123,8568,4214,1209,7165,078,882,228,1

Mulheres

61,694,087,034,2

123,444,6

178,346,132,398,7

648,396,4

193,0213,7

38,382,917,4

AveiroBejaBragaBragançaCastelo Branco ...CoimbraÉvoraFaroGuardaLeiriaLisboaPortalegrePortoSantarémVianaVila RealViseu

Total 257,7 261,6

Fonte: ver quadro n.° 1.

Mas, aqui, os relatos da imprensa local fornecem-nos ele-mentos decisivos que comprovam o papel marcante dos traba-lhadores rurais, em particular dos «maltezes». Os relatos dostribunais de polícia estão cheios de réus cujos nomes e alcunhasrevelam a sua pertença ao proletariado rural: nomes e alcunhasrelacionados com a terra (Montemor, Cabrela) ou com ins-trumentos de trabalho e de uso comum (o Azogue, o Polona,o Beca, etc.)*.

A análise dos aspectos gerais da criminalidade no distritode Évora e da sua importância ao nível nacional ainda pouconos diz sobre o carácter «social» dessa criminalidade, se bemque o número global de crimes já seja revelador de desequilí-brios sociais profundos.

No entanto, a análise mais detalhada das estatísticas, emparticular do tipo de crimes cometidos em relação uns com osoutros e com outras regiões do País, mostra as característicassui generis da criminalidade alentejana. Assim, comparandoa importância relativa dos crimes entre Lisboa-cidade e o dis-trito de Évora, verifica-se a maior importância global doscrimes contra a propriedade (furto, roubo, dano e outros contraa propriedade) em Évora (quadro n.° 7).

A nível nacional o distrito de Évora salienta-se pela impor-tância de dois tipos de crimes em número absoluto: a vadiageme o roubo (ver quadro n.° 6).

8 Lacerda Machado, «Onomasticon do Alto Alentejo», in ArquivoIlf2 Transtagano, n.° 1, 15 de Janeiro de 1934.

Tipos de crime por ordem de importância (1891-95)

[QUADRO N.o 7]

Lfisboa-cidade

Ferimentos e ofensas corporais.Desobediência à autoridade.Furto e subtracção.Vadiagem.Embriaguez.Outros (contra a segurança do Es-

tado).Outros (contra a propriedade).Difamação e calúnia.Outros (contra as pessoas).Dano.

Évora

Ferimentos e ofensas corporais.Outros (contra a segurança do Es-

tado).Furto e subtracção.Desobediência à autoridade.Vadiagem.Outros (contra as pessoas).Roubo.Outros (contra a propriedade).Difamação.Dano.

Fonte: ver quadro n.° 1.

3. VADIAGEM

A vadiagem é um crime alentejano por excelência, estandoÉvora em 3.° lugar, Portalegre em 4.° e Beja em 6.°, só ultra-passados pelas duas principais cidades, Lisboa e Porto, ondeo «vadio» urbano é com certeza muito diferente do «vadio»rural (ver gráfico e quadro n.° 8).

Distribuição percentual do crime de vadiagem par níveis etários(Lisboa-cidade e Évora) (1891-95)

60

50

40

30

20-

10-

-18 18-20 20-25 25-30 30-35 35-40 40-45 45-50 50-55 55*60 + 60IDADES

Ponte: ver quadro n.° 1.

Crimes de vadiagem no cantinente português durante o quinquénio de 1891 a 1895(Idade e sexo dos condenados e distritos onde foram cometidos os crimes)

[QUADRO N.« 8]

Distritos

Aveiro <

Beja

Braga

Bragança

Castelo Branco

Coimbra <

Évora

Faro

Guarda -

Leiria

Sexos

HomensMulheresHomensMulheresHomensMulheresHomensMulheresHomensMulheresHomensMulheresHomensMulheresHomensMulheresHomensMulheresHomensMulheres

