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UNL - UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS MESTRADO EM LÍNGUAS, LITERATURAS E CULTURAS ESTUDOS ROMÃNICOS: TEXTOS E CONTEXTOS AS MÁSCARAS SIMBÓLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA ESPANCA LISBOA - 2008

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UNL - UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA

FACULDADE DE CIEcircNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

MESTRADO EM LIacuteNGUAS LITERATURAS E CULTURAS

ESTUDOS ROMAtildeNICOS TEXTOS E CONTEXTOS

AS MAacuteSCARAS SIMBOacuteLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA ESPANCA

LISBOA - 2008

2

UNL - UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA

FACULDADE DE CIEcircNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

MESTRADO EM LIacuteNGUAS LITERATURAS E CULTURAS

ESTUDOS ROMAtildeNICOS TEXTOS E CONTEXTOS

AS MAacuteSCARAS SIMBOacuteLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA ESPANCA

Monografia sobre o estudo analiacutetico simboacutelico

e intertextual do livro de contos ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo

de Florbela Espanca Destina-se a conclusatildeo do curso de

Mestrado em Liacutenguas Literaturas e Culturas da Univer_

sidade Nova de Lisboa na Faculdade de Ciecircncias Sociais

e Humanas tendo por autora Jaqueline Barbosa Murta e

orientador Prof Doutor Nuno Juacutedice

FEVEREIRO - 2008

3

JAQUELINE BARBOSA MURTA

AS MAacuteSCARAS SIMBOacuteLICAS E INTERTEXTUAIS

EM FLORBELA ESPANCA

Aprovada em ___________________ de 2008

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________________

Prof Dr (a)___________________________

Universidade Nova de Lisboa

____________________________________________________

Prof Dr (a)__________________________

Universidade Nova de Lisboa

____________________________________________________

Prof Dr (a)__________________________

Universidade Nova de Lisboa

4

DEDICATOacuteRIA

A Ladir Cidinha Biacute JucaTataacute e Didi

ldquoMeu grande alicercerdquo

A Israel (in memoriam) e Daniel

ldquo Amores eternosrdquo

A Noel

ldquoMeu cavaleiro das armas escurasrdquo

Ao Centro de Estudos Florbela Espanca

da Universidade Federal de Rondocircnia-UNIR

ldquoNosso primeiro encontrordquo

5

IacuteNDICE

RESUMOhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 06

ABSTRACThelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 07

INTRODUCcedilAtildeOhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 08

CAPIacuteTULO 01helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 12

11 ndash Enquadramento Teoacutericohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 12

12 - Abordagens sobre ldquoAs Maacutescaras do Destinordquohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 16

CAPIacuteTULO 02helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip19

21 ndash Sonho de Iacutecarohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip19

22 ndash A Multiplicidade do Heroacuteihelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip24

CAPIacuteTULO 03 helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 29

31 ndash A Intencionalidade das Aacuteguashelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip29

32 ndash A Simbologia do Mar Florbelianohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip33

CAPIacuteTULO 04helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip38

41 ndash A Intertextualidade Ultra-Romacircntica em Florbelahelliphelliphelliphelliphelliphellip38

42 ndash Um Percurso Comparativohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip41

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIShelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip47

REFEREcircNCIA BIBLIOGRAacuteFICAhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip50

6

RESUMO

A narrativa ficcional natildeo eacute o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca

mas assim como em seus poemas seus contos tambeacutem natildeo deixam de ter a

marca particular que a caracteriza como ldquo hellipraiz e flor A noite e a estrela da

alva a primeira A morte e a vida Aquela pudica amante e lilial irmatilderdquo1 Atraveacutes

da anaacutelise interpretativa podemos desvendar lacunas que fazem do seu livro de

contos As Maacutescaras do Destino um fascinante mosaico de leituras Passando

pela influecircncia referencial da mitologia dos deuses agrave consagraccedilatildeo heroacuteica de

seus filhos (semideuses) fonte imprescindiacutevel para o surgimento da

representaccedilatildeo simboacutelica do mar e seus respectivos elementos interpretativos

como bases da projecccedilatildeo do estado de alma dos escritores sentimentalistas

em que o tema da ldquodorrdquo permite a reutilizaccedilatildeo da imagem noutra construccedilatildeo

textual podendo ocorrer a superposiccedilatildeo a absorccedilatildeo e a transformaccedilatildeo de uma

multiplicidade de outros textos Esse estilo elaborado de escrita possibilita um

estudo comparado com outros textos Aqui essa relaccedilatildeo intertextual com um

poema do consagrado escritor ultra-romacircntico Soares de Passos permite

observar a tendecircncia decadentista e ultra-romacircntica em Florbela de modo que

vem confirmar seu conflito interior em detrimento de sua existecircncia Mesmo

assim natildeo deixou de reafirmar-se como escritora de sua eacutepoca Foi designada

como a ldquoPoetisa do Amorrdquo por Joseacute Reacutegio e o mesmo ainda ressalta que

ldquoextraordinaacuteria forccedila da natureza vulcatildeo sempre aceso de violentas paixotildees e

desejos que foi a vida e obra de Florbela2

PALAVRAS ndash CHAVE

Anaacutelise comparaccedilatildeo conto decadentismo Florbela Espanca heroacutei

interpretaccedilatildeo intertextualidade mar mito poesia simbolismo sentimentalismo

ultra-romantismo

1 Citaccedilatildeo extraiacutedo do website httparestasdeventonosapoptlabaredas2html Comentaacuterio de Joseacute

Antoacutenio Raposo sobre Florbela e Duratildeo 2 Citaccedilatildeo extraiacutedo do website httparestasdeventonosapoptlabaredas2html Comentaacuterio de Joseacute

Antoacutenio Raposo sobre Joseacute Reacutegio e Florbela

7

ABSTRACT

Florbela Espanca is not only well-known for her narrative fiction but also for her

poems Her stories have its particular mark which is characterized by such

stories asRoot and Flower The Night and the Star of Dawn The Spring

The Bashful Lover and Lilial Sister Through the analysis we can unmask the

gaps that make-up the fascinating reading of mosaic Passing

through referential influence of the Mythology of Gods to heroic consecration

of their children (semi-gods) an indispensable source for the appearance of

symbolic representation of the sea and its respective interpretative elements as

the base for the projection of the state of souls of the sentimental writers in

which the theme of pain permits the reutilization of an image in another textual

construction where superposition absorption and the transformation of a

multiplicity of other texts This elaborated style of writing makes it possible for

the study of comparisons with other texts Here this intertextual relation with a

poem of the consecrated ultra-romantic writer Soares de Passos permits the

observation of the decadent and ultra-romantic tendency in Florbela so that it

confirms its inner conflict in detriment to its existence Even so it doesnt stop

reaffirming her as a writer of her time She was named Poetess of Love by

Joseacute Reacutegio and it also highlights The Extraordinary Force of Nature Violent

Passion always alighted by a Volcano and desires which was the life and work

Of Florbelardquo

Key Words Analysis Comparison Story Decadence Florbela Espanca Hero

Interpretation Intertextuality Sea Myth Poetry Symbolism Sentimentality

Ultra-romanticism

8

INTRODUCcedilAtildeO

A primeira reflexatildeo que vem a nossa mente quanto que por acaso ouvimos as

primeiras duas estrofes de um dos sonetos de Florbela Espanca ldquoFanatismordquo3

eacute de estar diante de um texto onde emana o que existe de mais sentimental em

um autor Sem ainda conhecer os desiacutegnios desta ldquoBela princesa da planiacutecie

Alentejanardquo4 podemos perceber que buscava dizer algo mais que apenas as

belas palavras proferidas em seus versos que eram imbricados de metaacuteforas

fortes onde mostrava-se irmatilde companheira amante princesa magoada louca-

fanaacutetica inconstante e natildeo deixava ao contraacuterio do poema ldquoFumordquo5 fugir de

seus dedos a essecircncia de uma autora que buscava as respostas para sua

inquietude na projecccedilatildeo da figura ideal

As vicissitudes de seu tempo natildeo inibiram-na de mostrar seu grande talento

para a poesia e contos em alguns momentos de sua escrita Florbela gritava

por liberdade natildeo soacute de expressatildeo e participaccedilatildeo no meio artiacutestico mas por

uma liberdade intimista que para o seu tempo era mal interpretada pois a

sociedade concebia a figura da mulher fraacutegil delicada recatada e submissa agraves

vontades e desejos masculinos o que Florbela tentava sem o querer ser As

agruras desse tormento vivido pela mulher seria entatildeo imortalizado pela

escritora

Ao lermos seus escritos sem duacutevida entramos por um caminho de vastas

indagaccedilotildees buscando perceber qual seria a grande inquietude que envolvia

esta mulher em momentos de impacto com o real e a tatildeo grandiosos momentos

de nostalgia amorosa levando-nos a apreciar a natureza tal qual como eacute

descrita em seus poemas assim como estabelecermos uma intimidade com

uns dos temas que mais aflige as pessoas mas que de uma certa forma nos

coloca frente a frente com uma realidade a qual natildeo podemos fugir ndash a morte

Essa temaacutetica podemos dizer que eacute a mais forte tendecircncia dos escritos de

Florbela natildeo soacute na poesia que se faz presente na maioria de seus livros mas

tambeacutem em seus contos envolvendo-nos em situaccedilotildees onde o tema morte

passa a impulsionar nossa expectativa em nos descobrir ou redescobrir diante

da vida ou do mais profundo e iacutentimo desejo humano de conhecer-mos a noacutes

3 Poema contido no livro de ldquoSoror Saudaderdquo publicado em 1923 4 Frase proferida por Duratildeo seu amigo fiel 5 Poema contido na livro de ldquoSoror Saudaderdquo

9

mesmos e infiltra-nos por caminhos incoacutegnitos que cobrem de maacutescaras nosso

destino assim como eacute citado no tiacutetulo de seu livro de contos6 o qual dedicou a

seu irmatildeo Apeles deixando-nos por vezes a margem de reflexotildees

existencialistas mas natildeo o existencialismo puro dos filoacutesofos questionadores

mas um existencialismo amoroso sensiacutevel capaz de nos inibir com subtilezas

representativas de um mesclado de tendecircncias literaacuterias que preenche seus

textos de extremo romantismo e passa para a evidecircncia dos fatos que vatildeo do

real ao ideal do acontecido a suposta consequecircncia

De fato que sua vida influenciou sua escrita7 tanto que nesta inquietante busca

pela pessoa ideal que era acometida a escritora levou a mulher a concretizar

sua indubitaacutevel certeza de que seria compreendida e aceita apenas depois de

repousada sua pena agraves matildeos da morte e descansar em teus braccedilos fato esse

descrito no poema ldquoAacute Morterdquo encontrado em sua mesa no dia em que suicidara

Soacute assim seria quebrado o encanto da escrita como natildeo o foi Foi sim

quebrado o encanto do escrever pois a escrita era a forma de agir sobre a sua

realidade mas o encanto da escrita permanece e esses ldquo que os vivos passem

adianterdquo8 como a proacutepria Florbela proferira E assim estaacute Florbela vive em sua

obra sua temaacutetica nos chega como notiacutecia surpreendente e nos envolve em

seus misteacuterios simboacutelicos Sua meacutetrica ao molde claacutessico e uma temporalidade

construiacuteda em seus escritos atraveacutes de seus livros de forma proposital nos

deixa perceber o que vai no iacutentimo de uma mulher parece que retrata com

transparecircncia as fantasias ou fases interiores do imaginaacuterio feminino que de

intreacutepida voluntariosa libertina amante insaciaacutevel inconstante passa a ser

casta pura virtuosa religiosa isso tudo sem deixar de ser extraordinariamente

apaixonada como ela mesma atesta sua proacutepria natureza ldquoSou filha da

charneca erma e selvagemrdquo9

Do mesmo modo que na poesia a Bela escritora mostra-nos seu talento para a

prosa em seu livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo Diferente da poetisa do ldquoeurdquo os

contos geralmente em terceira pessoa natildeo deixam de ter a marca registada

de Florbela a insatisfaccedilatildeo pela vida e a fuga atraveacutes da morte com fortes

mesclas de romantismo Outra caracteriacutestica presente neste livro eacute a ldquolacunardquo

6 Referecircncia ao livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo dedicado a seu irmatildeo Apeles 7 Referecircncia aos vaacuterios estudos feitos sobre a vida a escritora 8 Citaccedilatildeo retirado da dedicatoacuteria do livro ldquoAs Mascaras do Destinordquo 1998 33 9 Citaccedilatildeo do poema ldquoEsfingerdquo do livro Poesias Completas 2004 276

10

deixada a margem da interpretaccedilatildeo ou seja o que se leria nas entrelinhas do

texto Tais interpretaccedilotildees ficam a cargo do leitor que de certa forma interage

com as narrativas preenchendo-lhes o vazio deixado pela escritora ldquovaziordquo

esse que tambeacutem a acompanha nesta obra e a quem dedica ldquoeste livro eacute o

livro do meu mortordquo10 Na realidade Florbela queria deixar imortalizado seu

irmatildeo ldquoNatildeo queria que meu morto morresse comigohellipE escrevi estas

paacuteginashelliprdquo que foram de encontro a profundeza de seu pensamento ou seja

uma consciecircncia transcendental em caminho a ldquotalrdquo liberdade tanto desejada

que jaacute em versos reclamava

ldquoEu ponho-me a sonhar transmigraccedilotildees

Impossiacuteveis longiacutenquos milagrosas

Voos amplos ceacuteus distantes migraccedilotildees

Longehellip noutras esferas luminosas

E pelo meu olhar passam visotildees

Ilhas de bruma e naacutecar drsquooiro e rosashellip

E eu penso que liberta de grilhotildees

Hei-de aportar agraves Ilhas misteriosasrdquo11

Esse doce misteacuterio que cheio da natureza de ser mulher eacute o que intriga-nos a

cada leitura e nos faz buscar conhecer mais de sua vida para entendermos sua

obra Seus contos nos mostram uma Florbela detentora de uma

intertextualidade viva que no decorrer das narrativas remete-nos a outros

tempos a outras leituras Cria um ambiente nostaacutelgico e contemplativo de

vasto campo simboacutelico percorrendo as mais variadas fontes para sua

inspiraccedilatildeo criadora com isso ao depararmos com o quadro descritivo na

narrativa recriamos esse quadro imaginaacuterio em nossa mente como em um

conto de fadas ali misturam-se fatos reais e imaginaacuterios tempos reais e

imaginaacuterios personagens reais e imaginaacuterias tudo ldquo eacute luminosas e exaltante

10 Citaccedilatildeo da dedicatoacuteria do livro ldquoAs maacutescaras do Destinordquo 1998 32 11 Poema ldquoLibertardquodo livro Poesia Completa 2004 75

11

emoccedilatildeordquo foi enchido de ldquotoda a espiritualidade beleza dolorosa e humildade e

acima de tudo as almasrdquo criadas ldquosatildeo gritos e soluccedilos de amorrdquo12

Diante disso o foco do estudo e pesquisa sobre Florbela Espanca se limitaraacute

em um levantamento analiacutetico e criacutetico dando vaacuterias possibilidades de

interpretaccedilatildeo bem como referecircncias intertextuais que satildeo citadas e ora

aparecem em seus contos no livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo Tal estudo

objectiva um conhecimento interpretativo e comparativo das leituras feitas por

Florbela e o modo como vieram a influenciar e dar sustentabilidade ao enredo

dos contos Quem sabe poderemos conhecer um pouco mais dessa misteriosa

mulher que dizia natildeo conhece a si mesma

O que sou eu AmorSei laacute que sou

Sou tudo e nada grande e pequenina

Sou a que canta uma ilusatildeo divina

Sou a que chora um mal que acabou

Eu sei laacute que quimera me beijou

E nunca o soube assim desde pequenina

Haacute neste mundo tanta amarga sina

A minha eacute saber nunca quem sou

Esfinge sonho tonto de desejos

Na tua boca sou uma asa aberta

A palpitar vermelha como os beijos

Andorinhahelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellipa voejar13

helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip

helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip

12 Citaccedilatildeo da dedicatoacuteria do livro ldquoAs maacutescaras do Destinordquo 1998 33 13 Poema sem tiacutetulo editado no livro ldquoEsparsos de Florbelardquo em Poesia Completa 2004 78

12

CAPIacuteTULO 01

11 - ENQUADRAMENTO TEOacuteRICO

Na literatura actual eacute frequente apontar-se como um dos factores de

textualidade a referecircncia - expliacutecita ou impliacutecita ndash a outros textos tomando estes

um sentido bem amplo (orais escritos visuais etc) A esse diaacutelogo entre textos

daacute-se o nome de intertextualidade

Eacute evidente que a intertextualidade estaacute ligada ao conhecimento de mundo que

deve ser compartilhado ou seja comum ao produtor e ao receptor do texto

Desta forma pressupotildee um universo cultural muito amplo e complexo pois

implica antes de tudo na identificaccedilatildeo e no reconhecimento de remissotildees a

obras ou a textostrechos mais ou menos conhecidos aleacutem de exigir do

interlocutor a capacidade de interpretar a funccedilatildeo daquela citaccedilatildeo ou alusatildeo em

questatildeo

Todas as questotildees ligadas agrave intertextualidade influenciam tanto o processo de

produccedilatildeo como o de compreensatildeo de textos o importante eacute natildeo encararmos a

intertextualidade apenas como a identificaccedilatildeo da fonte e sim que nos

preocupemos em estudaacute-la como um enriquecimento da leitura e da produccedilatildeo

de textos e sobretudo tentando mostrar a funccedilatildeo da sua presenccedila na

construccedilatildeo e no(s) sentido(s) dos textos

Como se pode notar na constituiccedilatildeo da proacutepria palavraldquointertextualidaderdquo

significa relaccedilatildeo entre textos Considerando-se texto num sentido lato como

um recorte significativo feito no processo ininterrupto de semiose cultural isto eacute

na ampla rede de significaccedilotildees dos bens culturais Pode-se afirmar que a

intertextualidade eacute inerente agrave produccedilatildeo humana O homem sempre lanccedila matildeo

do que jaacute foi feito em seu processo de produccedilatildeo simboacutelica Assim sendo o

texto como objecto cultural tem uma existecircncia fiacutesica que pode ser apontada e

delimitada um filme um romance um anuacutencio uma muacutesica Entretanto esses

objetos natildeo estatildeo ainda prontos pois destinam-se ao olhar agrave consciecircncia e agrave

recriaccedilatildeo dos leitores Cada texto constitui uma proposta de significaccedilatildeo que

natildeo estaacute inteiramente construiacuteda A significaccedilatildeo se daacute no jogo interpretativo

entre o texto e seu destinataacuterio Este uacuteltimo eacute um interlocutor ativo no processo

de significaccedilatildeo na medida em que participa do jogo intertextual tanto quanto o

autor

13

A intertextualidade se daacute pois tanto na produccedilatildeo como na recepccedilatildeo da grande

rede cultural de que todos participam Filmes que retomam filmes quadros que

dialogam com outros propagandas que se utilizam do discurso artiacutestico

poemas escritos com versos alheios romances que se apropriam de formas

musicais tudo isso satildeo textos em diaacutelogo com outros textos intertextualidade

Um texto remete a outro para defender as ideias nele contidas ou para

contestar tais ideias isso se daacute atraveacutes de um estudo comparativo entre textos

que ligam-se pela elaboraccedilatildeo artiacutestica de seu criador Eacute atraveacutes da anaacutelise

comparativa que tomamos ciecircncia da emergecircncia simboacutelica existente entre os

textos e a que niacutevel se daacute tal emergecircncia quanto agrave diacronia e sincronia que os

ligam Em qualquer niacutevel a produccedilatildeo simboacutelica eacute pois sempre uma retomada

de outras produccedilotildees perfazendo um jogo infinito que enreda autores e leitores

Apropriando-nos entatildeo de Schneider podemos afirmar

ldquoO texto literaacuterio eacute um palimpsesto O autor antigo escreveu uma lsquoprimeirarsquo vez

depois sua escritura foi apagada por algum copista que recobriu a paacutegina com

um novo texto e assim por diante Textos primeiros inexistem tanto quanto as

puras coacutepias o apagar natildeo eacute nunca tatildeo acabado que natildeo deixe vestiacutegios a

invenccedilatildeo nunca tatildeo nova que natildeo se apoacuteie sobre o jaacute-escritordquo (SCHNEIDER

199071)

No sentido estrito a palavra texto remete a uma ordem significativa

verbal Dentro dessa ordem a literatura vale-se amplamente do recurso

intertextual consciente ou inconscientemente Em razatildeo disso a

intertextualidade faz-se operador de leitura Eacute importante marcar os primoacuterdios

de Bakhtin em relaccedilatildeo a esses estudos divulgados por Juacutelia Kristeva Eacute dela o

claacutessico conceito de intertextualidade ldquo todo texto se constroacutei como mosaiacuteco de

citaccedilotildees todo texto eacute absorccedilatildeo e transformaccedilatildeo de um outro textordquo

(KRISTEVA 197464) Na verdade a intertextualidade inerente agrave linguagem

torna-se expliacutecita em todas as produccedilotildees literaacuterias que se valem do recurso da

apropriaccedilatildeo colocando em xeque a proacutepria noccedilatildeo de autoria Eacute o que vamos

observar ao longo do estudo no conto ldquoA Mortardquo em ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo

de Florbela Espanca temos aqui um bom exemplo do que se define como

intertextualidade as relaccedilotildees entre textos a citaccedilatildeo de um texto por outro

enfim o diaacutelogo entre textos Sendo assim para entender um texto na sua

totalidade eacute preciso conhecer o(s) texto(s) que nele fora(m) citado(s)

14

Eacute nesse contexto que Kristeva membro actuante da criacutetica francesa elabora

seu conceito de intertextualidade considerando que todo texto se constroacutei como

ldquomosaico de citaccedilotildeesrdquo Esse entendimento acarreta a consideraccedilatildeo de que a

intertextualidade eacute um fenoacutemeno que se encontra na base do proacuteprio texto

literaacuterio imbricada com a inserccedilatildeo deste num muacuteltiplo conjunto de praacuteticas

sociais relevantes A partir de Kristeva ldquotextordquo passa a ser entendido como o

evento situado na histoacuteria e na sociedade que natildeo apenas reflecte uma

situaccedilatildeo mas eacute essa proacutepria situaccedilatildeo apagando linhas divisoacuterias entre as

disciplinas e constituindo um cruzamento entre diferentes superfiacutecies textuais e

distintas aacutereas do saber cientiacutefico e da esfera artiacutestica ldquoPelo seu modo de

escrever lendo o corpus literaacuterio anterior ou sincroacutenico o autor vive na histoacuteria

e a sociedade se escreve no textordquo (KRISTEVA 197498)

A partir dos postulados deste conceito observamos que a intertextualidade

reflecte a concepccedilatildeo do texto literaacuterio como carregado de outros textos

inclusive do ldquotextordquo da realidaderdquo E eacute essa realidade polifoacutenica de vivecircncia

tumultuosa e inquietante de dissabores intriacutensecos e por vezes

transcendentais de acontecimentos filtrados atraveacutes de sua proacutepria

sensibilidade e sua imaginaccedilatildeo fantaacutestica que Florbela Espanca tem

manifestado para que seja compreendido seus misteacuterios de forma a dar mais

realce atraveacutes das vaacuterias formas de compreensatildeo e interpretaccedilatildeo intertextual e

comparativa de sua obra Neste sentido a teoria intertextual e comparativa

seraacute um guiatildeo a nortear um trabalho na tentativa de conhecermos essa

enigmaacutetica escritora que foi Florbela Espanca E eacute dela o incentivo para um

maior entendimento daquilo que nos deixou ldquoPara mim Para ti Para ningueacutem

Quero atirar para aqui negligentemente sem pretensotildees de estilo sem

anaacutelises filosoacuteficas o que os ouvidos dos outros natildeo recolhem reflexotildees

impressotildees ideias maneiras de ver de sentir ndash todo o meu espiacuterito paradoxal

talvez friacutevolo talvez profundo Compreendi por fim que nada compreendi que

mesmo nada poderia ter compreendido de mimhellipRestam-me os outroshellip

talvez por eles possa chegar agraves infinitas possibilidades do meu ser misterioso

intangiacutevel secretordquo (FLORBELA ESPANCA 199833)14

14 Fragmento retirado do livro ldquoDiaacuterio do Uacuteltimo Anordquo Bertrand Editora

15

A proposta de entendimento intertextual traacutes um reflexo de sua existecircncia

registado em sua ldquoDivina Comeacutediardquo15 pelos seus ldquoVersosrdquo16

ldquoVersos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip

Pedaccedilos de sorrisos branca espuma

Gargalhadas de luz cantos dispersos

Ou peacutetalas que caem uma a umahellip

VersosSei laacute Um verso eacute o teu olhar

Um verso eacute o teu sorriso e os de Dante

Eram o seu amor a soluccedilar

Aos peacutes de sua estremecida amante

Meus versos Sei eu laacute tambeacutem que satildeohellip

Sei laacute Sei laacute Meu pobre coraccedilatildeo

Partidos em mil pedaccedilos satildeo talvezhellip

Versos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip

Meus soluccedilos de dor que andam dispersos

Por este grande amor em que natildeo crecircsrdquo

15 Referecircncia a Obra de Dante Alighieri A Divina Comeacutedia uma viagem ao inferno purgatoacuterio e ao

paraiacuteso Aqui em relaccedilatildeo a vida de Florbela a palavra comeacutedia tem duplo significado o de origem dando

seguimento bom ao desenlace das personagens e em seu sentido coacutemico aos factores da inconstacircncia da

escritora 16 Referecircncia ao poema de Florbela escrito em O livro Drsquoele Poesia Completa2004 208

16

13 - ABORDAGENS SOBRE ldquoAS MAacuteSCARAS DO DESTINOrdquo ldquoOs contos satildeo como ela - siacutembolo de permanecircncia no pensamento da terra fio

de amor que manteacutem a sua magneacutetica forccedila saudade de tudo que podia

significar felicidade e expressatildeo do afectordquo17

Dedicada ao seu irmatildeo Apeles Demoacutestenes da Rocha Espanca ndash ldquoAs

Maacutescaras do Destinordquo eacute uma obra inspirada na tristeza e dor que a perda do

irmatildeo causa em Florbela Sua dedicatoacuteria ldquoeacute como um punho culpado que

Florbela assenta no proacuteprio peitordquo (FLORBELA ESPANCA 199825) assim diz

Agustina Bessa-Luiacutes autora do prefaacutecio escrito em 1979 que orienta-nos sobre

as condiccedilotildees de leitura que envolve esta obra

A dedicatoacuteria escrita por Florbela comprova o amor de irmatildeos Apeles era

ldquoAquele que das mesmas entranhas foi nascido que ao calor do mesmo

amplexo foi gerado Aquele que traz no rosto as linhas do teu rosto nos olhos a

aacutegua clara dos teus olhos o teu Amigo o teu Irmatildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA

199831 e 32) Ela escrevia tais palavras como uma matildee que acabara de

perder a um filho ldquopara que tua mocidade natildeo trema de o ver partir um dia

bom e meigo para que vivas na ilusatildeo bendita de teres um filho forte e belo

para te obrigar a encarar sorrindo as coisas vis e feias deste mundohelliprdquo

(FLORBELA ESPANCA 199831) Na realidade tais clamores professados soacute

a uma matildee que perdera seu filho eacute permitido senti-los

Escrita no final de 1927 reuacutene oito contos denominados ldquoO Aviador ldquoA Mortardquo

ldquoOs Mortos Natildeo Voltamrdquo ldquo O Resto Eacute Perfumerdquo ldquoA Paixatildeo de Manuel Garciardquo

ldquo O Inventorrdquo ldquoAs Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquoO Sobrenaturalrdquo

Como demonstram os tiacutetulos dados aos contos o tema ldquomorterdquo eacute o ponto de

convergecircncia entre os enredos e vem reforccedilar o pendor funesto da obra de

Florbela natildeo apenas pelo desaparecimento do irmatildeo mas que jaacute fazia parte

da proacutepria insatisfaccedilatildeo intimista que a escritora detinha Nesta altura por forccedilas

das circunstacircncias parecia estar desvinculada da vida como uma morta e sua

perpeacutetua busca lhe assegura uma espeacutecie de eternidade

Natildeo participando do enredo assim sendo em 3ordf pessoa mostrava-se uma

observadora a narrar fatos onde a realidade se confunde com o imaginaacuterio

17 Fragmento escrito por Agustina Bessa-Luiacutez retirado do prefaacutecio do livro As Maacutescaras do Destino de

Florbela Espanca 199810

17

fantaacutestico e soacute nos traacutes agrave lucidez da compreensatildeo devido as referecircncias

intertextuais as quais satildeo comuns aos contos pois ldquo o fantaacutestico se caracteiza

por una instrusioacuten brutal del misteacuterio en el marco de la vida real y estaacute ligado

generalmente a los estados moacuterbitos de la conciencia que en los fenoacutemenos

de pesadilla e de deliacuterio proyecta ante siacute imaacutegenes de sus angustias e de sus

terroresrdquo (GEORGES JEAN 1889 68 e 69) Mas a escritora natildeo desvincula-se

de sua obra uma forte tendecircncia de Florbela Marcando presenccedila no conto ldquoO

Resto Eacute Perfumerdquo interage como personagem assim assume o relato como

se procedesse de outro narrador para que pudesse penetraacute-lo e manter suas

caracteriacutesticas inquietantes e paradoxais acrescentando uma forte dose de

existencialismo e a presenccedila do ldquoEurdquo que vem reforccedilar a categoria de seus

relatos miacuteticos Aqui o ldquofantaacutesticordquo se confunde com o ldquomaravilhosordquo isso

devido aos relatos mitoloacutegicos que implica durante a leitura em um

redireccionamento do leitor a outro espaccedilo a outro tempo onde temos a ilusatildeo

de vivermos por um breve momento em outro lugar Florbela nos permite a

viagens imaginaacuterias em que o maravilhoso de seus contos dependeraacute de uma

infinidade de interpretaccedilotildees que natildeo seratildeo necessariamente interpretaccedilotildees

racionais pois as interpretaccedilotildees paralelas e divergentes satildeo sempre possiacuteveis

devido a riqueza do conto em si que no caso de Florbela estatildeo ligados aos

estados moacuterbidos de sua consciecircncia

Sabemos que algum dos elementos imaginaacuterios dos contos de Florbela estaacute

ligada ao realismo de sua histoacuteria verdadeira e isso eacute capaz pela virtudes que

soacute os contos de fadas pode proporcionar apesar de sua vida inconstante e

cheia de maacutegoas soube mascarar seu inconsciente e dar a seu relato um

intercacircmbio gracioso e sentimental com sua vida Por sua vez tais relatos

remetem-se a duas vertentes essenciais nos contos a primeira de propagar as

formas simboacutelicas durante a histoacuteria e a segunda de inserir essas formas

mediante a expansatildeo de sua escrita atraveacutes dos contos Um bom exemplo

disso eacute a clareza de como um conto complementa outro Atentemos para os

detalhes simboacutelicos de ldquoO Inventorrdquo que parece encerrar-se em ldquoO Aviadorrdquo da

mesma forma acontece em ldquoO Sobrenaturalrdquo e ldquoOs Mortos natildeo Voltamrdquo ldquoAs

Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquo A Paixatildeo de Manuel Garciardquo por fim

vemos a profunda reflexatildeo sobre a vida em ldquoO Resto eacute Perfumerdquo culminando

no conto ldquoA Mortardquo que tem em seu final a imersatildeo nas aacuteguas elemento

18

comum em todos os contos que parece como siacutembolo de redenccedilatildeo Temos

aqui um quadro para um estudo comparativo minucioso entre os proacuteprios

contos

Como afirma Agustina Bessa-Luiacutes ldquo para ler a prosa eacute preciso compreender a

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199816) Neste contexto natildeo ousamos falar

do quadro complexo que a palavra ldquomulherrdquo como um ser social objectiva mas

sim na simplicidade do comportamento de vaacuterias mulheres numa soacute imagem

constante nos contos que sente no seu intimo a dor da perca A primeira

referecircncia aqui eacute da mulher-irmatilde que vecirc no uacutenico irmatildeo morto a decadecircncia de

si mesma ldquo seraacute em breve uma sombra na tua sombrardquo (FLORBELA

ESPANCA 199832) Da mulher-matildee e o vazio de sua dor silenciosa ldquo A pobre

matildee abafou um soluccedilo voltou-se e olhou o mortordquo (FLORBELA ESPANCA

1998112) E por fim da mulher-religiosa que busca na cristandade respostas

para seus questionamentos e refuacutegio para seu tormento ldquomais fraacutegil mais

luminosa continuava a rezar as suas oraccedilotildeeshelliporaccedilotildees de amor sacriacutelegas

blasfemas oraccedilotildees de pecadohellipDe pecado Natildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA

1998154) Assim concebo a mulher Bela a compreensatildeo de sua escrita estaacute

nos olhos de quem as vecirc e na sensibilidade de a conhecer Desta feita ldquoa fase

dos equiacutevocos com que a gesta amorosa que a serve com a permanente

invenccedilatildeo de objectos meritoacuterios eacute substituiacuteda por uma feacute na alma feacute que se

acompanha do terriacutevel sentimento de estar morta de natildeo ser mais do que a

aparecircncia dum espaccedilo vividordquo (FLORBELA ESPANCA 199823) diz Agustina

Bessa-Luiacutes

Nesta obra duas propriedades do texto satildeo facilmente perceptiacuteveis a

intertextualidade e a influecircncia exercida em cada conto Essa uacuteltima

envolvendo as fortes caracteriacutesticas da escritora Florbela Espanca Contudo o

texto se constroacutei agrave medida que retoma fatos jaacute conhecidos como eacute o caso das

vaacuterias citaccedilotildees de autores e personagens que ilustram o livro Nesse sentido

quanto mais amplo for o repertoacuterio do leitor o seu acervo de conhecimentos

maior seraacute a sua competecircncia para perceber como os textos dialogam uns

com os outros por meio de referecircncias alusotildees e citaccedilotildees Eacute assim que

Florbela queria que a entendecircssemos atraveacutes de um diaacutelogo intriacutenseco para

descobrirmos suas maacutescaras

19

CAPIacuteTULO 02 21 - ldquoSONHO DE IacuteCAROrdquo

ldquoVoar voar subir subir

Ir por onde for descer ateacute o ceacuteu cair

Ou mudar de cor anjos de gaacutes

Asas de ilusatildeo e um sonho audaz

Feito um balatildeo

No ar no ar eu sou assim

Brilho do farol aleacutem do mais

Amargo fim simplesmente sol

Fugir meu bem eacute ser felizhellip

Ir ateacute que um dia chegue enfim

Em que o sol derreta a cera ateacute o fimrdquo18

A mitologia eacute uma das concepccedilotildees mais geniais que a humanidade produziu

Os gregos instauraram uma categoria intermediaacuteria entre os homens e os

deuses o semideus criando assim os heroacuteis mitoloacutegicos Isso veio a dar

margem a novas investigaccedilotildees sobre os fenoacutemenos da realidade natural

levando ao questionamento da origem dos seres a qual obtiveram respostas

sem sentido concreto Com isso incorporaram a concepccedilatildeo de que a vida e

suas manifestaccedilotildees satildeo obras das forccedilas do espiacuterito que habita em cada um

de noacutes sendo tambeacutem responsaacutevel pela nossa maneira de ser e de agir Isso eacute

sem duacutevida um meio de penetrar atraveacutes da imaginaccedilatildeo no misteacuterio da

existecircncia humana Desta forma o mito consiste nos acontecimentos que se

repetem ao longo da histoacuteria natildeo tendo fim O homem reconhecendo em cada

acto quotidiano uma participaccedilatildeo nos grandes ciclos da vida se sente

participar da grande eternidade miacutetica Partindo de suas origens o homem

consegue viver integralmente e uma vez dentro da mentalidade miacutetica a

proacutepria morte pode ter sentido

18 Fragmento da canccedilatildeo ldquosonho de Iacutecarordquo escrito por Pisca e Claacuteudio Rebelo interpretaccedilatildeo do cantor

brasileiro Byafra

20

Com o intuito de imortalizar o momento de uma trageacutedia Florbela lanccedila matildeo de

aspectos mitoloacutegicos dentro de seus contos que muito nos lembra a triste

histoacuteria de Deacutedalo e Iacutecaro 19 mostrando que o espiacuterito humano de vencer

barreiras e limites nos impulsiona a superar nossas proacuteprias limitaccedilotildees

Alcanccedilar o espaccedilo e as estrelas lanccedilar-se ao infinito experimentar da

sensaccedilatildeo de liberdade interior e o desvendar do misterioso infinito eacute o que

norteia o enredo dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquo O Inventorrdquo

Praticamente todas as culturas destacam o ceacuteu como um lugar especial Esse

local era normalmente designado como a morada dos deuses Muitos povos

consideravam que as constelaccedilotildees eram representaccedilotildees dos seus mitos e

lendas Dessa forma o ceacuteu era um lugar divino e os homens somente o

alcanccedilavam quando eram convidados ou homenageados pelos deuses Mas o

atrevimento de uns culminou na desgraccedila de outros Apenas aqueles com

sabedoria e dotado de iacutentima consciecircncia disciplinar sobre sua condiccedilatildeo

humana conseguiam graccedilas aos olhos dos deuses O conflito interior era um

grande empecilho para que fatos tivessem o desenrolar bem sucedidos

Quando isso natildeo acontecia o homem reconhecia sua condiccedilatildeo de inferioridade

em relaccedilatildeo aos deuses e eram designados ldquofilhos dos homensrdquo

O aparecimento da referecircncia mitoloacutegica pressupotildee uma forte ligaccedilatildeo aos elos

do mito de fundaccedilatildeo que sustenta a harmonia familiar juntamente com

preceitos de moral tendo por priori a identidade pessoal na figura paterna

como eram conhecidos os grandes heroacuteis mitoloacutegicos por serem semideuses

Nesta constante nos eacute dado a conhecer a condiccedilatildeo humana que tambeacutem

aparece de forma intertextualizada como referecircncia ao quadro do flamengo

19 Iacutecaro era filho de Deacutedalo o construtor do labirinto que o rei Minos aprisionava o Minotauro um ser

com corpo de homem e cabeccedila de touro A lenda grega conta que Deacutedalo ensinou Teseu que seria

devorado juntamente com outros jovens pelo monstro como sair do labirinto Deacutedalo sugeriu que ele

deveria utilizar um novelo que deveria ser desenrolado a medida em que fosse penetrando no labirinto

Dessa forma apoacutes ter matado o monstro ele conseguiu fugir do labirinto O rei Minos ficou furioso e

prendeu Deacutedalo e o seu filho Iacutecaro no labirinto Como o rei tinha deixado guardas vigiando as saiacutedas

Deacutedalo construiu asas com penas dos paacutessaros colando-as com cera Antes de levantar voo o pai

recomendou a Iacutecaro que quando ambos estivessem voando natildeo deveriam voar nem muito alto (perto do

Sol cujo calor derreteria a cera) e nem muito baixo (perto do mar pois a unidade tornaria as asas

pesadas) Entretanto a sensaccedilatildeo de voar foi tatildeo estonteante para Iacutecaro que ele esqueceu a recomendaccedilatildeo e

elevou-se tanto nos ares a ponto da previsatildeo de Deacutedalo ocorrer A cera derreteu e Iacutecaro perdeu as asas

precipitando-se no mar e morrendo afogado

21

Brueghel (a Queda de Iacutecaro)20 que Florbela tatildeo bem ilustra com uma descriccedilatildeo

que mais parece uma tela ldquo Os filhos dos homens caacute em baixo deixam cair

nos campos a enxada que faz nascer o patildeo e florir as rosas os pescadores

largam os remos audaciosos que rasgam os mares e os rios e os filhos dos

homens mais duramente castigados os que habitam o formigueiro das cidades

param nas suas insensatas correrias de formigas e todos voltam a face para o

ceacuteurdquo (FLORBELA ESPANCA 199838) Aqui a intertextualidade sugerida

numa linha ecfraacutestica vai de encontro a misteriosa temaacutetica de Florbela

significando isto que o espiacuterito de aventura eacute frequentemente motivo de

incompreensatildeo e de grande solidatildeo

Do mesmo modo que impotildee a condiccedilatildeo de mortal ao homem Florbela o

enaltece dando-lhe honrarias e elevando-o a condiccedilatildeo de um deus ldquo Nos olhos

leva visotildees que os filhos dos homens natildeo conhecem Eacute um homem Deixou laacute

em baixo todo o fardo pesado e vil com que o carregam ao nascer deixou laacute

em baixo todas as algemas todos os feacuterreos grilhotildees que o prendiam toda a

suprema maldiccedilatildeo de ter nascido homem deixou laacute em baixo a sua sacola de

pedinte o seu bordatildeo de Judeu Errante e livre indoacutemito sereno na sua

miacutesera couraccedila de pano azul estendeu em cruz os braccedilos que transformou em

asasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199839) Ao atingir tal supremacia o homem

liberta-se de sua vida anterior e ganha autonomia na forma da liberdade

intriacutenseca conseguindo a superaccedilatildeo de sua forma decadente e de seus

conflitos interiores atraveacutes da liberdade celestial alcanccedilada Deacutedalo foi

conhecido como o arquitecto e artista da liberdade mesmo tendo construiacutedo o

labirinto que eacute a representaccedilatildeo do aprisionamento Aqui Florbela utiliza desse

argumento como se seus escritos fossem labiriacutenticos e teriacuteamos de encontrar

as palavras certas para desvendarmos seus caminhos encontrando neles

assim a liberdade Essa mesma liberdade transformada aqui no voo mais alto

que levaria a traacutegica morte

Apesar de mostrada diferentemente temos aqui mais uma vez a dualidade

que percorre a obra de Florbela o aprisionamento e a liberdade a vida e a

morte antiacuteteses que perfilam seu anseio humano ldquo Um dia julgou ter achado

20 Quadro de Broeghel demonstrando a queda de Iacutecaro no mar enquanto os camponeses prosseguem a sua

labuta diaacuteria

22

Oh aquele dia A embriaguez do homem que se igualou a Deus O coraccedilatildeo a

bater a bater a sentir-se grande demais para um peito tatildeo pequeno para um

tatildeo mesquinho destino A humidade das laacutegrimas a embaciar o olhar gigante

que se esquecera um momento de ter nascido pigmeu O artista o poeta o

inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de movimento e de

vida todos os que desbravavam caminhos os que talham abrem por entre os

matagais selvagens e as belas estradas largas do pensamento e das ideias As

palavras satildeo o muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes

ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)

Ao atingir o voo pleno por vezes nos afastamos da realidade natural e nos

lanccedilamos ao desconhecido sem saber o que nos espera Com isso a queda eacute

inevitaacutevel Neste seguimento vemos a intertextualidade presente sob o estigma

dos cuidados de Zeus filho de Cromo e pai dos deuses que concedeu aos

heroacuteis uma morada afastada dos homens onde os semideuses pudessem se

estabelecer nos confins da terra Eacute laacute que habitam com o coraccedilatildeo livre de

cuidados nas Ilhas dos Bem-Aventurados nas praias dos turbilhotildees profundos

do Oceano satildeo eles os heroacuteis afortunados a quem Florbela tambeacutem concede

a morada preparada como tuacutemulo perfeito para o descanso eterno A

representaccedilatildeo das deusas das aacuteguas na presenccedila das ninfas efidriacuteades21 que

simbolizam a graccedila criativa e fecundadora da natureza fazem aparecer a

presenccedila feminina que surge com o intuito de exaltar a forccedila interior que so a

mulher tem para defrontar situaccedilotildees desastrosas e encontrar soluccedilatildeo nos mais

tenebrosos conflitos bem como de dar um toque de suavidade ternura beleza

e leveza que soacute a performance feminina consegue impor ldquo hellipAs filhas dos

deuses ondinas sereias nereidas princesas encantadas acodem todas

pressurosashellipEm volta das asas mortas satildeo como flores desfolhadas em

redor dum esquife negro E olhamhelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 199842) A

sabedoria feminina evidencia-se ao se manifestar a ldquoque tinha nos olhos uma

nostaacutelgica tristeza humanardquo (FLORBELA ESPANCA 199846) como uma matildee

protectora que acalenta o filho em seu sono profundo e compreende com

tristeza a dor dos mortais ou quem sabe sua proacutepria dor na condiccedilatildeo de

imortal pois somente aos deuses era permitido o poder de arrebatar o espiacuterito

21 Referecircncia as ninfas das aacuteguas da mitologia grega

23

a um homem ldquo E aquele que tinha sido um filho dos homens ficou a dormir na

eternidade como se fora um filho dos deusesrdquo (FLORBELA ESPANCA

199846)

Como podemos perceber Florbela em sua construccedilatildeo literaacuteria delineou nas

entrelinhas dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquoO Inventorrdquo aspectos simboacutelicos

determinantes do aprisionamento e da libertaccedilatildeo humana natildeo somente no

sentido denotativo mas tambeacutem conotativo na multiplicidade de sentidos que

tais palavras propotildeem Apesar da evidecircncia colocada pela escritora ainda nos

remete a reflexatildeo pois o aprisionamento pode ser um meio de libertaccedilatildeo e a

libertaccedilatildeo um aprisionamento ldquohellipOlhou o ceacuteu profundohellipe achou Ser aviador

eacutehellipabraccedilar no mesmo abraccedilo o ceacuteu e o mar Na linguagem dos siacutembolos a

acircncora definindo a esperanccedila nunca poderaacute valer as asas que satildeo a

libertaccedilatildeo A acircncora agarra-se ao fundo e fica as asas abrem-se no espaccedilo e

penetram o ceacuteuhellipSeria aviador Quando pela primeira vez voou natildeo se

esqueceu de sentar na carlinga a seu lado ao lado do seu coraccedilatildeo aquela

que dali em diante seria a companheira de todos os dias a companheira

indefectiacutevel de todos os aviadores a Morterdquo (FLORBELA ESPANCA 1998

129)

A produccedilatildeo intertextual desses dois contos traz-nos um imaginaacuterio voltado aos

princiacutepios fundadores de conceitos e referecircncia humana Florbela baseia-se na

representaccedilatildeo da infacircncia como elemento fundador da personalidade e do

caraacutecter ou seja a figura do pai que nunca a reconheceu em vida e por outro

lado na figura de Deacutedalo e Iacutecaro tendo o pai a dualidade em sua referecircncia

paterna Eacute assim que de ldquotentaccedilatildeo em tentaccedilatildeo de fraqueza em fraqueza os

compromissos de consciecircncia levam um homem honrado agrave praacutetica de todos os

crimeshelliprdquo22

22 Fragmento do conto O Inventor de Florbela Espanca As Maacutescaras do Destino1998122

24

22 - A MULTICIPLIDADE DO HEROacuteI

ldquo A vida parada e recolhida cria heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tarderdquo23

Ao encontrarmos facetas mitoloacutegicas entre as leituras de Florbela natildeo se pode

descartar a visatildeo do heroacutei que a autora engendrou na figura de seu irmatildeo

Apeles Tiacutetulo esse dado a homens excepcionais como Ulisses que eram

venerados por seu povo da mesma forma Florbela nutria uma verdadeira

veneraccedilatildeo que a levou a personificar o Aviador a um heroacutei merecedor de

honrarias e apesar da miacutesera condiccedilatildeo de mortal foi-lhe atribuiacutedo qualidades

fiacutesicas e morais dignas de um semideus ldquo A vida parada e recolhida cria

heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tardehellip o pincel de geacutenio daacute os uacuteltimos

retoques ao cenaacuterio de epopeiahellip laacute em cima a formidaacutevel apoteose desdobra-

se no meio do pasmo das coisas Eacute um homem que tem asas E as asas

pairam descem rodopiam ascendem de novo giram latejam batem ao sol

mais aacutegeis e mais robustas mais leves e mais possantes que as das aacuteguias Eacute

um homem A face eneacutergica vincada a cinzel emerge extraordinaacuteria da vida

intensa na indecisatildeo dos contornos que lhe fazem vagos e paacutelidos um vago

pano de fundo a face e as matildeoshellipOs muacutesculos da face adivinham na forccedila

brutal das maxilas cerradas Nos olhos leva visotildees que os filhos dos homens

natildeo conhecem Os olhos dele natildeo se vecircem olham para dentro e para fora satildeo

pedras como as das estaacutetuas e vecircem mais e mais para aleacutem do que as

miacuteseras pupilas humanas Satildeo astrosrdquo (FLORBELA ESPANCA 199838 e 39)

Esta mesma condiccedilatildeo eacute dada ao Inventor autor da imaginaccedilatildeo de Florbela

ldquoRealizara os seus sonhos todos os seus sonhos Que havia mais agora Jaacute

os homens podiam sulcar os ares sem medo aos vendavais agraves coacuteleras brutais

da Natureza jaacute o ceacuteu se podia coalhar de asas como o mar de velas Todo o

homem poderia ter sem perigo e sem riscos a cobiccedilada sensaccedilatildeo de

comandar nos elementos como um semideusrdquo (FLORBELA ESPANCA

1998133)

Sabemos que o heroacutei constitui o assunto da poesia eacutepica ele tem a sua

maneira proacutepria de agir pela sua coragem e bravura e prossegue objectivos

23 Fragmento do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca198837 e 38

25

bem determinados que ao longo de sua trajectoacuteria lhe satildeo atribuiacutedos cada qual

com sua importacircncia e valor Eacute dado a ele tambeacutem o poder de decisatildeo ora

sobre seus actos ora sobre si mesmo Isso como forma de valorizar sua

sabedoria e supremacia diante daqueles a quem defendia Assim se apresenta

o heroacutei dos contos de Florbela homem-deus detentor de toda visatildeo forte

dominador senhor supremo de seu destino a quem eacute concedido um lugar

eterno junto aos astros

A realidade fictiacutecia da mitologia eacute comparada aqui a realidade autecircntica

Florbela interessa-se pelo seu heroacutei fictiacutecio como se fosse ou tratasse de uma

pessoa real com isso podemos dizer que a escrita ficcional de Florbela eacute

mimese porque a realidade de sua vida humana eacute o seu material de escrita ela

consegue transformar a realidade objectiva na realidade subjectiva vivencial

razatildeo por que nos deixamos influenciar pela sua trajectoacuteria de vida em seus

escritos Isso justifica o fato da ldquovaliosa bravurardquo ndash por uma valiosa pintura - de

seu heroacutei ser retratado em uma tela por um titatilde24 personifica assim a grande

luta travada com as forccedilas da natureza ldquoEacute um Rembrandt pintado por um titatilderdquo

(FLORBELA ESPANCA 199839) A sua proacutepria natureza humana A propoacutesito

disso parece mais reportar ao paradoxo entre o bem e o mal que lutam

constantemente pelo domiacutenio da razatildeo interior talvez alvo de Florbela

Eacute interessante observar a relaccedilatildeo que existe entre o ldquohomem com asasrdquo com

as Harpias25 que na multi-significaccedilatildeo de seu discurso nos projecta a uma

realizaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo na figura do heroacutei alado em uma transposiccedilatildeo

imaginaacuteria com uma pluralidade de sentidos que poderia ocultar um sentido

uacutenico o seu proacuteprio desejo ou o desejo de arrebatar a alma de seu morto

Tambeacutem vemos a intertextualidade corrente na pessoa de Ulisses26 o heroacutei

grego navegante Robson Crusoeacute27 Piratas dos Sete Mares28 aos capitatildees e

24 Referecircncia a segunda geraccedilatildeo dos deus mitoloacutegicos representantes das forccedilas da natureza e sem uma

personalidade bem vincadaos quais Hesiacuteodo enumerou em doze seis machos e seis fecircmeas Oceano Ceacuteu

Crio Hiperiacuteon Jaacutepeto Cronos Teia Reja Teacutemis Mnemoacutesine Febe e Teacutetis 25 As Harpias filhas de Electra (ela proacutepria filha do Titatilde Oceano) e de Taumas (filho de Ponto e de Geia)

pertencem agrave geraccedilatildeo dos preacute-oliacutempicos Elas satildeo irmatildes de iacuteris a mensageira dos deuses Representadas

quer como mulheres aladas com um aspecto fameacutelico quer como paacutessaros com cabeccedila de mulher as

Harpias residem nas ilhas Estroacutefades do mar Egeu ou ainda agraves portas do Taacutertaro Impetuosas e brutais

como a tempestade as Harpias satildeo - este eacute o sentido do seu nome - raptoras com garras fortes 26 Odisseu (na Greacutecia) ou Ulisses (em Roma) eacute um personagem da Iliacuteada e da Odisseacuteia de Homero Apoacutes

a derrota dos troianos ele iniciou uma viagem de dez anos de volta para Iacutetaca onde a sua mulher o espera

com uma fidelidade obstinada apesar da demora Essa viagem mereceu a criaccedilatildeo por Homero do poema

26

navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a

coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a

solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o

enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio

multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos

diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio

Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os

naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de

navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS

Maacutescaras do Destino 1998 p 125)

Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada

com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a

renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que

convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos

escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a

partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental

aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A

viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas

suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte

recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os

heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas

ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o

navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira

de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que

nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era

eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que

deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-

1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado

a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe

herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico

sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O

romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como

tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar

que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os

Lusiacuteadas de Camotildees

27

no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo

da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)

Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida

funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo

conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente

nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de

alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva

Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer

tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos

heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os

portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens

tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que

de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os

navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por

deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da

Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do

texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute

simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no

poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES

1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou

passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da

Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas

natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer

vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de

ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um

heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com

o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas

forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um

aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem

mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva

30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos

Lisboa

Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal

28

presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de

Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura

greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito

especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela

escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a

morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem

para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de

transformaccedilatildeo fantaacutestica

Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que

na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena

confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir

uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute

infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu

desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma

personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo

inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade

aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios

filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa

escritora o seu carma

Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei

que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora

quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem

ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles

desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma

as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista

o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de

movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos

esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do

pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam

As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes

ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)

29

CAPIacuteTULO 03

31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS

ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de

doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32

No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute

intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em

todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do

proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade

de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma

comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro

cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser

estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute

antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de

alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas

oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir

as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava

perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o

fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo

para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que

muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da

escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e

complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e

pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma

formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela

graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa

assume

32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122

30

De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete

agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem

Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites

nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute

podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido

conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao

inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um

ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma

palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a

intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda

e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas

pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma

onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo

(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um

recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o

renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio

inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a

matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada

ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe

mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata

cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de

voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e

122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso

indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam

tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele

o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as

suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um

emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados

que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e

intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica

33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ

31

Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado

transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas

Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e

que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a

imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de

dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada

dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais

significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa

escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e

sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-

as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar

inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos

era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade

existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)

A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio

Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo

tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens

que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de

tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta

ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a

proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo

Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante

notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe

de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e

medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca

mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho

branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a

socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua

presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo

(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo

deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo

queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a

intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia

humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para

32

sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo

pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no

mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais

apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva

enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente

foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)

A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja

como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo

atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute

reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em

busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito

junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos

satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad

que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que

han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas

mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como

meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do

inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os

aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias

34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939

33

32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO

ldquoA vida vem em ondas

Como o mar

Num indo e vindo infinitohelliprdquo35

A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente

foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram

o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios

da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-

portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo

ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura

universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e

nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a

esquizofrenia de sua alma

O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos

grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma

visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes

de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-

racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas

fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma

encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no

espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada

ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar

duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava

que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se

35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos

em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria

imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia

grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios

Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e

cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam

da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela

Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a

sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor

34

sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o

olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de

um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o

seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No

reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que

constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia

Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor

das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que

participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na

claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma

a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial

apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se

imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA

ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta

solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser

acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas

pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de

existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas

dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma

mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar

agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)

As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar

aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de

Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a

37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta

nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet

tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido

advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte

de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga

(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre

1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a

questatildeo (Hamlet ato III cena I)

38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)

que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era

destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar

35

travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes

questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente

humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a

vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa

loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz

a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair

numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua

frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico

mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de

transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a

morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano

capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas

ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de

integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de

totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma

ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade

de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida

dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a

seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas

iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives

mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas

dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a

cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute

perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras

velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida

de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar

costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras

por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e

grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme

O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu

amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do

Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para

toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos

36

Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser

salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma

dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo

desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave

liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos

secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a

uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo

desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a

boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia

pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a

mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais

alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se

nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira

as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de

alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora

julga existir no seu misteacuterio

O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e

forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e

sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que

orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente

num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das

contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute

traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas

que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas

figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas

narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um

imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e

39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII

mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a

bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por

alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua

tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar

Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A

histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito

em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que

aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas

aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma

37

refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus

fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a

sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades

da dinacircmica universal

Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar

simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos

narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos

siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um

contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da

efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma

capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde

diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e

exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia

essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel

mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo

do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do

Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)

e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo

social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)

na representatividade literaacuteria do mar

38

CAPIacuteTULO 04

41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA

ldquoGosto de ti apaixonadamente

De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo

De ti que me trouxeste pela matildeo

Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40

Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso

a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade

directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na

poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua

dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees

Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita

capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e

um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz

e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a

dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas

conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute

e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria

serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem

quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto

anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse

em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita

maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte

com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e

quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e

emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos

paradoxos

40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no

livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004

Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo

Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11

39

Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos

toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-

romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido

num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia

com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes

profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas

sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo

acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando

a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A

derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a

conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas

da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da

sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No

entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas

romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a

impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo

definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha

aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento

em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o

passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era

tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto

A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos

acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-

Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs

Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os

Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de

Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de

Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o

egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo

narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica

Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute

neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o

poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem

40

esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma

essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no

iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma

questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos

encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem

sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos

interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas

as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um

exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo

tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo

daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita

conteacutem

41

42 - UM PERCURSO COMPARATIVO

ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os

vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e

outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que

ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute

foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41

ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto

Olhou em roda natildeo achou ningueacutem

Por entre as campas arrastando o manto

Com lentos passos caminhou aleacutem

Abandonado neste chatildeo repousa

Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui

Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa

Sobre este peito que bateu por tirdquo42

A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e

o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-

romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua

linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa

o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se

O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando

proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos

moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na

literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror

Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou

comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas

circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de

comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e

sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos

41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda

Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos

42

ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de

outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou

Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)

Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal

de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma

optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada

pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada

no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus

sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa

suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois

dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)

Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade

todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional

natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute

afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute

tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima

do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo

Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela

e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a

prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua

intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a

dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as

influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente

que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz

directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para

a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o

intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era

partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada

por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das

rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de

branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza

43

ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas

Longas roupagens de neveda cor

Singela croa de virgiacutenias rosas

Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43

ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de

branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila

devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa

nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)

Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de

conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se

para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da

imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a

partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a

presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os

uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem

eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera

absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor

ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria

A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a

intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um

testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista

e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas

caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da

temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao

fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma

retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras

masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo

homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma

mulher

43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12

44

(hellip)

Mulher formosa que adorei na vida

E que na tumba natildeo cessei damar

Por que atraiccediloas desleal mentida

O amor eterno que te ouvi jurar

Amor engano que na campa finda

Que a morte despe da ilusatildeo falaz

Quem dentros vivos se lembrara ainda

ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)

Talvez que rindo dos protestos nossos

Gozes com outro dinfernal prazer

E o olvido cobriraacute meus ossos

Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44

Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o

vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as

bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis

e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma

essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o

podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA

ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de

sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a

eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos

na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto

com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais

de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas

palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o

esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal

seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu

passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre

44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9

45

que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as

matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos

das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam

para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)

Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno

num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista

melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias

possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela

um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica

natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem

fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo

intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas

rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso

consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo

intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas

solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou

com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a

todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas

as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os

sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado

daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)

Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do

Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais

significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO

MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do

quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e

estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que

desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo

da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina

agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das

espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute

presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos

46

ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido

Das sepulturas o gelado poacute

Dois esqueletos um ao outro unido

Foram achados num sepulcro soacuterdquo45

Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de

imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da

intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo

buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma

enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo

recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as

laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas

deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo

sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais

moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas

austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade

dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete

palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam

pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e

59)

Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao

ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram

escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia

literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo

exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde

ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais

tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo

merecida

45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos

47

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas

interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca

Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo

depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves

transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo

sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia

ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas

metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver

com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao

sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas

tambeacutem ao que relaciona a morte

A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua

eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela

mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e

sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo

quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade

que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas

personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a

humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de

enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e

sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas

e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o

que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte

presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais

condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus

contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e

desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse

interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural

equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes

interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute

Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem

uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses

48

elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o

inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela

tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses

elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma

civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor

sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam

sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do

intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea

Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o

menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que

para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro

compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo

que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou

seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua

imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que

essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar

atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a

outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual

proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque

esconde-se ou projecta-se no discurso do outro

Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o

caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo

relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens

marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um

significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um

desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos

de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e

fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave

realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande

maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe

um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo

46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de

Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360

49

obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a

escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada

Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a

infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute

aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo

espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a

verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes

50

REFEREcircNCIA BIBLIOGRAacuteFICA

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psicanaacutelise e o pensamento Editora UNICAMP Satildeo Paulo

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httpwwwprahojecombrflorbelacat=15

httpwwwfclarunespbrpublicaccedilotildeesrevistaliberdadehtm

httparestasdeventonosapoptlabaredas2html

Page 2: AS MÁSCARAS SIMBÓLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA … Jaqueline... · 2019-10-31 · A narrativa ficcional não é o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca, mas, assim como

2

UNL - UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA

FACULDADE DE CIEcircNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

MESTRADO EM LIacuteNGUAS LITERATURAS E CULTURAS

ESTUDOS ROMAtildeNICOS TEXTOS E CONTEXTOS

AS MAacuteSCARAS SIMBOacuteLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA ESPANCA

Monografia sobre o estudo analiacutetico simboacutelico

e intertextual do livro de contos ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo

de Florbela Espanca Destina-se a conclusatildeo do curso de

Mestrado em Liacutenguas Literaturas e Culturas da Univer_

sidade Nova de Lisboa na Faculdade de Ciecircncias Sociais

e Humanas tendo por autora Jaqueline Barbosa Murta e

orientador Prof Doutor Nuno Juacutedice

FEVEREIRO - 2008

3

JAQUELINE BARBOSA MURTA

AS MAacuteSCARAS SIMBOacuteLICAS E INTERTEXTUAIS

EM FLORBELA ESPANCA

Aprovada em ___________________ de 2008

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________________

Prof Dr (a)___________________________

Universidade Nova de Lisboa

____________________________________________________

Prof Dr (a)__________________________

Universidade Nova de Lisboa

____________________________________________________

Prof Dr (a)__________________________

Universidade Nova de Lisboa

4

DEDICATOacuteRIA

A Ladir Cidinha Biacute JucaTataacute e Didi

ldquoMeu grande alicercerdquo

A Israel (in memoriam) e Daniel

ldquo Amores eternosrdquo

A Noel

ldquoMeu cavaleiro das armas escurasrdquo

Ao Centro de Estudos Florbela Espanca

da Universidade Federal de Rondocircnia-UNIR

ldquoNosso primeiro encontrordquo

5

IacuteNDICE

RESUMOhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 06

ABSTRACThelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 07

INTRODUCcedilAtildeOhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 08

CAPIacuteTULO 01helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 12

11 ndash Enquadramento Teoacutericohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 12

12 - Abordagens sobre ldquoAs Maacutescaras do Destinordquohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 16

CAPIacuteTULO 02helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip19

21 ndash Sonho de Iacutecarohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip19

22 ndash A Multiplicidade do Heroacuteihelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip24

CAPIacuteTULO 03 helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 29

31 ndash A Intencionalidade das Aacuteguashelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip29

32 ndash A Simbologia do Mar Florbelianohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip33

CAPIacuteTULO 04helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip38

41 ndash A Intertextualidade Ultra-Romacircntica em Florbelahelliphelliphelliphelliphelliphellip38

42 ndash Um Percurso Comparativohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip41

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIShelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip47

REFEREcircNCIA BIBLIOGRAacuteFICAhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip50

6

RESUMO

A narrativa ficcional natildeo eacute o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca

mas assim como em seus poemas seus contos tambeacutem natildeo deixam de ter a

marca particular que a caracteriza como ldquo hellipraiz e flor A noite e a estrela da

alva a primeira A morte e a vida Aquela pudica amante e lilial irmatilderdquo1 Atraveacutes

da anaacutelise interpretativa podemos desvendar lacunas que fazem do seu livro de

contos As Maacutescaras do Destino um fascinante mosaico de leituras Passando

pela influecircncia referencial da mitologia dos deuses agrave consagraccedilatildeo heroacuteica de

seus filhos (semideuses) fonte imprescindiacutevel para o surgimento da

representaccedilatildeo simboacutelica do mar e seus respectivos elementos interpretativos

como bases da projecccedilatildeo do estado de alma dos escritores sentimentalistas

em que o tema da ldquodorrdquo permite a reutilizaccedilatildeo da imagem noutra construccedilatildeo

textual podendo ocorrer a superposiccedilatildeo a absorccedilatildeo e a transformaccedilatildeo de uma

multiplicidade de outros textos Esse estilo elaborado de escrita possibilita um

estudo comparado com outros textos Aqui essa relaccedilatildeo intertextual com um

poema do consagrado escritor ultra-romacircntico Soares de Passos permite

observar a tendecircncia decadentista e ultra-romacircntica em Florbela de modo que

vem confirmar seu conflito interior em detrimento de sua existecircncia Mesmo

assim natildeo deixou de reafirmar-se como escritora de sua eacutepoca Foi designada

como a ldquoPoetisa do Amorrdquo por Joseacute Reacutegio e o mesmo ainda ressalta que

ldquoextraordinaacuteria forccedila da natureza vulcatildeo sempre aceso de violentas paixotildees e

desejos que foi a vida e obra de Florbela2

PALAVRAS ndash CHAVE

Anaacutelise comparaccedilatildeo conto decadentismo Florbela Espanca heroacutei

interpretaccedilatildeo intertextualidade mar mito poesia simbolismo sentimentalismo

ultra-romantismo

1 Citaccedilatildeo extraiacutedo do website httparestasdeventonosapoptlabaredas2html Comentaacuterio de Joseacute

Antoacutenio Raposo sobre Florbela e Duratildeo 2 Citaccedilatildeo extraiacutedo do website httparestasdeventonosapoptlabaredas2html Comentaacuterio de Joseacute

Antoacutenio Raposo sobre Joseacute Reacutegio e Florbela

7

ABSTRACT

Florbela Espanca is not only well-known for her narrative fiction but also for her

poems Her stories have its particular mark which is characterized by such

stories asRoot and Flower The Night and the Star of Dawn The Spring

The Bashful Lover and Lilial Sister Through the analysis we can unmask the

gaps that make-up the fascinating reading of mosaic Passing

through referential influence of the Mythology of Gods to heroic consecration

of their children (semi-gods) an indispensable source for the appearance of

symbolic representation of the sea and its respective interpretative elements as

the base for the projection of the state of souls of the sentimental writers in

which the theme of pain permits the reutilization of an image in another textual

construction where superposition absorption and the transformation of a

multiplicity of other texts This elaborated style of writing makes it possible for

the study of comparisons with other texts Here this intertextual relation with a

poem of the consecrated ultra-romantic writer Soares de Passos permits the

observation of the decadent and ultra-romantic tendency in Florbela so that it

confirms its inner conflict in detriment to its existence Even so it doesnt stop

reaffirming her as a writer of her time She was named Poetess of Love by

Joseacute Reacutegio and it also highlights The Extraordinary Force of Nature Violent

Passion always alighted by a Volcano and desires which was the life and work

Of Florbelardquo

Key Words Analysis Comparison Story Decadence Florbela Espanca Hero

Interpretation Intertextuality Sea Myth Poetry Symbolism Sentimentality

Ultra-romanticism

8

INTRODUCcedilAtildeO

A primeira reflexatildeo que vem a nossa mente quanto que por acaso ouvimos as

primeiras duas estrofes de um dos sonetos de Florbela Espanca ldquoFanatismordquo3

eacute de estar diante de um texto onde emana o que existe de mais sentimental em

um autor Sem ainda conhecer os desiacutegnios desta ldquoBela princesa da planiacutecie

Alentejanardquo4 podemos perceber que buscava dizer algo mais que apenas as

belas palavras proferidas em seus versos que eram imbricados de metaacuteforas

fortes onde mostrava-se irmatilde companheira amante princesa magoada louca-

fanaacutetica inconstante e natildeo deixava ao contraacuterio do poema ldquoFumordquo5 fugir de

seus dedos a essecircncia de uma autora que buscava as respostas para sua

inquietude na projecccedilatildeo da figura ideal

As vicissitudes de seu tempo natildeo inibiram-na de mostrar seu grande talento

para a poesia e contos em alguns momentos de sua escrita Florbela gritava

por liberdade natildeo soacute de expressatildeo e participaccedilatildeo no meio artiacutestico mas por

uma liberdade intimista que para o seu tempo era mal interpretada pois a

sociedade concebia a figura da mulher fraacutegil delicada recatada e submissa agraves

vontades e desejos masculinos o que Florbela tentava sem o querer ser As

agruras desse tormento vivido pela mulher seria entatildeo imortalizado pela

escritora

Ao lermos seus escritos sem duacutevida entramos por um caminho de vastas

indagaccedilotildees buscando perceber qual seria a grande inquietude que envolvia

esta mulher em momentos de impacto com o real e a tatildeo grandiosos momentos

de nostalgia amorosa levando-nos a apreciar a natureza tal qual como eacute

descrita em seus poemas assim como estabelecermos uma intimidade com

uns dos temas que mais aflige as pessoas mas que de uma certa forma nos

coloca frente a frente com uma realidade a qual natildeo podemos fugir ndash a morte

Essa temaacutetica podemos dizer que eacute a mais forte tendecircncia dos escritos de

Florbela natildeo soacute na poesia que se faz presente na maioria de seus livros mas

tambeacutem em seus contos envolvendo-nos em situaccedilotildees onde o tema morte

passa a impulsionar nossa expectativa em nos descobrir ou redescobrir diante

da vida ou do mais profundo e iacutentimo desejo humano de conhecer-mos a noacutes

3 Poema contido no livro de ldquoSoror Saudaderdquo publicado em 1923 4 Frase proferida por Duratildeo seu amigo fiel 5 Poema contido na livro de ldquoSoror Saudaderdquo

9

mesmos e infiltra-nos por caminhos incoacutegnitos que cobrem de maacutescaras nosso

destino assim como eacute citado no tiacutetulo de seu livro de contos6 o qual dedicou a

seu irmatildeo Apeles deixando-nos por vezes a margem de reflexotildees

existencialistas mas natildeo o existencialismo puro dos filoacutesofos questionadores

mas um existencialismo amoroso sensiacutevel capaz de nos inibir com subtilezas

representativas de um mesclado de tendecircncias literaacuterias que preenche seus

textos de extremo romantismo e passa para a evidecircncia dos fatos que vatildeo do

real ao ideal do acontecido a suposta consequecircncia

De fato que sua vida influenciou sua escrita7 tanto que nesta inquietante busca

pela pessoa ideal que era acometida a escritora levou a mulher a concretizar

sua indubitaacutevel certeza de que seria compreendida e aceita apenas depois de

repousada sua pena agraves matildeos da morte e descansar em teus braccedilos fato esse

descrito no poema ldquoAacute Morterdquo encontrado em sua mesa no dia em que suicidara

Soacute assim seria quebrado o encanto da escrita como natildeo o foi Foi sim

quebrado o encanto do escrever pois a escrita era a forma de agir sobre a sua

realidade mas o encanto da escrita permanece e esses ldquo que os vivos passem

adianterdquo8 como a proacutepria Florbela proferira E assim estaacute Florbela vive em sua

obra sua temaacutetica nos chega como notiacutecia surpreendente e nos envolve em

seus misteacuterios simboacutelicos Sua meacutetrica ao molde claacutessico e uma temporalidade

construiacuteda em seus escritos atraveacutes de seus livros de forma proposital nos

deixa perceber o que vai no iacutentimo de uma mulher parece que retrata com

transparecircncia as fantasias ou fases interiores do imaginaacuterio feminino que de

intreacutepida voluntariosa libertina amante insaciaacutevel inconstante passa a ser

casta pura virtuosa religiosa isso tudo sem deixar de ser extraordinariamente

apaixonada como ela mesma atesta sua proacutepria natureza ldquoSou filha da

charneca erma e selvagemrdquo9

Do mesmo modo que na poesia a Bela escritora mostra-nos seu talento para a

prosa em seu livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo Diferente da poetisa do ldquoeurdquo os

contos geralmente em terceira pessoa natildeo deixam de ter a marca registada

de Florbela a insatisfaccedilatildeo pela vida e a fuga atraveacutes da morte com fortes

mesclas de romantismo Outra caracteriacutestica presente neste livro eacute a ldquolacunardquo

6 Referecircncia ao livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo dedicado a seu irmatildeo Apeles 7 Referecircncia aos vaacuterios estudos feitos sobre a vida a escritora 8 Citaccedilatildeo retirado da dedicatoacuteria do livro ldquoAs Mascaras do Destinordquo 1998 33 9 Citaccedilatildeo do poema ldquoEsfingerdquo do livro Poesias Completas 2004 276

10

deixada a margem da interpretaccedilatildeo ou seja o que se leria nas entrelinhas do

texto Tais interpretaccedilotildees ficam a cargo do leitor que de certa forma interage

com as narrativas preenchendo-lhes o vazio deixado pela escritora ldquovaziordquo

esse que tambeacutem a acompanha nesta obra e a quem dedica ldquoeste livro eacute o

livro do meu mortordquo10 Na realidade Florbela queria deixar imortalizado seu

irmatildeo ldquoNatildeo queria que meu morto morresse comigohellipE escrevi estas

paacuteginashelliprdquo que foram de encontro a profundeza de seu pensamento ou seja

uma consciecircncia transcendental em caminho a ldquotalrdquo liberdade tanto desejada

que jaacute em versos reclamava

ldquoEu ponho-me a sonhar transmigraccedilotildees

Impossiacuteveis longiacutenquos milagrosas

Voos amplos ceacuteus distantes migraccedilotildees

Longehellip noutras esferas luminosas

E pelo meu olhar passam visotildees

Ilhas de bruma e naacutecar drsquooiro e rosashellip

E eu penso que liberta de grilhotildees

Hei-de aportar agraves Ilhas misteriosasrdquo11

Esse doce misteacuterio que cheio da natureza de ser mulher eacute o que intriga-nos a

cada leitura e nos faz buscar conhecer mais de sua vida para entendermos sua

obra Seus contos nos mostram uma Florbela detentora de uma

intertextualidade viva que no decorrer das narrativas remete-nos a outros

tempos a outras leituras Cria um ambiente nostaacutelgico e contemplativo de

vasto campo simboacutelico percorrendo as mais variadas fontes para sua

inspiraccedilatildeo criadora com isso ao depararmos com o quadro descritivo na

narrativa recriamos esse quadro imaginaacuterio em nossa mente como em um

conto de fadas ali misturam-se fatos reais e imaginaacuterios tempos reais e

imaginaacuterios personagens reais e imaginaacuterias tudo ldquo eacute luminosas e exaltante

10 Citaccedilatildeo da dedicatoacuteria do livro ldquoAs maacutescaras do Destinordquo 1998 32 11 Poema ldquoLibertardquodo livro Poesia Completa 2004 75

11

emoccedilatildeordquo foi enchido de ldquotoda a espiritualidade beleza dolorosa e humildade e

acima de tudo as almasrdquo criadas ldquosatildeo gritos e soluccedilos de amorrdquo12

Diante disso o foco do estudo e pesquisa sobre Florbela Espanca se limitaraacute

em um levantamento analiacutetico e criacutetico dando vaacuterias possibilidades de

interpretaccedilatildeo bem como referecircncias intertextuais que satildeo citadas e ora

aparecem em seus contos no livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo Tal estudo

objectiva um conhecimento interpretativo e comparativo das leituras feitas por

Florbela e o modo como vieram a influenciar e dar sustentabilidade ao enredo

dos contos Quem sabe poderemos conhecer um pouco mais dessa misteriosa

mulher que dizia natildeo conhece a si mesma

O que sou eu AmorSei laacute que sou

Sou tudo e nada grande e pequenina

Sou a que canta uma ilusatildeo divina

Sou a que chora um mal que acabou

Eu sei laacute que quimera me beijou

E nunca o soube assim desde pequenina

Haacute neste mundo tanta amarga sina

A minha eacute saber nunca quem sou

Esfinge sonho tonto de desejos

Na tua boca sou uma asa aberta

A palpitar vermelha como os beijos

Andorinhahelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellipa voejar13

helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip

helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip

12 Citaccedilatildeo da dedicatoacuteria do livro ldquoAs maacutescaras do Destinordquo 1998 33 13 Poema sem tiacutetulo editado no livro ldquoEsparsos de Florbelardquo em Poesia Completa 2004 78

12

CAPIacuteTULO 01

11 - ENQUADRAMENTO TEOacuteRICO

Na literatura actual eacute frequente apontar-se como um dos factores de

textualidade a referecircncia - expliacutecita ou impliacutecita ndash a outros textos tomando estes

um sentido bem amplo (orais escritos visuais etc) A esse diaacutelogo entre textos

daacute-se o nome de intertextualidade

Eacute evidente que a intertextualidade estaacute ligada ao conhecimento de mundo que

deve ser compartilhado ou seja comum ao produtor e ao receptor do texto

Desta forma pressupotildee um universo cultural muito amplo e complexo pois

implica antes de tudo na identificaccedilatildeo e no reconhecimento de remissotildees a

obras ou a textostrechos mais ou menos conhecidos aleacutem de exigir do

interlocutor a capacidade de interpretar a funccedilatildeo daquela citaccedilatildeo ou alusatildeo em

questatildeo

Todas as questotildees ligadas agrave intertextualidade influenciam tanto o processo de

produccedilatildeo como o de compreensatildeo de textos o importante eacute natildeo encararmos a

intertextualidade apenas como a identificaccedilatildeo da fonte e sim que nos

preocupemos em estudaacute-la como um enriquecimento da leitura e da produccedilatildeo

de textos e sobretudo tentando mostrar a funccedilatildeo da sua presenccedila na

construccedilatildeo e no(s) sentido(s) dos textos

Como se pode notar na constituiccedilatildeo da proacutepria palavraldquointertextualidaderdquo

significa relaccedilatildeo entre textos Considerando-se texto num sentido lato como

um recorte significativo feito no processo ininterrupto de semiose cultural isto eacute

na ampla rede de significaccedilotildees dos bens culturais Pode-se afirmar que a

intertextualidade eacute inerente agrave produccedilatildeo humana O homem sempre lanccedila matildeo

do que jaacute foi feito em seu processo de produccedilatildeo simboacutelica Assim sendo o

texto como objecto cultural tem uma existecircncia fiacutesica que pode ser apontada e

delimitada um filme um romance um anuacutencio uma muacutesica Entretanto esses

objetos natildeo estatildeo ainda prontos pois destinam-se ao olhar agrave consciecircncia e agrave

recriaccedilatildeo dos leitores Cada texto constitui uma proposta de significaccedilatildeo que

natildeo estaacute inteiramente construiacuteda A significaccedilatildeo se daacute no jogo interpretativo

entre o texto e seu destinataacuterio Este uacuteltimo eacute um interlocutor ativo no processo

de significaccedilatildeo na medida em que participa do jogo intertextual tanto quanto o

autor

13

A intertextualidade se daacute pois tanto na produccedilatildeo como na recepccedilatildeo da grande

rede cultural de que todos participam Filmes que retomam filmes quadros que

dialogam com outros propagandas que se utilizam do discurso artiacutestico

poemas escritos com versos alheios romances que se apropriam de formas

musicais tudo isso satildeo textos em diaacutelogo com outros textos intertextualidade

Um texto remete a outro para defender as ideias nele contidas ou para

contestar tais ideias isso se daacute atraveacutes de um estudo comparativo entre textos

que ligam-se pela elaboraccedilatildeo artiacutestica de seu criador Eacute atraveacutes da anaacutelise

comparativa que tomamos ciecircncia da emergecircncia simboacutelica existente entre os

textos e a que niacutevel se daacute tal emergecircncia quanto agrave diacronia e sincronia que os

ligam Em qualquer niacutevel a produccedilatildeo simboacutelica eacute pois sempre uma retomada

de outras produccedilotildees perfazendo um jogo infinito que enreda autores e leitores

Apropriando-nos entatildeo de Schneider podemos afirmar

ldquoO texto literaacuterio eacute um palimpsesto O autor antigo escreveu uma lsquoprimeirarsquo vez

depois sua escritura foi apagada por algum copista que recobriu a paacutegina com

um novo texto e assim por diante Textos primeiros inexistem tanto quanto as

puras coacutepias o apagar natildeo eacute nunca tatildeo acabado que natildeo deixe vestiacutegios a

invenccedilatildeo nunca tatildeo nova que natildeo se apoacuteie sobre o jaacute-escritordquo (SCHNEIDER

199071)

No sentido estrito a palavra texto remete a uma ordem significativa

verbal Dentro dessa ordem a literatura vale-se amplamente do recurso

intertextual consciente ou inconscientemente Em razatildeo disso a

intertextualidade faz-se operador de leitura Eacute importante marcar os primoacuterdios

de Bakhtin em relaccedilatildeo a esses estudos divulgados por Juacutelia Kristeva Eacute dela o

claacutessico conceito de intertextualidade ldquo todo texto se constroacutei como mosaiacuteco de

citaccedilotildees todo texto eacute absorccedilatildeo e transformaccedilatildeo de um outro textordquo

(KRISTEVA 197464) Na verdade a intertextualidade inerente agrave linguagem

torna-se expliacutecita em todas as produccedilotildees literaacuterias que se valem do recurso da

apropriaccedilatildeo colocando em xeque a proacutepria noccedilatildeo de autoria Eacute o que vamos

observar ao longo do estudo no conto ldquoA Mortardquo em ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo

de Florbela Espanca temos aqui um bom exemplo do que se define como

intertextualidade as relaccedilotildees entre textos a citaccedilatildeo de um texto por outro

enfim o diaacutelogo entre textos Sendo assim para entender um texto na sua

totalidade eacute preciso conhecer o(s) texto(s) que nele fora(m) citado(s)

14

Eacute nesse contexto que Kristeva membro actuante da criacutetica francesa elabora

seu conceito de intertextualidade considerando que todo texto se constroacutei como

ldquomosaico de citaccedilotildeesrdquo Esse entendimento acarreta a consideraccedilatildeo de que a

intertextualidade eacute um fenoacutemeno que se encontra na base do proacuteprio texto

literaacuterio imbricada com a inserccedilatildeo deste num muacuteltiplo conjunto de praacuteticas

sociais relevantes A partir de Kristeva ldquotextordquo passa a ser entendido como o

evento situado na histoacuteria e na sociedade que natildeo apenas reflecte uma

situaccedilatildeo mas eacute essa proacutepria situaccedilatildeo apagando linhas divisoacuterias entre as

disciplinas e constituindo um cruzamento entre diferentes superfiacutecies textuais e

distintas aacutereas do saber cientiacutefico e da esfera artiacutestica ldquoPelo seu modo de

escrever lendo o corpus literaacuterio anterior ou sincroacutenico o autor vive na histoacuteria

e a sociedade se escreve no textordquo (KRISTEVA 197498)

A partir dos postulados deste conceito observamos que a intertextualidade

reflecte a concepccedilatildeo do texto literaacuterio como carregado de outros textos

inclusive do ldquotextordquo da realidaderdquo E eacute essa realidade polifoacutenica de vivecircncia

tumultuosa e inquietante de dissabores intriacutensecos e por vezes

transcendentais de acontecimentos filtrados atraveacutes de sua proacutepria

sensibilidade e sua imaginaccedilatildeo fantaacutestica que Florbela Espanca tem

manifestado para que seja compreendido seus misteacuterios de forma a dar mais

realce atraveacutes das vaacuterias formas de compreensatildeo e interpretaccedilatildeo intertextual e

comparativa de sua obra Neste sentido a teoria intertextual e comparativa

seraacute um guiatildeo a nortear um trabalho na tentativa de conhecermos essa

enigmaacutetica escritora que foi Florbela Espanca E eacute dela o incentivo para um

maior entendimento daquilo que nos deixou ldquoPara mim Para ti Para ningueacutem

Quero atirar para aqui negligentemente sem pretensotildees de estilo sem

anaacutelises filosoacuteficas o que os ouvidos dos outros natildeo recolhem reflexotildees

impressotildees ideias maneiras de ver de sentir ndash todo o meu espiacuterito paradoxal

talvez friacutevolo talvez profundo Compreendi por fim que nada compreendi que

mesmo nada poderia ter compreendido de mimhellipRestam-me os outroshellip

talvez por eles possa chegar agraves infinitas possibilidades do meu ser misterioso

intangiacutevel secretordquo (FLORBELA ESPANCA 199833)14

14 Fragmento retirado do livro ldquoDiaacuterio do Uacuteltimo Anordquo Bertrand Editora

15

A proposta de entendimento intertextual traacutes um reflexo de sua existecircncia

registado em sua ldquoDivina Comeacutediardquo15 pelos seus ldquoVersosrdquo16

ldquoVersos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip

Pedaccedilos de sorrisos branca espuma

Gargalhadas de luz cantos dispersos

Ou peacutetalas que caem uma a umahellip

VersosSei laacute Um verso eacute o teu olhar

Um verso eacute o teu sorriso e os de Dante

Eram o seu amor a soluccedilar

Aos peacutes de sua estremecida amante

Meus versos Sei eu laacute tambeacutem que satildeohellip

Sei laacute Sei laacute Meu pobre coraccedilatildeo

Partidos em mil pedaccedilos satildeo talvezhellip

Versos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip

Meus soluccedilos de dor que andam dispersos

Por este grande amor em que natildeo crecircsrdquo

15 Referecircncia a Obra de Dante Alighieri A Divina Comeacutedia uma viagem ao inferno purgatoacuterio e ao

paraiacuteso Aqui em relaccedilatildeo a vida de Florbela a palavra comeacutedia tem duplo significado o de origem dando

seguimento bom ao desenlace das personagens e em seu sentido coacutemico aos factores da inconstacircncia da

escritora 16 Referecircncia ao poema de Florbela escrito em O livro Drsquoele Poesia Completa2004 208

16

13 - ABORDAGENS SOBRE ldquoAS MAacuteSCARAS DO DESTINOrdquo ldquoOs contos satildeo como ela - siacutembolo de permanecircncia no pensamento da terra fio

de amor que manteacutem a sua magneacutetica forccedila saudade de tudo que podia

significar felicidade e expressatildeo do afectordquo17

Dedicada ao seu irmatildeo Apeles Demoacutestenes da Rocha Espanca ndash ldquoAs

Maacutescaras do Destinordquo eacute uma obra inspirada na tristeza e dor que a perda do

irmatildeo causa em Florbela Sua dedicatoacuteria ldquoeacute como um punho culpado que

Florbela assenta no proacuteprio peitordquo (FLORBELA ESPANCA 199825) assim diz

Agustina Bessa-Luiacutes autora do prefaacutecio escrito em 1979 que orienta-nos sobre

as condiccedilotildees de leitura que envolve esta obra

A dedicatoacuteria escrita por Florbela comprova o amor de irmatildeos Apeles era

ldquoAquele que das mesmas entranhas foi nascido que ao calor do mesmo

amplexo foi gerado Aquele que traz no rosto as linhas do teu rosto nos olhos a

aacutegua clara dos teus olhos o teu Amigo o teu Irmatildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA

199831 e 32) Ela escrevia tais palavras como uma matildee que acabara de

perder a um filho ldquopara que tua mocidade natildeo trema de o ver partir um dia

bom e meigo para que vivas na ilusatildeo bendita de teres um filho forte e belo

para te obrigar a encarar sorrindo as coisas vis e feias deste mundohelliprdquo

(FLORBELA ESPANCA 199831) Na realidade tais clamores professados soacute

a uma matildee que perdera seu filho eacute permitido senti-los

Escrita no final de 1927 reuacutene oito contos denominados ldquoO Aviador ldquoA Mortardquo

ldquoOs Mortos Natildeo Voltamrdquo ldquo O Resto Eacute Perfumerdquo ldquoA Paixatildeo de Manuel Garciardquo

ldquo O Inventorrdquo ldquoAs Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquoO Sobrenaturalrdquo

Como demonstram os tiacutetulos dados aos contos o tema ldquomorterdquo eacute o ponto de

convergecircncia entre os enredos e vem reforccedilar o pendor funesto da obra de

Florbela natildeo apenas pelo desaparecimento do irmatildeo mas que jaacute fazia parte

da proacutepria insatisfaccedilatildeo intimista que a escritora detinha Nesta altura por forccedilas

das circunstacircncias parecia estar desvinculada da vida como uma morta e sua

perpeacutetua busca lhe assegura uma espeacutecie de eternidade

Natildeo participando do enredo assim sendo em 3ordf pessoa mostrava-se uma

observadora a narrar fatos onde a realidade se confunde com o imaginaacuterio

17 Fragmento escrito por Agustina Bessa-Luiacutez retirado do prefaacutecio do livro As Maacutescaras do Destino de

Florbela Espanca 199810

17

fantaacutestico e soacute nos traacutes agrave lucidez da compreensatildeo devido as referecircncias

intertextuais as quais satildeo comuns aos contos pois ldquo o fantaacutestico se caracteiza

por una instrusioacuten brutal del misteacuterio en el marco de la vida real y estaacute ligado

generalmente a los estados moacuterbitos de la conciencia que en los fenoacutemenos

de pesadilla e de deliacuterio proyecta ante siacute imaacutegenes de sus angustias e de sus

terroresrdquo (GEORGES JEAN 1889 68 e 69) Mas a escritora natildeo desvincula-se

de sua obra uma forte tendecircncia de Florbela Marcando presenccedila no conto ldquoO

Resto Eacute Perfumerdquo interage como personagem assim assume o relato como

se procedesse de outro narrador para que pudesse penetraacute-lo e manter suas

caracteriacutesticas inquietantes e paradoxais acrescentando uma forte dose de

existencialismo e a presenccedila do ldquoEurdquo que vem reforccedilar a categoria de seus

relatos miacuteticos Aqui o ldquofantaacutesticordquo se confunde com o ldquomaravilhosordquo isso

devido aos relatos mitoloacutegicos que implica durante a leitura em um

redireccionamento do leitor a outro espaccedilo a outro tempo onde temos a ilusatildeo

de vivermos por um breve momento em outro lugar Florbela nos permite a

viagens imaginaacuterias em que o maravilhoso de seus contos dependeraacute de uma

infinidade de interpretaccedilotildees que natildeo seratildeo necessariamente interpretaccedilotildees

racionais pois as interpretaccedilotildees paralelas e divergentes satildeo sempre possiacuteveis

devido a riqueza do conto em si que no caso de Florbela estatildeo ligados aos

estados moacuterbidos de sua consciecircncia

Sabemos que algum dos elementos imaginaacuterios dos contos de Florbela estaacute

ligada ao realismo de sua histoacuteria verdadeira e isso eacute capaz pela virtudes que

soacute os contos de fadas pode proporcionar apesar de sua vida inconstante e

cheia de maacutegoas soube mascarar seu inconsciente e dar a seu relato um

intercacircmbio gracioso e sentimental com sua vida Por sua vez tais relatos

remetem-se a duas vertentes essenciais nos contos a primeira de propagar as

formas simboacutelicas durante a histoacuteria e a segunda de inserir essas formas

mediante a expansatildeo de sua escrita atraveacutes dos contos Um bom exemplo

disso eacute a clareza de como um conto complementa outro Atentemos para os

detalhes simboacutelicos de ldquoO Inventorrdquo que parece encerrar-se em ldquoO Aviadorrdquo da

mesma forma acontece em ldquoO Sobrenaturalrdquo e ldquoOs Mortos natildeo Voltamrdquo ldquoAs

Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquo A Paixatildeo de Manuel Garciardquo por fim

vemos a profunda reflexatildeo sobre a vida em ldquoO Resto eacute Perfumerdquo culminando

no conto ldquoA Mortardquo que tem em seu final a imersatildeo nas aacuteguas elemento

18

comum em todos os contos que parece como siacutembolo de redenccedilatildeo Temos

aqui um quadro para um estudo comparativo minucioso entre os proacuteprios

contos

Como afirma Agustina Bessa-Luiacutes ldquo para ler a prosa eacute preciso compreender a

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199816) Neste contexto natildeo ousamos falar

do quadro complexo que a palavra ldquomulherrdquo como um ser social objectiva mas

sim na simplicidade do comportamento de vaacuterias mulheres numa soacute imagem

constante nos contos que sente no seu intimo a dor da perca A primeira

referecircncia aqui eacute da mulher-irmatilde que vecirc no uacutenico irmatildeo morto a decadecircncia de

si mesma ldquo seraacute em breve uma sombra na tua sombrardquo (FLORBELA

ESPANCA 199832) Da mulher-matildee e o vazio de sua dor silenciosa ldquo A pobre

matildee abafou um soluccedilo voltou-se e olhou o mortordquo (FLORBELA ESPANCA

1998112) E por fim da mulher-religiosa que busca na cristandade respostas

para seus questionamentos e refuacutegio para seu tormento ldquomais fraacutegil mais

luminosa continuava a rezar as suas oraccedilotildeeshelliporaccedilotildees de amor sacriacutelegas

blasfemas oraccedilotildees de pecadohellipDe pecado Natildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA

1998154) Assim concebo a mulher Bela a compreensatildeo de sua escrita estaacute

nos olhos de quem as vecirc e na sensibilidade de a conhecer Desta feita ldquoa fase

dos equiacutevocos com que a gesta amorosa que a serve com a permanente

invenccedilatildeo de objectos meritoacuterios eacute substituiacuteda por uma feacute na alma feacute que se

acompanha do terriacutevel sentimento de estar morta de natildeo ser mais do que a

aparecircncia dum espaccedilo vividordquo (FLORBELA ESPANCA 199823) diz Agustina

Bessa-Luiacutes

Nesta obra duas propriedades do texto satildeo facilmente perceptiacuteveis a

intertextualidade e a influecircncia exercida em cada conto Essa uacuteltima

envolvendo as fortes caracteriacutesticas da escritora Florbela Espanca Contudo o

texto se constroacutei agrave medida que retoma fatos jaacute conhecidos como eacute o caso das

vaacuterias citaccedilotildees de autores e personagens que ilustram o livro Nesse sentido

quanto mais amplo for o repertoacuterio do leitor o seu acervo de conhecimentos

maior seraacute a sua competecircncia para perceber como os textos dialogam uns

com os outros por meio de referecircncias alusotildees e citaccedilotildees Eacute assim que

Florbela queria que a entendecircssemos atraveacutes de um diaacutelogo intriacutenseco para

descobrirmos suas maacutescaras

19

CAPIacuteTULO 02 21 - ldquoSONHO DE IacuteCAROrdquo

ldquoVoar voar subir subir

Ir por onde for descer ateacute o ceacuteu cair

Ou mudar de cor anjos de gaacutes

Asas de ilusatildeo e um sonho audaz

Feito um balatildeo

No ar no ar eu sou assim

Brilho do farol aleacutem do mais

Amargo fim simplesmente sol

Fugir meu bem eacute ser felizhellip

Ir ateacute que um dia chegue enfim

Em que o sol derreta a cera ateacute o fimrdquo18

A mitologia eacute uma das concepccedilotildees mais geniais que a humanidade produziu

Os gregos instauraram uma categoria intermediaacuteria entre os homens e os

deuses o semideus criando assim os heroacuteis mitoloacutegicos Isso veio a dar

margem a novas investigaccedilotildees sobre os fenoacutemenos da realidade natural

levando ao questionamento da origem dos seres a qual obtiveram respostas

sem sentido concreto Com isso incorporaram a concepccedilatildeo de que a vida e

suas manifestaccedilotildees satildeo obras das forccedilas do espiacuterito que habita em cada um

de noacutes sendo tambeacutem responsaacutevel pela nossa maneira de ser e de agir Isso eacute

sem duacutevida um meio de penetrar atraveacutes da imaginaccedilatildeo no misteacuterio da

existecircncia humana Desta forma o mito consiste nos acontecimentos que se

repetem ao longo da histoacuteria natildeo tendo fim O homem reconhecendo em cada

acto quotidiano uma participaccedilatildeo nos grandes ciclos da vida se sente

participar da grande eternidade miacutetica Partindo de suas origens o homem

consegue viver integralmente e uma vez dentro da mentalidade miacutetica a

proacutepria morte pode ter sentido

18 Fragmento da canccedilatildeo ldquosonho de Iacutecarordquo escrito por Pisca e Claacuteudio Rebelo interpretaccedilatildeo do cantor

brasileiro Byafra

20

Com o intuito de imortalizar o momento de uma trageacutedia Florbela lanccedila matildeo de

aspectos mitoloacutegicos dentro de seus contos que muito nos lembra a triste

histoacuteria de Deacutedalo e Iacutecaro 19 mostrando que o espiacuterito humano de vencer

barreiras e limites nos impulsiona a superar nossas proacuteprias limitaccedilotildees

Alcanccedilar o espaccedilo e as estrelas lanccedilar-se ao infinito experimentar da

sensaccedilatildeo de liberdade interior e o desvendar do misterioso infinito eacute o que

norteia o enredo dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquo O Inventorrdquo

Praticamente todas as culturas destacam o ceacuteu como um lugar especial Esse

local era normalmente designado como a morada dos deuses Muitos povos

consideravam que as constelaccedilotildees eram representaccedilotildees dos seus mitos e

lendas Dessa forma o ceacuteu era um lugar divino e os homens somente o

alcanccedilavam quando eram convidados ou homenageados pelos deuses Mas o

atrevimento de uns culminou na desgraccedila de outros Apenas aqueles com

sabedoria e dotado de iacutentima consciecircncia disciplinar sobre sua condiccedilatildeo

humana conseguiam graccedilas aos olhos dos deuses O conflito interior era um

grande empecilho para que fatos tivessem o desenrolar bem sucedidos

Quando isso natildeo acontecia o homem reconhecia sua condiccedilatildeo de inferioridade

em relaccedilatildeo aos deuses e eram designados ldquofilhos dos homensrdquo

O aparecimento da referecircncia mitoloacutegica pressupotildee uma forte ligaccedilatildeo aos elos

do mito de fundaccedilatildeo que sustenta a harmonia familiar juntamente com

preceitos de moral tendo por priori a identidade pessoal na figura paterna

como eram conhecidos os grandes heroacuteis mitoloacutegicos por serem semideuses

Nesta constante nos eacute dado a conhecer a condiccedilatildeo humana que tambeacutem

aparece de forma intertextualizada como referecircncia ao quadro do flamengo

19 Iacutecaro era filho de Deacutedalo o construtor do labirinto que o rei Minos aprisionava o Minotauro um ser

com corpo de homem e cabeccedila de touro A lenda grega conta que Deacutedalo ensinou Teseu que seria

devorado juntamente com outros jovens pelo monstro como sair do labirinto Deacutedalo sugeriu que ele

deveria utilizar um novelo que deveria ser desenrolado a medida em que fosse penetrando no labirinto

Dessa forma apoacutes ter matado o monstro ele conseguiu fugir do labirinto O rei Minos ficou furioso e

prendeu Deacutedalo e o seu filho Iacutecaro no labirinto Como o rei tinha deixado guardas vigiando as saiacutedas

Deacutedalo construiu asas com penas dos paacutessaros colando-as com cera Antes de levantar voo o pai

recomendou a Iacutecaro que quando ambos estivessem voando natildeo deveriam voar nem muito alto (perto do

Sol cujo calor derreteria a cera) e nem muito baixo (perto do mar pois a unidade tornaria as asas

pesadas) Entretanto a sensaccedilatildeo de voar foi tatildeo estonteante para Iacutecaro que ele esqueceu a recomendaccedilatildeo e

elevou-se tanto nos ares a ponto da previsatildeo de Deacutedalo ocorrer A cera derreteu e Iacutecaro perdeu as asas

precipitando-se no mar e morrendo afogado

21

Brueghel (a Queda de Iacutecaro)20 que Florbela tatildeo bem ilustra com uma descriccedilatildeo

que mais parece uma tela ldquo Os filhos dos homens caacute em baixo deixam cair

nos campos a enxada que faz nascer o patildeo e florir as rosas os pescadores

largam os remos audaciosos que rasgam os mares e os rios e os filhos dos

homens mais duramente castigados os que habitam o formigueiro das cidades

param nas suas insensatas correrias de formigas e todos voltam a face para o

ceacuteurdquo (FLORBELA ESPANCA 199838) Aqui a intertextualidade sugerida

numa linha ecfraacutestica vai de encontro a misteriosa temaacutetica de Florbela

significando isto que o espiacuterito de aventura eacute frequentemente motivo de

incompreensatildeo e de grande solidatildeo

Do mesmo modo que impotildee a condiccedilatildeo de mortal ao homem Florbela o

enaltece dando-lhe honrarias e elevando-o a condiccedilatildeo de um deus ldquo Nos olhos

leva visotildees que os filhos dos homens natildeo conhecem Eacute um homem Deixou laacute

em baixo todo o fardo pesado e vil com que o carregam ao nascer deixou laacute

em baixo todas as algemas todos os feacuterreos grilhotildees que o prendiam toda a

suprema maldiccedilatildeo de ter nascido homem deixou laacute em baixo a sua sacola de

pedinte o seu bordatildeo de Judeu Errante e livre indoacutemito sereno na sua

miacutesera couraccedila de pano azul estendeu em cruz os braccedilos que transformou em

asasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199839) Ao atingir tal supremacia o homem

liberta-se de sua vida anterior e ganha autonomia na forma da liberdade

intriacutenseca conseguindo a superaccedilatildeo de sua forma decadente e de seus

conflitos interiores atraveacutes da liberdade celestial alcanccedilada Deacutedalo foi

conhecido como o arquitecto e artista da liberdade mesmo tendo construiacutedo o

labirinto que eacute a representaccedilatildeo do aprisionamento Aqui Florbela utiliza desse

argumento como se seus escritos fossem labiriacutenticos e teriacuteamos de encontrar

as palavras certas para desvendarmos seus caminhos encontrando neles

assim a liberdade Essa mesma liberdade transformada aqui no voo mais alto

que levaria a traacutegica morte

Apesar de mostrada diferentemente temos aqui mais uma vez a dualidade

que percorre a obra de Florbela o aprisionamento e a liberdade a vida e a

morte antiacuteteses que perfilam seu anseio humano ldquo Um dia julgou ter achado

20 Quadro de Broeghel demonstrando a queda de Iacutecaro no mar enquanto os camponeses prosseguem a sua

labuta diaacuteria

22

Oh aquele dia A embriaguez do homem que se igualou a Deus O coraccedilatildeo a

bater a bater a sentir-se grande demais para um peito tatildeo pequeno para um

tatildeo mesquinho destino A humidade das laacutegrimas a embaciar o olhar gigante

que se esquecera um momento de ter nascido pigmeu O artista o poeta o

inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de movimento e de

vida todos os que desbravavam caminhos os que talham abrem por entre os

matagais selvagens e as belas estradas largas do pensamento e das ideias As

palavras satildeo o muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes

ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)

Ao atingir o voo pleno por vezes nos afastamos da realidade natural e nos

lanccedilamos ao desconhecido sem saber o que nos espera Com isso a queda eacute

inevitaacutevel Neste seguimento vemos a intertextualidade presente sob o estigma

dos cuidados de Zeus filho de Cromo e pai dos deuses que concedeu aos

heroacuteis uma morada afastada dos homens onde os semideuses pudessem se

estabelecer nos confins da terra Eacute laacute que habitam com o coraccedilatildeo livre de

cuidados nas Ilhas dos Bem-Aventurados nas praias dos turbilhotildees profundos

do Oceano satildeo eles os heroacuteis afortunados a quem Florbela tambeacutem concede

a morada preparada como tuacutemulo perfeito para o descanso eterno A

representaccedilatildeo das deusas das aacuteguas na presenccedila das ninfas efidriacuteades21 que

simbolizam a graccedila criativa e fecundadora da natureza fazem aparecer a

presenccedila feminina que surge com o intuito de exaltar a forccedila interior que so a

mulher tem para defrontar situaccedilotildees desastrosas e encontrar soluccedilatildeo nos mais

tenebrosos conflitos bem como de dar um toque de suavidade ternura beleza

e leveza que soacute a performance feminina consegue impor ldquo hellipAs filhas dos

deuses ondinas sereias nereidas princesas encantadas acodem todas

pressurosashellipEm volta das asas mortas satildeo como flores desfolhadas em

redor dum esquife negro E olhamhelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 199842) A

sabedoria feminina evidencia-se ao se manifestar a ldquoque tinha nos olhos uma

nostaacutelgica tristeza humanardquo (FLORBELA ESPANCA 199846) como uma matildee

protectora que acalenta o filho em seu sono profundo e compreende com

tristeza a dor dos mortais ou quem sabe sua proacutepria dor na condiccedilatildeo de

imortal pois somente aos deuses era permitido o poder de arrebatar o espiacuterito

21 Referecircncia as ninfas das aacuteguas da mitologia grega

23

a um homem ldquo E aquele que tinha sido um filho dos homens ficou a dormir na

eternidade como se fora um filho dos deusesrdquo (FLORBELA ESPANCA

199846)

Como podemos perceber Florbela em sua construccedilatildeo literaacuteria delineou nas

entrelinhas dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquoO Inventorrdquo aspectos simboacutelicos

determinantes do aprisionamento e da libertaccedilatildeo humana natildeo somente no

sentido denotativo mas tambeacutem conotativo na multiplicidade de sentidos que

tais palavras propotildeem Apesar da evidecircncia colocada pela escritora ainda nos

remete a reflexatildeo pois o aprisionamento pode ser um meio de libertaccedilatildeo e a

libertaccedilatildeo um aprisionamento ldquohellipOlhou o ceacuteu profundohellipe achou Ser aviador

eacutehellipabraccedilar no mesmo abraccedilo o ceacuteu e o mar Na linguagem dos siacutembolos a

acircncora definindo a esperanccedila nunca poderaacute valer as asas que satildeo a

libertaccedilatildeo A acircncora agarra-se ao fundo e fica as asas abrem-se no espaccedilo e

penetram o ceacuteuhellipSeria aviador Quando pela primeira vez voou natildeo se

esqueceu de sentar na carlinga a seu lado ao lado do seu coraccedilatildeo aquela

que dali em diante seria a companheira de todos os dias a companheira

indefectiacutevel de todos os aviadores a Morterdquo (FLORBELA ESPANCA 1998

129)

A produccedilatildeo intertextual desses dois contos traz-nos um imaginaacuterio voltado aos

princiacutepios fundadores de conceitos e referecircncia humana Florbela baseia-se na

representaccedilatildeo da infacircncia como elemento fundador da personalidade e do

caraacutecter ou seja a figura do pai que nunca a reconheceu em vida e por outro

lado na figura de Deacutedalo e Iacutecaro tendo o pai a dualidade em sua referecircncia

paterna Eacute assim que de ldquotentaccedilatildeo em tentaccedilatildeo de fraqueza em fraqueza os

compromissos de consciecircncia levam um homem honrado agrave praacutetica de todos os

crimeshelliprdquo22

22 Fragmento do conto O Inventor de Florbela Espanca As Maacutescaras do Destino1998122

24

22 - A MULTICIPLIDADE DO HEROacuteI

ldquo A vida parada e recolhida cria heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tarderdquo23

Ao encontrarmos facetas mitoloacutegicas entre as leituras de Florbela natildeo se pode

descartar a visatildeo do heroacutei que a autora engendrou na figura de seu irmatildeo

Apeles Tiacutetulo esse dado a homens excepcionais como Ulisses que eram

venerados por seu povo da mesma forma Florbela nutria uma verdadeira

veneraccedilatildeo que a levou a personificar o Aviador a um heroacutei merecedor de

honrarias e apesar da miacutesera condiccedilatildeo de mortal foi-lhe atribuiacutedo qualidades

fiacutesicas e morais dignas de um semideus ldquo A vida parada e recolhida cria

heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tardehellip o pincel de geacutenio daacute os uacuteltimos

retoques ao cenaacuterio de epopeiahellip laacute em cima a formidaacutevel apoteose desdobra-

se no meio do pasmo das coisas Eacute um homem que tem asas E as asas

pairam descem rodopiam ascendem de novo giram latejam batem ao sol

mais aacutegeis e mais robustas mais leves e mais possantes que as das aacuteguias Eacute

um homem A face eneacutergica vincada a cinzel emerge extraordinaacuteria da vida

intensa na indecisatildeo dos contornos que lhe fazem vagos e paacutelidos um vago

pano de fundo a face e as matildeoshellipOs muacutesculos da face adivinham na forccedila

brutal das maxilas cerradas Nos olhos leva visotildees que os filhos dos homens

natildeo conhecem Os olhos dele natildeo se vecircem olham para dentro e para fora satildeo

pedras como as das estaacutetuas e vecircem mais e mais para aleacutem do que as

miacuteseras pupilas humanas Satildeo astrosrdquo (FLORBELA ESPANCA 199838 e 39)

Esta mesma condiccedilatildeo eacute dada ao Inventor autor da imaginaccedilatildeo de Florbela

ldquoRealizara os seus sonhos todos os seus sonhos Que havia mais agora Jaacute

os homens podiam sulcar os ares sem medo aos vendavais agraves coacuteleras brutais

da Natureza jaacute o ceacuteu se podia coalhar de asas como o mar de velas Todo o

homem poderia ter sem perigo e sem riscos a cobiccedilada sensaccedilatildeo de

comandar nos elementos como um semideusrdquo (FLORBELA ESPANCA

1998133)

Sabemos que o heroacutei constitui o assunto da poesia eacutepica ele tem a sua

maneira proacutepria de agir pela sua coragem e bravura e prossegue objectivos

23 Fragmento do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca198837 e 38

25

bem determinados que ao longo de sua trajectoacuteria lhe satildeo atribuiacutedos cada qual

com sua importacircncia e valor Eacute dado a ele tambeacutem o poder de decisatildeo ora

sobre seus actos ora sobre si mesmo Isso como forma de valorizar sua

sabedoria e supremacia diante daqueles a quem defendia Assim se apresenta

o heroacutei dos contos de Florbela homem-deus detentor de toda visatildeo forte

dominador senhor supremo de seu destino a quem eacute concedido um lugar

eterno junto aos astros

A realidade fictiacutecia da mitologia eacute comparada aqui a realidade autecircntica

Florbela interessa-se pelo seu heroacutei fictiacutecio como se fosse ou tratasse de uma

pessoa real com isso podemos dizer que a escrita ficcional de Florbela eacute

mimese porque a realidade de sua vida humana eacute o seu material de escrita ela

consegue transformar a realidade objectiva na realidade subjectiva vivencial

razatildeo por que nos deixamos influenciar pela sua trajectoacuteria de vida em seus

escritos Isso justifica o fato da ldquovaliosa bravurardquo ndash por uma valiosa pintura - de

seu heroacutei ser retratado em uma tela por um titatilde24 personifica assim a grande

luta travada com as forccedilas da natureza ldquoEacute um Rembrandt pintado por um titatilderdquo

(FLORBELA ESPANCA 199839) A sua proacutepria natureza humana A propoacutesito

disso parece mais reportar ao paradoxo entre o bem e o mal que lutam

constantemente pelo domiacutenio da razatildeo interior talvez alvo de Florbela

Eacute interessante observar a relaccedilatildeo que existe entre o ldquohomem com asasrdquo com

as Harpias25 que na multi-significaccedilatildeo de seu discurso nos projecta a uma

realizaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo na figura do heroacutei alado em uma transposiccedilatildeo

imaginaacuteria com uma pluralidade de sentidos que poderia ocultar um sentido

uacutenico o seu proacuteprio desejo ou o desejo de arrebatar a alma de seu morto

Tambeacutem vemos a intertextualidade corrente na pessoa de Ulisses26 o heroacutei

grego navegante Robson Crusoeacute27 Piratas dos Sete Mares28 aos capitatildees e

24 Referecircncia a segunda geraccedilatildeo dos deus mitoloacutegicos representantes das forccedilas da natureza e sem uma

personalidade bem vincadaos quais Hesiacuteodo enumerou em doze seis machos e seis fecircmeas Oceano Ceacuteu

Crio Hiperiacuteon Jaacutepeto Cronos Teia Reja Teacutemis Mnemoacutesine Febe e Teacutetis 25 As Harpias filhas de Electra (ela proacutepria filha do Titatilde Oceano) e de Taumas (filho de Ponto e de Geia)

pertencem agrave geraccedilatildeo dos preacute-oliacutempicos Elas satildeo irmatildes de iacuteris a mensageira dos deuses Representadas

quer como mulheres aladas com um aspecto fameacutelico quer como paacutessaros com cabeccedila de mulher as

Harpias residem nas ilhas Estroacutefades do mar Egeu ou ainda agraves portas do Taacutertaro Impetuosas e brutais

como a tempestade as Harpias satildeo - este eacute o sentido do seu nome - raptoras com garras fortes 26 Odisseu (na Greacutecia) ou Ulisses (em Roma) eacute um personagem da Iliacuteada e da Odisseacuteia de Homero Apoacutes

a derrota dos troianos ele iniciou uma viagem de dez anos de volta para Iacutetaca onde a sua mulher o espera

com uma fidelidade obstinada apesar da demora Essa viagem mereceu a criaccedilatildeo por Homero do poema

26

navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a

coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a

solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o

enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio

multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos

diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio

Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os

naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de

navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS

Maacutescaras do Destino 1998 p 125)

Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada

com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a

renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que

convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos

escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a

partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental

aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A

viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas

suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte

recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os

heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas

ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o

navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira

de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que

nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era

eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que

deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-

1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado

a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe

herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico

sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O

romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como

tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar

que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os

Lusiacuteadas de Camotildees

27

no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo

da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)

Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida

funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo

conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente

nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de

alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva

Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer

tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos

heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os

portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens

tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que

de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os

navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por

deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da

Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do

texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute

simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no

poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES

1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou

passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da

Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas

natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer

vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de

ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um

heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com

o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas

forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um

aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem

mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva

30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos

Lisboa

Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal

28

presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de

Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura

greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito

especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela

escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a

morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem

para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de

transformaccedilatildeo fantaacutestica

Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que

na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena

confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir

uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute

infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu

desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma

personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo

inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade

aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios

filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa

escritora o seu carma

Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei

que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora

quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem

ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles

desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma

as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista

o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de

movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos

esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do

pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam

As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes

ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)

29

CAPIacuteTULO 03

31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS

ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de

doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32

No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute

intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em

todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do

proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade

de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma

comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro

cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser

estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute

antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de

alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas

oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir

as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava

perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o

fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo

para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que

muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da

escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e

complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e

pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma

formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela

graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa

assume

32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122

30

De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete

agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem

Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites

nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute

podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido

conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao

inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um

ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma

palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a

intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda

e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas

pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma

onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo

(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um

recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o

renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio

inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a

matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada

ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe

mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata

cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de

voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e

122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso

indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam

tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele

o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as

suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um

emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados

que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e

intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica

33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ

31

Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado

transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas

Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e

que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a

imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de

dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada

dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais

significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa

escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e

sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-

as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar

inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos

era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade

existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)

A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio

Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo

tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens

que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de

tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta

ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a

proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo

Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante

notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe

de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e

medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca

mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho

branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a

socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua

presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo

(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo

deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo

queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a

intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia

humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para

32

sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo

pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no

mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais

apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva

enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente

foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)

A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja

como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo

atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute

reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em

busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito

junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos

satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad

que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que

han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas

mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como

meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do

inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os

aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias

34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939

33

32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO

ldquoA vida vem em ondas

Como o mar

Num indo e vindo infinitohelliprdquo35

A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente

foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram

o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios

da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-

portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo

ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura

universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e

nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a

esquizofrenia de sua alma

O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos

grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma

visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes

de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-

racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas

fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma

encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no

espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada

ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar

duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava

que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se

35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos

em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria

imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia

grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios

Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e

cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam

da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela

Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a

sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor

34

sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o

olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de

um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o

seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No

reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que

constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia

Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor

das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que

participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na

claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma

a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial

apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se

imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA

ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta

solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser

acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas

pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de

existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas

dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma

mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar

agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)

As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar

aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de

Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a

37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta

nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet

tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido

advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte

de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga

(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre

1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a

questatildeo (Hamlet ato III cena I)

38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)

que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era

destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar

35

travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes

questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente

humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a

vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa

loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz

a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair

numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua

frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico

mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de

transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a

morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano

capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas

ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de

integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de

totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma

ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade

de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida

dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a

seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas

iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives

mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas

dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a

cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute

perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras

velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida

de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar

costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras

por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e

grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme

O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu

amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do

Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para

toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos

36

Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser

salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma

dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo

desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave

liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos

secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a

uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo

desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a

boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia

pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a

mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais

alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se

nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira

as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de

alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora

julga existir no seu misteacuterio

O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e

forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e

sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que

orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente

num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das

contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute

traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas

que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas

figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas

narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um

imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e

39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII

mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a

bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por

alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua

tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar

Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A

histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito

em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que

aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas

aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma

37

refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus

fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a

sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades

da dinacircmica universal

Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar

simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos

narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos

siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um

contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da

efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma

capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde

diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e

exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia

essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel

mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo

do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do

Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)

e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo

social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)

na representatividade literaacuteria do mar

38

CAPIacuteTULO 04

41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA

ldquoGosto de ti apaixonadamente

De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo

De ti que me trouxeste pela matildeo

Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40

Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso

a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade

directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na

poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua

dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees

Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita

capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e

um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz

e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a

dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas

conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute

e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria

serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem

quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto

anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse

em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita

maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte

com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e

quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e

emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos

paradoxos

40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no

livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004

Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo

Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11

39

Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos

toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-

romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido

num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia

com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes

profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas

sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo

acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando

a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A

derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a

conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas

da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da

sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No

entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas

romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a

impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo

definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha

aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento

em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o

passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era

tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto

A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos

acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-

Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs

Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os

Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de

Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de

Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o

egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo

narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica

Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute

neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o

poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem

40

esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma

essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no

iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma

questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos

encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem

sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos

interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas

as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um

exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo

tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo

daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita

conteacutem

41

42 - UM PERCURSO COMPARATIVO

ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os

vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e

outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que

ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute

foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41

ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto

Olhou em roda natildeo achou ningueacutem

Por entre as campas arrastando o manto

Com lentos passos caminhou aleacutem

Abandonado neste chatildeo repousa

Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui

Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa

Sobre este peito que bateu por tirdquo42

A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e

o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-

romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua

linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa

o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se

O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando

proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos

moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na

literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror

Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou

comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas

circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de

comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e

sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos

41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda

Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos

42

ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de

outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou

Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)

Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal

de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma

optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada

pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada

no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus

sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa

suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois

dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)

Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade

todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional

natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute

afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute

tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima

do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo

Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela

e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a

prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua

intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a

dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as

influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente

que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz

directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para

a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o

intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era

partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada

por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das

rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de

branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza

43

ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas

Longas roupagens de neveda cor

Singela croa de virgiacutenias rosas

Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43

ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de

branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila

devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa

nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)

Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de

conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se

para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da

imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a

partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a

presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os

uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem

eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera

absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor

ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria

A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a

intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um

testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista

e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas

caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da

temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao

fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma

retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras

masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo

homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma

mulher

43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12

44

(hellip)

Mulher formosa que adorei na vida

E que na tumba natildeo cessei damar

Por que atraiccediloas desleal mentida

O amor eterno que te ouvi jurar

Amor engano que na campa finda

Que a morte despe da ilusatildeo falaz

Quem dentros vivos se lembrara ainda

ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)

Talvez que rindo dos protestos nossos

Gozes com outro dinfernal prazer

E o olvido cobriraacute meus ossos

Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44

Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o

vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as

bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis

e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma

essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o

podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA

ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de

sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a

eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos

na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto

com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais

de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas

palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o

esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal

seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu

passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre

44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9

45

que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as

matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos

das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam

para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)

Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno

num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista

melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias

possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela

um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica

natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem

fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo

intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas

rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso

consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo

intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas

solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou

com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a

todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas

as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os

sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado

daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)

Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do

Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais

significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO

MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do

quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e

estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que

desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo

da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina

agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das

espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute

presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos

46

ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido

Das sepulturas o gelado poacute

Dois esqueletos um ao outro unido

Foram achados num sepulcro soacuterdquo45

Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de

imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da

intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo

buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma

enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo

recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as

laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas

deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo

sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais

moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas

austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade

dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete

palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam

pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e

59)

Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao

ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram

escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia

literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo

exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde

ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais

tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo

merecida

45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos

47

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas

interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca

Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo

depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves

transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo

sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia

ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas

metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver

com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao

sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas

tambeacutem ao que relaciona a morte

A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua

eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela

mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e

sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo

quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade

que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas

personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a

humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de

enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e

sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas

e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o

que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte

presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais

condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus

contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e

desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse

interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural

equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes

interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute

Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem

uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses

48

elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o

inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela

tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses

elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma

civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor

sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam

sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do

intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea

Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o

menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que

para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro

compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo

que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou

seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua

imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que

essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar

atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a

outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual

proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque

esconde-se ou projecta-se no discurso do outro

Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o

caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo

relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens

marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um

significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um

desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos

de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e

fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave

realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande

maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe

um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo

46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de

Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360

49

obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a

escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada

Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a

infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute

aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo

espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a

verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes

50

REFEREcircNCIA BIBLIOGRAacuteFICA

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Malaciana Maacutelaga

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httpwwwprahojecombrflorbelacat=15

httpwwwfclarunespbrpublicaccedilotildeesrevistaliberdadehtm

httparestasdeventonosapoptlabaredas2html

Page 3: AS MÁSCARAS SIMBÓLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA … Jaqueline... · 2019-10-31 · A narrativa ficcional não é o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca, mas, assim como

3

JAQUELINE BARBOSA MURTA

AS MAacuteSCARAS SIMBOacuteLICAS E INTERTEXTUAIS

EM FLORBELA ESPANCA

Aprovada em ___________________ de 2008

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________________

Prof Dr (a)___________________________

Universidade Nova de Lisboa

____________________________________________________

Prof Dr (a)__________________________

Universidade Nova de Lisboa

____________________________________________________

Prof Dr (a)__________________________

Universidade Nova de Lisboa

4

DEDICATOacuteRIA

A Ladir Cidinha Biacute JucaTataacute e Didi

ldquoMeu grande alicercerdquo

A Israel (in memoriam) e Daniel

ldquo Amores eternosrdquo

A Noel

ldquoMeu cavaleiro das armas escurasrdquo

Ao Centro de Estudos Florbela Espanca

da Universidade Federal de Rondocircnia-UNIR

ldquoNosso primeiro encontrordquo

5

IacuteNDICE

RESUMOhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 06

ABSTRACThelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 07

INTRODUCcedilAtildeOhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 08

CAPIacuteTULO 01helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 12

11 ndash Enquadramento Teoacutericohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 12

12 - Abordagens sobre ldquoAs Maacutescaras do Destinordquohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 16

CAPIacuteTULO 02helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip19

21 ndash Sonho de Iacutecarohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip19

22 ndash A Multiplicidade do Heroacuteihelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip24

CAPIacuteTULO 03 helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 29

31 ndash A Intencionalidade das Aacuteguashelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip29

32 ndash A Simbologia do Mar Florbelianohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip33

CAPIacuteTULO 04helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip38

41 ndash A Intertextualidade Ultra-Romacircntica em Florbelahelliphelliphelliphelliphelliphellip38

42 ndash Um Percurso Comparativohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip41

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIShelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip47

REFEREcircNCIA BIBLIOGRAacuteFICAhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip50

6

RESUMO

A narrativa ficcional natildeo eacute o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca

mas assim como em seus poemas seus contos tambeacutem natildeo deixam de ter a

marca particular que a caracteriza como ldquo hellipraiz e flor A noite e a estrela da

alva a primeira A morte e a vida Aquela pudica amante e lilial irmatilderdquo1 Atraveacutes

da anaacutelise interpretativa podemos desvendar lacunas que fazem do seu livro de

contos As Maacutescaras do Destino um fascinante mosaico de leituras Passando

pela influecircncia referencial da mitologia dos deuses agrave consagraccedilatildeo heroacuteica de

seus filhos (semideuses) fonte imprescindiacutevel para o surgimento da

representaccedilatildeo simboacutelica do mar e seus respectivos elementos interpretativos

como bases da projecccedilatildeo do estado de alma dos escritores sentimentalistas

em que o tema da ldquodorrdquo permite a reutilizaccedilatildeo da imagem noutra construccedilatildeo

textual podendo ocorrer a superposiccedilatildeo a absorccedilatildeo e a transformaccedilatildeo de uma

multiplicidade de outros textos Esse estilo elaborado de escrita possibilita um

estudo comparado com outros textos Aqui essa relaccedilatildeo intertextual com um

poema do consagrado escritor ultra-romacircntico Soares de Passos permite

observar a tendecircncia decadentista e ultra-romacircntica em Florbela de modo que

vem confirmar seu conflito interior em detrimento de sua existecircncia Mesmo

assim natildeo deixou de reafirmar-se como escritora de sua eacutepoca Foi designada

como a ldquoPoetisa do Amorrdquo por Joseacute Reacutegio e o mesmo ainda ressalta que

ldquoextraordinaacuteria forccedila da natureza vulcatildeo sempre aceso de violentas paixotildees e

desejos que foi a vida e obra de Florbela2

PALAVRAS ndash CHAVE

Anaacutelise comparaccedilatildeo conto decadentismo Florbela Espanca heroacutei

interpretaccedilatildeo intertextualidade mar mito poesia simbolismo sentimentalismo

ultra-romantismo

1 Citaccedilatildeo extraiacutedo do website httparestasdeventonosapoptlabaredas2html Comentaacuterio de Joseacute

Antoacutenio Raposo sobre Florbela e Duratildeo 2 Citaccedilatildeo extraiacutedo do website httparestasdeventonosapoptlabaredas2html Comentaacuterio de Joseacute

Antoacutenio Raposo sobre Joseacute Reacutegio e Florbela

7

ABSTRACT

Florbela Espanca is not only well-known for her narrative fiction but also for her

poems Her stories have its particular mark which is characterized by such

stories asRoot and Flower The Night and the Star of Dawn The Spring

The Bashful Lover and Lilial Sister Through the analysis we can unmask the

gaps that make-up the fascinating reading of mosaic Passing

through referential influence of the Mythology of Gods to heroic consecration

of their children (semi-gods) an indispensable source for the appearance of

symbolic representation of the sea and its respective interpretative elements as

the base for the projection of the state of souls of the sentimental writers in

which the theme of pain permits the reutilization of an image in another textual

construction where superposition absorption and the transformation of a

multiplicity of other texts This elaborated style of writing makes it possible for

the study of comparisons with other texts Here this intertextual relation with a

poem of the consecrated ultra-romantic writer Soares de Passos permits the

observation of the decadent and ultra-romantic tendency in Florbela so that it

confirms its inner conflict in detriment to its existence Even so it doesnt stop

reaffirming her as a writer of her time She was named Poetess of Love by

Joseacute Reacutegio and it also highlights The Extraordinary Force of Nature Violent

Passion always alighted by a Volcano and desires which was the life and work

Of Florbelardquo

Key Words Analysis Comparison Story Decadence Florbela Espanca Hero

Interpretation Intertextuality Sea Myth Poetry Symbolism Sentimentality

Ultra-romanticism

8

INTRODUCcedilAtildeO

A primeira reflexatildeo que vem a nossa mente quanto que por acaso ouvimos as

primeiras duas estrofes de um dos sonetos de Florbela Espanca ldquoFanatismordquo3

eacute de estar diante de um texto onde emana o que existe de mais sentimental em

um autor Sem ainda conhecer os desiacutegnios desta ldquoBela princesa da planiacutecie

Alentejanardquo4 podemos perceber que buscava dizer algo mais que apenas as

belas palavras proferidas em seus versos que eram imbricados de metaacuteforas

fortes onde mostrava-se irmatilde companheira amante princesa magoada louca-

fanaacutetica inconstante e natildeo deixava ao contraacuterio do poema ldquoFumordquo5 fugir de

seus dedos a essecircncia de uma autora que buscava as respostas para sua

inquietude na projecccedilatildeo da figura ideal

As vicissitudes de seu tempo natildeo inibiram-na de mostrar seu grande talento

para a poesia e contos em alguns momentos de sua escrita Florbela gritava

por liberdade natildeo soacute de expressatildeo e participaccedilatildeo no meio artiacutestico mas por

uma liberdade intimista que para o seu tempo era mal interpretada pois a

sociedade concebia a figura da mulher fraacutegil delicada recatada e submissa agraves

vontades e desejos masculinos o que Florbela tentava sem o querer ser As

agruras desse tormento vivido pela mulher seria entatildeo imortalizado pela

escritora

Ao lermos seus escritos sem duacutevida entramos por um caminho de vastas

indagaccedilotildees buscando perceber qual seria a grande inquietude que envolvia

esta mulher em momentos de impacto com o real e a tatildeo grandiosos momentos

de nostalgia amorosa levando-nos a apreciar a natureza tal qual como eacute

descrita em seus poemas assim como estabelecermos uma intimidade com

uns dos temas que mais aflige as pessoas mas que de uma certa forma nos

coloca frente a frente com uma realidade a qual natildeo podemos fugir ndash a morte

Essa temaacutetica podemos dizer que eacute a mais forte tendecircncia dos escritos de

Florbela natildeo soacute na poesia que se faz presente na maioria de seus livros mas

tambeacutem em seus contos envolvendo-nos em situaccedilotildees onde o tema morte

passa a impulsionar nossa expectativa em nos descobrir ou redescobrir diante

da vida ou do mais profundo e iacutentimo desejo humano de conhecer-mos a noacutes

3 Poema contido no livro de ldquoSoror Saudaderdquo publicado em 1923 4 Frase proferida por Duratildeo seu amigo fiel 5 Poema contido na livro de ldquoSoror Saudaderdquo

9

mesmos e infiltra-nos por caminhos incoacutegnitos que cobrem de maacutescaras nosso

destino assim como eacute citado no tiacutetulo de seu livro de contos6 o qual dedicou a

seu irmatildeo Apeles deixando-nos por vezes a margem de reflexotildees

existencialistas mas natildeo o existencialismo puro dos filoacutesofos questionadores

mas um existencialismo amoroso sensiacutevel capaz de nos inibir com subtilezas

representativas de um mesclado de tendecircncias literaacuterias que preenche seus

textos de extremo romantismo e passa para a evidecircncia dos fatos que vatildeo do

real ao ideal do acontecido a suposta consequecircncia

De fato que sua vida influenciou sua escrita7 tanto que nesta inquietante busca

pela pessoa ideal que era acometida a escritora levou a mulher a concretizar

sua indubitaacutevel certeza de que seria compreendida e aceita apenas depois de

repousada sua pena agraves matildeos da morte e descansar em teus braccedilos fato esse

descrito no poema ldquoAacute Morterdquo encontrado em sua mesa no dia em que suicidara

Soacute assim seria quebrado o encanto da escrita como natildeo o foi Foi sim

quebrado o encanto do escrever pois a escrita era a forma de agir sobre a sua

realidade mas o encanto da escrita permanece e esses ldquo que os vivos passem

adianterdquo8 como a proacutepria Florbela proferira E assim estaacute Florbela vive em sua

obra sua temaacutetica nos chega como notiacutecia surpreendente e nos envolve em

seus misteacuterios simboacutelicos Sua meacutetrica ao molde claacutessico e uma temporalidade

construiacuteda em seus escritos atraveacutes de seus livros de forma proposital nos

deixa perceber o que vai no iacutentimo de uma mulher parece que retrata com

transparecircncia as fantasias ou fases interiores do imaginaacuterio feminino que de

intreacutepida voluntariosa libertina amante insaciaacutevel inconstante passa a ser

casta pura virtuosa religiosa isso tudo sem deixar de ser extraordinariamente

apaixonada como ela mesma atesta sua proacutepria natureza ldquoSou filha da

charneca erma e selvagemrdquo9

Do mesmo modo que na poesia a Bela escritora mostra-nos seu talento para a

prosa em seu livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo Diferente da poetisa do ldquoeurdquo os

contos geralmente em terceira pessoa natildeo deixam de ter a marca registada

de Florbela a insatisfaccedilatildeo pela vida e a fuga atraveacutes da morte com fortes

mesclas de romantismo Outra caracteriacutestica presente neste livro eacute a ldquolacunardquo

6 Referecircncia ao livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo dedicado a seu irmatildeo Apeles 7 Referecircncia aos vaacuterios estudos feitos sobre a vida a escritora 8 Citaccedilatildeo retirado da dedicatoacuteria do livro ldquoAs Mascaras do Destinordquo 1998 33 9 Citaccedilatildeo do poema ldquoEsfingerdquo do livro Poesias Completas 2004 276

10

deixada a margem da interpretaccedilatildeo ou seja o que se leria nas entrelinhas do

texto Tais interpretaccedilotildees ficam a cargo do leitor que de certa forma interage

com as narrativas preenchendo-lhes o vazio deixado pela escritora ldquovaziordquo

esse que tambeacutem a acompanha nesta obra e a quem dedica ldquoeste livro eacute o

livro do meu mortordquo10 Na realidade Florbela queria deixar imortalizado seu

irmatildeo ldquoNatildeo queria que meu morto morresse comigohellipE escrevi estas

paacuteginashelliprdquo que foram de encontro a profundeza de seu pensamento ou seja

uma consciecircncia transcendental em caminho a ldquotalrdquo liberdade tanto desejada

que jaacute em versos reclamava

ldquoEu ponho-me a sonhar transmigraccedilotildees

Impossiacuteveis longiacutenquos milagrosas

Voos amplos ceacuteus distantes migraccedilotildees

Longehellip noutras esferas luminosas

E pelo meu olhar passam visotildees

Ilhas de bruma e naacutecar drsquooiro e rosashellip

E eu penso que liberta de grilhotildees

Hei-de aportar agraves Ilhas misteriosasrdquo11

Esse doce misteacuterio que cheio da natureza de ser mulher eacute o que intriga-nos a

cada leitura e nos faz buscar conhecer mais de sua vida para entendermos sua

obra Seus contos nos mostram uma Florbela detentora de uma

intertextualidade viva que no decorrer das narrativas remete-nos a outros

tempos a outras leituras Cria um ambiente nostaacutelgico e contemplativo de

vasto campo simboacutelico percorrendo as mais variadas fontes para sua

inspiraccedilatildeo criadora com isso ao depararmos com o quadro descritivo na

narrativa recriamos esse quadro imaginaacuterio em nossa mente como em um

conto de fadas ali misturam-se fatos reais e imaginaacuterios tempos reais e

imaginaacuterios personagens reais e imaginaacuterias tudo ldquo eacute luminosas e exaltante

10 Citaccedilatildeo da dedicatoacuteria do livro ldquoAs maacutescaras do Destinordquo 1998 32 11 Poema ldquoLibertardquodo livro Poesia Completa 2004 75

11

emoccedilatildeordquo foi enchido de ldquotoda a espiritualidade beleza dolorosa e humildade e

acima de tudo as almasrdquo criadas ldquosatildeo gritos e soluccedilos de amorrdquo12

Diante disso o foco do estudo e pesquisa sobre Florbela Espanca se limitaraacute

em um levantamento analiacutetico e criacutetico dando vaacuterias possibilidades de

interpretaccedilatildeo bem como referecircncias intertextuais que satildeo citadas e ora

aparecem em seus contos no livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo Tal estudo

objectiva um conhecimento interpretativo e comparativo das leituras feitas por

Florbela e o modo como vieram a influenciar e dar sustentabilidade ao enredo

dos contos Quem sabe poderemos conhecer um pouco mais dessa misteriosa

mulher que dizia natildeo conhece a si mesma

O que sou eu AmorSei laacute que sou

Sou tudo e nada grande e pequenina

Sou a que canta uma ilusatildeo divina

Sou a que chora um mal que acabou

Eu sei laacute que quimera me beijou

E nunca o soube assim desde pequenina

Haacute neste mundo tanta amarga sina

A minha eacute saber nunca quem sou

Esfinge sonho tonto de desejos

Na tua boca sou uma asa aberta

A palpitar vermelha como os beijos

Andorinhahelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellipa voejar13

helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip

helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip

12 Citaccedilatildeo da dedicatoacuteria do livro ldquoAs maacutescaras do Destinordquo 1998 33 13 Poema sem tiacutetulo editado no livro ldquoEsparsos de Florbelardquo em Poesia Completa 2004 78

12

CAPIacuteTULO 01

11 - ENQUADRAMENTO TEOacuteRICO

Na literatura actual eacute frequente apontar-se como um dos factores de

textualidade a referecircncia - expliacutecita ou impliacutecita ndash a outros textos tomando estes

um sentido bem amplo (orais escritos visuais etc) A esse diaacutelogo entre textos

daacute-se o nome de intertextualidade

Eacute evidente que a intertextualidade estaacute ligada ao conhecimento de mundo que

deve ser compartilhado ou seja comum ao produtor e ao receptor do texto

Desta forma pressupotildee um universo cultural muito amplo e complexo pois

implica antes de tudo na identificaccedilatildeo e no reconhecimento de remissotildees a

obras ou a textostrechos mais ou menos conhecidos aleacutem de exigir do

interlocutor a capacidade de interpretar a funccedilatildeo daquela citaccedilatildeo ou alusatildeo em

questatildeo

Todas as questotildees ligadas agrave intertextualidade influenciam tanto o processo de

produccedilatildeo como o de compreensatildeo de textos o importante eacute natildeo encararmos a

intertextualidade apenas como a identificaccedilatildeo da fonte e sim que nos

preocupemos em estudaacute-la como um enriquecimento da leitura e da produccedilatildeo

de textos e sobretudo tentando mostrar a funccedilatildeo da sua presenccedila na

construccedilatildeo e no(s) sentido(s) dos textos

Como se pode notar na constituiccedilatildeo da proacutepria palavraldquointertextualidaderdquo

significa relaccedilatildeo entre textos Considerando-se texto num sentido lato como

um recorte significativo feito no processo ininterrupto de semiose cultural isto eacute

na ampla rede de significaccedilotildees dos bens culturais Pode-se afirmar que a

intertextualidade eacute inerente agrave produccedilatildeo humana O homem sempre lanccedila matildeo

do que jaacute foi feito em seu processo de produccedilatildeo simboacutelica Assim sendo o

texto como objecto cultural tem uma existecircncia fiacutesica que pode ser apontada e

delimitada um filme um romance um anuacutencio uma muacutesica Entretanto esses

objetos natildeo estatildeo ainda prontos pois destinam-se ao olhar agrave consciecircncia e agrave

recriaccedilatildeo dos leitores Cada texto constitui uma proposta de significaccedilatildeo que

natildeo estaacute inteiramente construiacuteda A significaccedilatildeo se daacute no jogo interpretativo

entre o texto e seu destinataacuterio Este uacuteltimo eacute um interlocutor ativo no processo

de significaccedilatildeo na medida em que participa do jogo intertextual tanto quanto o

autor

13

A intertextualidade se daacute pois tanto na produccedilatildeo como na recepccedilatildeo da grande

rede cultural de que todos participam Filmes que retomam filmes quadros que

dialogam com outros propagandas que se utilizam do discurso artiacutestico

poemas escritos com versos alheios romances que se apropriam de formas

musicais tudo isso satildeo textos em diaacutelogo com outros textos intertextualidade

Um texto remete a outro para defender as ideias nele contidas ou para

contestar tais ideias isso se daacute atraveacutes de um estudo comparativo entre textos

que ligam-se pela elaboraccedilatildeo artiacutestica de seu criador Eacute atraveacutes da anaacutelise

comparativa que tomamos ciecircncia da emergecircncia simboacutelica existente entre os

textos e a que niacutevel se daacute tal emergecircncia quanto agrave diacronia e sincronia que os

ligam Em qualquer niacutevel a produccedilatildeo simboacutelica eacute pois sempre uma retomada

de outras produccedilotildees perfazendo um jogo infinito que enreda autores e leitores

Apropriando-nos entatildeo de Schneider podemos afirmar

ldquoO texto literaacuterio eacute um palimpsesto O autor antigo escreveu uma lsquoprimeirarsquo vez

depois sua escritura foi apagada por algum copista que recobriu a paacutegina com

um novo texto e assim por diante Textos primeiros inexistem tanto quanto as

puras coacutepias o apagar natildeo eacute nunca tatildeo acabado que natildeo deixe vestiacutegios a

invenccedilatildeo nunca tatildeo nova que natildeo se apoacuteie sobre o jaacute-escritordquo (SCHNEIDER

199071)

No sentido estrito a palavra texto remete a uma ordem significativa

verbal Dentro dessa ordem a literatura vale-se amplamente do recurso

intertextual consciente ou inconscientemente Em razatildeo disso a

intertextualidade faz-se operador de leitura Eacute importante marcar os primoacuterdios

de Bakhtin em relaccedilatildeo a esses estudos divulgados por Juacutelia Kristeva Eacute dela o

claacutessico conceito de intertextualidade ldquo todo texto se constroacutei como mosaiacuteco de

citaccedilotildees todo texto eacute absorccedilatildeo e transformaccedilatildeo de um outro textordquo

(KRISTEVA 197464) Na verdade a intertextualidade inerente agrave linguagem

torna-se expliacutecita em todas as produccedilotildees literaacuterias que se valem do recurso da

apropriaccedilatildeo colocando em xeque a proacutepria noccedilatildeo de autoria Eacute o que vamos

observar ao longo do estudo no conto ldquoA Mortardquo em ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo

de Florbela Espanca temos aqui um bom exemplo do que se define como

intertextualidade as relaccedilotildees entre textos a citaccedilatildeo de um texto por outro

enfim o diaacutelogo entre textos Sendo assim para entender um texto na sua

totalidade eacute preciso conhecer o(s) texto(s) que nele fora(m) citado(s)

14

Eacute nesse contexto que Kristeva membro actuante da criacutetica francesa elabora

seu conceito de intertextualidade considerando que todo texto se constroacutei como

ldquomosaico de citaccedilotildeesrdquo Esse entendimento acarreta a consideraccedilatildeo de que a

intertextualidade eacute um fenoacutemeno que se encontra na base do proacuteprio texto

literaacuterio imbricada com a inserccedilatildeo deste num muacuteltiplo conjunto de praacuteticas

sociais relevantes A partir de Kristeva ldquotextordquo passa a ser entendido como o

evento situado na histoacuteria e na sociedade que natildeo apenas reflecte uma

situaccedilatildeo mas eacute essa proacutepria situaccedilatildeo apagando linhas divisoacuterias entre as

disciplinas e constituindo um cruzamento entre diferentes superfiacutecies textuais e

distintas aacutereas do saber cientiacutefico e da esfera artiacutestica ldquoPelo seu modo de

escrever lendo o corpus literaacuterio anterior ou sincroacutenico o autor vive na histoacuteria

e a sociedade se escreve no textordquo (KRISTEVA 197498)

A partir dos postulados deste conceito observamos que a intertextualidade

reflecte a concepccedilatildeo do texto literaacuterio como carregado de outros textos

inclusive do ldquotextordquo da realidaderdquo E eacute essa realidade polifoacutenica de vivecircncia

tumultuosa e inquietante de dissabores intriacutensecos e por vezes

transcendentais de acontecimentos filtrados atraveacutes de sua proacutepria

sensibilidade e sua imaginaccedilatildeo fantaacutestica que Florbela Espanca tem

manifestado para que seja compreendido seus misteacuterios de forma a dar mais

realce atraveacutes das vaacuterias formas de compreensatildeo e interpretaccedilatildeo intertextual e

comparativa de sua obra Neste sentido a teoria intertextual e comparativa

seraacute um guiatildeo a nortear um trabalho na tentativa de conhecermos essa

enigmaacutetica escritora que foi Florbela Espanca E eacute dela o incentivo para um

maior entendimento daquilo que nos deixou ldquoPara mim Para ti Para ningueacutem

Quero atirar para aqui negligentemente sem pretensotildees de estilo sem

anaacutelises filosoacuteficas o que os ouvidos dos outros natildeo recolhem reflexotildees

impressotildees ideias maneiras de ver de sentir ndash todo o meu espiacuterito paradoxal

talvez friacutevolo talvez profundo Compreendi por fim que nada compreendi que

mesmo nada poderia ter compreendido de mimhellipRestam-me os outroshellip

talvez por eles possa chegar agraves infinitas possibilidades do meu ser misterioso

intangiacutevel secretordquo (FLORBELA ESPANCA 199833)14

14 Fragmento retirado do livro ldquoDiaacuterio do Uacuteltimo Anordquo Bertrand Editora

15

A proposta de entendimento intertextual traacutes um reflexo de sua existecircncia

registado em sua ldquoDivina Comeacutediardquo15 pelos seus ldquoVersosrdquo16

ldquoVersos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip

Pedaccedilos de sorrisos branca espuma

Gargalhadas de luz cantos dispersos

Ou peacutetalas que caem uma a umahellip

VersosSei laacute Um verso eacute o teu olhar

Um verso eacute o teu sorriso e os de Dante

Eram o seu amor a soluccedilar

Aos peacutes de sua estremecida amante

Meus versos Sei eu laacute tambeacutem que satildeohellip

Sei laacute Sei laacute Meu pobre coraccedilatildeo

Partidos em mil pedaccedilos satildeo talvezhellip

Versos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip

Meus soluccedilos de dor que andam dispersos

Por este grande amor em que natildeo crecircsrdquo

15 Referecircncia a Obra de Dante Alighieri A Divina Comeacutedia uma viagem ao inferno purgatoacuterio e ao

paraiacuteso Aqui em relaccedilatildeo a vida de Florbela a palavra comeacutedia tem duplo significado o de origem dando

seguimento bom ao desenlace das personagens e em seu sentido coacutemico aos factores da inconstacircncia da

escritora 16 Referecircncia ao poema de Florbela escrito em O livro Drsquoele Poesia Completa2004 208

16

13 - ABORDAGENS SOBRE ldquoAS MAacuteSCARAS DO DESTINOrdquo ldquoOs contos satildeo como ela - siacutembolo de permanecircncia no pensamento da terra fio

de amor que manteacutem a sua magneacutetica forccedila saudade de tudo que podia

significar felicidade e expressatildeo do afectordquo17

Dedicada ao seu irmatildeo Apeles Demoacutestenes da Rocha Espanca ndash ldquoAs

Maacutescaras do Destinordquo eacute uma obra inspirada na tristeza e dor que a perda do

irmatildeo causa em Florbela Sua dedicatoacuteria ldquoeacute como um punho culpado que

Florbela assenta no proacuteprio peitordquo (FLORBELA ESPANCA 199825) assim diz

Agustina Bessa-Luiacutes autora do prefaacutecio escrito em 1979 que orienta-nos sobre

as condiccedilotildees de leitura que envolve esta obra

A dedicatoacuteria escrita por Florbela comprova o amor de irmatildeos Apeles era

ldquoAquele que das mesmas entranhas foi nascido que ao calor do mesmo

amplexo foi gerado Aquele que traz no rosto as linhas do teu rosto nos olhos a

aacutegua clara dos teus olhos o teu Amigo o teu Irmatildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA

199831 e 32) Ela escrevia tais palavras como uma matildee que acabara de

perder a um filho ldquopara que tua mocidade natildeo trema de o ver partir um dia

bom e meigo para que vivas na ilusatildeo bendita de teres um filho forte e belo

para te obrigar a encarar sorrindo as coisas vis e feias deste mundohelliprdquo

(FLORBELA ESPANCA 199831) Na realidade tais clamores professados soacute

a uma matildee que perdera seu filho eacute permitido senti-los

Escrita no final de 1927 reuacutene oito contos denominados ldquoO Aviador ldquoA Mortardquo

ldquoOs Mortos Natildeo Voltamrdquo ldquo O Resto Eacute Perfumerdquo ldquoA Paixatildeo de Manuel Garciardquo

ldquo O Inventorrdquo ldquoAs Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquoO Sobrenaturalrdquo

Como demonstram os tiacutetulos dados aos contos o tema ldquomorterdquo eacute o ponto de

convergecircncia entre os enredos e vem reforccedilar o pendor funesto da obra de

Florbela natildeo apenas pelo desaparecimento do irmatildeo mas que jaacute fazia parte

da proacutepria insatisfaccedilatildeo intimista que a escritora detinha Nesta altura por forccedilas

das circunstacircncias parecia estar desvinculada da vida como uma morta e sua

perpeacutetua busca lhe assegura uma espeacutecie de eternidade

Natildeo participando do enredo assim sendo em 3ordf pessoa mostrava-se uma

observadora a narrar fatos onde a realidade se confunde com o imaginaacuterio

17 Fragmento escrito por Agustina Bessa-Luiacutez retirado do prefaacutecio do livro As Maacutescaras do Destino de

Florbela Espanca 199810

17

fantaacutestico e soacute nos traacutes agrave lucidez da compreensatildeo devido as referecircncias

intertextuais as quais satildeo comuns aos contos pois ldquo o fantaacutestico se caracteiza

por una instrusioacuten brutal del misteacuterio en el marco de la vida real y estaacute ligado

generalmente a los estados moacuterbitos de la conciencia que en los fenoacutemenos

de pesadilla e de deliacuterio proyecta ante siacute imaacutegenes de sus angustias e de sus

terroresrdquo (GEORGES JEAN 1889 68 e 69) Mas a escritora natildeo desvincula-se

de sua obra uma forte tendecircncia de Florbela Marcando presenccedila no conto ldquoO

Resto Eacute Perfumerdquo interage como personagem assim assume o relato como

se procedesse de outro narrador para que pudesse penetraacute-lo e manter suas

caracteriacutesticas inquietantes e paradoxais acrescentando uma forte dose de

existencialismo e a presenccedila do ldquoEurdquo que vem reforccedilar a categoria de seus

relatos miacuteticos Aqui o ldquofantaacutesticordquo se confunde com o ldquomaravilhosordquo isso

devido aos relatos mitoloacutegicos que implica durante a leitura em um

redireccionamento do leitor a outro espaccedilo a outro tempo onde temos a ilusatildeo

de vivermos por um breve momento em outro lugar Florbela nos permite a

viagens imaginaacuterias em que o maravilhoso de seus contos dependeraacute de uma

infinidade de interpretaccedilotildees que natildeo seratildeo necessariamente interpretaccedilotildees

racionais pois as interpretaccedilotildees paralelas e divergentes satildeo sempre possiacuteveis

devido a riqueza do conto em si que no caso de Florbela estatildeo ligados aos

estados moacuterbidos de sua consciecircncia

Sabemos que algum dos elementos imaginaacuterios dos contos de Florbela estaacute

ligada ao realismo de sua histoacuteria verdadeira e isso eacute capaz pela virtudes que

soacute os contos de fadas pode proporcionar apesar de sua vida inconstante e

cheia de maacutegoas soube mascarar seu inconsciente e dar a seu relato um

intercacircmbio gracioso e sentimental com sua vida Por sua vez tais relatos

remetem-se a duas vertentes essenciais nos contos a primeira de propagar as

formas simboacutelicas durante a histoacuteria e a segunda de inserir essas formas

mediante a expansatildeo de sua escrita atraveacutes dos contos Um bom exemplo

disso eacute a clareza de como um conto complementa outro Atentemos para os

detalhes simboacutelicos de ldquoO Inventorrdquo que parece encerrar-se em ldquoO Aviadorrdquo da

mesma forma acontece em ldquoO Sobrenaturalrdquo e ldquoOs Mortos natildeo Voltamrdquo ldquoAs

Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquo A Paixatildeo de Manuel Garciardquo por fim

vemos a profunda reflexatildeo sobre a vida em ldquoO Resto eacute Perfumerdquo culminando

no conto ldquoA Mortardquo que tem em seu final a imersatildeo nas aacuteguas elemento

18

comum em todos os contos que parece como siacutembolo de redenccedilatildeo Temos

aqui um quadro para um estudo comparativo minucioso entre os proacuteprios

contos

Como afirma Agustina Bessa-Luiacutes ldquo para ler a prosa eacute preciso compreender a

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199816) Neste contexto natildeo ousamos falar

do quadro complexo que a palavra ldquomulherrdquo como um ser social objectiva mas

sim na simplicidade do comportamento de vaacuterias mulheres numa soacute imagem

constante nos contos que sente no seu intimo a dor da perca A primeira

referecircncia aqui eacute da mulher-irmatilde que vecirc no uacutenico irmatildeo morto a decadecircncia de

si mesma ldquo seraacute em breve uma sombra na tua sombrardquo (FLORBELA

ESPANCA 199832) Da mulher-matildee e o vazio de sua dor silenciosa ldquo A pobre

matildee abafou um soluccedilo voltou-se e olhou o mortordquo (FLORBELA ESPANCA

1998112) E por fim da mulher-religiosa que busca na cristandade respostas

para seus questionamentos e refuacutegio para seu tormento ldquomais fraacutegil mais

luminosa continuava a rezar as suas oraccedilotildeeshelliporaccedilotildees de amor sacriacutelegas

blasfemas oraccedilotildees de pecadohellipDe pecado Natildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA

1998154) Assim concebo a mulher Bela a compreensatildeo de sua escrita estaacute

nos olhos de quem as vecirc e na sensibilidade de a conhecer Desta feita ldquoa fase

dos equiacutevocos com que a gesta amorosa que a serve com a permanente

invenccedilatildeo de objectos meritoacuterios eacute substituiacuteda por uma feacute na alma feacute que se

acompanha do terriacutevel sentimento de estar morta de natildeo ser mais do que a

aparecircncia dum espaccedilo vividordquo (FLORBELA ESPANCA 199823) diz Agustina

Bessa-Luiacutes

Nesta obra duas propriedades do texto satildeo facilmente perceptiacuteveis a

intertextualidade e a influecircncia exercida em cada conto Essa uacuteltima

envolvendo as fortes caracteriacutesticas da escritora Florbela Espanca Contudo o

texto se constroacutei agrave medida que retoma fatos jaacute conhecidos como eacute o caso das

vaacuterias citaccedilotildees de autores e personagens que ilustram o livro Nesse sentido

quanto mais amplo for o repertoacuterio do leitor o seu acervo de conhecimentos

maior seraacute a sua competecircncia para perceber como os textos dialogam uns

com os outros por meio de referecircncias alusotildees e citaccedilotildees Eacute assim que

Florbela queria que a entendecircssemos atraveacutes de um diaacutelogo intriacutenseco para

descobrirmos suas maacutescaras

19

CAPIacuteTULO 02 21 - ldquoSONHO DE IacuteCAROrdquo

ldquoVoar voar subir subir

Ir por onde for descer ateacute o ceacuteu cair

Ou mudar de cor anjos de gaacutes

Asas de ilusatildeo e um sonho audaz

Feito um balatildeo

No ar no ar eu sou assim

Brilho do farol aleacutem do mais

Amargo fim simplesmente sol

Fugir meu bem eacute ser felizhellip

Ir ateacute que um dia chegue enfim

Em que o sol derreta a cera ateacute o fimrdquo18

A mitologia eacute uma das concepccedilotildees mais geniais que a humanidade produziu

Os gregos instauraram uma categoria intermediaacuteria entre os homens e os

deuses o semideus criando assim os heroacuteis mitoloacutegicos Isso veio a dar

margem a novas investigaccedilotildees sobre os fenoacutemenos da realidade natural

levando ao questionamento da origem dos seres a qual obtiveram respostas

sem sentido concreto Com isso incorporaram a concepccedilatildeo de que a vida e

suas manifestaccedilotildees satildeo obras das forccedilas do espiacuterito que habita em cada um

de noacutes sendo tambeacutem responsaacutevel pela nossa maneira de ser e de agir Isso eacute

sem duacutevida um meio de penetrar atraveacutes da imaginaccedilatildeo no misteacuterio da

existecircncia humana Desta forma o mito consiste nos acontecimentos que se

repetem ao longo da histoacuteria natildeo tendo fim O homem reconhecendo em cada

acto quotidiano uma participaccedilatildeo nos grandes ciclos da vida se sente

participar da grande eternidade miacutetica Partindo de suas origens o homem

consegue viver integralmente e uma vez dentro da mentalidade miacutetica a

proacutepria morte pode ter sentido

18 Fragmento da canccedilatildeo ldquosonho de Iacutecarordquo escrito por Pisca e Claacuteudio Rebelo interpretaccedilatildeo do cantor

brasileiro Byafra

20

Com o intuito de imortalizar o momento de uma trageacutedia Florbela lanccedila matildeo de

aspectos mitoloacutegicos dentro de seus contos que muito nos lembra a triste

histoacuteria de Deacutedalo e Iacutecaro 19 mostrando que o espiacuterito humano de vencer

barreiras e limites nos impulsiona a superar nossas proacuteprias limitaccedilotildees

Alcanccedilar o espaccedilo e as estrelas lanccedilar-se ao infinito experimentar da

sensaccedilatildeo de liberdade interior e o desvendar do misterioso infinito eacute o que

norteia o enredo dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquo O Inventorrdquo

Praticamente todas as culturas destacam o ceacuteu como um lugar especial Esse

local era normalmente designado como a morada dos deuses Muitos povos

consideravam que as constelaccedilotildees eram representaccedilotildees dos seus mitos e

lendas Dessa forma o ceacuteu era um lugar divino e os homens somente o

alcanccedilavam quando eram convidados ou homenageados pelos deuses Mas o

atrevimento de uns culminou na desgraccedila de outros Apenas aqueles com

sabedoria e dotado de iacutentima consciecircncia disciplinar sobre sua condiccedilatildeo

humana conseguiam graccedilas aos olhos dos deuses O conflito interior era um

grande empecilho para que fatos tivessem o desenrolar bem sucedidos

Quando isso natildeo acontecia o homem reconhecia sua condiccedilatildeo de inferioridade

em relaccedilatildeo aos deuses e eram designados ldquofilhos dos homensrdquo

O aparecimento da referecircncia mitoloacutegica pressupotildee uma forte ligaccedilatildeo aos elos

do mito de fundaccedilatildeo que sustenta a harmonia familiar juntamente com

preceitos de moral tendo por priori a identidade pessoal na figura paterna

como eram conhecidos os grandes heroacuteis mitoloacutegicos por serem semideuses

Nesta constante nos eacute dado a conhecer a condiccedilatildeo humana que tambeacutem

aparece de forma intertextualizada como referecircncia ao quadro do flamengo

19 Iacutecaro era filho de Deacutedalo o construtor do labirinto que o rei Minos aprisionava o Minotauro um ser

com corpo de homem e cabeccedila de touro A lenda grega conta que Deacutedalo ensinou Teseu que seria

devorado juntamente com outros jovens pelo monstro como sair do labirinto Deacutedalo sugeriu que ele

deveria utilizar um novelo que deveria ser desenrolado a medida em que fosse penetrando no labirinto

Dessa forma apoacutes ter matado o monstro ele conseguiu fugir do labirinto O rei Minos ficou furioso e

prendeu Deacutedalo e o seu filho Iacutecaro no labirinto Como o rei tinha deixado guardas vigiando as saiacutedas

Deacutedalo construiu asas com penas dos paacutessaros colando-as com cera Antes de levantar voo o pai

recomendou a Iacutecaro que quando ambos estivessem voando natildeo deveriam voar nem muito alto (perto do

Sol cujo calor derreteria a cera) e nem muito baixo (perto do mar pois a unidade tornaria as asas

pesadas) Entretanto a sensaccedilatildeo de voar foi tatildeo estonteante para Iacutecaro que ele esqueceu a recomendaccedilatildeo e

elevou-se tanto nos ares a ponto da previsatildeo de Deacutedalo ocorrer A cera derreteu e Iacutecaro perdeu as asas

precipitando-se no mar e morrendo afogado

21

Brueghel (a Queda de Iacutecaro)20 que Florbela tatildeo bem ilustra com uma descriccedilatildeo

que mais parece uma tela ldquo Os filhos dos homens caacute em baixo deixam cair

nos campos a enxada que faz nascer o patildeo e florir as rosas os pescadores

largam os remos audaciosos que rasgam os mares e os rios e os filhos dos

homens mais duramente castigados os que habitam o formigueiro das cidades

param nas suas insensatas correrias de formigas e todos voltam a face para o

ceacuteurdquo (FLORBELA ESPANCA 199838) Aqui a intertextualidade sugerida

numa linha ecfraacutestica vai de encontro a misteriosa temaacutetica de Florbela

significando isto que o espiacuterito de aventura eacute frequentemente motivo de

incompreensatildeo e de grande solidatildeo

Do mesmo modo que impotildee a condiccedilatildeo de mortal ao homem Florbela o

enaltece dando-lhe honrarias e elevando-o a condiccedilatildeo de um deus ldquo Nos olhos

leva visotildees que os filhos dos homens natildeo conhecem Eacute um homem Deixou laacute

em baixo todo o fardo pesado e vil com que o carregam ao nascer deixou laacute

em baixo todas as algemas todos os feacuterreos grilhotildees que o prendiam toda a

suprema maldiccedilatildeo de ter nascido homem deixou laacute em baixo a sua sacola de

pedinte o seu bordatildeo de Judeu Errante e livre indoacutemito sereno na sua

miacutesera couraccedila de pano azul estendeu em cruz os braccedilos que transformou em

asasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199839) Ao atingir tal supremacia o homem

liberta-se de sua vida anterior e ganha autonomia na forma da liberdade

intriacutenseca conseguindo a superaccedilatildeo de sua forma decadente e de seus

conflitos interiores atraveacutes da liberdade celestial alcanccedilada Deacutedalo foi

conhecido como o arquitecto e artista da liberdade mesmo tendo construiacutedo o

labirinto que eacute a representaccedilatildeo do aprisionamento Aqui Florbela utiliza desse

argumento como se seus escritos fossem labiriacutenticos e teriacuteamos de encontrar

as palavras certas para desvendarmos seus caminhos encontrando neles

assim a liberdade Essa mesma liberdade transformada aqui no voo mais alto

que levaria a traacutegica morte

Apesar de mostrada diferentemente temos aqui mais uma vez a dualidade

que percorre a obra de Florbela o aprisionamento e a liberdade a vida e a

morte antiacuteteses que perfilam seu anseio humano ldquo Um dia julgou ter achado

20 Quadro de Broeghel demonstrando a queda de Iacutecaro no mar enquanto os camponeses prosseguem a sua

labuta diaacuteria

22

Oh aquele dia A embriaguez do homem que se igualou a Deus O coraccedilatildeo a

bater a bater a sentir-se grande demais para um peito tatildeo pequeno para um

tatildeo mesquinho destino A humidade das laacutegrimas a embaciar o olhar gigante

que se esquecera um momento de ter nascido pigmeu O artista o poeta o

inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de movimento e de

vida todos os que desbravavam caminhos os que talham abrem por entre os

matagais selvagens e as belas estradas largas do pensamento e das ideias As

palavras satildeo o muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes

ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)

Ao atingir o voo pleno por vezes nos afastamos da realidade natural e nos

lanccedilamos ao desconhecido sem saber o que nos espera Com isso a queda eacute

inevitaacutevel Neste seguimento vemos a intertextualidade presente sob o estigma

dos cuidados de Zeus filho de Cromo e pai dos deuses que concedeu aos

heroacuteis uma morada afastada dos homens onde os semideuses pudessem se

estabelecer nos confins da terra Eacute laacute que habitam com o coraccedilatildeo livre de

cuidados nas Ilhas dos Bem-Aventurados nas praias dos turbilhotildees profundos

do Oceano satildeo eles os heroacuteis afortunados a quem Florbela tambeacutem concede

a morada preparada como tuacutemulo perfeito para o descanso eterno A

representaccedilatildeo das deusas das aacuteguas na presenccedila das ninfas efidriacuteades21 que

simbolizam a graccedila criativa e fecundadora da natureza fazem aparecer a

presenccedila feminina que surge com o intuito de exaltar a forccedila interior que so a

mulher tem para defrontar situaccedilotildees desastrosas e encontrar soluccedilatildeo nos mais

tenebrosos conflitos bem como de dar um toque de suavidade ternura beleza

e leveza que soacute a performance feminina consegue impor ldquo hellipAs filhas dos

deuses ondinas sereias nereidas princesas encantadas acodem todas

pressurosashellipEm volta das asas mortas satildeo como flores desfolhadas em

redor dum esquife negro E olhamhelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 199842) A

sabedoria feminina evidencia-se ao se manifestar a ldquoque tinha nos olhos uma

nostaacutelgica tristeza humanardquo (FLORBELA ESPANCA 199846) como uma matildee

protectora que acalenta o filho em seu sono profundo e compreende com

tristeza a dor dos mortais ou quem sabe sua proacutepria dor na condiccedilatildeo de

imortal pois somente aos deuses era permitido o poder de arrebatar o espiacuterito

21 Referecircncia as ninfas das aacuteguas da mitologia grega

23

a um homem ldquo E aquele que tinha sido um filho dos homens ficou a dormir na

eternidade como se fora um filho dos deusesrdquo (FLORBELA ESPANCA

199846)

Como podemos perceber Florbela em sua construccedilatildeo literaacuteria delineou nas

entrelinhas dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquoO Inventorrdquo aspectos simboacutelicos

determinantes do aprisionamento e da libertaccedilatildeo humana natildeo somente no

sentido denotativo mas tambeacutem conotativo na multiplicidade de sentidos que

tais palavras propotildeem Apesar da evidecircncia colocada pela escritora ainda nos

remete a reflexatildeo pois o aprisionamento pode ser um meio de libertaccedilatildeo e a

libertaccedilatildeo um aprisionamento ldquohellipOlhou o ceacuteu profundohellipe achou Ser aviador

eacutehellipabraccedilar no mesmo abraccedilo o ceacuteu e o mar Na linguagem dos siacutembolos a

acircncora definindo a esperanccedila nunca poderaacute valer as asas que satildeo a

libertaccedilatildeo A acircncora agarra-se ao fundo e fica as asas abrem-se no espaccedilo e

penetram o ceacuteuhellipSeria aviador Quando pela primeira vez voou natildeo se

esqueceu de sentar na carlinga a seu lado ao lado do seu coraccedilatildeo aquela

que dali em diante seria a companheira de todos os dias a companheira

indefectiacutevel de todos os aviadores a Morterdquo (FLORBELA ESPANCA 1998

129)

A produccedilatildeo intertextual desses dois contos traz-nos um imaginaacuterio voltado aos

princiacutepios fundadores de conceitos e referecircncia humana Florbela baseia-se na

representaccedilatildeo da infacircncia como elemento fundador da personalidade e do

caraacutecter ou seja a figura do pai que nunca a reconheceu em vida e por outro

lado na figura de Deacutedalo e Iacutecaro tendo o pai a dualidade em sua referecircncia

paterna Eacute assim que de ldquotentaccedilatildeo em tentaccedilatildeo de fraqueza em fraqueza os

compromissos de consciecircncia levam um homem honrado agrave praacutetica de todos os

crimeshelliprdquo22

22 Fragmento do conto O Inventor de Florbela Espanca As Maacutescaras do Destino1998122

24

22 - A MULTICIPLIDADE DO HEROacuteI

ldquo A vida parada e recolhida cria heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tarderdquo23

Ao encontrarmos facetas mitoloacutegicas entre as leituras de Florbela natildeo se pode

descartar a visatildeo do heroacutei que a autora engendrou na figura de seu irmatildeo

Apeles Tiacutetulo esse dado a homens excepcionais como Ulisses que eram

venerados por seu povo da mesma forma Florbela nutria uma verdadeira

veneraccedilatildeo que a levou a personificar o Aviador a um heroacutei merecedor de

honrarias e apesar da miacutesera condiccedilatildeo de mortal foi-lhe atribuiacutedo qualidades

fiacutesicas e morais dignas de um semideus ldquo A vida parada e recolhida cria

heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tardehellip o pincel de geacutenio daacute os uacuteltimos

retoques ao cenaacuterio de epopeiahellip laacute em cima a formidaacutevel apoteose desdobra-

se no meio do pasmo das coisas Eacute um homem que tem asas E as asas

pairam descem rodopiam ascendem de novo giram latejam batem ao sol

mais aacutegeis e mais robustas mais leves e mais possantes que as das aacuteguias Eacute

um homem A face eneacutergica vincada a cinzel emerge extraordinaacuteria da vida

intensa na indecisatildeo dos contornos que lhe fazem vagos e paacutelidos um vago

pano de fundo a face e as matildeoshellipOs muacutesculos da face adivinham na forccedila

brutal das maxilas cerradas Nos olhos leva visotildees que os filhos dos homens

natildeo conhecem Os olhos dele natildeo se vecircem olham para dentro e para fora satildeo

pedras como as das estaacutetuas e vecircem mais e mais para aleacutem do que as

miacuteseras pupilas humanas Satildeo astrosrdquo (FLORBELA ESPANCA 199838 e 39)

Esta mesma condiccedilatildeo eacute dada ao Inventor autor da imaginaccedilatildeo de Florbela

ldquoRealizara os seus sonhos todos os seus sonhos Que havia mais agora Jaacute

os homens podiam sulcar os ares sem medo aos vendavais agraves coacuteleras brutais

da Natureza jaacute o ceacuteu se podia coalhar de asas como o mar de velas Todo o

homem poderia ter sem perigo e sem riscos a cobiccedilada sensaccedilatildeo de

comandar nos elementos como um semideusrdquo (FLORBELA ESPANCA

1998133)

Sabemos que o heroacutei constitui o assunto da poesia eacutepica ele tem a sua

maneira proacutepria de agir pela sua coragem e bravura e prossegue objectivos

23 Fragmento do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca198837 e 38

25

bem determinados que ao longo de sua trajectoacuteria lhe satildeo atribuiacutedos cada qual

com sua importacircncia e valor Eacute dado a ele tambeacutem o poder de decisatildeo ora

sobre seus actos ora sobre si mesmo Isso como forma de valorizar sua

sabedoria e supremacia diante daqueles a quem defendia Assim se apresenta

o heroacutei dos contos de Florbela homem-deus detentor de toda visatildeo forte

dominador senhor supremo de seu destino a quem eacute concedido um lugar

eterno junto aos astros

A realidade fictiacutecia da mitologia eacute comparada aqui a realidade autecircntica

Florbela interessa-se pelo seu heroacutei fictiacutecio como se fosse ou tratasse de uma

pessoa real com isso podemos dizer que a escrita ficcional de Florbela eacute

mimese porque a realidade de sua vida humana eacute o seu material de escrita ela

consegue transformar a realidade objectiva na realidade subjectiva vivencial

razatildeo por que nos deixamos influenciar pela sua trajectoacuteria de vida em seus

escritos Isso justifica o fato da ldquovaliosa bravurardquo ndash por uma valiosa pintura - de

seu heroacutei ser retratado em uma tela por um titatilde24 personifica assim a grande

luta travada com as forccedilas da natureza ldquoEacute um Rembrandt pintado por um titatilderdquo

(FLORBELA ESPANCA 199839) A sua proacutepria natureza humana A propoacutesito

disso parece mais reportar ao paradoxo entre o bem e o mal que lutam

constantemente pelo domiacutenio da razatildeo interior talvez alvo de Florbela

Eacute interessante observar a relaccedilatildeo que existe entre o ldquohomem com asasrdquo com

as Harpias25 que na multi-significaccedilatildeo de seu discurso nos projecta a uma

realizaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo na figura do heroacutei alado em uma transposiccedilatildeo

imaginaacuteria com uma pluralidade de sentidos que poderia ocultar um sentido

uacutenico o seu proacuteprio desejo ou o desejo de arrebatar a alma de seu morto

Tambeacutem vemos a intertextualidade corrente na pessoa de Ulisses26 o heroacutei

grego navegante Robson Crusoeacute27 Piratas dos Sete Mares28 aos capitatildees e

24 Referecircncia a segunda geraccedilatildeo dos deus mitoloacutegicos representantes das forccedilas da natureza e sem uma

personalidade bem vincadaos quais Hesiacuteodo enumerou em doze seis machos e seis fecircmeas Oceano Ceacuteu

Crio Hiperiacuteon Jaacutepeto Cronos Teia Reja Teacutemis Mnemoacutesine Febe e Teacutetis 25 As Harpias filhas de Electra (ela proacutepria filha do Titatilde Oceano) e de Taumas (filho de Ponto e de Geia)

pertencem agrave geraccedilatildeo dos preacute-oliacutempicos Elas satildeo irmatildes de iacuteris a mensageira dos deuses Representadas

quer como mulheres aladas com um aspecto fameacutelico quer como paacutessaros com cabeccedila de mulher as

Harpias residem nas ilhas Estroacutefades do mar Egeu ou ainda agraves portas do Taacutertaro Impetuosas e brutais

como a tempestade as Harpias satildeo - este eacute o sentido do seu nome - raptoras com garras fortes 26 Odisseu (na Greacutecia) ou Ulisses (em Roma) eacute um personagem da Iliacuteada e da Odisseacuteia de Homero Apoacutes

a derrota dos troianos ele iniciou uma viagem de dez anos de volta para Iacutetaca onde a sua mulher o espera

com uma fidelidade obstinada apesar da demora Essa viagem mereceu a criaccedilatildeo por Homero do poema

26

navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a

coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a

solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o

enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio

multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos

diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio

Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os

naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de

navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS

Maacutescaras do Destino 1998 p 125)

Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada

com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a

renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que

convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos

escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a

partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental

aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A

viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas

suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte

recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os

heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas

ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o

navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira

de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que

nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era

eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que

deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-

1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado

a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe

herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico

sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O

romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como

tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar

que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os

Lusiacuteadas de Camotildees

27

no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo

da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)

Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida

funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo

conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente

nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de

alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva

Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer

tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos

heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os

portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens

tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que

de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os

navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por

deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da

Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do

texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute

simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no

poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES

1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou

passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da

Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas

natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer

vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de

ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um

heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com

o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas

forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um

aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem

mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva

30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos

Lisboa

Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal

28

presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de

Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura

greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito

especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela

escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a

morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem

para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de

transformaccedilatildeo fantaacutestica

Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que

na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena

confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir

uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute

infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu

desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma

personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo

inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade

aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios

filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa

escritora o seu carma

Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei

que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora

quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem

ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles

desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma

as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista

o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de

movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos

esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do

pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam

As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes

ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)

29

CAPIacuteTULO 03

31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS

ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de

doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32

No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute

intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em

todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do

proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade

de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma

comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro

cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser

estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute

antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de

alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas

oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir

as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava

perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o

fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo

para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que

muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da

escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e

complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e

pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma

formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela

graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa

assume

32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122

30

De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete

agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem

Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites

nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute

podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido

conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao

inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um

ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma

palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a

intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda

e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas

pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma

onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo

(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um

recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o

renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio

inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a

matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada

ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe

mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata

cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de

voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e

122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso

indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam

tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele

o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as

suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um

emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados

que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e

intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica

33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ

31

Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado

transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas

Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e

que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a

imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de

dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada

dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais

significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa

escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e

sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-

as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar

inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos

era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade

existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)

A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio

Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo

tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens

que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de

tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta

ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a

proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo

Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante

notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe

de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e

medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca

mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho

branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a

socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua

presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo

(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo

deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo

queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a

intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia

humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para

32

sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo

pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no

mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais

apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva

enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente

foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)

A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja

como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo

atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute

reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em

busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito

junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos

satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad

que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que

han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas

mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como

meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do

inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os

aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias

34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939

33

32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO

ldquoA vida vem em ondas

Como o mar

Num indo e vindo infinitohelliprdquo35

A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente

foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram

o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios

da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-

portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo

ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura

universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e

nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a

esquizofrenia de sua alma

O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos

grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma

visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes

de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-

racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas

fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma

encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no

espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada

ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar

duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava

que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se

35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos

em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria

imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia

grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios

Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e

cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam

da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela

Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a

sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor

34

sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o

olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de

um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o

seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No

reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que

constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia

Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor

das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que

participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na

claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma

a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial

apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se

imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA

ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta

solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser

acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas

pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de

existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas

dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma

mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar

agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)

As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar

aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de

Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a

37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta

nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet

tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido

advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte

de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga

(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre

1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a

questatildeo (Hamlet ato III cena I)

38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)

que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era

destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar

35

travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes

questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente

humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a

vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa

loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz

a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair

numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua

frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico

mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de

transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a

morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano

capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas

ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de

integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de

totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma

ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade

de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida

dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a

seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas

iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives

mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas

dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a

cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute

perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras

velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida

de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar

costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras

por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e

grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme

O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu

amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do

Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para

toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos

36

Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser

salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma

dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo

desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave

liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos

secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a

uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo

desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a

boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia

pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a

mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais

alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se

nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira

as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de

alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora

julga existir no seu misteacuterio

O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e

forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e

sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que

orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente

num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das

contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute

traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas

que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas

figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas

narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um

imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e

39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII

mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a

bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por

alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua

tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar

Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A

histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito

em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que

aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas

aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma

37

refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus

fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a

sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades

da dinacircmica universal

Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar

simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos

narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos

siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um

contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da

efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma

capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde

diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e

exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia

essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel

mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo

do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do

Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)

e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo

social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)

na representatividade literaacuteria do mar

38

CAPIacuteTULO 04

41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA

ldquoGosto de ti apaixonadamente

De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo

De ti que me trouxeste pela matildeo

Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40

Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso

a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade

directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na

poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua

dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees

Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita

capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e

um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz

e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a

dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas

conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute

e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria

serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem

quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto

anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse

em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita

maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte

com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e

quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e

emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos

paradoxos

40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no

livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004

Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo

Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11

39

Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos

toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-

romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido

num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia

com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes

profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas

sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo

acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando

a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A

derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a

conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas

da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da

sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No

entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas

romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a

impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo

definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha

aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento

em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o

passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era

tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto

A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos

acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-

Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs

Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os

Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de

Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de

Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o

egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo

narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica

Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute

neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o

poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem

40

esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma

essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no

iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma

questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos

encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem

sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos

interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas

as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um

exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo

tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo

daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita

conteacutem

41

42 - UM PERCURSO COMPARATIVO

ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os

vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e

outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que

ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute

foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41

ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto

Olhou em roda natildeo achou ningueacutem

Por entre as campas arrastando o manto

Com lentos passos caminhou aleacutem

Abandonado neste chatildeo repousa

Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui

Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa

Sobre este peito que bateu por tirdquo42

A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e

o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-

romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua

linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa

o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se

O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando

proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos

moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na

literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror

Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou

comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas

circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de

comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e

sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos

41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda

Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos

42

ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de

outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou

Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)

Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal

de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma

optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada

pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada

no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus

sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa

suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois

dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)

Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade

todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional

natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute

afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute

tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima

do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo

Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela

e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a

prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua

intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a

dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as

influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente

que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz

directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para

a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o

intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era

partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada

por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das

rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de

branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza

43

ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas

Longas roupagens de neveda cor

Singela croa de virgiacutenias rosas

Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43

ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de

branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila

devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa

nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)

Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de

conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se

para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da

imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a

partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a

presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os

uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem

eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera

absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor

ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria

A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a

intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um

testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista

e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas

caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da

temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao

fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma

retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras

masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo

homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma

mulher

43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12

44

(hellip)

Mulher formosa que adorei na vida

E que na tumba natildeo cessei damar

Por que atraiccediloas desleal mentida

O amor eterno que te ouvi jurar

Amor engano que na campa finda

Que a morte despe da ilusatildeo falaz

Quem dentros vivos se lembrara ainda

ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)

Talvez que rindo dos protestos nossos

Gozes com outro dinfernal prazer

E o olvido cobriraacute meus ossos

Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44

Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o

vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as

bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis

e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma

essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o

podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA

ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de

sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a

eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos

na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto

com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais

de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas

palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o

esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal

seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu

passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre

44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9

45

que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as

matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos

das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam

para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)

Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno

num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista

melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias

possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela

um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica

natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem

fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo

intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas

rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso

consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo

intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas

solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou

com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a

todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas

as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os

sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado

daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)

Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do

Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais

significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO

MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do

quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e

estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que

desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo

da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina

agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das

espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute

presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos

46

ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido

Das sepulturas o gelado poacute

Dois esqueletos um ao outro unido

Foram achados num sepulcro soacuterdquo45

Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de

imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da

intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo

buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma

enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo

recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as

laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas

deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo

sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais

moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas

austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade

dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete

palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam

pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e

59)

Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao

ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram

escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia

literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo

exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde

ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais

tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo

merecida

45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos

47

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas

interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca

Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo

depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves

transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo

sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia

ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas

metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver

com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao

sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas

tambeacutem ao que relaciona a morte

A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua

eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela

mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e

sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo

quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade

que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas

personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a

humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de

enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e

sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas

e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o

que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte

presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais

condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus

contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e

desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse

interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural

equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes

interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute

Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem

uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses

48

elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o

inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela

tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses

elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma

civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor

sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam

sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do

intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea

Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o

menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que

para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro

compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo

que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou

seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua

imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que

essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar

atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a

outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual

proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque

esconde-se ou projecta-se no discurso do outro

Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o

caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo

relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens

marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um

significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um

desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos

de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e

fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave

realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande

maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe

um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo

46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de

Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360

49

obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a

escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada

Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a

infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute

aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo

espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a

verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes

50

REFEREcircNCIA BIBLIOGRAacuteFICA

Activa

ESPANCA Florbela (1998) As Maacutescaras do Destino 7ordf ediccedilatildeo Bertrand

Editorial Venda Nova

ESPANCA Florbela (1998) Diaacuterio do Uacuteltimo Ano 4ordf ediccedilatildeo Bertrand Editorial

Venda Nova

ESPANCA Florbela (2004) Poesias Completas Publicaccedilotildees Dom Quixote

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Passiva

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Editora Aacutetica Satildeo Paulo

CESERANI Remo (1999) Lo Fantaacutestico Coleccioacuten La Balsa de la Medusa

104Traduccioacuten de Juan Diacuteas de Atauri Edicioacuten Visor Dis SA Madri

CHEVALIER Jean (2003) Dicionaacuterio de Siacutembolos 18ordf ediccedilatildeo Joseacute Oliacutempio

Rio de Janeiro

COUTINHO Eduardo F (1994) Literatura Comparada textos fundadores

Editora Rocco Rio de Janeiro

FRANZ Marie-Louise Von ( 1990) Siacutembolos de Redencioacuten en Los Cuentos de

Hadas Lucieacuternaga Grupo Editorial Oceano Barcelona

GODINHO Helder (1982) O Mito e o Estilo Presenccedila Lisboa

51

GREINER Herbert (2006) Dicionaacuterio Akal de Literatura General y

ComparadaTraduccioacuten revisioacuten y ampliacioacuten de la edicioacuten espantildeola Ediciones

Akal SA Madrid

HAMBURGER kate (1986) A Loacutegica da Criaccedilatildeo Literaacuteria 2ordf ediccedilatildeo Editora

Perspectiva SA Satildeo Paulo

HARO Pedro Aulloacuten GABALDOacuteN Jesuacutes Garcia y PASTOR Santiago Navarro

(2002) Ivan Andres y La Teoria Comparatista Coleccioacuten Literaria Actas

Valecircncia

JEAN George (1988) El Poder de Los Cuentos Traduccedilatildeo de Caterina

Molina1ordf edicioacuten Pirene Editorial Barcelona

JUacuteDICE Nuno (1998) As Maacutescaras do Poema Editora Ariacutem Lisboa

JUacuteDICE Nuno (2005) A Viagem das Palavras Editora Colibri Lisboa

JUacuteDICE Nuno (1986) A Era do ldquoOrpheurdquo Colecccedilatildeo Terra Nostra Editorial

Teorema Lisboa

KRISTEVA Juacutelia (1974) Introduccedilatildeo agrave Semanaacutelise Trad Luacutecia Helena Franccedila

Ferraz Editora Perspectiva Satildeo Paulo

LOPEZ Edward (1978) Uma Teoria do Interpretante 1ordf ediccedilatildeo Cultrix ndash

Secretaria da Cultura Ciecircncia e Tecnologia do Estado de Satildeo Paulo Satildeo

Paulo

MACHADO Aacutelvaro Manoel (1986) O Romantismo na Poesia Portuguesa 1ordf

ediccedilatildeo Biblioteca Breve vol 104 Instituto de Cultura e Liacutengua Portuguesa

Lisboa

NIETO Joseacute Mordf Fernaacutendez (1987) El Mar y La Poesia Liacuterica Del Mar

Biblioteca de Temas Almerienses seacuterie menor 27 2ordf edicioacuten Editorial Cajal

Almeria

52

RALLO Caacutermen Lara (2007) Las Voces Y Los Ecos Perspectiva sobre La

Intertextualidad Campus de Teatinos Universidad de Maacutelaga Edicioacuten Analecta

Malaciana Maacutelaga

SCHNEIDER Michel (1990) Ladratildeo de Palavras Ensaio sobre o plaacutegio a

psicanaacutelise e o pensamento Editora UNICAMP Satildeo Paulo

WEBIBLIOGRAFIA

httpwwwprahojecombrflorbelacat=15

httpwwwfclarunespbrpublicaccedilotildeesrevistaliberdadehtm

httparestasdeventonosapoptlabaredas2html

Page 4: AS MÁSCARAS SIMBÓLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA … Jaqueline... · 2019-10-31 · A narrativa ficcional não é o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca, mas, assim como

4

DEDICATOacuteRIA

A Ladir Cidinha Biacute JucaTataacute e Didi

ldquoMeu grande alicercerdquo

A Israel (in memoriam) e Daniel

ldquo Amores eternosrdquo

A Noel

ldquoMeu cavaleiro das armas escurasrdquo

Ao Centro de Estudos Florbela Espanca

da Universidade Federal de Rondocircnia-UNIR

ldquoNosso primeiro encontrordquo

5

IacuteNDICE

RESUMOhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 06

ABSTRACThelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 07

INTRODUCcedilAtildeOhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 08

CAPIacuteTULO 01helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 12

11 ndash Enquadramento Teoacutericohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 12

12 - Abordagens sobre ldquoAs Maacutescaras do Destinordquohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 16

CAPIacuteTULO 02helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip19

21 ndash Sonho de Iacutecarohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip19

22 ndash A Multiplicidade do Heroacuteihelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip24

CAPIacuteTULO 03 helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 29

31 ndash A Intencionalidade das Aacuteguashelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip29

32 ndash A Simbologia do Mar Florbelianohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip33

CAPIacuteTULO 04helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip38

41 ndash A Intertextualidade Ultra-Romacircntica em Florbelahelliphelliphelliphelliphelliphellip38

42 ndash Um Percurso Comparativohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip41

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIShelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip47

REFEREcircNCIA BIBLIOGRAacuteFICAhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip50

6

RESUMO

A narrativa ficcional natildeo eacute o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca

mas assim como em seus poemas seus contos tambeacutem natildeo deixam de ter a

marca particular que a caracteriza como ldquo hellipraiz e flor A noite e a estrela da

alva a primeira A morte e a vida Aquela pudica amante e lilial irmatilderdquo1 Atraveacutes

da anaacutelise interpretativa podemos desvendar lacunas que fazem do seu livro de

contos As Maacutescaras do Destino um fascinante mosaico de leituras Passando

pela influecircncia referencial da mitologia dos deuses agrave consagraccedilatildeo heroacuteica de

seus filhos (semideuses) fonte imprescindiacutevel para o surgimento da

representaccedilatildeo simboacutelica do mar e seus respectivos elementos interpretativos

como bases da projecccedilatildeo do estado de alma dos escritores sentimentalistas

em que o tema da ldquodorrdquo permite a reutilizaccedilatildeo da imagem noutra construccedilatildeo

textual podendo ocorrer a superposiccedilatildeo a absorccedilatildeo e a transformaccedilatildeo de uma

multiplicidade de outros textos Esse estilo elaborado de escrita possibilita um

estudo comparado com outros textos Aqui essa relaccedilatildeo intertextual com um

poema do consagrado escritor ultra-romacircntico Soares de Passos permite

observar a tendecircncia decadentista e ultra-romacircntica em Florbela de modo que

vem confirmar seu conflito interior em detrimento de sua existecircncia Mesmo

assim natildeo deixou de reafirmar-se como escritora de sua eacutepoca Foi designada

como a ldquoPoetisa do Amorrdquo por Joseacute Reacutegio e o mesmo ainda ressalta que

ldquoextraordinaacuteria forccedila da natureza vulcatildeo sempre aceso de violentas paixotildees e

desejos que foi a vida e obra de Florbela2

PALAVRAS ndash CHAVE

Anaacutelise comparaccedilatildeo conto decadentismo Florbela Espanca heroacutei

interpretaccedilatildeo intertextualidade mar mito poesia simbolismo sentimentalismo

ultra-romantismo

1 Citaccedilatildeo extraiacutedo do website httparestasdeventonosapoptlabaredas2html Comentaacuterio de Joseacute

Antoacutenio Raposo sobre Florbela e Duratildeo 2 Citaccedilatildeo extraiacutedo do website httparestasdeventonosapoptlabaredas2html Comentaacuterio de Joseacute

Antoacutenio Raposo sobre Joseacute Reacutegio e Florbela

7

ABSTRACT

Florbela Espanca is not only well-known for her narrative fiction but also for her

poems Her stories have its particular mark which is characterized by such

stories asRoot and Flower The Night and the Star of Dawn The Spring

The Bashful Lover and Lilial Sister Through the analysis we can unmask the

gaps that make-up the fascinating reading of mosaic Passing

through referential influence of the Mythology of Gods to heroic consecration

of their children (semi-gods) an indispensable source for the appearance of

symbolic representation of the sea and its respective interpretative elements as

the base for the projection of the state of souls of the sentimental writers in

which the theme of pain permits the reutilization of an image in another textual

construction where superposition absorption and the transformation of a

multiplicity of other texts This elaborated style of writing makes it possible for

the study of comparisons with other texts Here this intertextual relation with a

poem of the consecrated ultra-romantic writer Soares de Passos permits the

observation of the decadent and ultra-romantic tendency in Florbela so that it

confirms its inner conflict in detriment to its existence Even so it doesnt stop

reaffirming her as a writer of her time She was named Poetess of Love by

Joseacute Reacutegio and it also highlights The Extraordinary Force of Nature Violent

Passion always alighted by a Volcano and desires which was the life and work

Of Florbelardquo

Key Words Analysis Comparison Story Decadence Florbela Espanca Hero

Interpretation Intertextuality Sea Myth Poetry Symbolism Sentimentality

Ultra-romanticism

8

INTRODUCcedilAtildeO

A primeira reflexatildeo que vem a nossa mente quanto que por acaso ouvimos as

primeiras duas estrofes de um dos sonetos de Florbela Espanca ldquoFanatismordquo3

eacute de estar diante de um texto onde emana o que existe de mais sentimental em

um autor Sem ainda conhecer os desiacutegnios desta ldquoBela princesa da planiacutecie

Alentejanardquo4 podemos perceber que buscava dizer algo mais que apenas as

belas palavras proferidas em seus versos que eram imbricados de metaacuteforas

fortes onde mostrava-se irmatilde companheira amante princesa magoada louca-

fanaacutetica inconstante e natildeo deixava ao contraacuterio do poema ldquoFumordquo5 fugir de

seus dedos a essecircncia de uma autora que buscava as respostas para sua

inquietude na projecccedilatildeo da figura ideal

As vicissitudes de seu tempo natildeo inibiram-na de mostrar seu grande talento

para a poesia e contos em alguns momentos de sua escrita Florbela gritava

por liberdade natildeo soacute de expressatildeo e participaccedilatildeo no meio artiacutestico mas por

uma liberdade intimista que para o seu tempo era mal interpretada pois a

sociedade concebia a figura da mulher fraacutegil delicada recatada e submissa agraves

vontades e desejos masculinos o que Florbela tentava sem o querer ser As

agruras desse tormento vivido pela mulher seria entatildeo imortalizado pela

escritora

Ao lermos seus escritos sem duacutevida entramos por um caminho de vastas

indagaccedilotildees buscando perceber qual seria a grande inquietude que envolvia

esta mulher em momentos de impacto com o real e a tatildeo grandiosos momentos

de nostalgia amorosa levando-nos a apreciar a natureza tal qual como eacute

descrita em seus poemas assim como estabelecermos uma intimidade com

uns dos temas que mais aflige as pessoas mas que de uma certa forma nos

coloca frente a frente com uma realidade a qual natildeo podemos fugir ndash a morte

Essa temaacutetica podemos dizer que eacute a mais forte tendecircncia dos escritos de

Florbela natildeo soacute na poesia que se faz presente na maioria de seus livros mas

tambeacutem em seus contos envolvendo-nos em situaccedilotildees onde o tema morte

passa a impulsionar nossa expectativa em nos descobrir ou redescobrir diante

da vida ou do mais profundo e iacutentimo desejo humano de conhecer-mos a noacutes

3 Poema contido no livro de ldquoSoror Saudaderdquo publicado em 1923 4 Frase proferida por Duratildeo seu amigo fiel 5 Poema contido na livro de ldquoSoror Saudaderdquo

9

mesmos e infiltra-nos por caminhos incoacutegnitos que cobrem de maacutescaras nosso

destino assim como eacute citado no tiacutetulo de seu livro de contos6 o qual dedicou a

seu irmatildeo Apeles deixando-nos por vezes a margem de reflexotildees

existencialistas mas natildeo o existencialismo puro dos filoacutesofos questionadores

mas um existencialismo amoroso sensiacutevel capaz de nos inibir com subtilezas

representativas de um mesclado de tendecircncias literaacuterias que preenche seus

textos de extremo romantismo e passa para a evidecircncia dos fatos que vatildeo do

real ao ideal do acontecido a suposta consequecircncia

De fato que sua vida influenciou sua escrita7 tanto que nesta inquietante busca

pela pessoa ideal que era acometida a escritora levou a mulher a concretizar

sua indubitaacutevel certeza de que seria compreendida e aceita apenas depois de

repousada sua pena agraves matildeos da morte e descansar em teus braccedilos fato esse

descrito no poema ldquoAacute Morterdquo encontrado em sua mesa no dia em que suicidara

Soacute assim seria quebrado o encanto da escrita como natildeo o foi Foi sim

quebrado o encanto do escrever pois a escrita era a forma de agir sobre a sua

realidade mas o encanto da escrita permanece e esses ldquo que os vivos passem

adianterdquo8 como a proacutepria Florbela proferira E assim estaacute Florbela vive em sua

obra sua temaacutetica nos chega como notiacutecia surpreendente e nos envolve em

seus misteacuterios simboacutelicos Sua meacutetrica ao molde claacutessico e uma temporalidade

construiacuteda em seus escritos atraveacutes de seus livros de forma proposital nos

deixa perceber o que vai no iacutentimo de uma mulher parece que retrata com

transparecircncia as fantasias ou fases interiores do imaginaacuterio feminino que de

intreacutepida voluntariosa libertina amante insaciaacutevel inconstante passa a ser

casta pura virtuosa religiosa isso tudo sem deixar de ser extraordinariamente

apaixonada como ela mesma atesta sua proacutepria natureza ldquoSou filha da

charneca erma e selvagemrdquo9

Do mesmo modo que na poesia a Bela escritora mostra-nos seu talento para a

prosa em seu livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo Diferente da poetisa do ldquoeurdquo os

contos geralmente em terceira pessoa natildeo deixam de ter a marca registada

de Florbela a insatisfaccedilatildeo pela vida e a fuga atraveacutes da morte com fortes

mesclas de romantismo Outra caracteriacutestica presente neste livro eacute a ldquolacunardquo

6 Referecircncia ao livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo dedicado a seu irmatildeo Apeles 7 Referecircncia aos vaacuterios estudos feitos sobre a vida a escritora 8 Citaccedilatildeo retirado da dedicatoacuteria do livro ldquoAs Mascaras do Destinordquo 1998 33 9 Citaccedilatildeo do poema ldquoEsfingerdquo do livro Poesias Completas 2004 276

10

deixada a margem da interpretaccedilatildeo ou seja o que se leria nas entrelinhas do

texto Tais interpretaccedilotildees ficam a cargo do leitor que de certa forma interage

com as narrativas preenchendo-lhes o vazio deixado pela escritora ldquovaziordquo

esse que tambeacutem a acompanha nesta obra e a quem dedica ldquoeste livro eacute o

livro do meu mortordquo10 Na realidade Florbela queria deixar imortalizado seu

irmatildeo ldquoNatildeo queria que meu morto morresse comigohellipE escrevi estas

paacuteginashelliprdquo que foram de encontro a profundeza de seu pensamento ou seja

uma consciecircncia transcendental em caminho a ldquotalrdquo liberdade tanto desejada

que jaacute em versos reclamava

ldquoEu ponho-me a sonhar transmigraccedilotildees

Impossiacuteveis longiacutenquos milagrosas

Voos amplos ceacuteus distantes migraccedilotildees

Longehellip noutras esferas luminosas

E pelo meu olhar passam visotildees

Ilhas de bruma e naacutecar drsquooiro e rosashellip

E eu penso que liberta de grilhotildees

Hei-de aportar agraves Ilhas misteriosasrdquo11

Esse doce misteacuterio que cheio da natureza de ser mulher eacute o que intriga-nos a

cada leitura e nos faz buscar conhecer mais de sua vida para entendermos sua

obra Seus contos nos mostram uma Florbela detentora de uma

intertextualidade viva que no decorrer das narrativas remete-nos a outros

tempos a outras leituras Cria um ambiente nostaacutelgico e contemplativo de

vasto campo simboacutelico percorrendo as mais variadas fontes para sua

inspiraccedilatildeo criadora com isso ao depararmos com o quadro descritivo na

narrativa recriamos esse quadro imaginaacuterio em nossa mente como em um

conto de fadas ali misturam-se fatos reais e imaginaacuterios tempos reais e

imaginaacuterios personagens reais e imaginaacuterias tudo ldquo eacute luminosas e exaltante

10 Citaccedilatildeo da dedicatoacuteria do livro ldquoAs maacutescaras do Destinordquo 1998 32 11 Poema ldquoLibertardquodo livro Poesia Completa 2004 75

11

emoccedilatildeordquo foi enchido de ldquotoda a espiritualidade beleza dolorosa e humildade e

acima de tudo as almasrdquo criadas ldquosatildeo gritos e soluccedilos de amorrdquo12

Diante disso o foco do estudo e pesquisa sobre Florbela Espanca se limitaraacute

em um levantamento analiacutetico e criacutetico dando vaacuterias possibilidades de

interpretaccedilatildeo bem como referecircncias intertextuais que satildeo citadas e ora

aparecem em seus contos no livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo Tal estudo

objectiva um conhecimento interpretativo e comparativo das leituras feitas por

Florbela e o modo como vieram a influenciar e dar sustentabilidade ao enredo

dos contos Quem sabe poderemos conhecer um pouco mais dessa misteriosa

mulher que dizia natildeo conhece a si mesma

O que sou eu AmorSei laacute que sou

Sou tudo e nada grande e pequenina

Sou a que canta uma ilusatildeo divina

Sou a que chora um mal que acabou

Eu sei laacute que quimera me beijou

E nunca o soube assim desde pequenina

Haacute neste mundo tanta amarga sina

A minha eacute saber nunca quem sou

Esfinge sonho tonto de desejos

Na tua boca sou uma asa aberta

A palpitar vermelha como os beijos

Andorinhahelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellipa voejar13

helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip

helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip

12 Citaccedilatildeo da dedicatoacuteria do livro ldquoAs maacutescaras do Destinordquo 1998 33 13 Poema sem tiacutetulo editado no livro ldquoEsparsos de Florbelardquo em Poesia Completa 2004 78

12

CAPIacuteTULO 01

11 - ENQUADRAMENTO TEOacuteRICO

Na literatura actual eacute frequente apontar-se como um dos factores de

textualidade a referecircncia - expliacutecita ou impliacutecita ndash a outros textos tomando estes

um sentido bem amplo (orais escritos visuais etc) A esse diaacutelogo entre textos

daacute-se o nome de intertextualidade

Eacute evidente que a intertextualidade estaacute ligada ao conhecimento de mundo que

deve ser compartilhado ou seja comum ao produtor e ao receptor do texto

Desta forma pressupotildee um universo cultural muito amplo e complexo pois

implica antes de tudo na identificaccedilatildeo e no reconhecimento de remissotildees a

obras ou a textostrechos mais ou menos conhecidos aleacutem de exigir do

interlocutor a capacidade de interpretar a funccedilatildeo daquela citaccedilatildeo ou alusatildeo em

questatildeo

Todas as questotildees ligadas agrave intertextualidade influenciam tanto o processo de

produccedilatildeo como o de compreensatildeo de textos o importante eacute natildeo encararmos a

intertextualidade apenas como a identificaccedilatildeo da fonte e sim que nos

preocupemos em estudaacute-la como um enriquecimento da leitura e da produccedilatildeo

de textos e sobretudo tentando mostrar a funccedilatildeo da sua presenccedila na

construccedilatildeo e no(s) sentido(s) dos textos

Como se pode notar na constituiccedilatildeo da proacutepria palavraldquointertextualidaderdquo

significa relaccedilatildeo entre textos Considerando-se texto num sentido lato como

um recorte significativo feito no processo ininterrupto de semiose cultural isto eacute

na ampla rede de significaccedilotildees dos bens culturais Pode-se afirmar que a

intertextualidade eacute inerente agrave produccedilatildeo humana O homem sempre lanccedila matildeo

do que jaacute foi feito em seu processo de produccedilatildeo simboacutelica Assim sendo o

texto como objecto cultural tem uma existecircncia fiacutesica que pode ser apontada e

delimitada um filme um romance um anuacutencio uma muacutesica Entretanto esses

objetos natildeo estatildeo ainda prontos pois destinam-se ao olhar agrave consciecircncia e agrave

recriaccedilatildeo dos leitores Cada texto constitui uma proposta de significaccedilatildeo que

natildeo estaacute inteiramente construiacuteda A significaccedilatildeo se daacute no jogo interpretativo

entre o texto e seu destinataacuterio Este uacuteltimo eacute um interlocutor ativo no processo

de significaccedilatildeo na medida em que participa do jogo intertextual tanto quanto o

autor

13

A intertextualidade se daacute pois tanto na produccedilatildeo como na recepccedilatildeo da grande

rede cultural de que todos participam Filmes que retomam filmes quadros que

dialogam com outros propagandas que se utilizam do discurso artiacutestico

poemas escritos com versos alheios romances que se apropriam de formas

musicais tudo isso satildeo textos em diaacutelogo com outros textos intertextualidade

Um texto remete a outro para defender as ideias nele contidas ou para

contestar tais ideias isso se daacute atraveacutes de um estudo comparativo entre textos

que ligam-se pela elaboraccedilatildeo artiacutestica de seu criador Eacute atraveacutes da anaacutelise

comparativa que tomamos ciecircncia da emergecircncia simboacutelica existente entre os

textos e a que niacutevel se daacute tal emergecircncia quanto agrave diacronia e sincronia que os

ligam Em qualquer niacutevel a produccedilatildeo simboacutelica eacute pois sempre uma retomada

de outras produccedilotildees perfazendo um jogo infinito que enreda autores e leitores

Apropriando-nos entatildeo de Schneider podemos afirmar

ldquoO texto literaacuterio eacute um palimpsesto O autor antigo escreveu uma lsquoprimeirarsquo vez

depois sua escritura foi apagada por algum copista que recobriu a paacutegina com

um novo texto e assim por diante Textos primeiros inexistem tanto quanto as

puras coacutepias o apagar natildeo eacute nunca tatildeo acabado que natildeo deixe vestiacutegios a

invenccedilatildeo nunca tatildeo nova que natildeo se apoacuteie sobre o jaacute-escritordquo (SCHNEIDER

199071)

No sentido estrito a palavra texto remete a uma ordem significativa

verbal Dentro dessa ordem a literatura vale-se amplamente do recurso

intertextual consciente ou inconscientemente Em razatildeo disso a

intertextualidade faz-se operador de leitura Eacute importante marcar os primoacuterdios

de Bakhtin em relaccedilatildeo a esses estudos divulgados por Juacutelia Kristeva Eacute dela o

claacutessico conceito de intertextualidade ldquo todo texto se constroacutei como mosaiacuteco de

citaccedilotildees todo texto eacute absorccedilatildeo e transformaccedilatildeo de um outro textordquo

(KRISTEVA 197464) Na verdade a intertextualidade inerente agrave linguagem

torna-se expliacutecita em todas as produccedilotildees literaacuterias que se valem do recurso da

apropriaccedilatildeo colocando em xeque a proacutepria noccedilatildeo de autoria Eacute o que vamos

observar ao longo do estudo no conto ldquoA Mortardquo em ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo

de Florbela Espanca temos aqui um bom exemplo do que se define como

intertextualidade as relaccedilotildees entre textos a citaccedilatildeo de um texto por outro

enfim o diaacutelogo entre textos Sendo assim para entender um texto na sua

totalidade eacute preciso conhecer o(s) texto(s) que nele fora(m) citado(s)

14

Eacute nesse contexto que Kristeva membro actuante da criacutetica francesa elabora

seu conceito de intertextualidade considerando que todo texto se constroacutei como

ldquomosaico de citaccedilotildeesrdquo Esse entendimento acarreta a consideraccedilatildeo de que a

intertextualidade eacute um fenoacutemeno que se encontra na base do proacuteprio texto

literaacuterio imbricada com a inserccedilatildeo deste num muacuteltiplo conjunto de praacuteticas

sociais relevantes A partir de Kristeva ldquotextordquo passa a ser entendido como o

evento situado na histoacuteria e na sociedade que natildeo apenas reflecte uma

situaccedilatildeo mas eacute essa proacutepria situaccedilatildeo apagando linhas divisoacuterias entre as

disciplinas e constituindo um cruzamento entre diferentes superfiacutecies textuais e

distintas aacutereas do saber cientiacutefico e da esfera artiacutestica ldquoPelo seu modo de

escrever lendo o corpus literaacuterio anterior ou sincroacutenico o autor vive na histoacuteria

e a sociedade se escreve no textordquo (KRISTEVA 197498)

A partir dos postulados deste conceito observamos que a intertextualidade

reflecte a concepccedilatildeo do texto literaacuterio como carregado de outros textos

inclusive do ldquotextordquo da realidaderdquo E eacute essa realidade polifoacutenica de vivecircncia

tumultuosa e inquietante de dissabores intriacutensecos e por vezes

transcendentais de acontecimentos filtrados atraveacutes de sua proacutepria

sensibilidade e sua imaginaccedilatildeo fantaacutestica que Florbela Espanca tem

manifestado para que seja compreendido seus misteacuterios de forma a dar mais

realce atraveacutes das vaacuterias formas de compreensatildeo e interpretaccedilatildeo intertextual e

comparativa de sua obra Neste sentido a teoria intertextual e comparativa

seraacute um guiatildeo a nortear um trabalho na tentativa de conhecermos essa

enigmaacutetica escritora que foi Florbela Espanca E eacute dela o incentivo para um

maior entendimento daquilo que nos deixou ldquoPara mim Para ti Para ningueacutem

Quero atirar para aqui negligentemente sem pretensotildees de estilo sem

anaacutelises filosoacuteficas o que os ouvidos dos outros natildeo recolhem reflexotildees

impressotildees ideias maneiras de ver de sentir ndash todo o meu espiacuterito paradoxal

talvez friacutevolo talvez profundo Compreendi por fim que nada compreendi que

mesmo nada poderia ter compreendido de mimhellipRestam-me os outroshellip

talvez por eles possa chegar agraves infinitas possibilidades do meu ser misterioso

intangiacutevel secretordquo (FLORBELA ESPANCA 199833)14

14 Fragmento retirado do livro ldquoDiaacuterio do Uacuteltimo Anordquo Bertrand Editora

15

A proposta de entendimento intertextual traacutes um reflexo de sua existecircncia

registado em sua ldquoDivina Comeacutediardquo15 pelos seus ldquoVersosrdquo16

ldquoVersos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip

Pedaccedilos de sorrisos branca espuma

Gargalhadas de luz cantos dispersos

Ou peacutetalas que caem uma a umahellip

VersosSei laacute Um verso eacute o teu olhar

Um verso eacute o teu sorriso e os de Dante

Eram o seu amor a soluccedilar

Aos peacutes de sua estremecida amante

Meus versos Sei eu laacute tambeacutem que satildeohellip

Sei laacute Sei laacute Meu pobre coraccedilatildeo

Partidos em mil pedaccedilos satildeo talvezhellip

Versos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip

Meus soluccedilos de dor que andam dispersos

Por este grande amor em que natildeo crecircsrdquo

15 Referecircncia a Obra de Dante Alighieri A Divina Comeacutedia uma viagem ao inferno purgatoacuterio e ao

paraiacuteso Aqui em relaccedilatildeo a vida de Florbela a palavra comeacutedia tem duplo significado o de origem dando

seguimento bom ao desenlace das personagens e em seu sentido coacutemico aos factores da inconstacircncia da

escritora 16 Referecircncia ao poema de Florbela escrito em O livro Drsquoele Poesia Completa2004 208

16

13 - ABORDAGENS SOBRE ldquoAS MAacuteSCARAS DO DESTINOrdquo ldquoOs contos satildeo como ela - siacutembolo de permanecircncia no pensamento da terra fio

de amor que manteacutem a sua magneacutetica forccedila saudade de tudo que podia

significar felicidade e expressatildeo do afectordquo17

Dedicada ao seu irmatildeo Apeles Demoacutestenes da Rocha Espanca ndash ldquoAs

Maacutescaras do Destinordquo eacute uma obra inspirada na tristeza e dor que a perda do

irmatildeo causa em Florbela Sua dedicatoacuteria ldquoeacute como um punho culpado que

Florbela assenta no proacuteprio peitordquo (FLORBELA ESPANCA 199825) assim diz

Agustina Bessa-Luiacutes autora do prefaacutecio escrito em 1979 que orienta-nos sobre

as condiccedilotildees de leitura que envolve esta obra

A dedicatoacuteria escrita por Florbela comprova o amor de irmatildeos Apeles era

ldquoAquele que das mesmas entranhas foi nascido que ao calor do mesmo

amplexo foi gerado Aquele que traz no rosto as linhas do teu rosto nos olhos a

aacutegua clara dos teus olhos o teu Amigo o teu Irmatildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA

199831 e 32) Ela escrevia tais palavras como uma matildee que acabara de

perder a um filho ldquopara que tua mocidade natildeo trema de o ver partir um dia

bom e meigo para que vivas na ilusatildeo bendita de teres um filho forte e belo

para te obrigar a encarar sorrindo as coisas vis e feias deste mundohelliprdquo

(FLORBELA ESPANCA 199831) Na realidade tais clamores professados soacute

a uma matildee que perdera seu filho eacute permitido senti-los

Escrita no final de 1927 reuacutene oito contos denominados ldquoO Aviador ldquoA Mortardquo

ldquoOs Mortos Natildeo Voltamrdquo ldquo O Resto Eacute Perfumerdquo ldquoA Paixatildeo de Manuel Garciardquo

ldquo O Inventorrdquo ldquoAs Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquoO Sobrenaturalrdquo

Como demonstram os tiacutetulos dados aos contos o tema ldquomorterdquo eacute o ponto de

convergecircncia entre os enredos e vem reforccedilar o pendor funesto da obra de

Florbela natildeo apenas pelo desaparecimento do irmatildeo mas que jaacute fazia parte

da proacutepria insatisfaccedilatildeo intimista que a escritora detinha Nesta altura por forccedilas

das circunstacircncias parecia estar desvinculada da vida como uma morta e sua

perpeacutetua busca lhe assegura uma espeacutecie de eternidade

Natildeo participando do enredo assim sendo em 3ordf pessoa mostrava-se uma

observadora a narrar fatos onde a realidade se confunde com o imaginaacuterio

17 Fragmento escrito por Agustina Bessa-Luiacutez retirado do prefaacutecio do livro As Maacutescaras do Destino de

Florbela Espanca 199810

17

fantaacutestico e soacute nos traacutes agrave lucidez da compreensatildeo devido as referecircncias

intertextuais as quais satildeo comuns aos contos pois ldquo o fantaacutestico se caracteiza

por una instrusioacuten brutal del misteacuterio en el marco de la vida real y estaacute ligado

generalmente a los estados moacuterbitos de la conciencia que en los fenoacutemenos

de pesadilla e de deliacuterio proyecta ante siacute imaacutegenes de sus angustias e de sus

terroresrdquo (GEORGES JEAN 1889 68 e 69) Mas a escritora natildeo desvincula-se

de sua obra uma forte tendecircncia de Florbela Marcando presenccedila no conto ldquoO

Resto Eacute Perfumerdquo interage como personagem assim assume o relato como

se procedesse de outro narrador para que pudesse penetraacute-lo e manter suas

caracteriacutesticas inquietantes e paradoxais acrescentando uma forte dose de

existencialismo e a presenccedila do ldquoEurdquo que vem reforccedilar a categoria de seus

relatos miacuteticos Aqui o ldquofantaacutesticordquo se confunde com o ldquomaravilhosordquo isso

devido aos relatos mitoloacutegicos que implica durante a leitura em um

redireccionamento do leitor a outro espaccedilo a outro tempo onde temos a ilusatildeo

de vivermos por um breve momento em outro lugar Florbela nos permite a

viagens imaginaacuterias em que o maravilhoso de seus contos dependeraacute de uma

infinidade de interpretaccedilotildees que natildeo seratildeo necessariamente interpretaccedilotildees

racionais pois as interpretaccedilotildees paralelas e divergentes satildeo sempre possiacuteveis

devido a riqueza do conto em si que no caso de Florbela estatildeo ligados aos

estados moacuterbidos de sua consciecircncia

Sabemos que algum dos elementos imaginaacuterios dos contos de Florbela estaacute

ligada ao realismo de sua histoacuteria verdadeira e isso eacute capaz pela virtudes que

soacute os contos de fadas pode proporcionar apesar de sua vida inconstante e

cheia de maacutegoas soube mascarar seu inconsciente e dar a seu relato um

intercacircmbio gracioso e sentimental com sua vida Por sua vez tais relatos

remetem-se a duas vertentes essenciais nos contos a primeira de propagar as

formas simboacutelicas durante a histoacuteria e a segunda de inserir essas formas

mediante a expansatildeo de sua escrita atraveacutes dos contos Um bom exemplo

disso eacute a clareza de como um conto complementa outro Atentemos para os

detalhes simboacutelicos de ldquoO Inventorrdquo que parece encerrar-se em ldquoO Aviadorrdquo da

mesma forma acontece em ldquoO Sobrenaturalrdquo e ldquoOs Mortos natildeo Voltamrdquo ldquoAs

Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquo A Paixatildeo de Manuel Garciardquo por fim

vemos a profunda reflexatildeo sobre a vida em ldquoO Resto eacute Perfumerdquo culminando

no conto ldquoA Mortardquo que tem em seu final a imersatildeo nas aacuteguas elemento

18

comum em todos os contos que parece como siacutembolo de redenccedilatildeo Temos

aqui um quadro para um estudo comparativo minucioso entre os proacuteprios

contos

Como afirma Agustina Bessa-Luiacutes ldquo para ler a prosa eacute preciso compreender a

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199816) Neste contexto natildeo ousamos falar

do quadro complexo que a palavra ldquomulherrdquo como um ser social objectiva mas

sim na simplicidade do comportamento de vaacuterias mulheres numa soacute imagem

constante nos contos que sente no seu intimo a dor da perca A primeira

referecircncia aqui eacute da mulher-irmatilde que vecirc no uacutenico irmatildeo morto a decadecircncia de

si mesma ldquo seraacute em breve uma sombra na tua sombrardquo (FLORBELA

ESPANCA 199832) Da mulher-matildee e o vazio de sua dor silenciosa ldquo A pobre

matildee abafou um soluccedilo voltou-se e olhou o mortordquo (FLORBELA ESPANCA

1998112) E por fim da mulher-religiosa que busca na cristandade respostas

para seus questionamentos e refuacutegio para seu tormento ldquomais fraacutegil mais

luminosa continuava a rezar as suas oraccedilotildeeshelliporaccedilotildees de amor sacriacutelegas

blasfemas oraccedilotildees de pecadohellipDe pecado Natildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA

1998154) Assim concebo a mulher Bela a compreensatildeo de sua escrita estaacute

nos olhos de quem as vecirc e na sensibilidade de a conhecer Desta feita ldquoa fase

dos equiacutevocos com que a gesta amorosa que a serve com a permanente

invenccedilatildeo de objectos meritoacuterios eacute substituiacuteda por uma feacute na alma feacute que se

acompanha do terriacutevel sentimento de estar morta de natildeo ser mais do que a

aparecircncia dum espaccedilo vividordquo (FLORBELA ESPANCA 199823) diz Agustina

Bessa-Luiacutes

Nesta obra duas propriedades do texto satildeo facilmente perceptiacuteveis a

intertextualidade e a influecircncia exercida em cada conto Essa uacuteltima

envolvendo as fortes caracteriacutesticas da escritora Florbela Espanca Contudo o

texto se constroacutei agrave medida que retoma fatos jaacute conhecidos como eacute o caso das

vaacuterias citaccedilotildees de autores e personagens que ilustram o livro Nesse sentido

quanto mais amplo for o repertoacuterio do leitor o seu acervo de conhecimentos

maior seraacute a sua competecircncia para perceber como os textos dialogam uns

com os outros por meio de referecircncias alusotildees e citaccedilotildees Eacute assim que

Florbela queria que a entendecircssemos atraveacutes de um diaacutelogo intriacutenseco para

descobrirmos suas maacutescaras

19

CAPIacuteTULO 02 21 - ldquoSONHO DE IacuteCAROrdquo

ldquoVoar voar subir subir

Ir por onde for descer ateacute o ceacuteu cair

Ou mudar de cor anjos de gaacutes

Asas de ilusatildeo e um sonho audaz

Feito um balatildeo

No ar no ar eu sou assim

Brilho do farol aleacutem do mais

Amargo fim simplesmente sol

Fugir meu bem eacute ser felizhellip

Ir ateacute que um dia chegue enfim

Em que o sol derreta a cera ateacute o fimrdquo18

A mitologia eacute uma das concepccedilotildees mais geniais que a humanidade produziu

Os gregos instauraram uma categoria intermediaacuteria entre os homens e os

deuses o semideus criando assim os heroacuteis mitoloacutegicos Isso veio a dar

margem a novas investigaccedilotildees sobre os fenoacutemenos da realidade natural

levando ao questionamento da origem dos seres a qual obtiveram respostas

sem sentido concreto Com isso incorporaram a concepccedilatildeo de que a vida e

suas manifestaccedilotildees satildeo obras das forccedilas do espiacuterito que habita em cada um

de noacutes sendo tambeacutem responsaacutevel pela nossa maneira de ser e de agir Isso eacute

sem duacutevida um meio de penetrar atraveacutes da imaginaccedilatildeo no misteacuterio da

existecircncia humana Desta forma o mito consiste nos acontecimentos que se

repetem ao longo da histoacuteria natildeo tendo fim O homem reconhecendo em cada

acto quotidiano uma participaccedilatildeo nos grandes ciclos da vida se sente

participar da grande eternidade miacutetica Partindo de suas origens o homem

consegue viver integralmente e uma vez dentro da mentalidade miacutetica a

proacutepria morte pode ter sentido

18 Fragmento da canccedilatildeo ldquosonho de Iacutecarordquo escrito por Pisca e Claacuteudio Rebelo interpretaccedilatildeo do cantor

brasileiro Byafra

20

Com o intuito de imortalizar o momento de uma trageacutedia Florbela lanccedila matildeo de

aspectos mitoloacutegicos dentro de seus contos que muito nos lembra a triste

histoacuteria de Deacutedalo e Iacutecaro 19 mostrando que o espiacuterito humano de vencer

barreiras e limites nos impulsiona a superar nossas proacuteprias limitaccedilotildees

Alcanccedilar o espaccedilo e as estrelas lanccedilar-se ao infinito experimentar da

sensaccedilatildeo de liberdade interior e o desvendar do misterioso infinito eacute o que

norteia o enredo dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquo O Inventorrdquo

Praticamente todas as culturas destacam o ceacuteu como um lugar especial Esse

local era normalmente designado como a morada dos deuses Muitos povos

consideravam que as constelaccedilotildees eram representaccedilotildees dos seus mitos e

lendas Dessa forma o ceacuteu era um lugar divino e os homens somente o

alcanccedilavam quando eram convidados ou homenageados pelos deuses Mas o

atrevimento de uns culminou na desgraccedila de outros Apenas aqueles com

sabedoria e dotado de iacutentima consciecircncia disciplinar sobre sua condiccedilatildeo

humana conseguiam graccedilas aos olhos dos deuses O conflito interior era um

grande empecilho para que fatos tivessem o desenrolar bem sucedidos

Quando isso natildeo acontecia o homem reconhecia sua condiccedilatildeo de inferioridade

em relaccedilatildeo aos deuses e eram designados ldquofilhos dos homensrdquo

O aparecimento da referecircncia mitoloacutegica pressupotildee uma forte ligaccedilatildeo aos elos

do mito de fundaccedilatildeo que sustenta a harmonia familiar juntamente com

preceitos de moral tendo por priori a identidade pessoal na figura paterna

como eram conhecidos os grandes heroacuteis mitoloacutegicos por serem semideuses

Nesta constante nos eacute dado a conhecer a condiccedilatildeo humana que tambeacutem

aparece de forma intertextualizada como referecircncia ao quadro do flamengo

19 Iacutecaro era filho de Deacutedalo o construtor do labirinto que o rei Minos aprisionava o Minotauro um ser

com corpo de homem e cabeccedila de touro A lenda grega conta que Deacutedalo ensinou Teseu que seria

devorado juntamente com outros jovens pelo monstro como sair do labirinto Deacutedalo sugeriu que ele

deveria utilizar um novelo que deveria ser desenrolado a medida em que fosse penetrando no labirinto

Dessa forma apoacutes ter matado o monstro ele conseguiu fugir do labirinto O rei Minos ficou furioso e

prendeu Deacutedalo e o seu filho Iacutecaro no labirinto Como o rei tinha deixado guardas vigiando as saiacutedas

Deacutedalo construiu asas com penas dos paacutessaros colando-as com cera Antes de levantar voo o pai

recomendou a Iacutecaro que quando ambos estivessem voando natildeo deveriam voar nem muito alto (perto do

Sol cujo calor derreteria a cera) e nem muito baixo (perto do mar pois a unidade tornaria as asas

pesadas) Entretanto a sensaccedilatildeo de voar foi tatildeo estonteante para Iacutecaro que ele esqueceu a recomendaccedilatildeo e

elevou-se tanto nos ares a ponto da previsatildeo de Deacutedalo ocorrer A cera derreteu e Iacutecaro perdeu as asas

precipitando-se no mar e morrendo afogado

21

Brueghel (a Queda de Iacutecaro)20 que Florbela tatildeo bem ilustra com uma descriccedilatildeo

que mais parece uma tela ldquo Os filhos dos homens caacute em baixo deixam cair

nos campos a enxada que faz nascer o patildeo e florir as rosas os pescadores

largam os remos audaciosos que rasgam os mares e os rios e os filhos dos

homens mais duramente castigados os que habitam o formigueiro das cidades

param nas suas insensatas correrias de formigas e todos voltam a face para o

ceacuteurdquo (FLORBELA ESPANCA 199838) Aqui a intertextualidade sugerida

numa linha ecfraacutestica vai de encontro a misteriosa temaacutetica de Florbela

significando isto que o espiacuterito de aventura eacute frequentemente motivo de

incompreensatildeo e de grande solidatildeo

Do mesmo modo que impotildee a condiccedilatildeo de mortal ao homem Florbela o

enaltece dando-lhe honrarias e elevando-o a condiccedilatildeo de um deus ldquo Nos olhos

leva visotildees que os filhos dos homens natildeo conhecem Eacute um homem Deixou laacute

em baixo todo o fardo pesado e vil com que o carregam ao nascer deixou laacute

em baixo todas as algemas todos os feacuterreos grilhotildees que o prendiam toda a

suprema maldiccedilatildeo de ter nascido homem deixou laacute em baixo a sua sacola de

pedinte o seu bordatildeo de Judeu Errante e livre indoacutemito sereno na sua

miacutesera couraccedila de pano azul estendeu em cruz os braccedilos que transformou em

asasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199839) Ao atingir tal supremacia o homem

liberta-se de sua vida anterior e ganha autonomia na forma da liberdade

intriacutenseca conseguindo a superaccedilatildeo de sua forma decadente e de seus

conflitos interiores atraveacutes da liberdade celestial alcanccedilada Deacutedalo foi

conhecido como o arquitecto e artista da liberdade mesmo tendo construiacutedo o

labirinto que eacute a representaccedilatildeo do aprisionamento Aqui Florbela utiliza desse

argumento como se seus escritos fossem labiriacutenticos e teriacuteamos de encontrar

as palavras certas para desvendarmos seus caminhos encontrando neles

assim a liberdade Essa mesma liberdade transformada aqui no voo mais alto

que levaria a traacutegica morte

Apesar de mostrada diferentemente temos aqui mais uma vez a dualidade

que percorre a obra de Florbela o aprisionamento e a liberdade a vida e a

morte antiacuteteses que perfilam seu anseio humano ldquo Um dia julgou ter achado

20 Quadro de Broeghel demonstrando a queda de Iacutecaro no mar enquanto os camponeses prosseguem a sua

labuta diaacuteria

22

Oh aquele dia A embriaguez do homem que se igualou a Deus O coraccedilatildeo a

bater a bater a sentir-se grande demais para um peito tatildeo pequeno para um

tatildeo mesquinho destino A humidade das laacutegrimas a embaciar o olhar gigante

que se esquecera um momento de ter nascido pigmeu O artista o poeta o

inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de movimento e de

vida todos os que desbravavam caminhos os que talham abrem por entre os

matagais selvagens e as belas estradas largas do pensamento e das ideias As

palavras satildeo o muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes

ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)

Ao atingir o voo pleno por vezes nos afastamos da realidade natural e nos

lanccedilamos ao desconhecido sem saber o que nos espera Com isso a queda eacute

inevitaacutevel Neste seguimento vemos a intertextualidade presente sob o estigma

dos cuidados de Zeus filho de Cromo e pai dos deuses que concedeu aos

heroacuteis uma morada afastada dos homens onde os semideuses pudessem se

estabelecer nos confins da terra Eacute laacute que habitam com o coraccedilatildeo livre de

cuidados nas Ilhas dos Bem-Aventurados nas praias dos turbilhotildees profundos

do Oceano satildeo eles os heroacuteis afortunados a quem Florbela tambeacutem concede

a morada preparada como tuacutemulo perfeito para o descanso eterno A

representaccedilatildeo das deusas das aacuteguas na presenccedila das ninfas efidriacuteades21 que

simbolizam a graccedila criativa e fecundadora da natureza fazem aparecer a

presenccedila feminina que surge com o intuito de exaltar a forccedila interior que so a

mulher tem para defrontar situaccedilotildees desastrosas e encontrar soluccedilatildeo nos mais

tenebrosos conflitos bem como de dar um toque de suavidade ternura beleza

e leveza que soacute a performance feminina consegue impor ldquo hellipAs filhas dos

deuses ondinas sereias nereidas princesas encantadas acodem todas

pressurosashellipEm volta das asas mortas satildeo como flores desfolhadas em

redor dum esquife negro E olhamhelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 199842) A

sabedoria feminina evidencia-se ao se manifestar a ldquoque tinha nos olhos uma

nostaacutelgica tristeza humanardquo (FLORBELA ESPANCA 199846) como uma matildee

protectora que acalenta o filho em seu sono profundo e compreende com

tristeza a dor dos mortais ou quem sabe sua proacutepria dor na condiccedilatildeo de

imortal pois somente aos deuses era permitido o poder de arrebatar o espiacuterito

21 Referecircncia as ninfas das aacuteguas da mitologia grega

23

a um homem ldquo E aquele que tinha sido um filho dos homens ficou a dormir na

eternidade como se fora um filho dos deusesrdquo (FLORBELA ESPANCA

199846)

Como podemos perceber Florbela em sua construccedilatildeo literaacuteria delineou nas

entrelinhas dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquoO Inventorrdquo aspectos simboacutelicos

determinantes do aprisionamento e da libertaccedilatildeo humana natildeo somente no

sentido denotativo mas tambeacutem conotativo na multiplicidade de sentidos que

tais palavras propotildeem Apesar da evidecircncia colocada pela escritora ainda nos

remete a reflexatildeo pois o aprisionamento pode ser um meio de libertaccedilatildeo e a

libertaccedilatildeo um aprisionamento ldquohellipOlhou o ceacuteu profundohellipe achou Ser aviador

eacutehellipabraccedilar no mesmo abraccedilo o ceacuteu e o mar Na linguagem dos siacutembolos a

acircncora definindo a esperanccedila nunca poderaacute valer as asas que satildeo a

libertaccedilatildeo A acircncora agarra-se ao fundo e fica as asas abrem-se no espaccedilo e

penetram o ceacuteuhellipSeria aviador Quando pela primeira vez voou natildeo se

esqueceu de sentar na carlinga a seu lado ao lado do seu coraccedilatildeo aquela

que dali em diante seria a companheira de todos os dias a companheira

indefectiacutevel de todos os aviadores a Morterdquo (FLORBELA ESPANCA 1998

129)

A produccedilatildeo intertextual desses dois contos traz-nos um imaginaacuterio voltado aos

princiacutepios fundadores de conceitos e referecircncia humana Florbela baseia-se na

representaccedilatildeo da infacircncia como elemento fundador da personalidade e do

caraacutecter ou seja a figura do pai que nunca a reconheceu em vida e por outro

lado na figura de Deacutedalo e Iacutecaro tendo o pai a dualidade em sua referecircncia

paterna Eacute assim que de ldquotentaccedilatildeo em tentaccedilatildeo de fraqueza em fraqueza os

compromissos de consciecircncia levam um homem honrado agrave praacutetica de todos os

crimeshelliprdquo22

22 Fragmento do conto O Inventor de Florbela Espanca As Maacutescaras do Destino1998122

24

22 - A MULTICIPLIDADE DO HEROacuteI

ldquo A vida parada e recolhida cria heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tarderdquo23

Ao encontrarmos facetas mitoloacutegicas entre as leituras de Florbela natildeo se pode

descartar a visatildeo do heroacutei que a autora engendrou na figura de seu irmatildeo

Apeles Tiacutetulo esse dado a homens excepcionais como Ulisses que eram

venerados por seu povo da mesma forma Florbela nutria uma verdadeira

veneraccedilatildeo que a levou a personificar o Aviador a um heroacutei merecedor de

honrarias e apesar da miacutesera condiccedilatildeo de mortal foi-lhe atribuiacutedo qualidades

fiacutesicas e morais dignas de um semideus ldquo A vida parada e recolhida cria

heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tardehellip o pincel de geacutenio daacute os uacuteltimos

retoques ao cenaacuterio de epopeiahellip laacute em cima a formidaacutevel apoteose desdobra-

se no meio do pasmo das coisas Eacute um homem que tem asas E as asas

pairam descem rodopiam ascendem de novo giram latejam batem ao sol

mais aacutegeis e mais robustas mais leves e mais possantes que as das aacuteguias Eacute

um homem A face eneacutergica vincada a cinzel emerge extraordinaacuteria da vida

intensa na indecisatildeo dos contornos que lhe fazem vagos e paacutelidos um vago

pano de fundo a face e as matildeoshellipOs muacutesculos da face adivinham na forccedila

brutal das maxilas cerradas Nos olhos leva visotildees que os filhos dos homens

natildeo conhecem Os olhos dele natildeo se vecircem olham para dentro e para fora satildeo

pedras como as das estaacutetuas e vecircem mais e mais para aleacutem do que as

miacuteseras pupilas humanas Satildeo astrosrdquo (FLORBELA ESPANCA 199838 e 39)

Esta mesma condiccedilatildeo eacute dada ao Inventor autor da imaginaccedilatildeo de Florbela

ldquoRealizara os seus sonhos todos os seus sonhos Que havia mais agora Jaacute

os homens podiam sulcar os ares sem medo aos vendavais agraves coacuteleras brutais

da Natureza jaacute o ceacuteu se podia coalhar de asas como o mar de velas Todo o

homem poderia ter sem perigo e sem riscos a cobiccedilada sensaccedilatildeo de

comandar nos elementos como um semideusrdquo (FLORBELA ESPANCA

1998133)

Sabemos que o heroacutei constitui o assunto da poesia eacutepica ele tem a sua

maneira proacutepria de agir pela sua coragem e bravura e prossegue objectivos

23 Fragmento do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca198837 e 38

25

bem determinados que ao longo de sua trajectoacuteria lhe satildeo atribuiacutedos cada qual

com sua importacircncia e valor Eacute dado a ele tambeacutem o poder de decisatildeo ora

sobre seus actos ora sobre si mesmo Isso como forma de valorizar sua

sabedoria e supremacia diante daqueles a quem defendia Assim se apresenta

o heroacutei dos contos de Florbela homem-deus detentor de toda visatildeo forte

dominador senhor supremo de seu destino a quem eacute concedido um lugar

eterno junto aos astros

A realidade fictiacutecia da mitologia eacute comparada aqui a realidade autecircntica

Florbela interessa-se pelo seu heroacutei fictiacutecio como se fosse ou tratasse de uma

pessoa real com isso podemos dizer que a escrita ficcional de Florbela eacute

mimese porque a realidade de sua vida humana eacute o seu material de escrita ela

consegue transformar a realidade objectiva na realidade subjectiva vivencial

razatildeo por que nos deixamos influenciar pela sua trajectoacuteria de vida em seus

escritos Isso justifica o fato da ldquovaliosa bravurardquo ndash por uma valiosa pintura - de

seu heroacutei ser retratado em uma tela por um titatilde24 personifica assim a grande

luta travada com as forccedilas da natureza ldquoEacute um Rembrandt pintado por um titatilderdquo

(FLORBELA ESPANCA 199839) A sua proacutepria natureza humana A propoacutesito

disso parece mais reportar ao paradoxo entre o bem e o mal que lutam

constantemente pelo domiacutenio da razatildeo interior talvez alvo de Florbela

Eacute interessante observar a relaccedilatildeo que existe entre o ldquohomem com asasrdquo com

as Harpias25 que na multi-significaccedilatildeo de seu discurso nos projecta a uma

realizaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo na figura do heroacutei alado em uma transposiccedilatildeo

imaginaacuteria com uma pluralidade de sentidos que poderia ocultar um sentido

uacutenico o seu proacuteprio desejo ou o desejo de arrebatar a alma de seu morto

Tambeacutem vemos a intertextualidade corrente na pessoa de Ulisses26 o heroacutei

grego navegante Robson Crusoeacute27 Piratas dos Sete Mares28 aos capitatildees e

24 Referecircncia a segunda geraccedilatildeo dos deus mitoloacutegicos representantes das forccedilas da natureza e sem uma

personalidade bem vincadaos quais Hesiacuteodo enumerou em doze seis machos e seis fecircmeas Oceano Ceacuteu

Crio Hiperiacuteon Jaacutepeto Cronos Teia Reja Teacutemis Mnemoacutesine Febe e Teacutetis 25 As Harpias filhas de Electra (ela proacutepria filha do Titatilde Oceano) e de Taumas (filho de Ponto e de Geia)

pertencem agrave geraccedilatildeo dos preacute-oliacutempicos Elas satildeo irmatildes de iacuteris a mensageira dos deuses Representadas

quer como mulheres aladas com um aspecto fameacutelico quer como paacutessaros com cabeccedila de mulher as

Harpias residem nas ilhas Estroacutefades do mar Egeu ou ainda agraves portas do Taacutertaro Impetuosas e brutais

como a tempestade as Harpias satildeo - este eacute o sentido do seu nome - raptoras com garras fortes 26 Odisseu (na Greacutecia) ou Ulisses (em Roma) eacute um personagem da Iliacuteada e da Odisseacuteia de Homero Apoacutes

a derrota dos troianos ele iniciou uma viagem de dez anos de volta para Iacutetaca onde a sua mulher o espera

com uma fidelidade obstinada apesar da demora Essa viagem mereceu a criaccedilatildeo por Homero do poema

26

navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a

coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a

solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o

enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio

multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos

diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio

Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os

naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de

navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS

Maacutescaras do Destino 1998 p 125)

Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada

com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a

renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que

convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos

escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a

partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental

aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A

viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas

suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte

recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os

heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas

ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o

navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira

de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que

nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era

eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que

deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-

1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado

a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe

herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico

sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O

romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como

tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar

que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os

Lusiacuteadas de Camotildees

27

no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo

da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)

Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida

funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo

conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente

nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de

alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva

Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer

tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos

heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os

portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens

tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que

de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os

navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por

deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da

Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do

texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute

simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no

poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES

1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou

passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da

Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas

natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer

vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de

ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um

heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com

o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas

forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um

aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem

mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva

30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos

Lisboa

Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal

28

presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de

Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura

greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito

especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela

escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a

morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem

para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de

transformaccedilatildeo fantaacutestica

Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que

na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena

confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir

uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute

infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu

desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma

personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo

inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade

aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios

filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa

escritora o seu carma

Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei

que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora

quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem

ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles

desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma

as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista

o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de

movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos

esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do

pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam

As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes

ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)

29

CAPIacuteTULO 03

31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS

ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de

doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32

No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute

intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em

todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do

proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade

de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma

comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro

cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser

estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute

antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de

alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas

oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir

as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava

perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o

fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo

para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que

muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da

escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e

complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e

pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma

formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela

graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa

assume

32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122

30

De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete

agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem

Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites

nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute

podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido

conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao

inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um

ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma

palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a

intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda

e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas

pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma

onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo

(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um

recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o

renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio

inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a

matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada

ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe

mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata

cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de

voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e

122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso

indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam

tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele

o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as

suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um

emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados

que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e

intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica

33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ

31

Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado

transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas

Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e

que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a

imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de

dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada

dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais

significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa

escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e

sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-

as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar

inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos

era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade

existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)

A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio

Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo

tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens

que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de

tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta

ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a

proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo

Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante

notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe

de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e

medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca

mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho

branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a

socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua

presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo

(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo

deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo

queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a

intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia

humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para

32

sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo

pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no

mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais

apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva

enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente

foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)

A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja

como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo

atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute

reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em

busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito

junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos

satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad

que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que

han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas

mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como

meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do

inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os

aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias

34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939

33

32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO

ldquoA vida vem em ondas

Como o mar

Num indo e vindo infinitohelliprdquo35

A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente

foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram

o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios

da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-

portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo

ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura

universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e

nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a

esquizofrenia de sua alma

O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos

grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma

visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes

de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-

racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas

fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma

encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no

espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada

ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar

duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava

que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se

35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos

em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria

imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia

grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios

Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e

cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam

da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela

Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a

sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor

34

sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o

olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de

um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o

seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No

reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que

constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia

Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor

das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que

participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na

claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma

a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial

apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se

imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA

ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta

solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser

acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas

pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de

existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas

dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma

mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar

agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)

As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar

aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de

Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a

37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta

nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet

tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido

advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte

de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga

(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre

1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a

questatildeo (Hamlet ato III cena I)

38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)

que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era

destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar

35

travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes

questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente

humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a

vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa

loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz

a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair

numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua

frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico

mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de

transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a

morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano

capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas

ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de

integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de

totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma

ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade

de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida

dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a

seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas

iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives

mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas

dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a

cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute

perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras

velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida

de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar

costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras

por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e

grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme

O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu

amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do

Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para

toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos

36

Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser

salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma

dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo

desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave

liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos

secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a

uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo

desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a

boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia

pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a

mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais

alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se

nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira

as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de

alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora

julga existir no seu misteacuterio

O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e

forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e

sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que

orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente

num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das

contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute

traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas

que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas

figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas

narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um

imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e

39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII

mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a

bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por

alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua

tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar

Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A

histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito

em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que

aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas

aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma

37

refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus

fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a

sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades

da dinacircmica universal

Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar

simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos

narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos

siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um

contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da

efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma

capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde

diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e

exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia

essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel

mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo

do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do

Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)

e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo

social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)

na representatividade literaacuteria do mar

38

CAPIacuteTULO 04

41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA

ldquoGosto de ti apaixonadamente

De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo

De ti que me trouxeste pela matildeo

Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40

Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso

a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade

directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na

poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua

dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees

Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita

capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e

um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz

e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a

dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas

conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute

e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria

serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem

quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto

anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse

em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita

maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte

com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e

quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e

emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos

paradoxos

40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no

livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004

Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo

Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11

39

Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos

toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-

romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido

num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia

com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes

profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas

sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo

acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando

a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A

derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a

conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas

da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da

sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No

entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas

romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a

impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo

definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha

aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento

em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o

passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era

tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto

A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos

acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-

Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs

Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os

Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de

Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de

Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o

egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo

narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica

Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute

neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o

poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem

40

esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma

essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no

iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma

questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos

encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem

sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos

interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas

as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um

exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo

tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo

daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita

conteacutem

41

42 - UM PERCURSO COMPARATIVO

ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os

vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e

outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que

ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute

foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41

ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto

Olhou em roda natildeo achou ningueacutem

Por entre as campas arrastando o manto

Com lentos passos caminhou aleacutem

Abandonado neste chatildeo repousa

Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui

Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa

Sobre este peito que bateu por tirdquo42

A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e

o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-

romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua

linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa

o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se

O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando

proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos

moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na

literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror

Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou

comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas

circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de

comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e

sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos

41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda

Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos

42

ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de

outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou

Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)

Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal

de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma

optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada

pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada

no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus

sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa

suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois

dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)

Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade

todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional

natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute

afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute

tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima

do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo

Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela

e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a

prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua

intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a

dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as

influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente

que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz

directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para

a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o

intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era

partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada

por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das

rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de

branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza

43

ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas

Longas roupagens de neveda cor

Singela croa de virgiacutenias rosas

Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43

ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de

branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila

devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa

nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)

Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de

conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se

para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da

imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a

partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a

presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os

uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem

eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera

absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor

ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria

A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a

intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um

testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista

e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas

caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da

temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao

fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma

retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras

masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo

homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma

mulher

43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12

44

(hellip)

Mulher formosa que adorei na vida

E que na tumba natildeo cessei damar

Por que atraiccediloas desleal mentida

O amor eterno que te ouvi jurar

Amor engano que na campa finda

Que a morte despe da ilusatildeo falaz

Quem dentros vivos se lembrara ainda

ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)

Talvez que rindo dos protestos nossos

Gozes com outro dinfernal prazer

E o olvido cobriraacute meus ossos

Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44

Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o

vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as

bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis

e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma

essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o

podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA

ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de

sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a

eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos

na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto

com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais

de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas

palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o

esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal

seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu

passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre

44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9

45

que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as

matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos

das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam

para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)

Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno

num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista

melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias

possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela

um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica

natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem

fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo

intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas

rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso

consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo

intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas

solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou

com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a

todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas

as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os

sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado

daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)

Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do

Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais

significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO

MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do

quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e

estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que

desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo

da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina

agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das

espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute

presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos

46

ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido

Das sepulturas o gelado poacute

Dois esqueletos um ao outro unido

Foram achados num sepulcro soacuterdquo45

Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de

imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da

intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo

buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma

enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo

recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as

laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas

deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo

sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais

moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas

austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade

dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete

palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam

pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e

59)

Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao

ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram

escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia

literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo

exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde

ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais

tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo

merecida

45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos

47

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas

interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca

Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo

depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves

transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo

sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia

ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas

metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver

com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao

sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas

tambeacutem ao que relaciona a morte

A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua

eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela

mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e

sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo

quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade

que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas

personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a

humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de

enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e

sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas

e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o

que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte

presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais

condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus

contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e

desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse

interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural

equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes

interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute

Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem

uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses

48

elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o

inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela

tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses

elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma

civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor

sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam

sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do

intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea

Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o

menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que

para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro

compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo

que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou

seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua

imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que

essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar

atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a

outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual

proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque

esconde-se ou projecta-se no discurso do outro

Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o

caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo

relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens

marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um

significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um

desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos

de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e

fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave

realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande

maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe

um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo

46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de

Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360

49

obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a

escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada

Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a

infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute

aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo

espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a

verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes

50

REFEREcircNCIA BIBLIOGRAacuteFICA

Activa

ESPANCA Florbela (1998) As Maacutescaras do Destino 7ordf ediccedilatildeo Bertrand

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Venda Nova

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Lisboa

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Passiva

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Editora Aacutetica Satildeo Paulo

CESERANI Remo (1999) Lo Fantaacutestico Coleccioacuten La Balsa de la Medusa

104Traduccioacuten de Juan Diacuteas de Atauri Edicioacuten Visor Dis SA Madri

CHEVALIER Jean (2003) Dicionaacuterio de Siacutembolos 18ordf ediccedilatildeo Joseacute Oliacutempio

Rio de Janeiro

COUTINHO Eduardo F (1994) Literatura Comparada textos fundadores

Editora Rocco Rio de Janeiro

FRANZ Marie-Louise Von ( 1990) Siacutembolos de Redencioacuten en Los Cuentos de

Hadas Lucieacuternaga Grupo Editorial Oceano Barcelona

GODINHO Helder (1982) O Mito e o Estilo Presenccedila Lisboa

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GREINER Herbert (2006) Dicionaacuterio Akal de Literatura General y

ComparadaTraduccioacuten revisioacuten y ampliacioacuten de la edicioacuten espantildeola Ediciones

Akal SA Madrid

HAMBURGER kate (1986) A Loacutegica da Criaccedilatildeo Literaacuteria 2ordf ediccedilatildeo Editora

Perspectiva SA Satildeo Paulo

HARO Pedro Aulloacuten GABALDOacuteN Jesuacutes Garcia y PASTOR Santiago Navarro

(2002) Ivan Andres y La Teoria Comparatista Coleccioacuten Literaria Actas

Valecircncia

JEAN George (1988) El Poder de Los Cuentos Traduccedilatildeo de Caterina

Molina1ordf edicioacuten Pirene Editorial Barcelona

JUacuteDICE Nuno (1998) As Maacutescaras do Poema Editora Ariacutem Lisboa

JUacuteDICE Nuno (2005) A Viagem das Palavras Editora Colibri Lisboa

JUacuteDICE Nuno (1986) A Era do ldquoOrpheurdquo Colecccedilatildeo Terra Nostra Editorial

Teorema Lisboa

KRISTEVA Juacutelia (1974) Introduccedilatildeo agrave Semanaacutelise Trad Luacutecia Helena Franccedila

Ferraz Editora Perspectiva Satildeo Paulo

LOPEZ Edward (1978) Uma Teoria do Interpretante 1ordf ediccedilatildeo Cultrix ndash

Secretaria da Cultura Ciecircncia e Tecnologia do Estado de Satildeo Paulo Satildeo

Paulo

MACHADO Aacutelvaro Manoel (1986) O Romantismo na Poesia Portuguesa 1ordf

ediccedilatildeo Biblioteca Breve vol 104 Instituto de Cultura e Liacutengua Portuguesa

Lisboa

NIETO Joseacute Mordf Fernaacutendez (1987) El Mar y La Poesia Liacuterica Del Mar

Biblioteca de Temas Almerienses seacuterie menor 27 2ordf edicioacuten Editorial Cajal

Almeria

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RALLO Caacutermen Lara (2007) Las Voces Y Los Ecos Perspectiva sobre La

Intertextualidad Campus de Teatinos Universidad de Maacutelaga Edicioacuten Analecta

Malaciana Maacutelaga

SCHNEIDER Michel (1990) Ladratildeo de Palavras Ensaio sobre o plaacutegio a

psicanaacutelise e o pensamento Editora UNICAMP Satildeo Paulo

WEBIBLIOGRAFIA

httpwwwprahojecombrflorbelacat=15

httpwwwfclarunespbrpublicaccedilotildeesrevistaliberdadehtm

httparestasdeventonosapoptlabaredas2html

Page 5: AS MÁSCARAS SIMBÓLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA … Jaqueline... · 2019-10-31 · A narrativa ficcional não é o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca, mas, assim como

5

IacuteNDICE

RESUMOhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 06

ABSTRACThelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 07

INTRODUCcedilAtildeOhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 08

CAPIacuteTULO 01helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 12

11 ndash Enquadramento Teoacutericohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 12

12 - Abordagens sobre ldquoAs Maacutescaras do Destinordquohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 16

CAPIacuteTULO 02helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip19

21 ndash Sonho de Iacutecarohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip19

22 ndash A Multiplicidade do Heroacuteihelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip24

CAPIacuteTULO 03 helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip 29

31 ndash A Intencionalidade das Aacuteguashelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip29

32 ndash A Simbologia do Mar Florbelianohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip33

CAPIacuteTULO 04helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip38

41 ndash A Intertextualidade Ultra-Romacircntica em Florbelahelliphelliphelliphelliphelliphellip38

42 ndash Um Percurso Comparativohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip41

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIShelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip47

REFEREcircNCIA BIBLIOGRAacuteFICAhelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip50

6

RESUMO

A narrativa ficcional natildeo eacute o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca

mas assim como em seus poemas seus contos tambeacutem natildeo deixam de ter a

marca particular que a caracteriza como ldquo hellipraiz e flor A noite e a estrela da

alva a primeira A morte e a vida Aquela pudica amante e lilial irmatilderdquo1 Atraveacutes

da anaacutelise interpretativa podemos desvendar lacunas que fazem do seu livro de

contos As Maacutescaras do Destino um fascinante mosaico de leituras Passando

pela influecircncia referencial da mitologia dos deuses agrave consagraccedilatildeo heroacuteica de

seus filhos (semideuses) fonte imprescindiacutevel para o surgimento da

representaccedilatildeo simboacutelica do mar e seus respectivos elementos interpretativos

como bases da projecccedilatildeo do estado de alma dos escritores sentimentalistas

em que o tema da ldquodorrdquo permite a reutilizaccedilatildeo da imagem noutra construccedilatildeo

textual podendo ocorrer a superposiccedilatildeo a absorccedilatildeo e a transformaccedilatildeo de uma

multiplicidade de outros textos Esse estilo elaborado de escrita possibilita um

estudo comparado com outros textos Aqui essa relaccedilatildeo intertextual com um

poema do consagrado escritor ultra-romacircntico Soares de Passos permite

observar a tendecircncia decadentista e ultra-romacircntica em Florbela de modo que

vem confirmar seu conflito interior em detrimento de sua existecircncia Mesmo

assim natildeo deixou de reafirmar-se como escritora de sua eacutepoca Foi designada

como a ldquoPoetisa do Amorrdquo por Joseacute Reacutegio e o mesmo ainda ressalta que

ldquoextraordinaacuteria forccedila da natureza vulcatildeo sempre aceso de violentas paixotildees e

desejos que foi a vida e obra de Florbela2

PALAVRAS ndash CHAVE

Anaacutelise comparaccedilatildeo conto decadentismo Florbela Espanca heroacutei

interpretaccedilatildeo intertextualidade mar mito poesia simbolismo sentimentalismo

ultra-romantismo

1 Citaccedilatildeo extraiacutedo do website httparestasdeventonosapoptlabaredas2html Comentaacuterio de Joseacute

Antoacutenio Raposo sobre Florbela e Duratildeo 2 Citaccedilatildeo extraiacutedo do website httparestasdeventonosapoptlabaredas2html Comentaacuterio de Joseacute

Antoacutenio Raposo sobre Joseacute Reacutegio e Florbela

7

ABSTRACT

Florbela Espanca is not only well-known for her narrative fiction but also for her

poems Her stories have its particular mark which is characterized by such

stories asRoot and Flower The Night and the Star of Dawn The Spring

The Bashful Lover and Lilial Sister Through the analysis we can unmask the

gaps that make-up the fascinating reading of mosaic Passing

through referential influence of the Mythology of Gods to heroic consecration

of their children (semi-gods) an indispensable source for the appearance of

symbolic representation of the sea and its respective interpretative elements as

the base for the projection of the state of souls of the sentimental writers in

which the theme of pain permits the reutilization of an image in another textual

construction where superposition absorption and the transformation of a

multiplicity of other texts This elaborated style of writing makes it possible for

the study of comparisons with other texts Here this intertextual relation with a

poem of the consecrated ultra-romantic writer Soares de Passos permits the

observation of the decadent and ultra-romantic tendency in Florbela so that it

confirms its inner conflict in detriment to its existence Even so it doesnt stop

reaffirming her as a writer of her time She was named Poetess of Love by

Joseacute Reacutegio and it also highlights The Extraordinary Force of Nature Violent

Passion always alighted by a Volcano and desires which was the life and work

Of Florbelardquo

Key Words Analysis Comparison Story Decadence Florbela Espanca Hero

Interpretation Intertextuality Sea Myth Poetry Symbolism Sentimentality

Ultra-romanticism

8

INTRODUCcedilAtildeO

A primeira reflexatildeo que vem a nossa mente quanto que por acaso ouvimos as

primeiras duas estrofes de um dos sonetos de Florbela Espanca ldquoFanatismordquo3

eacute de estar diante de um texto onde emana o que existe de mais sentimental em

um autor Sem ainda conhecer os desiacutegnios desta ldquoBela princesa da planiacutecie

Alentejanardquo4 podemos perceber que buscava dizer algo mais que apenas as

belas palavras proferidas em seus versos que eram imbricados de metaacuteforas

fortes onde mostrava-se irmatilde companheira amante princesa magoada louca-

fanaacutetica inconstante e natildeo deixava ao contraacuterio do poema ldquoFumordquo5 fugir de

seus dedos a essecircncia de uma autora que buscava as respostas para sua

inquietude na projecccedilatildeo da figura ideal

As vicissitudes de seu tempo natildeo inibiram-na de mostrar seu grande talento

para a poesia e contos em alguns momentos de sua escrita Florbela gritava

por liberdade natildeo soacute de expressatildeo e participaccedilatildeo no meio artiacutestico mas por

uma liberdade intimista que para o seu tempo era mal interpretada pois a

sociedade concebia a figura da mulher fraacutegil delicada recatada e submissa agraves

vontades e desejos masculinos o que Florbela tentava sem o querer ser As

agruras desse tormento vivido pela mulher seria entatildeo imortalizado pela

escritora

Ao lermos seus escritos sem duacutevida entramos por um caminho de vastas

indagaccedilotildees buscando perceber qual seria a grande inquietude que envolvia

esta mulher em momentos de impacto com o real e a tatildeo grandiosos momentos

de nostalgia amorosa levando-nos a apreciar a natureza tal qual como eacute

descrita em seus poemas assim como estabelecermos uma intimidade com

uns dos temas que mais aflige as pessoas mas que de uma certa forma nos

coloca frente a frente com uma realidade a qual natildeo podemos fugir ndash a morte

Essa temaacutetica podemos dizer que eacute a mais forte tendecircncia dos escritos de

Florbela natildeo soacute na poesia que se faz presente na maioria de seus livros mas

tambeacutem em seus contos envolvendo-nos em situaccedilotildees onde o tema morte

passa a impulsionar nossa expectativa em nos descobrir ou redescobrir diante

da vida ou do mais profundo e iacutentimo desejo humano de conhecer-mos a noacutes

3 Poema contido no livro de ldquoSoror Saudaderdquo publicado em 1923 4 Frase proferida por Duratildeo seu amigo fiel 5 Poema contido na livro de ldquoSoror Saudaderdquo

9

mesmos e infiltra-nos por caminhos incoacutegnitos que cobrem de maacutescaras nosso

destino assim como eacute citado no tiacutetulo de seu livro de contos6 o qual dedicou a

seu irmatildeo Apeles deixando-nos por vezes a margem de reflexotildees

existencialistas mas natildeo o existencialismo puro dos filoacutesofos questionadores

mas um existencialismo amoroso sensiacutevel capaz de nos inibir com subtilezas

representativas de um mesclado de tendecircncias literaacuterias que preenche seus

textos de extremo romantismo e passa para a evidecircncia dos fatos que vatildeo do

real ao ideal do acontecido a suposta consequecircncia

De fato que sua vida influenciou sua escrita7 tanto que nesta inquietante busca

pela pessoa ideal que era acometida a escritora levou a mulher a concretizar

sua indubitaacutevel certeza de que seria compreendida e aceita apenas depois de

repousada sua pena agraves matildeos da morte e descansar em teus braccedilos fato esse

descrito no poema ldquoAacute Morterdquo encontrado em sua mesa no dia em que suicidara

Soacute assim seria quebrado o encanto da escrita como natildeo o foi Foi sim

quebrado o encanto do escrever pois a escrita era a forma de agir sobre a sua

realidade mas o encanto da escrita permanece e esses ldquo que os vivos passem

adianterdquo8 como a proacutepria Florbela proferira E assim estaacute Florbela vive em sua

obra sua temaacutetica nos chega como notiacutecia surpreendente e nos envolve em

seus misteacuterios simboacutelicos Sua meacutetrica ao molde claacutessico e uma temporalidade

construiacuteda em seus escritos atraveacutes de seus livros de forma proposital nos

deixa perceber o que vai no iacutentimo de uma mulher parece que retrata com

transparecircncia as fantasias ou fases interiores do imaginaacuterio feminino que de

intreacutepida voluntariosa libertina amante insaciaacutevel inconstante passa a ser

casta pura virtuosa religiosa isso tudo sem deixar de ser extraordinariamente

apaixonada como ela mesma atesta sua proacutepria natureza ldquoSou filha da

charneca erma e selvagemrdquo9

Do mesmo modo que na poesia a Bela escritora mostra-nos seu talento para a

prosa em seu livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo Diferente da poetisa do ldquoeurdquo os

contos geralmente em terceira pessoa natildeo deixam de ter a marca registada

de Florbela a insatisfaccedilatildeo pela vida e a fuga atraveacutes da morte com fortes

mesclas de romantismo Outra caracteriacutestica presente neste livro eacute a ldquolacunardquo

6 Referecircncia ao livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo dedicado a seu irmatildeo Apeles 7 Referecircncia aos vaacuterios estudos feitos sobre a vida a escritora 8 Citaccedilatildeo retirado da dedicatoacuteria do livro ldquoAs Mascaras do Destinordquo 1998 33 9 Citaccedilatildeo do poema ldquoEsfingerdquo do livro Poesias Completas 2004 276

10

deixada a margem da interpretaccedilatildeo ou seja o que se leria nas entrelinhas do

texto Tais interpretaccedilotildees ficam a cargo do leitor que de certa forma interage

com as narrativas preenchendo-lhes o vazio deixado pela escritora ldquovaziordquo

esse que tambeacutem a acompanha nesta obra e a quem dedica ldquoeste livro eacute o

livro do meu mortordquo10 Na realidade Florbela queria deixar imortalizado seu

irmatildeo ldquoNatildeo queria que meu morto morresse comigohellipE escrevi estas

paacuteginashelliprdquo que foram de encontro a profundeza de seu pensamento ou seja

uma consciecircncia transcendental em caminho a ldquotalrdquo liberdade tanto desejada

que jaacute em versos reclamava

ldquoEu ponho-me a sonhar transmigraccedilotildees

Impossiacuteveis longiacutenquos milagrosas

Voos amplos ceacuteus distantes migraccedilotildees

Longehellip noutras esferas luminosas

E pelo meu olhar passam visotildees

Ilhas de bruma e naacutecar drsquooiro e rosashellip

E eu penso que liberta de grilhotildees

Hei-de aportar agraves Ilhas misteriosasrdquo11

Esse doce misteacuterio que cheio da natureza de ser mulher eacute o que intriga-nos a

cada leitura e nos faz buscar conhecer mais de sua vida para entendermos sua

obra Seus contos nos mostram uma Florbela detentora de uma

intertextualidade viva que no decorrer das narrativas remete-nos a outros

tempos a outras leituras Cria um ambiente nostaacutelgico e contemplativo de

vasto campo simboacutelico percorrendo as mais variadas fontes para sua

inspiraccedilatildeo criadora com isso ao depararmos com o quadro descritivo na

narrativa recriamos esse quadro imaginaacuterio em nossa mente como em um

conto de fadas ali misturam-se fatos reais e imaginaacuterios tempos reais e

imaginaacuterios personagens reais e imaginaacuterias tudo ldquo eacute luminosas e exaltante

10 Citaccedilatildeo da dedicatoacuteria do livro ldquoAs maacutescaras do Destinordquo 1998 32 11 Poema ldquoLibertardquodo livro Poesia Completa 2004 75

11

emoccedilatildeordquo foi enchido de ldquotoda a espiritualidade beleza dolorosa e humildade e

acima de tudo as almasrdquo criadas ldquosatildeo gritos e soluccedilos de amorrdquo12

Diante disso o foco do estudo e pesquisa sobre Florbela Espanca se limitaraacute

em um levantamento analiacutetico e criacutetico dando vaacuterias possibilidades de

interpretaccedilatildeo bem como referecircncias intertextuais que satildeo citadas e ora

aparecem em seus contos no livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo Tal estudo

objectiva um conhecimento interpretativo e comparativo das leituras feitas por

Florbela e o modo como vieram a influenciar e dar sustentabilidade ao enredo

dos contos Quem sabe poderemos conhecer um pouco mais dessa misteriosa

mulher que dizia natildeo conhece a si mesma

O que sou eu AmorSei laacute que sou

Sou tudo e nada grande e pequenina

Sou a que canta uma ilusatildeo divina

Sou a que chora um mal que acabou

Eu sei laacute que quimera me beijou

E nunca o soube assim desde pequenina

Haacute neste mundo tanta amarga sina

A minha eacute saber nunca quem sou

Esfinge sonho tonto de desejos

Na tua boca sou uma asa aberta

A palpitar vermelha como os beijos

Andorinhahelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellipa voejar13

helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip

helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip

12 Citaccedilatildeo da dedicatoacuteria do livro ldquoAs maacutescaras do Destinordquo 1998 33 13 Poema sem tiacutetulo editado no livro ldquoEsparsos de Florbelardquo em Poesia Completa 2004 78

12

CAPIacuteTULO 01

11 - ENQUADRAMENTO TEOacuteRICO

Na literatura actual eacute frequente apontar-se como um dos factores de

textualidade a referecircncia - expliacutecita ou impliacutecita ndash a outros textos tomando estes

um sentido bem amplo (orais escritos visuais etc) A esse diaacutelogo entre textos

daacute-se o nome de intertextualidade

Eacute evidente que a intertextualidade estaacute ligada ao conhecimento de mundo que

deve ser compartilhado ou seja comum ao produtor e ao receptor do texto

Desta forma pressupotildee um universo cultural muito amplo e complexo pois

implica antes de tudo na identificaccedilatildeo e no reconhecimento de remissotildees a

obras ou a textostrechos mais ou menos conhecidos aleacutem de exigir do

interlocutor a capacidade de interpretar a funccedilatildeo daquela citaccedilatildeo ou alusatildeo em

questatildeo

Todas as questotildees ligadas agrave intertextualidade influenciam tanto o processo de

produccedilatildeo como o de compreensatildeo de textos o importante eacute natildeo encararmos a

intertextualidade apenas como a identificaccedilatildeo da fonte e sim que nos

preocupemos em estudaacute-la como um enriquecimento da leitura e da produccedilatildeo

de textos e sobretudo tentando mostrar a funccedilatildeo da sua presenccedila na

construccedilatildeo e no(s) sentido(s) dos textos

Como se pode notar na constituiccedilatildeo da proacutepria palavraldquointertextualidaderdquo

significa relaccedilatildeo entre textos Considerando-se texto num sentido lato como

um recorte significativo feito no processo ininterrupto de semiose cultural isto eacute

na ampla rede de significaccedilotildees dos bens culturais Pode-se afirmar que a

intertextualidade eacute inerente agrave produccedilatildeo humana O homem sempre lanccedila matildeo

do que jaacute foi feito em seu processo de produccedilatildeo simboacutelica Assim sendo o

texto como objecto cultural tem uma existecircncia fiacutesica que pode ser apontada e

delimitada um filme um romance um anuacutencio uma muacutesica Entretanto esses

objetos natildeo estatildeo ainda prontos pois destinam-se ao olhar agrave consciecircncia e agrave

recriaccedilatildeo dos leitores Cada texto constitui uma proposta de significaccedilatildeo que

natildeo estaacute inteiramente construiacuteda A significaccedilatildeo se daacute no jogo interpretativo

entre o texto e seu destinataacuterio Este uacuteltimo eacute um interlocutor ativo no processo

de significaccedilatildeo na medida em que participa do jogo intertextual tanto quanto o

autor

13

A intertextualidade se daacute pois tanto na produccedilatildeo como na recepccedilatildeo da grande

rede cultural de que todos participam Filmes que retomam filmes quadros que

dialogam com outros propagandas que se utilizam do discurso artiacutestico

poemas escritos com versos alheios romances que se apropriam de formas

musicais tudo isso satildeo textos em diaacutelogo com outros textos intertextualidade

Um texto remete a outro para defender as ideias nele contidas ou para

contestar tais ideias isso se daacute atraveacutes de um estudo comparativo entre textos

que ligam-se pela elaboraccedilatildeo artiacutestica de seu criador Eacute atraveacutes da anaacutelise

comparativa que tomamos ciecircncia da emergecircncia simboacutelica existente entre os

textos e a que niacutevel se daacute tal emergecircncia quanto agrave diacronia e sincronia que os

ligam Em qualquer niacutevel a produccedilatildeo simboacutelica eacute pois sempre uma retomada

de outras produccedilotildees perfazendo um jogo infinito que enreda autores e leitores

Apropriando-nos entatildeo de Schneider podemos afirmar

ldquoO texto literaacuterio eacute um palimpsesto O autor antigo escreveu uma lsquoprimeirarsquo vez

depois sua escritura foi apagada por algum copista que recobriu a paacutegina com

um novo texto e assim por diante Textos primeiros inexistem tanto quanto as

puras coacutepias o apagar natildeo eacute nunca tatildeo acabado que natildeo deixe vestiacutegios a

invenccedilatildeo nunca tatildeo nova que natildeo se apoacuteie sobre o jaacute-escritordquo (SCHNEIDER

199071)

No sentido estrito a palavra texto remete a uma ordem significativa

verbal Dentro dessa ordem a literatura vale-se amplamente do recurso

intertextual consciente ou inconscientemente Em razatildeo disso a

intertextualidade faz-se operador de leitura Eacute importante marcar os primoacuterdios

de Bakhtin em relaccedilatildeo a esses estudos divulgados por Juacutelia Kristeva Eacute dela o

claacutessico conceito de intertextualidade ldquo todo texto se constroacutei como mosaiacuteco de

citaccedilotildees todo texto eacute absorccedilatildeo e transformaccedilatildeo de um outro textordquo

(KRISTEVA 197464) Na verdade a intertextualidade inerente agrave linguagem

torna-se expliacutecita em todas as produccedilotildees literaacuterias que se valem do recurso da

apropriaccedilatildeo colocando em xeque a proacutepria noccedilatildeo de autoria Eacute o que vamos

observar ao longo do estudo no conto ldquoA Mortardquo em ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo

de Florbela Espanca temos aqui um bom exemplo do que se define como

intertextualidade as relaccedilotildees entre textos a citaccedilatildeo de um texto por outro

enfim o diaacutelogo entre textos Sendo assim para entender um texto na sua

totalidade eacute preciso conhecer o(s) texto(s) que nele fora(m) citado(s)