Anos de idade

Men

os d

e 18

4

61

4

62

17

1

9

11

De

18 a

20

5

6

13

1

3

91

14

3

De

20 a

25

214

412

5

2

20

2

4

2D

e 25

a 3

0

317

61

2

1

621

De

30 a

35

318

22

3

1

20

1

De

35 a

40

3

6

41

2

9

De

40 a

45

212

2

1

1

7

1

De

45 a

50

1

1

1

1

2

De

50 a

55

1

1

1

1

De

55 a

60

E1

1

Mai

s de

60

1

MI

NI

Des

conh

ecid

os

1

_

Total

244

35

4065

22

193

15313

17

41

Distritos

f Comarcas da cidade ... <Lisboa...]

( Restantes comarcas ...

Portalegre

f Comarcas da cidade ...Porto ... i

[ Restantes comarcas ...

Santarém

Viana

Vila Real ,

Viseu

Soma ... J

Sexos

HomensMulheresHomensMulheresHomensMulheresHomensMulheresHomensMulheresHomensMulheresHomensMulheresHomensMulheresHomensMulheres

HomensMulheres

Anos de idade

Men

os d

e 18

5285931

6

398

7

3

1

3

3

102863

De

18 a

20

433302416

116

8

3

3

1

4

65232

De

20 a

25

85421152

20

6919

4

1

1

52026

De

25 a

30

2811381

23

38

611

1

1

44017

De

30 a

35

1499

11

25

2

1

22612

De

35 a

40

8855

10

6

2'12

1

1387

De

40 a

45

5811

7

II

I 1

oo |

1

912

De

45 a

50

311

6

1

1

451

De

50 a

55

10

5

19

De

55 a

60

8

1

4

1

1

161

Mai

s de

60

3i

1

3

1

9

Des

conh

ecid

os

4

MI

NI

. —

5

Total

1 9 4 7139

864

101

6611

343

15

8

5

10

3189162

Fonte: ver quadro n.° 1.

O «vadio» alentejano é homem na chamada «pujança» davida: entre os 25 e os 30 anos. Observando a distribuição etáriado crime de vadiagem no distrito de Évora este distribui-sequase exclusivamente no período de maior aptidão para otrabalho (40,5 % dos «vadios» têm 25-30 anos), o que contrastacom uma mais equilibrada distribuição da vadiagem em Lisboa(apenas 17,2 % dos vadios tem 20-25 anos e 5,6 % tem 25 a30 anos). A vadiagem é em Lisboa um delito mais juvenil doque no Alentejo.

Todos os testemunhos que possuímos sobre o Alentejo, desdeo fim do Antigo Regime, abundam em referências à vadiagem,que era considerada a base da restante criminalidade.

Assim, no Mapa Histórico e Político, de 1795, referem-seaqueles que passam a sua vida em «uma continuada miséria,entregando-se a vícios próprios da indigência e da ociosidade»4.Numa memória inédita existente na Biblioteca Nacional deLisboa, de 1788, refere-se o «incrível número de celibatáriosque vagam por toda a parte, entregues ao ócio e à prostitui-ção»5 e numas Memórias para o Melhoramento da Agricultura,escritas em 1821, fala-se do «contínuo giro em que anda aimensa cáfila de vagabundos, que, sem domicílio, nem ocupaçãoalguma, tendo na maior parte robustez para todo o trabalho,se fazem pesadíssimos aos lavradores, que se não podem dis-pensar de os sustentar pelo receio de serem por eles insultados,ou em suas casas, ou nas suas searas, pastos e palheiros, a queeles com facilidade põem fogo»6.

Nestas Memórias passa-se muito significativamente dosvagabundos para os lobos, cujos malefícios e caça são quasedo mesmo modo exigidos.

Nos livros do Prof. Silbert faz-se uma síntese de váriasreferências deste tipo, dispersas em textos de Henriques daSilveira, Gervásio Almeida Pais, Alberto Carlos de Meneses,etc. Todos são unânimes em descrever o Alentejo como umaprovíncia em que existe uma abundante «classe de homens semdomicílio fixo, sem profissão, que vivem às custas dos lavra-dores», homens esses que vêm a ser conhecidos no futuro comomalteses7.