14

Eacute nesse contexto que Kristeva membro actuante da criacutetica francesa elabora

seu conceito de intertextualidade considerando que todo texto se constroacutei como

ldquomosaico de citaccedilotildeesrdquo Esse entendimento acarreta a consideraccedilatildeo de que a

intertextualidade eacute um fenoacutemeno que se encontra na base do proacuteprio texto

literaacuterio imbricada com a inserccedilatildeo deste num muacuteltiplo conjunto de praacuteticas

sociais relevantes A partir de Kristeva ldquotextordquo passa a ser entendido como o

evento situado na histoacuteria e na sociedade que natildeo apenas reflecte uma

situaccedilatildeo mas eacute essa proacutepria situaccedilatildeo apagando linhas divisoacuterias entre as

disciplinas e constituindo um cruzamento entre diferentes superfiacutecies textuais e

distintas aacutereas do saber cientiacutefico e da esfera artiacutestica ldquoPelo seu modo de

escrever lendo o corpus literaacuterio anterior ou sincroacutenico o autor vive na histoacuteria

e a sociedade se escreve no textordquo (KRISTEVA 197498)

A partir dos postulados deste conceito observamos que a intertextualidade

reflecte a concepccedilatildeo do texto literaacuterio como carregado de outros textos

inclusive do ldquotextordquo da realidaderdquo E eacute essa realidade polifoacutenica de vivecircncia

tumultuosa e inquietante de dissabores intriacutensecos e por vezes

transcendentais de acontecimentos filtrados atraveacutes de sua proacutepria

sensibilidade e sua imaginaccedilatildeo fantaacutestica que Florbela Espanca tem

manifestado para que seja compreendido seus misteacuterios de forma a dar mais

realce atraveacutes das vaacuterias formas de compreensatildeo e interpretaccedilatildeo intertextual e

comparativa de sua obra Neste sentido a teoria intertextual e comparativa

seraacute um guiatildeo a nortear um trabalho na tentativa de conhecermos essa

enigmaacutetica escritora que foi Florbela Espanca E eacute dela o incentivo para um

maior entendimento daquilo que nos deixou ldquoPara mim Para ti Para ningueacutem

Quero atirar para aqui negligentemente sem pretensotildees de estilo sem

anaacutelises filosoacuteficas o que os ouvidos dos outros natildeo recolhem reflexotildees

impressotildees ideias maneiras de ver de sentir ndash todo o meu espiacuterito paradoxal

talvez friacutevolo talvez profundo Compreendi por fim que nada compreendi que

mesmo nada poderia ter compreendido de mimhellipRestam-me os outroshellip

talvez por eles possa chegar agraves infinitas possibilidades do meu ser misterioso

intangiacutevel secretordquo (FLORBELA ESPANCA 199833)14

14 Fragmento retirado do livro ldquoDiaacuterio do Uacuteltimo Anordquo Bertrand Editora

15

A proposta de entendimento intertextual traacutes um reflexo de sua existecircncia

registado em sua ldquoDivina Comeacutediardquo15 pelos seus ldquoVersosrdquo16

ldquoVersos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip

Pedaccedilos de sorrisos branca espuma

Gargalhadas de luz cantos dispersos

Ou peacutetalas que caem uma a umahellip

VersosSei laacute Um verso eacute o teu olhar

Um verso eacute o teu sorriso e os de Dante

Eram o seu amor a soluccedilar

Aos peacutes de sua estremecida amante

Meus versos Sei eu laacute tambeacutem que satildeohellip

Sei laacute Sei laacute Meu pobre coraccedilatildeo

Partidos em mil pedaccedilos satildeo talvezhellip

Versos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip

Meus soluccedilos de dor que andam dispersos

Por este grande amor em que natildeo crecircsrdquo

15 Referecircncia a Obra de Dante Alighieri A Divina Comeacutedia uma viagem ao inferno purgatoacuterio e ao

paraiacuteso Aqui em relaccedilatildeo a vida de Florbela a palavra comeacutedia tem duplo significado o de origem dando

seguimento bom ao desenlace das personagens e em seu sentido coacutemico aos factores da inconstacircncia da

escritora 16 Referecircncia ao poema de Florbela escrito em O livro Drsquoele Poesia Completa2004 208

16

13 - ABORDAGENS SOBRE ldquoAS MAacuteSCARAS DO DESTINOrdquo ldquoOs contos satildeo como ela - siacutembolo de permanecircncia no pensamento da terra fio

de amor que manteacutem a sua magneacutetica forccedila saudade de tudo que podia

significar felicidade e expressatildeo do afectordquo17

Dedicada ao seu irmatildeo Apeles Demoacutestenes da Rocha Espanca ndash ldquoAs

Maacutescaras do Destinordquo eacute uma obra inspirada na tristeza e dor que a perda do

irmatildeo causa em Florbela Sua dedicatoacuteria ldquoeacute como um punho culpado que

Florbela assenta no proacuteprio peitordquo (FLORBELA ESPANCA 199825) assim diz

Agustina Bessa-Luiacutes autora do prefaacutecio escrito em 1979 que orienta-nos sobre

as condiccedilotildees de leitura que envolve esta obra

A dedicatoacuteria escrita por Florbela comprova o amor de irmatildeos Apeles era

ldquoAquele que das mesmas entranhas foi nascido que ao calor do mesmo

amplexo foi gerado Aquele que traz no rosto as linhas do teu rosto nos olhos a

aacutegua clara dos teus olhos o teu Amigo o teu Irmatildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA

199831 e 32) Ela escrevia tais palavras como uma matildee que acabara de

perder a um filho ldquopara que tua mocidade natildeo trema de o ver partir um dia

bom e meigo para que vivas na ilusatildeo bendita de teres um filho forte e belo

para te obrigar a encarar sorrindo as coisas vis e feias deste mundohelliprdquo

(FLORBELA ESPANCA 199831) Na realidade tais clamores professados soacute

a uma matildee que perdera seu filho eacute permitido senti-los

Escrita no final de 1927 reuacutene oito contos denominados ldquoO Aviador ldquoA Mortardquo

ldquoOs Mortos Natildeo Voltamrdquo ldquo O Resto Eacute Perfumerdquo ldquoA Paixatildeo de Manuel Garciardquo

ldquo O Inventorrdquo ldquoAs Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquoO Sobrenaturalrdquo

Como demonstram os tiacutetulos dados aos contos o tema ldquomorterdquo eacute o ponto de

convergecircncia entre os enredos e vem reforccedilar o pendor funesto da obra de

Florbela natildeo apenas pelo desaparecimento do irmatildeo mas que jaacute fazia parte

da proacutepria insatisfaccedilatildeo intimista que a escritora detinha Nesta altura por forccedilas

das circunstacircncias parecia estar desvinculada da vida como uma morta e sua

perpeacutetua busca lhe assegura uma espeacutecie de eternidade

Natildeo participando do enredo assim sendo em 3ordf pessoa mostrava-se uma

observadora a narrar fatos onde a realidade se confunde com o imaginaacuterio

17 Fragmento escrito por Agustina Bessa-Luiacutez retirado do prefaacutecio do livro As Maacutescaras do Destino de

Florbela Espanca 199810

17

fantaacutestico e soacute nos traacutes agrave lucidez da compreensatildeo devido as referecircncias

intertextuais as quais satildeo comuns aos contos pois ldquo o fantaacutestico se caracteiza

por una instrusioacuten brutal del misteacuterio en el marco de la vida real y estaacute ligado

generalmente a los estados moacuterbitos de la conciencia que en los fenoacutemenos

de pesadilla e de deliacuterio proyecta ante siacute imaacutegenes de sus angustias e de sus

terroresrdquo (GEORGES JEAN 1889 68 e 69) Mas a escritora natildeo desvincula-se

de sua obra uma forte tendecircncia de Florbela Marcando presenccedila no conto ldquoO

Resto Eacute Perfumerdquo interage como personagem assim assume o relato como

se procedesse de outro narrador para que pudesse penetraacute-lo e manter suas

caracteriacutesticas inquietantes e paradoxais acrescentando uma forte dose de

existencialismo e a presenccedila do ldquoEurdquo que vem reforccedilar a categoria de seus

relatos miacuteticos Aqui o ldquofantaacutesticordquo se confunde com o ldquomaravilhosordquo isso

devido aos relatos mitoloacutegicos que implica durante a leitura em um

redireccionamento do leitor a outro espaccedilo a outro tempo onde temos a ilusatildeo

de vivermos por um breve momento em outro lugar Florbela nos permite a

viagens imaginaacuterias em que o maravilhoso de seus contos dependeraacute de uma

infinidade de interpretaccedilotildees que natildeo seratildeo necessariamente interpretaccedilotildees

racionais pois as interpretaccedilotildees paralelas e divergentes satildeo sempre possiacuteveis

devido a riqueza do conto em si que no caso de Florbela estatildeo ligados aos

estados moacuterbidos de sua consciecircncia

Sabemos que algum dos elementos imaginaacuterios dos contos de Florbela estaacute

ligada ao realismo de sua histoacuteria verdadeira e isso eacute capaz pela virtudes que

soacute os contos de fadas pode proporcionar apesar de sua vida inconstante e

cheia de maacutegoas soube mascarar seu inconsciente e dar a seu relato um

intercacircmbio gracioso e sentimental com sua vida Por sua vez tais relatos

remetem-se a duas vertentes essenciais nos contos a primeira de propagar as

formas simboacutelicas durante a histoacuteria e a segunda de inserir essas formas

mediante a expansatildeo de sua escrita atraveacutes dos contos Um bom exemplo

disso eacute a clareza de como um conto complementa outro Atentemos para os

detalhes simboacutelicos de ldquoO Inventorrdquo que parece encerrar-se em ldquoO Aviadorrdquo da

mesma forma acontece em ldquoO Sobrenaturalrdquo e ldquoOs Mortos natildeo Voltamrdquo ldquoAs

Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquo A Paixatildeo de Manuel Garciardquo por fim

vemos a profunda reflexatildeo sobre a vida em ldquoO Resto eacute Perfumerdquo culminando

no conto ldquoA Mortardquo que tem em seu final a imersatildeo nas aacuteguas elemento

18

comum em todos os contos que parece como siacutembolo de redenccedilatildeo Temos

aqui um quadro para um estudo comparativo minucioso entre os proacuteprios

contos

Como afirma Agustina Bessa-Luiacutes ldquo para ler a prosa eacute preciso compreender a

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199816) Neste contexto natildeo ousamos falar

do quadro complexo que a palavra ldquomulherrdquo como um ser social objectiva mas

sim na simplicidade do comportamento de vaacuterias mulheres numa soacute imagem

constante nos contos que sente no seu intimo a dor da perca A primeira

referecircncia aqui eacute da mulher-irmatilde que vecirc no uacutenico irmatildeo morto a decadecircncia de

si mesma ldquo seraacute em breve uma sombra na tua sombrardquo (FLORBELA

ESPANCA 199832) Da mulher-matildee e o vazio de sua dor silenciosa ldquo A pobre

matildee abafou um soluccedilo voltou-se e olhou o mortordquo (FLORBELA ESPANCA

1998112) E por fim da mulher-religiosa que busca na cristandade respostas

para seus questionamentos e refuacutegio para seu tormento ldquomais fraacutegil mais

luminosa continuava a rezar as suas oraccedilotildeeshelliporaccedilotildees de amor sacriacutelegas

blasfemas oraccedilotildees de pecadohellipDe pecado Natildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA

1998154) Assim concebo a mulher Bela a compreensatildeo de sua escrita estaacute

nos olhos de quem as vecirc e na sensibilidade de a conhecer Desta feita ldquoa fase

dos equiacutevocos com que a gesta amorosa que a serve com a permanente

invenccedilatildeo de objectos meritoacuterios eacute substituiacuteda por uma feacute na alma feacute que se

acompanha do terriacutevel sentimento de estar morta de natildeo ser mais do que a

aparecircncia dum espaccedilo vividordquo (FLORBELA ESPANCA 199823) diz Agustina

Bessa-Luiacutes

Nesta obra duas propriedades do texto satildeo facilmente perceptiacuteveis a

intertextualidade e a influecircncia exercida em cada conto Essa uacuteltima

envolvendo as fortes caracteriacutesticas da escritora Florbela Espanca Contudo o

texto se constroacutei agrave medida que retoma fatos jaacute conhecidos como eacute o caso das

vaacuterias citaccedilotildees de autores e personagens que ilustram o livro Nesse sentido

quanto mais amplo for o repertoacuterio do leitor o seu acervo de conhecimentos

maior seraacute a sua competecircncia para perceber como os textos dialogam uns

com os outros por meio de referecircncias alusotildees e citaccedilotildees Eacute assim que

Florbela queria que a entendecircssemos atraveacutes de um diaacutelogo intriacutenseco para

descobrirmos suas maacutescaras

19

CAPIacuteTULO 02 21 - ldquoSONHO DE IacuteCAROrdquo

ldquoVoar voar subir subir

Ir por onde for descer ateacute o ceacuteu cair

Ou mudar de cor anjos de gaacutes

Asas de ilusatildeo e um sonho audaz

Feito um balatildeo

No ar no ar eu sou assim

Brilho do farol aleacutem do mais

Amargo fim simplesmente sol

Fugir meu bem eacute ser felizhellip

Ir ateacute que um dia chegue enfim

Em que o sol derreta a cera ateacute o fimrdquo18

A mitologia eacute uma das concepccedilotildees mais geniais que a humanidade produziu

Os gregos instauraram uma categoria intermediaacuteria entre os homens e os

deuses o semideus criando assim os heroacuteis mitoloacutegicos Isso veio a dar

margem a novas investigaccedilotildees sobre os fenoacutemenos da realidade natural

levando ao questionamento da origem dos seres a qual obtiveram respostas

sem sentido concreto Com isso incorporaram a concepccedilatildeo de que a vida e

suas manifestaccedilotildees satildeo obras das forccedilas do espiacuterito que habita em cada um

de noacutes sendo tambeacutem responsaacutevel pela nossa maneira de ser e de agir Isso eacute

sem duacutevida um meio de penetrar atraveacutes da imaginaccedilatildeo no misteacuterio da

existecircncia humana Desta forma o mito consiste nos acontecimentos que se

repetem ao longo da histoacuteria natildeo tendo fim O homem reconhecendo em cada

acto quotidiano uma participaccedilatildeo nos grandes ciclos da vida se sente

participar da grande eternidade miacutetica Partindo de suas origens o homem

consegue viver integralmente e uma vez dentro da mentalidade miacutetica a

proacutepria morte pode ter sentido

18 Fragmento da canccedilatildeo ldquosonho de Iacutecarordquo escrito por Pisca e Claacuteudio Rebelo interpretaccedilatildeo do cantor

brasileiro Byafra

20

Com o intuito de imortalizar o momento de uma trageacutedia Florbela lanccedila matildeo de

aspectos mitoloacutegicos dentro de seus contos que muito nos lembra a triste

histoacuteria de Deacutedalo e Iacutecaro 19 mostrando que o espiacuterito humano de vencer

barreiras e limites nos impulsiona a superar nossas proacuteprias limitaccedilotildees

Alcanccedilar o espaccedilo e as estrelas lanccedilar-se ao infinito experimentar da

sensaccedilatildeo de liberdade interior e o desvendar do misterioso infinito eacute o que

norteia o enredo dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquo O Inventorrdquo

Praticamente todas as culturas destacam o ceacuteu como um lugar especial Esse

local era normalmente designado como a morada dos deuses Muitos povos

consideravam que as constelaccedilotildees eram representaccedilotildees dos seus mitos e

lendas Dessa forma o ceacuteu era um lugar divino e os homens somente o

alcanccedilavam quando eram convidados ou homenageados pelos deuses Mas o

atrevimento de uns culminou na desgraccedila de outros Apenas aqueles com

sabedoria e dotado de iacutentima consciecircncia disciplinar sobre sua condiccedilatildeo

humana conseguiam graccedilas aos olhos dos deuses O conflito interior era um

grande empecilho para que fatos tivessem o desenrolar bem sucedidos

Quando isso natildeo acontecia o homem reconhecia sua condiccedilatildeo de inferioridade

em relaccedilatildeo aos deuses e eram designados ldquofilhos dos homensrdquo

O aparecimento da referecircncia mitoloacutegica pressupotildee uma forte ligaccedilatildeo aos elos

do mito de fundaccedilatildeo que sustenta a harmonia familiar juntamente com

preceitos de moral tendo por priori a identidade pessoal na figura paterna

como eram conhecidos os grandes heroacuteis mitoloacutegicos por serem semideuses

Nesta constante nos eacute dado a conhecer a condiccedilatildeo humana que tambeacutem

aparece de forma intertextualizada como referecircncia ao quadro do flamengo

19 Iacutecaro era filho de Deacutedalo o construtor do labirinto que o rei Minos aprisionava o Minotauro um ser

com corpo de homem e cabeccedila de touro A lenda grega conta que Deacutedalo ensinou Teseu que seria

devorado juntamente com outros jovens pelo monstro como sair do labirinto Deacutedalo sugeriu que ele

deveria utilizar um novelo que deveria ser desenrolado a medida em que fosse penetrando no labirinto

Dessa forma apoacutes ter matado o monstro ele conseguiu fugir do labirinto O rei Minos ficou furioso e

prendeu Deacutedalo e o seu filho Iacutecaro no labirinto Como o rei tinha deixado guardas vigiando as saiacutedas

Deacutedalo construiu asas com penas dos paacutessaros colando-as com cera Antes de levantar voo o pai

recomendou a Iacutecaro que quando ambos estivessem voando natildeo deveriam voar nem muito alto (perto do

Sol cujo calor derreteria a cera) e nem muito baixo (perto do mar pois a unidade tornaria as asas

pesadas) Entretanto a sensaccedilatildeo de voar foi tatildeo estonteante para Iacutecaro que ele esqueceu a recomendaccedilatildeo e

elevou-se tanto nos ares a ponto da previsatildeo de Deacutedalo ocorrer A cera derreteu e Iacutecaro perdeu as asas

precipitando-se no mar e morrendo afogado

21

Brueghel (a Queda de Iacutecaro)20 que Florbela tatildeo bem ilustra com uma descriccedilatildeo

que mais parece uma tela ldquo Os filhos dos homens caacute em baixo deixam cair

nos campos a enxada que faz nascer o patildeo e florir as rosas os pescadores

largam os remos audaciosos que rasgam os mares e os rios e os filhos dos

homens mais duramente castigados os que habitam o formigueiro das cidades

param nas suas insensatas correrias de formigas e todos voltam a face para o

ceacuteurdquo (FLORBELA ESPANCA 199838) Aqui a intertextualidade sugerida

numa linha ecfraacutestica vai de encontro a misteriosa temaacutetica de Florbela

significando isto que o espiacuterito de aventura eacute frequentemente motivo de

incompreensatildeo e de grande solidatildeo

Do mesmo modo que impotildee a condiccedilatildeo de mortal ao homem Florbela o

enaltece dando-lhe honrarias e elevando-o a condiccedilatildeo de um deus ldquo Nos olhos

leva visotildees que os filhos dos homens natildeo conhecem Eacute um homem Deixou laacute

em baixo todo o fardo pesado e vil com que o carregam ao nascer deixou laacute

em baixo todas as algemas todos os feacuterreos grilhotildees que o prendiam toda a

suprema maldiccedilatildeo de ter nascido homem deixou laacute em baixo a sua sacola de

pedinte o seu bordatildeo de Judeu Errante e livre indoacutemito sereno na sua

miacutesera couraccedila de pano azul estendeu em cruz os braccedilos que transformou em

asasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199839) Ao atingir tal supremacia o homem

liberta-se de sua vida anterior e ganha autonomia na forma da liberdade

intriacutenseca conseguindo a superaccedilatildeo de sua forma decadente e de seus

conflitos interiores atraveacutes da liberdade celestial alcanccedilada Deacutedalo foi

conhecido como o arquitecto e artista da liberdade mesmo tendo construiacutedo o

labirinto que eacute a representaccedilatildeo do aprisionamento Aqui Florbela utiliza desse

argumento como se seus escritos fossem labiriacutenticos e teriacuteamos de encontrar

as palavras certas para desvendarmos seus caminhos encontrando neles

assim a liberdade Essa mesma liberdade transformada aqui no voo mais alto

que levaria a traacutegica morte

Apesar de mostrada diferentemente temos aqui mais uma vez a dualidade

que percorre a obra de Florbela o aprisionamento e a liberdade a vida e a

morte antiacuteteses que perfilam seu anseio humano ldquo Um dia julgou ter achado

20 Quadro de Broeghel demonstrando a queda de Iacutecaro no mar enquanto os camponeses prosseguem a sua

labuta diaacuteria

22

Oh aquele dia A embriaguez do homem que se igualou a Deus O coraccedilatildeo a

bater a bater a sentir-se grande demais para um peito tatildeo pequeno para um

tatildeo mesquinho destino A humidade das laacutegrimas a embaciar o olhar gigante

que se esquecera um momento de ter nascido pigmeu O artista o poeta o

inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de movimento e de

vida todos os que desbravavam caminhos os que talham abrem por entre os

matagais selvagens e as belas estradas largas do pensamento e das ideias As

palavras satildeo o muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes

ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)

Ao atingir o voo pleno por vezes nos afastamos da realidade natural e nos

lanccedilamos ao desconhecido sem saber o que nos espera Com isso a queda eacute

inevitaacutevel Neste seguimento vemos a intertextualidade presente sob o estigma

dos cuidados de Zeus filho de Cromo e pai dos deuses que concedeu aos

heroacuteis uma morada afastada dos homens onde os semideuses pudessem se

estabelecer nos confins da terra Eacute laacute que habitam com o coraccedilatildeo livre de

cuidados nas Ilhas dos Bem-Aventurados nas praias dos turbilhotildees profundos

do Oceano satildeo eles os heroacuteis afortunados a quem Florbela tambeacutem concede

a morada preparada como tuacutemulo perfeito para o descanso eterno A

representaccedilatildeo das deusas das aacuteguas na presenccedila das ninfas efidriacuteades21 que

simbolizam a graccedila criativa e fecundadora da natureza fazem aparecer a

presenccedila feminina que surge com o intuito de exaltar a forccedila interior que so a

mulher tem para defrontar situaccedilotildees desastrosas e encontrar soluccedilatildeo nos mais

tenebrosos conflitos bem como de dar um toque de suavidade ternura beleza

e leveza que soacute a performance feminina consegue impor ldquo hellipAs filhas dos

deuses ondinas sereias nereidas princesas encantadas acodem todas

pressurosashellipEm volta das asas mortas satildeo como flores desfolhadas em

redor dum esquife negro E olhamhelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 199842) A

sabedoria feminina evidencia-se ao se manifestar a ldquoque tinha nos olhos uma

nostaacutelgica tristeza humanardquo (FLORBELA ESPANCA 199846) como uma matildee

protectora que acalenta o filho em seu sono profundo e compreende com

tristeza a dor dos mortais ou quem sabe sua proacutepria dor na condiccedilatildeo de

imortal pois somente aos deuses era permitido o poder de arrebatar o espiacuterito

21 Referecircncia as ninfas das aacuteguas da mitologia grega

23

a um homem ldquo E aquele que tinha sido um filho dos homens ficou a dormir na

eternidade como se fora um filho dos deusesrdquo (FLORBELA ESPANCA

199846)

Como podemos perceber Florbela em sua construccedilatildeo literaacuteria delineou nas

entrelinhas dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquoO Inventorrdquo aspectos simboacutelicos

determinantes do aprisionamento e da libertaccedilatildeo humana natildeo somente no

sentido denotativo mas tambeacutem conotativo na multiplicidade de sentidos que

tais palavras propotildeem Apesar da evidecircncia colocada pela escritora ainda nos

remete a reflexatildeo pois o aprisionamento pode ser um meio de libertaccedilatildeo e a

libertaccedilatildeo um aprisionamento ldquohellipOlhou o ceacuteu profundohellipe achou Ser aviador

eacutehellipabraccedilar no mesmo abraccedilo o ceacuteu e o mar Na linguagem dos siacutembolos a

acircncora definindo a esperanccedila nunca poderaacute valer as asas que satildeo a

libertaccedilatildeo A acircncora agarra-se ao fundo e fica as asas abrem-se no espaccedilo e

penetram o ceacuteuhellipSeria aviador Quando pela primeira vez voou natildeo se

esqueceu de sentar na carlinga a seu lado ao lado do seu coraccedilatildeo aquela

que dali em diante seria a companheira de todos os dias a companheira

indefectiacutevel de todos os aviadores a Morterdquo (FLORBELA ESPANCA 1998

129)

A produccedilatildeo intertextual desses dois contos traz-nos um imaginaacuterio voltado aos

princiacutepios fundadores de conceitos e referecircncia humana Florbela baseia-se na

representaccedilatildeo da infacircncia como elemento fundador da personalidade e do

caraacutecter ou seja a figura do pai que nunca a reconheceu em vida e por outro

lado na figura de Deacutedalo e Iacutecaro tendo o pai a dualidade em sua referecircncia

paterna Eacute assim que de ldquotentaccedilatildeo em tentaccedilatildeo de fraqueza em fraqueza os

compromissos de consciecircncia levam um homem honrado agrave praacutetica de todos os

crimeshelliprdquo22

22 Fragmento do conto O Inventor de Florbela Espanca As Maacutescaras do Destino1998122

24

22 - A MULTICIPLIDADE DO HEROacuteI

ldquo A vida parada e recolhida cria heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tarderdquo23

Ao encontrarmos facetas mitoloacutegicas entre as leituras de Florbela natildeo se pode

descartar a visatildeo do heroacutei que a autora engendrou na figura de seu irmatildeo

Apeles Tiacutetulo esse dado a homens excepcionais como Ulisses que eram

venerados por seu povo da mesma forma Florbela nutria uma verdadeira

veneraccedilatildeo que a levou a personificar o Aviador a um heroacutei merecedor de

honrarias e apesar da miacutesera condiccedilatildeo de mortal foi-lhe atribuiacutedo qualidades

fiacutesicas e morais dignas de um semideus ldquo A vida parada e recolhida cria

heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tardehellip o pincel de geacutenio daacute os uacuteltimos

retoques ao cenaacuterio de epopeiahellip laacute em cima a formidaacutevel apoteose desdobra-

se no meio do pasmo das coisas Eacute um homem que tem asas E as asas

pairam descem rodopiam ascendem de novo giram latejam batem ao sol

mais aacutegeis e mais robustas mais leves e mais possantes que as das aacuteguias Eacute

um homem A face eneacutergica vincada a cinzel emerge extraordinaacuteria da vida

intensa na indecisatildeo dos contornos que lhe fazem vagos e paacutelidos um vago

pano de fundo a face e as matildeoshellipOs muacutesculos da face adivinham na forccedila

brutal das maxilas cerradas Nos olhos leva visotildees que os filhos dos homens

natildeo conhecem Os olhos dele natildeo se vecircem olham para dentro e para fora satildeo

pedras como as das estaacutetuas e vecircem mais e mais para aleacutem do que as

miacuteseras pupilas humanas Satildeo astrosrdquo (FLORBELA ESPANCA 199838 e 39)

Esta mesma condiccedilatildeo eacute dada ao Inventor autor da imaginaccedilatildeo de Florbela

ldquoRealizara os seus sonhos todos os seus sonhos Que havia mais agora Jaacute

os homens podiam sulcar os ares sem medo aos vendavais agraves coacuteleras brutais

da Natureza jaacute o ceacuteu se podia coalhar de asas como o mar de velas Todo o

homem poderia ter sem perigo e sem riscos a cobiccedilada sensaccedilatildeo de

comandar nos elementos como um semideusrdquo (FLORBELA ESPANCA

1998133)

Sabemos que o heroacutei constitui o assunto da poesia eacutepica ele tem a sua

maneira proacutepria de agir pela sua coragem e bravura e prossegue objectivos

23 Fragmento do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca198837 e 38

25

bem determinados que ao longo de sua trajectoacuteria lhe satildeo atribuiacutedos cada qual

com sua importacircncia e valor Eacute dado a ele tambeacutem o poder de decisatildeo ora

sobre seus actos ora sobre si mesmo Isso como forma de valorizar sua

sabedoria e supremacia diante daqueles a quem defendia Assim se apresenta

o heroacutei dos contos de Florbela homem-deus detentor de toda visatildeo forte

dominador senhor supremo de seu destino a quem eacute concedido um lugar

eterno junto aos astros

A realidade fictiacutecia da mitologia eacute comparada aqui a realidade autecircntica

Florbela interessa-se pelo seu heroacutei fictiacutecio como se fosse ou tratasse de uma

pessoa real com isso podemos dizer que a escrita ficcional de Florbela eacute

mimese porque a realidade de sua vida humana eacute o seu material de escrita ela

consegue transformar a realidade objectiva na realidade subjectiva vivencial

razatildeo por que nos deixamos influenciar pela sua trajectoacuteria de vida em seus

escritos Isso justifica o fato da ldquovaliosa bravurardquo ndash por uma valiosa pintura - de

seu heroacutei ser retratado em uma tela por um titatilde24 personifica assim a grande

luta travada com as forccedilas da natureza ldquoEacute um Rembrandt pintado por um titatilderdquo

(FLORBELA ESPANCA 199839) A sua proacutepria natureza humana A propoacutesito

disso parece mais reportar ao paradoxo entre o bem e o mal que lutam

constantemente pelo domiacutenio da razatildeo interior talvez alvo de Florbela

Eacute interessante observar a relaccedilatildeo que existe entre o ldquohomem com asasrdquo com

as Harpias25 que na multi-significaccedilatildeo de seu discurso nos projecta a uma

realizaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo na figura do heroacutei alado em uma transposiccedilatildeo

imaginaacuteria com uma pluralidade de sentidos que poderia ocultar um sentido

uacutenico o seu proacuteprio desejo ou o desejo de arrebatar a alma de seu morto

Tambeacutem vemos a intertextualidade corrente na pessoa de Ulisses26 o heroacutei

grego navegante Robson Crusoeacute27 Piratas dos Sete Mares28 aos capitatildees e

24 Referecircncia a segunda geraccedilatildeo dos deus mitoloacutegicos representantes das forccedilas da natureza e sem uma

personalidade bem vincadaos quais Hesiacuteodo enumerou em doze seis machos e seis fecircmeas Oceano Ceacuteu

Crio Hiperiacuteon Jaacutepeto Cronos Teia Reja Teacutemis Mnemoacutesine Febe e Teacutetis 25 As Harpias filhas de Electra (ela proacutepria filha do Titatilde Oceano) e de Taumas (filho de Ponto e de Geia)

pertencem agrave geraccedilatildeo dos preacute-oliacutempicos Elas satildeo irmatildes de iacuteris a mensageira dos deuses Representadas

quer como mulheres aladas com um aspecto fameacutelico quer como paacutessaros com cabeccedila de mulher as

Harpias residem nas ilhas Estroacutefades do mar Egeu ou ainda agraves portas do Taacutertaro Impetuosas e brutais

como a tempestade as Harpias satildeo - este eacute o sentido do seu nome - raptoras com garras fortes 26 Odisseu (na Greacutecia) ou Ulisses (em Roma) eacute um personagem da Iliacuteada e da Odisseacuteia de Homero Apoacutes

a derrota dos troianos ele iniciou uma viagem de dez anos de volta para Iacutetaca onde a sua mulher o espera

com uma fidelidade obstinada apesar da demora Essa viagem mereceu a criaccedilatildeo por Homero do poema

26

navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a

coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a

solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o

enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio

multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos

diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio

Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os

naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de

navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS

Maacutescaras do Destino 1998 p 125)

Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada

com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a

renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que

convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos

escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a

partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental

aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A

viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas

suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte

recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os

heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas

ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o

navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira

de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que

nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era

eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que

deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-

1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado

a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe

herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico

sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O

romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como

tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar

que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os

Lusiacuteadas de Camotildees

27

no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo

da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)

Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida

funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo

conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente

nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de

alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva

Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer

tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos

heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os

portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens

tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que

de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os

navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por

deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da

Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do

texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute

simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no

poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES

1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou

passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da

Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas

natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer

vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de

ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um

heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com

o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas

forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um

aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem

mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva

30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos

Lisboa

Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal

28

presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de

Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura

greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito

especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela

escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a

morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem

para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de

transformaccedilatildeo fantaacutestica

Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que

na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena

confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir

uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute

infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu

desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma

personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo

inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade

aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios

filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa

escritora o seu carma

Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei

que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora

quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem

ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles

desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma

as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista

o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de

movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos

esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do

pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam

As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes

ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)

29

CAPIacuteTULO 03

31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS

ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de

doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32

No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute

intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em

todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do

proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade

de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma

comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro

cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser

estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute

antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de

alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas

oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir

as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava

perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o

fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo

para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que

muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da

escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e

complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e

pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma

formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela

graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa

assume

32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122

30

De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete

agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem

Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites

nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute

podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido

conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao

inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um

ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma

palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a

intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda

e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas

pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma

onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo

(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um

recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o

renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio

inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a

matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada

ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe

mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata

cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de

voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e

122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso

indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam

tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele

o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as

suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um

emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados

que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e

intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica

33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ

31

Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado

transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas

Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e

que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a

imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de

dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada

dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais

significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa

escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e

sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-

as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar

inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos

era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade

existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)

A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio

Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo

tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens

que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de

tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta

ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a

proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo

Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante

notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe

de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e

medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca

mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho

branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a

socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua

presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo

(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo

deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo

queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a

intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia

humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para

32

sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo

pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no

mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais

apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva

enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente

foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)

A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja

como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo

atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute

reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em

busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito

junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos

satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad

que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que

han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas

mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como

meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do

inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os

aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias

34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939

33

32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO

ldquoA vida vem em ondas

Como o mar

Num indo e vindo infinitohelliprdquo35

A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente

foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram

o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios

da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-

portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo

ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura

universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e

nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a

esquizofrenia de sua alma

O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos

grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma

visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes

de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-

racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas

fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma

encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no

espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada

ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar

duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava

que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se

35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos

em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria

imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia

grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios

Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e

cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam

da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela

Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a

sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor

34

sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o

olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de

um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o

seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No

reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que

constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia

Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor

das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que

participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na

claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma

a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial

apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se

imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA

ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta

solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser

acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas

pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de

existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas

dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma

mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar

agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)

As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar

aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de

Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a

37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta

nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet

tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido

advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte

de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga

(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre

1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a

questatildeo (Hamlet ato III cena I)

38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)

que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era

destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar

35

travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes

questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente

humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a

vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa

loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz

a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair

numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua

frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico

mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de

transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a

morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano

capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas

ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de

integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de

totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma

ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade

de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida

dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a

seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas

iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives

mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas

dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a

cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute

perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras

velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida

de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar

costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras

por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e

grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme

O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu

amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do

Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para

toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos

36

Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser

salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma

dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo

desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave

liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos

secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a

uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo

desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a

boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia

pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a

mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais

alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se

nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira

as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de

alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora

julga existir no seu misteacuterio

O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e

forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e

sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que

orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente

num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das

contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute

traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas

que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas

figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas

narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um

imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e

39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII

mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a

bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por

alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua

tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar

Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A

histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito

em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que

aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas

aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma

37

refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus

fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a

sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades

da dinacircmica universal

Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar

simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos

narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos

siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um

contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da

efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma

capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde

diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e

exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia

essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel

mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo

do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do

Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)

e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo

social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)

na representatividade literaacuteria do mar

38

CAPIacuteTULO 04

41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA

ldquoGosto de ti apaixonadamente

De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo

De ti que me trouxeste pela matildeo

Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40

Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso

a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade

directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na

poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua

dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees

Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita

capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e

um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz

e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a

dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas

conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute

e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria

serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem

quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto

anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse

em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita

maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte

com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e

quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e

emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos

paradoxos

40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no

livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004

Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo

Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11

39

Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos

toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-

romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido

num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia

com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes

profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas

sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo

acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando

a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A

derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a

conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas

da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da

sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No

entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas

romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a

impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo

definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha

aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento

em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o

passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era

tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto

A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos

acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-

Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs

Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os

Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de

Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de

Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o

egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo

narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica

Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute

neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o

poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem

40

esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma

essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no

iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma

questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos

encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem

sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos

interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas

as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um

exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo

tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo

daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita

conteacutem

41

42 - UM PERCURSO COMPARATIVO

ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os

vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e

outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que

ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute

foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41

ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto

Olhou em roda natildeo achou ningueacutem

Por entre as campas arrastando o manto

Com lentos passos caminhou aleacutem

Abandonado neste chatildeo repousa

Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui

Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa

Sobre este peito que bateu por tirdquo42

A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e

o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-

romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua

linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa

o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se

O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando

proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos

moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na

literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror

Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou

comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas

circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de

comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e

sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos

41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda

Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos

42

ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de

outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou

Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)

Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal

de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma

optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada

pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada

no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus

sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa

suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois

dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)

Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade

todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional

natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute

afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute

tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima

do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo

Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela

e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a

prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua

intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a

dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as

influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente

que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz

directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para

a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o

intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era

partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada

por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das

rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de

branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza

43

ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas

Longas roupagens de neveda cor

Singela croa de virgiacutenias rosas

Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43

ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de

branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila

devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa

nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)

Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de

conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se

para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da

imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a

partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a

presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os

uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem

eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera

absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor

ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria

A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a

intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um

testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista

e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas

caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da

temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao

fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma

retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras

masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo

homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma

mulher

43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12

44

(hellip)

Mulher formosa que adorei na vida

E que na tumba natildeo cessei damar

Por que atraiccediloas desleal mentida

O amor eterno que te ouvi jurar

Amor engano que na campa finda

Que a morte despe da ilusatildeo falaz

Quem dentros vivos se lembrara ainda

ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)

Talvez que rindo dos protestos nossos

Gozes com outro dinfernal prazer

E o olvido cobriraacute meus ossos

Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44

Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o

vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as

bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis

e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma

essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o

podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA

ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de

sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a

eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos

na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto

com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais

de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas

palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o

esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal

seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu

passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre

44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9

45

que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as

matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos

das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam

para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)

Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno

num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista

melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias

possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela

um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica

natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem

fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo

intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas

rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso

consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo

intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas

solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou

com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a

todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas

as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os

sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado

daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)

Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do

Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais

significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO

MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do

quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e

estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que

desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo

da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina

agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das

espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute

presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos

46

ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido

Das sepulturas o gelado poacute

Dois esqueletos um ao outro unido

Foram achados num sepulcro soacuterdquo45

Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de

imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da

intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo

buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma

enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo

recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as

laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas

deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo

sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais

moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas

austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade

dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete

palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam

pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e

59)

Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao

ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram

escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia

literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo

exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde

ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais

tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo

merecida

45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos

47

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas

interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca

Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo

depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves

transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo

sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia

ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas

metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver

com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao

sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas

tambeacutem ao que relaciona a morte

A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua

eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela

mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e

sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo

quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade

que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas

personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a

humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de

enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e

sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas

e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o

que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte

presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais

condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus

contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e

desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse

interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural

equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes

interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute

Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem

uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses

48

elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o

inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela

tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses

elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma

civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor

sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam

sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do

intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea

Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o

menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que

para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro

compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo

que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou

seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua

imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que

essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar

atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a

outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual

proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque

esconde-se ou projecta-se no discurso do outro

Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o

caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo

relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens

marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um

significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um

desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos

de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e

fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave

realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande

maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe

um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo

46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de

Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360

49

obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a

escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada

Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a

infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute

aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo

espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a

verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes

50

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httpwwwfclarunespbrpublicaccedilotildeesrevistaliberdadehtm

httparestasdeventonosapoptlabaredas2html

Page 6: AS MÁSCARAS SIMBÓLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA … Jaqueline... · 2019-10-31 · A narrativa ficcional não é o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca, mas, assim como

6

RESUMO

A narrativa ficcional natildeo eacute o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca

mas assim como em seus poemas seus contos tambeacutem natildeo deixam de ter a

marca particular que a caracteriza como ldquo hellipraiz e flor A noite e a estrela da

alva a primeira A morte e a vida Aquela pudica amante e lilial irmatilderdquo1 Atraveacutes

da anaacutelise interpretativa podemos desvendar lacunas que fazem do seu livro de

contos As Maacutescaras do Destino um fascinante mosaico de leituras Passando

pela influecircncia referencial da mitologia dos deuses agrave consagraccedilatildeo heroacuteica de

seus filhos (semideuses) fonte imprescindiacutevel para o surgimento da

representaccedilatildeo simboacutelica do mar e seus respectivos elementos interpretativos

como bases da projecccedilatildeo do estado de alma dos escritores sentimentalistas

em que o tema da ldquodorrdquo permite a reutilizaccedilatildeo da imagem noutra construccedilatildeo

textual podendo ocorrer a superposiccedilatildeo a absorccedilatildeo e a transformaccedilatildeo de uma

multiplicidade de outros textos Esse estilo elaborado de escrita possibilita um

estudo comparado com outros textos Aqui essa relaccedilatildeo intertextual com um

poema do consagrado escritor ultra-romacircntico Soares de Passos permite

observar a tendecircncia decadentista e ultra-romacircntica em Florbela de modo que

vem confirmar seu conflito interior em detrimento de sua existecircncia Mesmo

assim natildeo deixou de reafirmar-se como escritora de sua eacutepoca Foi designada

como a ldquoPoetisa do Amorrdquo por Joseacute Reacutegio e o mesmo ainda ressalta que

ldquoextraordinaacuteria forccedila da natureza vulcatildeo sempre aceso de violentas paixotildees e

desejos que foi a vida e obra de Florbela2

PALAVRAS ndash CHAVE

Anaacutelise comparaccedilatildeo conto decadentismo Florbela Espanca heroacutei

interpretaccedilatildeo intertextualidade mar mito poesia simbolismo sentimentalismo

ultra-romantismo

1 Citaccedilatildeo extraiacutedo do website httparestasdeventonosapoptlabaredas2html Comentaacuterio de Joseacute

Antoacutenio Raposo sobre Florbela e Duratildeo 2 Citaccedilatildeo extraiacutedo do website httparestasdeventonosapoptlabaredas2html Comentaacuterio de Joseacute

Antoacutenio Raposo sobre Joseacute Reacutegio e Florbela

7

ABSTRACT

Florbela Espanca is not only well-known for her narrative fiction but also for her

poems Her stories have its particular mark which is characterized by such

stories asRoot and Flower The Night and the Star of Dawn The Spring

The Bashful Lover and Lilial Sister Through the analysis we can unmask the

gaps that make-up the fascinating reading of mosaic Passing

through referential influence of the Mythology of Gods to heroic consecration

of their children (semi-gods) an indispensable source for the appearance of

symbolic representation of the sea and its respective interpretative elements as

the base for the projection of the state of souls of the sentimental writers in

which the theme of pain permits the reutilization of an image in another textual

construction where superposition absorption and the transformation of a

multiplicity of other texts This elaborated style of writing makes it possible for

the study of comparisons with other texts Here this intertextual relation with a

poem of the consecrated ultra-romantic writer Soares de Passos permits the

observation of the decadent and ultra-romantic tendency in Florbela so that it

confirms its inner conflict in detriment to its existence Even so it doesnt stop

reaffirming her as a writer of her time She was named Poetess of Love by

Joseacute Reacutegio and it also highlights The Extraordinary Force of Nature Violent

Passion always alighted by a Volcano and desires which was the life and work

Of Florbelardquo

Key Words Analysis Comparison Story Decadence Florbela Espanca Hero

Interpretation Intertextuality Sea Myth Poetry Symbolism Sentimentality

Ultra-romanticism

8

INTRODUCcedilAtildeO

A primeira reflexatildeo que vem a nossa mente quanto que por acaso ouvimos as

primeiras duas estrofes de um dos sonetos de Florbela Espanca ldquoFanatismordquo3

eacute de estar diante de um texto onde emana o que existe de mais sentimental em

um autor Sem ainda conhecer os desiacutegnios desta ldquoBela princesa da planiacutecie

Alentejanardquo4 podemos perceber que buscava dizer algo mais que apenas as

belas palavras proferidas em seus versos que eram imbricados de metaacuteforas

fortes onde mostrava-se irmatilde companheira amante princesa magoada louca-

fanaacutetica inconstante e natildeo deixava ao contraacuterio do poema ldquoFumordquo5 fugir de

seus dedos a essecircncia de uma autora que buscava as respostas para sua

inquietude na projecccedilatildeo da figura ideal

As vicissitudes de seu tempo natildeo inibiram-na de mostrar seu grande talento

para a poesia e contos em alguns momentos de sua escrita Florbela gritava

por liberdade natildeo soacute de expressatildeo e participaccedilatildeo no meio artiacutestico mas por

uma liberdade intimista que para o seu tempo era mal interpretada pois a

sociedade concebia a figura da mulher fraacutegil delicada recatada e submissa agraves

vontades e desejos masculinos o que Florbela tentava sem o querer ser As

agruras desse tormento vivido pela mulher seria entatildeo imortalizado pela

escritora

Ao lermos seus escritos sem duacutevida entramos por um caminho de vastas

indagaccedilotildees buscando perceber qual seria a grande inquietude que envolvia

esta mulher em momentos de impacto com o real e a tatildeo grandiosos momentos

de nostalgia amorosa levando-nos a apreciar a natureza tal qual como eacute

descrita em seus poemas assim como estabelecermos uma intimidade com

uns dos temas que mais aflige as pessoas mas que de uma certa forma nos

coloca frente a frente com uma realidade a qual natildeo podemos fugir ndash a morte

Essa temaacutetica podemos dizer que eacute a mais forte tendecircncia dos escritos de

Florbela natildeo soacute na poesia que se faz presente na maioria de seus livros mas

tambeacutem em seus contos envolvendo-nos em situaccedilotildees onde o tema morte

passa a impulsionar nossa expectativa em nos descobrir ou redescobrir diante

da vida ou do mais profundo e iacutentimo desejo humano de conhecer-mos a noacutes

3 Poema contido no livro de ldquoSoror Saudaderdquo publicado em 1923 4 Frase proferida por Duratildeo seu amigo fiel 5 Poema contido na livro de ldquoSoror Saudaderdquo

9

mesmos e infiltra-nos por caminhos incoacutegnitos que cobrem de maacutescaras nosso

destino assim como eacute citado no tiacutetulo de seu livro de contos6 o qual dedicou a

seu irmatildeo Apeles deixando-nos por vezes a margem de reflexotildees

existencialistas mas natildeo o existencialismo puro dos filoacutesofos questionadores

mas um existencialismo amoroso sensiacutevel capaz de nos inibir com subtilezas

representativas de um mesclado de tendecircncias literaacuterias que preenche seus

textos de extremo romantismo e passa para a evidecircncia dos fatos que vatildeo do

real ao ideal do acontecido a suposta consequecircncia

De fato que sua vida influenciou sua escrita7 tanto que nesta inquietante busca

pela pessoa ideal que era acometida a escritora levou a mulher a concretizar

sua indubitaacutevel certeza de que seria compreendida e aceita apenas depois de

repousada sua pena agraves matildeos da morte e descansar em teus braccedilos fato esse

descrito no poema ldquoAacute Morterdquo encontrado em sua mesa no dia em que suicidara

Soacute assim seria quebrado o encanto da escrita como natildeo o foi Foi sim

quebrado o encanto do escrever pois a escrita era a forma de agir sobre a sua

realidade mas o encanto da escrita permanece e esses ldquo que os vivos passem

adianterdquo8 como a proacutepria Florbela proferira E assim estaacute Florbela vive em sua

obra sua temaacutetica nos chega como notiacutecia surpreendente e nos envolve em

seus misteacuterios simboacutelicos Sua meacutetrica ao molde claacutessico e uma temporalidade

construiacuteda em seus escritos atraveacutes de seus livros de forma proposital nos

deixa perceber o que vai no iacutentimo de uma mulher parece que retrata com

transparecircncia as fantasias ou fases interiores do imaginaacuterio feminino que de

intreacutepida voluntariosa libertina amante insaciaacutevel inconstante passa a ser

casta pura virtuosa religiosa isso tudo sem deixar de ser extraordinariamente

apaixonada como ela mesma atesta sua proacutepria natureza ldquoSou filha da

charneca erma e selvagemrdquo9

Do mesmo modo que na poesia a Bela escritora mostra-nos seu talento para a

prosa em seu livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo Diferente da poetisa do ldquoeurdquo os

contos geralmente em terceira pessoa natildeo deixam de ter a marca registada

de Florbela a insatisfaccedilatildeo pela vida e a fuga atraveacutes da morte com fortes

mesclas de romantismo Outra caracteriacutestica presente neste livro eacute a ldquolacunardquo

6 Referecircncia ao livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo dedicado a seu irmatildeo Apeles 7 Referecircncia aos vaacuterios estudos feitos sobre a vida a escritora 8 Citaccedilatildeo retirado da dedicatoacuteria do livro ldquoAs Mascaras do Destinordquo 1998 33 9 Citaccedilatildeo do poema ldquoEsfingerdquo do livro Poesias Completas 2004 276

10

deixada a margem da interpretaccedilatildeo ou seja o que se leria nas entrelinhas do

texto Tais interpretaccedilotildees ficam a cargo do leitor que de certa forma interage

com as narrativas preenchendo-lhes o vazio deixado pela escritora ldquovaziordquo

esse que tambeacutem a acompanha nesta obra e a quem dedica ldquoeste livro eacute o

livro do meu mortordquo10 Na realidade Florbela queria deixar imortalizado seu

irmatildeo ldquoNatildeo queria que meu morto morresse comigohellipE escrevi estas

paacuteginashelliprdquo que foram de encontro a profundeza de seu pensamento ou seja

uma consciecircncia transcendental em caminho a ldquotalrdquo liberdade tanto desejada

que jaacute em versos reclamava

ldquoEu ponho-me a sonhar transmigraccedilotildees

Impossiacuteveis longiacutenquos milagrosas

Voos amplos ceacuteus distantes migraccedilotildees

Longehellip noutras esferas luminosas

E pelo meu olhar passam visotildees

Ilhas de bruma e naacutecar drsquooiro e rosashellip

E eu penso que liberta de grilhotildees

Hei-de aportar agraves Ilhas misteriosasrdquo11

Esse doce misteacuterio que cheio da natureza de ser mulher eacute o que intriga-nos a

cada leitura e nos faz buscar conhecer mais de sua vida para entendermos sua

obra Seus contos nos mostram uma Florbela detentora de uma

intertextualidade viva que no decorrer das narrativas remete-nos a outros

tempos a outras leituras Cria um ambiente nostaacutelgico e contemplativo de

vasto campo simboacutelico percorrendo as mais variadas fontes para sua

inspiraccedilatildeo criadora com isso ao depararmos com o quadro descritivo na

narrativa recriamos esse quadro imaginaacuterio em nossa mente como em um

conto de fadas ali misturam-se fatos reais e imaginaacuterios tempos reais e

imaginaacuterios personagens reais e imaginaacuterias tudo ldquo eacute luminosas e exaltante

10 Citaccedilatildeo da dedicatoacuteria do livro ldquoAs maacutescaras do Destinordquo 1998 32 11 Poema ldquoLibertardquodo livro Poesia Completa 2004 75

11

emoccedilatildeordquo foi enchido de ldquotoda a espiritualidade beleza dolorosa e humildade e

acima de tudo as almasrdquo criadas ldquosatildeo gritos e soluccedilos de amorrdquo12

Diante disso o foco do estudo e pesquisa sobre Florbela Espanca se limitaraacute

em um levantamento analiacutetico e criacutetico dando vaacuterias possibilidades de

interpretaccedilatildeo bem como referecircncias intertextuais que satildeo citadas e ora

aparecem em seus contos no livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo Tal estudo

objectiva um conhecimento interpretativo e comparativo das leituras feitas por

Florbela e o modo como vieram a influenciar e dar sustentabilidade ao enredo

dos contos Quem sabe poderemos conhecer um pouco mais dessa misteriosa

mulher que dizia natildeo conhece a si mesma

O que sou eu AmorSei laacute que sou

Sou tudo e nada grande e pequenina

Sou a que canta uma ilusatildeo divina

Sou a que chora um mal que acabou

Eu sei laacute que quimera me beijou

E nunca o soube assim desde pequenina

Haacute neste mundo tanta amarga sina

A minha eacute saber nunca quem sou

Esfinge sonho tonto de desejos

Na tua boca sou uma asa aberta

A palpitar vermelha como os beijos

Andorinhahelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellipa voejar13

helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip

helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip

12 Citaccedilatildeo da dedicatoacuteria do livro ldquoAs maacutescaras do Destinordquo 1998 33 13 Poema sem tiacutetulo editado no livro ldquoEsparsos de Florbelardquo em Poesia Completa 2004 78

12

CAPIacuteTULO 01

11 - ENQUADRAMENTO TEOacuteRICO

Na literatura actual eacute frequente apontar-se como um dos factores de

textualidade a referecircncia - expliacutecita ou impliacutecita ndash a outros textos tomando estes

um sentido bem amplo (orais escritos visuais etc) A esse diaacutelogo entre textos

daacute-se o nome de intertextualidade

Eacute evidente que a intertextualidade estaacute ligada ao conhecimento de mundo que

deve ser compartilhado ou seja comum ao produtor e ao receptor do texto

Desta forma pressupotildee um universo cultural muito amplo e complexo pois

implica antes de tudo na identificaccedilatildeo e no reconhecimento de remissotildees a

obras ou a textostrechos mais ou menos conhecidos aleacutem de exigir do

interlocutor a capacidade de interpretar a funccedilatildeo daquela citaccedilatildeo ou alusatildeo em

questatildeo

Todas as questotildees ligadas agrave intertextualidade influenciam tanto o processo de

produccedilatildeo como o de compreensatildeo de textos o importante eacute natildeo encararmos a

intertextualidade apenas como a identificaccedilatildeo da fonte e sim que nos

preocupemos em estudaacute-la como um enriquecimento da leitura e da produccedilatildeo

de textos e sobretudo tentando mostrar a funccedilatildeo da sua presenccedila na

construccedilatildeo e no(s) sentido(s) dos textos

Como se pode notar na constituiccedilatildeo da proacutepria palavraldquointertextualidaderdquo

significa relaccedilatildeo entre textos Considerando-se texto num sentido lato como

um recorte significativo feito no processo ininterrupto de semiose cultural isto eacute

na ampla rede de significaccedilotildees dos bens culturais Pode-se afirmar que a

intertextualidade eacute inerente agrave produccedilatildeo humana O homem sempre lanccedila matildeo

do que jaacute foi feito em seu processo de produccedilatildeo simboacutelica Assim sendo o

texto como objecto cultural tem uma existecircncia fiacutesica que pode ser apontada e

delimitada um filme um romance um anuacutencio uma muacutesica Entretanto esses

objetos natildeo estatildeo ainda prontos pois destinam-se ao olhar agrave consciecircncia e agrave

recriaccedilatildeo dos leitores Cada texto constitui uma proposta de significaccedilatildeo que

natildeo estaacute inteiramente construiacuteda A significaccedilatildeo se daacute no jogo interpretativo

entre o texto e seu destinataacuterio Este uacuteltimo eacute um interlocutor ativo no processo

de significaccedilatildeo na medida em que participa do jogo intertextual tanto quanto o

autor

13

A intertextualidade se daacute pois tanto na produccedilatildeo como na recepccedilatildeo da grande

rede cultural de que todos participam Filmes que retomam filmes quadros que

dialogam com outros propagandas que se utilizam do discurso artiacutestico

poemas escritos com versos alheios romances que se apropriam de formas

musicais tudo isso satildeo textos em diaacutelogo com outros textos intertextualidade

Um texto remete a outro para defender as ideias nele contidas ou para

contestar tais ideias isso se daacute atraveacutes de um estudo comparativo entre textos

que ligam-se pela elaboraccedilatildeo artiacutestica de seu criador Eacute atraveacutes da anaacutelise

comparativa que tomamos ciecircncia da emergecircncia simboacutelica existente entre os

textos e a que niacutevel se daacute tal emergecircncia quanto agrave diacronia e sincronia que os

ligam Em qualquer niacutevel a produccedilatildeo simboacutelica eacute pois sempre uma retomada

de outras produccedilotildees perfazendo um jogo infinito que enreda autores e leitores

Apropriando-nos entatildeo de Schneider podemos afirmar

ldquoO texto literaacuterio eacute um palimpsesto O autor antigo escreveu uma lsquoprimeirarsquo vez

depois sua escritura foi apagada por algum copista que recobriu a paacutegina com

um novo texto e assim por diante Textos primeiros inexistem tanto quanto as

puras coacutepias o apagar natildeo eacute nunca tatildeo acabado que natildeo deixe vestiacutegios a

invenccedilatildeo nunca tatildeo nova que natildeo se apoacuteie sobre o jaacute-escritordquo (SCHNEIDER

199071)

No sentido estrito a palavra texto remete a uma ordem significativa

verbal Dentro dessa ordem a literatura vale-se amplamente do recurso

intertextual consciente ou inconscientemente Em razatildeo disso a

intertextualidade faz-se operador de leitura Eacute importante marcar os primoacuterdios

de Bakhtin em relaccedilatildeo a esses estudos divulgados por Juacutelia Kristeva Eacute dela o

claacutessico conceito de intertextualidade ldquo todo texto se constroacutei como mosaiacuteco de

citaccedilotildees todo texto eacute absorccedilatildeo e transformaccedilatildeo de um outro textordquo

(KRISTEVA 197464) Na verdade a intertextualidade inerente agrave linguagem

torna-se expliacutecita em todas as produccedilotildees literaacuterias que se valem do recurso da

apropriaccedilatildeo colocando em xeque a proacutepria noccedilatildeo de autoria Eacute o que vamos

observar ao longo do estudo no conto ldquoA Mortardquo em ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo

de Florbela Espanca temos aqui um bom exemplo do que se define como

intertextualidade as relaccedilotildees entre textos a citaccedilatildeo de um texto por outro

enfim o diaacutelogo entre textos Sendo assim para entender um texto na sua

totalidade eacute preciso conhecer o(s) texto(s) que nele fora(m) citado(s)

14

Eacute nesse contexto que Kristeva membro actuante da criacutetica francesa elabora

seu conceito de intertextualidade considerando que todo texto se constroacutei como

ldquomosaico de citaccedilotildeesrdquo Esse entendimento acarreta a consideraccedilatildeo de que a

intertextualidade eacute um fenoacutemeno que se encontra na base do proacuteprio texto

literaacuterio imbricada com a inserccedilatildeo deste num muacuteltiplo conjunto de praacuteticas

sociais relevantes A partir de Kristeva ldquotextordquo passa a ser entendido como o

evento situado na histoacuteria e na sociedade que natildeo apenas reflecte uma

situaccedilatildeo mas eacute essa proacutepria situaccedilatildeo apagando linhas divisoacuterias entre as

disciplinas e constituindo um cruzamento entre diferentes superfiacutecies textuais e

distintas aacutereas do saber cientiacutefico e da esfera artiacutestica ldquoPelo seu modo de

escrever lendo o corpus literaacuterio anterior ou sincroacutenico o autor vive na histoacuteria

e a sociedade se escreve no textordquo (KRISTEVA 197498)

A partir dos postulados deste conceito observamos que a intertextualidade

reflecte a concepccedilatildeo do texto literaacuterio como carregado de outros textos

inclusive do ldquotextordquo da realidaderdquo E eacute essa realidade polifoacutenica de vivecircncia

tumultuosa e inquietante de dissabores intriacutensecos e por vezes

transcendentais de acontecimentos filtrados atraveacutes de sua proacutepria

sensibilidade e sua imaginaccedilatildeo fantaacutestica que Florbela Espanca tem

manifestado para que seja compreendido seus misteacuterios de forma a dar mais

realce atraveacutes das vaacuterias formas de compreensatildeo e interpretaccedilatildeo intertextual e

comparativa de sua obra Neste sentido a teoria intertextual e comparativa

seraacute um guiatildeo a nortear um trabalho na tentativa de conhecermos essa

enigmaacutetica escritora que foi Florbela Espanca E eacute dela o incentivo para um

maior entendimento daquilo que nos deixou ldquoPara mim Para ti Para ningueacutem

Quero atirar para aqui negligentemente sem pretensotildees de estilo sem

anaacutelises filosoacuteficas o que os ouvidos dos outros natildeo recolhem reflexotildees

impressotildees ideias maneiras de ver de sentir ndash todo o meu espiacuterito paradoxal

talvez friacutevolo talvez profundo Compreendi por fim que nada compreendi que

mesmo nada poderia ter compreendido de mimhellipRestam-me os outroshellip

talvez por eles possa chegar agraves infinitas possibilidades do meu ser misterioso

intangiacutevel secretordquo (FLORBELA ESPANCA 199833)14

14 Fragmento retirado do livro ldquoDiaacuterio do Uacuteltimo Anordquo Bertrand Editora

15

A proposta de entendimento intertextual traacutes um reflexo de sua existecircncia

registado em sua ldquoDivina Comeacutediardquo15 pelos seus ldquoVersosrdquo16

ldquoVersos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip

Pedaccedilos de sorrisos branca espuma

Gargalhadas de luz cantos dispersos

Ou peacutetalas que caem uma a umahellip

VersosSei laacute Um verso eacute o teu olhar

Um verso eacute o teu sorriso e os de Dante

Eram o seu amor a soluccedilar

Aos peacutes de sua estremecida amante

Meus versos Sei eu laacute tambeacutem que satildeohellip

Sei laacute Sei laacute Meu pobre coraccedilatildeo

Partidos em mil pedaccedilos satildeo talvezhellip

Versos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip

Meus soluccedilos de dor que andam dispersos

Por este grande amor em que natildeo crecircsrdquo

15 Referecircncia a Obra de Dante Alighieri A Divina Comeacutedia uma viagem ao inferno purgatoacuterio e ao

paraiacuteso Aqui em relaccedilatildeo a vida de Florbela a palavra comeacutedia tem duplo significado o de origem dando

seguimento bom ao desenlace das personagens e em seu sentido coacutemico aos factores da inconstacircncia da

escritora 16 Referecircncia ao poema de Florbela escrito em O livro Drsquoele Poesia Completa2004 208

16

13 - ABORDAGENS SOBRE ldquoAS MAacuteSCARAS DO DESTINOrdquo ldquoOs contos satildeo como ela - siacutembolo de permanecircncia no pensamento da terra fio

de amor que manteacutem a sua magneacutetica forccedila saudade de tudo que podia

significar felicidade e expressatildeo do afectordquo17

Dedicada ao seu irmatildeo Apeles Demoacutestenes da Rocha Espanca ndash ldquoAs

Maacutescaras do Destinordquo eacute uma obra inspirada na tristeza e dor que a perda do

irmatildeo causa em Florbela Sua dedicatoacuteria ldquoeacute como um punho culpado que

Florbela assenta no proacuteprio peitordquo (FLORBELA ESPANCA 199825) assim diz

Agustina Bessa-Luiacutes autora do prefaacutecio escrito em 1979 que orienta-nos sobre

as condiccedilotildees de leitura que envolve esta obra

A dedicatoacuteria escrita por Florbela comprova o amor de irmatildeos Apeles era

ldquoAquele que das mesmas entranhas foi nascido que ao calor do mesmo

amplexo foi gerado Aquele que traz no rosto as linhas do teu rosto nos olhos a

aacutegua clara dos teus olhos o teu Amigo o teu Irmatildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA

199831 e 32) Ela escrevia tais palavras como uma matildee que acabara de

perder a um filho ldquopara que tua mocidade natildeo trema de o ver partir um dia

bom e meigo para que vivas na ilusatildeo bendita de teres um filho forte e belo

para te obrigar a encarar sorrindo as coisas vis e feias deste mundohelliprdquo

(FLORBELA ESPANCA 199831) Na realidade tais clamores professados soacute

a uma matildee que perdera seu filho eacute permitido senti-los

Escrita no final de 1927 reuacutene oito contos denominados ldquoO Aviador ldquoA Mortardquo

ldquoOs Mortos Natildeo Voltamrdquo ldquo O Resto Eacute Perfumerdquo ldquoA Paixatildeo de Manuel Garciardquo

ldquo O Inventorrdquo ldquoAs Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquoO Sobrenaturalrdquo

Como demonstram os tiacutetulos dados aos contos o tema ldquomorterdquo eacute o ponto de

convergecircncia entre os enredos e vem reforccedilar o pendor funesto da obra de

Florbela natildeo apenas pelo desaparecimento do irmatildeo mas que jaacute fazia parte

da proacutepria insatisfaccedilatildeo intimista que a escritora detinha Nesta altura por forccedilas

das circunstacircncias parecia estar desvinculada da vida como uma morta e sua

perpeacutetua busca lhe assegura uma espeacutecie de eternidade

Natildeo participando do enredo assim sendo em 3ordf pessoa mostrava-se uma

observadora a narrar fatos onde a realidade se confunde com o imaginaacuterio

17 Fragmento escrito por Agustina Bessa-Luiacutez retirado do prefaacutecio do livro As Maacutescaras do Destino de

Florbela Espanca 199810

17

fantaacutestico e soacute nos traacutes agrave lucidez da compreensatildeo devido as referecircncias

intertextuais as quais satildeo comuns aos contos pois ldquo o fantaacutestico se caracteiza

por una instrusioacuten brutal del misteacuterio en el marco de la vida real y estaacute ligado

generalmente a los estados moacuterbitos de la conciencia que en los fenoacutemenos

de pesadilla e de deliacuterio proyecta ante siacute imaacutegenes de sus angustias e de sus

terroresrdquo (GEORGES JEAN 1889 68 e 69) Mas a escritora natildeo desvincula-se

de sua obra uma forte tendecircncia de Florbela Marcando presenccedila no conto ldquoO

Resto Eacute Perfumerdquo interage como personagem assim assume o relato como

se procedesse de outro narrador para que pudesse penetraacute-lo e manter suas

caracteriacutesticas inquietantes e paradoxais acrescentando uma forte dose de

existencialismo e a presenccedila do ldquoEurdquo que vem reforccedilar a categoria de seus

relatos miacuteticos Aqui o ldquofantaacutesticordquo se confunde com o ldquomaravilhosordquo isso

devido aos relatos mitoloacutegicos que implica durante a leitura em um

redireccionamento do leitor a outro espaccedilo a outro tempo onde temos a ilusatildeo

de vivermos por um breve momento em outro lugar Florbela nos permite a

viagens imaginaacuterias em que o maravilhoso de seus contos dependeraacute de uma

infinidade de interpretaccedilotildees que natildeo seratildeo necessariamente interpretaccedilotildees

racionais pois as interpretaccedilotildees paralelas e divergentes satildeo sempre possiacuteveis

devido a riqueza do conto em si que no caso de Florbela estatildeo ligados aos

estados moacuterbidos de sua consciecircncia

Sabemos que algum dos elementos imaginaacuterios dos contos de Florbela estaacute

ligada ao realismo de sua histoacuteria verdadeira e isso eacute capaz pela virtudes que

soacute os contos de fadas pode proporcionar apesar de sua vida inconstante e

cheia de maacutegoas soube mascarar seu inconsciente e dar a seu relato um

intercacircmbio gracioso e sentimental com sua vida Por sua vez tais relatos

remetem-se a duas vertentes essenciais nos contos a primeira de propagar as

formas simboacutelicas durante a histoacuteria e a segunda de inserir essas formas

mediante a expansatildeo de sua escrita atraveacutes dos contos Um bom exemplo

disso eacute a clareza de como um conto complementa outro Atentemos para os

detalhes simboacutelicos de ldquoO Inventorrdquo que parece encerrar-se em ldquoO Aviadorrdquo da

mesma forma acontece em ldquoO Sobrenaturalrdquo e ldquoOs Mortos natildeo Voltamrdquo ldquoAs

Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquo A Paixatildeo de Manuel Garciardquo por fim

vemos a profunda reflexatildeo sobre a vida em ldquoO Resto eacute Perfumerdquo culminando

no conto ldquoA Mortardquo que tem em seu final a imersatildeo nas aacuteguas elemento

18

comum em todos os contos que parece como siacutembolo de redenccedilatildeo Temos

aqui um quadro para um estudo comparativo minucioso entre os proacuteprios

contos

Como afirma Agustina Bessa-Luiacutes ldquo para ler a prosa eacute preciso compreender a

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199816) Neste contexto natildeo ousamos falar

do quadro complexo que a palavra ldquomulherrdquo como um ser social objectiva mas

sim na simplicidade do comportamento de vaacuterias mulheres numa soacute imagem

constante nos contos que sente no seu intimo a dor da perca A primeira

referecircncia aqui eacute da mulher-irmatilde que vecirc no uacutenico irmatildeo morto a decadecircncia de

si mesma ldquo seraacute em breve uma sombra na tua sombrardquo (FLORBELA

ESPANCA 199832) Da mulher-matildee e o vazio de sua dor silenciosa ldquo A pobre

matildee abafou um soluccedilo voltou-se e olhou o mortordquo (FLORBELA ESPANCA

1998112) E por fim da mulher-religiosa que busca na cristandade respostas

para seus questionamentos e refuacutegio para seu tormento ldquomais fraacutegil mais

luminosa continuava a rezar as suas oraccedilotildeeshelliporaccedilotildees de amor sacriacutelegas

blasfemas oraccedilotildees de pecadohellipDe pecado Natildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA

1998154) Assim concebo a mulher Bela a compreensatildeo de sua escrita estaacute

nos olhos de quem as vecirc e na sensibilidade de a conhecer Desta feita ldquoa fase

dos equiacutevocos com que a gesta amorosa que a serve com a permanente

invenccedilatildeo de objectos meritoacuterios eacute substituiacuteda por uma feacute na alma feacute que se

acompanha do terriacutevel sentimento de estar morta de natildeo ser mais do que a

aparecircncia dum espaccedilo vividordquo (FLORBELA ESPANCA 199823) diz Agustina

Bessa-Luiacutes

Nesta obra duas propriedades do texto satildeo facilmente perceptiacuteveis a

intertextualidade e a influecircncia exercida em cada conto Essa uacuteltima

envolvendo as fortes caracteriacutesticas da escritora Florbela Espanca Contudo o

texto se constroacutei agrave medida que retoma fatos jaacute conhecidos como eacute o caso das

vaacuterias citaccedilotildees de autores e personagens que ilustram o livro Nesse sentido

quanto mais amplo for o repertoacuterio do leitor o seu acervo de conhecimentos

maior seraacute a sua competecircncia para perceber como os textos dialogam uns

com os outros por meio de referecircncias alusotildees e citaccedilotildees Eacute assim que

Florbela queria que a entendecircssemos atraveacutes de um diaacutelogo intriacutenseco para

descobrirmos suas maacutescaras

19

CAPIacuteTULO 02 21 - ldquoSONHO DE IacuteCAROrdquo

ldquoVoar voar subir subir

Ir por onde for descer ateacute o ceacuteu cair

Ou mudar de cor anjos de gaacutes

Asas de ilusatildeo e um sonho audaz

Feito um balatildeo

No ar no ar eu sou assim

Brilho do farol aleacutem do mais

Amargo fim simplesmente sol

Fugir meu bem eacute ser felizhellip

Ir ateacute que um dia chegue enfim

Em que o sol derreta a cera ateacute o fimrdquo18

A mitologia eacute uma das concepccedilotildees mais geniais que a humanidade produziu

Os gregos instauraram uma categoria intermediaacuteria entre os homens e os

deuses o semideus criando assim os heroacuteis mitoloacutegicos Isso veio a dar

margem a novas investigaccedilotildees sobre os fenoacutemenos da realidade natural

levando ao questionamento da origem dos seres a qual obtiveram respostas

sem sentido concreto Com isso incorporaram a concepccedilatildeo de que a vida e

suas manifestaccedilotildees satildeo obras das forccedilas do espiacuterito que habita em cada um

de noacutes sendo tambeacutem responsaacutevel pela nossa maneira de ser e de agir Isso eacute

sem duacutevida um meio de penetrar atraveacutes da imaginaccedilatildeo no misteacuterio da

existecircncia humana Desta forma o mito consiste nos acontecimentos que se

repetem ao longo da histoacuteria natildeo tendo fim O homem reconhecendo em cada

acto quotidiano uma participaccedilatildeo nos grandes ciclos da vida se sente

participar da grande eternidade miacutetica Partindo de suas origens o homem

consegue viver integralmente e uma vez dentro da mentalidade miacutetica a

proacutepria morte pode ter sentido

18 Fragmento da canccedilatildeo ldquosonho de Iacutecarordquo escrito por Pisca e Claacuteudio Rebelo interpretaccedilatildeo do cantor

brasileiro Byafra

20

Com o intuito de imortalizar o momento de uma trageacutedia Florbela lanccedila matildeo de

aspectos mitoloacutegicos dentro de seus contos que muito nos lembra a triste

histoacuteria de Deacutedalo e Iacutecaro 19 mostrando que o espiacuterito humano de vencer

barreiras e limites nos impulsiona a superar nossas proacuteprias limitaccedilotildees

Alcanccedilar o espaccedilo e as estrelas lanccedilar-se ao infinito experimentar da

sensaccedilatildeo de liberdade interior e o desvendar do misterioso infinito eacute o que

norteia o enredo dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquo O Inventorrdquo

Praticamente todas as culturas destacam o ceacuteu como um lugar especial Esse

local era normalmente designado como a morada dos deuses Muitos povos

consideravam que as constelaccedilotildees eram representaccedilotildees dos seus mitos e

lendas Dessa forma o ceacuteu era um lugar divino e os homens somente o

alcanccedilavam quando eram convidados ou homenageados pelos deuses Mas o

atrevimento de uns culminou na desgraccedila de outros Apenas aqueles com

sabedoria e dotado de iacutentima consciecircncia disciplinar sobre sua condiccedilatildeo

humana conseguiam graccedilas aos olhos dos deuses O conflito interior era um

grande empecilho para que fatos tivessem o desenrolar bem sucedidos

Quando isso natildeo acontecia o homem reconhecia sua condiccedilatildeo de inferioridade

em relaccedilatildeo aos deuses e eram designados ldquofilhos dos homensrdquo

O aparecimento da referecircncia mitoloacutegica pressupotildee uma forte ligaccedilatildeo aos elos

do mito de fundaccedilatildeo que sustenta a harmonia familiar juntamente com

preceitos de moral tendo por priori a identidade pessoal na figura paterna

como eram conhecidos os grandes heroacuteis mitoloacutegicos por serem semideuses

Nesta constante nos eacute dado a conhecer a condiccedilatildeo humana que tambeacutem

aparece de forma intertextualizada como referecircncia ao quadro do flamengo

19 Iacutecaro era filho de Deacutedalo o construtor do labirinto que o rei Minos aprisionava o Minotauro um ser

com corpo de homem e cabeccedila de touro A lenda grega conta que Deacutedalo ensinou Teseu que seria

devorado juntamente com outros jovens pelo monstro como sair do labirinto Deacutedalo sugeriu que ele

deveria utilizar um novelo que deveria ser desenrolado a medida em que fosse penetrando no labirinto

Dessa forma apoacutes ter matado o monstro ele conseguiu fugir do labirinto O rei Minos ficou furioso e

prendeu Deacutedalo e o seu filho Iacutecaro no labirinto Como o rei tinha deixado guardas vigiando as saiacutedas

Deacutedalo construiu asas com penas dos paacutessaros colando-as com cera Antes de levantar voo o pai

recomendou a Iacutecaro que quando ambos estivessem voando natildeo deveriam voar nem muito alto (perto do

Sol cujo calor derreteria a cera) e nem muito baixo (perto do mar pois a unidade tornaria as asas

pesadas) Entretanto a sensaccedilatildeo de voar foi tatildeo estonteante para Iacutecaro que ele esqueceu a recomendaccedilatildeo e

elevou-se tanto nos ares a ponto da previsatildeo de Deacutedalo ocorrer A cera derreteu e Iacutecaro perdeu as asas

precipitando-se no mar e morrendo afogado

21

Brueghel (a Queda de Iacutecaro)20 que Florbela tatildeo bem ilustra com uma descriccedilatildeo

que mais parece uma tela ldquo Os filhos dos homens caacute em baixo deixam cair

nos campos a enxada que faz nascer o patildeo e florir as rosas os pescadores

largam os remos audaciosos que rasgam os mares e os rios e os filhos dos

homens mais duramente castigados os que habitam o formigueiro das cidades

param nas suas insensatas correrias de formigas e todos voltam a face para o

ceacuteurdquo (FLORBELA ESPANCA 199838) Aqui a intertextualidade sugerida

numa linha ecfraacutestica vai de encontro a misteriosa temaacutetica de Florbela

significando isto que o espiacuterito de aventura eacute frequentemente motivo de

incompreensatildeo e de grande solidatildeo

Do mesmo modo que impotildee a condiccedilatildeo de mortal ao homem Florbela o

enaltece dando-lhe honrarias e elevando-o a condiccedilatildeo de um deus ldquo Nos olhos

leva visotildees que os filhos dos homens natildeo conhecem Eacute um homem Deixou laacute

em baixo todo o fardo pesado e vil com que o carregam ao nascer deixou laacute

em baixo todas as algemas todos os feacuterreos grilhotildees que o prendiam toda a

suprema maldiccedilatildeo de ter nascido homem deixou laacute em baixo a sua sacola de

pedinte o seu bordatildeo de Judeu Errante e livre indoacutemito sereno na sua

miacutesera couraccedila de pano azul estendeu em cruz os braccedilos que transformou em

asasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199839) Ao atingir tal supremacia o homem

liberta-se de sua vida anterior e ganha autonomia na forma da liberdade

intriacutenseca conseguindo a superaccedilatildeo de sua forma decadente e de seus

conflitos interiores atraveacutes da liberdade celestial alcanccedilada Deacutedalo foi

conhecido como o arquitecto e artista da liberdade mesmo tendo construiacutedo o

labirinto que eacute a representaccedilatildeo do aprisionamento Aqui Florbela utiliza desse

argumento como se seus escritos fossem labiriacutenticos e teriacuteamos de encontrar

as palavras certas para desvendarmos seus caminhos encontrando neles

assim a liberdade Essa mesma liberdade transformada aqui no voo mais alto

que levaria a traacutegica morte

Apesar de mostrada diferentemente temos aqui mais uma vez a dualidade

que percorre a obra de Florbela o aprisionamento e a liberdade a vida e a

morte antiacuteteses que perfilam seu anseio humano ldquo Um dia julgou ter achado

20 Quadro de Broeghel demonstrando a queda de Iacutecaro no mar enquanto os camponeses prosseguem a sua

labuta diaacuteria

22

Oh aquele dia A embriaguez do homem que se igualou a Deus O coraccedilatildeo a

bater a bater a sentir-se grande demais para um peito tatildeo pequeno para um

tatildeo mesquinho destino A humidade das laacutegrimas a embaciar o olhar gigante

que se esquecera um momento de ter nascido pigmeu O artista o poeta o

inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de movimento e de

vida todos os que desbravavam caminhos os que talham abrem por entre os

matagais selvagens e as belas estradas largas do pensamento e das ideias As

palavras satildeo o muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes

ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)

Ao atingir o voo pleno por vezes nos afastamos da realidade natural e nos

lanccedilamos ao desconhecido sem saber o que nos espera Com isso a queda eacute

inevitaacutevel Neste seguimento vemos a intertextualidade presente sob o estigma

dos cuidados de Zeus filho de Cromo e pai dos deuses que concedeu aos

heroacuteis uma morada afastada dos homens onde os semideuses pudessem se

estabelecer nos confins da terra Eacute laacute que habitam com o coraccedilatildeo livre de

cuidados nas Ilhas dos Bem-Aventurados nas praias dos turbilhotildees profundos

do Oceano satildeo eles os heroacuteis afortunados a quem Florbela tambeacutem concede

a morada preparada como tuacutemulo perfeito para o descanso eterno A

representaccedilatildeo das deusas das aacuteguas na presenccedila das ninfas efidriacuteades21 que

simbolizam a graccedila criativa e fecundadora da natureza fazem aparecer a

presenccedila feminina que surge com o intuito de exaltar a forccedila interior que so a

mulher tem para defrontar situaccedilotildees desastrosas e encontrar soluccedilatildeo nos mais

tenebrosos conflitos bem como de dar um toque de suavidade ternura beleza

e leveza que soacute a performance feminina consegue impor ldquo hellipAs filhas dos

deuses ondinas sereias nereidas princesas encantadas acodem todas

pressurosashellipEm volta das asas mortas satildeo como flores desfolhadas em

redor dum esquife negro E olhamhelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 199842) A

sabedoria feminina evidencia-se ao se manifestar a ldquoque tinha nos olhos uma

nostaacutelgica tristeza humanardquo (FLORBELA ESPANCA 199846) como uma matildee

protectora que acalenta o filho em seu sono profundo e compreende com

tristeza a dor dos mortais ou quem sabe sua proacutepria dor na condiccedilatildeo de

imortal pois somente aos deuses era permitido o poder de arrebatar o espiacuterito

21 Referecircncia as ninfas das aacuteguas da mitologia grega

23

a um homem ldquo E aquele que tinha sido um filho dos homens ficou a dormir na

eternidade como se fora um filho dos deusesrdquo (FLORBELA ESPANCA

199846)

Como podemos perceber Florbela em sua construccedilatildeo literaacuteria delineou nas

entrelinhas dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquoO Inventorrdquo aspectos simboacutelicos

determinantes do aprisionamento e da libertaccedilatildeo humana natildeo somente no

sentido denotativo mas tambeacutem conotativo na multiplicidade de sentidos que

tais palavras propotildeem Apesar da evidecircncia colocada pela escritora ainda nos

remete a reflexatildeo pois o aprisionamento pode ser um meio de libertaccedilatildeo e a

libertaccedilatildeo um aprisionamento ldquohellipOlhou o ceacuteu profundohellipe achou Ser aviador

eacutehellipabraccedilar no mesmo abraccedilo o ceacuteu e o mar Na linguagem dos siacutembolos a

acircncora definindo a esperanccedila nunca poderaacute valer as asas que satildeo a

libertaccedilatildeo A acircncora agarra-se ao fundo e fica as asas abrem-se no espaccedilo e

penetram o ceacuteuhellipSeria aviador Quando pela primeira vez voou natildeo se

esqueceu de sentar na carlinga a seu lado ao lado do seu coraccedilatildeo aquela

que dali em diante seria a companheira de todos os dias a companheira

indefectiacutevel de todos os aviadores a Morterdquo (FLORBELA ESPANCA 1998

129)

A produccedilatildeo intertextual desses dois contos traz-nos um imaginaacuterio voltado aos

princiacutepios fundadores de conceitos e referecircncia humana Florbela baseia-se na

representaccedilatildeo da infacircncia como elemento fundador da personalidade e do

caraacutecter ou seja a figura do pai que nunca a reconheceu em vida e por outro

lado na figura de Deacutedalo e Iacutecaro tendo o pai a dualidade em sua referecircncia

paterna Eacute assim que de ldquotentaccedilatildeo em tentaccedilatildeo de fraqueza em fraqueza os

compromissos de consciecircncia levam um homem honrado agrave praacutetica de todos os

crimeshelliprdquo22

22 Fragmento do conto O Inventor de Florbela Espanca As Maacutescaras do Destino1998122

24

22 - A MULTICIPLIDADE DO HEROacuteI

ldquo A vida parada e recolhida cria heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tarderdquo23

Ao encontrarmos facetas mitoloacutegicas entre as leituras de Florbela natildeo se pode

descartar a visatildeo do heroacutei que a autora engendrou na figura de seu irmatildeo

Apeles Tiacutetulo esse dado a homens excepcionais como Ulisses que eram

venerados por seu povo da mesma forma Florbela nutria uma verdadeira

veneraccedilatildeo que a levou a personificar o Aviador a um heroacutei merecedor de

honrarias e apesar da miacutesera condiccedilatildeo de mortal foi-lhe atribuiacutedo qualidades

fiacutesicas e morais dignas de um semideus ldquo A vida parada e recolhida cria

heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tardehellip o pincel de geacutenio daacute os uacuteltimos

retoques ao cenaacuterio de epopeiahellip laacute em cima a formidaacutevel apoteose desdobra-

se no meio do pasmo das coisas Eacute um homem que tem asas E as asas

pairam descem rodopiam ascendem de novo giram latejam batem ao sol

mais aacutegeis e mais robustas mais leves e mais possantes que as das aacuteguias Eacute

um homem A face eneacutergica vincada a cinzel emerge extraordinaacuteria da vida

intensa na indecisatildeo dos contornos que lhe fazem vagos e paacutelidos um vago

pano de fundo a face e as matildeoshellipOs muacutesculos da face adivinham na forccedila

brutal das maxilas cerradas Nos olhos leva visotildees que os filhos dos homens

natildeo conhecem Os olhos dele natildeo se vecircem olham para dentro e para fora satildeo

pedras como as das estaacutetuas e vecircem mais e mais para aleacutem do que as

miacuteseras pupilas humanas Satildeo astrosrdquo (FLORBELA ESPANCA 199838 e 39)

Esta mesma condiccedilatildeo eacute dada ao Inventor autor da imaginaccedilatildeo de Florbela

ldquoRealizara os seus sonhos todos os seus sonhos Que havia mais agora Jaacute

os homens podiam sulcar os ares sem medo aos vendavais agraves coacuteleras brutais

da Natureza jaacute o ceacuteu se podia coalhar de asas como o mar de velas Todo o

homem poderia ter sem perigo e sem riscos a cobiccedilada sensaccedilatildeo de

comandar nos elementos como um semideusrdquo (FLORBELA ESPANCA

1998133)

Sabemos que o heroacutei constitui o assunto da poesia eacutepica ele tem a sua

maneira proacutepria de agir pela sua coragem e bravura e prossegue objectivos

23 Fragmento do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca198837 e 38

25

bem determinados que ao longo de sua trajectoacuteria lhe satildeo atribuiacutedos cada qual

com sua importacircncia e valor Eacute dado a ele tambeacutem o poder de decisatildeo ora

sobre seus actos ora sobre si mesmo Isso como forma de valorizar sua

sabedoria e supremacia diante daqueles a quem defendia Assim se apresenta

o heroacutei dos contos de Florbela homem-deus detentor de toda visatildeo forte

dominador senhor supremo de seu destino a quem eacute concedido um lugar

eterno junto aos astros

A realidade fictiacutecia da mitologia eacute comparada aqui a realidade autecircntica

Florbela interessa-se pelo seu heroacutei fictiacutecio como se fosse ou tratasse de uma

pessoa real com isso podemos dizer que a escrita ficcional de Florbela eacute

mimese porque a realidade de sua vida humana eacute o seu material de escrita ela

consegue transformar a realidade objectiva na realidade subjectiva vivencial

razatildeo por que nos deixamos influenciar pela sua trajectoacuteria de vida em seus

escritos Isso justifica o fato da ldquovaliosa bravurardquo ndash por uma valiosa pintura - de

seu heroacutei ser retratado em uma tela por um titatilde24 personifica assim a grande

luta travada com as forccedilas da natureza ldquoEacute um Rembrandt pintado por um titatilderdquo

(FLORBELA ESPANCA 199839) A sua proacutepria natureza humana A propoacutesito

disso parece mais reportar ao paradoxo entre o bem e o mal que lutam

constantemente pelo domiacutenio da razatildeo interior talvez alvo de Florbela

Eacute interessante observar a relaccedilatildeo que existe entre o ldquohomem com asasrdquo com

as Harpias25 que na multi-significaccedilatildeo de seu discurso nos projecta a uma

realizaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo na figura do heroacutei alado em uma transposiccedilatildeo

imaginaacuteria com uma pluralidade de sentidos que poderia ocultar um sentido

uacutenico o seu proacuteprio desejo ou o desejo de arrebatar a alma de seu morto

Tambeacutem vemos a intertextualidade corrente na pessoa de Ulisses26 o heroacutei

grego navegante Robson Crusoeacute27 Piratas dos Sete Mares28 aos capitatildees e

24 Referecircncia a segunda geraccedilatildeo dos deus mitoloacutegicos representantes das forccedilas da natureza e sem uma

personalidade bem vincadaos quais Hesiacuteodo enumerou em doze seis machos e seis fecircmeas Oceano Ceacuteu

Crio Hiperiacuteon Jaacutepeto Cronos Teia Reja Teacutemis Mnemoacutesine Febe e Teacutetis 25 As Harpias filhas de Electra (ela proacutepria filha do Titatilde Oceano) e de Taumas (filho de Ponto e de Geia)

pertencem agrave geraccedilatildeo dos preacute-oliacutempicos Elas satildeo irmatildes de iacuteris a mensageira dos deuses Representadas

quer como mulheres aladas com um aspecto fameacutelico quer como paacutessaros com cabeccedila de mulher as

Harpias residem nas ilhas Estroacutefades do mar Egeu ou ainda agraves portas do Taacutertaro Impetuosas e brutais

como a tempestade as Harpias satildeo - este eacute o sentido do seu nome - raptoras com garras fortes 26 Odisseu (na Greacutecia) ou Ulisses (em Roma) eacute um personagem da Iliacuteada e da Odisseacuteia de Homero Apoacutes

a derrota dos troianos ele iniciou uma viagem de dez anos de volta para Iacutetaca onde a sua mulher o espera

com uma fidelidade obstinada apesar da demora Essa viagem mereceu a criaccedilatildeo por Homero do poema

26

navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a

coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a

solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o

enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio

multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos

diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio

Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os

naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de

navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS

Maacutescaras do Destino 1998 p 125)

Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada

com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a

renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que

convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos

escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a

partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental

aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A

viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas

suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte

recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os

heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas

ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o

navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira

de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que

nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era

eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que

deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-

1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado

a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe

herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico

sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O

romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como

tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar

que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os

Lusiacuteadas de Camotildees

27

no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo

da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)

Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida

funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo

conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente

nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de

alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva

Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer

tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos

heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os

portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens

tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que

de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os

navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por

deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da

Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do

texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute

simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no

poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES

1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou

passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da

Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas

natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer

vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de

ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um

heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com

o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas

forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um

aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem

mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva

30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos

Lisboa

Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal

28

presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de

Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura

greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito

especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela

escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a

morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem

para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de

transformaccedilatildeo fantaacutestica

Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que

na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena

confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir

uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute

infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu

desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma

personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo

inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade

aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios

filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa

escritora o seu carma

Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei

que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora

quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem

ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles

desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma

as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista

o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de

movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos

esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do

pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam

As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes

ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)

29

CAPIacuteTULO 03

31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS

ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de

doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32

No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute

intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em

todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do

proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade

de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma

comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro

cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser

estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute

antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de

alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas

oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir

as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava

perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o

fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo

para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que

muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da

escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e

complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e

pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma

formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela

graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa

assume

32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122

30

De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete

agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem

Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites

nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute

podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido

conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao

inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um

ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma

palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a

intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda

e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas

pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma

onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo

(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um

recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o

renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio

inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a

matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada

ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe

mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata

cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de

voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e

122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso

indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam

tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele

o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as

suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um

emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados

que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e

intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica

33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ

31

Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado

transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas

Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e

que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a

imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de

dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada

dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais

significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa

escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e

sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-

as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar

inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos

era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade

existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)

A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio

Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo

tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens

que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de

tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta

ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a

proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo

Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante

notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe

de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e

medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca

mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho

branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a

socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua

presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo

(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo

deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo

queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a

intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia

humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para

32

sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo

pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no

mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais

apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva

enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente

foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)

A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja

como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo

atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute

reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em

busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito

junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos

satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad

que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que

han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas

mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como

meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do

inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os

aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias

34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939

33

32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO

ldquoA vida vem em ondas

Como o mar

Num indo e vindo infinitohelliprdquo35

A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente

foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram

o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios

da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-

portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo

ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura

universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e

nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a

esquizofrenia de sua alma

O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos

grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma

visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes

de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-

racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas

fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma

encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no

espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada

ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar

duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava

que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se

35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos

em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria

imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia

grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios

Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e

cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam

da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela

Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a

sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor

34

sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o

olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de

um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o

seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No

reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que

constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia

Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor

das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que

participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na

claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma

a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial

apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se

imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA

ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta

solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser

acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas

pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de

existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas

dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma

mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar

agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)

As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar

aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de

Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a

37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta

nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet

tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido

advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte

de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga

(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre

1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a

questatildeo (Hamlet ato III cena I)

38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)

que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era

destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar

35

travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes

questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente

humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a

vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa

loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz

a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair

numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua

frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico

mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de

transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a

morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano

capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas

ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de

integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de

totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma

ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade

de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida

dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a

seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas

iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives

mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas

dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a

cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute

perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras

velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida

de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar

costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras

por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e

grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme

O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu

amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do

Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para

toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos

36

Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser

salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma

dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo

desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave

liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos

secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a

uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo

desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a

boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia

pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a

mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais

alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se

nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira

as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de

alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora

julga existir no seu misteacuterio

O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e

forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e

sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que

orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente

num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das

contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute

traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas

que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas

figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas

narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um

imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e

39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII

mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a

bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por

alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua

tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar

Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A

histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito

em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que

aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas

aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma

37

refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus

fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a

sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades

da dinacircmica universal

Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar

simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos

narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos

siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um

contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da

efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma

capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde

diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e

exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia

essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel

mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo

do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do

Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)

e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo

social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)

na representatividade literaacuteria do mar

38

CAPIacuteTULO 04

41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA

ldquoGosto de ti apaixonadamente

De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo

De ti que me trouxeste pela matildeo

Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40

Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso

a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade

directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na

poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua

dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees

Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita

capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e

um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz

e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a

dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas

conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute

e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria

serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem

quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto

anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse

em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita

maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte

com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e

quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e

emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos

paradoxos

40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no

livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004

Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo

Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11

39

Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos

toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-

romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido

num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia

com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes

profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas

sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo

acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando

a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A

derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a

conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas

da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da

sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No

entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas

romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a

impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo

definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha

aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento

em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o

passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era

tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto

A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos

acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-

Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs

Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os

Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de

Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de

Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o

egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo

narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica

Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute

neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o

poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem

40

esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma

essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no

iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma

questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos

encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem

sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos

interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas

as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um

exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo

tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo

daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita

conteacutem

41

42 - UM PERCURSO COMPARATIVO

ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os

vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e

outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que

ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute

foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41

ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto

Olhou em roda natildeo achou ningueacutem

Por entre as campas arrastando o manto

Com lentos passos caminhou aleacutem

Abandonado neste chatildeo repousa

Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui

Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa

Sobre este peito que bateu por tirdquo42

A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e

o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-

romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua

linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa

o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se

O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando

proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos

moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na

literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror

Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou

comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas

circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de

comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e

sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos

41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda

Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos

42

ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de

outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou

Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)

Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal

de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma

optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada

pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada

no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus

sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa

suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois

dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)

Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade

todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional

natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute

afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute

tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima

do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo

Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela

e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a

prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua

intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a

dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as

influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente

que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz

directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para

a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o

intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era

partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada

por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das

rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de

branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza

43

ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas

Longas roupagens de neveda cor

Singela croa de virgiacutenias rosas

Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43

ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de

branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila

devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa

nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)

Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de

conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se

para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da

imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a

partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a

presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os

uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem

eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera

absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor

ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria

A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a

intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um

testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista

e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas

caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da

temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao

fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma

retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras

masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo

homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma

mulher

43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12

44

(hellip)

Mulher formosa que adorei na vida

E que na tumba natildeo cessei damar

Por que atraiccediloas desleal mentida

O amor eterno que te ouvi jurar

Amor engano que na campa finda

Que a morte despe da ilusatildeo falaz

Quem dentros vivos se lembrara ainda

ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)

Talvez que rindo dos protestos nossos

Gozes com outro dinfernal prazer

E o olvido cobriraacute meus ossos

Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44

Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o

vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as

bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis

e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma

essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o

podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA

ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de

sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a

eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos

na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto

com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais

de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas

palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o

esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal

seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu

passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre

44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9

45

que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as

matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos

das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam

para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)

Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno

num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista

melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias

possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela

um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica

natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem

fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo

intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas

rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso

consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo

intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas

solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou

com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a

todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas

as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os

sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado

daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)

Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do

Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais

significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO

MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do

quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e

estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que

desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo

da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina

agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das

espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute

presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos

46

ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido

Das sepulturas o gelado poacute

Dois esqueletos um ao outro unido

Foram achados num sepulcro soacuterdquo45

Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de

imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da

intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo

buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma

enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo

recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as

laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas

deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo

sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais

moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas

austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade

dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete

palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam

pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e

59)

Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao

ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram

escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia

literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo

exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde

ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais

tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo

merecida

45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos

47

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas

interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca

Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo

depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves

transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo

sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia

ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas

metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver

com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao

sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas

tambeacutem ao que relaciona a morte

A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua

eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela

mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e

sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo

quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade

que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas

personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a

humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de

enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e

sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas

e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o

que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte

presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais

condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus

contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e

desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse

interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural

equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes

interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute

Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem

uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses

48

elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o

inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela

tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses

elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma

civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor

sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam

sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do

intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea

Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o

menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que

para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro

compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo

que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou

seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua

imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que

essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar

atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a

outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual

proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque

esconde-se ou projecta-se no discurso do outro

Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o

caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo

relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens

marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um

significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um

desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos

de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e

fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave

realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande

maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe

um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo

46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de

Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360

49

obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a

escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada

Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a

infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute

aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo

espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a

verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes

50

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Page 7: AS MÁSCARAS SIMBÓLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA … Jaqueline... · 2019-10-31 · A narrativa ficcional não é o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca, mas, assim como

7

ABSTRACT

Florbela Espanca is not only well-known for her narrative fiction but also for her

poems Her stories have its particular mark which is characterized by such

stories asRoot and Flower The Night and the Star of Dawn The Spring

The Bashful Lover and Lilial Sister Through the analysis we can unmask the

gaps that make-up the fascinating reading of mosaic Passing

through referential influence of the Mythology of Gods to heroic consecration

of their children (semi-gods) an indispensable source for the appearance of

symbolic representation of the sea and its respective interpretative elements as

the base for the projection of the state of souls of the sentimental writers in

which the theme of pain permits the reutilization of an image in another textual

construction where superposition absorption and the transformation of a

multiplicity of other texts This elaborated style of writing makes it possible for

the study of comparisons with other texts Here this intertextual relation with a

poem of the consecrated ultra-romantic writer Soares de Passos permits the

observation of the decadent and ultra-romantic tendency in Florbela so that it

confirms its inner conflict in detriment to its existence Even so it doesnt stop

reaffirming her as a writer of her time She was named Poetess of Love by

Joseacute Reacutegio and it also highlights The Extraordinary Force of Nature Violent

Passion always alighted by a Volcano and desires which was the life and work

Of Florbelardquo

Key Words Analysis Comparison Story Decadence Florbela Espanca Hero

Interpretation Intertextuality Sea Myth Poetry Symbolism Sentimentality

Ultra-romanticism

8

INTRODUCcedilAtildeO

A primeira reflexatildeo que vem a nossa mente quanto que por acaso ouvimos as

primeiras duas estrofes de um dos sonetos de Florbela Espanca ldquoFanatismordquo3

eacute de estar diante de um texto onde emana o que existe de mais sentimental em

um autor Sem ainda conhecer os desiacutegnios desta ldquoBela princesa da planiacutecie

Alentejanardquo4 podemos perceber que buscava dizer algo mais que apenas as

belas palavras proferidas em seus versos que eram imbricados de metaacuteforas

fortes onde mostrava-se irmatilde companheira amante princesa magoada louca-

fanaacutetica inconstante e natildeo deixava ao contraacuterio do poema ldquoFumordquo5 fugir de

seus dedos a essecircncia de uma autora que buscava as respostas para sua

inquietude na projecccedilatildeo da figura ideal

As vicissitudes de seu tempo natildeo inibiram-na de mostrar seu grande talento

para a poesia e contos em alguns momentos de sua escrita Florbela gritava

por liberdade natildeo soacute de expressatildeo e participaccedilatildeo no meio artiacutestico mas por

uma liberdade intimista que para o seu tempo era mal interpretada pois a

sociedade concebia a figura da mulher fraacutegil delicada recatada e submissa agraves

vontades e desejos masculinos o que Florbela tentava sem o querer ser As

agruras desse tormento vivido pela mulher seria entatildeo imortalizado pela

escritora

Ao lermos seus escritos sem duacutevida entramos por um caminho de vastas

indagaccedilotildees buscando perceber qual seria a grande inquietude que envolvia

esta mulher em momentos de impacto com o real e a tatildeo grandiosos momentos

de nostalgia amorosa levando-nos a apreciar a natureza tal qual como eacute

descrita em seus poemas assim como estabelecermos uma intimidade com

uns dos temas que mais aflige as pessoas mas que de uma certa forma nos

coloca frente a frente com uma realidade a qual natildeo podemos fugir ndash a morte

Essa temaacutetica podemos dizer que eacute a mais forte tendecircncia dos escritos de

Florbela natildeo soacute na poesia que se faz presente na maioria de seus livros mas

tambeacutem em seus contos envolvendo-nos em situaccedilotildees onde o tema morte

passa a impulsionar nossa expectativa em nos descobrir ou redescobrir diante

da vida ou do mais profundo e iacutentimo desejo humano de conhecer-mos a noacutes

3 Poema contido no livro de ldquoSoror Saudaderdquo publicado em 1923 4 Frase proferida por Duratildeo seu amigo fiel 5 Poema contido na livro de ldquoSoror Saudaderdquo

9

mesmos e infiltra-nos por caminhos incoacutegnitos que cobrem de maacutescaras nosso

destino assim como eacute citado no tiacutetulo de seu livro de contos6 o qual dedicou a

seu irmatildeo Apeles deixando-nos por vezes a margem de reflexotildees

existencialistas mas natildeo o existencialismo puro dos filoacutesofos questionadores

mas um existencialismo amoroso sensiacutevel capaz de nos inibir com subtilezas

representativas de um mesclado de tendecircncias literaacuterias que preenche seus

textos de extremo romantismo e passa para a evidecircncia dos fatos que vatildeo do

real ao ideal do acontecido a suposta consequecircncia

De fato que sua vida influenciou sua escrita7 tanto que nesta inquietante busca

pela pessoa ideal que era acometida a escritora levou a mulher a concretizar

sua indubitaacutevel certeza de que seria compreendida e aceita apenas depois de

repousada sua pena agraves matildeos da morte e descansar em teus braccedilos fato esse

descrito no poema ldquoAacute Morterdquo encontrado em sua mesa no dia em que suicidara

Soacute assim seria quebrado o encanto da escrita como natildeo o foi Foi sim

quebrado o encanto do escrever pois a escrita era a forma de agir sobre a sua

realidade mas o encanto da escrita permanece e esses ldquo que os vivos passem

adianterdquo8 como a proacutepria Florbela proferira E assim estaacute Florbela vive em sua

obra sua temaacutetica nos chega como notiacutecia surpreendente e nos envolve em

seus misteacuterios simboacutelicos Sua meacutetrica ao molde claacutessico e uma temporalidade

construiacuteda em seus escritos atraveacutes de seus livros de forma proposital nos

deixa perceber o que vai no iacutentimo de uma mulher parece que retrata com

transparecircncia as fantasias ou fases interiores do imaginaacuterio feminino que de

intreacutepida voluntariosa libertina amante insaciaacutevel inconstante passa a ser

casta pura virtuosa religiosa isso tudo sem deixar de ser extraordinariamente

apaixonada como ela mesma atesta sua proacutepria natureza ldquoSou filha da

charneca erma e selvagemrdquo9

Do mesmo modo que na poesia a Bela escritora mostra-nos seu talento para a

prosa em seu livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo Diferente da poetisa do ldquoeurdquo os

contos geralmente em terceira pessoa natildeo deixam de ter a marca registada

de Florbela a insatisfaccedilatildeo pela vida e a fuga atraveacutes da morte com fortes

mesclas de romantismo Outra caracteriacutestica presente neste livro eacute a ldquolacunardquo

6 Referecircncia ao livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo dedicado a seu irmatildeo Apeles 7 Referecircncia aos vaacuterios estudos feitos sobre a vida a escritora 8 Citaccedilatildeo retirado da dedicatoacuteria do livro ldquoAs Mascaras do Destinordquo 1998 33 9 Citaccedilatildeo do poema ldquoEsfingerdquo do livro Poesias Completas 2004 276

10

deixada a margem da interpretaccedilatildeo ou seja o que se leria nas entrelinhas do

texto Tais interpretaccedilotildees ficam a cargo do leitor que de certa forma interage

com as narrativas preenchendo-lhes o vazio deixado pela escritora ldquovaziordquo

esse que tambeacutem a acompanha nesta obra e a quem dedica ldquoeste livro eacute o

livro do meu mortordquo10 Na realidade Florbela queria deixar imortalizado seu

irmatildeo ldquoNatildeo queria que meu morto morresse comigohellipE escrevi estas

paacuteginashelliprdquo que foram de encontro a profundeza de seu pensamento ou seja

uma consciecircncia transcendental em caminho a ldquotalrdquo liberdade tanto desejada

que jaacute em versos reclamava

ldquoEu ponho-me a sonhar transmigraccedilotildees

Impossiacuteveis longiacutenquos milagrosas

Voos amplos ceacuteus distantes migraccedilotildees

Longehellip noutras esferas luminosas

E pelo meu olhar passam visotildees

Ilhas de bruma e naacutecar drsquooiro e rosashellip

E eu penso que liberta de grilhotildees

Hei-de aportar agraves Ilhas misteriosasrdquo11

Esse doce misteacuterio que cheio da natureza de ser mulher eacute o que intriga-nos a

cada leitura e nos faz buscar conhecer mais de sua vida para entendermos sua

obra Seus contos nos mostram uma Florbela detentora de uma

intertextualidade viva que no decorrer das narrativas remete-nos a outros

tempos a outras leituras Cria um ambiente nostaacutelgico e contemplativo de

vasto campo simboacutelico percorrendo as mais variadas fontes para sua

inspiraccedilatildeo criadora com isso ao depararmos com o quadro descritivo na

narrativa recriamos esse quadro imaginaacuterio em nossa mente como em um

conto de fadas ali misturam-se fatos reais e imaginaacuterios tempos reais e

imaginaacuterios personagens reais e imaginaacuterias tudo ldquo eacute luminosas e exaltante

10 Citaccedilatildeo da dedicatoacuteria do livro ldquoAs maacutescaras do Destinordquo 1998 32 11 Poema ldquoLibertardquodo livro Poesia Completa 2004 75

11

emoccedilatildeordquo foi enchido de ldquotoda a espiritualidade beleza dolorosa e humildade e

acima de tudo as almasrdquo criadas ldquosatildeo gritos e soluccedilos de amorrdquo12

Diante disso o foco do estudo e pesquisa sobre Florbela Espanca se limitaraacute

em um levantamento analiacutetico e criacutetico dando vaacuterias possibilidades de

interpretaccedilatildeo bem como referecircncias intertextuais que satildeo citadas e ora

aparecem em seus contos no livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo Tal estudo

objectiva um conhecimento interpretativo e comparativo das leituras feitas por

Florbela e o modo como vieram a influenciar e dar sustentabilidade ao enredo

dos contos Quem sabe poderemos conhecer um pouco mais dessa misteriosa

mulher que dizia natildeo conhece a si mesma

O que sou eu AmorSei laacute que sou

Sou tudo e nada grande e pequenina

Sou a que canta uma ilusatildeo divina

Sou a que chora um mal que acabou

Eu sei laacute que quimera me beijou

E nunca o soube assim desde pequenina

Haacute neste mundo tanta amarga sina

A minha eacute saber nunca quem sou

Esfinge sonho tonto de desejos

Na tua boca sou uma asa aberta

A palpitar vermelha como os beijos

Andorinhahelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellipa voejar13

helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip

helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip

12 Citaccedilatildeo da dedicatoacuteria do livro ldquoAs maacutescaras do Destinordquo 1998 33 13 Poema sem tiacutetulo editado no livro ldquoEsparsos de Florbelardquo em Poesia Completa 2004 78

12

CAPIacuteTULO 01

11 - ENQUADRAMENTO TEOacuteRICO

Na literatura actual eacute frequente apontar-se como um dos factores de

textualidade a referecircncia - expliacutecita ou impliacutecita ndash a outros textos tomando estes

um sentido bem amplo (orais escritos visuais etc) A esse diaacutelogo entre textos

daacute-se o nome de intertextualidade

Eacute evidente que a intertextualidade estaacute ligada ao conhecimento de mundo que

deve ser compartilhado ou seja comum ao produtor e ao receptor do texto

Desta forma pressupotildee um universo cultural muito amplo e complexo pois

implica antes de tudo na identificaccedilatildeo e no reconhecimento de remissotildees a

obras ou a textostrechos mais ou menos conhecidos aleacutem de exigir do

interlocutor a capacidade de interpretar a funccedilatildeo daquela citaccedilatildeo ou alusatildeo em

questatildeo

Todas as questotildees ligadas agrave intertextualidade influenciam tanto o processo de

produccedilatildeo como o de compreensatildeo de textos o importante eacute natildeo encararmos a

intertextualidade apenas como a identificaccedilatildeo da fonte e sim que nos

preocupemos em estudaacute-la como um enriquecimento da leitura e da produccedilatildeo

de textos e sobretudo tentando mostrar a funccedilatildeo da sua presenccedila na

construccedilatildeo e no(s) sentido(s) dos textos

Como se pode notar na constituiccedilatildeo da proacutepria palavraldquointertextualidaderdquo

significa relaccedilatildeo entre textos Considerando-se texto num sentido lato como

um recorte significativo feito no processo ininterrupto de semiose cultural isto eacute

na ampla rede de significaccedilotildees dos bens culturais Pode-se afirmar que a

intertextualidade eacute inerente agrave produccedilatildeo humana O homem sempre lanccedila matildeo

do que jaacute foi feito em seu processo de produccedilatildeo simboacutelica Assim sendo o

texto como objecto cultural tem uma existecircncia fiacutesica que pode ser apontada e

delimitada um filme um romance um anuacutencio uma muacutesica Entretanto esses

objetos natildeo estatildeo ainda prontos pois destinam-se ao olhar agrave consciecircncia e agrave

recriaccedilatildeo dos leitores Cada texto constitui uma proposta de significaccedilatildeo que

natildeo estaacute inteiramente construiacuteda A significaccedilatildeo se daacute no jogo interpretativo

entre o texto e seu destinataacuterio Este uacuteltimo eacute um interlocutor ativo no processo

de significaccedilatildeo na medida em que participa do jogo intertextual tanto quanto o

autor

13

A intertextualidade se daacute pois tanto na produccedilatildeo como na recepccedilatildeo da grande

rede cultural de que todos participam Filmes que retomam filmes quadros que

dialogam com outros propagandas que se utilizam do discurso artiacutestico

poemas escritos com versos alheios romances que se apropriam de formas

musicais tudo isso satildeo textos em diaacutelogo com outros textos intertextualidade

Um texto remete a outro para defender as ideias nele contidas ou para

contestar tais ideias isso se daacute atraveacutes de um estudo comparativo entre textos

que ligam-se pela elaboraccedilatildeo artiacutestica de seu criador Eacute atraveacutes da anaacutelise

comparativa que tomamos ciecircncia da emergecircncia simboacutelica existente entre os

textos e a que niacutevel se daacute tal emergecircncia quanto agrave diacronia e sincronia que os

ligam Em qualquer niacutevel a produccedilatildeo simboacutelica eacute pois sempre uma retomada

de outras produccedilotildees perfazendo um jogo infinito que enreda autores e leitores

Apropriando-nos entatildeo de Schneider podemos afirmar

ldquoO texto literaacuterio eacute um palimpsesto O autor antigo escreveu uma lsquoprimeirarsquo vez

depois sua escritura foi apagada por algum copista que recobriu a paacutegina com

um novo texto e assim por diante Textos primeiros inexistem tanto quanto as

puras coacutepias o apagar natildeo eacute nunca tatildeo acabado que natildeo deixe vestiacutegios a

invenccedilatildeo nunca tatildeo nova que natildeo se apoacuteie sobre o jaacute-escritordquo (SCHNEIDER

199071)

No sentido estrito a palavra texto remete a uma ordem significativa

verbal Dentro dessa ordem a literatura vale-se amplamente do recurso

intertextual consciente ou inconscientemente Em razatildeo disso a

intertextualidade faz-se operador de leitura Eacute importante marcar os primoacuterdios

de Bakhtin em relaccedilatildeo a esses estudos divulgados por Juacutelia Kristeva Eacute dela o

claacutessico conceito de intertextualidade ldquo todo texto se constroacutei como mosaiacuteco de

citaccedilotildees todo texto eacute absorccedilatildeo e transformaccedilatildeo de um outro textordquo

(KRISTEVA 197464) Na verdade a intertextualidade inerente agrave linguagem

torna-se expliacutecita em todas as produccedilotildees literaacuterias que se valem do recurso da

apropriaccedilatildeo colocando em xeque a proacutepria noccedilatildeo de autoria Eacute o que vamos

observar ao longo do estudo no conto ldquoA Mortardquo em ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo

de Florbela Espanca temos aqui um bom exemplo do que se define como

intertextualidade as relaccedilotildees entre textos a citaccedilatildeo de um texto por outro

enfim o diaacutelogo entre textos Sendo assim para entender um texto na sua

totalidade eacute preciso conhecer o(s) texto(s) que nele fora(m) citado(s)

14

Eacute nesse contexto que Kristeva membro actuante da criacutetica francesa elabora

seu conceito de intertextualidade considerando que todo texto se constroacutei como

ldquomosaico de citaccedilotildeesrdquo Esse entendimento acarreta a consideraccedilatildeo de que a

intertextualidade eacute um fenoacutemeno que se encontra na base do proacuteprio texto

literaacuterio imbricada com a inserccedilatildeo deste num muacuteltiplo conjunto de praacuteticas

sociais relevantes A partir de Kristeva ldquotextordquo passa a ser entendido como o

evento situado na histoacuteria e na sociedade que natildeo apenas reflecte uma

situaccedilatildeo mas eacute essa proacutepria situaccedilatildeo apagando linhas divisoacuterias entre as

disciplinas e constituindo um cruzamento entre diferentes superfiacutecies textuais e

distintas aacutereas do saber cientiacutefico e da esfera artiacutestica ldquoPelo seu modo de

escrever lendo o corpus literaacuterio anterior ou sincroacutenico o autor vive na histoacuteria

e a sociedade se escreve no textordquo (KRISTEVA 197498)

A partir dos postulados deste conceito observamos que a intertextualidade

reflecte a concepccedilatildeo do texto literaacuterio como carregado de outros textos

inclusive do ldquotextordquo da realidaderdquo E eacute essa realidade polifoacutenica de vivecircncia

tumultuosa e inquietante de dissabores intriacutensecos e por vezes

transcendentais de acontecimentos filtrados atraveacutes de sua proacutepria

sensibilidade e sua imaginaccedilatildeo fantaacutestica que Florbela Espanca tem

manifestado para que seja compreendido seus misteacuterios de forma a dar mais

realce atraveacutes das vaacuterias formas de compreensatildeo e interpretaccedilatildeo intertextual e

comparativa de sua obra Neste sentido a teoria intertextual e comparativa

seraacute um guiatildeo a nortear um trabalho na tentativa de conhecermos essa

enigmaacutetica escritora que foi Florbela Espanca E eacute dela o incentivo para um

maior entendimento daquilo que nos deixou ldquoPara mim Para ti Para ningueacutem

Quero atirar para aqui negligentemente sem pretensotildees de estilo sem

anaacutelises filosoacuteficas o que os ouvidos dos outros natildeo recolhem reflexotildees

impressotildees ideias maneiras de ver de sentir ndash todo o meu espiacuterito paradoxal

talvez friacutevolo talvez profundo Compreendi por fim que nada compreendi que

mesmo nada poderia ter compreendido de mimhellipRestam-me os outroshellip

talvez por eles possa chegar agraves infinitas possibilidades do meu ser misterioso

intangiacutevel secretordquo (FLORBELA ESPANCA 199833)14

14 Fragmento retirado do livro ldquoDiaacuterio do Uacuteltimo Anordquo Bertrand Editora

15

A proposta de entendimento intertextual traacutes um reflexo de sua existecircncia

registado em sua ldquoDivina Comeacutediardquo15 pelos seus ldquoVersosrdquo16

ldquoVersos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip

Pedaccedilos de sorrisos branca espuma

Gargalhadas de luz cantos dispersos

Ou peacutetalas que caem uma a umahellip

VersosSei laacute Um verso eacute o teu olhar

Um verso eacute o teu sorriso e os de Dante

Eram o seu amor a soluccedilar

Aos peacutes de sua estremecida amante

Meus versos Sei eu laacute tambeacutem que satildeohellip

Sei laacute Sei laacute Meu pobre coraccedilatildeo

Partidos em mil pedaccedilos satildeo talvezhellip

Versos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip

Meus soluccedilos de dor que andam dispersos

Por este grande amor em que natildeo crecircsrdquo

15 Referecircncia a Obra de Dante Alighieri A Divina Comeacutedia uma viagem ao inferno purgatoacuterio e ao

paraiacuteso Aqui em relaccedilatildeo a vida de Florbela a palavra comeacutedia tem duplo significado o de origem dando

seguimento bom ao desenlace das personagens e em seu sentido coacutemico aos factores da inconstacircncia da

escritora 16 Referecircncia ao poema de Florbela escrito em O livro Drsquoele Poesia Completa2004 208

16

13 - ABORDAGENS SOBRE ldquoAS MAacuteSCARAS DO DESTINOrdquo ldquoOs contos satildeo como ela - siacutembolo de permanecircncia no pensamento da terra fio

de amor que manteacutem a sua magneacutetica forccedila saudade de tudo que podia

significar felicidade e expressatildeo do afectordquo17

Dedicada ao seu irmatildeo Apeles Demoacutestenes da Rocha Espanca ndash ldquoAs

Maacutescaras do Destinordquo eacute uma obra inspirada na tristeza e dor que a perda do

irmatildeo causa em Florbela Sua dedicatoacuteria ldquoeacute como um punho culpado que

Florbela assenta no proacuteprio peitordquo (FLORBELA ESPANCA 199825) assim diz

Agustina Bessa-Luiacutes autora do prefaacutecio escrito em 1979 que orienta-nos sobre

as condiccedilotildees de leitura que envolve esta obra

A dedicatoacuteria escrita por Florbela comprova o amor de irmatildeos Apeles era

ldquoAquele que das mesmas entranhas foi nascido que ao calor do mesmo

amplexo foi gerado Aquele que traz no rosto as linhas do teu rosto nos olhos a

aacutegua clara dos teus olhos o teu Amigo o teu Irmatildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA

199831 e 32) Ela escrevia tais palavras como uma matildee que acabara de

perder a um filho ldquopara que tua mocidade natildeo trema de o ver partir um dia

bom e meigo para que vivas na ilusatildeo bendita de teres um filho forte e belo

para te obrigar a encarar sorrindo as coisas vis e feias deste mundohelliprdquo

(FLORBELA ESPANCA 199831) Na realidade tais clamores professados soacute

a uma matildee que perdera seu filho eacute permitido senti-los

Escrita no final de 1927 reuacutene oito contos denominados ldquoO Aviador ldquoA Mortardquo

ldquoOs Mortos Natildeo Voltamrdquo ldquo O Resto Eacute Perfumerdquo ldquoA Paixatildeo de Manuel Garciardquo

ldquo O Inventorrdquo ldquoAs Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquoO Sobrenaturalrdquo

Como demonstram os tiacutetulos dados aos contos o tema ldquomorterdquo eacute o ponto de

convergecircncia entre os enredos e vem reforccedilar o pendor funesto da obra de

Florbela natildeo apenas pelo desaparecimento do irmatildeo mas que jaacute fazia parte

da proacutepria insatisfaccedilatildeo intimista que a escritora detinha Nesta altura por forccedilas

das circunstacircncias parecia estar desvinculada da vida como uma morta e sua

perpeacutetua busca lhe assegura uma espeacutecie de eternidade

Natildeo participando do enredo assim sendo em 3ordf pessoa mostrava-se uma

observadora a narrar fatos onde a realidade se confunde com o imaginaacuterio

17 Fragmento escrito por Agustina Bessa-Luiacutez retirado do prefaacutecio do livro As Maacutescaras do Destino de

Florbela Espanca 199810

17

fantaacutestico e soacute nos traacutes agrave lucidez da compreensatildeo devido as referecircncias

intertextuais as quais satildeo comuns aos contos pois ldquo o fantaacutestico se caracteiza

por una instrusioacuten brutal del misteacuterio en el marco de la vida real y estaacute ligado

generalmente a los estados moacuterbitos de la conciencia que en los fenoacutemenos

de pesadilla e de deliacuterio proyecta ante siacute imaacutegenes de sus angustias e de sus

terroresrdquo (GEORGES JEAN 1889 68 e 69) Mas a escritora natildeo desvincula-se

de sua obra uma forte tendecircncia de Florbela Marcando presenccedila no conto ldquoO

Resto Eacute Perfumerdquo interage como personagem assim assume o relato como

se procedesse de outro narrador para que pudesse penetraacute-lo e manter suas

caracteriacutesticas inquietantes e paradoxais acrescentando uma forte dose de

existencialismo e a presenccedila do ldquoEurdquo que vem reforccedilar a categoria de seus

relatos miacuteticos Aqui o ldquofantaacutesticordquo se confunde com o ldquomaravilhosordquo isso

devido aos relatos mitoloacutegicos que implica durante a leitura em um

redireccionamento do leitor a outro espaccedilo a outro tempo onde temos a ilusatildeo

de vivermos por um breve momento em outro lugar Florbela nos permite a

viagens imaginaacuterias em que o maravilhoso de seus contos dependeraacute de uma

infinidade de interpretaccedilotildees que natildeo seratildeo necessariamente interpretaccedilotildees

racionais pois as interpretaccedilotildees paralelas e divergentes satildeo sempre possiacuteveis

devido a riqueza do conto em si que no caso de Florbela estatildeo ligados aos

estados moacuterbidos de sua consciecircncia

Sabemos que algum dos elementos imaginaacuterios dos contos de Florbela estaacute

ligada ao realismo de sua histoacuteria verdadeira e isso eacute capaz pela virtudes que

soacute os contos de fadas pode proporcionar apesar de sua vida inconstante e

cheia de maacutegoas soube mascarar seu inconsciente e dar a seu relato um

intercacircmbio gracioso e sentimental com sua vida Por sua vez tais relatos

remetem-se a duas vertentes essenciais nos contos a primeira de propagar as

formas simboacutelicas durante a histoacuteria e a segunda de inserir essas formas

mediante a expansatildeo de sua escrita atraveacutes dos contos Um bom exemplo

disso eacute a clareza de como um conto complementa outro Atentemos para os

detalhes simboacutelicos de ldquoO Inventorrdquo que parece encerrar-se em ldquoO Aviadorrdquo da

mesma forma acontece em ldquoO Sobrenaturalrdquo e ldquoOs Mortos natildeo Voltamrdquo ldquoAs

Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquo A Paixatildeo de Manuel Garciardquo por fim

vemos a profunda reflexatildeo sobre a vida em ldquoO Resto eacute Perfumerdquo culminando

no conto ldquoA Mortardquo que tem em seu final a imersatildeo nas aacuteguas elemento

18

comum em todos os contos que parece como siacutembolo de redenccedilatildeo Temos

aqui um quadro para um estudo comparativo minucioso entre os proacuteprios

contos

Como afirma Agustina Bessa-Luiacutes ldquo para ler a prosa eacute preciso compreender a

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199816) Neste contexto natildeo ousamos falar

do quadro complexo que a palavra ldquomulherrdquo como um ser social objectiva mas

sim na simplicidade do comportamento de vaacuterias mulheres numa soacute imagem

constante nos contos que sente no seu intimo a dor da perca A primeira

referecircncia aqui eacute da mulher-irmatilde que vecirc no uacutenico irmatildeo morto a decadecircncia de

si mesma ldquo seraacute em breve uma sombra na tua sombrardquo (FLORBELA

ESPANCA 199832) Da mulher-matildee e o vazio de sua dor silenciosa ldquo A pobre

matildee abafou um soluccedilo voltou-se e olhou o mortordquo (FLORBELA ESPANCA

1998112) E por fim da mulher-religiosa que busca na cristandade respostas

para seus questionamentos e refuacutegio para seu tormento ldquomais fraacutegil mais

luminosa continuava a rezar as suas oraccedilotildeeshelliporaccedilotildees de amor sacriacutelegas

blasfemas oraccedilotildees de pecadohellipDe pecado Natildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA

1998154) Assim concebo a mulher Bela a compreensatildeo de sua escrita estaacute

nos olhos de quem as vecirc e na sensibilidade de a conhecer Desta feita ldquoa fase

dos equiacutevocos com que a gesta amorosa que a serve com a permanente

invenccedilatildeo de objectos meritoacuterios eacute substituiacuteda por uma feacute na alma feacute que se

acompanha do terriacutevel sentimento de estar morta de natildeo ser mais do que a

aparecircncia dum espaccedilo vividordquo (FLORBELA ESPANCA 199823) diz Agustina

Bessa-Luiacutes

Nesta obra duas propriedades do texto satildeo facilmente perceptiacuteveis a

intertextualidade e a influecircncia exercida em cada conto Essa uacuteltima

envolvendo as fortes caracteriacutesticas da escritora Florbela Espanca Contudo o

texto se constroacutei agrave medida que retoma fatos jaacute conhecidos como eacute o caso das

vaacuterias citaccedilotildees de autores e personagens que ilustram o livro Nesse sentido

quanto mais amplo for o repertoacuterio do leitor o seu acervo de conhecimentos

maior seraacute a sua competecircncia para perceber como os textos dialogam uns

com os outros por meio de referecircncias alusotildees e citaccedilotildees Eacute assim que

Florbela queria que a entendecircssemos atraveacutes de um diaacutelogo intriacutenseco para

descobrirmos suas maacutescaras

19

CAPIacuteTULO 02 21 - ldquoSONHO DE IacuteCAROrdquo

ldquoVoar voar subir subir

Ir por onde for descer ateacute o ceacuteu cair

Ou mudar de cor anjos de gaacutes

Asas de ilusatildeo e um sonho audaz

Feito um balatildeo

No ar no ar eu sou assim

Brilho do farol aleacutem do mais

Amargo fim simplesmente sol

Fugir meu bem eacute ser felizhellip

Ir ateacute que um dia chegue enfim

Em que o sol derreta a cera ateacute o fimrdquo18

A mitologia eacute uma das concepccedilotildees mais geniais que a humanidade produziu

Os gregos instauraram uma categoria intermediaacuteria entre os homens e os

deuses o semideus criando assim os heroacuteis mitoloacutegicos Isso veio a dar

margem a novas investigaccedilotildees sobre os fenoacutemenos da realidade natural

levando ao questionamento da origem dos seres a qual obtiveram respostas

sem sentido concreto Com isso incorporaram a concepccedilatildeo de que a vida e

suas manifestaccedilotildees satildeo obras das forccedilas do espiacuterito que habita em cada um

de noacutes sendo tambeacutem responsaacutevel pela nossa maneira de ser e de agir Isso eacute

sem duacutevida um meio de penetrar atraveacutes da imaginaccedilatildeo no misteacuterio da

existecircncia humana Desta forma o mito consiste nos acontecimentos que se

repetem ao longo da histoacuteria natildeo tendo fim O homem reconhecendo em cada

acto quotidiano uma participaccedilatildeo nos grandes ciclos da vida se sente

participar da grande eternidade miacutetica Partindo de suas origens o homem

consegue viver integralmente e uma vez dentro da mentalidade miacutetica a

proacutepria morte pode ter sentido

18 Fragmento da canccedilatildeo ldquosonho de Iacutecarordquo escrito por Pisca e Claacuteudio Rebelo interpretaccedilatildeo do cantor

brasileiro Byafra

20

Com o intuito de imortalizar o momento de uma trageacutedia Florbela lanccedila matildeo de

aspectos mitoloacutegicos dentro de seus contos que muito nos lembra a triste

histoacuteria de Deacutedalo e Iacutecaro 19 mostrando que o espiacuterito humano de vencer

barreiras e limites nos impulsiona a superar nossas proacuteprias limitaccedilotildees

Alcanccedilar o espaccedilo e as estrelas lanccedilar-se ao infinito experimentar da

sensaccedilatildeo de liberdade interior e o desvendar do misterioso infinito eacute o que

norteia o enredo dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquo O Inventorrdquo

Praticamente todas as culturas destacam o ceacuteu como um lugar especial Esse

local era normalmente designado como a morada dos deuses Muitos povos

consideravam que as constelaccedilotildees eram representaccedilotildees dos seus mitos e

lendas Dessa forma o ceacuteu era um lugar divino e os homens somente o

alcanccedilavam quando eram convidados ou homenageados pelos deuses Mas o

atrevimento de uns culminou na desgraccedila de outros Apenas aqueles com

sabedoria e dotado de iacutentima consciecircncia disciplinar sobre sua condiccedilatildeo

humana conseguiam graccedilas aos olhos dos deuses O conflito interior era um

grande empecilho para que fatos tivessem o desenrolar bem sucedidos

Quando isso natildeo acontecia o homem reconhecia sua condiccedilatildeo de inferioridade

em relaccedilatildeo aos deuses e eram designados ldquofilhos dos homensrdquo

O aparecimento da referecircncia mitoloacutegica pressupotildee uma forte ligaccedilatildeo aos elos

do mito de fundaccedilatildeo que sustenta a harmonia familiar juntamente com

preceitos de moral tendo por priori a identidade pessoal na figura paterna

como eram conhecidos os grandes heroacuteis mitoloacutegicos por serem semideuses

Nesta constante nos eacute dado a conhecer a condiccedilatildeo humana que tambeacutem

aparece de forma intertextualizada como referecircncia ao quadro do flamengo

19 Iacutecaro era filho de Deacutedalo o construtor do labirinto que o rei Minos aprisionava o Minotauro um ser

com corpo de homem e cabeccedila de touro A lenda grega conta que Deacutedalo ensinou Teseu que seria

devorado juntamente com outros jovens pelo monstro como sair do labirinto Deacutedalo sugeriu que ele

deveria utilizar um novelo que deveria ser desenrolado a medida em que fosse penetrando no labirinto

Dessa forma apoacutes ter matado o monstro ele conseguiu fugir do labirinto O rei Minos ficou furioso e

prendeu Deacutedalo e o seu filho Iacutecaro no labirinto Como o rei tinha deixado guardas vigiando as saiacutedas

Deacutedalo construiu asas com penas dos paacutessaros colando-as com cera Antes de levantar voo o pai

recomendou a Iacutecaro que quando ambos estivessem voando natildeo deveriam voar nem muito alto (perto do

Sol cujo calor derreteria a cera) e nem muito baixo (perto do mar pois a unidade tornaria as asas

pesadas) Entretanto a sensaccedilatildeo de voar foi tatildeo estonteante para Iacutecaro que ele esqueceu a recomendaccedilatildeo e

elevou-se tanto nos ares a ponto da previsatildeo de Deacutedalo ocorrer A cera derreteu e Iacutecaro perdeu as asas

precipitando-se no mar e morrendo afogado

21

Brueghel (a Queda de Iacutecaro)20 que Florbela tatildeo bem ilustra com uma descriccedilatildeo

que mais parece uma tela ldquo Os filhos dos homens caacute em baixo deixam cair

nos campos a enxada que faz nascer o patildeo e florir as rosas os pescadores

largam os remos audaciosos que rasgam os mares e os rios e os filhos dos

homens mais duramente castigados os que habitam o formigueiro das cidades

param nas suas insensatas correrias de formigas e todos voltam a face para o

ceacuteurdquo (FLORBELA ESPANCA 199838) Aqui a intertextualidade sugerida

numa linha ecfraacutestica vai de encontro a misteriosa temaacutetica de Florbela

significando isto que o espiacuterito de aventura eacute frequentemente motivo de

incompreensatildeo e de grande solidatildeo

Do mesmo modo que impotildee a condiccedilatildeo de mortal ao homem Florbela o

enaltece dando-lhe honrarias e elevando-o a condiccedilatildeo de um deus ldquo Nos olhos

leva visotildees que os filhos dos homens natildeo conhecem Eacute um homem Deixou laacute

em baixo todo o fardo pesado e vil com que o carregam ao nascer deixou laacute

em baixo todas as algemas todos os feacuterreos grilhotildees que o prendiam toda a

suprema maldiccedilatildeo de ter nascido homem deixou laacute em baixo a sua sacola de

pedinte o seu bordatildeo de Judeu Errante e livre indoacutemito sereno na sua

miacutesera couraccedila de pano azul estendeu em cruz os braccedilos que transformou em

asasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199839) Ao atingir tal supremacia o homem

liberta-se de sua vida anterior e ganha autonomia na forma da liberdade

intriacutenseca conseguindo a superaccedilatildeo de sua forma decadente e de seus

conflitos interiores atraveacutes da liberdade celestial alcanccedilada Deacutedalo foi

conhecido como o arquitecto e artista da liberdade mesmo tendo construiacutedo o

labirinto que eacute a representaccedilatildeo do aprisionamento Aqui Florbela utiliza desse

argumento como se seus escritos fossem labiriacutenticos e teriacuteamos de encontrar

as palavras certas para desvendarmos seus caminhos encontrando neles

assim a liberdade Essa mesma liberdade transformada aqui no voo mais alto

que levaria a traacutegica morte

Apesar de mostrada diferentemente temos aqui mais uma vez a dualidade

que percorre a obra de Florbela o aprisionamento e a liberdade a vida e a

morte antiacuteteses que perfilam seu anseio humano ldquo Um dia julgou ter achado

20 Quadro de Broeghel demonstrando a queda de Iacutecaro no mar enquanto os camponeses prosseguem a sua

labuta diaacuteria

22

Oh aquele dia A embriaguez do homem que se igualou a Deus O coraccedilatildeo a

bater a bater a sentir-se grande demais para um peito tatildeo pequeno para um

tatildeo mesquinho destino A humidade das laacutegrimas a embaciar o olhar gigante

que se esquecera um momento de ter nascido pigmeu O artista o poeta o

inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de movimento e de

vida todos os que desbravavam caminhos os que talham abrem por entre os

matagais selvagens e as belas estradas largas do pensamento e das ideias As

palavras satildeo o muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes

ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)

Ao atingir o voo pleno por vezes nos afastamos da realidade natural e nos

lanccedilamos ao desconhecido sem saber o que nos espera Com isso a queda eacute

inevitaacutevel Neste seguimento vemos a intertextualidade presente sob o estigma

dos cuidados de Zeus filho de Cromo e pai dos deuses que concedeu aos

heroacuteis uma morada afastada dos homens onde os semideuses pudessem se

estabelecer nos confins da terra Eacute laacute que habitam com o coraccedilatildeo livre de

cuidados nas Ilhas dos Bem-Aventurados nas praias dos turbilhotildees profundos

do Oceano satildeo eles os heroacuteis afortunados a quem Florbela tambeacutem concede

a morada preparada como tuacutemulo perfeito para o descanso eterno A

representaccedilatildeo das deusas das aacuteguas na presenccedila das ninfas efidriacuteades21 que

simbolizam a graccedila criativa e fecundadora da natureza fazem aparecer a

presenccedila feminina que surge com o intuito de exaltar a forccedila interior que so a

mulher tem para defrontar situaccedilotildees desastrosas e encontrar soluccedilatildeo nos mais

tenebrosos conflitos bem como de dar um toque de suavidade ternura beleza

e leveza que soacute a performance feminina consegue impor ldquo hellipAs filhas dos

deuses ondinas sereias nereidas princesas encantadas acodem todas

pressurosashellipEm volta das asas mortas satildeo como flores desfolhadas em

redor dum esquife negro E olhamhelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 199842) A

sabedoria feminina evidencia-se ao se manifestar a ldquoque tinha nos olhos uma

nostaacutelgica tristeza humanardquo (FLORBELA ESPANCA 199846) como uma matildee

protectora que acalenta o filho em seu sono profundo e compreende com

tristeza a dor dos mortais ou quem sabe sua proacutepria dor na condiccedilatildeo de

imortal pois somente aos deuses era permitido o poder de arrebatar o espiacuterito

21 Referecircncia as ninfas das aacuteguas da mitologia grega

23

a um homem ldquo E aquele que tinha sido um filho dos homens ficou a dormir na

eternidade como se fora um filho dos deusesrdquo (FLORBELA ESPANCA

199846)

Como podemos perceber Florbela em sua construccedilatildeo literaacuteria delineou nas

entrelinhas dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquoO Inventorrdquo aspectos simboacutelicos

determinantes do aprisionamento e da libertaccedilatildeo humana natildeo somente no

sentido denotativo mas tambeacutem conotativo na multiplicidade de sentidos que

tais palavras propotildeem Apesar da evidecircncia colocada pela escritora ainda nos

remete a reflexatildeo pois o aprisionamento pode ser um meio de libertaccedilatildeo e a

libertaccedilatildeo um aprisionamento ldquohellipOlhou o ceacuteu profundohellipe achou Ser aviador

eacutehellipabraccedilar no mesmo abraccedilo o ceacuteu e o mar Na linguagem dos siacutembolos a

acircncora definindo a esperanccedila nunca poderaacute valer as asas que satildeo a

libertaccedilatildeo A acircncora agarra-se ao fundo e fica as asas abrem-se no espaccedilo e

penetram o ceacuteuhellipSeria aviador Quando pela primeira vez voou natildeo se

esqueceu de sentar na carlinga a seu lado ao lado do seu coraccedilatildeo aquela

que dali em diante seria a companheira de todos os dias a companheira

indefectiacutevel de todos os aviadores a Morterdquo (FLORBELA ESPANCA 1998

129)

A produccedilatildeo intertextual desses dois contos traz-nos um imaginaacuterio voltado aos

princiacutepios fundadores de conceitos e referecircncia humana Florbela baseia-se na

representaccedilatildeo da infacircncia como elemento fundador da personalidade e do

caraacutecter ou seja a figura do pai que nunca a reconheceu em vida e por outro

lado na figura de Deacutedalo e Iacutecaro tendo o pai a dualidade em sua referecircncia

paterna Eacute assim que de ldquotentaccedilatildeo em tentaccedilatildeo de fraqueza em fraqueza os

compromissos de consciecircncia levam um homem honrado agrave praacutetica de todos os

crimeshelliprdquo22

22 Fragmento do conto O Inventor de Florbela Espanca As Maacutescaras do Destino1998122

24

22 - A MULTICIPLIDADE DO HEROacuteI

ldquo A vida parada e recolhida cria heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tarderdquo23

Ao encontrarmos facetas mitoloacutegicas entre as leituras de Florbela natildeo se pode

descartar a visatildeo do heroacutei que a autora engendrou na figura de seu irmatildeo

Apeles Tiacutetulo esse dado a homens excepcionais como Ulisses que eram

venerados por seu povo da mesma forma Florbela nutria uma verdadeira

veneraccedilatildeo que a levou a personificar o Aviador a um heroacutei merecedor de

honrarias e apesar da miacutesera condiccedilatildeo de mortal foi-lhe atribuiacutedo qualidades

fiacutesicas e morais dignas de um semideus ldquo A vida parada e recolhida cria

heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tardehellip o pincel de geacutenio daacute os uacuteltimos

retoques ao cenaacuterio de epopeiahellip laacute em cima a formidaacutevel apoteose desdobra-

se no meio do pasmo das coisas Eacute um homem que tem asas E as asas

pairam descem rodopiam ascendem de novo giram latejam batem ao sol

mais aacutegeis e mais robustas mais leves e mais possantes que as das aacuteguias Eacute

um homem A face eneacutergica vincada a cinzel emerge extraordinaacuteria da vida

intensa na indecisatildeo dos contornos que lhe fazem vagos e paacutelidos um vago

pano de fundo a face e as matildeoshellipOs muacutesculos da face adivinham na forccedila

brutal das maxilas cerradas Nos olhos leva visotildees que os filhos dos homens

natildeo conhecem Os olhos dele natildeo se vecircem olham para dentro e para fora satildeo

pedras como as das estaacutetuas e vecircem mais e mais para aleacutem do que as

miacuteseras pupilas humanas Satildeo astrosrdquo (FLORBELA ESPANCA 199838 e 39)

Esta mesma condiccedilatildeo eacute dada ao Inventor autor da imaginaccedilatildeo de Florbela

ldquoRealizara os seus sonhos todos os seus sonhos Que havia mais agora Jaacute

os homens podiam sulcar os ares sem medo aos vendavais agraves coacuteleras brutais

da Natureza jaacute o ceacuteu se podia coalhar de asas como o mar de velas Todo o

homem poderia ter sem perigo e sem riscos a cobiccedilada sensaccedilatildeo de

comandar nos elementos como um semideusrdquo (FLORBELA ESPANCA

1998133)

Sabemos que o heroacutei constitui o assunto da poesia eacutepica ele tem a sua

maneira proacutepria de agir pela sua coragem e bravura e prossegue objectivos

23 Fragmento do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca198837 e 38

25

bem determinados que ao longo de sua trajectoacuteria lhe satildeo atribuiacutedos cada qual

com sua importacircncia e valor Eacute dado a ele tambeacutem o poder de decisatildeo ora

sobre seus actos ora sobre si mesmo Isso como forma de valorizar sua

sabedoria e supremacia diante daqueles a quem defendia Assim se apresenta

o heroacutei dos contos de Florbela homem-deus detentor de toda visatildeo forte

dominador senhor supremo de seu destino a quem eacute concedido um lugar

eterno junto aos astros

A realidade fictiacutecia da mitologia eacute comparada aqui a realidade autecircntica

Florbela interessa-se pelo seu heroacutei fictiacutecio como se fosse ou tratasse de uma

pessoa real com isso podemos dizer que a escrita ficcional de Florbela eacute

mimese porque a realidade de sua vida humana eacute o seu material de escrita ela

consegue transformar a realidade objectiva na realidade subjectiva vivencial

razatildeo por que nos deixamos influenciar pela sua trajectoacuteria de vida em seus

escritos Isso justifica o fato da ldquovaliosa bravurardquo ndash por uma valiosa pintura - de

seu heroacutei ser retratado em uma tela por um titatilde24 personifica assim a grande

luta travada com as forccedilas da natureza ldquoEacute um Rembrandt pintado por um titatilderdquo

(FLORBELA ESPANCA 199839) A sua proacutepria natureza humana A propoacutesito

disso parece mais reportar ao paradoxo entre o bem e o mal que lutam

constantemente pelo domiacutenio da razatildeo interior talvez alvo de Florbela

Eacute interessante observar a relaccedilatildeo que existe entre o ldquohomem com asasrdquo com

as Harpias25 que na multi-significaccedilatildeo de seu discurso nos projecta a uma

realizaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo na figura do heroacutei alado em uma transposiccedilatildeo

imaginaacuteria com uma pluralidade de sentidos que poderia ocultar um sentido

uacutenico o seu proacuteprio desejo ou o desejo de arrebatar a alma de seu morto

Tambeacutem vemos a intertextualidade corrente na pessoa de Ulisses26 o heroacutei

grego navegante Robson Crusoeacute27 Piratas dos Sete Mares28 aos capitatildees e

24 Referecircncia a segunda geraccedilatildeo dos deus mitoloacutegicos representantes das forccedilas da natureza e sem uma

personalidade bem vincadaos quais Hesiacuteodo enumerou em doze seis machos e seis fecircmeas Oceano Ceacuteu

Crio Hiperiacuteon Jaacutepeto Cronos Teia Reja Teacutemis Mnemoacutesine Febe e Teacutetis 25 As Harpias filhas de Electra (ela proacutepria filha do Titatilde Oceano) e de Taumas (filho de Ponto e de Geia)

pertencem agrave geraccedilatildeo dos preacute-oliacutempicos Elas satildeo irmatildes de iacuteris a mensageira dos deuses Representadas

quer como mulheres aladas com um aspecto fameacutelico quer como paacutessaros com cabeccedila de mulher as

Harpias residem nas ilhas Estroacutefades do mar Egeu ou ainda agraves portas do Taacutertaro Impetuosas e brutais

como a tempestade as Harpias satildeo - este eacute o sentido do seu nome - raptoras com garras fortes 26 Odisseu (na Greacutecia) ou Ulisses (em Roma) eacute um personagem da Iliacuteada e da Odisseacuteia de Homero Apoacutes

a derrota dos troianos ele iniciou uma viagem de dez anos de volta para Iacutetaca onde a sua mulher o espera

com uma fidelidade obstinada apesar da demora Essa viagem mereceu a criaccedilatildeo por Homero do poema

26

navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a

coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a

solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o

enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio

multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos

diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio

Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os

naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de

navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS

Maacutescaras do Destino 1998 p 125)

Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada

com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a

renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que

convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos

escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a

partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental

aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A

viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas

suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte

recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os

heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas

ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o

navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira

de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que

nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era

eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que

deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-

1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado

a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe

herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico

sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O

romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como

tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar

que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os

Lusiacuteadas de Camotildees

27

no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo

da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)

Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida

funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo

conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente

nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de

alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva

Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer

tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos

heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os

portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens

tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que

de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os

navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por

deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da

Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do

texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute

simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no

poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES

1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou

passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da

Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas

natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer

vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de

ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um

heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com

o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas

forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um

aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem

mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva

30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos

Lisboa

Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal

28

presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de

Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura

greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito

especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela

escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a

morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem

para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de

transformaccedilatildeo fantaacutestica

Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que

na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena

confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir

uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute

infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu

desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma

personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo

inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade

aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios

filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa

escritora o seu carma

Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei

que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora

quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem

ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles

desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma

as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista

o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de

movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos

esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do

pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam

As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes

ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)

29

CAPIacuteTULO 03

31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS

ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de

doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32

No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute

intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em

todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do

proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade

de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma

comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro

cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser

estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute

antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de

alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas

oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir

as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava

perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o

fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo

para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que

muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da

escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e

complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e

pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma

formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela

graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa

assume

32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122

30

De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete

agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem

Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites

nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute

podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido

conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao

inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um

ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma

palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a

intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda

e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas

pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma

onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo

(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um

recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o

renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio

inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a

matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada

ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe

mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata

cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de

voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e

122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso

indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam

tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele

o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as

suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um

emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados

que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e

intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica

33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ

31

Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado

transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas

Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e

que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a

imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de

dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada

dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais

significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa

escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e

sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-

as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar

inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos

era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade

existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)

A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio

Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo

tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens

que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de

tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta

ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a

proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo

Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante

notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe

de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e

medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca

mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho

branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a

socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua

presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo

(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo

deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo

queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a

intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia

humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para

32

sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo

pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no

mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais

apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva

enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente

foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)

A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja

como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo

atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute

reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em

busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito

junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos

satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad

que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que

han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas

mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como

meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do

inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os

aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias

34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939

33

32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO

ldquoA vida vem em ondas

Como o mar

Num indo e vindo infinitohelliprdquo35

A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente

foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram

o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios

da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-

portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo

ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura

universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e

nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a

esquizofrenia de sua alma

O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos

grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma

visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes

de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-

racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas

fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma

encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no

espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada

ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar

duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava

que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se

35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos

em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria

imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia

grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios

Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e

cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam

da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela

Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a

sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor

34

sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o

olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de

um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o

seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No

reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que

constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia

Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor

das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que

participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na

claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma

a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial

apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se

imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA

ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta

solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser

acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas

pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de

existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas

dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma

mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar

agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)

As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar

aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de

Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a

37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta

nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet

tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido

advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte

de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga

(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre

1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a

questatildeo (Hamlet ato III cena I)

38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)

que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era

destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar

35

travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes

questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente

humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a

vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa

loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz

a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair

numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua

frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico

mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de

transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a

morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano

capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas

ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de

integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de

totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma

ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade

de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida

dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a

seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas

iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives

mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas

dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a

cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute

perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras

velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida

de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar

costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras

por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e

grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme

O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu

amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do

Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para

toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos

36

Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser

salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma

dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo

desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave

liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos

secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a

uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo

desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a

boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia

pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a

mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais

alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se

nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira

as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de

alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora

julga existir no seu misteacuterio

O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e

forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e

sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que

orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente

num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das

contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute

traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas

que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas

figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas

narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um

imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e

39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII

mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a

bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por

alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua

tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar

Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A

histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito

em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que

aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas

aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma

37

refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus

fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a

sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades

da dinacircmica universal

Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar

simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos

narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos

siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um

contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da

efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma

capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde

diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e

exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia

essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel

mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo

do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do

Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)

e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo

social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)

na representatividade literaacuteria do mar

38

CAPIacuteTULO 04

41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA

ldquoGosto de ti apaixonadamente

De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo

De ti que me trouxeste pela matildeo

Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40

Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso

a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade

directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na

poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua

dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees

Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita

capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e

um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz

e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a

dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas

conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute

e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria

serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem

quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto

anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse

em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita

maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte

com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e

quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e

emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos

paradoxos

40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no

livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004

Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo

Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11

39

Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos

toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-

romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido

num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia

com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes

profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas

sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo

acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando

a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A

derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a

conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas

da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da

sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No

entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas

romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a

impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo

definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha

aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento

em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o

passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era

tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto

A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos

acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-

Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs

Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os

Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de

Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de

Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o

egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo

narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica

Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute

neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o

poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem

40

esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma

essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no

iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma

questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos

encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem

sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos

interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas

as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um

exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo

tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo

daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita

conteacutem

41

42 - UM PERCURSO COMPARATIVO

ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os

vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e

outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que

ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute

foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41

ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto

Olhou em roda natildeo achou ningueacutem

Por entre as campas arrastando o manto

Com lentos passos caminhou aleacutem

Abandonado neste chatildeo repousa

Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui

Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa

Sobre este peito que bateu por tirdquo42

A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e

o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-

romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua

linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa

o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se

O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando

proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos

moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na

literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror

Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou

comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas

circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de

comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e

sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos

41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda

Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos

42

ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de

outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou

Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)

Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal

de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma

optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada

pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada

no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus

sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa

suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois

dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)

Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade

todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional

natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute

afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute

tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima

do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo

Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela

e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a

prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua

intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a

dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as

influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente

que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz

directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para

a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o

intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era

partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada

por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das

rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de

branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza

43

ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas

Longas roupagens de neveda cor

Singela croa de virgiacutenias rosas

Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43

ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de

branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila

devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa

nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)

Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de

conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se

para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da

imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a

partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a

presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os

uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem

eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera

absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor

ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria

A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a

intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um

testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista

e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas

caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da

temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao

fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma

retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras

masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo

homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma

mulher

43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12

44

(hellip)

Mulher formosa que adorei na vida

E que na tumba natildeo cessei damar

Por que atraiccediloas desleal mentida

O amor eterno que te ouvi jurar

Amor engano que na campa finda

Que a morte despe da ilusatildeo falaz

Quem dentros vivos se lembrara ainda

ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)

Talvez que rindo dos protestos nossos

Gozes com outro dinfernal prazer

E o olvido cobriraacute meus ossos

Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44

Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o

vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as

bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis

e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma

essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o

podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA

ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de

sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a

eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos

na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto

com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais

de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas

palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o

esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal

seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu

passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre

44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9

45

que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as

matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos

das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam

para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)

Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno

num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista

melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias

possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela

um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica

natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem

fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo

intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas

rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso

consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo

intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas

solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou

com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a

todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas

as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os

sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado

daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)

Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do

Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais

significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO

MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do

quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e

estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que

desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo

da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina

agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das

espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute

presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos

46

ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido

Das sepulturas o gelado poacute

Dois esqueletos um ao outro unido

Foram achados num sepulcro soacuterdquo45

Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de

imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da

intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo

buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma

enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo

recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as

laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas

deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo

sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais

moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas

austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade

dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete

palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam

pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e

59)

Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao

ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram

escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia

literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo

exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde

ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais

tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo

merecida

45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos

47

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas

interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca

Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo

depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves

transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo

sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia

ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas

metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver

com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao

sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas

tambeacutem ao que relaciona a morte

A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua

eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela

mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e

sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo

quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade

que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas

personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a

humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de

enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e

sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas

e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o

que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte

presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais

condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus

contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e

desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse

interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural

equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes

interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute

Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem

uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses

48

elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o

inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela

tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses

elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma

civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor

sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam

sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do

intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea

Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o

menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que

para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro

compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo

que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou

seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua

imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que

essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar

atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a

outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual

proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque

esconde-se ou projecta-se no discurso do outro

Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o

caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo

relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens

marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um

significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um

desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos

de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e

fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave

realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande

maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe

um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo

46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de

Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360

49

obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a

escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada

Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a

infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute

aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo

espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a

verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes

50

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Page 8: AS MÁSCARAS SIMBÓLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA … Jaqueline... · 2019-10-31 · A narrativa ficcional não é o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca, mas, assim como

8

INTRODUCcedilAtildeO

A primeira reflexatildeo que vem a nossa mente quanto que por acaso ouvimos as

primeiras duas estrofes de um dos sonetos de Florbela Espanca ldquoFanatismordquo3

eacute de estar diante de um texto onde emana o que existe de mais sentimental em

um autor Sem ainda conhecer os desiacutegnios desta ldquoBela princesa da planiacutecie

Alentejanardquo4 podemos perceber que buscava dizer algo mais que apenas as

belas palavras proferidas em seus versos que eram imbricados de metaacuteforas

fortes onde mostrava-se irmatilde companheira amante princesa magoada louca-

fanaacutetica inconstante e natildeo deixava ao contraacuterio do poema ldquoFumordquo5 fugir de

seus dedos a essecircncia de uma autora que buscava as respostas para sua

inquietude na projecccedilatildeo da figura ideal

As vicissitudes de seu tempo natildeo inibiram-na de mostrar seu grande talento

para a poesia e contos em alguns momentos de sua escrita Florbela gritava

por liberdade natildeo soacute de expressatildeo e participaccedilatildeo no meio artiacutestico mas por

uma liberdade intimista que para o seu tempo era mal interpretada pois a

sociedade concebia a figura da mulher fraacutegil delicada recatada e submissa agraves

vontades e desejos masculinos o que Florbela tentava sem o querer ser As

agruras desse tormento vivido pela mulher seria entatildeo imortalizado pela

escritora

Ao lermos seus escritos sem duacutevida entramos por um caminho de vastas

indagaccedilotildees buscando perceber qual seria a grande inquietude que envolvia

esta mulher em momentos de impacto com o real e a tatildeo grandiosos momentos

de nostalgia amorosa levando-nos a apreciar a natureza tal qual como eacute

descrita em seus poemas assim como estabelecermos uma intimidade com

uns dos temas que mais aflige as pessoas mas que de uma certa forma nos

coloca frente a frente com uma realidade a qual natildeo podemos fugir ndash a morte

Essa temaacutetica podemos dizer que eacute a mais forte tendecircncia dos escritos de

Florbela natildeo soacute na poesia que se faz presente na maioria de seus livros mas

tambeacutem em seus contos envolvendo-nos em situaccedilotildees onde o tema morte

passa a impulsionar nossa expectativa em nos descobrir ou redescobrir diante

da vida ou do mais profundo e iacutentimo desejo humano de conhecer-mos a noacutes

3 Poema contido no livro de ldquoSoror Saudaderdquo publicado em 1923 4 Frase proferida por Duratildeo seu amigo fiel 5 Poema contido na livro de ldquoSoror Saudaderdquo

9

mesmos e infiltra-nos por caminhos incoacutegnitos que cobrem de maacutescaras nosso

destino assim como eacute citado no tiacutetulo de seu livro de contos6 o qual dedicou a

seu irmatildeo Apeles deixando-nos por vezes a margem de reflexotildees

existencialistas mas natildeo o existencialismo puro dos filoacutesofos questionadores

mas um existencialismo amoroso sensiacutevel capaz de nos inibir com subtilezas

representativas de um mesclado de tendecircncias literaacuterias que preenche seus

textos de extremo romantismo e passa para a evidecircncia dos fatos que vatildeo do

real ao ideal do acontecido a suposta consequecircncia

De fato que sua vida influenciou sua escrita7 tanto que nesta inquietante busca

pela pessoa ideal que era acometida a escritora levou a mulher a concretizar

sua indubitaacutevel certeza de que seria compreendida e aceita apenas depois de

repousada sua pena agraves matildeos da morte e descansar em teus braccedilos fato esse

descrito no poema ldquoAacute Morterdquo encontrado em sua mesa no dia em que suicidara

Soacute assim seria quebrado o encanto da escrita como natildeo o foi Foi sim

quebrado o encanto do escrever pois a escrita era a forma de agir sobre a sua

realidade mas o encanto da escrita permanece e esses ldquo que os vivos passem

adianterdquo8 como a proacutepria Florbela proferira E assim estaacute Florbela vive em sua

obra sua temaacutetica nos chega como notiacutecia surpreendente e nos envolve em

seus misteacuterios simboacutelicos Sua meacutetrica ao molde claacutessico e uma temporalidade

construiacuteda em seus escritos atraveacutes de seus livros de forma proposital nos

deixa perceber o que vai no iacutentimo de uma mulher parece que retrata com

transparecircncia as fantasias ou fases interiores do imaginaacuterio feminino que de

intreacutepida voluntariosa libertina amante insaciaacutevel inconstante passa a ser

casta pura virtuosa religiosa isso tudo sem deixar de ser extraordinariamente

apaixonada como ela mesma atesta sua proacutepria natureza ldquoSou filha da

charneca erma e selvagemrdquo9

Do mesmo modo que na poesia a Bela escritora mostra-nos seu talento para a

prosa em seu livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo Diferente da poetisa do ldquoeurdquo os

contos geralmente em terceira pessoa natildeo deixam de ter a marca registada

de Florbela a insatisfaccedilatildeo pela vida e a fuga atraveacutes da morte com fortes

mesclas de romantismo Outra caracteriacutestica presente neste livro eacute a ldquolacunardquo

6 Referecircncia ao livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo dedicado a seu irmatildeo Apeles 7 Referecircncia aos vaacuterios estudos feitos sobre a vida a escritora 8 Citaccedilatildeo retirado da dedicatoacuteria do livro ldquoAs Mascaras do Destinordquo 1998 33 9 Citaccedilatildeo do poema ldquoEsfingerdquo do livro Poesias Completas 2004 276

10

deixada a margem da interpretaccedilatildeo ou seja o que se leria nas entrelinhas do

texto Tais interpretaccedilotildees ficam a cargo do leitor que de certa forma interage

com as narrativas preenchendo-lhes o vazio deixado pela escritora ldquovaziordquo

esse que tambeacutem a acompanha nesta obra e a quem dedica ldquoeste livro eacute o

livro do meu mortordquo10 Na realidade Florbela queria deixar imortalizado seu

irmatildeo ldquoNatildeo queria que meu morto morresse comigohellipE escrevi estas

paacuteginashelliprdquo que foram de encontro a profundeza de seu pensamento ou seja

uma consciecircncia transcendental em caminho a ldquotalrdquo liberdade tanto desejada

que jaacute em versos reclamava

ldquoEu ponho-me a sonhar transmigraccedilotildees

Impossiacuteveis longiacutenquos milagrosas

Voos amplos ceacuteus distantes migraccedilotildees

Longehellip noutras esferas luminosas

E pelo meu olhar passam visotildees

Ilhas de bruma e naacutecar drsquooiro e rosashellip

E eu penso que liberta de grilhotildees

Hei-de aportar agraves Ilhas misteriosasrdquo11

Esse doce misteacuterio que cheio da natureza de ser mulher eacute o que intriga-nos a

cada leitura e nos faz buscar conhecer mais de sua vida para entendermos sua

obra Seus contos nos mostram uma Florbela detentora de uma

intertextualidade viva que no decorrer das narrativas remete-nos a outros

tempos a outras leituras Cria um ambiente nostaacutelgico e contemplativo de

vasto campo simboacutelico percorrendo as mais variadas fontes para sua

inspiraccedilatildeo criadora com isso ao depararmos com o quadro descritivo na

narrativa recriamos esse quadro imaginaacuterio em nossa mente como em um

conto de fadas ali misturam-se fatos reais e imaginaacuterios tempos reais e

imaginaacuterios personagens reais e imaginaacuterias tudo ldquo eacute luminosas e exaltante

10 Citaccedilatildeo da dedicatoacuteria do livro ldquoAs maacutescaras do Destinordquo 1998 32 11 Poema ldquoLibertardquodo livro Poesia Completa 2004 75

11

emoccedilatildeordquo foi enchido de ldquotoda a espiritualidade beleza dolorosa e humildade e

acima de tudo as almasrdquo criadas ldquosatildeo gritos e soluccedilos de amorrdquo12

Diante disso o foco do estudo e pesquisa sobre Florbela Espanca se limitaraacute

em um levantamento analiacutetico e criacutetico dando vaacuterias possibilidades de

interpretaccedilatildeo bem como referecircncias intertextuais que satildeo citadas e ora

aparecem em seus contos no livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo Tal estudo

objectiva um conhecimento interpretativo e comparativo das leituras feitas por

Florbela e o modo como vieram a influenciar e dar sustentabilidade ao enredo

dos contos Quem sabe poderemos conhecer um pouco mais dessa misteriosa

mulher que dizia natildeo conhece a si mesma

O que sou eu AmorSei laacute que sou

Sou tudo e nada grande e pequenina

Sou a que canta uma ilusatildeo divina

Sou a que chora um mal que acabou

Eu sei laacute que quimera me beijou

E nunca o soube assim desde pequenina

Haacute neste mundo tanta amarga sina

A minha eacute saber nunca quem sou

Esfinge sonho tonto de desejos

Na tua boca sou uma asa aberta

A palpitar vermelha como os beijos

Andorinhahelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellipa voejar13

helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip

helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip

12 Citaccedilatildeo da dedicatoacuteria do livro ldquoAs maacutescaras do Destinordquo 1998 33 13 Poema sem tiacutetulo editado no livro ldquoEsparsos de Florbelardquo em Poesia Completa 2004 78

12

CAPIacuteTULO 01

11 - ENQUADRAMENTO TEOacuteRICO

Na literatura actual eacute frequente apontar-se como um dos factores de

textualidade a referecircncia - expliacutecita ou impliacutecita ndash a outros textos tomando estes

um sentido bem amplo (orais escritos visuais etc) A esse diaacutelogo entre textos

daacute-se o nome de intertextualidade

Eacute evidente que a intertextualidade estaacute ligada ao conhecimento de mundo que

deve ser compartilhado ou seja comum ao produtor e ao receptor do texto

Desta forma pressupotildee um universo cultural muito amplo e complexo pois

implica antes de tudo na identificaccedilatildeo e no reconhecimento de remissotildees a

obras ou a textostrechos mais ou menos conhecidos aleacutem de exigir do

interlocutor a capacidade de interpretar a funccedilatildeo daquela citaccedilatildeo ou alusatildeo em

questatildeo

Todas as questotildees ligadas agrave intertextualidade influenciam tanto o processo de

produccedilatildeo como o de compreensatildeo de textos o importante eacute natildeo encararmos a

intertextualidade apenas como a identificaccedilatildeo da fonte e sim que nos

preocupemos em estudaacute-la como um enriquecimento da leitura e da produccedilatildeo

de textos e sobretudo tentando mostrar a funccedilatildeo da sua presenccedila na

construccedilatildeo e no(s) sentido(s) dos textos

Como se pode notar na constituiccedilatildeo da proacutepria palavraldquointertextualidaderdquo

significa relaccedilatildeo entre textos Considerando-se texto num sentido lato como

um recorte significativo feito no processo ininterrupto de semiose cultural isto eacute

na ampla rede de significaccedilotildees dos bens culturais Pode-se afirmar que a

intertextualidade eacute inerente agrave produccedilatildeo humana O homem sempre lanccedila matildeo

do que jaacute foi feito em seu processo de produccedilatildeo simboacutelica Assim sendo o

texto como objecto cultural tem uma existecircncia fiacutesica que pode ser apontada e

delimitada um filme um romance um anuacutencio uma muacutesica Entretanto esses

objetos natildeo estatildeo ainda prontos pois destinam-se ao olhar agrave consciecircncia e agrave

recriaccedilatildeo dos leitores Cada texto constitui uma proposta de significaccedilatildeo que

natildeo estaacute inteiramente construiacuteda A significaccedilatildeo se daacute no jogo interpretativo

entre o texto e seu destinataacuterio Este uacuteltimo eacute um interlocutor ativo no processo

de significaccedilatildeo na medida em que participa do jogo intertextual tanto quanto o

autor

13

A intertextualidade se daacute pois tanto na produccedilatildeo como na recepccedilatildeo da grande

rede cultural de que todos participam Filmes que retomam filmes quadros que

dialogam com outros propagandas que se utilizam do discurso artiacutestico

poemas escritos com versos alheios romances que se apropriam de formas

musicais tudo isso satildeo textos em diaacutelogo com outros textos intertextualidade

Um texto remete a outro para defender as ideias nele contidas ou para

contestar tais ideias isso se daacute atraveacutes de um estudo comparativo entre textos

que ligam-se pela elaboraccedilatildeo artiacutestica de seu criador Eacute atraveacutes da anaacutelise

comparativa que tomamos ciecircncia da emergecircncia simboacutelica existente entre os

textos e a que niacutevel se daacute tal emergecircncia quanto agrave diacronia e sincronia que os

ligam Em qualquer niacutevel a produccedilatildeo simboacutelica eacute pois sempre uma retomada

de outras produccedilotildees perfazendo um jogo infinito que enreda autores e leitores

Apropriando-nos entatildeo de Schneider podemos afirmar

ldquoO texto literaacuterio eacute um palimpsesto O autor antigo escreveu uma lsquoprimeirarsquo vez

depois sua escritura foi apagada por algum copista que recobriu a paacutegina com

um novo texto e assim por diante Textos primeiros inexistem tanto quanto as

puras coacutepias o apagar natildeo eacute nunca tatildeo acabado que natildeo deixe vestiacutegios a

invenccedilatildeo nunca tatildeo nova que natildeo se apoacuteie sobre o jaacute-escritordquo (SCHNEIDER

199071)

No sentido estrito a palavra texto remete a uma ordem significativa

verbal Dentro dessa ordem a literatura vale-se amplamente do recurso

intertextual consciente ou inconscientemente Em razatildeo disso a

intertextualidade faz-se operador de leitura Eacute importante marcar os primoacuterdios

de Bakhtin em relaccedilatildeo a esses estudos divulgados por Juacutelia Kristeva Eacute dela o

claacutessico conceito de intertextualidade ldquo todo texto se constroacutei como mosaiacuteco de

citaccedilotildees todo texto eacute absorccedilatildeo e transformaccedilatildeo de um outro textordquo

(KRISTEVA 197464) Na verdade a intertextualidade inerente agrave linguagem

torna-se expliacutecita em todas as produccedilotildees literaacuterias que se valem do recurso da

apropriaccedilatildeo colocando em xeque a proacutepria noccedilatildeo de autoria Eacute o que vamos

observar ao longo do estudo no conto ldquoA Mortardquo em ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo

de Florbela Espanca temos aqui um bom exemplo do que se define como

intertextualidade as relaccedilotildees entre textos a citaccedilatildeo de um texto por outro

enfim o diaacutelogo entre textos Sendo assim para entender um texto na sua

totalidade eacute preciso conhecer o(s) texto(s) que nele fora(m) citado(s)

14

Eacute nesse contexto que Kristeva membro actuante da criacutetica francesa elabora

seu conceito de intertextualidade considerando que todo texto se constroacutei como

ldquomosaico de citaccedilotildeesrdquo Esse entendimento acarreta a consideraccedilatildeo de que a

intertextualidade eacute um fenoacutemeno que se encontra na base do proacuteprio texto

literaacuterio imbricada com a inserccedilatildeo deste num muacuteltiplo conjunto de praacuteticas

sociais relevantes A partir de Kristeva ldquotextordquo passa a ser entendido como o

evento situado na histoacuteria e na sociedade que natildeo apenas reflecte uma

situaccedilatildeo mas eacute essa proacutepria situaccedilatildeo apagando linhas divisoacuterias entre as

disciplinas e constituindo um cruzamento entre diferentes superfiacutecies textuais e

distintas aacutereas do saber cientiacutefico e da esfera artiacutestica ldquoPelo seu modo de

escrever lendo o corpus literaacuterio anterior ou sincroacutenico o autor vive na histoacuteria

e a sociedade se escreve no textordquo (KRISTEVA 197498)

A partir dos postulados deste conceito observamos que a intertextualidade

reflecte a concepccedilatildeo do texto literaacuterio como carregado de outros textos

inclusive do ldquotextordquo da realidaderdquo E eacute essa realidade polifoacutenica de vivecircncia

tumultuosa e inquietante de dissabores intriacutensecos e por vezes

transcendentais de acontecimentos filtrados atraveacutes de sua proacutepria

sensibilidade e sua imaginaccedilatildeo fantaacutestica que Florbela Espanca tem

manifestado para que seja compreendido seus misteacuterios de forma a dar mais

realce atraveacutes das vaacuterias formas de compreensatildeo e interpretaccedilatildeo intertextual e

comparativa de sua obra Neste sentido a teoria intertextual e comparativa

seraacute um guiatildeo a nortear um trabalho na tentativa de conhecermos essa

enigmaacutetica escritora que foi Florbela Espanca E eacute dela o incentivo para um

maior entendimento daquilo que nos deixou ldquoPara mim Para ti Para ningueacutem

Quero atirar para aqui negligentemente sem pretensotildees de estilo sem

anaacutelises filosoacuteficas o que os ouvidos dos outros natildeo recolhem reflexotildees

impressotildees ideias maneiras de ver de sentir ndash todo o meu espiacuterito paradoxal

talvez friacutevolo talvez profundo Compreendi por fim que nada compreendi que

mesmo nada poderia ter compreendido de mimhellipRestam-me os outroshellip

talvez por eles possa chegar agraves infinitas possibilidades do meu ser misterioso

intangiacutevel secretordquo (FLORBELA ESPANCA 199833)14

14 Fragmento retirado do livro ldquoDiaacuterio do Uacuteltimo Anordquo Bertrand Editora

15

A proposta de entendimento intertextual traacutes um reflexo de sua existecircncia

registado em sua ldquoDivina Comeacutediardquo15 pelos seus ldquoVersosrdquo16

ldquoVersos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip

Pedaccedilos de sorrisos branca espuma

Gargalhadas de luz cantos dispersos

Ou peacutetalas que caem uma a umahellip

VersosSei laacute Um verso eacute o teu olhar

Um verso eacute o teu sorriso e os de Dante

Eram o seu amor a soluccedilar

Aos peacutes de sua estremecida amante

Meus versos Sei eu laacute tambeacutem que satildeohellip

Sei laacute Sei laacute Meu pobre coraccedilatildeo

Partidos em mil pedaccedilos satildeo talvezhellip

Versos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip

Meus soluccedilos de dor que andam dispersos

Por este grande amor em que natildeo crecircsrdquo

15 Referecircncia a Obra de Dante Alighieri A Divina Comeacutedia uma viagem ao inferno purgatoacuterio e ao

paraiacuteso Aqui em relaccedilatildeo a vida de Florbela a palavra comeacutedia tem duplo significado o de origem dando

seguimento bom ao desenlace das personagens e em seu sentido coacutemico aos factores da inconstacircncia da

escritora 16 Referecircncia ao poema de Florbela escrito em O livro Drsquoele Poesia Completa2004 208

16

13 - ABORDAGENS SOBRE ldquoAS MAacuteSCARAS DO DESTINOrdquo ldquoOs contos satildeo como ela - siacutembolo de permanecircncia no pensamento da terra fio

de amor que manteacutem a sua magneacutetica forccedila saudade de tudo que podia

significar felicidade e expressatildeo do afectordquo17

Dedicada ao seu irmatildeo Apeles Demoacutestenes da Rocha Espanca ndash ldquoAs

Maacutescaras do Destinordquo eacute uma obra inspirada na tristeza e dor que a perda do

irmatildeo causa em Florbela Sua dedicatoacuteria ldquoeacute como um punho culpado que

Florbela assenta no proacuteprio peitordquo (FLORBELA ESPANCA 199825) assim diz

Agustina Bessa-Luiacutes autora do prefaacutecio escrito em 1979 que orienta-nos sobre

as condiccedilotildees de leitura que envolve esta obra

A dedicatoacuteria escrita por Florbela comprova o amor de irmatildeos Apeles era

ldquoAquele que das mesmas entranhas foi nascido que ao calor do mesmo

amplexo foi gerado Aquele que traz no rosto as linhas do teu rosto nos olhos a

aacutegua clara dos teus olhos o teu Amigo o teu Irmatildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA

199831 e 32) Ela escrevia tais palavras como uma matildee que acabara de

perder a um filho ldquopara que tua mocidade natildeo trema de o ver partir um dia

bom e meigo para que vivas na ilusatildeo bendita de teres um filho forte e belo

para te obrigar a encarar sorrindo as coisas vis e feias deste mundohelliprdquo

(FLORBELA ESPANCA 199831) Na realidade tais clamores professados soacute

a uma matildee que perdera seu filho eacute permitido senti-los

Escrita no final de 1927 reuacutene oito contos denominados ldquoO Aviador ldquoA Mortardquo

ldquoOs Mortos Natildeo Voltamrdquo ldquo O Resto Eacute Perfumerdquo ldquoA Paixatildeo de Manuel Garciardquo

ldquo O Inventorrdquo ldquoAs Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquoO Sobrenaturalrdquo

Como demonstram os tiacutetulos dados aos contos o tema ldquomorterdquo eacute o ponto de

convergecircncia entre os enredos e vem reforccedilar o pendor funesto da obra de

Florbela natildeo apenas pelo desaparecimento do irmatildeo mas que jaacute fazia parte

da proacutepria insatisfaccedilatildeo intimista que a escritora detinha Nesta altura por forccedilas

das circunstacircncias parecia estar desvinculada da vida como uma morta e sua

perpeacutetua busca lhe assegura uma espeacutecie de eternidade

Natildeo participando do enredo assim sendo em 3ordf pessoa mostrava-se uma

observadora a narrar fatos onde a realidade se confunde com o imaginaacuterio

17 Fragmento escrito por Agustina Bessa-Luiacutez retirado do prefaacutecio do livro As Maacutescaras do Destino de

Florbela Espanca 199810

17

fantaacutestico e soacute nos traacutes agrave lucidez da compreensatildeo devido as referecircncias

intertextuais as quais satildeo comuns aos contos pois ldquo o fantaacutestico se caracteiza

por una instrusioacuten brutal del misteacuterio en el marco de la vida real y estaacute ligado

generalmente a los estados moacuterbitos de la conciencia que en los fenoacutemenos

de pesadilla e de deliacuterio proyecta ante siacute imaacutegenes de sus angustias e de sus

terroresrdquo (GEORGES JEAN 1889 68 e 69) Mas a escritora natildeo desvincula-se

de sua obra uma forte tendecircncia de Florbela Marcando presenccedila no conto ldquoO

Resto Eacute Perfumerdquo interage como personagem assim assume o relato como

se procedesse de outro narrador para que pudesse penetraacute-lo e manter suas

caracteriacutesticas inquietantes e paradoxais acrescentando uma forte dose de

existencialismo e a presenccedila do ldquoEurdquo que vem reforccedilar a categoria de seus

relatos miacuteticos Aqui o ldquofantaacutesticordquo se confunde com o ldquomaravilhosordquo isso

devido aos relatos mitoloacutegicos que implica durante a leitura em um

redireccionamento do leitor a outro espaccedilo a outro tempo onde temos a ilusatildeo

de vivermos por um breve momento em outro lugar Florbela nos permite a

viagens imaginaacuterias em que o maravilhoso de seus contos dependeraacute de uma

infinidade de interpretaccedilotildees que natildeo seratildeo necessariamente interpretaccedilotildees

racionais pois as interpretaccedilotildees paralelas e divergentes satildeo sempre possiacuteveis

devido a riqueza do conto em si que no caso de Florbela estatildeo ligados aos

estados moacuterbidos de sua consciecircncia

Sabemos que algum dos elementos imaginaacuterios dos contos de Florbela estaacute

ligada ao realismo de sua histoacuteria verdadeira e isso eacute capaz pela virtudes que

soacute os contos de fadas pode proporcionar apesar de sua vida inconstante e

cheia de maacutegoas soube mascarar seu inconsciente e dar a seu relato um

intercacircmbio gracioso e sentimental com sua vida Por sua vez tais relatos

remetem-se a duas vertentes essenciais nos contos a primeira de propagar as

formas simboacutelicas durante a histoacuteria e a segunda de inserir essas formas

mediante a expansatildeo de sua escrita atraveacutes dos contos Um bom exemplo

disso eacute a clareza de como um conto complementa outro Atentemos para os

detalhes simboacutelicos de ldquoO Inventorrdquo que parece encerrar-se em ldquoO Aviadorrdquo da

mesma forma acontece em ldquoO Sobrenaturalrdquo e ldquoOs Mortos natildeo Voltamrdquo ldquoAs

Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquo A Paixatildeo de Manuel Garciardquo por fim

vemos a profunda reflexatildeo sobre a vida em ldquoO Resto eacute Perfumerdquo culminando

no conto ldquoA Mortardquo que tem em seu final a imersatildeo nas aacuteguas elemento

18

comum em todos os contos que parece como siacutembolo de redenccedilatildeo Temos

aqui um quadro para um estudo comparativo minucioso entre os proacuteprios

contos

Como afirma Agustina Bessa-Luiacutes ldquo para ler a prosa eacute preciso compreender a

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199816) Neste contexto natildeo ousamos falar

do quadro complexo que a palavra ldquomulherrdquo como um ser social objectiva mas

sim na simplicidade do comportamento de vaacuterias mulheres numa soacute imagem

constante nos contos que sente no seu intimo a dor da perca A primeira

referecircncia aqui eacute da mulher-irmatilde que vecirc no uacutenico irmatildeo morto a decadecircncia de

si mesma ldquo seraacute em breve uma sombra na tua sombrardquo (FLORBELA

ESPANCA 199832) Da mulher-matildee e o vazio de sua dor silenciosa ldquo A pobre

matildee abafou um soluccedilo voltou-se e olhou o mortordquo (FLORBELA ESPANCA

1998112) E por fim da mulher-religiosa que busca na cristandade respostas

para seus questionamentos e refuacutegio para seu tormento ldquomais fraacutegil mais

luminosa continuava a rezar as suas oraccedilotildeeshelliporaccedilotildees de amor sacriacutelegas

blasfemas oraccedilotildees de pecadohellipDe pecado Natildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA

1998154) Assim concebo a mulher Bela a compreensatildeo de sua escrita estaacute

nos olhos de quem as vecirc e na sensibilidade de a conhecer Desta feita ldquoa fase

dos equiacutevocos com que a gesta amorosa que a serve com a permanente

invenccedilatildeo de objectos meritoacuterios eacute substituiacuteda por uma feacute na alma feacute que se

acompanha do terriacutevel sentimento de estar morta de natildeo ser mais do que a

aparecircncia dum espaccedilo vividordquo (FLORBELA ESPANCA 199823) diz Agustina

Bessa-Luiacutes

Nesta obra duas propriedades do texto satildeo facilmente perceptiacuteveis a

intertextualidade e a influecircncia exercida em cada conto Essa uacuteltima

envolvendo as fortes caracteriacutesticas da escritora Florbela Espanca Contudo o

texto se constroacutei agrave medida que retoma fatos jaacute conhecidos como eacute o caso das

vaacuterias citaccedilotildees de autores e personagens que ilustram o livro Nesse sentido

quanto mais amplo for o repertoacuterio do leitor o seu acervo de conhecimentos

maior seraacute a sua competecircncia para perceber como os textos dialogam uns

com os outros por meio de referecircncias alusotildees e citaccedilotildees Eacute assim que

Florbela queria que a entendecircssemos atraveacutes de um diaacutelogo intriacutenseco para

descobrirmos suas maacutescaras

19

CAPIacuteTULO 02 21 - ldquoSONHO DE IacuteCAROrdquo

ldquoVoar voar subir subir

Ir por onde for descer ateacute o ceacuteu cair

Ou mudar de cor anjos de gaacutes

Asas de ilusatildeo e um sonho audaz

Feito um balatildeo

No ar no ar eu sou assim

Brilho do farol aleacutem do mais

Amargo fim simplesmente sol

Fugir meu bem eacute ser felizhellip

Ir ateacute que um dia chegue enfim

Em que o sol derreta a cera ateacute o fimrdquo18

A mitologia eacute uma das concepccedilotildees mais geniais que a humanidade produziu

Os gregos instauraram uma categoria intermediaacuteria entre os homens e os

deuses o semideus criando assim os heroacuteis mitoloacutegicos Isso veio a dar

margem a novas investigaccedilotildees sobre os fenoacutemenos da realidade natural

levando ao questionamento da origem dos seres a qual obtiveram respostas

sem sentido concreto Com isso incorporaram a concepccedilatildeo de que a vida e

suas manifestaccedilotildees satildeo obras das forccedilas do espiacuterito que habita em cada um

de noacutes sendo tambeacutem responsaacutevel pela nossa maneira de ser e de agir Isso eacute

sem duacutevida um meio de penetrar atraveacutes da imaginaccedilatildeo no misteacuterio da

existecircncia humana Desta forma o mito consiste nos acontecimentos que se

repetem ao longo da histoacuteria natildeo tendo fim O homem reconhecendo em cada

acto quotidiano uma participaccedilatildeo nos grandes ciclos da vida se sente

participar da grande eternidade miacutetica Partindo de suas origens o homem

consegue viver integralmente e uma vez dentro da mentalidade miacutetica a

proacutepria morte pode ter sentido

18 Fragmento da canccedilatildeo ldquosonho de Iacutecarordquo escrito por Pisca e Claacuteudio Rebelo interpretaccedilatildeo do cantor

brasileiro Byafra

20

Com o intuito de imortalizar o momento de uma trageacutedia Florbela lanccedila matildeo de

aspectos mitoloacutegicos dentro de seus contos que muito nos lembra a triste

histoacuteria de Deacutedalo e Iacutecaro 19 mostrando que o espiacuterito humano de vencer

barreiras e limites nos impulsiona a superar nossas proacuteprias limitaccedilotildees

Alcanccedilar o espaccedilo e as estrelas lanccedilar-se ao infinito experimentar da

sensaccedilatildeo de liberdade interior e o desvendar do misterioso infinito eacute o que

norteia o enredo dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquo O Inventorrdquo

Praticamente todas as culturas destacam o ceacuteu como um lugar especial Esse

local era normalmente designado como a morada dos deuses Muitos povos

consideravam que as constelaccedilotildees eram representaccedilotildees dos seus mitos e

lendas Dessa forma o ceacuteu era um lugar divino e os homens somente o

alcanccedilavam quando eram convidados ou homenageados pelos deuses Mas o

atrevimento de uns culminou na desgraccedila de outros Apenas aqueles com

sabedoria e dotado de iacutentima consciecircncia disciplinar sobre sua condiccedilatildeo

humana conseguiam graccedilas aos olhos dos deuses O conflito interior era um

grande empecilho para que fatos tivessem o desenrolar bem sucedidos

Quando isso natildeo acontecia o homem reconhecia sua condiccedilatildeo de inferioridade

em relaccedilatildeo aos deuses e eram designados ldquofilhos dos homensrdquo

O aparecimento da referecircncia mitoloacutegica pressupotildee uma forte ligaccedilatildeo aos elos

do mito de fundaccedilatildeo que sustenta a harmonia familiar juntamente com

preceitos de moral tendo por priori a identidade pessoal na figura paterna

como eram conhecidos os grandes heroacuteis mitoloacutegicos por serem semideuses

Nesta constante nos eacute dado a conhecer a condiccedilatildeo humana que tambeacutem

aparece de forma intertextualizada como referecircncia ao quadro do flamengo

19 Iacutecaro era filho de Deacutedalo o construtor do labirinto que o rei Minos aprisionava o Minotauro um ser

com corpo de homem e cabeccedila de touro A lenda grega conta que Deacutedalo ensinou Teseu que seria

devorado juntamente com outros jovens pelo monstro como sair do labirinto Deacutedalo sugeriu que ele

deveria utilizar um novelo que deveria ser desenrolado a medida em que fosse penetrando no labirinto

Dessa forma apoacutes ter matado o monstro ele conseguiu fugir do labirinto O rei Minos ficou furioso e

prendeu Deacutedalo e o seu filho Iacutecaro no labirinto Como o rei tinha deixado guardas vigiando as saiacutedas

Deacutedalo construiu asas com penas dos paacutessaros colando-as com cera Antes de levantar voo o pai

recomendou a Iacutecaro que quando ambos estivessem voando natildeo deveriam voar nem muito alto (perto do

Sol cujo calor derreteria a cera) e nem muito baixo (perto do mar pois a unidade tornaria as asas

pesadas) Entretanto a sensaccedilatildeo de voar foi tatildeo estonteante para Iacutecaro que ele esqueceu a recomendaccedilatildeo e

elevou-se tanto nos ares a ponto da previsatildeo de Deacutedalo ocorrer A cera derreteu e Iacutecaro perdeu as asas

precipitando-se no mar e morrendo afogado

21

Brueghel (a Queda de Iacutecaro)20 que Florbela tatildeo bem ilustra com uma descriccedilatildeo

que mais parece uma tela ldquo Os filhos dos homens caacute em baixo deixam cair

nos campos a enxada que faz nascer o patildeo e florir as rosas os pescadores

largam os remos audaciosos que rasgam os mares e os rios e os filhos dos

homens mais duramente castigados os que habitam o formigueiro das cidades

param nas suas insensatas correrias de formigas e todos voltam a face para o

ceacuteurdquo (FLORBELA ESPANCA 199838) Aqui a intertextualidade sugerida

numa linha ecfraacutestica vai de encontro a misteriosa temaacutetica de Florbela

significando isto que o espiacuterito de aventura eacute frequentemente motivo de

incompreensatildeo e de grande solidatildeo

Do mesmo modo que impotildee a condiccedilatildeo de mortal ao homem Florbela o

enaltece dando-lhe honrarias e elevando-o a condiccedilatildeo de um deus ldquo Nos olhos

leva visotildees que os filhos dos homens natildeo conhecem Eacute um homem Deixou laacute

em baixo todo o fardo pesado e vil com que o carregam ao nascer deixou laacute

em baixo todas as algemas todos os feacuterreos grilhotildees que o prendiam toda a

suprema maldiccedilatildeo de ter nascido homem deixou laacute em baixo a sua sacola de

pedinte o seu bordatildeo de Judeu Errante e livre indoacutemito sereno na sua

miacutesera couraccedila de pano azul estendeu em cruz os braccedilos que transformou em

asasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199839) Ao atingir tal supremacia o homem

liberta-se de sua vida anterior e ganha autonomia na forma da liberdade

intriacutenseca conseguindo a superaccedilatildeo de sua forma decadente e de seus

conflitos interiores atraveacutes da liberdade celestial alcanccedilada Deacutedalo foi

conhecido como o arquitecto e artista da liberdade mesmo tendo construiacutedo o

labirinto que eacute a representaccedilatildeo do aprisionamento Aqui Florbela utiliza desse

argumento como se seus escritos fossem labiriacutenticos e teriacuteamos de encontrar

as palavras certas para desvendarmos seus caminhos encontrando neles

assim a liberdade Essa mesma liberdade transformada aqui no voo mais alto

que levaria a traacutegica morte

Apesar de mostrada diferentemente temos aqui mais uma vez a dualidade

que percorre a obra de Florbela o aprisionamento e a liberdade a vida e a

morte antiacuteteses que perfilam seu anseio humano ldquo Um dia julgou ter achado

20 Quadro de Broeghel demonstrando a queda de Iacutecaro no mar enquanto os camponeses prosseguem a sua

labuta diaacuteria

22

Oh aquele dia A embriaguez do homem que se igualou a Deus O coraccedilatildeo a

bater a bater a sentir-se grande demais para um peito tatildeo pequeno para um

tatildeo mesquinho destino A humidade das laacutegrimas a embaciar o olhar gigante

que se esquecera um momento de ter nascido pigmeu O artista o poeta o

inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de movimento e de

vida todos os que desbravavam caminhos os que talham abrem por entre os

matagais selvagens e as belas estradas largas do pensamento e das ideias As

palavras satildeo o muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes

ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)

Ao atingir o voo pleno por vezes nos afastamos da realidade natural e nos

lanccedilamos ao desconhecido sem saber o que nos espera Com isso a queda eacute

inevitaacutevel Neste seguimento vemos a intertextualidade presente sob o estigma

dos cuidados de Zeus filho de Cromo e pai dos deuses que concedeu aos

heroacuteis uma morada afastada dos homens onde os semideuses pudessem se

estabelecer nos confins da terra Eacute laacute que habitam com o coraccedilatildeo livre de

cuidados nas Ilhas dos Bem-Aventurados nas praias dos turbilhotildees profundos

do Oceano satildeo eles os heroacuteis afortunados a quem Florbela tambeacutem concede

a morada preparada como tuacutemulo perfeito para o descanso eterno A

representaccedilatildeo das deusas das aacuteguas na presenccedila das ninfas efidriacuteades21 que

simbolizam a graccedila criativa e fecundadora da natureza fazem aparecer a

presenccedila feminina que surge com o intuito de exaltar a forccedila interior que so a

mulher tem para defrontar situaccedilotildees desastrosas e encontrar soluccedilatildeo nos mais

tenebrosos conflitos bem como de dar um toque de suavidade ternura beleza

e leveza que soacute a performance feminina consegue impor ldquo hellipAs filhas dos

deuses ondinas sereias nereidas princesas encantadas acodem todas

pressurosashellipEm volta das asas mortas satildeo como flores desfolhadas em

redor dum esquife negro E olhamhelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 199842) A

sabedoria feminina evidencia-se ao se manifestar a ldquoque tinha nos olhos uma

nostaacutelgica tristeza humanardquo (FLORBELA ESPANCA 199846) como uma matildee

protectora que acalenta o filho em seu sono profundo e compreende com

tristeza a dor dos mortais ou quem sabe sua proacutepria dor na condiccedilatildeo de

imortal pois somente aos deuses era permitido o poder de arrebatar o espiacuterito

21 Referecircncia as ninfas das aacuteguas da mitologia grega

23

a um homem ldquo E aquele que tinha sido um filho dos homens ficou a dormir na

eternidade como se fora um filho dos deusesrdquo (FLORBELA ESPANCA

199846)

Como podemos perceber Florbela em sua construccedilatildeo literaacuteria delineou nas

entrelinhas dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquoO Inventorrdquo aspectos simboacutelicos

determinantes do aprisionamento e da libertaccedilatildeo humana natildeo somente no

sentido denotativo mas tambeacutem conotativo na multiplicidade de sentidos que

tais palavras propotildeem Apesar da evidecircncia colocada pela escritora ainda nos

remete a reflexatildeo pois o aprisionamento pode ser um meio de libertaccedilatildeo e a

libertaccedilatildeo um aprisionamento ldquohellipOlhou o ceacuteu profundohellipe achou Ser aviador

eacutehellipabraccedilar no mesmo abraccedilo o ceacuteu e o mar Na linguagem dos siacutembolos a

acircncora definindo a esperanccedila nunca poderaacute valer as asas que satildeo a

libertaccedilatildeo A acircncora agarra-se ao fundo e fica as asas abrem-se no espaccedilo e

penetram o ceacuteuhellipSeria aviador Quando pela primeira vez voou natildeo se

esqueceu de sentar na carlinga a seu lado ao lado do seu coraccedilatildeo aquela

que dali em diante seria a companheira de todos os dias a companheira

indefectiacutevel de todos os aviadores a Morterdquo (FLORBELA ESPANCA 1998

129)

A produccedilatildeo intertextual desses dois contos traz-nos um imaginaacuterio voltado aos

princiacutepios fundadores de conceitos e referecircncia humana Florbela baseia-se na

representaccedilatildeo da infacircncia como elemento fundador da personalidade e do

caraacutecter ou seja a figura do pai que nunca a reconheceu em vida e por outro

lado na figura de Deacutedalo e Iacutecaro tendo o pai a dualidade em sua referecircncia

paterna Eacute assim que de ldquotentaccedilatildeo em tentaccedilatildeo de fraqueza em fraqueza os

compromissos de consciecircncia levam um homem honrado agrave praacutetica de todos os

crimeshelliprdquo22

22 Fragmento do conto O Inventor de Florbela Espanca As Maacutescaras do Destino1998122

24

22 - A MULTICIPLIDADE DO HEROacuteI

ldquo A vida parada e recolhida cria heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tarderdquo23

Ao encontrarmos facetas mitoloacutegicas entre as leituras de Florbela natildeo se pode

descartar a visatildeo do heroacutei que a autora engendrou na figura de seu irmatildeo

Apeles Tiacutetulo esse dado a homens excepcionais como Ulisses que eram

venerados por seu povo da mesma forma Florbela nutria uma verdadeira

veneraccedilatildeo que a levou a personificar o Aviador a um heroacutei merecedor de

honrarias e apesar da miacutesera condiccedilatildeo de mortal foi-lhe atribuiacutedo qualidades

fiacutesicas e morais dignas de um semideus ldquo A vida parada e recolhida cria

heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tardehellip o pincel de geacutenio daacute os uacuteltimos

retoques ao cenaacuterio de epopeiahellip laacute em cima a formidaacutevel apoteose desdobra-

se no meio do pasmo das coisas Eacute um homem que tem asas E as asas

pairam descem rodopiam ascendem de novo giram latejam batem ao sol

mais aacutegeis e mais robustas mais leves e mais possantes que as das aacuteguias Eacute

um homem A face eneacutergica vincada a cinzel emerge extraordinaacuteria da vida

intensa na indecisatildeo dos contornos que lhe fazem vagos e paacutelidos um vago

pano de fundo a face e as matildeoshellipOs muacutesculos da face adivinham na forccedila

brutal das maxilas cerradas Nos olhos leva visotildees que os filhos dos homens

natildeo conhecem Os olhos dele natildeo se vecircem olham para dentro e para fora satildeo

pedras como as das estaacutetuas e vecircem mais e mais para aleacutem do que as

miacuteseras pupilas humanas Satildeo astrosrdquo (FLORBELA ESPANCA 199838 e 39)

Esta mesma condiccedilatildeo eacute dada ao Inventor autor da imaginaccedilatildeo de Florbela

ldquoRealizara os seus sonhos todos os seus sonhos Que havia mais agora Jaacute

os homens podiam sulcar os ares sem medo aos vendavais agraves coacuteleras brutais

da Natureza jaacute o ceacuteu se podia coalhar de asas como o mar de velas Todo o

homem poderia ter sem perigo e sem riscos a cobiccedilada sensaccedilatildeo de

comandar nos elementos como um semideusrdquo (FLORBELA ESPANCA

1998133)

Sabemos que o heroacutei constitui o assunto da poesia eacutepica ele tem a sua

maneira proacutepria de agir pela sua coragem e bravura e prossegue objectivos

23 Fragmento do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca198837 e 38

25

bem determinados que ao longo de sua trajectoacuteria lhe satildeo atribuiacutedos cada qual

com sua importacircncia e valor Eacute dado a ele tambeacutem o poder de decisatildeo ora

sobre seus actos ora sobre si mesmo Isso como forma de valorizar sua

sabedoria e supremacia diante daqueles a quem defendia Assim se apresenta

o heroacutei dos contos de Florbela homem-deus detentor de toda visatildeo forte

dominador senhor supremo de seu destino a quem eacute concedido um lugar

eterno junto aos astros

A realidade fictiacutecia da mitologia eacute comparada aqui a realidade autecircntica

Florbela interessa-se pelo seu heroacutei fictiacutecio como se fosse ou tratasse de uma

pessoa real com isso podemos dizer que a escrita ficcional de Florbela eacute

mimese porque a realidade de sua vida humana eacute o seu material de escrita ela

consegue transformar a realidade objectiva na realidade subjectiva vivencial

razatildeo por que nos deixamos influenciar pela sua trajectoacuteria de vida em seus

escritos Isso justifica o fato da ldquovaliosa bravurardquo ndash por uma valiosa pintura - de

seu heroacutei ser retratado em uma tela por um titatilde24 personifica assim a grande

luta travada com as forccedilas da natureza ldquoEacute um Rembrandt pintado por um titatilderdquo

(FLORBELA ESPANCA 199839) A sua proacutepria natureza humana A propoacutesito

disso parece mais reportar ao paradoxo entre o bem e o mal que lutam

constantemente pelo domiacutenio da razatildeo interior talvez alvo de Florbela

Eacute interessante observar a relaccedilatildeo que existe entre o ldquohomem com asasrdquo com

as Harpias25 que na multi-significaccedilatildeo de seu discurso nos projecta a uma

realizaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo na figura do heroacutei alado em uma transposiccedilatildeo

imaginaacuteria com uma pluralidade de sentidos que poderia ocultar um sentido

uacutenico o seu proacuteprio desejo ou o desejo de arrebatar a alma de seu morto

Tambeacutem vemos a intertextualidade corrente na pessoa de Ulisses26 o heroacutei

grego navegante Robson Crusoeacute27 Piratas dos Sete Mares28 aos capitatildees e

24 Referecircncia a segunda geraccedilatildeo dos deus mitoloacutegicos representantes das forccedilas da natureza e sem uma

personalidade bem vincadaos quais Hesiacuteodo enumerou em doze seis machos e seis fecircmeas Oceano Ceacuteu

Crio Hiperiacuteon Jaacutepeto Cronos Teia Reja Teacutemis Mnemoacutesine Febe e Teacutetis 25 As Harpias filhas de Electra (ela proacutepria filha do Titatilde Oceano) e de Taumas (filho de Ponto e de Geia)

pertencem agrave geraccedilatildeo dos preacute-oliacutempicos Elas satildeo irmatildes de iacuteris a mensageira dos deuses Representadas

quer como mulheres aladas com um aspecto fameacutelico quer como paacutessaros com cabeccedila de mulher as

Harpias residem nas ilhas Estroacutefades do mar Egeu ou ainda agraves portas do Taacutertaro Impetuosas e brutais

como a tempestade as Harpias satildeo - este eacute o sentido do seu nome - raptoras com garras fortes 26 Odisseu (na Greacutecia) ou Ulisses (em Roma) eacute um personagem da Iliacuteada e da Odisseacuteia de Homero Apoacutes

a derrota dos troianos ele iniciou uma viagem de dez anos de volta para Iacutetaca onde a sua mulher o espera

com uma fidelidade obstinada apesar da demora Essa viagem mereceu a criaccedilatildeo por Homero do poema

26

navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a

coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a

solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o

enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio

multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos

diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio

Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os

naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de

navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS

Maacutescaras do Destino 1998 p 125)

Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada

com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a

renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que

convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos

escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a

partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental

aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A

viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas

suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte

recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os

heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas

ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o

navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira

de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que

nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era

eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que

deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-

1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado

a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe

herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico

sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O

romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como

tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar

que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os

Lusiacuteadas de Camotildees

27

no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo

da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)

Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida

funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo

conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente

nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de

alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva

Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer

tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos

heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os

portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens

tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que

de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os

navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por

deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da

Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do

texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute

simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no

poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES

1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou

passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da

Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas

natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer

vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de

ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um

heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com

o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas

forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um

aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem

mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva

30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos

Lisboa

Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal

28

presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de

Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura

greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito

especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela

escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a

morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem

para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de

transformaccedilatildeo fantaacutestica

Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que

na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena

confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir

uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute

infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu

desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma

personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo

inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade

aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios

filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa

escritora o seu carma

Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei

que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora

quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem

ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles

desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma

as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista

o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de

movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos

esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do

pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam

As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes

ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)

29

CAPIacuteTULO 03

31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS

ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de

doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32

No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute

intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em

todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do

proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade

de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma

comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro

cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser

estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute

antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de

alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas

oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir

as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava

perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o

fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo

para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que

muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da

escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e

complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e

pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma

formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela

graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa

assume

32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122

30

De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete

agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem

Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites

nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute

podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido

conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao

inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um

ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma

palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a

intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda

e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas

pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma

onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo

(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um

recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o

renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio

inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a

matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada

ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe

mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata

cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de

voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e

122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso

indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam

tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele

o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as

suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um

emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados

que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e

intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica

33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ

31

Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado

transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas

Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e

que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a

imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de

dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada

dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais

significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa

escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e

sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-

as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar

inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos

era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade

existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)

A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio

Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo

tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens

que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de

tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta

ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a

proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo

Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante

notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe

de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e

medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca

mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho

branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a

socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua

presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo

(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo

deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo

queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a

intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia

humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para

32

sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo

pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no

mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais

apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva

enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente

foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)

A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja

como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo

atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute

reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em

busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito

junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos

satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad

que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que

han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas

mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como

meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do

inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os

aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias

34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939

33

32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO

ldquoA vida vem em ondas

Como o mar

Num indo e vindo infinitohelliprdquo35

A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente

foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram

o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios

da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-

portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo

ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura

universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e

nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a

esquizofrenia de sua alma

O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos

grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma

visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes

de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-

racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas

fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma

encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no

espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada

ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar

duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava

que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se

35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos

em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria

imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia

grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios

Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e

cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam

da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela

Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a

sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor

34

sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o

olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de

um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o

seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No

reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que

constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia

Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor

das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que

participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na

claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma

a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial

apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se

imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA

ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta

solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser

acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas

pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de

existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas

dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma

mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar

agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)

As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar

aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de

Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a

37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta

nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet

tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido

advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte

de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga

(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre

1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a

questatildeo (Hamlet ato III cena I)

38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)

que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era

destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar

35

travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes

questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente

humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a

vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa

loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz

a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair

numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua

frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico

mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de

transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a

morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano

capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas

ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de

integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de

totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma

ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade

de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida

dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a

seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas

iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives

mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas

dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a

cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute

perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras

velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida

de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar

costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras

por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e

grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme

O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu

amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do

Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para

toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos

36

Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser

salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma

dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo

desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave

liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos

secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a

uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo

desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a

boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia

pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a

mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais

alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se

nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira

as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de

alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora

julga existir no seu misteacuterio

O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e

forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e

sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que

orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente

num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das

contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute

traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas

que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas

figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas

narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um

imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e

39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII

mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a

bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por

alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua

tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar

Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A

histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito

em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que

aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas

aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma

37

refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus

fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a

sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades

da dinacircmica universal

Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar

simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos

narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos

siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um

contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da

efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma

capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde

diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e

exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia

essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel

mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo

do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do

Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)

e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo

social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)

na representatividade literaacuteria do mar

38

CAPIacuteTULO 04

41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA

ldquoGosto de ti apaixonadamente

De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo

De ti que me trouxeste pela matildeo

Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40

Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso

a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade

directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na

poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua

dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees

Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita

capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e

um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz

e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a

dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas

conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute

e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria

serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem

quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto

anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse

em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita

maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte

com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e

quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e

emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos

paradoxos

40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no

livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004

Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo

Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11

39

Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos

toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-

romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido

num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia

com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes

profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas

sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo

acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando

a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A

derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a

conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas

da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da

sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No

entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas

romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a

impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo

definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha

aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento

em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o

passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era

tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto

A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos

acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-

Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs

Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os

Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de

Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de

Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o

egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo

narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica

Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute

neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o

poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem

40

esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma

essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no

iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma

questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos

encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem

sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos

interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas

as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um

exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo

tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo

daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita

conteacutem

41

42 - UM PERCURSO COMPARATIVO

ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os

vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e

outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que

ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute

foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41

ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto

Olhou em roda natildeo achou ningueacutem

Por entre as campas arrastando o manto

Com lentos passos caminhou aleacutem

Abandonado neste chatildeo repousa

Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui

Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa

Sobre este peito que bateu por tirdquo42

A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e

o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-

romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua

linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa

o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se

O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando

proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos

moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na

literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror

Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou

comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas

circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de

comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e

sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos

41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda

Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos

42

ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de

outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou

Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)

Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal

de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma

optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada

pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada

no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus

sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa

suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois

dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)

Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade

todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional

natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute

afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute

tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima

do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo

Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela

e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a

prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua

intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a

dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as

influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente

que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz

directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para

a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o

intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era

partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada

por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das

rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de

branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza

43

ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas

Longas roupagens de neveda cor

Singela croa de virgiacutenias rosas

Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43

ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de

branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila

devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa

nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)

Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de

conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se

para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da

imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a

partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a

presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os

uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem

eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera

absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor

ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria

A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a

intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um

testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista

e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas

caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da

temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao

fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma

retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras

masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo

homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma

mulher

43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12

44

(hellip)

Mulher formosa que adorei na vida

E que na tumba natildeo cessei damar

Por que atraiccediloas desleal mentida

O amor eterno que te ouvi jurar

Amor engano que na campa finda

Que a morte despe da ilusatildeo falaz

Quem dentros vivos se lembrara ainda

ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)

Talvez que rindo dos protestos nossos

Gozes com outro dinfernal prazer

E o olvido cobriraacute meus ossos

Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44

Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o

vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as

bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis

e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma

essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o

podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA

ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de

sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a

eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos

na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto

com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais

de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas

palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o

esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal

seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu

passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre

44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9

45

que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as

matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos

das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam

para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)

Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno

num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista

melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias

possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela

um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica

natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem

fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo

intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas

rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso

consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo

intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas

solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou

com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a

todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas

as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os

sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado

daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)

Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do

Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais

significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO

MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do

quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e

estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que

desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo

da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina

agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das

espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute

presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos

46

ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido

Das sepulturas o gelado poacute

Dois esqueletos um ao outro unido

Foram achados num sepulcro soacuterdquo45

Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de

imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da

intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo

buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma

enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo

recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as

laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas

deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo

sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais

moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas

austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade

dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete

palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam

pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e

59)

Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao

ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram

escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia

literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo

exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde

ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais

tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo

merecida

45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos

47

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas

interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca

Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo

depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves

transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo

sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia

ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas

metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver

com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao

sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas

tambeacutem ao que relaciona a morte

A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua

eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela

mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e

sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo

quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade

que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas

personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a

humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de

enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e

sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas

e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o

que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte

presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais

condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus

contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e

desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse

interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural

equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes

interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute

Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem

uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses

48

elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o

inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela

tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses

elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma

civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor

sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam

sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do

intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea

Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o

menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que

para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro

compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo

que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou

seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua

imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que

essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar

atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a

outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual

proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque

esconde-se ou projecta-se no discurso do outro

Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o

caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo

relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens

marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um

significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um

desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos

de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e

fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave

realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande

maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe

um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo

46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de

Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360

49

obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a

escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada

Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a

infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute

aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo

espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a

verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes

50

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Page 9: AS MÁSCARAS SIMBÓLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA … Jaqueline... · 2019-10-31 · A narrativa ficcional não é o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca, mas, assim como

9

mesmos e infiltra-nos por caminhos incoacutegnitos que cobrem de maacutescaras nosso

destino assim como eacute citado no tiacutetulo de seu livro de contos6 o qual dedicou a

seu irmatildeo Apeles deixando-nos por vezes a margem de reflexotildees

existencialistas mas natildeo o existencialismo puro dos filoacutesofos questionadores

mas um existencialismo amoroso sensiacutevel capaz de nos inibir com subtilezas

representativas de um mesclado de tendecircncias literaacuterias que preenche seus

textos de extremo romantismo e passa para a evidecircncia dos fatos que vatildeo do

real ao ideal do acontecido a suposta consequecircncia

De fato que sua vida influenciou sua escrita7 tanto que nesta inquietante busca

pela pessoa ideal que era acometida a escritora levou a mulher a concretizar

sua indubitaacutevel certeza de que seria compreendida e aceita apenas depois de

repousada sua pena agraves matildeos da morte e descansar em teus braccedilos fato esse

descrito no poema ldquoAacute Morterdquo encontrado em sua mesa no dia em que suicidara

Soacute assim seria quebrado o encanto da escrita como natildeo o foi Foi sim

quebrado o encanto do escrever pois a escrita era a forma de agir sobre a sua

realidade mas o encanto da escrita permanece e esses ldquo que os vivos passem

adianterdquo8 como a proacutepria Florbela proferira E assim estaacute Florbela vive em sua

obra sua temaacutetica nos chega como notiacutecia surpreendente e nos envolve em

seus misteacuterios simboacutelicos Sua meacutetrica ao molde claacutessico e uma temporalidade

construiacuteda em seus escritos atraveacutes de seus livros de forma proposital nos

deixa perceber o que vai no iacutentimo de uma mulher parece que retrata com

transparecircncia as fantasias ou fases interiores do imaginaacuterio feminino que de

intreacutepida voluntariosa libertina amante insaciaacutevel inconstante passa a ser

casta pura virtuosa religiosa isso tudo sem deixar de ser extraordinariamente

apaixonada como ela mesma atesta sua proacutepria natureza ldquoSou filha da

charneca erma e selvagemrdquo9

Do mesmo modo que na poesia a Bela escritora mostra-nos seu talento para a

prosa em seu livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo Diferente da poetisa do ldquoeurdquo os

contos geralmente em terceira pessoa natildeo deixam de ter a marca registada

de Florbela a insatisfaccedilatildeo pela vida e a fuga atraveacutes da morte com fortes

mesclas de romantismo Outra caracteriacutestica presente neste livro eacute a ldquolacunardquo

6 Referecircncia ao livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo dedicado a seu irmatildeo Apeles 7 Referecircncia aos vaacuterios estudos feitos sobre a vida a escritora 8 Citaccedilatildeo retirado da dedicatoacuteria do livro ldquoAs Mascaras do Destinordquo 1998 33 9 Citaccedilatildeo do poema ldquoEsfingerdquo do livro Poesias Completas 2004 276

10

deixada a margem da interpretaccedilatildeo ou seja o que se leria nas entrelinhas do

texto Tais interpretaccedilotildees ficam a cargo do leitor que de certa forma interage

com as narrativas preenchendo-lhes o vazio deixado pela escritora ldquovaziordquo

esse que tambeacutem a acompanha nesta obra e a quem dedica ldquoeste livro eacute o

livro do meu mortordquo10 Na realidade Florbela queria deixar imortalizado seu

irmatildeo ldquoNatildeo queria que meu morto morresse comigohellipE escrevi estas

paacuteginashelliprdquo que foram de encontro a profundeza de seu pensamento ou seja

uma consciecircncia transcendental em caminho a ldquotalrdquo liberdade tanto desejada

que jaacute em versos reclamava

ldquoEu ponho-me a sonhar transmigraccedilotildees

Impossiacuteveis longiacutenquos milagrosas

Voos amplos ceacuteus distantes migraccedilotildees

Longehellip noutras esferas luminosas

E pelo meu olhar passam visotildees

Ilhas de bruma e naacutecar drsquooiro e rosashellip

E eu penso que liberta de grilhotildees

Hei-de aportar agraves Ilhas misteriosasrdquo11

Esse doce misteacuterio que cheio da natureza de ser mulher eacute o que intriga-nos a

cada leitura e nos faz buscar conhecer mais de sua vida para entendermos sua

obra Seus contos nos mostram uma Florbela detentora de uma

intertextualidade viva que no decorrer das narrativas remete-nos a outros

tempos a outras leituras Cria um ambiente nostaacutelgico e contemplativo de

vasto campo simboacutelico percorrendo as mais variadas fontes para sua

inspiraccedilatildeo criadora com isso ao depararmos com o quadro descritivo na

narrativa recriamos esse quadro imaginaacuterio em nossa mente como em um

conto de fadas ali misturam-se fatos reais e imaginaacuterios tempos reais e

imaginaacuterios personagens reais e imaginaacuterias tudo ldquo eacute luminosas e exaltante

10 Citaccedilatildeo da dedicatoacuteria do livro ldquoAs maacutescaras do Destinordquo 1998 32 11 Poema ldquoLibertardquodo livro Poesia Completa 2004 75

11

emoccedilatildeordquo foi enchido de ldquotoda a espiritualidade beleza dolorosa e humildade e

acima de tudo as almasrdquo criadas ldquosatildeo gritos e soluccedilos de amorrdquo12

Diante disso o foco do estudo e pesquisa sobre Florbela Espanca se limitaraacute

em um levantamento analiacutetico e criacutetico dando vaacuterias possibilidades de

interpretaccedilatildeo bem como referecircncias intertextuais que satildeo citadas e ora

aparecem em seus contos no livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo Tal estudo

objectiva um conhecimento interpretativo e comparativo das leituras feitas por

Florbela e o modo como vieram a influenciar e dar sustentabilidade ao enredo

dos contos Quem sabe poderemos conhecer um pouco mais dessa misteriosa

mulher que dizia natildeo conhece a si mesma

O que sou eu AmorSei laacute que sou

Sou tudo e nada grande e pequenina

Sou a que canta uma ilusatildeo divina

Sou a que chora um mal que acabou

Eu sei laacute que quimera me beijou

E nunca o soube assim desde pequenina

Haacute neste mundo tanta amarga sina

A minha eacute saber nunca quem sou

Esfinge sonho tonto de desejos

Na tua boca sou uma asa aberta

A palpitar vermelha como os beijos

Andorinhahelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellipa voejar13

helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip

helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip

12 Citaccedilatildeo da dedicatoacuteria do livro ldquoAs maacutescaras do Destinordquo 1998 33 13 Poema sem tiacutetulo editado no livro ldquoEsparsos de Florbelardquo em Poesia Completa 2004 78

12

CAPIacuteTULO 01

11 - ENQUADRAMENTO TEOacuteRICO

Na literatura actual eacute frequente apontar-se como um dos factores de

textualidade a referecircncia - expliacutecita ou impliacutecita ndash a outros textos tomando estes

um sentido bem amplo (orais escritos visuais etc) A esse diaacutelogo entre textos

daacute-se o nome de intertextualidade

Eacute evidente que a intertextualidade estaacute ligada ao conhecimento de mundo que

deve ser compartilhado ou seja comum ao produtor e ao receptor do texto

Desta forma pressupotildee um universo cultural muito amplo e complexo pois

implica antes de tudo na identificaccedilatildeo e no reconhecimento de remissotildees a

obras ou a textostrechos mais ou menos conhecidos aleacutem de exigir do

interlocutor a capacidade de interpretar a funccedilatildeo daquela citaccedilatildeo ou alusatildeo em

questatildeo

Todas as questotildees ligadas agrave intertextualidade influenciam tanto o processo de

produccedilatildeo como o de compreensatildeo de textos o importante eacute natildeo encararmos a

intertextualidade apenas como a identificaccedilatildeo da fonte e sim que nos

preocupemos em estudaacute-la como um enriquecimento da leitura e da produccedilatildeo

de textos e sobretudo tentando mostrar a funccedilatildeo da sua presenccedila na

construccedilatildeo e no(s) sentido(s) dos textos

Como se pode notar na constituiccedilatildeo da proacutepria palavraldquointertextualidaderdquo

significa relaccedilatildeo entre textos Considerando-se texto num sentido lato como

um recorte significativo feito no processo ininterrupto de semiose cultural isto eacute

na ampla rede de significaccedilotildees dos bens culturais Pode-se afirmar que a

intertextualidade eacute inerente agrave produccedilatildeo humana O homem sempre lanccedila matildeo

do que jaacute foi feito em seu processo de produccedilatildeo simboacutelica Assim sendo o

texto como objecto cultural tem uma existecircncia fiacutesica que pode ser apontada e

delimitada um filme um romance um anuacutencio uma muacutesica Entretanto esses

objetos natildeo estatildeo ainda prontos pois destinam-se ao olhar agrave consciecircncia e agrave

recriaccedilatildeo dos leitores Cada texto constitui uma proposta de significaccedilatildeo que

natildeo estaacute inteiramente construiacuteda A significaccedilatildeo se daacute no jogo interpretativo

entre o texto e seu destinataacuterio Este uacuteltimo eacute um interlocutor ativo no processo

de significaccedilatildeo na medida em que participa do jogo intertextual tanto quanto o

autor

13

A intertextualidade se daacute pois tanto na produccedilatildeo como na recepccedilatildeo da grande

rede cultural de que todos participam Filmes que retomam filmes quadros que

dialogam com outros propagandas que se utilizam do discurso artiacutestico

poemas escritos com versos alheios romances que se apropriam de formas

musicais tudo isso satildeo textos em diaacutelogo com outros textos intertextualidade

Um texto remete a outro para defender as ideias nele contidas ou para

contestar tais ideias isso se daacute atraveacutes de um estudo comparativo entre textos

que ligam-se pela elaboraccedilatildeo artiacutestica de seu criador Eacute atraveacutes da anaacutelise

comparativa que tomamos ciecircncia da emergecircncia simboacutelica existente entre os

textos e a que niacutevel se daacute tal emergecircncia quanto agrave diacronia e sincronia que os

ligam Em qualquer niacutevel a produccedilatildeo simboacutelica eacute pois sempre uma retomada

de outras produccedilotildees perfazendo um jogo infinito que enreda autores e leitores

Apropriando-nos entatildeo de Schneider podemos afirmar

ldquoO texto literaacuterio eacute um palimpsesto O autor antigo escreveu uma lsquoprimeirarsquo vez

depois sua escritura foi apagada por algum copista que recobriu a paacutegina com

um novo texto e assim por diante Textos primeiros inexistem tanto quanto as

puras coacutepias o apagar natildeo eacute nunca tatildeo acabado que natildeo deixe vestiacutegios a

invenccedilatildeo nunca tatildeo nova que natildeo se apoacuteie sobre o jaacute-escritordquo (SCHNEIDER

199071)

No sentido estrito a palavra texto remete a uma ordem significativa

verbal Dentro dessa ordem a literatura vale-se amplamente do recurso

intertextual consciente ou inconscientemente Em razatildeo disso a

intertextualidade faz-se operador de leitura Eacute importante marcar os primoacuterdios

de Bakhtin em relaccedilatildeo a esses estudos divulgados por Juacutelia Kristeva Eacute dela o

claacutessico conceito de intertextualidade ldquo todo texto se constroacutei como mosaiacuteco de

citaccedilotildees todo texto eacute absorccedilatildeo e transformaccedilatildeo de um outro textordquo

(KRISTEVA 197464) Na verdade a intertextualidade inerente agrave linguagem

torna-se expliacutecita em todas as produccedilotildees literaacuterias que se valem do recurso da

apropriaccedilatildeo colocando em xeque a proacutepria noccedilatildeo de autoria Eacute o que vamos

observar ao longo do estudo no conto ldquoA Mortardquo em ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo

de Florbela Espanca temos aqui um bom exemplo do que se define como

intertextualidade as relaccedilotildees entre textos a citaccedilatildeo de um texto por outro

enfim o diaacutelogo entre textos Sendo assim para entender um texto na sua

totalidade eacute preciso conhecer o(s) texto(s) que nele fora(m) citado(s)

14

Eacute nesse contexto que Kristeva membro actuante da criacutetica francesa elabora

seu conceito de intertextualidade considerando que todo texto se constroacutei como

ldquomosaico de citaccedilotildeesrdquo Esse entendimento acarreta a consideraccedilatildeo de que a

intertextualidade eacute um fenoacutemeno que se encontra na base do proacuteprio texto

literaacuterio imbricada com a inserccedilatildeo deste num muacuteltiplo conjunto de praacuteticas

sociais relevantes A partir de Kristeva ldquotextordquo passa a ser entendido como o

evento situado na histoacuteria e na sociedade que natildeo apenas reflecte uma

situaccedilatildeo mas eacute essa proacutepria situaccedilatildeo apagando linhas divisoacuterias entre as

disciplinas e constituindo um cruzamento entre diferentes superfiacutecies textuais e

distintas aacutereas do saber cientiacutefico e da esfera artiacutestica ldquoPelo seu modo de

escrever lendo o corpus literaacuterio anterior ou sincroacutenico o autor vive na histoacuteria

e a sociedade se escreve no textordquo (KRISTEVA 197498)

A partir dos postulados deste conceito observamos que a intertextualidade

reflecte a concepccedilatildeo do texto literaacuterio como carregado de outros textos

inclusive do ldquotextordquo da realidaderdquo E eacute essa realidade polifoacutenica de vivecircncia

tumultuosa e inquietante de dissabores intriacutensecos e por vezes

transcendentais de acontecimentos filtrados atraveacutes de sua proacutepria

sensibilidade e sua imaginaccedilatildeo fantaacutestica que Florbela Espanca tem

manifestado para que seja compreendido seus misteacuterios de forma a dar mais

realce atraveacutes das vaacuterias formas de compreensatildeo e interpretaccedilatildeo intertextual e

comparativa de sua obra Neste sentido a teoria intertextual e comparativa

seraacute um guiatildeo a nortear um trabalho na tentativa de conhecermos essa

enigmaacutetica escritora que foi Florbela Espanca E eacute dela o incentivo para um

maior entendimento daquilo que nos deixou ldquoPara mim Para ti Para ningueacutem

Quero atirar para aqui negligentemente sem pretensotildees de estilo sem

anaacutelises filosoacuteficas o que os ouvidos dos outros natildeo recolhem reflexotildees

impressotildees ideias maneiras de ver de sentir ndash todo o meu espiacuterito paradoxal

talvez friacutevolo talvez profundo Compreendi por fim que nada compreendi que

mesmo nada poderia ter compreendido de mimhellipRestam-me os outroshellip

talvez por eles possa chegar agraves infinitas possibilidades do meu ser misterioso

intangiacutevel secretordquo (FLORBELA ESPANCA 199833)14

14 Fragmento retirado do livro ldquoDiaacuterio do Uacuteltimo Anordquo Bertrand Editora

15

A proposta de entendimento intertextual traacutes um reflexo de sua existecircncia

registado em sua ldquoDivina Comeacutediardquo15 pelos seus ldquoVersosrdquo16

ldquoVersos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip

Pedaccedilos de sorrisos branca espuma

Gargalhadas de luz cantos dispersos

Ou peacutetalas que caem uma a umahellip

VersosSei laacute Um verso eacute o teu olhar

Um verso eacute o teu sorriso e os de Dante

Eram o seu amor a soluccedilar

Aos peacutes de sua estremecida amante

Meus versos Sei eu laacute tambeacutem que satildeohellip

Sei laacute Sei laacute Meu pobre coraccedilatildeo

Partidos em mil pedaccedilos satildeo talvezhellip

Versos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip

Meus soluccedilos de dor que andam dispersos

Por este grande amor em que natildeo crecircsrdquo

15 Referecircncia a Obra de Dante Alighieri A Divina Comeacutedia uma viagem ao inferno purgatoacuterio e ao

paraiacuteso Aqui em relaccedilatildeo a vida de Florbela a palavra comeacutedia tem duplo significado o de origem dando

seguimento bom ao desenlace das personagens e em seu sentido coacutemico aos factores da inconstacircncia da

escritora 16 Referecircncia ao poema de Florbela escrito em O livro Drsquoele Poesia Completa2004 208

16

13 - ABORDAGENS SOBRE ldquoAS MAacuteSCARAS DO DESTINOrdquo ldquoOs contos satildeo como ela - siacutembolo de permanecircncia no pensamento da terra fio

de amor que manteacutem a sua magneacutetica forccedila saudade de tudo que podia

significar felicidade e expressatildeo do afectordquo17

Dedicada ao seu irmatildeo Apeles Demoacutestenes da Rocha Espanca ndash ldquoAs

Maacutescaras do Destinordquo eacute uma obra inspirada na tristeza e dor que a perda do

irmatildeo causa em Florbela Sua dedicatoacuteria ldquoeacute como um punho culpado que

Florbela assenta no proacuteprio peitordquo (FLORBELA ESPANCA 199825) assim diz

Agustina Bessa-Luiacutes autora do prefaacutecio escrito em 1979 que orienta-nos sobre

as condiccedilotildees de leitura que envolve esta obra

A dedicatoacuteria escrita por Florbela comprova o amor de irmatildeos Apeles era

ldquoAquele que das mesmas entranhas foi nascido que ao calor do mesmo

amplexo foi gerado Aquele que traz no rosto as linhas do teu rosto nos olhos a

aacutegua clara dos teus olhos o teu Amigo o teu Irmatildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA

199831 e 32) Ela escrevia tais palavras como uma matildee que acabara de

perder a um filho ldquopara que tua mocidade natildeo trema de o ver partir um dia

bom e meigo para que vivas na ilusatildeo bendita de teres um filho forte e belo

para te obrigar a encarar sorrindo as coisas vis e feias deste mundohelliprdquo

(FLORBELA ESPANCA 199831) Na realidade tais clamores professados soacute

a uma matildee que perdera seu filho eacute permitido senti-los

Escrita no final de 1927 reuacutene oito contos denominados ldquoO Aviador ldquoA Mortardquo

ldquoOs Mortos Natildeo Voltamrdquo ldquo O Resto Eacute Perfumerdquo ldquoA Paixatildeo de Manuel Garciardquo

ldquo O Inventorrdquo ldquoAs Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquoO Sobrenaturalrdquo

Como demonstram os tiacutetulos dados aos contos o tema ldquomorterdquo eacute o ponto de

convergecircncia entre os enredos e vem reforccedilar o pendor funesto da obra de

Florbela natildeo apenas pelo desaparecimento do irmatildeo mas que jaacute fazia parte

da proacutepria insatisfaccedilatildeo intimista que a escritora detinha Nesta altura por forccedilas

das circunstacircncias parecia estar desvinculada da vida como uma morta e sua

perpeacutetua busca lhe assegura uma espeacutecie de eternidade

Natildeo participando do enredo assim sendo em 3ordf pessoa mostrava-se uma

observadora a narrar fatos onde a realidade se confunde com o imaginaacuterio

17 Fragmento escrito por Agustina Bessa-Luiacutez retirado do prefaacutecio do livro As Maacutescaras do Destino de

Florbela Espanca 199810

17

fantaacutestico e soacute nos traacutes agrave lucidez da compreensatildeo devido as referecircncias

intertextuais as quais satildeo comuns aos contos pois ldquo o fantaacutestico se caracteiza

por una instrusioacuten brutal del misteacuterio en el marco de la vida real y estaacute ligado

generalmente a los estados moacuterbitos de la conciencia que en los fenoacutemenos

de pesadilla e de deliacuterio proyecta ante siacute imaacutegenes de sus angustias e de sus

terroresrdquo (GEORGES JEAN 1889 68 e 69) Mas a escritora natildeo desvincula-se

de sua obra uma forte tendecircncia de Florbela Marcando presenccedila no conto ldquoO

Resto Eacute Perfumerdquo interage como personagem assim assume o relato como

se procedesse de outro narrador para que pudesse penetraacute-lo e manter suas

caracteriacutesticas inquietantes e paradoxais acrescentando uma forte dose de

existencialismo e a presenccedila do ldquoEurdquo que vem reforccedilar a categoria de seus

relatos miacuteticos Aqui o ldquofantaacutesticordquo se confunde com o ldquomaravilhosordquo isso

devido aos relatos mitoloacutegicos que implica durante a leitura em um

redireccionamento do leitor a outro espaccedilo a outro tempo onde temos a ilusatildeo

de vivermos por um breve momento em outro lugar Florbela nos permite a

viagens imaginaacuterias em que o maravilhoso de seus contos dependeraacute de uma

infinidade de interpretaccedilotildees que natildeo seratildeo necessariamente interpretaccedilotildees

racionais pois as interpretaccedilotildees paralelas e divergentes satildeo sempre possiacuteveis

devido a riqueza do conto em si que no caso de Florbela estatildeo ligados aos

estados moacuterbidos de sua consciecircncia

Sabemos que algum dos elementos imaginaacuterios dos contos de Florbela estaacute

ligada ao realismo de sua histoacuteria verdadeira e isso eacute capaz pela virtudes que

soacute os contos de fadas pode proporcionar apesar de sua vida inconstante e

cheia de maacutegoas soube mascarar seu inconsciente e dar a seu relato um

intercacircmbio gracioso e sentimental com sua vida Por sua vez tais relatos

remetem-se a duas vertentes essenciais nos contos a primeira de propagar as

formas simboacutelicas durante a histoacuteria e a segunda de inserir essas formas

mediante a expansatildeo de sua escrita atraveacutes dos contos Um bom exemplo

disso eacute a clareza de como um conto complementa outro Atentemos para os

detalhes simboacutelicos de ldquoO Inventorrdquo que parece encerrar-se em ldquoO Aviadorrdquo da

mesma forma acontece em ldquoO Sobrenaturalrdquo e ldquoOs Mortos natildeo Voltamrdquo ldquoAs

Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquo A Paixatildeo de Manuel Garciardquo por fim

vemos a profunda reflexatildeo sobre a vida em ldquoO Resto eacute Perfumerdquo culminando

no conto ldquoA Mortardquo que tem em seu final a imersatildeo nas aacuteguas elemento

18

comum em todos os contos que parece como siacutembolo de redenccedilatildeo Temos

aqui um quadro para um estudo comparativo minucioso entre os proacuteprios

contos

Como afirma Agustina Bessa-Luiacutes ldquo para ler a prosa eacute preciso compreender a

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199816) Neste contexto natildeo ousamos falar

do quadro complexo que a palavra ldquomulherrdquo como um ser social objectiva mas

sim na simplicidade do comportamento de vaacuterias mulheres numa soacute imagem

constante nos contos que sente no seu intimo a dor da perca A primeira

referecircncia aqui eacute da mulher-irmatilde que vecirc no uacutenico irmatildeo morto a decadecircncia de

si mesma ldquo seraacute em breve uma sombra na tua sombrardquo (FLORBELA

ESPANCA 199832) Da mulher-matildee e o vazio de sua dor silenciosa ldquo A pobre

matildee abafou um soluccedilo voltou-se e olhou o mortordquo (FLORBELA ESPANCA

1998112) E por fim da mulher-religiosa que busca na cristandade respostas

para seus questionamentos e refuacutegio para seu tormento ldquomais fraacutegil mais

luminosa continuava a rezar as suas oraccedilotildeeshelliporaccedilotildees de amor sacriacutelegas

blasfemas oraccedilotildees de pecadohellipDe pecado Natildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA

1998154) Assim concebo a mulher Bela a compreensatildeo de sua escrita estaacute

nos olhos de quem as vecirc e na sensibilidade de a conhecer Desta feita ldquoa fase

dos equiacutevocos com que a gesta amorosa que a serve com a permanente

invenccedilatildeo de objectos meritoacuterios eacute substituiacuteda por uma feacute na alma feacute que se

acompanha do terriacutevel sentimento de estar morta de natildeo ser mais do que a

aparecircncia dum espaccedilo vividordquo (FLORBELA ESPANCA 199823) diz Agustina

Bessa-Luiacutes

Nesta obra duas propriedades do texto satildeo facilmente perceptiacuteveis a

intertextualidade e a influecircncia exercida em cada conto Essa uacuteltima

envolvendo as fortes caracteriacutesticas da escritora Florbela Espanca Contudo o

texto se constroacutei agrave medida que retoma fatos jaacute conhecidos como eacute o caso das

vaacuterias citaccedilotildees de autores e personagens que ilustram o livro Nesse sentido

quanto mais amplo for o repertoacuterio do leitor o seu acervo de conhecimentos

maior seraacute a sua competecircncia para perceber como os textos dialogam uns

com os outros por meio de referecircncias alusotildees e citaccedilotildees Eacute assim que

Florbela queria que a entendecircssemos atraveacutes de um diaacutelogo intriacutenseco para

descobrirmos suas maacutescaras

19

CAPIacuteTULO 02 21 - ldquoSONHO DE IacuteCAROrdquo

ldquoVoar voar subir subir

Ir por onde for descer ateacute o ceacuteu cair

Ou mudar de cor anjos de gaacutes

Asas de ilusatildeo e um sonho audaz

Feito um balatildeo

No ar no ar eu sou assim

Brilho do farol aleacutem do mais

Amargo fim simplesmente sol

Fugir meu bem eacute ser felizhellip

Ir ateacute que um dia chegue enfim

Em que o sol derreta a cera ateacute o fimrdquo18

A mitologia eacute uma das concepccedilotildees mais geniais que a humanidade produziu

Os gregos instauraram uma categoria intermediaacuteria entre os homens e os

deuses o semideus criando assim os heroacuteis mitoloacutegicos Isso veio a dar

margem a novas investigaccedilotildees sobre os fenoacutemenos da realidade natural

levando ao questionamento da origem dos seres a qual obtiveram respostas

sem sentido concreto Com isso incorporaram a concepccedilatildeo de que a vida e

suas manifestaccedilotildees satildeo obras das forccedilas do espiacuterito que habita em cada um

de noacutes sendo tambeacutem responsaacutevel pela nossa maneira de ser e de agir Isso eacute

sem duacutevida um meio de penetrar atraveacutes da imaginaccedilatildeo no misteacuterio da

existecircncia humana Desta forma o mito consiste nos acontecimentos que se

repetem ao longo da histoacuteria natildeo tendo fim O homem reconhecendo em cada

acto quotidiano uma participaccedilatildeo nos grandes ciclos da vida se sente

participar da grande eternidade miacutetica Partindo de suas origens o homem

consegue viver integralmente e uma vez dentro da mentalidade miacutetica a

proacutepria morte pode ter sentido

18 Fragmento da canccedilatildeo ldquosonho de Iacutecarordquo escrito por Pisca e Claacuteudio Rebelo interpretaccedilatildeo do cantor

brasileiro Byafra

20

Com o intuito de imortalizar o momento de uma trageacutedia Florbela lanccedila matildeo de

aspectos mitoloacutegicos dentro de seus contos que muito nos lembra a triste

histoacuteria de Deacutedalo e Iacutecaro 19 mostrando que o espiacuterito humano de vencer

barreiras e limites nos impulsiona a superar nossas proacuteprias limitaccedilotildees

Alcanccedilar o espaccedilo e as estrelas lanccedilar-se ao infinito experimentar da

sensaccedilatildeo de liberdade interior e o desvendar do misterioso infinito eacute o que

norteia o enredo dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquo O Inventorrdquo

Praticamente todas as culturas destacam o ceacuteu como um lugar especial Esse

local era normalmente designado como a morada dos deuses Muitos povos

consideravam que as constelaccedilotildees eram representaccedilotildees dos seus mitos e

lendas Dessa forma o ceacuteu era um lugar divino e os homens somente o

alcanccedilavam quando eram convidados ou homenageados pelos deuses Mas o

atrevimento de uns culminou na desgraccedila de outros Apenas aqueles com

sabedoria e dotado de iacutentima consciecircncia disciplinar sobre sua condiccedilatildeo

humana conseguiam graccedilas aos olhos dos deuses O conflito interior era um

grande empecilho para que fatos tivessem o desenrolar bem sucedidos

Quando isso natildeo acontecia o homem reconhecia sua condiccedilatildeo de inferioridade

em relaccedilatildeo aos deuses e eram designados ldquofilhos dos homensrdquo

O aparecimento da referecircncia mitoloacutegica pressupotildee uma forte ligaccedilatildeo aos elos

do mito de fundaccedilatildeo que sustenta a harmonia familiar juntamente com

preceitos de moral tendo por priori a identidade pessoal na figura paterna

como eram conhecidos os grandes heroacuteis mitoloacutegicos por serem semideuses

Nesta constante nos eacute dado a conhecer a condiccedilatildeo humana que tambeacutem

aparece de forma intertextualizada como referecircncia ao quadro do flamengo

19 Iacutecaro era filho de Deacutedalo o construtor do labirinto que o rei Minos aprisionava o Minotauro um ser

com corpo de homem e cabeccedila de touro A lenda grega conta que Deacutedalo ensinou Teseu que seria

devorado juntamente com outros jovens pelo monstro como sair do labirinto Deacutedalo sugeriu que ele

deveria utilizar um novelo que deveria ser desenrolado a medida em que fosse penetrando no labirinto

Dessa forma apoacutes ter matado o monstro ele conseguiu fugir do labirinto O rei Minos ficou furioso e

prendeu Deacutedalo e o seu filho Iacutecaro no labirinto Como o rei tinha deixado guardas vigiando as saiacutedas

Deacutedalo construiu asas com penas dos paacutessaros colando-as com cera Antes de levantar voo o pai

recomendou a Iacutecaro que quando ambos estivessem voando natildeo deveriam voar nem muito alto (perto do

Sol cujo calor derreteria a cera) e nem muito baixo (perto do mar pois a unidade tornaria as asas

pesadas) Entretanto a sensaccedilatildeo de voar foi tatildeo estonteante para Iacutecaro que ele esqueceu a recomendaccedilatildeo e

elevou-se tanto nos ares a ponto da previsatildeo de Deacutedalo ocorrer A cera derreteu e Iacutecaro perdeu as asas

precipitando-se no mar e morrendo afogado

21

Brueghel (a Queda de Iacutecaro)20 que Florbela tatildeo bem ilustra com uma descriccedilatildeo

que mais parece uma tela ldquo Os filhos dos homens caacute em baixo deixam cair

nos campos a enxada que faz nascer o patildeo e florir as rosas os pescadores

largam os remos audaciosos que rasgam os mares e os rios e os filhos dos

homens mais duramente castigados os que habitam o formigueiro das cidades

param nas suas insensatas correrias de formigas e todos voltam a face para o

ceacuteurdquo (FLORBELA ESPANCA 199838) Aqui a intertextualidade sugerida

numa linha ecfraacutestica vai de encontro a misteriosa temaacutetica de Florbela

significando isto que o espiacuterito de aventura eacute frequentemente motivo de

incompreensatildeo e de grande solidatildeo

Do mesmo modo que impotildee a condiccedilatildeo de mortal ao homem Florbela o

enaltece dando-lhe honrarias e elevando-o a condiccedilatildeo de um deus ldquo Nos olhos

leva visotildees que os filhos dos homens natildeo conhecem Eacute um homem Deixou laacute

em baixo todo o fardo pesado e vil com que o carregam ao nascer deixou laacute

em baixo todas as algemas todos os feacuterreos grilhotildees que o prendiam toda a

suprema maldiccedilatildeo de ter nascido homem deixou laacute em baixo a sua sacola de

pedinte o seu bordatildeo de Judeu Errante e livre indoacutemito sereno na sua

miacutesera couraccedila de pano azul estendeu em cruz os braccedilos que transformou em

asasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199839) Ao atingir tal supremacia o homem

liberta-se de sua vida anterior e ganha autonomia na forma da liberdade

intriacutenseca conseguindo a superaccedilatildeo de sua forma decadente e de seus

conflitos interiores atraveacutes da liberdade celestial alcanccedilada Deacutedalo foi

conhecido como o arquitecto e artista da liberdade mesmo tendo construiacutedo o

labirinto que eacute a representaccedilatildeo do aprisionamento Aqui Florbela utiliza desse

argumento como se seus escritos fossem labiriacutenticos e teriacuteamos de encontrar

as palavras certas para desvendarmos seus caminhos encontrando neles

assim a liberdade Essa mesma liberdade transformada aqui no voo mais alto

que levaria a traacutegica morte

Apesar de mostrada diferentemente temos aqui mais uma vez a dualidade

que percorre a obra de Florbela o aprisionamento e a liberdade a vida e a

morte antiacuteteses que perfilam seu anseio humano ldquo Um dia julgou ter achado

20 Quadro de Broeghel demonstrando a queda de Iacutecaro no mar enquanto os camponeses prosseguem a sua

labuta diaacuteria

22

Oh aquele dia A embriaguez do homem que se igualou a Deus O coraccedilatildeo a

bater a bater a sentir-se grande demais para um peito tatildeo pequeno para um

tatildeo mesquinho destino A humidade das laacutegrimas a embaciar o olhar gigante

que se esquecera um momento de ter nascido pigmeu O artista o poeta o

inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de movimento e de

vida todos os que desbravavam caminhos os que talham abrem por entre os

matagais selvagens e as belas estradas largas do pensamento e das ideias As

palavras satildeo o muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes

ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)

Ao atingir o voo pleno por vezes nos afastamos da realidade natural e nos

lanccedilamos ao desconhecido sem saber o que nos espera Com isso a queda eacute

inevitaacutevel Neste seguimento vemos a intertextualidade presente sob o estigma

dos cuidados de Zeus filho de Cromo e pai dos deuses que concedeu aos

heroacuteis uma morada afastada dos homens onde os semideuses pudessem se

estabelecer nos confins da terra Eacute laacute que habitam com o coraccedilatildeo livre de

cuidados nas Ilhas dos Bem-Aventurados nas praias dos turbilhotildees profundos

do Oceano satildeo eles os heroacuteis afortunados a quem Florbela tambeacutem concede

a morada preparada como tuacutemulo perfeito para o descanso eterno A

representaccedilatildeo das deusas das aacuteguas na presenccedila das ninfas efidriacuteades21 que

simbolizam a graccedila criativa e fecundadora da natureza fazem aparecer a

presenccedila feminina que surge com o intuito de exaltar a forccedila interior que so a

mulher tem para defrontar situaccedilotildees desastrosas e encontrar soluccedilatildeo nos mais

tenebrosos conflitos bem como de dar um toque de suavidade ternura beleza

e leveza que soacute a performance feminina consegue impor ldquo hellipAs filhas dos

deuses ondinas sereias nereidas princesas encantadas acodem todas

pressurosashellipEm volta das asas mortas satildeo como flores desfolhadas em

redor dum esquife negro E olhamhelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 199842) A

sabedoria feminina evidencia-se ao se manifestar a ldquoque tinha nos olhos uma

nostaacutelgica tristeza humanardquo (FLORBELA ESPANCA 199846) como uma matildee

protectora que acalenta o filho em seu sono profundo e compreende com

tristeza a dor dos mortais ou quem sabe sua proacutepria dor na condiccedilatildeo de

imortal pois somente aos deuses era permitido o poder de arrebatar o espiacuterito

21 Referecircncia as ninfas das aacuteguas da mitologia grega

23

a um homem ldquo E aquele que tinha sido um filho dos homens ficou a dormir na

eternidade como se fora um filho dos deusesrdquo (FLORBELA ESPANCA

199846)

Como podemos perceber Florbela em sua construccedilatildeo literaacuteria delineou nas

entrelinhas dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquoO Inventorrdquo aspectos simboacutelicos

determinantes do aprisionamento e da libertaccedilatildeo humana natildeo somente no

sentido denotativo mas tambeacutem conotativo na multiplicidade de sentidos que

tais palavras propotildeem Apesar da evidecircncia colocada pela escritora ainda nos

remete a reflexatildeo pois o aprisionamento pode ser um meio de libertaccedilatildeo e a

libertaccedilatildeo um aprisionamento ldquohellipOlhou o ceacuteu profundohellipe achou Ser aviador

eacutehellipabraccedilar no mesmo abraccedilo o ceacuteu e o mar Na linguagem dos siacutembolos a

acircncora definindo a esperanccedila nunca poderaacute valer as asas que satildeo a

libertaccedilatildeo A acircncora agarra-se ao fundo e fica as asas abrem-se no espaccedilo e

penetram o ceacuteuhellipSeria aviador Quando pela primeira vez voou natildeo se

esqueceu de sentar na carlinga a seu lado ao lado do seu coraccedilatildeo aquela

que dali em diante seria a companheira de todos os dias a companheira

indefectiacutevel de todos os aviadores a Morterdquo (FLORBELA ESPANCA 1998

129)

A produccedilatildeo intertextual desses dois contos traz-nos um imaginaacuterio voltado aos

princiacutepios fundadores de conceitos e referecircncia humana Florbela baseia-se na

representaccedilatildeo da infacircncia como elemento fundador da personalidade e do

caraacutecter ou seja a figura do pai que nunca a reconheceu em vida e por outro

lado na figura de Deacutedalo e Iacutecaro tendo o pai a dualidade em sua referecircncia

paterna Eacute assim que de ldquotentaccedilatildeo em tentaccedilatildeo de fraqueza em fraqueza os

compromissos de consciecircncia levam um homem honrado agrave praacutetica de todos os

crimeshelliprdquo22

22 Fragmento do conto O Inventor de Florbela Espanca As Maacutescaras do Destino1998122

24

22 - A MULTICIPLIDADE DO HEROacuteI

ldquo A vida parada e recolhida cria heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tarderdquo23

Ao encontrarmos facetas mitoloacutegicas entre as leituras de Florbela natildeo se pode

descartar a visatildeo do heroacutei que a autora engendrou na figura de seu irmatildeo

Apeles Tiacutetulo esse dado a homens excepcionais como Ulisses que eram

venerados por seu povo da mesma forma Florbela nutria uma verdadeira

veneraccedilatildeo que a levou a personificar o Aviador a um heroacutei merecedor de

honrarias e apesar da miacutesera condiccedilatildeo de mortal foi-lhe atribuiacutedo qualidades

fiacutesicas e morais dignas de um semideus ldquo A vida parada e recolhida cria

heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tardehellip o pincel de geacutenio daacute os uacuteltimos

retoques ao cenaacuterio de epopeiahellip laacute em cima a formidaacutevel apoteose desdobra-

se no meio do pasmo das coisas Eacute um homem que tem asas E as asas

pairam descem rodopiam ascendem de novo giram latejam batem ao sol

mais aacutegeis e mais robustas mais leves e mais possantes que as das aacuteguias Eacute

um homem A face eneacutergica vincada a cinzel emerge extraordinaacuteria da vida

intensa na indecisatildeo dos contornos que lhe fazem vagos e paacutelidos um vago

pano de fundo a face e as matildeoshellipOs muacutesculos da face adivinham na forccedila

brutal das maxilas cerradas Nos olhos leva visotildees que os filhos dos homens

natildeo conhecem Os olhos dele natildeo se vecircem olham para dentro e para fora satildeo

pedras como as das estaacutetuas e vecircem mais e mais para aleacutem do que as

miacuteseras pupilas humanas Satildeo astrosrdquo (FLORBELA ESPANCA 199838 e 39)

Esta mesma condiccedilatildeo eacute dada ao Inventor autor da imaginaccedilatildeo de Florbela

ldquoRealizara os seus sonhos todos os seus sonhos Que havia mais agora Jaacute

os homens podiam sulcar os ares sem medo aos vendavais agraves coacuteleras brutais

da Natureza jaacute o ceacuteu se podia coalhar de asas como o mar de velas Todo o

homem poderia ter sem perigo e sem riscos a cobiccedilada sensaccedilatildeo de

comandar nos elementos como um semideusrdquo (FLORBELA ESPANCA

1998133)

Sabemos que o heroacutei constitui o assunto da poesia eacutepica ele tem a sua

maneira proacutepria de agir pela sua coragem e bravura e prossegue objectivos

23 Fragmento do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca198837 e 38

25

bem determinados que ao longo de sua trajectoacuteria lhe satildeo atribuiacutedos cada qual

com sua importacircncia e valor Eacute dado a ele tambeacutem o poder de decisatildeo ora

sobre seus actos ora sobre si mesmo Isso como forma de valorizar sua

sabedoria e supremacia diante daqueles a quem defendia Assim se apresenta

o heroacutei dos contos de Florbela homem-deus detentor de toda visatildeo forte

dominador senhor supremo de seu destino a quem eacute concedido um lugar

eterno junto aos astros

A realidade fictiacutecia da mitologia eacute comparada aqui a realidade autecircntica

Florbela interessa-se pelo seu heroacutei fictiacutecio como se fosse ou tratasse de uma

pessoa real com isso podemos dizer que a escrita ficcional de Florbela eacute

mimese porque a realidade de sua vida humana eacute o seu material de escrita ela

consegue transformar a realidade objectiva na realidade subjectiva vivencial

razatildeo por que nos deixamos influenciar pela sua trajectoacuteria de vida em seus

escritos Isso justifica o fato da ldquovaliosa bravurardquo ndash por uma valiosa pintura - de

seu heroacutei ser retratado em uma tela por um titatilde24 personifica assim a grande

luta travada com as forccedilas da natureza ldquoEacute um Rembrandt pintado por um titatilderdquo

(FLORBELA ESPANCA 199839) A sua proacutepria natureza humana A propoacutesito

disso parece mais reportar ao paradoxo entre o bem e o mal que lutam

constantemente pelo domiacutenio da razatildeo interior talvez alvo de Florbela

Eacute interessante observar a relaccedilatildeo que existe entre o ldquohomem com asasrdquo com

as Harpias25 que na multi-significaccedilatildeo de seu discurso nos projecta a uma

realizaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo na figura do heroacutei alado em uma transposiccedilatildeo

imaginaacuteria com uma pluralidade de sentidos que poderia ocultar um sentido

uacutenico o seu proacuteprio desejo ou o desejo de arrebatar a alma de seu morto

Tambeacutem vemos a intertextualidade corrente na pessoa de Ulisses26 o heroacutei

grego navegante Robson Crusoeacute27 Piratas dos Sete Mares28 aos capitatildees e

24 Referecircncia a segunda geraccedilatildeo dos deus mitoloacutegicos representantes das forccedilas da natureza e sem uma

personalidade bem vincadaos quais Hesiacuteodo enumerou em doze seis machos e seis fecircmeas Oceano Ceacuteu

Crio Hiperiacuteon Jaacutepeto Cronos Teia Reja Teacutemis Mnemoacutesine Febe e Teacutetis 25 As Harpias filhas de Electra (ela proacutepria filha do Titatilde Oceano) e de Taumas (filho de Ponto e de Geia)

pertencem agrave geraccedilatildeo dos preacute-oliacutempicos Elas satildeo irmatildes de iacuteris a mensageira dos deuses Representadas

quer como mulheres aladas com um aspecto fameacutelico quer como paacutessaros com cabeccedila de mulher as

Harpias residem nas ilhas Estroacutefades do mar Egeu ou ainda agraves portas do Taacutertaro Impetuosas e brutais

como a tempestade as Harpias satildeo - este eacute o sentido do seu nome - raptoras com garras fortes 26 Odisseu (na Greacutecia) ou Ulisses (em Roma) eacute um personagem da Iliacuteada e da Odisseacuteia de Homero Apoacutes

a derrota dos troianos ele iniciou uma viagem de dez anos de volta para Iacutetaca onde a sua mulher o espera

com uma fidelidade obstinada apesar da demora Essa viagem mereceu a criaccedilatildeo por Homero do poema

26

navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a

coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a

solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o

enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio

multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos

diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio

Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os

naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de

navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS

Maacutescaras do Destino 1998 p 125)

Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada

com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a

renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que

convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos

escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a

partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental

aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A

viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas

suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte

recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os

heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas

ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o

navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira

de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que

nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era

eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que

deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-

1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado

a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe

herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico

sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O

romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como

tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar

que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os

Lusiacuteadas de Camotildees

27

no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo

da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)

Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida

funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo

conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente

nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de

alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva

Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer

tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos

heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os

portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens

tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que

de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os

navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por

deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da

Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do

texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute

simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no

poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES

1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou

passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da

Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas

natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer

vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de

ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um

heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com

o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas

forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um

aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem

mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva

30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos

Lisboa

Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal

28

presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de

Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura

greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito

especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela

escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a

morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem

para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de

transformaccedilatildeo fantaacutestica

Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que

na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena

confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir

uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute

infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu

desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma

personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo

inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade

aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios

filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa

escritora o seu carma

Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei

que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora

quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem

ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles

desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma

as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista

o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de

movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos

esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do

pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam

As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes

ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)

29

CAPIacuteTULO 03

31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS

ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de

doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32

No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute

intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em

todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do

proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade

de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma

comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro

cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser

estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute

antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de

alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas

oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir

as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava

perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o

fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo

para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que

muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da

escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e

complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e

pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma

formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela

graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa

assume

32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122

30

De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete

agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem

Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites

nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute

podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido

conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao

inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um

ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma

palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a

intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda

e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas

pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma

onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo

(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um

recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o

renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio

inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a

matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada

ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe

mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata

cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de

voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e

122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso

indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam

tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele

o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as

suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um

emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados

que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e

intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica

33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ

31

Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado

transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas

Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e

que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a

imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de

dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada

dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais

significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa

escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e

sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-

as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar

inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos

era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade

existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)

A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio

Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo

tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens

que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de

tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta

ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a

proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo

Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante

notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe

de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e

medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca

mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho

branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a

socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua

presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo

(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo

deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo

queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a

intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia

humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para

32

sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo

pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no

mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais

apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva

enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente

foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)

A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja

como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo

atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute

reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em

busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito

junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos

satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad

que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que

han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas

mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como

meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do

inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os

aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias

34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939

33

32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO

ldquoA vida vem em ondas

Como o mar

Num indo e vindo infinitohelliprdquo35

A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente

foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram

o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios

da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-

portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo

ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura

universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e

nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a

esquizofrenia de sua alma

O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos

grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma

visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes

de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-

racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas

fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma

encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no

espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada

ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar

duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava

que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se

35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos

em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria

imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia

grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios

Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e

cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam

da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela

Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a

sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor

34

sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o

olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de

um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o

seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No

reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que

constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia

Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor

das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que

participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na

claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma

a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial

apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se

imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA

ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta

solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser

acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas

pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de

existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas

dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma

mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar

agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)

As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar

aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de

Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a

37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta

nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet

tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido

advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte

de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga

(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre

1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a

questatildeo (Hamlet ato III cena I)

38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)

que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era

destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar

35

travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes

questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente

humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a

vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa

loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz

a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair

numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua

frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico

mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de

transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a

morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano

capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas

ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de

integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de

totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma

ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade

de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida

dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a

seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas

iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives

mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas

dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a

cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute

perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras

velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida

de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar

costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras

por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e

grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme

O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu

amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do

Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para

toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos

36

Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser

salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma

dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo

desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave

liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos

secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a

uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo

desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a

boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia

pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a

mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais

alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se

nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira

as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de

alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora

julga existir no seu misteacuterio

O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e

forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e

sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que

orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente

num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das

contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute

traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas

que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas

figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas

narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um

imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e

39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII

mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a

bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por

alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua

tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar

Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A

histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito

em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que

aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas

aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma

37

refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus

fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a

sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades

da dinacircmica universal

Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar

simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos

narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos

siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um

contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da

efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma

capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde

diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e

exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia

essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel

mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo

do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do

Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)

e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo

social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)

na representatividade literaacuteria do mar

38

CAPIacuteTULO 04

41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA

ldquoGosto de ti apaixonadamente

De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo

De ti que me trouxeste pela matildeo

Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40

Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso

a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade

directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na

poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua

dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees

Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita

capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e

um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz

e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a

dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas

conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute

e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria

serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem

quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto

anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse

em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita

maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte

com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e

quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e

emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos

paradoxos

40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no

livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004

Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo

Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11

39

Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos

toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-

romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido

num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia

com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes

profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas

sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo

acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando

a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A

derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a

conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas

da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da

sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No

entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas

romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a

impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo

definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha

aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento

em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o

passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era

tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto

A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos

acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-

Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs

Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os

Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de

Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de

Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o

egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo

narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica

Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute

neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o

poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem

40

esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma

essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no

iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma

questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos

encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem

sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos

interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas

as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um

exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo

tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo

daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita

conteacutem

41

42 - UM PERCURSO COMPARATIVO

ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os

vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e

outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que

ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute

foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41

ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto

Olhou em roda natildeo achou ningueacutem

Por entre as campas arrastando o manto

Com lentos passos caminhou aleacutem

Abandonado neste chatildeo repousa

Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui

Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa

Sobre este peito que bateu por tirdquo42

A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e

o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-

romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua

linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa

o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se

O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando

proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos

moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na

literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror

Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou

comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas

circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de

comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e

sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos

41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda

Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos

42

ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de

outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou

Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)

Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal

de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma

optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada

pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada

no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus

sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa

suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois

dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)

Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade

todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional

natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute

afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute

tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima

do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo

Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela

e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a

prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua

intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a

dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as

influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente

que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz

directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para

a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o

intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era

partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada

por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das

rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de

branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza

43

ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas

Longas roupagens de neveda cor

Singela croa de virgiacutenias rosas

Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43

ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de

branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila

devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa

nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)

Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de

conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se

para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da

imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a

partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a

presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os

uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem

eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera

absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor

ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria

A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a

intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um

testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista

e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas

caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da

temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao

fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma

retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras

masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo

homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma

mulher

43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12

44

(hellip)

Mulher formosa que adorei na vida

E que na tumba natildeo cessei damar

Por que atraiccediloas desleal mentida

O amor eterno que te ouvi jurar

Amor engano que na campa finda

Que a morte despe da ilusatildeo falaz

Quem dentros vivos se lembrara ainda

ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)

Talvez que rindo dos protestos nossos

Gozes com outro dinfernal prazer

E o olvido cobriraacute meus ossos

Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44

Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o

vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as

bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis

e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma

essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o

podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA

ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de

sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a

eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos

na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto

com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais

de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas

palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o

esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal

seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu

passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre

44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9

45

que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as

matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos

das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam

para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)

Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno

num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista

melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias

possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela

um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica

natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem

fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo

intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas

rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso

consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo

intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas

solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou

com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a

todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas

as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os

sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado

daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)

Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do

Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais

significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO

MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do

quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e

estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que

desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo

da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina

agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das

espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute

presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos

46

ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido

Das sepulturas o gelado poacute

Dois esqueletos um ao outro unido

Foram achados num sepulcro soacuterdquo45

Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de

imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da

intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo

buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma

enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo

recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as

laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas

deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo

sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais

moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas

austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade

dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete

palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam

pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e

59)

Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao

ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram

escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia

literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo

exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde

ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais

tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo

merecida

45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos

47

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas

interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca

Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo

depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves

transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo

sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia

ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas

metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver

com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao

sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas

tambeacutem ao que relaciona a morte

A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua

eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela

mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e

sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo

quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade

que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas

personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a

humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de

enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e

sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas

e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o

que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte

presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais

condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus

contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e

desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse

interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural

equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes

interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute

Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem

uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses

48

elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o

inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela

tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses

elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma

civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor

sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam

sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do

intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea

Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o

menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que

para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro

compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo

que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou

seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua

imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que

essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar

atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a

outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual

proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque

esconde-se ou projecta-se no discurso do outro

Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o

caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo

relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens

marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um

significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um

desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos

de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e

fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave

realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande

maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe

um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo

46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de

Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360

49

obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a

escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada

Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a

infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute

aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo

espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a

verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes

50

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httpwwwfclarunespbrpublicaccedilotildeesrevistaliberdadehtm

httparestasdeventonosapoptlabaredas2html

Page 10: AS MÁSCARAS SIMBÓLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA … Jaqueline... · 2019-10-31 · A narrativa ficcional não é o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca, mas, assim como

10

deixada a margem da interpretaccedilatildeo ou seja o que se leria nas entrelinhas do

texto Tais interpretaccedilotildees ficam a cargo do leitor que de certa forma interage

com as narrativas preenchendo-lhes o vazio deixado pela escritora ldquovaziordquo

esse que tambeacutem a acompanha nesta obra e a quem dedica ldquoeste livro eacute o

livro do meu mortordquo10 Na realidade Florbela queria deixar imortalizado seu

irmatildeo ldquoNatildeo queria que meu morto morresse comigohellipE escrevi estas

paacuteginashelliprdquo que foram de encontro a profundeza de seu pensamento ou seja

uma consciecircncia transcendental em caminho a ldquotalrdquo liberdade tanto desejada

que jaacute em versos reclamava

ldquoEu ponho-me a sonhar transmigraccedilotildees

Impossiacuteveis longiacutenquos milagrosas

Voos amplos ceacuteus distantes migraccedilotildees

Longehellip noutras esferas luminosas

E pelo meu olhar passam visotildees

Ilhas de bruma e naacutecar drsquooiro e rosashellip

E eu penso que liberta de grilhotildees

Hei-de aportar agraves Ilhas misteriosasrdquo11

Esse doce misteacuterio que cheio da natureza de ser mulher eacute o que intriga-nos a

cada leitura e nos faz buscar conhecer mais de sua vida para entendermos sua

obra Seus contos nos mostram uma Florbela detentora de uma

intertextualidade viva que no decorrer das narrativas remete-nos a outros

tempos a outras leituras Cria um ambiente nostaacutelgico e contemplativo de

vasto campo simboacutelico percorrendo as mais variadas fontes para sua

inspiraccedilatildeo criadora com isso ao depararmos com o quadro descritivo na

narrativa recriamos esse quadro imaginaacuterio em nossa mente como em um

conto de fadas ali misturam-se fatos reais e imaginaacuterios tempos reais e

imaginaacuterios personagens reais e imaginaacuterias tudo ldquo eacute luminosas e exaltante

10 Citaccedilatildeo da dedicatoacuteria do livro ldquoAs maacutescaras do Destinordquo 1998 32 11 Poema ldquoLibertardquodo livro Poesia Completa 2004 75

11

emoccedilatildeordquo foi enchido de ldquotoda a espiritualidade beleza dolorosa e humildade e

acima de tudo as almasrdquo criadas ldquosatildeo gritos e soluccedilos de amorrdquo12

Diante disso o foco do estudo e pesquisa sobre Florbela Espanca se limitaraacute

em um levantamento analiacutetico e criacutetico dando vaacuterias possibilidades de

interpretaccedilatildeo bem como referecircncias intertextuais que satildeo citadas e ora

aparecem em seus contos no livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo Tal estudo

objectiva um conhecimento interpretativo e comparativo das leituras feitas por

Florbela e o modo como vieram a influenciar e dar sustentabilidade ao enredo

dos contos Quem sabe poderemos conhecer um pouco mais dessa misteriosa

mulher que dizia natildeo conhece a si mesma

O que sou eu AmorSei laacute que sou

Sou tudo e nada grande e pequenina

Sou a que canta uma ilusatildeo divina

Sou a que chora um mal que acabou

Eu sei laacute que quimera me beijou

E nunca o soube assim desde pequenina

Haacute neste mundo tanta amarga sina

A minha eacute saber nunca quem sou

Esfinge sonho tonto de desejos

Na tua boca sou uma asa aberta

A palpitar vermelha como os beijos

Andorinhahelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellipa voejar13

helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip

helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip

12 Citaccedilatildeo da dedicatoacuteria do livro ldquoAs maacutescaras do Destinordquo 1998 33 13 Poema sem tiacutetulo editado no livro ldquoEsparsos de Florbelardquo em Poesia Completa 2004 78

12

CAPIacuteTULO 01

11 - ENQUADRAMENTO TEOacuteRICO

Na literatura actual eacute frequente apontar-se como um dos factores de

textualidade a referecircncia - expliacutecita ou impliacutecita ndash a outros textos tomando estes

um sentido bem amplo (orais escritos visuais etc) A esse diaacutelogo entre textos

daacute-se o nome de intertextualidade

Eacute evidente que a intertextualidade estaacute ligada ao conhecimento de mundo que

deve ser compartilhado ou seja comum ao produtor e ao receptor do texto

Desta forma pressupotildee um universo cultural muito amplo e complexo pois

implica antes de tudo na identificaccedilatildeo e no reconhecimento de remissotildees a

obras ou a textostrechos mais ou menos conhecidos aleacutem de exigir do

interlocutor a capacidade de interpretar a funccedilatildeo daquela citaccedilatildeo ou alusatildeo em

questatildeo

Todas as questotildees ligadas agrave intertextualidade influenciam tanto o processo de

produccedilatildeo como o de compreensatildeo de textos o importante eacute natildeo encararmos a

intertextualidade apenas como a identificaccedilatildeo da fonte e sim que nos

preocupemos em estudaacute-la como um enriquecimento da leitura e da produccedilatildeo

de textos e sobretudo tentando mostrar a funccedilatildeo da sua presenccedila na

construccedilatildeo e no(s) sentido(s) dos textos

Como se pode notar na constituiccedilatildeo da proacutepria palavraldquointertextualidaderdquo

significa relaccedilatildeo entre textos Considerando-se texto num sentido lato como

um recorte significativo feito no processo ininterrupto de semiose cultural isto eacute

na ampla rede de significaccedilotildees dos bens culturais Pode-se afirmar que a

intertextualidade eacute inerente agrave produccedilatildeo humana O homem sempre lanccedila matildeo

do que jaacute foi feito em seu processo de produccedilatildeo simboacutelica Assim sendo o

texto como objecto cultural tem uma existecircncia fiacutesica que pode ser apontada e

delimitada um filme um romance um anuacutencio uma muacutesica Entretanto esses

objetos natildeo estatildeo ainda prontos pois destinam-se ao olhar agrave consciecircncia e agrave

recriaccedilatildeo dos leitores Cada texto constitui uma proposta de significaccedilatildeo que

natildeo estaacute inteiramente construiacuteda A significaccedilatildeo se daacute no jogo interpretativo

entre o texto e seu destinataacuterio Este uacuteltimo eacute um interlocutor ativo no processo

de significaccedilatildeo na medida em que participa do jogo intertextual tanto quanto o

autor

13

A intertextualidade se daacute pois tanto na produccedilatildeo como na recepccedilatildeo da grande

rede cultural de que todos participam Filmes que retomam filmes quadros que

dialogam com outros propagandas que se utilizam do discurso artiacutestico

poemas escritos com versos alheios romances que se apropriam de formas

musicais tudo isso satildeo textos em diaacutelogo com outros textos intertextualidade

Um texto remete a outro para defender as ideias nele contidas ou para

contestar tais ideias isso se daacute atraveacutes de um estudo comparativo entre textos

que ligam-se pela elaboraccedilatildeo artiacutestica de seu criador Eacute atraveacutes da anaacutelise

comparativa que tomamos ciecircncia da emergecircncia simboacutelica existente entre os

textos e a que niacutevel se daacute tal emergecircncia quanto agrave diacronia e sincronia que os

ligam Em qualquer niacutevel a produccedilatildeo simboacutelica eacute pois sempre uma retomada

de outras produccedilotildees perfazendo um jogo infinito que enreda autores e leitores

Apropriando-nos entatildeo de Schneider podemos afirmar

ldquoO texto literaacuterio eacute um palimpsesto O autor antigo escreveu uma lsquoprimeirarsquo vez

depois sua escritura foi apagada por algum copista que recobriu a paacutegina com

um novo texto e assim por diante Textos primeiros inexistem tanto quanto as

puras coacutepias o apagar natildeo eacute nunca tatildeo acabado que natildeo deixe vestiacutegios a

invenccedilatildeo nunca tatildeo nova que natildeo se apoacuteie sobre o jaacute-escritordquo (SCHNEIDER

199071)

No sentido estrito a palavra texto remete a uma ordem significativa

verbal Dentro dessa ordem a literatura vale-se amplamente do recurso

intertextual consciente ou inconscientemente Em razatildeo disso a

intertextualidade faz-se operador de leitura Eacute importante marcar os primoacuterdios

de Bakhtin em relaccedilatildeo a esses estudos divulgados por Juacutelia Kristeva Eacute dela o

claacutessico conceito de intertextualidade ldquo todo texto se constroacutei como mosaiacuteco de

citaccedilotildees todo texto eacute absorccedilatildeo e transformaccedilatildeo de um outro textordquo

(KRISTEVA 197464) Na verdade a intertextualidade inerente agrave linguagem

torna-se expliacutecita em todas as produccedilotildees literaacuterias que se valem do recurso da

apropriaccedilatildeo colocando em xeque a proacutepria noccedilatildeo de autoria Eacute o que vamos

observar ao longo do estudo no conto ldquoA Mortardquo em ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo

de Florbela Espanca temos aqui um bom exemplo do que se define como

intertextualidade as relaccedilotildees entre textos a citaccedilatildeo de um texto por outro

enfim o diaacutelogo entre textos Sendo assim para entender um texto na sua

totalidade eacute preciso conhecer o(s) texto(s) que nele fora(m) citado(s)