A imprensa dos primeiros anos do século xx continua estecoro de protestos contra os malteses. As queixas são perma-nentes: «são contínuos os roubos pelos campos»8; «a pragados malteses [...] agora infestam a freguesia de Cabrela»9;

4 Aurélio de Oliveira, Mappa Histórico e Politico do Reyno de PortugalOfferecido a 8. A. R. o Príncipe N. 8. por José Maria de Lucena —1795,Porto, 1974.

8 Obra citada, p. 80.6 Fernando Castelo Branco, «Subsídios para o estudo do problema

agrário no Alentejo nas primeiras décadas de oitocentos», in Arquivosdo Centro Cultural Português, vol. IV, pp. 338-355, 1972.

7 Albert Silbert, Le Portugal Méditerranéen à Ia fin de Vancien regimeXV1I1 — début du XIX siècle — Contribution à Vhistoire agraire comparée,Paris, 1966, pp. 822-838.

8 Folha do Sul de 8 de Janeiro de 1910.Ilf6 • Ibid., de 12 de Janeiro de 1910.

«os malteses e os ciganos [...] constituíram este ano aindamaior flagelo que anteriormente»10; «os gatunos andam desen-freados por estas paragens — S. Cristóvão»11; «a maltesariaé a praga daninha da agricultura»12, etc.

A actuação destes bandos é característica:

«É por de mais o desaforo desses vagabundos, que aosbandos assaltam os montes e ali exigem o sustento diá-rio 13

Os amigos do alheio (a maltesaria) usam agora dumestratagema: munidos de uma foice, andam de monte emmonte a pedir trabalho, que eles sabem não existir. Maspedem também comida e, se esta lhes é recusada, ameaçamos lavradores de grandes prejuízos» 14.

Os malteses, trabalhadores rurais durante as ceifas, vaga-bundos o resto do ano, são responsáveis por numerosos roubos,atentados pessoais, incêndios de searas, rixas, extorsão de co-mida e outros crimes, cuja fronteira entre criminalidade indi-vidual e social, sendo difícil de traçar para cada caso concreto,é nitidamente de carácter social se a analisarmos no seuconjunto. Aliás, assim o reconhecia o I Congresso Agrícola(1888), exprimindo a opinião dos lavradores contra este estadode coisas: «[...] estabelece-se a exploração da propriedade deoutrem como indústria independente da vontade do proprie-tário» e pedindo a «enérgica repressão dos vadios, incluindo osCiganos, que tanto incomodam os proprietários, e muito espe-cialmente no Alentejo e Ribatejo»15.

4. O ROUBO

O roubo é um dos aspectos da criminalidade alentejana queno século xix mais escapa às estatísticas, dado que a esmaga-dora maioria dos roubos são feitos ou sem se descobrir oautor, ou com autoria colectiva, difícil de levar a tribunal ouà polícia. No I Congresso Agrícola de 1888, os lavradores quei-xavam-se dessa realidade: «[...] o roubo dos frutos, lenhas ematos é bastante frequente e feito em condições de muitodifícil prova quanto à pessoa ou pessoas delinquentes.»16

No entanto, para o distrito de Évora, o número de roubosque levaram a condenações, em relação ao conjunto da popu-lação, é também elevado: Évora fica em 3.° lugar só depois deLisboa e Porto (ver quadro n.° 9).

10 Meridional de 19 de Fevereiro de 1911.11 Folha do Sul de 2 de Agosto de 1911.12 Ibid. de 1 de Julho de 1911.13 Ibid. de 19 de Janeiro de 1911.14 Ibid. de 1 de Julho de 1911.15 Documentos Relativos ao Primeiro Congresso Agrícola Celebrado

em Lisboa em Fevereiro de 1888, Lisboa. 1888, pp. 91-92.- Ibid. 147

is

Crimes de roubo no continente português durante o quinquénio de 1891 a 1895(Idade e sexo dos criminosos e distritos onde foram cometidos os crimes)

[QUADRO N.° 9]

Distritos

Aveiro -

Beja ...

Braga

Bragança

Castelo Branco

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Évora

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Fonte: ver quadro n.<> 1.

Se dispuséssemos de uma estatística da frequência de roubospor mês, veríamos, como é nítido na imprensa local, que o roubose distribui sazonalmente, acompanhando as crises de trabalho.O roubo, no Inverno, é tido como uma necessidade inteiramentejustificada pela sobrevivência, nada mais restando aos traba-lhadores rurais, acossados pela fome e pela miséria, do que«ir buscar onde o houver».

Embora o roubo fosse socialmente condenado e os própriostrabalhadores rurais, como Cutileiro mostrou, o considerassemcondenável17, nem por isso deixavam de, em concreto, o acharjustificado, mostrando um desprezo pelo carácter sacrossantoda propriedade, o que preocupava os agrários, mais do que omontante dos roubos.

O que referimos anteriormente quanto à vadiagem mostra--nos a sua estreita relação com o roubo, como quase todos ostestemunhos comprovam. A imprensa revela-nos que os pro-dutos roubados são, na maioria dos casos, associados com asobrevivência da população rural: comida em primeiro lugar,depois vestuário e, por fim, dinheiro. Nos olivais e montadoseram roubados produtos agrícolas (lenha, frutos, etc) , porcose cavalos.

5. (FOGO POSTO

Mais ainda do que o roubo, o fogo posto escapa à identifi-cação dos seus autores, e por isso não são significativas asestatísticas existentes sobre este tipo de crime, que todos ostestemunhos indicam ser vulgar no Alentejo.

O fogo posto tem um papel relevante na luta social dostrabalhadores alentejanos e existiu sempre como ameaça la-tente sobre os latifundiários desde o século xix, ao pós-25 deAbril.

Aliás, a utilização deste meio de pressão e vingança écomum noutras regiões latifundiárias, como a Andaluzia, ouassociado a movimentos sociais rurais, como é o caso do movi-mento do capitão Swing, em Inglaterra18.

O fogo posto é um típico crime social, até porque é quasesempre um acto de violência gratuita, sem benefícios imediatospara quem o pratica, funcionando como uma arma dos pobrescontra a riqueza e o poder. O fogo posto era utilizado com trêsobjectivos principais: servir como ameaça latente em acordossalariais, impedir a utilização de máquinas e vingar as prepo-tências e injustiças cometidas pelos lavradores.

O primeiro caso é o mais vulgar: a ameaça do fogo postoestá presente na negociação dos salários. Em 1911, por exemplo,os grevistas ameaçavam os lavradores que lhes ceifariam assearas «com uma foice de 10 réis — uma caixa de fósforos»,

1T J. Cutileiro, Ricos e Pobres no Alentejo (Uma Sociedade RuralPortuguesa), Lisboa, 1977.

150 " E. J. Hobsbawm e G. Rude, Captain Swing, Londres, 1977.

o que não era uma ameaça vã, como os próprios lavradoressobejamente sabiam19.

As Memórias de 1821 já referiam os «fogos no Estio, quefazem irremediáveis prejuízos, assim em searas como em arvo-redos e pastos, e, pela falta de castigos aos cúmplices nestesdelitos, têm chegado a tanto excesso que qualquer ameaçadescaradamente com este castigo a qualquer lavrador porque seescusou a prestar o seu alvedrio» 20.

6. DESTRUIÇÃO DE MÁQUINAS

Para além do fogo posto, a destruição das máquinas étambém uma constante da luta social dos trabalhadores rurais.Existem para isso razões de sobejo, a começar pelo facto de oprincipal motor da maquinização da agricultura alentejana serde carácter social: o agrário pretende libertar-se da tirania do«déspota ceifeiro».