14

Eacute nesse contexto que Kristeva membro actuante da criacutetica francesa elabora

seu conceito de intertextualidade considerando que todo texto se constroacutei como

ldquomosaico de citaccedilotildeesrdquo Esse entendimento acarreta a consideraccedilatildeo de que a

intertextualidade eacute um fenoacutemeno que se encontra na base do proacuteprio texto

literaacuterio imbricada com a inserccedilatildeo deste num muacuteltiplo conjunto de praacuteticas

sociais relevantes A partir de Kristeva ldquotextordquo passa a ser entendido como o

evento situado na histoacuteria e na sociedade que natildeo apenas reflecte uma

situaccedilatildeo mas eacute essa proacutepria situaccedilatildeo apagando linhas divisoacuterias entre as

disciplinas e constituindo um cruzamento entre diferentes superfiacutecies textuais e

distintas aacutereas do saber cientiacutefico e da esfera artiacutestica ldquoPelo seu modo de

escrever lendo o corpus literaacuterio anterior ou sincroacutenico o autor vive na histoacuteria

e a sociedade se escreve no textordquo (KRISTEVA 197498)

A partir dos postulados deste conceito observamos que a intertextualidade

reflecte a concepccedilatildeo do texto literaacuterio como carregado de outros textos

inclusive do ldquotextordquo da realidaderdquo E eacute essa realidade polifoacutenica de vivecircncia

tumultuosa e inquietante de dissabores intriacutensecos e por vezes

transcendentais de acontecimentos filtrados atraveacutes de sua proacutepria

sensibilidade e sua imaginaccedilatildeo fantaacutestica que Florbela Espanca tem

manifestado para que seja compreendido seus misteacuterios de forma a dar mais

realce atraveacutes das vaacuterias formas de compreensatildeo e interpretaccedilatildeo intertextual e

comparativa de sua obra Neste sentido a teoria intertextual e comparativa

seraacute um guiatildeo a nortear um trabalho na tentativa de conhecermos essa

enigmaacutetica escritora que foi Florbela Espanca E eacute dela o incentivo para um

maior entendimento daquilo que nos deixou ldquoPara mim Para ti Para ningueacutem

Quero atirar para aqui negligentemente sem pretensotildees de estilo sem

anaacutelises filosoacuteficas o que os ouvidos dos outros natildeo recolhem reflexotildees

impressotildees ideias maneiras de ver de sentir ndash todo o meu espiacuterito paradoxal

talvez friacutevolo talvez profundo Compreendi por fim que nada compreendi que

mesmo nada poderia ter compreendido de mimhellipRestam-me os outroshellip

talvez por eles possa chegar agraves infinitas possibilidades do meu ser misterioso

intangiacutevel secretordquo (FLORBELA ESPANCA 199833)14

14 Fragmento retirado do livro ldquoDiaacuterio do Uacuteltimo Anordquo Bertrand Editora

15

A proposta de entendimento intertextual traacutes um reflexo de sua existecircncia

registado em sua ldquoDivina Comeacutediardquo15 pelos seus ldquoVersosrdquo16

ldquoVersos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip

Pedaccedilos de sorrisos branca espuma

Gargalhadas de luz cantos dispersos

Ou peacutetalas que caem uma a umahellip

VersosSei laacute Um verso eacute o teu olhar

Um verso eacute o teu sorriso e os de Dante

Eram o seu amor a soluccedilar

Aos peacutes de sua estremecida amante

Meus versos Sei eu laacute tambeacutem que satildeohellip

Sei laacute Sei laacute Meu pobre coraccedilatildeo

Partidos em mil pedaccedilos satildeo talvezhellip

Versos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip

Meus soluccedilos de dor que andam dispersos

Por este grande amor em que natildeo crecircsrdquo

15 Referecircncia a Obra de Dante Alighieri A Divina Comeacutedia uma viagem ao inferno purgatoacuterio e ao

paraiacuteso Aqui em relaccedilatildeo a vida de Florbela a palavra comeacutedia tem duplo significado o de origem dando

seguimento bom ao desenlace das personagens e em seu sentido coacutemico aos factores da inconstacircncia da

escritora 16 Referecircncia ao poema de Florbela escrito em O livro Drsquoele Poesia Completa2004 208

16

13 - ABORDAGENS SOBRE ldquoAS MAacuteSCARAS DO DESTINOrdquo ldquoOs contos satildeo como ela - siacutembolo de permanecircncia no pensamento da terra fio

de amor que manteacutem a sua magneacutetica forccedila saudade de tudo que podia

significar felicidade e expressatildeo do afectordquo17

Dedicada ao seu irmatildeo Apeles Demoacutestenes da Rocha Espanca ndash ldquoAs

Maacutescaras do Destinordquo eacute uma obra inspirada na tristeza e dor que a perda do

irmatildeo causa em Florbela Sua dedicatoacuteria ldquoeacute como um punho culpado que

Florbela assenta no proacuteprio peitordquo (FLORBELA ESPANCA 199825) assim diz

Agustina Bessa-Luiacutes autora do prefaacutecio escrito em 1979 que orienta-nos sobre

as condiccedilotildees de leitura que envolve esta obra

A dedicatoacuteria escrita por Florbela comprova o amor de irmatildeos Apeles era

ldquoAquele que das mesmas entranhas foi nascido que ao calor do mesmo

amplexo foi gerado Aquele que traz no rosto as linhas do teu rosto nos olhos a

aacutegua clara dos teus olhos o teu Amigo o teu Irmatildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA

199831 e 32) Ela escrevia tais palavras como uma matildee que acabara de

perder a um filho ldquopara que tua mocidade natildeo trema de o ver partir um dia

bom e meigo para que vivas na ilusatildeo bendita de teres um filho forte e belo

para te obrigar a encarar sorrindo as coisas vis e feias deste mundohelliprdquo

(FLORBELA ESPANCA 199831) Na realidade tais clamores professados soacute

a uma matildee que perdera seu filho eacute permitido senti-los

Escrita no final de 1927 reuacutene oito contos denominados ldquoO Aviador ldquoA Mortardquo

ldquoOs Mortos Natildeo Voltamrdquo ldquo O Resto Eacute Perfumerdquo ldquoA Paixatildeo de Manuel Garciardquo

ldquo O Inventorrdquo ldquoAs Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquoO Sobrenaturalrdquo

Como demonstram os tiacutetulos dados aos contos o tema ldquomorterdquo eacute o ponto de

convergecircncia entre os enredos e vem reforccedilar o pendor funesto da obra de

Florbela natildeo apenas pelo desaparecimento do irmatildeo mas que jaacute fazia parte

da proacutepria insatisfaccedilatildeo intimista que a escritora detinha Nesta altura por forccedilas

das circunstacircncias parecia estar desvinculada da vida como uma morta e sua

perpeacutetua busca lhe assegura uma espeacutecie de eternidade

Natildeo participando do enredo assim sendo em 3ordf pessoa mostrava-se uma

observadora a narrar fatos onde a realidade se confunde com o imaginaacuterio

17 Fragmento escrito por Agustina Bessa-Luiacutez retirado do prefaacutecio do livro As Maacutescaras do Destino de

Florbela Espanca 199810

17

fantaacutestico e soacute nos traacutes agrave lucidez da compreensatildeo devido as referecircncias

intertextuais as quais satildeo comuns aos contos pois ldquo o fantaacutestico se caracteiza

por una instrusioacuten brutal del misteacuterio en el marco de la vida real y estaacute ligado

generalmente a los estados moacuterbitos de la conciencia que en los fenoacutemenos

de pesadilla e de deliacuterio proyecta ante siacute imaacutegenes de sus angustias e de sus

terroresrdquo (GEORGES JEAN 1889 68 e 69) Mas a escritora natildeo desvincula-se

de sua obra uma forte tendecircncia de Florbela Marcando presenccedila no conto ldquoO

Resto Eacute Perfumerdquo interage como personagem assim assume o relato como

se procedesse de outro narrador para que pudesse penetraacute-lo e manter suas

caracteriacutesticas inquietantes e paradoxais acrescentando uma forte dose de

existencialismo e a presenccedila do ldquoEurdquo que vem reforccedilar a categoria de seus

relatos miacuteticos Aqui o ldquofantaacutesticordquo se confunde com o ldquomaravilhosordquo isso

devido aos relatos mitoloacutegicos que implica durante a leitura em um

redireccionamento do leitor a outro espaccedilo a outro tempo onde temos a ilusatildeo

de vivermos por um breve momento em outro lugar Florbela nos permite a

viagens imaginaacuterias em que o maravilhoso de seus contos dependeraacute de uma

infinidade de interpretaccedilotildees que natildeo seratildeo necessariamente interpretaccedilotildees

racionais pois as interpretaccedilotildees paralelas e divergentes satildeo sempre possiacuteveis

devido a riqueza do conto em si que no caso de Florbela estatildeo ligados aos

estados moacuterbidos de sua consciecircncia

Sabemos que algum dos elementos imaginaacuterios dos contos de Florbela estaacute

ligada ao realismo de sua histoacuteria verdadeira e isso eacute capaz pela virtudes que

soacute os contos de fadas pode proporcionar apesar de sua vida inconstante e

cheia de maacutegoas soube mascarar seu inconsciente e dar a seu relato um

intercacircmbio gracioso e sentimental com sua vida Por sua vez tais relatos

remetem-se a duas vertentes essenciais nos contos a primeira de propagar as

formas simboacutelicas durante a histoacuteria e a segunda de inserir essas formas

mediante a expansatildeo de sua escrita atraveacutes dos contos Um bom exemplo

disso eacute a clareza de como um conto complementa outro Atentemos para os

detalhes simboacutelicos de ldquoO Inventorrdquo que parece encerrar-se em ldquoO Aviadorrdquo da

mesma forma acontece em ldquoO Sobrenaturalrdquo e ldquoOs Mortos natildeo Voltamrdquo ldquoAs

Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquo A Paixatildeo de Manuel Garciardquo por fim

vemos a profunda reflexatildeo sobre a vida em ldquoO Resto eacute Perfumerdquo culminando

no conto ldquoA Mortardquo que tem em seu final a imersatildeo nas aacuteguas elemento

18

comum em todos os contos que parece como siacutembolo de redenccedilatildeo Temos

aqui um quadro para um estudo comparativo minucioso entre os proacuteprios

contos

Como afirma Agustina Bessa-Luiacutes ldquo para ler a prosa eacute preciso compreender a

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199816) Neste contexto natildeo ousamos falar

do quadro complexo que a palavra ldquomulherrdquo como um ser social objectiva mas

sim na simplicidade do comportamento de vaacuterias mulheres numa soacute imagem

constante nos contos que sente no seu intimo a dor da perca A primeira

referecircncia aqui eacute da mulher-irmatilde que vecirc no uacutenico irmatildeo morto a decadecircncia de

si mesma ldquo seraacute em breve uma sombra na tua sombrardquo (FLORBELA

ESPANCA 199832) Da mulher-matildee e o vazio de sua dor silenciosa ldquo A pobre

matildee abafou um soluccedilo voltou-se e olhou o mortordquo (FLORBELA ESPANCA

1998112) E por fim da mulher-religiosa que busca na cristandade respostas

para seus questionamentos e refuacutegio para seu tormento ldquomais fraacutegil mais

luminosa continuava a rezar as suas oraccedilotildeeshelliporaccedilotildees de amor sacriacutelegas

blasfemas oraccedilotildees de pecadohellipDe pecado Natildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA

1998154) Assim concebo a mulher Bela a compreensatildeo de sua escrita estaacute

nos olhos de quem as vecirc e na sensibilidade de a conhecer Desta feita ldquoa fase

dos equiacutevocos com que a gesta amorosa que a serve com a permanente

invenccedilatildeo de objectos meritoacuterios eacute substituiacuteda por uma feacute na alma feacute que se

acompanha do terriacutevel sentimento de estar morta de natildeo ser mais do que a

aparecircncia dum espaccedilo vividordquo (FLORBELA ESPANCA 199823) diz Agustina

Bessa-Luiacutes

Nesta obra duas propriedades do texto satildeo facilmente perceptiacuteveis a

intertextualidade e a influecircncia exercida em cada conto Essa uacuteltima

envolvendo as fortes caracteriacutesticas da escritora Florbela Espanca Contudo o

texto se constroacutei agrave medida que retoma fatos jaacute conhecidos como eacute o caso das

vaacuterias citaccedilotildees de autores e personagens que ilustram o livro Nesse sentido

quanto mais amplo for o repertoacuterio do leitor o seu acervo de conhecimentos

maior seraacute a sua competecircncia para perceber como os textos dialogam uns

com os outros por meio de referecircncias alusotildees e citaccedilotildees Eacute assim que

Florbela queria que a entendecircssemos atraveacutes de um diaacutelogo intriacutenseco para

descobrirmos suas maacutescaras

19

CAPIacuteTULO 02 21 - ldquoSONHO DE IacuteCAROrdquo

ldquoVoar voar subir subir

Ir por onde for descer ateacute o ceacuteu cair

Ou mudar de cor anjos de gaacutes

Asas de ilusatildeo e um sonho audaz

Feito um balatildeo

No ar no ar eu sou assim

Brilho do farol aleacutem do mais

Amargo fim simplesmente sol

Fugir meu bem eacute ser felizhellip

Ir ateacute que um dia chegue enfim

Em que o sol derreta a cera ateacute o fimrdquo18

A mitologia eacute uma das concepccedilotildees mais geniais que a humanidade produziu

Os gregos instauraram uma categoria intermediaacuteria entre os homens e os

deuses o semideus criando assim os heroacuteis mitoloacutegicos Isso veio a dar

margem a novas investigaccedilotildees sobre os fenoacutemenos da realidade natural

levando ao questionamento da origem dos seres a qual obtiveram respostas

sem sentido concreto Com isso incorporaram a concepccedilatildeo de que a vida e

suas manifestaccedilotildees satildeo obras das forccedilas do espiacuterito que habita em cada um

de noacutes sendo tambeacutem responsaacutevel pela nossa maneira de ser e de agir Isso eacute

sem duacutevida um meio de penetrar atraveacutes da imaginaccedilatildeo no misteacuterio da

existecircncia humana Desta forma o mito consiste nos acontecimentos que se

repetem ao longo da histoacuteria natildeo tendo fim O homem reconhecendo em cada

acto quotidiano uma participaccedilatildeo nos grandes ciclos da vida se sente

participar da grande eternidade miacutetica Partindo de suas origens o homem

consegue viver integralmente e uma vez dentro da mentalidade miacutetica a

proacutepria morte pode ter sentido

18 Fragmento da canccedilatildeo ldquosonho de Iacutecarordquo escrito por Pisca e Claacuteudio Rebelo interpretaccedilatildeo do cantor

brasileiro Byafra

20

Com o intuito de imortalizar o momento de uma trageacutedia Florbela lanccedila matildeo de

aspectos mitoloacutegicos dentro de seus contos que muito nos lembra a triste

histoacuteria de Deacutedalo e Iacutecaro 19 mostrando que o espiacuterito humano de vencer

barreiras e limites nos impulsiona a superar nossas proacuteprias limitaccedilotildees

Alcanccedilar o espaccedilo e as estrelas lanccedilar-se ao infinito experimentar da

sensaccedilatildeo de liberdade interior e o desvendar do misterioso infinito eacute o que

norteia o enredo dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquo O Inventorrdquo

Praticamente todas as culturas destacam o ceacuteu como um lugar especial Esse

local era normalmente designado como a morada dos deuses Muitos povos

consideravam que as constelaccedilotildees eram representaccedilotildees dos seus mitos e

lendas Dessa forma o ceacuteu era um lugar divino e os homens somente o

alcanccedilavam quando eram convidados ou homenageados pelos deuses Mas o

atrevimento de uns culminou na desgraccedila de outros Apenas aqueles com

sabedoria e dotado de iacutentima consciecircncia disciplinar sobre sua condiccedilatildeo

humana conseguiam graccedilas aos olhos dos deuses O conflito interior era um

grande empecilho para que fatos tivessem o desenrolar bem sucedidos

Quando isso natildeo acontecia o homem reconhecia sua condiccedilatildeo de inferioridade

em relaccedilatildeo aos deuses e eram designados ldquofilhos dos homensrdquo

O aparecimento da referecircncia mitoloacutegica pressupotildee uma forte ligaccedilatildeo aos elos

do mito de fundaccedilatildeo que sustenta a harmonia familiar juntamente com

preceitos de moral tendo por priori a identidade pessoal na figura paterna

como eram conhecidos os grandes heroacuteis mitoloacutegicos por serem semideuses

Nesta constante nos eacute dado a conhecer a condiccedilatildeo humana que tambeacutem

aparece de forma intertextualizada como referecircncia ao quadro do flamengo

19 Iacutecaro era filho de Deacutedalo o construtor do labirinto que o rei Minos aprisionava o Minotauro um ser

com corpo de homem e cabeccedila de touro A lenda grega conta que Deacutedalo ensinou Teseu que seria

devorado juntamente com outros jovens pelo monstro como sair do labirinto Deacutedalo sugeriu que ele

deveria utilizar um novelo que deveria ser desenrolado a medida em que fosse penetrando no labirinto

Dessa forma apoacutes ter matado o monstro ele conseguiu fugir do labirinto O rei Minos ficou furioso e

prendeu Deacutedalo e o seu filho Iacutecaro no labirinto Como o rei tinha deixado guardas vigiando as saiacutedas

Deacutedalo construiu asas com penas dos paacutessaros colando-as com cera Antes de levantar voo o pai

recomendou a Iacutecaro que quando ambos estivessem voando natildeo deveriam voar nem muito alto (perto do

Sol cujo calor derreteria a cera) e nem muito baixo (perto do mar pois a unidade tornaria as asas

pesadas) Entretanto a sensaccedilatildeo de voar foi tatildeo estonteante para Iacutecaro que ele esqueceu a recomendaccedilatildeo e

elevou-se tanto nos ares a ponto da previsatildeo de Deacutedalo ocorrer A cera derreteu e Iacutecaro perdeu as asas

precipitando-se no mar e morrendo afogado

21

Brueghel (a Queda de Iacutecaro)20 que Florbela tatildeo bem ilustra com uma descriccedilatildeo

que mais parece uma tela ldquo Os filhos dos homens caacute em baixo deixam cair

nos campos a enxada que faz nascer o patildeo e florir as rosas os pescadores

largam os remos audaciosos que rasgam os mares e os rios e os filhos dos

homens mais duramente castigados os que habitam o formigueiro das cidades

param nas suas insensatas correrias de formigas e todos voltam a face para o

ceacuteurdquo (FLORBELA ESPANCA 199838) Aqui a intertextualidade sugerida

numa linha ecfraacutestica vai de encontro a misteriosa temaacutetica de Florbela

significando isto que o espiacuterito de aventura eacute frequentemente motivo de

incompreensatildeo e de grande solidatildeo

Do mesmo modo que impotildee a condiccedilatildeo de mortal ao homem Florbela o

enaltece dando-lhe honrarias e elevando-o a condiccedilatildeo de um deus ldquo Nos olhos

leva visotildees que os filhos dos homens natildeo conhecem Eacute um homem Deixou laacute

em baixo todo o fardo pesado e vil com que o carregam ao nascer deixou laacute

em baixo todas as algemas todos os feacuterreos grilhotildees que o prendiam toda a

suprema maldiccedilatildeo de ter nascido homem deixou laacute em baixo a sua sacola de

pedinte o seu bordatildeo de Judeu Errante e livre indoacutemito sereno na sua

miacutesera couraccedila de pano azul estendeu em cruz os braccedilos que transformou em

asasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199839) Ao atingir tal supremacia o homem

liberta-se de sua vida anterior e ganha autonomia na forma da liberdade

intriacutenseca conseguindo a superaccedilatildeo de sua forma decadente e de seus

conflitos interiores atraveacutes da liberdade celestial alcanccedilada Deacutedalo foi

conhecido como o arquitecto e artista da liberdade mesmo tendo construiacutedo o

labirinto que eacute a representaccedilatildeo do aprisionamento Aqui Florbela utiliza desse

argumento como se seus escritos fossem labiriacutenticos e teriacuteamos de encontrar

as palavras certas para desvendarmos seus caminhos encontrando neles

assim a liberdade Essa mesma liberdade transformada aqui no voo mais alto

que levaria a traacutegica morte

Apesar de mostrada diferentemente temos aqui mais uma vez a dualidade

que percorre a obra de Florbela o aprisionamento e a liberdade a vida e a

morte antiacuteteses que perfilam seu anseio humano ldquo Um dia julgou ter achado

20 Quadro de Broeghel demonstrando a queda de Iacutecaro no mar enquanto os camponeses prosseguem a sua

labuta diaacuteria

22

Oh aquele dia A embriaguez do homem que se igualou a Deus O coraccedilatildeo a

bater a bater a sentir-se grande demais para um peito tatildeo pequeno para um

tatildeo mesquinho destino A humidade das laacutegrimas a embaciar o olhar gigante

que se esquecera um momento de ter nascido pigmeu O artista o poeta o

inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de movimento e de

vida todos os que desbravavam caminhos os que talham abrem por entre os

matagais selvagens e as belas estradas largas do pensamento e das ideias As

palavras satildeo o muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes

ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)

Ao atingir o voo pleno por vezes nos afastamos da realidade natural e nos

lanccedilamos ao desconhecido sem saber o que nos espera Com isso a queda eacute

inevitaacutevel Neste seguimento vemos a intertextualidade presente sob o estigma

dos cuidados de Zeus filho de Cromo e pai dos deuses que concedeu aos

heroacuteis uma morada afastada dos homens onde os semideuses pudessem se

estabelecer nos confins da terra Eacute laacute que habitam com o coraccedilatildeo livre de

cuidados nas Ilhas dos Bem-Aventurados nas praias dos turbilhotildees profundos

do Oceano satildeo eles os heroacuteis afortunados a quem Florbela tambeacutem concede

a morada preparada como tuacutemulo perfeito para o descanso eterno A

representaccedilatildeo das deusas das aacuteguas na presenccedila das ninfas efidriacuteades21 que

simbolizam a graccedila criativa e fecundadora da natureza fazem aparecer a

presenccedila feminina que surge com o intuito de exaltar a forccedila interior que so a

mulher tem para defrontar situaccedilotildees desastrosas e encontrar soluccedilatildeo nos mais

tenebrosos conflitos bem como de dar um toque de suavidade ternura beleza

e leveza que soacute a performance feminina consegue impor ldquo hellipAs filhas dos

deuses ondinas sereias nereidas princesas encantadas acodem todas

pressurosashellipEm volta das asas mortas satildeo como flores desfolhadas em

redor dum esquife negro E olhamhelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 199842) A

sabedoria feminina evidencia-se ao se manifestar a ldquoque tinha nos olhos uma

nostaacutelgica tristeza humanardquo (FLORBELA ESPANCA 199846) como uma matildee

protectora que acalenta o filho em seu sono profundo e compreende com

tristeza a dor dos mortais ou quem sabe sua proacutepria dor na condiccedilatildeo de

imortal pois somente aos deuses era permitido o poder de arrebatar o espiacuterito

21 Referecircncia as ninfas das aacuteguas da mitologia grega

23

a um homem ldquo E aquele que tinha sido um filho dos homens ficou a dormir na

eternidade como se fora um filho dos deusesrdquo (FLORBELA ESPANCA

199846)

Como podemos perceber Florbela em sua construccedilatildeo literaacuteria delineou nas

entrelinhas dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquoO Inventorrdquo aspectos simboacutelicos

determinantes do aprisionamento e da libertaccedilatildeo humana natildeo somente no

sentido denotativo mas tambeacutem conotativo na multiplicidade de sentidos que

tais palavras propotildeem Apesar da evidecircncia colocada pela escritora ainda nos

remete a reflexatildeo pois o aprisionamento pode ser um meio de libertaccedilatildeo e a

libertaccedilatildeo um aprisionamento ldquohellipOlhou o ceacuteu profundohellipe achou Ser aviador

eacutehellipabraccedilar no mesmo abraccedilo o ceacuteu e o mar Na linguagem dos siacutembolos a

acircncora definindo a esperanccedila nunca poderaacute valer as asas que satildeo a

libertaccedilatildeo A acircncora agarra-se ao fundo e fica as asas abrem-se no espaccedilo e

penetram o ceacuteuhellipSeria aviador Quando pela primeira vez voou natildeo se

esqueceu de sentar na carlinga a seu lado ao lado do seu coraccedilatildeo aquela

que dali em diante seria a companheira de todos os dias a companheira

indefectiacutevel de todos os aviadores a Morterdquo (FLORBELA ESPANCA 1998

129)

A produccedilatildeo intertextual desses dois contos traz-nos um imaginaacuterio voltado aos

princiacutepios fundadores de conceitos e referecircncia humana Florbela baseia-se na

representaccedilatildeo da infacircncia como elemento fundador da personalidade e do

caraacutecter ou seja a figura do pai que nunca a reconheceu em vida e por outro

lado na figura de Deacutedalo e Iacutecaro tendo o pai a dualidade em sua referecircncia

paterna Eacute assim que de ldquotentaccedilatildeo em tentaccedilatildeo de fraqueza em fraqueza os

compromissos de consciecircncia levam um homem honrado agrave praacutetica de todos os

crimeshelliprdquo22

22 Fragmento do conto O Inventor de Florbela Espanca As Maacutescaras do Destino1998122

24

22 - A MULTICIPLIDADE DO HEROacuteI

ldquo A vida parada e recolhida cria heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tarderdquo23

Ao encontrarmos facetas mitoloacutegicas entre as leituras de Florbela natildeo se pode

descartar a visatildeo do heroacutei que a autora engendrou na figura de seu irmatildeo

Apeles Tiacutetulo esse dado a homens excepcionais como Ulisses que eram

venerados por seu povo da mesma forma Florbela nutria uma verdadeira

veneraccedilatildeo que a levou a personificar o Aviador a um heroacutei merecedor de

honrarias e apesar da miacutesera condiccedilatildeo de mortal foi-lhe atribuiacutedo qualidades

fiacutesicas e morais dignas de um semideus ldquo A vida parada e recolhida cria

heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tardehellip o pincel de geacutenio daacute os uacuteltimos

retoques ao cenaacuterio de epopeiahellip laacute em cima a formidaacutevel apoteose desdobra-

se no meio do pasmo das coisas Eacute um homem que tem asas E as asas

pairam descem rodopiam ascendem de novo giram latejam batem ao sol

mais aacutegeis e mais robustas mais leves e mais possantes que as das aacuteguias Eacute

um homem A face eneacutergica vincada a cinzel emerge extraordinaacuteria da vida

intensa na indecisatildeo dos contornos que lhe fazem vagos e paacutelidos um vago

pano de fundo a face e as matildeoshellipOs muacutesculos da face adivinham na forccedila

brutal das maxilas cerradas Nos olhos leva visotildees que os filhos dos homens

natildeo conhecem Os olhos dele natildeo se vecircem olham para dentro e para fora satildeo

pedras como as das estaacutetuas e vecircem mais e mais para aleacutem do que as

miacuteseras pupilas humanas Satildeo astrosrdquo (FLORBELA ESPANCA 199838 e 39)

Esta mesma condiccedilatildeo eacute dada ao Inventor autor da imaginaccedilatildeo de Florbela

ldquoRealizara os seus sonhos todos os seus sonhos Que havia mais agora Jaacute

os homens podiam sulcar os ares sem medo aos vendavais agraves coacuteleras brutais

da Natureza jaacute o ceacuteu se podia coalhar de asas como o mar de velas Todo o

homem poderia ter sem perigo e sem riscos a cobiccedilada sensaccedilatildeo de

comandar nos elementos como um semideusrdquo (FLORBELA ESPANCA

1998133)

Sabemos que o heroacutei constitui o assunto da poesia eacutepica ele tem a sua

maneira proacutepria de agir pela sua coragem e bravura e prossegue objectivos

23 Fragmento do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca198837 e 38

25

bem determinados que ao longo de sua trajectoacuteria lhe satildeo atribuiacutedos cada qual

com sua importacircncia e valor Eacute dado a ele tambeacutem o poder de decisatildeo ora

sobre seus actos ora sobre si mesmo Isso como forma de valorizar sua

sabedoria e supremacia diante daqueles a quem defendia Assim se apresenta

o heroacutei dos contos de Florbela homem-deus detentor de toda visatildeo forte

dominador senhor supremo de seu destino a quem eacute concedido um lugar

eterno junto aos astros

A realidade fictiacutecia da mitologia eacute comparada aqui a realidade autecircntica

Florbela interessa-se pelo seu heroacutei fictiacutecio como se fosse ou tratasse de uma

pessoa real com isso podemos dizer que a escrita ficcional de Florbela eacute

mimese porque a realidade de sua vida humana eacute o seu material de escrita ela

consegue transformar a realidade objectiva na realidade subjectiva vivencial

razatildeo por que nos deixamos influenciar pela sua trajectoacuteria de vida em seus

escritos Isso justifica o fato da ldquovaliosa bravurardquo ndash por uma valiosa pintura - de

seu heroacutei ser retratado em uma tela por um titatilde24 personifica assim a grande

luta travada com as forccedilas da natureza ldquoEacute um Rembrandt pintado por um titatilderdquo

(FLORBELA ESPANCA 199839) A sua proacutepria natureza humana A propoacutesito

disso parece mais reportar ao paradoxo entre o bem e o mal que lutam

constantemente pelo domiacutenio da razatildeo interior talvez alvo de Florbela

Eacute interessante observar a relaccedilatildeo que existe entre o ldquohomem com asasrdquo com

as Harpias25 que na multi-significaccedilatildeo de seu discurso nos projecta a uma

realizaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo na figura do heroacutei alado em uma transposiccedilatildeo

imaginaacuteria com uma pluralidade de sentidos que poderia ocultar um sentido

uacutenico o seu proacuteprio desejo ou o desejo de arrebatar a alma de seu morto

Tambeacutem vemos a intertextualidade corrente na pessoa de Ulisses26 o heroacutei

grego navegante Robson Crusoeacute27 Piratas dos Sete Mares28 aos capitatildees e

24 Referecircncia a segunda geraccedilatildeo dos deus mitoloacutegicos representantes das forccedilas da natureza e sem uma

personalidade bem vincadaos quais Hesiacuteodo enumerou em doze seis machos e seis fecircmeas Oceano Ceacuteu

Crio Hiperiacuteon Jaacutepeto Cronos Teia Reja Teacutemis Mnemoacutesine Febe e Teacutetis 25 As Harpias filhas de Electra (ela proacutepria filha do Titatilde Oceano) e de Taumas (filho de Ponto e de Geia)

pertencem agrave geraccedilatildeo dos preacute-oliacutempicos Elas satildeo irmatildes de iacuteris a mensageira dos deuses Representadas

quer como mulheres aladas com um aspecto fameacutelico quer como paacutessaros com cabeccedila de mulher as

Harpias residem nas ilhas Estroacutefades do mar Egeu ou ainda agraves portas do Taacutertaro Impetuosas e brutais

como a tempestade as Harpias satildeo - este eacute o sentido do seu nome - raptoras com garras fortes 26 Odisseu (na Greacutecia) ou Ulisses (em Roma) eacute um personagem da Iliacuteada e da Odisseacuteia de Homero Apoacutes

a derrota dos troianos ele iniciou uma viagem de dez anos de volta para Iacutetaca onde a sua mulher o espera

com uma fidelidade obstinada apesar da demora Essa viagem mereceu a criaccedilatildeo por Homero do poema

26

navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a

coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a

solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o

enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio

multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos

diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio

Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os

naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de

navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS

Maacutescaras do Destino 1998 p 125)

Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada

com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a

renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que

convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos

escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a

partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental

aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A

viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas

suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte

recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os

heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas

ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o

navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira

de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que

nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era

eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que

deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-

1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado

a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe

herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico

sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O

romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como

tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar

que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os

Lusiacuteadas de Camotildees

27

no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo

da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)

Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida

funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo

conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente

nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de

alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva

Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer

tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos

heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os

portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens

tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que

de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os

navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por

deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da

Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do

texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute

simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no

poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES

1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou

passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da

Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas

natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer

vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de

ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um

heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com

o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas

forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um

aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem

mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva

30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos

Lisboa

Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal

28

presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de

Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura

greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito

especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela

escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a

morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem

para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de

transformaccedilatildeo fantaacutestica

Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que

na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena

confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir

uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute

infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu

desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma

personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo

inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade

aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios

filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa

escritora o seu carma

Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei

que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora

quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem

ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles

desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma

as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista

o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de

movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos

esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do

pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam

As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes

ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)

29

CAPIacuteTULO 03

31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS

ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de

doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32

No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute

intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em

todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do

proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade

de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma

comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro

cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser

estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute

antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de

alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas

oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir

as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava

perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o

fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo

para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que

muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da

escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e

complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e

pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma

formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela

graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa

assume

32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122

30

De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete

agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem

Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites

nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute

podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido

conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao

inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um

ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma

palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a

intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda

e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas

pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma

onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo

(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um

recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o

renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio

inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a

matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada

ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe

mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata

cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de

voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e

122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso

indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam

tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele

o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as

suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um

emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados

que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e

intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica

33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ

31

Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado

transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas

Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e

que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a

imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de

dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada

dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais

significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa

escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e

sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-

as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar

inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos

era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade

existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)

A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio

Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo

tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens

que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de

tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta

ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a

proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo

Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante

notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe

de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e

medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca

mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho

branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a

socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua

presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo

(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo

deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo

queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a

intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia

humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para

32

sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo

pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no

mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais

apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva

enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente

foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)

A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja

como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo

atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute

reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em

busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito

junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos

satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad

que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que

han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas

mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como

meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do

inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os

aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias

34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939

33

32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO

ldquoA vida vem em ondas

Como o mar

Num indo e vindo infinitohelliprdquo35

A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente

foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram

o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios

da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-

portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo

ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura

universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e

nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a

esquizofrenia de sua alma

O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos

grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma

visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes

de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-

racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas

fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma

encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no

espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada

ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar

duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava

que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se

35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos

em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria

imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia

grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios

Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e

cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam

da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela

Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a

sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor

34

sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o

olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de

um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o

seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No

reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que

constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia

Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor

das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que

participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na

claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma

a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial

apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se

imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA

ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta

solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser

acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas

pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de

existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas

dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma

mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar

agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)

As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar

aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de

Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a

37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta

nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet

tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido

advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte

de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga

(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre

1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a

questatildeo (Hamlet ato III cena I)

38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)

que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era

destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar

35

travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes

questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente

humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a

vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa

loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz

a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair

numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua

frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico

mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de

transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a

morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano

capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas

ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de

integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de

totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma

ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade

de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida

dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a

seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas

iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives

mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas

dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a

cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute

perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras

velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida

de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar

costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras

por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e

grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme

O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu

amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do

Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para

toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos

36

Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser

salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma

dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo

desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave

liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos

secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a

uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo

desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a

boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia

pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a

mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais

alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se

nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira

as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de

alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora

julga existir no seu misteacuterio

O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e

forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e

sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que

orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente

num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das

contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute

traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas

que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas

figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas

narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um

imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e

39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII

mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a

bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por

alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua

tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar

Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A

histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito

em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que

aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas

aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma

37

refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus

fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a

sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades

da dinacircmica universal

Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar

simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos

narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos

siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um

contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da

efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma

capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde

diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e

exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia

essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel

mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo

do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do

Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)

e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo

social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)

na representatividade literaacuteria do mar

38

CAPIacuteTULO 04

41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA

ldquoGosto de ti apaixonadamente

De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo

De ti que me trouxeste pela matildeo

Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40

Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso

a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade

directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na

poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua

dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees

Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita

capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e

um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz

e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a

dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas

conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute

e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria

serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem

quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto

anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse

em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita

maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte

com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e

quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e

emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos

paradoxos

40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no

livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004

Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo

Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11

39

Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos

toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-

romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido

num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia

com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes

profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas

sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo

acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando

a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A

derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a

conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas

da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da

sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No

entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas

romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a

impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo

definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha

aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento

em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o

passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era

tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto

A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos

acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-

Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs

Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os

Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de

Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de

Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o

egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo

narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica

Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute

neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o

poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem

40

esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma

essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no

iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma

questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos

encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem

sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos

interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas

as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um

exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo

tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo

daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita

conteacutem

41

42 - UM PERCURSO COMPARATIVO

ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os

vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e

outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que

ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute

foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41

ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto

Olhou em roda natildeo achou ningueacutem

Por entre as campas arrastando o manto

Com lentos passos caminhou aleacutem

Abandonado neste chatildeo repousa

Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui

Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa

Sobre este peito que bateu por tirdquo42

A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e

o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-

romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua

linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa

o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se

O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando

proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos

moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na

literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror

Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou

comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas

circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de

comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e

sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos

41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda

Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos

42

ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de

outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou

Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)

Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal

de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma

optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada

pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada

no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus

sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa

suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois

dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)

Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade

todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional

natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute

afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute

tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima

do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo

Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela

e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a

prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua

intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a

dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as

influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente

que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz

directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para

a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o

intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era

partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada

por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das

rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de

branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza

43

ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas

Longas roupagens de neveda cor

Singela croa de virgiacutenias rosas

Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43

ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de

branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila

devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa

nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)

Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de

conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se

para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da

imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a

partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a

presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os

uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem

eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera

absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor

ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria

A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a

intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um

testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista

e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas

caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da

temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao

fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma

retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras

masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo

homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma

mulher

43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12

44

(hellip)

Mulher formosa que adorei na vida

E que na tumba natildeo cessei damar

Por que atraiccediloas desleal mentida

O amor eterno que te ouvi jurar

Amor engano que na campa finda

Que a morte despe da ilusatildeo falaz

Quem dentros vivos se lembrara ainda

ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)

Talvez que rindo dos protestos nossos

Gozes com outro dinfernal prazer

E o olvido cobriraacute meus ossos

Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44

Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o

vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as

bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis

e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma

essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o

podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA

ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de

sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a

eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos

na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto

com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais

de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas

palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o

esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal

seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu

passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre

44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9

45

que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as

matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos

das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam

para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)

Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno

num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista

melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias

possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela

um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica

natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem

fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo

intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas

rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso

consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo

intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas

solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou

com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a

todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas

as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os

sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado

daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)

Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do

Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais

significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO

MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do

quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e

estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que

desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo

da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina

agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das

espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute

presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos

46

ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido

Das sepulturas o gelado poacute

Dois esqueletos um ao outro unido

Foram achados num sepulcro soacuterdquo45

Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de

imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da

intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo

buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma

enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo

recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as

laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas

deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo

sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais

moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas

austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade

dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete

palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam

pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e

59)

Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao

ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram

escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia

literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo

exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde

ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais

tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo

merecida

45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos

47

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas

interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca

Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo

depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves

transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo

sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia

ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas

metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver

com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao

sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas

tambeacutem ao que relaciona a morte

A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua

eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela

mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e

sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo

quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade

que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas

personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a

humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de

enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e

sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas

e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o

que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte

presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais

condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus

contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e

desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse

interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural

equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes

interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute

Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem

uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses

48

elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o

inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela

tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses

elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma

civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor

sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam

sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do

intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea

Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o

menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que

para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro

compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo

que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou

seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua

imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que

essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar

atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a

outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual

proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque

esconde-se ou projecta-se no discurso do outro

Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o

caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo

relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens

marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um

significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um

desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos

de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e

fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave

realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande

maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe

um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo

46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de

Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360

49

obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a

escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada

Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a

infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute

aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo

espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a

verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes

50

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Page 11: AS MÁSCARAS SIMBÓLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA … Jaqueline... · 2019-10-31 · A narrativa ficcional não é o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca, mas, assim como

11

emoccedilatildeordquo foi enchido de ldquotoda a espiritualidade beleza dolorosa e humildade e

acima de tudo as almasrdquo criadas ldquosatildeo gritos e soluccedilos de amorrdquo12

Diante disso o foco do estudo e pesquisa sobre Florbela Espanca se limitaraacute

em um levantamento analiacutetico e criacutetico dando vaacuterias possibilidades de

interpretaccedilatildeo bem como referecircncias intertextuais que satildeo citadas e ora

aparecem em seus contos no livro ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo Tal estudo

objectiva um conhecimento interpretativo e comparativo das leituras feitas por

Florbela e o modo como vieram a influenciar e dar sustentabilidade ao enredo

dos contos Quem sabe poderemos conhecer um pouco mais dessa misteriosa

mulher que dizia natildeo conhece a si mesma

O que sou eu AmorSei laacute que sou

Sou tudo e nada grande e pequenina

Sou a que canta uma ilusatildeo divina

Sou a que chora um mal que acabou

Eu sei laacute que quimera me beijou

E nunca o soube assim desde pequenina

Haacute neste mundo tanta amarga sina

A minha eacute saber nunca quem sou

Esfinge sonho tonto de desejos

Na tua boca sou uma asa aberta

A palpitar vermelha como os beijos

Andorinhahelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellipa voejar13

helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip

helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip

12 Citaccedilatildeo da dedicatoacuteria do livro ldquoAs maacutescaras do Destinordquo 1998 33 13 Poema sem tiacutetulo editado no livro ldquoEsparsos de Florbelardquo em Poesia Completa 2004 78

12

CAPIacuteTULO 01

11 - ENQUADRAMENTO TEOacuteRICO

Na literatura actual eacute frequente apontar-se como um dos factores de

textualidade a referecircncia - expliacutecita ou impliacutecita ndash a outros textos tomando estes

um sentido bem amplo (orais escritos visuais etc) A esse diaacutelogo entre textos

daacute-se o nome de intertextualidade

Eacute evidente que a intertextualidade estaacute ligada ao conhecimento de mundo que

deve ser compartilhado ou seja comum ao produtor e ao receptor do texto

Desta forma pressupotildee um universo cultural muito amplo e complexo pois

implica antes de tudo na identificaccedilatildeo e no reconhecimento de remissotildees a

obras ou a textostrechos mais ou menos conhecidos aleacutem de exigir do

interlocutor a capacidade de interpretar a funccedilatildeo daquela citaccedilatildeo ou alusatildeo em

questatildeo

Todas as questotildees ligadas agrave intertextualidade influenciam tanto o processo de

produccedilatildeo como o de compreensatildeo de textos o importante eacute natildeo encararmos a

intertextualidade apenas como a identificaccedilatildeo da fonte e sim que nos

preocupemos em estudaacute-la como um enriquecimento da leitura e da produccedilatildeo

de textos e sobretudo tentando mostrar a funccedilatildeo da sua presenccedila na

construccedilatildeo e no(s) sentido(s) dos textos

Como se pode notar na constituiccedilatildeo da proacutepria palavraldquointertextualidaderdquo

significa relaccedilatildeo entre textos Considerando-se texto num sentido lato como

um recorte significativo feito no processo ininterrupto de semiose cultural isto eacute

na ampla rede de significaccedilotildees dos bens culturais Pode-se afirmar que a

intertextualidade eacute inerente agrave produccedilatildeo humana O homem sempre lanccedila matildeo

do que jaacute foi feito em seu processo de produccedilatildeo simboacutelica Assim sendo o

texto como objecto cultural tem uma existecircncia fiacutesica que pode ser apontada e

delimitada um filme um romance um anuacutencio uma muacutesica Entretanto esses

objetos natildeo estatildeo ainda prontos pois destinam-se ao olhar agrave consciecircncia e agrave

recriaccedilatildeo dos leitores Cada texto constitui uma proposta de significaccedilatildeo que

natildeo estaacute inteiramente construiacuteda A significaccedilatildeo se daacute no jogo interpretativo

entre o texto e seu destinataacuterio Este uacuteltimo eacute um interlocutor ativo no processo

de significaccedilatildeo na medida em que participa do jogo intertextual tanto quanto o

autor

13

A intertextualidade se daacute pois tanto na produccedilatildeo como na recepccedilatildeo da grande

rede cultural de que todos participam Filmes que retomam filmes quadros que

dialogam com outros propagandas que se utilizam do discurso artiacutestico

poemas escritos com versos alheios romances que se apropriam de formas

musicais tudo isso satildeo textos em diaacutelogo com outros textos intertextualidade

Um texto remete a outro para defender as ideias nele contidas ou para

contestar tais ideias isso se daacute atraveacutes de um estudo comparativo entre textos

que ligam-se pela elaboraccedilatildeo artiacutestica de seu criador Eacute atraveacutes da anaacutelise

comparativa que tomamos ciecircncia da emergecircncia simboacutelica existente entre os

textos e a que niacutevel se daacute tal emergecircncia quanto agrave diacronia e sincronia que os

ligam Em qualquer niacutevel a produccedilatildeo simboacutelica eacute pois sempre uma retomada

de outras produccedilotildees perfazendo um jogo infinito que enreda autores e leitores

Apropriando-nos entatildeo de Schneider podemos afirmar

ldquoO texto literaacuterio eacute um palimpsesto O autor antigo escreveu uma lsquoprimeirarsquo vez

depois sua escritura foi apagada por algum copista que recobriu a paacutegina com

um novo texto e assim por diante Textos primeiros inexistem tanto quanto as

puras coacutepias o apagar natildeo eacute nunca tatildeo acabado que natildeo deixe vestiacutegios a

invenccedilatildeo nunca tatildeo nova que natildeo se apoacuteie sobre o jaacute-escritordquo (SCHNEIDER

199071)

No sentido estrito a palavra texto remete a uma ordem significativa

verbal Dentro dessa ordem a literatura vale-se amplamente do recurso

intertextual consciente ou inconscientemente Em razatildeo disso a

intertextualidade faz-se operador de leitura Eacute importante marcar os primoacuterdios

de Bakhtin em relaccedilatildeo a esses estudos divulgados por Juacutelia Kristeva Eacute dela o

claacutessico conceito de intertextualidade ldquo todo texto se constroacutei como mosaiacuteco de

citaccedilotildees todo texto eacute absorccedilatildeo e transformaccedilatildeo de um outro textordquo

(KRISTEVA 197464) Na verdade a intertextualidade inerente agrave linguagem

torna-se expliacutecita em todas as produccedilotildees literaacuterias que se valem do recurso da

apropriaccedilatildeo colocando em xeque a proacutepria noccedilatildeo de autoria Eacute o que vamos

observar ao longo do estudo no conto ldquoA Mortardquo em ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo

de Florbela Espanca temos aqui um bom exemplo do que se define como

intertextualidade as relaccedilotildees entre textos a citaccedilatildeo de um texto por outro

enfim o diaacutelogo entre textos Sendo assim para entender um texto na sua

totalidade eacute preciso conhecer o(s) texto(s) que nele fora(m) citado(s)

14

Eacute nesse contexto que Kristeva membro actuante da criacutetica francesa elabora

seu conceito de intertextualidade considerando que todo texto se constroacutei como

ldquomosaico de citaccedilotildeesrdquo Esse entendimento acarreta a consideraccedilatildeo de que a

intertextualidade eacute um fenoacutemeno que se encontra na base do proacuteprio texto

literaacuterio imbricada com a inserccedilatildeo deste num muacuteltiplo conjunto de praacuteticas

sociais relevantes A partir de Kristeva ldquotextordquo passa a ser entendido como o

evento situado na histoacuteria e na sociedade que natildeo apenas reflecte uma

situaccedilatildeo mas eacute essa proacutepria situaccedilatildeo apagando linhas divisoacuterias entre as

disciplinas e constituindo um cruzamento entre diferentes superfiacutecies textuais e

distintas aacutereas do saber cientiacutefico e da esfera artiacutestica ldquoPelo seu modo de

escrever lendo o corpus literaacuterio anterior ou sincroacutenico o autor vive na histoacuteria

e a sociedade se escreve no textordquo (KRISTEVA 197498)

A partir dos postulados deste conceito observamos que a intertextualidade

reflecte a concepccedilatildeo do texto literaacuterio como carregado de outros textos

inclusive do ldquotextordquo da realidaderdquo E eacute essa realidade polifoacutenica de vivecircncia

tumultuosa e inquietante de dissabores intriacutensecos e por vezes

transcendentais de acontecimentos filtrados atraveacutes de sua proacutepria

sensibilidade e sua imaginaccedilatildeo fantaacutestica que Florbela Espanca tem

manifestado para que seja compreendido seus misteacuterios de forma a dar mais

realce atraveacutes das vaacuterias formas de compreensatildeo e interpretaccedilatildeo intertextual e

comparativa de sua obra Neste sentido a teoria intertextual e comparativa

seraacute um guiatildeo a nortear um trabalho na tentativa de conhecermos essa

enigmaacutetica escritora que foi Florbela Espanca E eacute dela o incentivo para um

maior entendimento daquilo que nos deixou ldquoPara mim Para ti Para ningueacutem

Quero atirar para aqui negligentemente sem pretensotildees de estilo sem

anaacutelises filosoacuteficas o que os ouvidos dos outros natildeo recolhem reflexotildees

impressotildees ideias maneiras de ver de sentir ndash todo o meu espiacuterito paradoxal

talvez friacutevolo talvez profundo Compreendi por fim que nada compreendi que

mesmo nada poderia ter compreendido de mimhellipRestam-me os outroshellip

talvez por eles possa chegar agraves infinitas possibilidades do meu ser misterioso

intangiacutevel secretordquo (FLORBELA ESPANCA 199833)14

14 Fragmento retirado do livro ldquoDiaacuterio do Uacuteltimo Anordquo Bertrand Editora

15

A proposta de entendimento intertextual traacutes um reflexo de sua existecircncia

registado em sua ldquoDivina Comeacutediardquo15 pelos seus ldquoVersosrdquo16

ldquoVersos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip

Pedaccedilos de sorrisos branca espuma

Gargalhadas de luz cantos dispersos

Ou peacutetalas que caem uma a umahellip

VersosSei laacute Um verso eacute o teu olhar

Um verso eacute o teu sorriso e os de Dante

Eram o seu amor a soluccedilar

Aos peacutes de sua estremecida amante

Meus versos Sei eu laacute tambeacutem que satildeohellip

Sei laacute Sei laacute Meu pobre coraccedilatildeo

Partidos em mil pedaccedilos satildeo talvezhellip

Versos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip

Meus soluccedilos de dor que andam dispersos

Por este grande amor em que natildeo crecircsrdquo

15 Referecircncia a Obra de Dante Alighieri A Divina Comeacutedia uma viagem ao inferno purgatoacuterio e ao

paraiacuteso Aqui em relaccedilatildeo a vida de Florbela a palavra comeacutedia tem duplo significado o de origem dando

seguimento bom ao desenlace das personagens e em seu sentido coacutemico aos factores da inconstacircncia da

escritora 16 Referecircncia ao poema de Florbela escrito em O livro Drsquoele Poesia Completa2004 208

16

13 - ABORDAGENS SOBRE ldquoAS MAacuteSCARAS DO DESTINOrdquo ldquoOs contos satildeo como ela - siacutembolo de permanecircncia no pensamento da terra fio

de amor que manteacutem a sua magneacutetica forccedila saudade de tudo que podia

significar felicidade e expressatildeo do afectordquo17

Dedicada ao seu irmatildeo Apeles Demoacutestenes da Rocha Espanca ndash ldquoAs

Maacutescaras do Destinordquo eacute uma obra inspirada na tristeza e dor que a perda do

irmatildeo causa em Florbela Sua dedicatoacuteria ldquoeacute como um punho culpado que

Florbela assenta no proacuteprio peitordquo (FLORBELA ESPANCA 199825) assim diz

Agustina Bessa-Luiacutes autora do prefaacutecio escrito em 1979 que orienta-nos sobre

as condiccedilotildees de leitura que envolve esta obra

A dedicatoacuteria escrita por Florbela comprova o amor de irmatildeos Apeles era

ldquoAquele que das mesmas entranhas foi nascido que ao calor do mesmo

amplexo foi gerado Aquele que traz no rosto as linhas do teu rosto nos olhos a

aacutegua clara dos teus olhos o teu Amigo o teu Irmatildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA

199831 e 32) Ela escrevia tais palavras como uma matildee que acabara de

perder a um filho ldquopara que tua mocidade natildeo trema de o ver partir um dia

bom e meigo para que vivas na ilusatildeo bendita de teres um filho forte e belo

para te obrigar a encarar sorrindo as coisas vis e feias deste mundohelliprdquo

(FLORBELA ESPANCA 199831) Na realidade tais clamores professados soacute

a uma matildee que perdera seu filho eacute permitido senti-los

Escrita no final de 1927 reuacutene oito contos denominados ldquoO Aviador ldquoA Mortardquo

ldquoOs Mortos Natildeo Voltamrdquo ldquo O Resto Eacute Perfumerdquo ldquoA Paixatildeo de Manuel Garciardquo

ldquo O Inventorrdquo ldquoAs Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquoO Sobrenaturalrdquo

Como demonstram os tiacutetulos dados aos contos o tema ldquomorterdquo eacute o ponto de

convergecircncia entre os enredos e vem reforccedilar o pendor funesto da obra de

Florbela natildeo apenas pelo desaparecimento do irmatildeo mas que jaacute fazia parte

da proacutepria insatisfaccedilatildeo intimista que a escritora detinha Nesta altura por forccedilas

das circunstacircncias parecia estar desvinculada da vida como uma morta e sua

perpeacutetua busca lhe assegura uma espeacutecie de eternidade

Natildeo participando do enredo assim sendo em 3ordf pessoa mostrava-se uma

observadora a narrar fatos onde a realidade se confunde com o imaginaacuterio

17 Fragmento escrito por Agustina Bessa-Luiacutez retirado do prefaacutecio do livro As Maacutescaras do Destino de

Florbela Espanca 199810

17

fantaacutestico e soacute nos traacutes agrave lucidez da compreensatildeo devido as referecircncias

intertextuais as quais satildeo comuns aos contos pois ldquo o fantaacutestico se caracteiza

por una instrusioacuten brutal del misteacuterio en el marco de la vida real y estaacute ligado

generalmente a los estados moacuterbitos de la conciencia que en los fenoacutemenos

de pesadilla e de deliacuterio proyecta ante siacute imaacutegenes de sus angustias e de sus

terroresrdquo (GEORGES JEAN 1889 68 e 69) Mas a escritora natildeo desvincula-se

de sua obra uma forte tendecircncia de Florbela Marcando presenccedila no conto ldquoO

Resto Eacute Perfumerdquo interage como personagem assim assume o relato como

se procedesse de outro narrador para que pudesse penetraacute-lo e manter suas

caracteriacutesticas inquietantes e paradoxais acrescentando uma forte dose de

existencialismo e a presenccedila do ldquoEurdquo que vem reforccedilar a categoria de seus

relatos miacuteticos Aqui o ldquofantaacutesticordquo se confunde com o ldquomaravilhosordquo isso

devido aos relatos mitoloacutegicos que implica durante a leitura em um

redireccionamento do leitor a outro espaccedilo a outro tempo onde temos a ilusatildeo

de vivermos por um breve momento em outro lugar Florbela nos permite a

viagens imaginaacuterias em que o maravilhoso de seus contos dependeraacute de uma

infinidade de interpretaccedilotildees que natildeo seratildeo necessariamente interpretaccedilotildees

racionais pois as interpretaccedilotildees paralelas e divergentes satildeo sempre possiacuteveis

devido a riqueza do conto em si que no caso de Florbela estatildeo ligados aos

estados moacuterbidos de sua consciecircncia

Sabemos que algum dos elementos imaginaacuterios dos contos de Florbela estaacute

ligada ao realismo de sua histoacuteria verdadeira e isso eacute capaz pela virtudes que

soacute os contos de fadas pode proporcionar apesar de sua vida inconstante e

cheia de maacutegoas soube mascarar seu inconsciente e dar a seu relato um

intercacircmbio gracioso e sentimental com sua vida Por sua vez tais relatos

remetem-se a duas vertentes essenciais nos contos a primeira de propagar as

formas simboacutelicas durante a histoacuteria e a segunda de inserir essas formas

mediante a expansatildeo de sua escrita atraveacutes dos contos Um bom exemplo

disso eacute a clareza de como um conto complementa outro Atentemos para os

detalhes simboacutelicos de ldquoO Inventorrdquo que parece encerrar-se em ldquoO Aviadorrdquo da

mesma forma acontece em ldquoO Sobrenaturalrdquo e ldquoOs Mortos natildeo Voltamrdquo ldquoAs

Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquo A Paixatildeo de Manuel Garciardquo por fim

vemos a profunda reflexatildeo sobre a vida em ldquoO Resto eacute Perfumerdquo culminando

no conto ldquoA Mortardquo que tem em seu final a imersatildeo nas aacuteguas elemento

18

comum em todos os contos que parece como siacutembolo de redenccedilatildeo Temos

aqui um quadro para um estudo comparativo minucioso entre os proacuteprios

contos

Como afirma Agustina Bessa-Luiacutes ldquo para ler a prosa eacute preciso compreender a

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199816) Neste contexto natildeo ousamos falar

do quadro complexo que a palavra ldquomulherrdquo como um ser social objectiva mas

sim na simplicidade do comportamento de vaacuterias mulheres numa soacute imagem

constante nos contos que sente no seu intimo a dor da perca A primeira

referecircncia aqui eacute da mulher-irmatilde que vecirc no uacutenico irmatildeo morto a decadecircncia de

si mesma ldquo seraacute em breve uma sombra na tua sombrardquo (FLORBELA

ESPANCA 199832) Da mulher-matildee e o vazio de sua dor silenciosa ldquo A pobre

matildee abafou um soluccedilo voltou-se e olhou o mortordquo (FLORBELA ESPANCA

1998112) E por fim da mulher-religiosa que busca na cristandade respostas

para seus questionamentos e refuacutegio para seu tormento ldquomais fraacutegil mais

luminosa continuava a rezar as suas oraccedilotildeeshelliporaccedilotildees de amor sacriacutelegas

blasfemas oraccedilotildees de pecadohellipDe pecado Natildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA

1998154) Assim concebo a mulher Bela a compreensatildeo de sua escrita estaacute

nos olhos de quem as vecirc e na sensibilidade de a conhecer Desta feita ldquoa fase

dos equiacutevocos com que a gesta amorosa que a serve com a permanente

invenccedilatildeo de objectos meritoacuterios eacute substituiacuteda por uma feacute na alma feacute que se

acompanha do terriacutevel sentimento de estar morta de natildeo ser mais do que a

aparecircncia dum espaccedilo vividordquo (FLORBELA ESPANCA 199823) diz Agustina

Bessa-Luiacutes

Nesta obra duas propriedades do texto satildeo facilmente perceptiacuteveis a

intertextualidade e a influecircncia exercida em cada conto Essa uacuteltima

envolvendo as fortes caracteriacutesticas da escritora Florbela Espanca Contudo o

texto se constroacutei agrave medida que retoma fatos jaacute conhecidos como eacute o caso das

vaacuterias citaccedilotildees de autores e personagens que ilustram o livro Nesse sentido

quanto mais amplo for o repertoacuterio do leitor o seu acervo de conhecimentos

maior seraacute a sua competecircncia para perceber como os textos dialogam uns

com os outros por meio de referecircncias alusotildees e citaccedilotildees Eacute assim que

Florbela queria que a entendecircssemos atraveacutes de um diaacutelogo intriacutenseco para

descobrirmos suas maacutescaras

19

CAPIacuteTULO 02 21 - ldquoSONHO DE IacuteCAROrdquo

ldquoVoar voar subir subir

Ir por onde for descer ateacute o ceacuteu cair

Ou mudar de cor anjos de gaacutes

Asas de ilusatildeo e um sonho audaz

Feito um balatildeo

No ar no ar eu sou assim

Brilho do farol aleacutem do mais

Amargo fim simplesmente sol

Fugir meu bem eacute ser felizhellip

Ir ateacute que um dia chegue enfim

Em que o sol derreta a cera ateacute o fimrdquo18

A mitologia eacute uma das concepccedilotildees mais geniais que a humanidade produziu

Os gregos instauraram uma categoria intermediaacuteria entre os homens e os

deuses o semideus criando assim os heroacuteis mitoloacutegicos Isso veio a dar

margem a novas investigaccedilotildees sobre os fenoacutemenos da realidade natural

levando ao questionamento da origem dos seres a qual obtiveram respostas

sem sentido concreto Com isso incorporaram a concepccedilatildeo de que a vida e

suas manifestaccedilotildees satildeo obras das forccedilas do espiacuterito que habita em cada um

de noacutes sendo tambeacutem responsaacutevel pela nossa maneira de ser e de agir Isso eacute

sem duacutevida um meio de penetrar atraveacutes da imaginaccedilatildeo no misteacuterio da

existecircncia humana Desta forma o mito consiste nos acontecimentos que se

repetem ao longo da histoacuteria natildeo tendo fim O homem reconhecendo em cada

acto quotidiano uma participaccedilatildeo nos grandes ciclos da vida se sente

participar da grande eternidade miacutetica Partindo de suas origens o homem

consegue viver integralmente e uma vez dentro da mentalidade miacutetica a

proacutepria morte pode ter sentido

18 Fragmento da canccedilatildeo ldquosonho de Iacutecarordquo escrito por Pisca e Claacuteudio Rebelo interpretaccedilatildeo do cantor

brasileiro Byafra

20

Com o intuito de imortalizar o momento de uma trageacutedia Florbela lanccedila matildeo de

aspectos mitoloacutegicos dentro de seus contos que muito nos lembra a triste

histoacuteria de Deacutedalo e Iacutecaro 19 mostrando que o espiacuterito humano de vencer

barreiras e limites nos impulsiona a superar nossas proacuteprias limitaccedilotildees

Alcanccedilar o espaccedilo e as estrelas lanccedilar-se ao infinito experimentar da

sensaccedilatildeo de liberdade interior e o desvendar do misterioso infinito eacute o que

norteia o enredo dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquo O Inventorrdquo

Praticamente todas as culturas destacam o ceacuteu como um lugar especial Esse

local era normalmente designado como a morada dos deuses Muitos povos

consideravam que as constelaccedilotildees eram representaccedilotildees dos seus mitos e

lendas Dessa forma o ceacuteu era um lugar divino e os homens somente o

alcanccedilavam quando eram convidados ou homenageados pelos deuses Mas o

atrevimento de uns culminou na desgraccedila de outros Apenas aqueles com

sabedoria e dotado de iacutentima consciecircncia disciplinar sobre sua condiccedilatildeo

humana conseguiam graccedilas aos olhos dos deuses O conflito interior era um

grande empecilho para que fatos tivessem o desenrolar bem sucedidos

Quando isso natildeo acontecia o homem reconhecia sua condiccedilatildeo de inferioridade

em relaccedilatildeo aos deuses e eram designados ldquofilhos dos homensrdquo

O aparecimento da referecircncia mitoloacutegica pressupotildee uma forte ligaccedilatildeo aos elos

do mito de fundaccedilatildeo que sustenta a harmonia familiar juntamente com

preceitos de moral tendo por priori a identidade pessoal na figura paterna

como eram conhecidos os grandes heroacuteis mitoloacutegicos por serem semideuses

Nesta constante nos eacute dado a conhecer a condiccedilatildeo humana que tambeacutem

aparece de forma intertextualizada como referecircncia ao quadro do flamengo

19 Iacutecaro era filho de Deacutedalo o construtor do labirinto que o rei Minos aprisionava o Minotauro um ser

com corpo de homem e cabeccedila de touro A lenda grega conta que Deacutedalo ensinou Teseu que seria

devorado juntamente com outros jovens pelo monstro como sair do labirinto Deacutedalo sugeriu que ele

deveria utilizar um novelo que deveria ser desenrolado a medida em que fosse penetrando no labirinto

Dessa forma apoacutes ter matado o monstro ele conseguiu fugir do labirinto O rei Minos ficou furioso e

prendeu Deacutedalo e o seu filho Iacutecaro no labirinto Como o rei tinha deixado guardas vigiando as saiacutedas

Deacutedalo construiu asas com penas dos paacutessaros colando-as com cera Antes de levantar voo o pai

recomendou a Iacutecaro que quando ambos estivessem voando natildeo deveriam voar nem muito alto (perto do

Sol cujo calor derreteria a cera) e nem muito baixo (perto do mar pois a unidade tornaria as asas

pesadas) Entretanto a sensaccedilatildeo de voar foi tatildeo estonteante para Iacutecaro que ele esqueceu a recomendaccedilatildeo e

elevou-se tanto nos ares a ponto da previsatildeo de Deacutedalo ocorrer A cera derreteu e Iacutecaro perdeu as asas

precipitando-se no mar e morrendo afogado

21

Brueghel (a Queda de Iacutecaro)20 que Florbela tatildeo bem ilustra com uma descriccedilatildeo

que mais parece uma tela ldquo Os filhos dos homens caacute em baixo deixam cair

nos campos a enxada que faz nascer o patildeo e florir as rosas os pescadores

largam os remos audaciosos que rasgam os mares e os rios e os filhos dos

homens mais duramente castigados os que habitam o formigueiro das cidades

param nas suas insensatas correrias de formigas e todos voltam a face para o

ceacuteurdquo (FLORBELA ESPANCA 199838) Aqui a intertextualidade sugerida

numa linha ecfraacutestica vai de encontro a misteriosa temaacutetica de Florbela

significando isto que o espiacuterito de aventura eacute frequentemente motivo de

incompreensatildeo e de grande solidatildeo

Do mesmo modo que impotildee a condiccedilatildeo de mortal ao homem Florbela o

enaltece dando-lhe honrarias e elevando-o a condiccedilatildeo de um deus ldquo Nos olhos

leva visotildees que os filhos dos homens natildeo conhecem Eacute um homem Deixou laacute

em baixo todo o fardo pesado e vil com que o carregam ao nascer deixou laacute

em baixo todas as algemas todos os feacuterreos grilhotildees que o prendiam toda a

suprema maldiccedilatildeo de ter nascido homem deixou laacute em baixo a sua sacola de

pedinte o seu bordatildeo de Judeu Errante e livre indoacutemito sereno na sua

miacutesera couraccedila de pano azul estendeu em cruz os braccedilos que transformou em

asasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199839) Ao atingir tal supremacia o homem

liberta-se de sua vida anterior e ganha autonomia na forma da liberdade

intriacutenseca conseguindo a superaccedilatildeo de sua forma decadente e de seus

conflitos interiores atraveacutes da liberdade celestial alcanccedilada Deacutedalo foi

conhecido como o arquitecto e artista da liberdade mesmo tendo construiacutedo o

labirinto que eacute a representaccedilatildeo do aprisionamento Aqui Florbela utiliza desse

argumento como se seus escritos fossem labiriacutenticos e teriacuteamos de encontrar

as palavras certas para desvendarmos seus caminhos encontrando neles

assim a liberdade Essa mesma liberdade transformada aqui no voo mais alto

que levaria a traacutegica morte

Apesar de mostrada diferentemente temos aqui mais uma vez a dualidade

que percorre a obra de Florbela o aprisionamento e a liberdade a vida e a

morte antiacuteteses que perfilam seu anseio humano ldquo Um dia julgou ter achado

20 Quadro de Broeghel demonstrando a queda de Iacutecaro no mar enquanto os camponeses prosseguem a sua

labuta diaacuteria

22

Oh aquele dia A embriaguez do homem que se igualou a Deus O coraccedilatildeo a

bater a bater a sentir-se grande demais para um peito tatildeo pequeno para um

tatildeo mesquinho destino A humidade das laacutegrimas a embaciar o olhar gigante

que se esquecera um momento de ter nascido pigmeu O artista o poeta o

inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de movimento e de

vida todos os que desbravavam caminhos os que talham abrem por entre os

matagais selvagens e as belas estradas largas do pensamento e das ideias As

palavras satildeo o muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes

ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)

Ao atingir o voo pleno por vezes nos afastamos da realidade natural e nos

lanccedilamos ao desconhecido sem saber o que nos espera Com isso a queda eacute

inevitaacutevel Neste seguimento vemos a intertextualidade presente sob o estigma

dos cuidados de Zeus filho de Cromo e pai dos deuses que concedeu aos

heroacuteis uma morada afastada dos homens onde os semideuses pudessem se

estabelecer nos confins da terra Eacute laacute que habitam com o coraccedilatildeo livre de

cuidados nas Ilhas dos Bem-Aventurados nas praias dos turbilhotildees profundos

do Oceano satildeo eles os heroacuteis afortunados a quem Florbela tambeacutem concede

a morada preparada como tuacutemulo perfeito para o descanso eterno A

representaccedilatildeo das deusas das aacuteguas na presenccedila das ninfas efidriacuteades21 que

simbolizam a graccedila criativa e fecundadora da natureza fazem aparecer a

presenccedila feminina que surge com o intuito de exaltar a forccedila interior que so a

mulher tem para defrontar situaccedilotildees desastrosas e encontrar soluccedilatildeo nos mais

tenebrosos conflitos bem como de dar um toque de suavidade ternura beleza

e leveza que soacute a performance feminina consegue impor ldquo hellipAs filhas dos

deuses ondinas sereias nereidas princesas encantadas acodem todas

pressurosashellipEm volta das asas mortas satildeo como flores desfolhadas em

redor dum esquife negro E olhamhelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 199842) A

sabedoria feminina evidencia-se ao se manifestar a ldquoque tinha nos olhos uma

nostaacutelgica tristeza humanardquo (FLORBELA ESPANCA 199846) como uma matildee

protectora que acalenta o filho em seu sono profundo e compreende com

tristeza a dor dos mortais ou quem sabe sua proacutepria dor na condiccedilatildeo de

imortal pois somente aos deuses era permitido o poder de arrebatar o espiacuterito

21 Referecircncia as ninfas das aacuteguas da mitologia grega

23

a um homem ldquo E aquele que tinha sido um filho dos homens ficou a dormir na

eternidade como se fora um filho dos deusesrdquo (FLORBELA ESPANCA

199846)

Como podemos perceber Florbela em sua construccedilatildeo literaacuteria delineou nas

entrelinhas dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquoO Inventorrdquo aspectos simboacutelicos

determinantes do aprisionamento e da libertaccedilatildeo humana natildeo somente no

sentido denotativo mas tambeacutem conotativo na multiplicidade de sentidos que

tais palavras propotildeem Apesar da evidecircncia colocada pela escritora ainda nos

remete a reflexatildeo pois o aprisionamento pode ser um meio de libertaccedilatildeo e a

libertaccedilatildeo um aprisionamento ldquohellipOlhou o ceacuteu profundohellipe achou Ser aviador

eacutehellipabraccedilar no mesmo abraccedilo o ceacuteu e o mar Na linguagem dos siacutembolos a

acircncora definindo a esperanccedila nunca poderaacute valer as asas que satildeo a

libertaccedilatildeo A acircncora agarra-se ao fundo e fica as asas abrem-se no espaccedilo e

penetram o ceacuteuhellipSeria aviador Quando pela primeira vez voou natildeo se

esqueceu de sentar na carlinga a seu lado ao lado do seu coraccedilatildeo aquela

que dali em diante seria a companheira de todos os dias a companheira

indefectiacutevel de todos os aviadores a Morterdquo (FLORBELA ESPANCA 1998

129)

A produccedilatildeo intertextual desses dois contos traz-nos um imaginaacuterio voltado aos

princiacutepios fundadores de conceitos e referecircncia humana Florbela baseia-se na

representaccedilatildeo da infacircncia como elemento fundador da personalidade e do

caraacutecter ou seja a figura do pai que nunca a reconheceu em vida e por outro

lado na figura de Deacutedalo e Iacutecaro tendo o pai a dualidade em sua referecircncia

paterna Eacute assim que de ldquotentaccedilatildeo em tentaccedilatildeo de fraqueza em fraqueza os

compromissos de consciecircncia levam um homem honrado agrave praacutetica de todos os

crimeshelliprdquo22

22 Fragmento do conto O Inventor de Florbela Espanca As Maacutescaras do Destino1998122

24

22 - A MULTICIPLIDADE DO HEROacuteI

ldquo A vida parada e recolhida cria heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tarderdquo23

Ao encontrarmos facetas mitoloacutegicas entre as leituras de Florbela natildeo se pode

descartar a visatildeo do heroacutei que a autora engendrou na figura de seu irmatildeo

Apeles Tiacutetulo esse dado a homens excepcionais como Ulisses que eram

venerados por seu povo da mesma forma Florbela nutria uma verdadeira

veneraccedilatildeo que a levou a personificar o Aviador a um heroacutei merecedor de

honrarias e apesar da miacutesera condiccedilatildeo de mortal foi-lhe atribuiacutedo qualidades

fiacutesicas e morais dignas de um semideus ldquo A vida parada e recolhida cria

heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tardehellip o pincel de geacutenio daacute os uacuteltimos

retoques ao cenaacuterio de epopeiahellip laacute em cima a formidaacutevel apoteose desdobra-

se no meio do pasmo das coisas Eacute um homem que tem asas E as asas

pairam descem rodopiam ascendem de novo giram latejam batem ao sol

mais aacutegeis e mais robustas mais leves e mais possantes que as das aacuteguias Eacute

um homem A face eneacutergica vincada a cinzel emerge extraordinaacuteria da vida

intensa na indecisatildeo dos contornos que lhe fazem vagos e paacutelidos um vago

pano de fundo a face e as matildeoshellipOs muacutesculos da face adivinham na forccedila

brutal das maxilas cerradas Nos olhos leva visotildees que os filhos dos homens

natildeo conhecem Os olhos dele natildeo se vecircem olham para dentro e para fora satildeo

pedras como as das estaacutetuas e vecircem mais e mais para aleacutem do que as

miacuteseras pupilas humanas Satildeo astrosrdquo (FLORBELA ESPANCA 199838 e 39)

Esta mesma condiccedilatildeo eacute dada ao Inventor autor da imaginaccedilatildeo de Florbela

ldquoRealizara os seus sonhos todos os seus sonhos Que havia mais agora Jaacute

os homens podiam sulcar os ares sem medo aos vendavais agraves coacuteleras brutais

da Natureza jaacute o ceacuteu se podia coalhar de asas como o mar de velas Todo o

homem poderia ter sem perigo e sem riscos a cobiccedilada sensaccedilatildeo de

comandar nos elementos como um semideusrdquo (FLORBELA ESPANCA

1998133)

Sabemos que o heroacutei constitui o assunto da poesia eacutepica ele tem a sua

maneira proacutepria de agir pela sua coragem e bravura e prossegue objectivos

23 Fragmento do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca198837 e 38

25

bem determinados que ao longo de sua trajectoacuteria lhe satildeo atribuiacutedos cada qual

com sua importacircncia e valor Eacute dado a ele tambeacutem o poder de decisatildeo ora

sobre seus actos ora sobre si mesmo Isso como forma de valorizar sua

sabedoria e supremacia diante daqueles a quem defendia Assim se apresenta

o heroacutei dos contos de Florbela homem-deus detentor de toda visatildeo forte

dominador senhor supremo de seu destino a quem eacute concedido um lugar

eterno junto aos astros

A realidade fictiacutecia da mitologia eacute comparada aqui a realidade autecircntica

Florbela interessa-se pelo seu heroacutei fictiacutecio como se fosse ou tratasse de uma

pessoa real com isso podemos dizer que a escrita ficcional de Florbela eacute

mimese porque a realidade de sua vida humana eacute o seu material de escrita ela

consegue transformar a realidade objectiva na realidade subjectiva vivencial

razatildeo por que nos deixamos influenciar pela sua trajectoacuteria de vida em seus

escritos Isso justifica o fato da ldquovaliosa bravurardquo ndash por uma valiosa pintura - de

seu heroacutei ser retratado em uma tela por um titatilde24 personifica assim a grande

luta travada com as forccedilas da natureza ldquoEacute um Rembrandt pintado por um titatilderdquo

(FLORBELA ESPANCA 199839) A sua proacutepria natureza humana A propoacutesito

disso parece mais reportar ao paradoxo entre o bem e o mal que lutam

constantemente pelo domiacutenio da razatildeo interior talvez alvo de Florbela

Eacute interessante observar a relaccedilatildeo que existe entre o ldquohomem com asasrdquo com

as Harpias25 que na multi-significaccedilatildeo de seu discurso nos projecta a uma

realizaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo na figura do heroacutei alado em uma transposiccedilatildeo

imaginaacuteria com uma pluralidade de sentidos que poderia ocultar um sentido

uacutenico o seu proacuteprio desejo ou o desejo de arrebatar a alma de seu morto

Tambeacutem vemos a intertextualidade corrente na pessoa de Ulisses26 o heroacutei

grego navegante Robson Crusoeacute27 Piratas dos Sete Mares28 aos capitatildees e

24 Referecircncia a segunda geraccedilatildeo dos deus mitoloacutegicos representantes das forccedilas da natureza e sem uma

personalidade bem vincadaos quais Hesiacuteodo enumerou em doze seis machos e seis fecircmeas Oceano Ceacuteu

Crio Hiperiacuteon Jaacutepeto Cronos Teia Reja Teacutemis Mnemoacutesine Febe e Teacutetis 25 As Harpias filhas de Electra (ela proacutepria filha do Titatilde Oceano) e de Taumas (filho de Ponto e de Geia)

pertencem agrave geraccedilatildeo dos preacute-oliacutempicos Elas satildeo irmatildes de iacuteris a mensageira dos deuses Representadas

quer como mulheres aladas com um aspecto fameacutelico quer como paacutessaros com cabeccedila de mulher as

Harpias residem nas ilhas Estroacutefades do mar Egeu ou ainda agraves portas do Taacutertaro Impetuosas e brutais

como a tempestade as Harpias satildeo - este eacute o sentido do seu nome - raptoras com garras fortes 26 Odisseu (na Greacutecia) ou Ulisses (em Roma) eacute um personagem da Iliacuteada e da Odisseacuteia de Homero Apoacutes

a derrota dos troianos ele iniciou uma viagem de dez anos de volta para Iacutetaca onde a sua mulher o espera

com uma fidelidade obstinada apesar da demora Essa viagem mereceu a criaccedilatildeo por Homero do poema

26

navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a

coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a

solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o

enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio

multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos

diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio

Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os

naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de

navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS

Maacutescaras do Destino 1998 p 125)

Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada

com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a

renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que

convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos

escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a

partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental

aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A

viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas

suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte

recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os

heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas

ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o

navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira

de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que

nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era

eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que

deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-

1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado

a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe

herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico

sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O

romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como

tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar

que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os

Lusiacuteadas de Camotildees

27

no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo

da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)

Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida

funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo

conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente

nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de

alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva

Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer

tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos

heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os

portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens

tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que

de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os

navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por

deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da

Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do

texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute

simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no

poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES

1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou

passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da

Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas

natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer

vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de

ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um

heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com

o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas

forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um

aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem

mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva

30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos

Lisboa

Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal

28

presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de

Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura

greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito

especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela

escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a

morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem

para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de

transformaccedilatildeo fantaacutestica

Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que

na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena

confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir

uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute

infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu

desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma

personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo

inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade

aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios

filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa

escritora o seu carma

Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei

que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora

quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem

ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles

desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma

as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista

o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de

movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos

esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do

pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam

As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes

ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)

29

CAPIacuteTULO 03

31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS

ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de

doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32

No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute

intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em

todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do

proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade

de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma

comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro

cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser

estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute

antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de

alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas

oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir

as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava

perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o

fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo

para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que

muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da

escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e

complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e

pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma

formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela

graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa

assume

32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122

30

De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete

agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem

Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites

nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute

podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido

conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao

inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um

ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma

palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a

intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda

e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas

pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma

onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo

(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um

recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o

renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio

inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a

matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada

ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe

mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata

cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de

voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e

122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso

indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam

tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele

o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as

suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um

emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados

que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e

intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica

33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ

31

Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado

transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas

Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e

que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a

imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de

dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada

dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais

significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa

escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e

sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-

as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar

inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos

era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade

existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)

A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio

Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo

tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens

que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de

tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta

ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a

proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo

Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante

notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe

de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e

medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca

mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho

branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a

socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua

presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo

(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo

deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo

queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a

intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia

humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para

32

sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo

pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no

mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais

apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva

enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente

foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)

A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja

como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo

atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute

reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em

busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito

junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos

satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad

que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que

han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas

mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como

meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do

inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os

aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias

34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939

33

32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO

ldquoA vida vem em ondas

Como o mar

Num indo e vindo infinitohelliprdquo35

A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente

foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram

o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios

da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-

portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo

ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura

universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e

nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a

esquizofrenia de sua alma

O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos

grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma

visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes

de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-

racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas

fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma

encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no

espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada

ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar

duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava

que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se

35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos

em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria

imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia

grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios

Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e

cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam

da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela

Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a

sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor

34

sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o

olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de

um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o

seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No

reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que

constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia

Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor

das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que

participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na

claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma

a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial

apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se

imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA

ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta

solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser

acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas

pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de

existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas

dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma

mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar

agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)

As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar

aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de

Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a

37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta

nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet

tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido

advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte

de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga

(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre

1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a

questatildeo (Hamlet ato III cena I)

38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)

que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era

destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar

35

travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes

questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente

humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a

vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa

loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz

a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair

numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua

frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico

mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de

transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a

morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano

capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas

ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de

integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de

totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma

ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade

de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida

dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a

seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas

iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives

mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas

dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a

cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute

perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras

velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida

de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar

costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras

por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e

grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme

O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu

amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do

Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para

toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos

36

Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser

salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma

dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo

desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave

liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos

secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a

uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo

desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a

boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia

pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a

mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais

alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se

nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira

as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de

alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora

julga existir no seu misteacuterio

O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e

forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e

sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que

orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente

num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das

contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute

traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas

que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas

figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas

narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um

imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e

39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII

mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a

bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por

alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua

tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar

Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A

histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito

em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que

aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas

aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma

37

refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus

fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a

sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades

da dinacircmica universal

Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar

simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos

narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos

siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um

contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da

efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma

capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde

diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e

exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia

essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel

mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo

do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do

Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)

e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo

social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)

na representatividade literaacuteria do mar

38

CAPIacuteTULO 04

41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA

ldquoGosto de ti apaixonadamente

De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo

De ti que me trouxeste pela matildeo

Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40

Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso

a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade

directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na

poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua

dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees

Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita

capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e

um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz

e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a

dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas

conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute

e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria

serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem

quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto

anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse

em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita

maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte

com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e

quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e

emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos

paradoxos

40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no

livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004

Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo

Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11

39

Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos

toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-

romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido

num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia

com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes

profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas

sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo

acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando

a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A

derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a

conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas

da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da

sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No

entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas

romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a

impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo

definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha

aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento

em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o

passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era

tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto

A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos

acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-

Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs

Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os

Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de

Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de

Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o

egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo

narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica

Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute

neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o

poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem

40

esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma

essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no

iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma

questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos

encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem

sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos

interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas

as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um

exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo

tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo

daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita

conteacutem

41

42 - UM PERCURSO COMPARATIVO

ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os

vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e

outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que

ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute

foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41

ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto

Olhou em roda natildeo achou ningueacutem

Por entre as campas arrastando o manto

Com lentos passos caminhou aleacutem

Abandonado neste chatildeo repousa

Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui

Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa

Sobre este peito que bateu por tirdquo42

A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e

o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-

romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua

linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa

o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se

O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando

proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos

moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na

literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror

Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou

comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas

circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de

comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e

sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos

41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda

Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos

42

ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de

outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou

Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)

Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal

de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma

optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada

pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada

no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus

sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa

suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois

dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)

Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade

todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional

natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute

afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute

tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima

do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo

Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela

e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a

prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua

intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a

dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as

influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente

que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz

directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para

a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o

intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era

partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada

por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das

rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de

branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza

43

ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas

Longas roupagens de neveda cor

Singela croa de virgiacutenias rosas

Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43

ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de

branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila

devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa

nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)

Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de

conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se

para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da

imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a

partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a

presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os

uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem

eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera

absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor

ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria

A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a

intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um

testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista

e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas

caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da

temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao

fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma

retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras

masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo

homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma

mulher

43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12

44

(hellip)

Mulher formosa que adorei na vida

E que na tumba natildeo cessei damar

Por que atraiccediloas desleal mentida

O amor eterno que te ouvi jurar

Amor engano que na campa finda

Que a morte despe da ilusatildeo falaz

Quem dentros vivos se lembrara ainda

ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)

Talvez que rindo dos protestos nossos

Gozes com outro dinfernal prazer

E o olvido cobriraacute meus ossos

Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44

Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o

vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as

bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis

e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma

essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o

podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA

ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de

sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a

eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos

na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto

com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais

de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas

palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o

esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal

seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu

passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre

44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9

45

que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as

matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos

das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam

para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)

Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno

num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista

melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias

possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela

um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica

natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem

fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo

intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas

rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso

consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo

intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas

solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou

com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a

todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas

as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os

sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado

daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)

Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do

Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais

significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO

MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do

quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e

estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que

desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo

da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina

agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das

espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute

presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos

46

ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido

Das sepulturas o gelado poacute

Dois esqueletos um ao outro unido

Foram achados num sepulcro soacuterdquo45

Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de

imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da

intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo

buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma

enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo

recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as

laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas

deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo

sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais

moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas

austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade

dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete

palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam

pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e

59)

Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao

ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram

escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia

literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo

exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde

ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais

tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo

merecida

45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos

47

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas

interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca

Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo

depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves

transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo

sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia

ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas

metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver

com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao

sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas

tambeacutem ao que relaciona a morte

A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua

eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela

mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e

sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo

quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade

que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas

personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a

humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de

enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e

sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas

e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o

que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte

presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais

condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus

contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e

desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse

interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural

equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes

interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute

Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem

uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses

48

elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o

inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela

tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses

elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma

civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor

sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam

sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do

intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea

Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o

menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que

para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro

compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo

que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou

seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua

imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que

essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar

atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a

outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual

proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque

esconde-se ou projecta-se no discurso do outro

Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o

caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo

relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens

marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um

significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um

desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos

de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e

fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave

realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande

maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe

um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo

46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de

Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360

49

obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a

escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada

Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a

infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute

aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo

espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a

verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes

50

REFEREcircNCIA BIBLIOGRAacuteFICA

Activa

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104Traduccioacuten de Juan Diacuteas de Atauri Edicioacuten Visor Dis SA Madri

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Page 12: AS MÁSCARAS SIMBÓLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA … Jaqueline... · 2019-10-31 · A narrativa ficcional não é o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca, mas, assim como

12

CAPIacuteTULO 01

11 - ENQUADRAMENTO TEOacuteRICO

Na literatura actual eacute frequente apontar-se como um dos factores de

textualidade a referecircncia - expliacutecita ou impliacutecita ndash a outros textos tomando estes

um sentido bem amplo (orais escritos visuais etc) A esse diaacutelogo entre textos

daacute-se o nome de intertextualidade

Eacute evidente que a intertextualidade estaacute ligada ao conhecimento de mundo que

deve ser compartilhado ou seja comum ao produtor e ao receptor do texto

Desta forma pressupotildee um universo cultural muito amplo e complexo pois

implica antes de tudo na identificaccedilatildeo e no reconhecimento de remissotildees a

obras ou a textostrechos mais ou menos conhecidos aleacutem de exigir do

interlocutor a capacidade de interpretar a funccedilatildeo daquela citaccedilatildeo ou alusatildeo em

questatildeo

Todas as questotildees ligadas agrave intertextualidade influenciam tanto o processo de

produccedilatildeo como o de compreensatildeo de textos o importante eacute natildeo encararmos a

intertextualidade apenas como a identificaccedilatildeo da fonte e sim que nos

preocupemos em estudaacute-la como um enriquecimento da leitura e da produccedilatildeo

de textos e sobretudo tentando mostrar a funccedilatildeo da sua presenccedila na

construccedilatildeo e no(s) sentido(s) dos textos

Como se pode notar na constituiccedilatildeo da proacutepria palavraldquointertextualidaderdquo

significa relaccedilatildeo entre textos Considerando-se texto num sentido lato como

um recorte significativo feito no processo ininterrupto de semiose cultural isto eacute

na ampla rede de significaccedilotildees dos bens culturais Pode-se afirmar que a

intertextualidade eacute inerente agrave produccedilatildeo humana O homem sempre lanccedila matildeo

do que jaacute foi feito em seu processo de produccedilatildeo simboacutelica Assim sendo o

texto como objecto cultural tem uma existecircncia fiacutesica que pode ser apontada e

delimitada um filme um romance um anuacutencio uma muacutesica Entretanto esses

objetos natildeo estatildeo ainda prontos pois destinam-se ao olhar agrave consciecircncia e agrave

recriaccedilatildeo dos leitores Cada texto constitui uma proposta de significaccedilatildeo que

natildeo estaacute inteiramente construiacuteda A significaccedilatildeo se daacute no jogo interpretativo

entre o texto e seu destinataacuterio Este uacuteltimo eacute um interlocutor ativo no processo

de significaccedilatildeo na medida em que participa do jogo intertextual tanto quanto o

autor

13

A intertextualidade se daacute pois tanto na produccedilatildeo como na recepccedilatildeo da grande

rede cultural de que todos participam Filmes que retomam filmes quadros que

dialogam com outros propagandas que se utilizam do discurso artiacutestico

poemas escritos com versos alheios romances que se apropriam de formas

musicais tudo isso satildeo textos em diaacutelogo com outros textos intertextualidade