Assim, os surtos de mecanização associam-se estreitamentecom os da luta social. As máquinas compram-se em maiornúmero depois de subidas de salários impostas aos lavradorespelos trabalhadores rurais e a destruição das máquinas e a suasabotagem são a resposta ao desemprego e à baixa de saláriosque provocam.

Exigências salariais — compra de máquinas — sabotagem demáquinas é um ciclo bem conhecido da vida alentejana, que seinicia no princípio da segunda metade do século xix e perma-nece vivo nos anos 50 e 60 do século xx.

A hostilidade à mecanização da agricultura, assim como aprocessos que permitam a redução da mão-de-obra empregada,como é o caso da monda química, é uma constante da lutados trabalhadores rurais, porque tocam nos dois problemascandentes dessa luta: os salários e o desemprego.

Um lavrador oitocentista descreveu com toda a clarezao papel que às máquinas era dado, ao falar da ceifeira deMac-Cormick:

«A máquina de ceifas de Mac-Cormik [...] liberta olavrador desse jugo imposto na época das colheitas dodéspota ceifeiro. Assim se livrará o lavrador das vilaniasque esta classe degradante e estúpida lhe fez experimentarno corrente ano, [...] vendo-se obrigado a curvar a cabeçaa esses homens sordidamente combinados» 21.

Nos anos 50, essa resistência é declarada: «Os trabalhadoresreceberam mal este invento e sítios há em que se têm oposto

19 O Pêro Rodrigues de 13 de Agosto de 1911.20 Fernando Castelo Branco, art. cit.21 José Vaz Monteiro, «Algumas considerações práticas e económicas

a respeito da ceifadora de Mac-Cormick», in Revista Agronómica, t. i,10 de Junho de 1857. 151

ao trabalho das máquinas, espetando paus e lançando pedrasnos campos, empregando outras ardilezas, ameaças e até vio-lências», escrevia o Archivo Rural em 185822.

Esta resistência à mecanização é periodicamente animada naépoca das ceifas, época em que as máquinas podem favorecera capacidade negociai dos agrários, tornando menos premente anecessidade de contratar trabalhadores com urgência para rea-lizar as ceifas. Num relatório de um lavrador refere-se que,utilizando a ceifeira de Mac-Cormick com bois e 2 homens, sefez o trabalho correspondente a «um dia de 36 a 40 foices» 28.Outro lavrador afirma que o principal motivo da introdução demáquinas era evitar o risco de «ver perder pela falta de braçosou pelo exorbitante preço que a sórdida cobiça dos ceifeirosimpunha» a colheita e calcula que, enquanto um alqueire depão ceifado por homens fica a 20 réis, a máquina fá-lo pelocusto de apenas 4-5 réis24.

7. RESPOSTA Ã CRIMMALIDADE: CARIDADE E RE-PRESSÃO

Numa análise de conjunto da criminalidade alentejana hádois aspectos interligados: por um lado, há crimes que estãoassociados à necessidade de sobrevivência da população traba-lhadora rural (é o caso da maioria dos roubos: de comida, gado,bolota, etc), por outro, crimes dirigidos por uma classe contraa outra: a destruição de máquinas, o fogo posto, etc. Em rigor,todos estes crimes são «sociais», mas há entre eles uma distin-ção importante. No primeiro caso, a criminalidade quase queé consentida pelo sistema. Os terratenentes e a burguesia localaceitam (ou são obrigados a aceitar) que o roubo funcionecomo um complemento de Inverno para o salário de Verão, sebem que, do mesmo modo que regateiam todo o salário, rega-teiem também a quantidade do roubo. Dá-se assim o curiosofenómeno de os protestos contra os roubos ficarem dependentesessencialmente da quantidade e frequência destes, e não dopróprio roubo em si. Esta «admissão» social do roubo, tornadocomplemento do salário, integra-o no contexto geral da relaçãoentre as classes e dá-lhe, por isso, um papel na luta social,que acaba por ser explicitamente admitido no século xx. A ex-pressão «ir buscar onde o houver» é admitida como palavra deordem do PC nos anos 50-60, como racionalização deste velhoprocesso de complemento do salário. Considera-se, por isso,o roubo como natural.

Ao contrário do que se passava com o roubo de Inverno,a criminalidade que se inseria abertamente na luta social era

22 Jacinto de Almeida Sousa Falcão, «Introdução das máquinas deceifar no distrito de Santarém», in Archivo Rural, vol. I, 1858, pp. 210-212.

23 Geraldo J. Braamcamp, «Apreciação da máquina de ceifar deMac-Cormick», in Revista Agronómica, t. I, 10 de Junho de 1857.

152 24 José Vaz Monteiro, art. cit.

violentamente reprimida. Se nem sempre isso sucedia de umaforma clara, tal deve-se à dificuldade em encontrar autoresindividuais de actos essencialmente colectivos. Estes actos, emparticular o fogo posto, surgem quase sempre sob a forma deuma vingança muitas vezes individualizada, contra um agrárioprepotente, que paga baixos salários e maltrata os seus traba-lhadores, mas o consenso colectivo por parte da generalidadedos trabalhadores pela «justiça» desse acto revela a sua moti-vação social mais profunda. O fogo posto é, como vimos, umargumento sempre presente nos acordos salariais, como ameaçavelada contra a não aceitação das propostas dos rurais.

A resposta dos agrários a este estado de coisas assume duasformas principais: a caridade institucionalizada e a repressãopública e privada. A caridade institucionalizada tem no Alentejoum papel que não tem paralelo noutras regiões do País. Nosseus trabalhos etnográficos e antropológicos, Picão e Cutileirosalientam a importância que os lavradores e, de um modo geral,as pessoas ricas davam à esmola25. Nas casas de lavoura, aesmola aos bandos de pobres é organizada segundo rituaisprecisos, chegando a haver um dia propositadamente destinadoa essas funções. Distribuições de dinheiro e géneros, criação deinstituições de caridade pública, subsídios para campanhas desocorros públicos, foram processos comuns de minorar a ex-trema miséria da população rural, em particular no Inverno,que também não se alterou substancialmente até ao 25 de Abril.

Claro que nem todas as esmolas eram voluntariamentedadas. Nalguns casos é difícil distinguir entre a esmola e aextorsão de dinheiro e géneros ou o roubo mais ou menosconsentido. Quando nos referimos aos vadios e aos malteses,notamos como é difícil distinguir as fronteiras entre estesactos.

O que a caridade não conseguia resolver fazia-o a repressão,que no Alentejo não era apenas a das forças públicas, mastambém, em grande parte, dos próprios agrários. Se há reivin-dicação sentida e exigida pelos lavradores alentejanos desdeos primeiros anos do século xix, essa é a de «segurança». É comestas palavras que abrem as Memórias de 1821: «A segurançapública rural, que afiance as pessoas e bens dos lavradores,é a base fundamental para o melhoramento da agricultura; poissem esta continuarão aqueles a desampararem as casas decampo e a mudarem para as povoações» 26, e o seu eco vai-secondensar na sempre presente reivindicação da criação de umapolícia rural ou guarda rural. Os agrários exigem do Estadoou que crie uma polícia própria para controlar os campos, ouque os deixe a eles armarem os seus guardas e criarem umapolícia privada. Os campos não eram seguros, os «vexames»aos lavradores sucediam-se, os roubos e abusos nunca erampunidos, os vadios ameaçavam, era preciso pôr cobro a essa

25 J. Cutileiro, op. cit., e Silva Picão, Através dos Campos — Ueos eCostumes Agrícola-Alentejanos, 1909.

28 Fernando Castelo Branco, art. cit. 153

situação. Em 1857 escrevia-se numa revista agrícola a pro-pósito da criação da guarda rural em Espanha:

«Não é necessário ter lido os economistas para se conhe-cer a politicia rural é salutar em agricultura: se nós, osportugueses, tivéssemos organizado um corpo de guardarural, não teríamos o desgosto de ver os roubos, os incêndiose outros abusos que a cada passo aí se estão praticando e osassassinatos em consequência de tais abusos. É para lamen-tar que nos campos haja, como há, tanta facilidade emmatar!»27.

Esta reivindicação unânime dos lavradores veio encontrarexpressão no I Congresso Agrícola de 1888, em cuja 6.a secçãofoi apresentado um relatório sobre a polícia rural e em que sepediu liberdade para se poderem criar guardas privadas. Posteriormente, todo o congresso ou reunião agrícola de certa im-portância viria a retomar o tema28.

Mas, se tal reivindicação nunca foi cabalmente satisfeita,apesar das esperanças que após a República foram postas narecém-criada GNR, nem por isso os agrários deixaram detentar suprir a falta dessa política, criando guardas privadas efazendo, nalguns casos, justiça por suas mãos.

8. DA CRIMINALIDADE E BANDITISMO Ã GREVE

Nenhum movimento social em Portugal integrou tanto, nasua forma de actuação, o acto criminoso como os trabalhadoresrurais alentejanos. Este facto leva-nos a olhar com mais aten-ção para o movimento social rural, que não pode ser inteira-mente assimilado ao movimento operário urbano.

Na realidade, mesmo sendo os trabalhadores rurais ope-rários e não camponeses, dada a sua situação no processode produção, nem por isso deixam de estar colocados numcontexto muito particular que condiciona a sua visão do mundoe as suas formas de luta. Isolados no interior do País, dis-persos na planície alentejana, quase que sem contacto, comoutras classes e grupos sociais, num Alentejo sem fábricas,a sua história, tradições e dinâmica de luta é distinta, nãosó do operariado urbano, como também do restante proletariadorural não alentejano.

Enquanto o operário lisboeta dos anos da l.a Repúblicaolhava à sua volta e para trás e encontrava um mundo essen-cialmente operário, em que já se esboçava uma tradição de lutae nalgumas profissões se sucediam duas ou três gerações ope-rárias, o trabalhador rural vive num mundo em que a mudança

27 H. de Figueiredo, «Crónica de Espanha relativa ao mês de Abril»,in Revista Agronómica, t. I, 8, de Abril de 1857.

*• Documentos Relativos ao Primeiro Congresso Agrícola...

tem um pequeno papel, é apenas moldado pelo ritmo das esta-ções e dos trabalhos agrícolas e no qual se conservam, comoque cristalizadas, formas de resistência e de defesa primitivas.Penso não ser arriscado afirmar que o século xix é para otrabalhador rural um século sem história, não no sentido que elenão a visse passar tumultuosa pelos campos alentejanos, desdeas Invasões Francesas às guerrilhas miguelistas, só que elanão se imprimia no seu modus vivendi como um factor demudança. Contrariamente ao que se passa nas cidades, as alte-rações, que as houvera no Alentejo do século xix, são muitolentas e imperceptíveis para uma geração. As alterações ocor-ridas no Alentejo e que lhe podiam ser significativas — o pro-gresso e recuo da superfície cultivada, a mecanização, a introdu-ção dos adubos, a lei de Elvino de Brito — eram sentidas emtermos de desemprego e salário, miséria ou ténue prosperidade.

Contrariamente a outras classes e grupos sociais no Portu-gal oitocentista, os trabalhadores rurais não participam emnenhuma movimentação social ou política significativa: nãotêm, como os camponeses do Norte, a sua Maria da Fonte, comoos artesãos, as peripécias dos motins urbanos, ou, como ospequenos burgueses, a actividade revolucionária liberal. O vazioquase absoluto das notícias respeitantes aos trabalhadoresrurais antes de 1910 é em grande parte explicado por estaausência de acção que não fosse a resistência de classe.

Pouca coisa alterava significativamente o seu ciclo de vida,e as suas formas de comportamento em relação a esses aconte-cimentos não foram substancialmente mudadas até 1910-12.Nessa altura, o trabalhador rural irrompe na história, para nãomais a deixar29.

Nenhum movimento social deixa de utilizar na sua acçãoactos que podem ser referenciados como crimes. No fundo, oque é crime ou não é uma mera convenção social, ela próprianascida do processo da luta social manifestada no planojurídico. Mas, como já afirmámos, nenhum movimento socialnos séculos xix e xx integrou tão completamente actos crimi-nosos como o roubo, o fogo posto, a ameaça de violências, comoo movimento dos trabalhos rurais.

Apesar da propaganda sindicalista revolucionária, a sabo-tagem nas fábricas foi praticamente inexistente e apenas osatentados contra patrões e encarregados podem servir de para-lelo, no movimento operário urbano, a alguns aspectos da cri-minalidade rural.

Fê-lo, como vimos, de dois modos: um, como meio de resis-tência e de defesa, outro, como forma ofensiva no terreno daluta de classes. Se bem que o valor das formas defensivas eofensivas da criminalidade social seja diferente, o que é umfacto é que elas estão intimamente ligadas, sendo as primeirascomo que uma plataforma que gera as condições para as

29 José Pacheco Pereira, Ascensão e Queda do Sindicalismo Rural(Alentejo 1910-19U), comunicação ao II International Meeting on ModernPortugal, Duhram, 21 a 24 de Junho de 1979. 155

segundas. O hábito de roubar para sobreviver no Inverno criaas condições de consenso necessárias para se roubar como formade «expropriação social». Em consequência disso, a propriedadenunca foi sacralizada no Alentejo. As primeiras greves de1910-11 e incidentes isolados, como os de Odemira em 1918,revelaram a interligação entre estas formas primitivas deacção social e as formas mais modernas, como a greve e a lutasindical, e que elas se podiam fundir80.

Noutros estudos analisei com algum detalhe o processodestas greves e da ascensão e queda do sindicalismo rural quecom elas está associado, pelo que não me deterei nesta questão,a não ser para salientar em que medida os acontecimentos pos-teriores a 1910 iluminam a fase anterior. Em particular, in-teressa salientar que a passagem do banditismo e da crimina-lidade à greve e à acção sindical não significa de nenhum modoo fim dos velhos hábitos de luta, mas a sua inserção num novoenquadramento organizativo e ideológico. «Ir buscar onde ohouver», palavra de ordem justificativa do roubo, ainda eraclaramente admitida no relatório de Álvaro Cunhal de 1964Rumo à Vitória. Quem conheça a posição do PCP perante estetipo de comportamentos «selvagens» e «primitivos» sabe bemque a realidade traduzida pela palavra de ordem deveria sertão intensamente sentida e praticada que o PCP não podia senãovalidar o seu uso. No entanto, apesar de toda a continuidade,as greves de 1910-12 surgem como um ponto de ruptura, des-tacando-se sobre este fundo negro, verdadeiro inconsciente dahistória portuguesa oitocentista, com um súbito relâmpagoe um longo e forte trovão que, finalmente, parecem ter des-pertado tudo e todos. Elas significam a entrada do Alentejosocial no século xx e são um dos pontos sem retorno da históriaportuguesa contemporânea.

30 Sobre os acontecimentos de Odemira veja-se J Pacheco Pereira,comunicação citada; António Bica, «1918 — Uma expropriação no Alen-tejo»», in O Diário de 28 de Janeiro de 1977; João Maria Campos, «Paraa história das lutas operárias — o anarco-sindicalismo no concelho deOdemira», in A Batalha, n.08 16, de 28 de Maio de 1975, e 20, de 9 de

156 Agosto de 1975.