Um texto remete a outro para defender as ideias nele contidas ou para

contestar tais ideias isso se daacute atraveacutes de um estudo comparativo entre textos

que ligam-se pela elaboraccedilatildeo artiacutestica de seu criador Eacute atraveacutes da anaacutelise

comparativa que tomamos ciecircncia da emergecircncia simboacutelica existente entre os

textos e a que niacutevel se daacute tal emergecircncia quanto agrave diacronia e sincronia que os

ligam Em qualquer niacutevel a produccedilatildeo simboacutelica eacute pois sempre uma retomada

de outras produccedilotildees perfazendo um jogo infinito que enreda autores e leitores

Apropriando-nos entatildeo de Schneider podemos afirmar

ldquoO texto literaacuterio eacute um palimpsesto O autor antigo escreveu uma lsquoprimeirarsquo vez

depois sua escritura foi apagada por algum copista que recobriu a paacutegina com

um novo texto e assim por diante Textos primeiros inexistem tanto quanto as

puras coacutepias o apagar natildeo eacute nunca tatildeo acabado que natildeo deixe vestiacutegios a

invenccedilatildeo nunca tatildeo nova que natildeo se apoacuteie sobre o jaacute-escritordquo (SCHNEIDER

199071)

No sentido estrito a palavra texto remete a uma ordem significativa

verbal Dentro dessa ordem a literatura vale-se amplamente do recurso

intertextual consciente ou inconscientemente Em razatildeo disso a

intertextualidade faz-se operador de leitura Eacute importante marcar os primoacuterdios

de Bakhtin em relaccedilatildeo a esses estudos divulgados por Juacutelia Kristeva Eacute dela o

claacutessico conceito de intertextualidade ldquo todo texto se constroacutei como mosaiacuteco de

citaccedilotildees todo texto eacute absorccedilatildeo e transformaccedilatildeo de um outro textordquo

(KRISTEVA 197464) Na verdade a intertextualidade inerente agrave linguagem

torna-se expliacutecita em todas as produccedilotildees literaacuterias que se valem do recurso da

apropriaccedilatildeo colocando em xeque a proacutepria noccedilatildeo de autoria Eacute o que vamos

observar ao longo do estudo no conto ldquoA Mortardquo em ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo

de Florbela Espanca temos aqui um bom exemplo do que se define como

intertextualidade as relaccedilotildees entre textos a citaccedilatildeo de um texto por outro

enfim o diaacutelogo entre textos Sendo assim para entender um texto na sua

totalidade eacute preciso conhecer o(s) texto(s) que nele fora(m) citado(s)

14

Eacute nesse contexto que Kristeva membro actuante da criacutetica francesa elabora

seu conceito de intertextualidade considerando que todo texto se constroacutei como

ldquomosaico de citaccedilotildeesrdquo Esse entendimento acarreta a consideraccedilatildeo de que a

intertextualidade eacute um fenoacutemeno que se encontra na base do proacuteprio texto

literaacuterio imbricada com a inserccedilatildeo deste num muacuteltiplo conjunto de praacuteticas

sociais relevantes A partir de Kristeva ldquotextordquo passa a ser entendido como o

evento situado na histoacuteria e na sociedade que natildeo apenas reflecte uma

situaccedilatildeo mas eacute essa proacutepria situaccedilatildeo apagando linhas divisoacuterias entre as

disciplinas e constituindo um cruzamento entre diferentes superfiacutecies textuais e

distintas aacutereas do saber cientiacutefico e da esfera artiacutestica ldquoPelo seu modo de

escrever lendo o corpus literaacuterio anterior ou sincroacutenico o autor vive na histoacuteria

e a sociedade se escreve no textordquo (KRISTEVA 197498)

A partir dos postulados deste conceito observamos que a intertextualidade

reflecte a concepccedilatildeo do texto literaacuterio como carregado de outros textos

inclusive do ldquotextordquo da realidaderdquo E eacute essa realidade polifoacutenica de vivecircncia

tumultuosa e inquietante de dissabores intriacutensecos e por vezes

transcendentais de acontecimentos filtrados atraveacutes de sua proacutepria

sensibilidade e sua imaginaccedilatildeo fantaacutestica que Florbela Espanca tem

manifestado para que seja compreendido seus misteacuterios de forma a dar mais

realce atraveacutes das vaacuterias formas de compreensatildeo e interpretaccedilatildeo intertextual e

comparativa de sua obra Neste sentido a teoria intertextual e comparativa

seraacute um guiatildeo a nortear um trabalho na tentativa de conhecermos essa

enigmaacutetica escritora que foi Florbela Espanca E eacute dela o incentivo para um

maior entendimento daquilo que nos deixou ldquoPara mim Para ti Para ningueacutem

Quero atirar para aqui negligentemente sem pretensotildees de estilo sem

anaacutelises filosoacuteficas o que os ouvidos dos outros natildeo recolhem reflexotildees

impressotildees ideias maneiras de ver de sentir ndash todo o meu espiacuterito paradoxal

talvez friacutevolo talvez profundo Compreendi por fim que nada compreendi que

mesmo nada poderia ter compreendido de mimhellipRestam-me os outroshellip

talvez por eles possa chegar agraves infinitas possibilidades do meu ser misterioso

intangiacutevel secretordquo (FLORBELA ESPANCA 199833)14

14 Fragmento retirado do livro ldquoDiaacuterio do Uacuteltimo Anordquo Bertrand Editora

15

A proposta de entendimento intertextual traacutes um reflexo de sua existecircncia

registado em sua ldquoDivina Comeacutediardquo15 pelos seus ldquoVersosrdquo16

ldquoVersos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip

Pedaccedilos de sorrisos branca espuma

Gargalhadas de luz cantos dispersos

Ou peacutetalas que caem uma a umahellip

VersosSei laacute Um verso eacute o teu olhar

Um verso eacute o teu sorriso e os de Dante

Eram o seu amor a soluccedilar

Aos peacutes de sua estremecida amante

Meus versos Sei eu laacute tambeacutem que satildeohellip

Sei laacute Sei laacute Meu pobre coraccedilatildeo

Partidos em mil pedaccedilos satildeo talvezhellip

Versos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip

Meus soluccedilos de dor que andam dispersos

Por este grande amor em que natildeo crecircsrdquo

15 Referecircncia a Obra de Dante Alighieri A Divina Comeacutedia uma viagem ao inferno purgatoacuterio e ao

paraiacuteso Aqui em relaccedilatildeo a vida de Florbela a palavra comeacutedia tem duplo significado o de origem dando

seguimento bom ao desenlace das personagens e em seu sentido coacutemico aos factores da inconstacircncia da

escritora 16 Referecircncia ao poema de Florbela escrito em O livro Drsquoele Poesia Completa2004 208

16

13 - ABORDAGENS SOBRE ldquoAS MAacuteSCARAS DO DESTINOrdquo ldquoOs contos satildeo como ela - siacutembolo de permanecircncia no pensamento da terra fio

de amor que manteacutem a sua magneacutetica forccedila saudade de tudo que podia

significar felicidade e expressatildeo do afectordquo17

Dedicada ao seu irmatildeo Apeles Demoacutestenes da Rocha Espanca ndash ldquoAs

Maacutescaras do Destinordquo eacute uma obra inspirada na tristeza e dor que a perda do

irmatildeo causa em Florbela Sua dedicatoacuteria ldquoeacute como um punho culpado que

Florbela assenta no proacuteprio peitordquo (FLORBELA ESPANCA 199825) assim diz

Agustina Bessa-Luiacutes autora do prefaacutecio escrito em 1979 que orienta-nos sobre

as condiccedilotildees de leitura que envolve esta obra

A dedicatoacuteria escrita por Florbela comprova o amor de irmatildeos Apeles era

ldquoAquele que das mesmas entranhas foi nascido que ao calor do mesmo

amplexo foi gerado Aquele que traz no rosto as linhas do teu rosto nos olhos a

aacutegua clara dos teus olhos o teu Amigo o teu Irmatildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA

199831 e 32) Ela escrevia tais palavras como uma matildee que acabara de

perder a um filho ldquopara que tua mocidade natildeo trema de o ver partir um dia

bom e meigo para que vivas na ilusatildeo bendita de teres um filho forte e belo

para te obrigar a encarar sorrindo as coisas vis e feias deste mundohelliprdquo

(FLORBELA ESPANCA 199831) Na realidade tais clamores professados soacute

a uma matildee que perdera seu filho eacute permitido senti-los

Escrita no final de 1927 reuacutene oito contos denominados ldquoO Aviador ldquoA Mortardquo

ldquoOs Mortos Natildeo Voltamrdquo ldquo O Resto Eacute Perfumerdquo ldquoA Paixatildeo de Manuel Garciardquo

ldquo O Inventorrdquo ldquoAs Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquoO Sobrenaturalrdquo

Como demonstram os tiacutetulos dados aos contos o tema ldquomorterdquo eacute o ponto de

convergecircncia entre os enredos e vem reforccedilar o pendor funesto da obra de

Florbela natildeo apenas pelo desaparecimento do irmatildeo mas que jaacute fazia parte

da proacutepria insatisfaccedilatildeo intimista que a escritora detinha Nesta altura por forccedilas

das circunstacircncias parecia estar desvinculada da vida como uma morta e sua

perpeacutetua busca lhe assegura uma espeacutecie de eternidade

Natildeo participando do enredo assim sendo em 3ordf pessoa mostrava-se uma

observadora a narrar fatos onde a realidade se confunde com o imaginaacuterio

17 Fragmento escrito por Agustina Bessa-Luiacutez retirado do prefaacutecio do livro As Maacutescaras do Destino de

Florbela Espanca 199810

17

fantaacutestico e soacute nos traacutes agrave lucidez da compreensatildeo devido as referecircncias

intertextuais as quais satildeo comuns aos contos pois ldquo o fantaacutestico se caracteiza

por una instrusioacuten brutal del misteacuterio en el marco de la vida real y estaacute ligado

generalmente a los estados moacuterbitos de la conciencia que en los fenoacutemenos

de pesadilla e de deliacuterio proyecta ante siacute imaacutegenes de sus angustias e de sus

terroresrdquo (GEORGES JEAN 1889 68 e 69) Mas a escritora natildeo desvincula-se

de sua obra uma forte tendecircncia de Florbela Marcando presenccedila no conto ldquoO

Resto Eacute Perfumerdquo interage como personagem assim assume o relato como

se procedesse de outro narrador para que pudesse penetraacute-lo e manter suas

caracteriacutesticas inquietantes e paradoxais acrescentando uma forte dose de

existencialismo e a presenccedila do ldquoEurdquo que vem reforccedilar a categoria de seus

relatos miacuteticos Aqui o ldquofantaacutesticordquo se confunde com o ldquomaravilhosordquo isso

devido aos relatos mitoloacutegicos que implica durante a leitura em um

redireccionamento do leitor a outro espaccedilo a outro tempo onde temos a ilusatildeo

de vivermos por um breve momento em outro lugar Florbela nos permite a

viagens imaginaacuterias em que o maravilhoso de seus contos dependeraacute de uma

infinidade de interpretaccedilotildees que natildeo seratildeo necessariamente interpretaccedilotildees

racionais pois as interpretaccedilotildees paralelas e divergentes satildeo sempre possiacuteveis

devido a riqueza do conto em si que no caso de Florbela estatildeo ligados aos

estados moacuterbidos de sua consciecircncia

Sabemos que algum dos elementos imaginaacuterios dos contos de Florbela estaacute

ligada ao realismo de sua histoacuteria verdadeira e isso eacute capaz pela virtudes que

soacute os contos de fadas pode proporcionar apesar de sua vida inconstante e

cheia de maacutegoas soube mascarar seu inconsciente e dar a seu relato um

intercacircmbio gracioso e sentimental com sua vida Por sua vez tais relatos

remetem-se a duas vertentes essenciais nos contos a primeira de propagar as

formas simboacutelicas durante a histoacuteria e a segunda de inserir essas formas

mediante a expansatildeo de sua escrita atraveacutes dos contos Um bom exemplo

disso eacute a clareza de como um conto complementa outro Atentemos para os

detalhes simboacutelicos de ldquoO Inventorrdquo que parece encerrar-se em ldquoO Aviadorrdquo da

mesma forma acontece em ldquoO Sobrenaturalrdquo e ldquoOs Mortos natildeo Voltamrdquo ldquoAs

Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquo A Paixatildeo de Manuel Garciardquo por fim

vemos a profunda reflexatildeo sobre a vida em ldquoO Resto eacute Perfumerdquo culminando

no conto ldquoA Mortardquo que tem em seu final a imersatildeo nas aacuteguas elemento

18

comum em todos os contos que parece como siacutembolo de redenccedilatildeo Temos

aqui um quadro para um estudo comparativo minucioso entre os proacuteprios

contos

Como afirma Agustina Bessa-Luiacutes ldquo para ler a prosa eacute preciso compreender a

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199816) Neste contexto natildeo ousamos falar

do quadro complexo que a palavra ldquomulherrdquo como um ser social objectiva mas

sim na simplicidade do comportamento de vaacuterias mulheres numa soacute imagem

constante nos contos que sente no seu intimo a dor da perca A primeira

referecircncia aqui eacute da mulher-irmatilde que vecirc no uacutenico irmatildeo morto a decadecircncia de

si mesma ldquo seraacute em breve uma sombra na tua sombrardquo (FLORBELA

ESPANCA 199832) Da mulher-matildee e o vazio de sua dor silenciosa ldquo A pobre

matildee abafou um soluccedilo voltou-se e olhou o mortordquo (FLORBELA ESPANCA

1998112) E por fim da mulher-religiosa que busca na cristandade respostas

para seus questionamentos e refuacutegio para seu tormento ldquomais fraacutegil mais

luminosa continuava a rezar as suas oraccedilotildeeshelliporaccedilotildees de amor sacriacutelegas

blasfemas oraccedilotildees de pecadohellipDe pecado Natildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA

1998154) Assim concebo a mulher Bela a compreensatildeo de sua escrita estaacute

nos olhos de quem as vecirc e na sensibilidade de a conhecer Desta feita ldquoa fase

dos equiacutevocos com que a gesta amorosa que a serve com a permanente

invenccedilatildeo de objectos meritoacuterios eacute substituiacuteda por uma feacute na alma feacute que se

acompanha do terriacutevel sentimento de estar morta de natildeo ser mais do que a

aparecircncia dum espaccedilo vividordquo (FLORBELA ESPANCA 199823) diz Agustina

Bessa-Luiacutes

Nesta obra duas propriedades do texto satildeo facilmente perceptiacuteveis a

intertextualidade e a influecircncia exercida em cada conto Essa uacuteltima

envolvendo as fortes caracteriacutesticas da escritora Florbela Espanca Contudo o

texto se constroacutei agrave medida que retoma fatos jaacute conhecidos como eacute o caso das

vaacuterias citaccedilotildees de autores e personagens que ilustram o livro Nesse sentido

quanto mais amplo for o repertoacuterio do leitor o seu acervo de conhecimentos

maior seraacute a sua competecircncia para perceber como os textos dialogam uns

com os outros por meio de referecircncias alusotildees e citaccedilotildees Eacute assim que

Florbela queria que a entendecircssemos atraveacutes de um diaacutelogo intriacutenseco para

descobrirmos suas maacutescaras

19

CAPIacuteTULO 02 21 - ldquoSONHO DE IacuteCAROrdquo

ldquoVoar voar subir subir

Ir por onde for descer ateacute o ceacuteu cair

Ou mudar de cor anjos de gaacutes

Asas de ilusatildeo e um sonho audaz

Feito um balatildeo

No ar no ar eu sou assim

Brilho do farol aleacutem do mais

Amargo fim simplesmente sol

Fugir meu bem eacute ser felizhellip

Ir ateacute que um dia chegue enfim

Em que o sol derreta a cera ateacute o fimrdquo18

A mitologia eacute uma das concepccedilotildees mais geniais que a humanidade produziu

Os gregos instauraram uma categoria intermediaacuteria entre os homens e os

deuses o semideus criando assim os heroacuteis mitoloacutegicos Isso veio a dar

margem a novas investigaccedilotildees sobre os fenoacutemenos da realidade natural

levando ao questionamento da origem dos seres a qual obtiveram respostas

sem sentido concreto Com isso incorporaram a concepccedilatildeo de que a vida e

suas manifestaccedilotildees satildeo obras das forccedilas do espiacuterito que habita em cada um

de noacutes sendo tambeacutem responsaacutevel pela nossa maneira de ser e de agir Isso eacute

sem duacutevida um meio de penetrar atraveacutes da imaginaccedilatildeo no misteacuterio da

existecircncia humana Desta forma o mito consiste nos acontecimentos que se

repetem ao longo da histoacuteria natildeo tendo fim O homem reconhecendo em cada

acto quotidiano uma participaccedilatildeo nos grandes ciclos da vida se sente

participar da grande eternidade miacutetica Partindo de suas origens o homem

consegue viver integralmente e uma vez dentro da mentalidade miacutetica a

proacutepria morte pode ter sentido

18 Fragmento da canccedilatildeo ldquosonho de Iacutecarordquo escrito por Pisca e Claacuteudio Rebelo interpretaccedilatildeo do cantor

brasileiro Byafra

20

Com o intuito de imortalizar o momento de uma trageacutedia Florbela lanccedila matildeo de

aspectos mitoloacutegicos dentro de seus contos que muito nos lembra a triste

histoacuteria de Deacutedalo e Iacutecaro 19 mostrando que o espiacuterito humano de vencer

barreiras e limites nos impulsiona a superar nossas proacuteprias limitaccedilotildees

Alcanccedilar o espaccedilo e as estrelas lanccedilar-se ao infinito experimentar da

sensaccedilatildeo de liberdade interior e o desvendar do misterioso infinito eacute o que

norteia o enredo dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquo O Inventorrdquo

Praticamente todas as culturas destacam o ceacuteu como um lugar especial Esse

local era normalmente designado como a morada dos deuses Muitos povos

consideravam que as constelaccedilotildees eram representaccedilotildees dos seus mitos e

lendas Dessa forma o ceacuteu era um lugar divino e os homens somente o

alcanccedilavam quando eram convidados ou homenageados pelos deuses Mas o

atrevimento de uns culminou na desgraccedila de outros Apenas aqueles com

sabedoria e dotado de iacutentima consciecircncia disciplinar sobre sua condiccedilatildeo

humana conseguiam graccedilas aos olhos dos deuses O conflito interior era um

grande empecilho para que fatos tivessem o desenrolar bem sucedidos

Quando isso natildeo acontecia o homem reconhecia sua condiccedilatildeo de inferioridade

em relaccedilatildeo aos deuses e eram designados ldquofilhos dos homensrdquo

O aparecimento da referecircncia mitoloacutegica pressupotildee uma forte ligaccedilatildeo aos elos

do mito de fundaccedilatildeo que sustenta a harmonia familiar juntamente com

preceitos de moral tendo por priori a identidade pessoal na figura paterna

como eram conhecidos os grandes heroacuteis mitoloacutegicos por serem semideuses

Nesta constante nos eacute dado a conhecer a condiccedilatildeo humana que tambeacutem

aparece de forma intertextualizada como referecircncia ao quadro do flamengo

19 Iacutecaro era filho de Deacutedalo o construtor do labirinto que o rei Minos aprisionava o Minotauro um ser

com corpo de homem e cabeccedila de touro A lenda grega conta que Deacutedalo ensinou Teseu que seria

devorado juntamente com outros jovens pelo monstro como sair do labirinto Deacutedalo sugeriu que ele

deveria utilizar um novelo que deveria ser desenrolado a medida em que fosse penetrando no labirinto

Dessa forma apoacutes ter matado o monstro ele conseguiu fugir do labirinto O rei Minos ficou furioso e

prendeu Deacutedalo e o seu filho Iacutecaro no labirinto Como o rei tinha deixado guardas vigiando as saiacutedas

Deacutedalo construiu asas com penas dos paacutessaros colando-as com cera Antes de levantar voo o pai

recomendou a Iacutecaro que quando ambos estivessem voando natildeo deveriam voar nem muito alto (perto do

Sol cujo calor derreteria a cera) e nem muito baixo (perto do mar pois a unidade tornaria as asas

pesadas) Entretanto a sensaccedilatildeo de voar foi tatildeo estonteante para Iacutecaro que ele esqueceu a recomendaccedilatildeo e

elevou-se tanto nos ares a ponto da previsatildeo de Deacutedalo ocorrer A cera derreteu e Iacutecaro perdeu as asas

precipitando-se no mar e morrendo afogado

21

Brueghel (a Queda de Iacutecaro)20 que Florbela tatildeo bem ilustra com uma descriccedilatildeo

que mais parece uma tela ldquo Os filhos dos homens caacute em baixo deixam cair

nos campos a enxada que faz nascer o patildeo e florir as rosas os pescadores

largam os remos audaciosos que rasgam os mares e os rios e os filhos dos

homens mais duramente castigados os que habitam o formigueiro das cidades

param nas suas insensatas correrias de formigas e todos voltam a face para o

ceacuteurdquo (FLORBELA ESPANCA 199838) Aqui a intertextualidade sugerida

numa linha ecfraacutestica vai de encontro a misteriosa temaacutetica de Florbela

significando isto que o espiacuterito de aventura eacute frequentemente motivo de

incompreensatildeo e de grande solidatildeo

Do mesmo modo que impotildee a condiccedilatildeo de mortal ao homem Florbela o

enaltece dando-lhe honrarias e elevando-o a condiccedilatildeo de um deus ldquo Nos olhos

leva visotildees que os filhos dos homens natildeo conhecem Eacute um homem Deixou laacute

em baixo todo o fardo pesado e vil com que o carregam ao nascer deixou laacute

em baixo todas as algemas todos os feacuterreos grilhotildees que o prendiam toda a

suprema maldiccedilatildeo de ter nascido homem deixou laacute em baixo a sua sacola de

pedinte o seu bordatildeo de Judeu Errante e livre indoacutemito sereno na sua

miacutesera couraccedila de pano azul estendeu em cruz os braccedilos que transformou em

asasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199839) Ao atingir tal supremacia o homem

liberta-se de sua vida anterior e ganha autonomia na forma da liberdade

intriacutenseca conseguindo a superaccedilatildeo de sua forma decadente e de seus

conflitos interiores atraveacutes da liberdade celestial alcanccedilada Deacutedalo foi

conhecido como o arquitecto e artista da liberdade mesmo tendo construiacutedo o

labirinto que eacute a representaccedilatildeo do aprisionamento Aqui Florbela utiliza desse

argumento como se seus escritos fossem labiriacutenticos e teriacuteamos de encontrar

as palavras certas para desvendarmos seus caminhos encontrando neles

assim a liberdade Essa mesma liberdade transformada aqui no voo mais alto

que levaria a traacutegica morte

Apesar de mostrada diferentemente temos aqui mais uma vez a dualidade

que percorre a obra de Florbela o aprisionamento e a liberdade a vida e a

morte antiacuteteses que perfilam seu anseio humano ldquo Um dia julgou ter achado

20 Quadro de Broeghel demonstrando a queda de Iacutecaro no mar enquanto os camponeses prosseguem a sua

labuta diaacuteria

22

Oh aquele dia A embriaguez do homem que se igualou a Deus O coraccedilatildeo a

bater a bater a sentir-se grande demais para um peito tatildeo pequeno para um

tatildeo mesquinho destino A humidade das laacutegrimas a embaciar o olhar gigante

que se esquecera um momento de ter nascido pigmeu O artista o poeta o

inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de movimento e de

vida todos os que desbravavam caminhos os que talham abrem por entre os

matagais selvagens e as belas estradas largas do pensamento e das ideias As

palavras satildeo o muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes

ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)

Ao atingir o voo pleno por vezes nos afastamos da realidade natural e nos

lanccedilamos ao desconhecido sem saber o que nos espera Com isso a queda eacute

inevitaacutevel Neste seguimento vemos a intertextualidade presente sob o estigma

dos cuidados de Zeus filho de Cromo e pai dos deuses que concedeu aos

heroacuteis uma morada afastada dos homens onde os semideuses pudessem se

estabelecer nos confins da terra Eacute laacute que habitam com o coraccedilatildeo livre de

cuidados nas Ilhas dos Bem-Aventurados nas praias dos turbilhotildees profundos

do Oceano satildeo eles os heroacuteis afortunados a quem Florbela tambeacutem concede

a morada preparada como tuacutemulo perfeito para o descanso eterno A

representaccedilatildeo das deusas das aacuteguas na presenccedila das ninfas efidriacuteades21 que

simbolizam a graccedila criativa e fecundadora da natureza fazem aparecer a

presenccedila feminina que surge com o intuito de exaltar a forccedila interior que so a

mulher tem para defrontar situaccedilotildees desastrosas e encontrar soluccedilatildeo nos mais

tenebrosos conflitos bem como de dar um toque de suavidade ternura beleza

e leveza que soacute a performance feminina consegue impor ldquo hellipAs filhas dos

deuses ondinas sereias nereidas princesas encantadas acodem todas

pressurosashellipEm volta das asas mortas satildeo como flores desfolhadas em

redor dum esquife negro E olhamhelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 199842) A

sabedoria feminina evidencia-se ao se manifestar a ldquoque tinha nos olhos uma

nostaacutelgica tristeza humanardquo (FLORBELA ESPANCA 199846) como uma matildee

protectora que acalenta o filho em seu sono profundo e compreende com

tristeza a dor dos mortais ou quem sabe sua proacutepria dor na condiccedilatildeo de

imortal pois somente aos deuses era permitido o poder de arrebatar o espiacuterito

21 Referecircncia as ninfas das aacuteguas da mitologia grega

23

a um homem ldquo E aquele que tinha sido um filho dos homens ficou a dormir na

eternidade como se fora um filho dos deusesrdquo (FLORBELA ESPANCA

199846)

Como podemos perceber Florbela em sua construccedilatildeo literaacuteria delineou nas

entrelinhas dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquoO Inventorrdquo aspectos simboacutelicos

determinantes do aprisionamento e da libertaccedilatildeo humana natildeo somente no

sentido denotativo mas tambeacutem conotativo na multiplicidade de sentidos que

tais palavras propotildeem Apesar da evidecircncia colocada pela escritora ainda nos

remete a reflexatildeo pois o aprisionamento pode ser um meio de libertaccedilatildeo e a

libertaccedilatildeo um aprisionamento ldquohellipOlhou o ceacuteu profundohellipe achou Ser aviador

eacutehellipabraccedilar no mesmo abraccedilo o ceacuteu e o mar Na linguagem dos siacutembolos a

acircncora definindo a esperanccedila nunca poderaacute valer as asas que satildeo a

libertaccedilatildeo A acircncora agarra-se ao fundo e fica as asas abrem-se no espaccedilo e

penetram o ceacuteuhellipSeria aviador Quando pela primeira vez voou natildeo se

esqueceu de sentar na carlinga a seu lado ao lado do seu coraccedilatildeo aquela

que dali em diante seria a companheira de todos os dias a companheira

indefectiacutevel de todos os aviadores a Morterdquo (FLORBELA ESPANCA 1998

129)

A produccedilatildeo intertextual desses dois contos traz-nos um imaginaacuterio voltado aos

princiacutepios fundadores de conceitos e referecircncia humana Florbela baseia-se na

representaccedilatildeo da infacircncia como elemento fundador da personalidade e do

caraacutecter ou seja a figura do pai que nunca a reconheceu em vida e por outro

lado na figura de Deacutedalo e Iacutecaro tendo o pai a dualidade em sua referecircncia

paterna Eacute assim que de ldquotentaccedilatildeo em tentaccedilatildeo de fraqueza em fraqueza os

compromissos de consciecircncia levam um homem honrado agrave praacutetica de todos os

crimeshelliprdquo22

22 Fragmento do conto O Inventor de Florbela Espanca As Maacutescaras do Destino1998122

24

22 - A MULTICIPLIDADE DO HEROacuteI

ldquo A vida parada e recolhida cria heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tarderdquo23

Ao encontrarmos facetas mitoloacutegicas entre as leituras de Florbela natildeo se pode

descartar a visatildeo do heroacutei que a autora engendrou na figura de seu irmatildeo

Apeles Tiacutetulo esse dado a homens excepcionais como Ulisses que eram

venerados por seu povo da mesma forma Florbela nutria uma verdadeira

veneraccedilatildeo que a levou a personificar o Aviador a um heroacutei merecedor de

honrarias e apesar da miacutesera condiccedilatildeo de mortal foi-lhe atribuiacutedo qualidades

fiacutesicas e morais dignas de um semideus ldquo A vida parada e recolhida cria

heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tardehellip o pincel de geacutenio daacute os uacuteltimos

retoques ao cenaacuterio de epopeiahellip laacute em cima a formidaacutevel apoteose desdobra-

se no meio do pasmo das coisas Eacute um homem que tem asas E as asas

pairam descem rodopiam ascendem de novo giram latejam batem ao sol

mais aacutegeis e mais robustas mais leves e mais possantes que as das aacuteguias Eacute

um homem A face eneacutergica vincada a cinzel emerge extraordinaacuteria da vida

intensa na indecisatildeo dos contornos que lhe fazem vagos e paacutelidos um vago

pano de fundo a face e as matildeoshellipOs muacutesculos da face adivinham na forccedila

brutal das maxilas cerradas Nos olhos leva visotildees que os filhos dos homens

natildeo conhecem Os olhos dele natildeo se vecircem olham para dentro e para fora satildeo

pedras como as das estaacutetuas e vecircem mais e mais para aleacutem do que as

miacuteseras pupilas humanas Satildeo astrosrdquo (FLORBELA ESPANCA 199838 e 39)

Esta mesma condiccedilatildeo eacute dada ao Inventor autor da imaginaccedilatildeo de Florbela

ldquoRealizara os seus sonhos todos os seus sonhos Que havia mais agora Jaacute

os homens podiam sulcar os ares sem medo aos vendavais agraves coacuteleras brutais

da Natureza jaacute o ceacuteu se podia coalhar de asas como o mar de velas Todo o

homem poderia ter sem perigo e sem riscos a cobiccedilada sensaccedilatildeo de

comandar nos elementos como um semideusrdquo (FLORBELA ESPANCA

1998133)

Sabemos que o heroacutei constitui o assunto da poesia eacutepica ele tem a sua

maneira proacutepria de agir pela sua coragem e bravura e prossegue objectivos

23 Fragmento do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca198837 e 38

25

bem determinados que ao longo de sua trajectoacuteria lhe satildeo atribuiacutedos cada qual

com sua importacircncia e valor Eacute dado a ele tambeacutem o poder de decisatildeo ora

sobre seus actos ora sobre si mesmo Isso como forma de valorizar sua

sabedoria e supremacia diante daqueles a quem defendia Assim se apresenta

o heroacutei dos contos de Florbela homem-deus detentor de toda visatildeo forte

dominador senhor supremo de seu destino a quem eacute concedido um lugar

eterno junto aos astros

A realidade fictiacutecia da mitologia eacute comparada aqui a realidade autecircntica

Florbela interessa-se pelo seu heroacutei fictiacutecio como se fosse ou tratasse de uma

pessoa real com isso podemos dizer que a escrita ficcional de Florbela eacute

mimese porque a realidade de sua vida humana eacute o seu material de escrita ela

consegue transformar a realidade objectiva na realidade subjectiva vivencial

razatildeo por que nos deixamos influenciar pela sua trajectoacuteria de vida em seus

escritos Isso justifica o fato da ldquovaliosa bravurardquo ndash por uma valiosa pintura - de

seu heroacutei ser retratado em uma tela por um titatilde24 personifica assim a grande

luta travada com as forccedilas da natureza ldquoEacute um Rembrandt pintado por um titatilderdquo

(FLORBELA ESPANCA 199839) A sua proacutepria natureza humana A propoacutesito

disso parece mais reportar ao paradoxo entre o bem e o mal que lutam

constantemente pelo domiacutenio da razatildeo interior talvez alvo de Florbela

Eacute interessante observar a relaccedilatildeo que existe entre o ldquohomem com asasrdquo com

as Harpias25 que na multi-significaccedilatildeo de seu discurso nos projecta a uma

realizaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo na figura do heroacutei alado em uma transposiccedilatildeo

imaginaacuteria com uma pluralidade de sentidos que poderia ocultar um sentido

uacutenico o seu proacuteprio desejo ou o desejo de arrebatar a alma de seu morto

Tambeacutem vemos a intertextualidade corrente na pessoa de Ulisses26 o heroacutei

grego navegante Robson Crusoeacute27 Piratas dos Sete Mares28 aos capitatildees e

24 Referecircncia a segunda geraccedilatildeo dos deus mitoloacutegicos representantes das forccedilas da natureza e sem uma

personalidade bem vincadaos quais Hesiacuteodo enumerou em doze seis machos e seis fecircmeas Oceano Ceacuteu

Crio Hiperiacuteon Jaacutepeto Cronos Teia Reja Teacutemis Mnemoacutesine Febe e Teacutetis 25 As Harpias filhas de Electra (ela proacutepria filha do Titatilde Oceano) e de Taumas (filho de Ponto e de Geia)

pertencem agrave geraccedilatildeo dos preacute-oliacutempicos Elas satildeo irmatildes de iacuteris a mensageira dos deuses Representadas

quer como mulheres aladas com um aspecto fameacutelico quer como paacutessaros com cabeccedila de mulher as

Harpias residem nas ilhas Estroacutefades do mar Egeu ou ainda agraves portas do Taacutertaro Impetuosas e brutais

como a tempestade as Harpias satildeo - este eacute o sentido do seu nome - raptoras com garras fortes 26 Odisseu (na Greacutecia) ou Ulisses (em Roma) eacute um personagem da Iliacuteada e da Odisseacuteia de Homero Apoacutes

a derrota dos troianos ele iniciou uma viagem de dez anos de volta para Iacutetaca onde a sua mulher o espera

com uma fidelidade obstinada apesar da demora Essa viagem mereceu a criaccedilatildeo por Homero do poema

26

navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a

coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a

solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o

enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio

multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos

diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio

Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os

naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de

navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS

Maacutescaras do Destino 1998 p 125)

Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada

com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a

renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que

convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos

escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a

partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental

aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A

viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas

suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte

recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os

heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas

ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o

navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira

de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que

nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era

eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que

deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-

1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado

a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe

herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico

sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O

romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como

tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar

que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os

Lusiacuteadas de Camotildees

27

no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo

da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)

Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida

funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo

conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente

nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de

alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva

Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer

tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos

heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os

portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens

tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que

de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os

navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por

deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da

Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do

texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute

simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no

poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES

1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou

passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da

Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas

natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer

vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de

ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um

heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com

o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas

forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um

aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem

mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva

30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos

Lisboa

Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal

28

presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de

Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura

greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito

especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela

escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a

morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem

para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de

transformaccedilatildeo fantaacutestica

Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que

na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena

confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir

uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute

infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu

desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma

personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo

inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade

aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios

filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa

escritora o seu carma

Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei

que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora

quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem

ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles

desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma

as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista

o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de

movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos

esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do

pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam

As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes

ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)

29

CAPIacuteTULO 03

31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS

ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de

doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32

No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute

intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em

todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do

proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade

de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma

comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro

cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser

estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute

antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de

alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas

oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir

as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava

perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o

fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo

para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que

muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da

escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e

complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e

pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma

formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela

graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa

assume

32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122

30

De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete

agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem

Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites

nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute

podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido

conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao

inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um

ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma

palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a

intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda

e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas

pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma

onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo

(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um

recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o

renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio

inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a

matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada

ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe

mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata

cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de

voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e

122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso

indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam

tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele

o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as

suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um

emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados

que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e

intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica

33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ

31

Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado

transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas

Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e

que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a

imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de

dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada

dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais

significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa

escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e

sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-

as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar

inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos

era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade

existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)

A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio

Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo

tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens

que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de

tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta

ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a

proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo

Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante

notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe

de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e

medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca

mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho

branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a

socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua

presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo

(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo

deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo

queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a

intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia

humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para

32

sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo

pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no

mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais

apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva

enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente

foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)

A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja

como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo

atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute

reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em

busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito

junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos

satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad

que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que

han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas

mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como

meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do

inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os

aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias

34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939

33

32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO

ldquoA vida vem em ondas

Como o mar

Num indo e vindo infinitohelliprdquo35

A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente

foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram

o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios

da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-

portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo

ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura

universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e

nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a

esquizofrenia de sua alma

O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos

grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma

visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes

de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-

racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas

fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma

encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no

espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada

ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar

duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava

que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se

35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos

em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria

imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia

grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios

Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e

cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam

da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela

Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a

sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor

34

sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o

olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de

um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o

seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No

reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que

constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia

Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor

das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que

participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na

claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma

a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial

apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se

imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA

ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta

solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser

acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas

pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de

existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas

dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma

mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar

agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)

As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar

aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de

Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a

37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta

nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet

tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido

advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte

de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga

(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre

1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a

questatildeo (Hamlet ato III cena I)

38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)

que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era

destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar

35

travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes

questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente

humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a

vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa

loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz

a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair

numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua

frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico

mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de

transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a

morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano

capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas

ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de

integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de

totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma

ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade

de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida

dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a

seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas

iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives

mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas

dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a

cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute

perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras

velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida

de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar

costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras

por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e

grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme

O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu

amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do

Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para

toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos

36

Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser

salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma

dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo

desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave

liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos

secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a

uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo

desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a

boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia

pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a

mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais

alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se

nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira

as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de

alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora

julga existir no seu misteacuterio

O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e

forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e

sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que

orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente

num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das

contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute

traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas

que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas

figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas

narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um

imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e

39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII

mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a

bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por

alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua

tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar

Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A

histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito

em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que

aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas

aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma

37

refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus

fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a

sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades

da dinacircmica universal

Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar

simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos

narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos

siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um

contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da

efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma

capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde

diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e

exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia

essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel

mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo

do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do

Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)

e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo

social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)

na representatividade literaacuteria do mar

38

CAPIacuteTULO 04

41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA

ldquoGosto de ti apaixonadamente

De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo

De ti que me trouxeste pela matildeo

Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40

Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso

a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade

directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na

poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua

dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees

Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita

capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e

um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz

e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a

dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas

conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute

e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria

serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem

quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto

anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse

em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita

maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte

com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e

quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e

emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos

paradoxos

40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no

livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004

Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo

Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11

39

Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos

toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-

romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido

num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia

com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes

profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas

sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo

acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando

a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A

derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a

conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas

da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da

sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No

entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas

romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a

impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo

definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha

aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento

em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o

passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era

tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto

A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos

acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-

Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs

Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os

Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de

Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de

Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o

egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo

narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica

Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute

neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o

poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem

40

esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma

essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no

iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma

questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos

encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem

sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos

interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas

as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um

exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo

tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo

daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita

conteacutem

41

42 - UM PERCURSO COMPARATIVO

ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os

vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e

outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que

ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute

foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41

ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto

Olhou em roda natildeo achou ningueacutem

Por entre as campas arrastando o manto

Com lentos passos caminhou aleacutem

Abandonado neste chatildeo repousa

Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui

Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa

Sobre este peito que bateu por tirdquo42

A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e

o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-

romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua

linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa

o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se

O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando

proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos

moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na

literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror

Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou

comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas

circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de

comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e

sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos

41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda

Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos

42

ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de

outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou

Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)

Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal

de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma

optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada

pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada

no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus

sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa

suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois

dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)

Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade

todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional

natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute

afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute

tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima

do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo

Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela

e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a

prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua

intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a

dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as

influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente

que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz

directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para

a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o

intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era

partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada

por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das

rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de

branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza

43

ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas

Longas roupagens de neveda cor

Singela croa de virgiacutenias rosas

Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43

ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de

branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila

devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa

nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)

Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de

conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se

para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da

imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a

partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a

presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os

uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem

eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera

absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor

ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria

A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a

intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um

testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista

e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas

caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da

temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao

fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma

retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras

masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo

homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma

mulher

43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12

44

(hellip)

Mulher formosa que adorei na vida

E que na tumba natildeo cessei damar

Por que atraiccediloas desleal mentida

O amor eterno que te ouvi jurar

Amor engano que na campa finda

Que a morte despe da ilusatildeo falaz

Quem dentros vivos se lembrara ainda

ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)

Talvez que rindo dos protestos nossos

Gozes com outro dinfernal prazer

E o olvido cobriraacute meus ossos

Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44

Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o

vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as

bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis

e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma

essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o

podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA

ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de

sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a

eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos

na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto

com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais

de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas

palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o

esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal

seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu

passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre

44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9

45

que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as

matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos

das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam

para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)

Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno

num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista

melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias

possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela

um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica

natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem

fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo

intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas

rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso

consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo

intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas

solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou

com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a

todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas

as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os

sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado

daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)

Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do

Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais

significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO

MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do

quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e

estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que

desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo

da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina

agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das

espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute

presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos

46

ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido

Das sepulturas o gelado poacute

Dois esqueletos um ao outro unido

Foram achados num sepulcro soacuterdquo45

Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de

imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da

intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo

buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma

enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo

recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as

laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas

deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo

sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais

moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas

austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade

dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete

palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam

pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e

59)

Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao

ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram

escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia

literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo

exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde

ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais

tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo

merecida

45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos

47

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas

interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca

Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo

depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves

transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo

sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia

ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas

metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver

com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao

sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas

tambeacutem ao que relaciona a morte

A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua

eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela

mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e

sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo

quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade

que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas

personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a

humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de

enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e

sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas

e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o

que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte

presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais

condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus

contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e

desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse

interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural

equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes

interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute

Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem

uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses

48

elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o

inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela

tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses

elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma

civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor

sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam

sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do

intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea

Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o

menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que

para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro

compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo

que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou

seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua

imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que

essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar

atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a

outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual

proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque

esconde-se ou projecta-se no discurso do outro

Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o

caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo

relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens

marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um

significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um

desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos

de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e

fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave

realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande

maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe

um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo

46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de

Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360

49

obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a

escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada

Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a

infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute

aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo

espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a

verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes

50

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Page 13: AS MÁSCARAS SIMBÓLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA … Jaqueline... · 2019-10-31 · A narrativa ficcional não é o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca, mas, assim como

13

A intertextualidade se daacute pois tanto na produccedilatildeo como na recepccedilatildeo da grande

rede cultural de que todos participam Filmes que retomam filmes quadros que

dialogam com outros propagandas que se utilizam do discurso artiacutestico

poemas escritos com versos alheios romances que se apropriam de formas

musicais tudo isso satildeo textos em diaacutelogo com outros textos intertextualidade

Um texto remete a outro para defender as ideias nele contidas ou para

contestar tais ideias isso se daacute atraveacutes de um estudo comparativo entre textos

que ligam-se pela elaboraccedilatildeo artiacutestica de seu criador Eacute atraveacutes da anaacutelise

comparativa que tomamos ciecircncia da emergecircncia simboacutelica existente entre os

textos e a que niacutevel se daacute tal emergecircncia quanto agrave diacronia e sincronia que os

ligam Em qualquer niacutevel a produccedilatildeo simboacutelica eacute pois sempre uma retomada

de outras produccedilotildees perfazendo um jogo infinito que enreda autores e leitores

Apropriando-nos entatildeo de Schneider podemos afirmar

ldquoO texto literaacuterio eacute um palimpsesto O autor antigo escreveu uma lsquoprimeirarsquo vez

depois sua escritura foi apagada por algum copista que recobriu a paacutegina com

um novo texto e assim por diante Textos primeiros inexistem tanto quanto as

puras coacutepias o apagar natildeo eacute nunca tatildeo acabado que natildeo deixe vestiacutegios a

invenccedilatildeo nunca tatildeo nova que natildeo se apoacuteie sobre o jaacute-escritordquo (SCHNEIDER

199071)

No sentido estrito a palavra texto remete a uma ordem significativa

verbal Dentro dessa ordem a literatura vale-se amplamente do recurso

intertextual consciente ou inconscientemente Em razatildeo disso a

intertextualidade faz-se operador de leitura Eacute importante marcar os primoacuterdios

de Bakhtin em relaccedilatildeo a esses estudos divulgados por Juacutelia Kristeva Eacute dela o

claacutessico conceito de intertextualidade ldquo todo texto se constroacutei como mosaiacuteco de

citaccedilotildees todo texto eacute absorccedilatildeo e transformaccedilatildeo de um outro textordquo

(KRISTEVA 197464) Na verdade a intertextualidade inerente agrave linguagem

torna-se expliacutecita em todas as produccedilotildees literaacuterias que se valem do recurso da

apropriaccedilatildeo colocando em xeque a proacutepria noccedilatildeo de autoria Eacute o que vamos

observar ao longo do estudo no conto ldquoA Mortardquo em ldquoAs Maacutescaras do Destinordquo

de Florbela Espanca temos aqui um bom exemplo do que se define como

intertextualidade as relaccedilotildees entre textos a citaccedilatildeo de um texto por outro

enfim o diaacutelogo entre textos Sendo assim para entender um texto na sua

totalidade eacute preciso conhecer o(s) texto(s) que nele fora(m) citado(s)

14

Eacute nesse contexto que Kristeva membro actuante da criacutetica francesa elabora

seu conceito de intertextualidade considerando que todo texto se constroacutei como

ldquomosaico de citaccedilotildeesrdquo Esse entendimento acarreta a consideraccedilatildeo de que a

intertextualidade eacute um fenoacutemeno que se encontra na base do proacuteprio texto

literaacuterio imbricada com a inserccedilatildeo deste num muacuteltiplo conjunto de praacuteticas

sociais relevantes A partir de Kristeva ldquotextordquo passa a ser entendido como o

evento situado na histoacuteria e na sociedade que natildeo apenas reflecte uma

situaccedilatildeo mas eacute essa proacutepria situaccedilatildeo apagando linhas divisoacuterias entre as

disciplinas e constituindo um cruzamento entre diferentes superfiacutecies textuais e

distintas aacutereas do saber cientiacutefico e da esfera artiacutestica ldquoPelo seu modo de

escrever lendo o corpus literaacuterio anterior ou sincroacutenico o autor vive na histoacuteria

e a sociedade se escreve no textordquo (KRISTEVA 197498)

A partir dos postulados deste conceito observamos que a intertextualidade

reflecte a concepccedilatildeo do texto literaacuterio como carregado de outros textos

inclusive do ldquotextordquo da realidaderdquo E eacute essa realidade polifoacutenica de vivecircncia

tumultuosa e inquietante de dissabores intriacutensecos e por vezes

transcendentais de acontecimentos filtrados atraveacutes de sua proacutepria

sensibilidade e sua imaginaccedilatildeo fantaacutestica que Florbela Espanca tem

manifestado para que seja compreendido seus misteacuterios de forma a dar mais

realce atraveacutes das vaacuterias formas de compreensatildeo e interpretaccedilatildeo intertextual e

comparativa de sua obra Neste sentido a teoria intertextual e comparativa

seraacute um guiatildeo a nortear um trabalho na tentativa de conhecermos essa

enigmaacutetica escritora que foi Florbela Espanca E eacute dela o incentivo para um

maior entendimento daquilo que nos deixou ldquoPara mim Para ti Para ningueacutem

Quero atirar para aqui negligentemente sem pretensotildees de estilo sem

anaacutelises filosoacuteficas o que os ouvidos dos outros natildeo recolhem reflexotildees

impressotildees ideias maneiras de ver de sentir ndash todo o meu espiacuterito paradoxal

talvez friacutevolo talvez profundo Compreendi por fim que nada compreendi que

mesmo nada poderia ter compreendido de mimhellipRestam-me os outroshellip

talvez por eles possa chegar agraves infinitas possibilidades do meu ser misterioso

intangiacutevel secretordquo (FLORBELA ESPANCA 199833)14

14 Fragmento retirado do livro ldquoDiaacuterio do Uacuteltimo Anordquo Bertrand Editora

15

A proposta de entendimento intertextual traacutes um reflexo de sua existecircncia

registado em sua ldquoDivina Comeacutediardquo15 pelos seus ldquoVersosrdquo16

ldquoVersos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip

Pedaccedilos de sorrisos branca espuma

Gargalhadas de luz cantos dispersos

Ou peacutetalas que caem uma a umahellip

VersosSei laacute Um verso eacute o teu olhar

Um verso eacute o teu sorriso e os de Dante

Eram o seu amor a soluccedilar

Aos peacutes de sua estremecida amante

Meus versos Sei eu laacute tambeacutem que satildeohellip

Sei laacute Sei laacute Meu pobre coraccedilatildeo

Partidos em mil pedaccedilos satildeo talvezhellip

Versos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip

Meus soluccedilos de dor que andam dispersos

Por este grande amor em que natildeo crecircsrdquo

15 Referecircncia a Obra de Dante Alighieri A Divina Comeacutedia uma viagem ao inferno purgatoacuterio e ao

paraiacuteso Aqui em relaccedilatildeo a vida de Florbela a palavra comeacutedia tem duplo significado o de origem dando

seguimento bom ao desenlace das personagens e em seu sentido coacutemico aos factores da inconstacircncia da

escritora 16 Referecircncia ao poema de Florbela escrito em O livro Drsquoele Poesia Completa2004 208

16

13 - ABORDAGENS SOBRE ldquoAS MAacuteSCARAS DO DESTINOrdquo ldquoOs contos satildeo como ela - siacutembolo de permanecircncia no pensamento da terra fio

de amor que manteacutem a sua magneacutetica forccedila saudade de tudo que podia

significar felicidade e expressatildeo do afectordquo17

Dedicada ao seu irmatildeo Apeles Demoacutestenes da Rocha Espanca ndash ldquoAs

Maacutescaras do Destinordquo eacute uma obra inspirada na tristeza e dor que a perda do

irmatildeo causa em Florbela Sua dedicatoacuteria ldquoeacute como um punho culpado que

Florbela assenta no proacuteprio peitordquo (FLORBELA ESPANCA 199825) assim diz

Agustina Bessa-Luiacutes autora do prefaacutecio escrito em 1979 que orienta-nos sobre

as condiccedilotildees de leitura que envolve esta obra

A dedicatoacuteria escrita por Florbela comprova o amor de irmatildeos Apeles era

ldquoAquele que das mesmas entranhas foi nascido que ao calor do mesmo

amplexo foi gerado Aquele que traz no rosto as linhas do teu rosto nos olhos a

aacutegua clara dos teus olhos o teu Amigo o teu Irmatildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA

199831 e 32) Ela escrevia tais palavras como uma matildee que acabara de

perder a um filho ldquopara que tua mocidade natildeo trema de o ver partir um dia

bom e meigo para que vivas na ilusatildeo bendita de teres um filho forte e belo

para te obrigar a encarar sorrindo as coisas vis e feias deste mundohelliprdquo

(FLORBELA ESPANCA 199831) Na realidade tais clamores professados soacute

a uma matildee que perdera seu filho eacute permitido senti-los

Escrita no final de 1927 reuacutene oito contos denominados ldquoO Aviador ldquoA Mortardquo

ldquoOs Mortos Natildeo Voltamrdquo ldquo O Resto Eacute Perfumerdquo ldquoA Paixatildeo de Manuel Garciardquo

ldquo O Inventorrdquo ldquoAs Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquoO Sobrenaturalrdquo

Como demonstram os tiacutetulos dados aos contos o tema ldquomorterdquo eacute o ponto de

convergecircncia entre os enredos e vem reforccedilar o pendor funesto da obra de

Florbela natildeo apenas pelo desaparecimento do irmatildeo mas que jaacute fazia parte

da proacutepria insatisfaccedilatildeo intimista que a escritora detinha Nesta altura por forccedilas

das circunstacircncias parecia estar desvinculada da vida como uma morta e sua

perpeacutetua busca lhe assegura uma espeacutecie de eternidade

Natildeo participando do enredo assim sendo em 3ordf pessoa mostrava-se uma

observadora a narrar fatos onde a realidade se confunde com o imaginaacuterio

17 Fragmento escrito por Agustina Bessa-Luiacutez retirado do prefaacutecio do livro As Maacutescaras do Destino de

Florbela Espanca 199810

17

fantaacutestico e soacute nos traacutes agrave lucidez da compreensatildeo devido as referecircncias

intertextuais as quais satildeo comuns aos contos pois ldquo o fantaacutestico se caracteiza

por una instrusioacuten brutal del misteacuterio en el marco de la vida real y estaacute ligado

generalmente a los estados moacuterbitos de la conciencia que en los fenoacutemenos

de pesadilla e de deliacuterio proyecta ante siacute imaacutegenes de sus angustias e de sus

terroresrdquo (GEORGES JEAN 1889 68 e 69) Mas a escritora natildeo desvincula-se

de sua obra uma forte tendecircncia de Florbela Marcando presenccedila no conto ldquoO

Resto Eacute Perfumerdquo interage como personagem assim assume o relato como

se procedesse de outro narrador para que pudesse penetraacute-lo e manter suas

caracteriacutesticas inquietantes e paradoxais acrescentando uma forte dose de

existencialismo e a presenccedila do ldquoEurdquo que vem reforccedilar a categoria de seus

relatos miacuteticos Aqui o ldquofantaacutesticordquo se confunde com o ldquomaravilhosordquo isso

devido aos relatos mitoloacutegicos que implica durante a leitura em um

redireccionamento do leitor a outro espaccedilo a outro tempo onde temos a ilusatildeo

de vivermos por um breve momento em outro lugar Florbela nos permite a

viagens imaginaacuterias em que o maravilhoso de seus contos dependeraacute de uma

infinidade de interpretaccedilotildees que natildeo seratildeo necessariamente interpretaccedilotildees

racionais pois as interpretaccedilotildees paralelas e divergentes satildeo sempre possiacuteveis

devido a riqueza do conto em si que no caso de Florbela estatildeo ligados aos

estados moacuterbidos de sua consciecircncia

Sabemos que algum dos elementos imaginaacuterios dos contos de Florbela estaacute

ligada ao realismo de sua histoacuteria verdadeira e isso eacute capaz pela virtudes que

soacute os contos de fadas pode proporcionar apesar de sua vida inconstante e

cheia de maacutegoas soube mascarar seu inconsciente e dar a seu relato um

intercacircmbio gracioso e sentimental com sua vida Por sua vez tais relatos

remetem-se a duas vertentes essenciais nos contos a primeira de propagar as

formas simboacutelicas durante a histoacuteria e a segunda de inserir essas formas

mediante a expansatildeo de sua escrita atraveacutes dos contos Um bom exemplo

disso eacute a clareza de como um conto complementa outro Atentemos para os

detalhes simboacutelicos de ldquoO Inventorrdquo que parece encerrar-se em ldquoO Aviadorrdquo da

mesma forma acontece em ldquoO Sobrenaturalrdquo e ldquoOs Mortos natildeo Voltamrdquo ldquoAs

Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquo A Paixatildeo de Manuel Garciardquo por fim

vemos a profunda reflexatildeo sobre a vida em ldquoO Resto eacute Perfumerdquo culminando

no conto ldquoA Mortardquo que tem em seu final a imersatildeo nas aacuteguas elemento

18

comum em todos os contos que parece como siacutembolo de redenccedilatildeo Temos

aqui um quadro para um estudo comparativo minucioso entre os proacuteprios

contos

Como afirma Agustina Bessa-Luiacutes ldquo para ler a prosa eacute preciso compreender a

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199816) Neste contexto natildeo ousamos falar

do quadro complexo que a palavra ldquomulherrdquo como um ser social objectiva mas

sim na simplicidade do comportamento de vaacuterias mulheres numa soacute imagem

constante nos contos que sente no seu intimo a dor da perca A primeira

referecircncia aqui eacute da mulher-irmatilde que vecirc no uacutenico irmatildeo morto a decadecircncia de

si mesma ldquo seraacute em breve uma sombra na tua sombrardquo (FLORBELA

ESPANCA 199832) Da mulher-matildee e o vazio de sua dor silenciosa ldquo A pobre

matildee abafou um soluccedilo voltou-se e olhou o mortordquo (FLORBELA ESPANCA

1998112) E por fim da mulher-religiosa que busca na cristandade respostas

para seus questionamentos e refuacutegio para seu tormento ldquomais fraacutegil mais

luminosa continuava a rezar as suas oraccedilotildeeshelliporaccedilotildees de amor sacriacutelegas

blasfemas oraccedilotildees de pecadohellipDe pecado Natildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA

1998154) Assim concebo a mulher Bela a compreensatildeo de sua escrita estaacute

nos olhos de quem as vecirc e na sensibilidade de a conhecer Desta feita ldquoa fase

dos equiacutevocos com que a gesta amorosa que a serve com a permanente

invenccedilatildeo de objectos meritoacuterios eacute substituiacuteda por uma feacute na alma feacute que se

acompanha do terriacutevel sentimento de estar morta de natildeo ser mais do que a

aparecircncia dum espaccedilo vividordquo (FLORBELA ESPANCA 199823) diz Agustina

Bessa-Luiacutes

Nesta obra duas propriedades do texto satildeo facilmente perceptiacuteveis a

intertextualidade e a influecircncia exercida em cada conto Essa uacuteltima

envolvendo as fortes caracteriacutesticas da escritora Florbela Espanca Contudo o

texto se constroacutei agrave medida que retoma fatos jaacute conhecidos como eacute o caso das

vaacuterias citaccedilotildees de autores e personagens que ilustram o livro Nesse sentido

quanto mais amplo for o repertoacuterio do leitor o seu acervo de conhecimentos

maior seraacute a sua competecircncia para perceber como os textos dialogam uns

com os outros por meio de referecircncias alusotildees e citaccedilotildees Eacute assim que

Florbela queria que a entendecircssemos atraveacutes de um diaacutelogo intriacutenseco para

descobrirmos suas maacutescaras

19

CAPIacuteTULO 02 21 - ldquoSONHO DE IacuteCAROrdquo

ldquoVoar voar subir subir

Ir por onde for descer ateacute o ceacuteu cair

Ou mudar de cor anjos de gaacutes

Asas de ilusatildeo e um sonho audaz

Feito um balatildeo

No ar no ar eu sou assim

Brilho do farol aleacutem do mais

Amargo fim simplesmente sol

Fugir meu bem eacute ser felizhellip

Ir ateacute que um dia chegue enfim

Em que o sol derreta a cera ateacute o fimrdquo18

A mitologia eacute uma das concepccedilotildees mais geniais que a humanidade produziu

Os gregos instauraram uma categoria intermediaacuteria entre os homens e os

deuses o semideus criando assim os heroacuteis mitoloacutegicos Isso veio a dar

margem a novas investigaccedilotildees sobre os fenoacutemenos da realidade natural

levando ao questionamento da origem dos seres a qual obtiveram respostas

sem sentido concreto Com isso incorporaram a concepccedilatildeo de que a vida e

suas manifestaccedilotildees satildeo obras das forccedilas do espiacuterito que habita em cada um

de noacutes sendo tambeacutem responsaacutevel pela nossa maneira de ser e de agir Isso eacute

sem duacutevida um meio de penetrar atraveacutes da imaginaccedilatildeo no misteacuterio da

existecircncia humana Desta forma o mito consiste nos acontecimentos que se

repetem ao longo da histoacuteria natildeo tendo fim O homem reconhecendo em cada

acto quotidiano uma participaccedilatildeo nos grandes ciclos da vida se sente

participar da grande eternidade miacutetica Partindo de suas origens o homem

consegue viver integralmente e uma vez dentro da mentalidade miacutetica a

proacutepria morte pode ter sentido

18 Fragmento da canccedilatildeo ldquosonho de Iacutecarordquo escrito por Pisca e Claacuteudio Rebelo interpretaccedilatildeo do cantor

brasileiro Byafra

20

Com o intuito de imortalizar o momento de uma trageacutedia Florbela lanccedila matildeo de

aspectos mitoloacutegicos dentro de seus contos que muito nos lembra a triste

histoacuteria de Deacutedalo e Iacutecaro 19 mostrando que o espiacuterito humano de vencer

barreiras e limites nos impulsiona a superar nossas proacuteprias limitaccedilotildees

Alcanccedilar o espaccedilo e as estrelas lanccedilar-se ao infinito experimentar da

sensaccedilatildeo de liberdade interior e o desvendar do misterioso infinito eacute o que

norteia o enredo dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquo O Inventorrdquo

Praticamente todas as culturas destacam o ceacuteu como um lugar especial Esse

local era normalmente designado como a morada dos deuses Muitos povos

consideravam que as constelaccedilotildees eram representaccedilotildees dos seus mitos e

lendas Dessa forma o ceacuteu era um lugar divino e os homens somente o

alcanccedilavam quando eram convidados ou homenageados pelos deuses Mas o

atrevimento de uns culminou na desgraccedila de outros Apenas aqueles com

sabedoria e dotado de iacutentima consciecircncia disciplinar sobre sua condiccedilatildeo

humana conseguiam graccedilas aos olhos dos deuses O conflito interior era um

grande empecilho para que fatos tivessem o desenrolar bem sucedidos

Quando isso natildeo acontecia o homem reconhecia sua condiccedilatildeo de inferioridade

em relaccedilatildeo aos deuses e eram designados ldquofilhos dos homensrdquo

O aparecimento da referecircncia mitoloacutegica pressupotildee uma forte ligaccedilatildeo aos elos

do mito de fundaccedilatildeo que sustenta a harmonia familiar juntamente com

preceitos de moral tendo por priori a identidade pessoal na figura paterna

como eram conhecidos os grandes heroacuteis mitoloacutegicos por serem semideuses

Nesta constante nos eacute dado a conhecer a condiccedilatildeo humana que tambeacutem

aparece de forma intertextualizada como referecircncia ao quadro do flamengo

19 Iacutecaro era filho de Deacutedalo o construtor do labirinto que o rei Minos aprisionava o Minotauro um ser

com corpo de homem e cabeccedila de touro A lenda grega conta que Deacutedalo ensinou Teseu que seria

devorado juntamente com outros jovens pelo monstro como sair do labirinto Deacutedalo sugeriu que ele

deveria utilizar um novelo que deveria ser desenrolado a medida em que fosse penetrando no labirinto

Dessa forma apoacutes ter matado o monstro ele conseguiu fugir do labirinto O rei Minos ficou furioso e

prendeu Deacutedalo e o seu filho Iacutecaro no labirinto Como o rei tinha deixado guardas vigiando as saiacutedas

Deacutedalo construiu asas com penas dos paacutessaros colando-as com cera Antes de levantar voo o pai

recomendou a Iacutecaro que quando ambos estivessem voando natildeo deveriam voar nem muito alto (perto do

Sol cujo calor derreteria a cera) e nem muito baixo (perto do mar pois a unidade tornaria as asas

pesadas) Entretanto a sensaccedilatildeo de voar foi tatildeo estonteante para Iacutecaro que ele esqueceu a recomendaccedilatildeo e

elevou-se tanto nos ares a ponto da previsatildeo de Deacutedalo ocorrer A cera derreteu e Iacutecaro perdeu as asas

precipitando-se no mar e morrendo afogado

21

Brueghel (a Queda de Iacutecaro)20 que Florbela tatildeo bem ilustra com uma descriccedilatildeo

que mais parece uma tela ldquo Os filhos dos homens caacute em baixo deixam cair

nos campos a enxada que faz nascer o patildeo e florir as rosas os pescadores

largam os remos audaciosos que rasgam os mares e os rios e os filhos dos

homens mais duramente castigados os que habitam o formigueiro das cidades

param nas suas insensatas correrias de formigas e todos voltam a face para o

ceacuteurdquo (FLORBELA ESPANCA 199838) Aqui a intertextualidade sugerida

numa linha ecfraacutestica vai de encontro a misteriosa temaacutetica de Florbela

significando isto que o espiacuterito de aventura eacute frequentemente motivo de

incompreensatildeo e de grande solidatildeo

Do mesmo modo que impotildee a condiccedilatildeo de mortal ao homem Florbela o

enaltece dando-lhe honrarias e elevando-o a condiccedilatildeo de um deus ldquo Nos olhos

leva visotildees que os filhos dos homens natildeo conhecem Eacute um homem Deixou laacute

em baixo todo o fardo pesado e vil com que o carregam ao nascer deixou laacute

em baixo todas as algemas todos os feacuterreos grilhotildees que o prendiam toda a

suprema maldiccedilatildeo de ter nascido homem deixou laacute em baixo a sua sacola de

pedinte o seu bordatildeo de Judeu Errante e livre indoacutemito sereno na sua

miacutesera couraccedila de pano azul estendeu em cruz os braccedilos que transformou em

asasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199839) Ao atingir tal supremacia o homem

liberta-se de sua vida anterior e ganha autonomia na forma da liberdade

intriacutenseca conseguindo a superaccedilatildeo de sua forma decadente e de seus

conflitos interiores atraveacutes da liberdade celestial alcanccedilada Deacutedalo foi

conhecido como o arquitecto e artista da liberdade mesmo tendo construiacutedo o

labirinto que eacute a representaccedilatildeo do aprisionamento Aqui Florbela utiliza desse

argumento como se seus escritos fossem labiriacutenticos e teriacuteamos de encontrar

as palavras certas para desvendarmos seus caminhos encontrando neles

assim a liberdade Essa mesma liberdade transformada aqui no voo mais alto

que levaria a traacutegica morte

Apesar de mostrada diferentemente temos aqui mais uma vez a dualidade

que percorre a obra de Florbela o aprisionamento e a liberdade a vida e a

morte antiacuteteses que perfilam seu anseio humano ldquo Um dia julgou ter achado

20 Quadro de Broeghel demonstrando a queda de Iacutecaro no mar enquanto os camponeses prosseguem a sua

labuta diaacuteria

22

Oh aquele dia A embriaguez do homem que se igualou a Deus O coraccedilatildeo a

bater a bater a sentir-se grande demais para um peito tatildeo pequeno para um

tatildeo mesquinho destino A humidade das laacutegrimas a embaciar o olhar gigante

que se esquecera um momento de ter nascido pigmeu O artista o poeta o

inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de movimento e de

vida todos os que desbravavam caminhos os que talham abrem por entre os

matagais selvagens e as belas estradas largas do pensamento e das ideias As

palavras satildeo o muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes

ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)

Ao atingir o voo pleno por vezes nos afastamos da realidade natural e nos

lanccedilamos ao desconhecido sem saber o que nos espera Com isso a queda eacute

inevitaacutevel Neste seguimento vemos a intertextualidade presente sob o estigma

dos cuidados de Zeus filho de Cromo e pai dos deuses que concedeu aos

heroacuteis uma morada afastada dos homens onde os semideuses pudessem se

estabelecer nos confins da terra Eacute laacute que habitam com o coraccedilatildeo livre de

cuidados nas Ilhas dos Bem-Aventurados nas praias dos turbilhotildees profundos

do Oceano satildeo eles os heroacuteis afortunados a quem Florbela tambeacutem concede

a morada preparada como tuacutemulo perfeito para o descanso eterno A

representaccedilatildeo das deusas das aacuteguas na presenccedila das ninfas efidriacuteades21 que

simbolizam a graccedila criativa e fecundadora da natureza fazem aparecer a

presenccedila feminina que surge com o intuito de exaltar a forccedila interior que so a

mulher tem para defrontar situaccedilotildees desastrosas e encontrar soluccedilatildeo nos mais

tenebrosos conflitos bem como de dar um toque de suavidade ternura beleza

e leveza que soacute a performance feminina consegue impor ldquo hellipAs filhas dos

deuses ondinas sereias nereidas princesas encantadas acodem todas

pressurosashellipEm volta das asas mortas satildeo como flores desfolhadas em

redor dum esquife negro E olhamhelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 199842) A

sabedoria feminina evidencia-se ao se manifestar a ldquoque tinha nos olhos uma

nostaacutelgica tristeza humanardquo (FLORBELA ESPANCA 199846) como uma matildee

protectora que acalenta o filho em seu sono profundo e compreende com

tristeza a dor dos mortais ou quem sabe sua proacutepria dor na condiccedilatildeo de

imortal pois somente aos deuses era permitido o poder de arrebatar o espiacuterito

21 Referecircncia as ninfas das aacuteguas da mitologia grega

23

a um homem ldquo E aquele que tinha sido um filho dos homens ficou a dormir na

eternidade como se fora um filho dos deusesrdquo (FLORBELA ESPANCA

199846)

Como podemos perceber Florbela em sua construccedilatildeo literaacuteria delineou nas

entrelinhas dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquoO Inventorrdquo aspectos simboacutelicos

determinantes do aprisionamento e da libertaccedilatildeo humana natildeo somente no

sentido denotativo mas tambeacutem conotativo na multiplicidade de sentidos que

tais palavras propotildeem Apesar da evidecircncia colocada pela escritora ainda nos

remete a reflexatildeo pois o aprisionamento pode ser um meio de libertaccedilatildeo e a

libertaccedilatildeo um aprisionamento ldquohellipOlhou o ceacuteu profundohellipe achou Ser aviador

eacutehellipabraccedilar no mesmo abraccedilo o ceacuteu e o mar Na linguagem dos siacutembolos a

acircncora definindo a esperanccedila nunca poderaacute valer as asas que satildeo a

libertaccedilatildeo A acircncora agarra-se ao fundo e fica as asas abrem-se no espaccedilo e

penetram o ceacuteuhellipSeria aviador Quando pela primeira vez voou natildeo se

esqueceu de sentar na carlinga a seu lado ao lado do seu coraccedilatildeo aquela

que dali em diante seria a companheira de todos os dias a companheira

indefectiacutevel de todos os aviadores a Morterdquo (FLORBELA ESPANCA 1998

129)

A produccedilatildeo intertextual desses dois contos traz-nos um imaginaacuterio voltado aos

princiacutepios fundadores de conceitos e referecircncia humana Florbela baseia-se na

representaccedilatildeo da infacircncia como elemento fundador da personalidade e do

caraacutecter ou seja a figura do pai que nunca a reconheceu em vida e por outro

lado na figura de Deacutedalo e Iacutecaro tendo o pai a dualidade em sua referecircncia

paterna Eacute assim que de ldquotentaccedilatildeo em tentaccedilatildeo de fraqueza em fraqueza os

compromissos de consciecircncia levam um homem honrado agrave praacutetica de todos os

crimeshelliprdquo22

22 Fragmento do conto O Inventor de Florbela Espanca As Maacutescaras do Destino1998122

24

22 - A MULTICIPLIDADE DO HEROacuteI

ldquo A vida parada e recolhida cria heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tarderdquo23

Ao encontrarmos facetas mitoloacutegicas entre as leituras de Florbela natildeo se pode

descartar a visatildeo do heroacutei que a autora engendrou na figura de seu irmatildeo

Apeles Tiacutetulo esse dado a homens excepcionais como Ulisses que eram

venerados por seu povo da mesma forma Florbela nutria uma verdadeira

veneraccedilatildeo que a levou a personificar o Aviador a um heroacutei merecedor de

honrarias e apesar da miacutesera condiccedilatildeo de mortal foi-lhe atribuiacutedo qualidades

fiacutesicas e morais dignas de um semideus ldquo A vida parada e recolhida cria

heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tardehellip o pincel de geacutenio daacute os uacuteltimos

retoques ao cenaacuterio de epopeiahellip laacute em cima a formidaacutevel apoteose desdobra-

se no meio do pasmo das coisas Eacute um homem que tem asas E as asas

pairam descem rodopiam ascendem de novo giram latejam batem ao sol

mais aacutegeis e mais robustas mais leves e mais possantes que as das aacuteguias Eacute

um homem A face eneacutergica vincada a cinzel emerge extraordinaacuteria da vida

intensa na indecisatildeo dos contornos que lhe fazem vagos e paacutelidos um vago

pano de fundo a face e as matildeoshellipOs muacutesculos da face adivinham na forccedila

brutal das maxilas cerradas Nos olhos leva visotildees que os filhos dos homens

natildeo conhecem Os olhos dele natildeo se vecircem olham para dentro e para fora satildeo

pedras como as das estaacutetuas e vecircem mais e mais para aleacutem do que as

miacuteseras pupilas humanas Satildeo astrosrdquo (FLORBELA ESPANCA 199838 e 39)

Esta mesma condiccedilatildeo eacute dada ao Inventor autor da imaginaccedilatildeo de Florbela

ldquoRealizara os seus sonhos todos os seus sonhos Que havia mais agora Jaacute

os homens podiam sulcar os ares sem medo aos vendavais agraves coacuteleras brutais

da Natureza jaacute o ceacuteu se podia coalhar de asas como o mar de velas Todo o

homem poderia ter sem perigo e sem riscos a cobiccedilada sensaccedilatildeo de

comandar nos elementos como um semideusrdquo (FLORBELA ESPANCA

1998133)

Sabemos que o heroacutei constitui o assunto da poesia eacutepica ele tem a sua

maneira proacutepria de agir pela sua coragem e bravura e prossegue objectivos

23 Fragmento do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca198837 e 38

25

bem determinados que ao longo de sua trajectoacuteria lhe satildeo atribuiacutedos cada qual

com sua importacircncia e valor Eacute dado a ele tambeacutem o poder de decisatildeo ora

sobre seus actos ora sobre si mesmo Isso como forma de valorizar sua

sabedoria e supremacia diante daqueles a quem defendia Assim se apresenta

o heroacutei dos contos de Florbela homem-deus detentor de toda visatildeo forte

dominador senhor supremo de seu destino a quem eacute concedido um lugar

eterno junto aos astros

A realidade fictiacutecia da mitologia eacute comparada aqui a realidade autecircntica

Florbela interessa-se pelo seu heroacutei fictiacutecio como se fosse ou tratasse de uma

pessoa real com isso podemos dizer que a escrita ficcional de Florbela eacute

mimese porque a realidade de sua vida humana eacute o seu material de escrita ela

consegue transformar a realidade objectiva na realidade subjectiva vivencial

razatildeo por que nos deixamos influenciar pela sua trajectoacuteria de vida em seus

escritos Isso justifica o fato da ldquovaliosa bravurardquo ndash por uma valiosa pintura - de

seu heroacutei ser retratado em uma tela por um titatilde24 personifica assim a grande

luta travada com as forccedilas da natureza ldquoEacute um Rembrandt pintado por um titatilderdquo

(FLORBELA ESPANCA 199839) A sua proacutepria natureza humana A propoacutesito

disso parece mais reportar ao paradoxo entre o bem e o mal que lutam

constantemente pelo domiacutenio da razatildeo interior talvez alvo de Florbela

Eacute interessante observar a relaccedilatildeo que existe entre o ldquohomem com asasrdquo com

as Harpias25 que na multi-significaccedilatildeo de seu discurso nos projecta a uma

realizaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo na figura do heroacutei alado em uma transposiccedilatildeo

imaginaacuteria com uma pluralidade de sentidos que poderia ocultar um sentido

uacutenico o seu proacuteprio desejo ou o desejo de arrebatar a alma de seu morto

Tambeacutem vemos a intertextualidade corrente na pessoa de Ulisses26 o heroacutei

grego navegante Robson Crusoeacute27 Piratas dos Sete Mares28 aos capitatildees e

24 Referecircncia a segunda geraccedilatildeo dos deus mitoloacutegicos representantes das forccedilas da natureza e sem uma

personalidade bem vincadaos quais Hesiacuteodo enumerou em doze seis machos e seis fecircmeas Oceano Ceacuteu

Crio Hiperiacuteon Jaacutepeto Cronos Teia Reja Teacutemis Mnemoacutesine Febe e Teacutetis 25 As Harpias filhas de Electra (ela proacutepria filha do Titatilde Oceano) e de Taumas (filho de Ponto e de Geia)

pertencem agrave geraccedilatildeo dos preacute-oliacutempicos Elas satildeo irmatildes de iacuteris a mensageira dos deuses Representadas

quer como mulheres aladas com um aspecto fameacutelico quer como paacutessaros com cabeccedila de mulher as

Harpias residem nas ilhas Estroacutefades do mar Egeu ou ainda agraves portas do Taacutertaro Impetuosas e brutais

como a tempestade as Harpias satildeo - este eacute o sentido do seu nome - raptoras com garras fortes 26 Odisseu (na Greacutecia) ou Ulisses (em Roma) eacute um personagem da Iliacuteada e da Odisseacuteia de Homero Apoacutes

a derrota dos troianos ele iniciou uma viagem de dez anos de volta para Iacutetaca onde a sua mulher o espera

com uma fidelidade obstinada apesar da demora Essa viagem mereceu a criaccedilatildeo por Homero do poema

26

navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a

coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a

solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o

enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio

multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos

diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio

Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os

naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de

navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS

Maacutescaras do Destino 1998 p 125)

Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada

com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a

renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que

convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos

escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a

partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental

aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A

viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas

suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte

recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os

heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas

ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o

navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira

de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que

nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era

eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que

deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-

1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado

a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe

herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico

sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O

romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como

tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar

que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os

Lusiacuteadas de Camotildees

27

no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo

da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)

Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida

funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo

conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente

nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de

alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva

Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer

tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos

heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os

portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens

tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que

de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os

navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por

deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da

Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do

texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute

simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no

poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES

1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou

passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da

Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas

natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer

vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de

ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um

heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com

o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas

forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um

aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem

mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva

30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos

Lisboa

Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal

28

presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de

Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura

greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito

especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela

escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a

morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem

para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de

transformaccedilatildeo fantaacutestica

Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que

na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena

confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir

uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute

infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu

desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma

personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo

inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade

aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios

filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa

escritora o seu carma

Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei

que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora

quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem

ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles

desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma

as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista

o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de

movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos

esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do

pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam

As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes

ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)

29

CAPIacuteTULO 03

31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS

ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de

doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32

No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute

intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em

todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do

proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade

de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma

comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro

cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser

estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute

antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de

alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas

oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir

as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava

perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o

fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo

para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que

muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da

escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e

complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e

pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma

formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela

graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa

assume

32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122

30

De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete

agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem

Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites

nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute

podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido

conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao

inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um

ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma

palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a

intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda

e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas

pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma

onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo

(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um

recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o

renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio

inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a

matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada

ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe

mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata

cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de

voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e

122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso

indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam

tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele

o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as

suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um

emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados

que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e

intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica

33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ

31

Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado

transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas

Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e

que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a

imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de

dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada

dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais

significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa

escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e

sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-

as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar

inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos

era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade

existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)

A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio

Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo

tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens

que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de

tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta

ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a

proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo

Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante

notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe

de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e

medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca

mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho

branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a

socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua

presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo

(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo

deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo

queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a

intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia

humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para

32

sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo

pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no

mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais

apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva

enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente

foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)

A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja

como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo

atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute

reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em

busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito

junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos

satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad

que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que

han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas

mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como

meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do

inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os

aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias

34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939

33

32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO

ldquoA vida vem em ondas

Como o mar

Num indo e vindo infinitohelliprdquo35

A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente

foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram

o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios

da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-

portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo

ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura

universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e

nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a

esquizofrenia de sua alma

O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos

grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma

visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes

de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-

racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas

fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma

encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no

espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada

ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar

duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava

que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se

35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos

em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria

imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia

grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios

Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e

cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam

da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela

Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a

sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor

34

sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o

olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de

um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o

seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No

reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que

constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia

Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor

das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que

participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na

claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma

a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial

apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se

imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA

ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta

solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser

acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas

pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de

existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas

dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma

mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar

agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)

As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar

aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de

Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a

37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta

nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet

tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido

advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte

de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga

(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre

1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a

questatildeo (Hamlet ato III cena I)

38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)

que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era

destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar

35

travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes

questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente

humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a

vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa

loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz

a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair

numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua

frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico

mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de

transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a

morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano

capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas

ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de

integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de

totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma

ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade

de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida

dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a

seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas

iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives

mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas

dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a

cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute

perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras

velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida

de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar

costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras

por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e

grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme

O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu

amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do

Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para

toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos

36

Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser

salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma

dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo

desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave

liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos

secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a

uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo

desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a

boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia

pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a

mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais

alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se

nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira

as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de

alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora

julga existir no seu misteacuterio

O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e

forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e

sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que

orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente

num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das

contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute

traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas

que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas

figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas

narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um

imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e

39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII

mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a

bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por

alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua

tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar

Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A

histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito

em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que

aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas

aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma

37

refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus

fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a

sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades

da dinacircmica universal

Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar

simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos

narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos

siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um

contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da

efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma

capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde

diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e

exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia

essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel

mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo

do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do

Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)

e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo

social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)

na representatividade literaacuteria do mar

38

CAPIacuteTULO 04

41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA

ldquoGosto de ti apaixonadamente

De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo

De ti que me trouxeste pela matildeo

Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40

Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso

a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade

directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na

poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua

dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees

Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita

capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e

um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz

e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a

dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas

conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute

e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria

serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem

quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto

anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse

em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita

maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte

com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e

quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e

emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos

paradoxos

40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no

livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004

Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo

Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11

39

Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos

toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-

romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido

num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia

com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes

profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas

sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo

acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando

a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A

derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a

conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas

da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da

sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No

entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas

romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a

impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo

definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha

aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento

em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o

passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era

tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto

A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos

acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-

Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs

Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os

Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de

Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de

Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o

egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo

narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica

Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute

neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o

poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem

40

esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma

essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no

iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma

questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos

encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem

sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos

interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas

as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um

exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo

tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo

daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita

conteacutem

41

42 - UM PERCURSO COMPARATIVO

ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os

vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e

outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que

ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute

foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41

ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto

Olhou em roda natildeo achou ningueacutem

Por entre as campas arrastando o manto

Com lentos passos caminhou aleacutem

Abandonado neste chatildeo repousa

Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui

Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa

Sobre este peito que bateu por tirdquo42

A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e

o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-

romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua

linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa

o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se

O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando

proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos

moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na

literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror

Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou

comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas

circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de

comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e

sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos

41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda

Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos

42

ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de

outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou

Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)

Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal

de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma

optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada

pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada

no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus

sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa

suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois

dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)

Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade

todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional

natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute

afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute

tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima

do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo

Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela

e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a

prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua

intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a

dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as

influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente

que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz

directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para

a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o

intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era

partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada

por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das

rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de

branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza

43

ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas

Longas roupagens de neveda cor

Singela croa de virgiacutenias rosas

Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43

ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de

branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila

devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa

nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)

Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de

conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se

para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da

imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a

partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a

presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os

uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem

eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera

absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor

ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria

A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a

intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um

testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista

e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas

caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da

temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao

fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma

retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras

masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo

homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma

mulher

43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12

44

(hellip)

Mulher formosa que adorei na vida

E que na tumba natildeo cessei damar

Por que atraiccediloas desleal mentida

O amor eterno que te ouvi jurar

Amor engano que na campa finda

Que a morte despe da ilusatildeo falaz

Quem dentros vivos se lembrara ainda

ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)

Talvez que rindo dos protestos nossos

Gozes com outro dinfernal prazer

E o olvido cobriraacute meus ossos

Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44

Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o

vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as

bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis

e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma

essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o

podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA

ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de

sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a

eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos

na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto

com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais

de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas

palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o

esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal

seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu

passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre

44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9

45

que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as

matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos

das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam

para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)

Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno

num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista

melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias

possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela

um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica

natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem

fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo

intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas

rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso

consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo

intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas

solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou

com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a

todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas

as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os

sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado

daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)

Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do

Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais

significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO

MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do

quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e

estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que

desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo

da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina

agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das

espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute

presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos

46

ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido

Das sepulturas o gelado poacute

Dois esqueletos um ao outro unido

Foram achados num sepulcro soacuterdquo45

Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de

imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da

intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo

buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma

enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo

recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as

laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas

deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo

sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais

moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas

austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade

dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete

palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam

pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e

59)

Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao

ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram

escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia

literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo

exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde

ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais

tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo

merecida

45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos

47

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas

interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca

Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo

depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves

transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo

sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia

ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas

metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver

com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao

sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas

tambeacutem ao que relaciona a morte

A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua

eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela

mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e

sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo

quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade

que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas

personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a

humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de

enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e

sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas

e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o

que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte

presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais

condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus

contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e

desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse

interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural

equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes

interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute

Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem

uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses

48

elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o

inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela

tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses

elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma

civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor

sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam

sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do

intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea

Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o

menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que

para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro

compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo

que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou

seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua

imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que

essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar

atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a

outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual

proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque

esconde-se ou projecta-se no discurso do outro

Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o

caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo

relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens

marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um

significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um

desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos

de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e

fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave

realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande

maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe

um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo

46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de

Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360

49

obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a

escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada

Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a

infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute

aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo

espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a

verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes

50

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Page 14: AS MÁSCARAS SIMBÓLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA … Jaqueline... · 2019-10-31 · A narrativa ficcional não é o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca, mas, assim como

14

Eacute nesse contexto que Kristeva membro actuante da criacutetica francesa elabora

seu conceito de intertextualidade considerando que todo texto se constroacutei como

ldquomosaico de citaccedilotildeesrdquo Esse entendimento acarreta a consideraccedilatildeo de que a

intertextualidade eacute um fenoacutemeno que se encontra na base do proacuteprio texto

literaacuterio imbricada com a inserccedilatildeo deste num muacuteltiplo conjunto de praacuteticas

sociais relevantes A partir de Kristeva ldquotextordquo passa a ser entendido como o

evento situado na histoacuteria e na sociedade que natildeo apenas reflecte uma

situaccedilatildeo mas eacute essa proacutepria situaccedilatildeo apagando linhas divisoacuterias entre as

disciplinas e constituindo um cruzamento entre diferentes superfiacutecies textuais e

distintas aacutereas do saber cientiacutefico e da esfera artiacutestica ldquoPelo seu modo de

escrever lendo o corpus literaacuterio anterior ou sincroacutenico o autor vive na histoacuteria

e a sociedade se escreve no textordquo (KRISTEVA 197498)

A partir dos postulados deste conceito observamos que a intertextualidade

reflecte a concepccedilatildeo do texto literaacuterio como carregado de outros textos

inclusive do ldquotextordquo da realidaderdquo E eacute essa realidade polifoacutenica de vivecircncia

tumultuosa e inquietante de dissabores intriacutensecos e por vezes

transcendentais de acontecimentos filtrados atraveacutes de sua proacutepria

sensibilidade e sua imaginaccedilatildeo fantaacutestica que Florbela Espanca tem

manifestado para que seja compreendido seus misteacuterios de forma a dar mais

realce atraveacutes das vaacuterias formas de compreensatildeo e interpretaccedilatildeo intertextual e

comparativa de sua obra Neste sentido a teoria intertextual e comparativa

seraacute um guiatildeo a nortear um trabalho na tentativa de conhecermos essa

enigmaacutetica escritora que foi Florbela Espanca E eacute dela o incentivo para um

maior entendimento daquilo que nos deixou ldquoPara mim Para ti Para ningueacutem

Quero atirar para aqui negligentemente sem pretensotildees de estilo sem

anaacutelises filosoacuteficas o que os ouvidos dos outros natildeo recolhem reflexotildees

impressotildees ideias maneiras de ver de sentir ndash todo o meu espiacuterito paradoxal

talvez friacutevolo talvez profundo Compreendi por fim que nada compreendi que

mesmo nada poderia ter compreendido de mimhellipRestam-me os outroshellip

talvez por eles possa chegar agraves infinitas possibilidades do meu ser misterioso

intangiacutevel secretordquo (FLORBELA ESPANCA 199833)14

14 Fragmento retirado do livro ldquoDiaacuterio do Uacuteltimo Anordquo Bertrand Editora

15

A proposta de entendimento intertextual traacutes um reflexo de sua existecircncia

registado em sua ldquoDivina Comeacutediardquo15 pelos seus ldquoVersosrdquo16

ldquoVersos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip

Pedaccedilos de sorrisos branca espuma

Gargalhadas de luz cantos dispersos

Ou peacutetalas que caem uma a umahellip

VersosSei laacute Um verso eacute o teu olhar

Um verso eacute o teu sorriso e os de Dante

Eram o seu amor a soluccedilar

Aos peacutes de sua estremecida amante

Meus versos Sei eu laacute tambeacutem que satildeohellip

Sei laacute Sei laacute Meu pobre coraccedilatildeo

Partidos em mil pedaccedilos satildeo talvezhellip

Versos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip

Meus soluccedilos de dor que andam dispersos

Por este grande amor em que natildeo crecircsrdquo

15 Referecircncia a Obra de Dante Alighieri A Divina Comeacutedia uma viagem ao inferno purgatoacuterio e ao

paraiacuteso Aqui em relaccedilatildeo a vida de Florbela a palavra comeacutedia tem duplo significado o de origem dando

seguimento bom ao desenlace das personagens e em seu sentido coacutemico aos factores da inconstacircncia da

escritora 16 Referecircncia ao poema de Florbela escrito em O livro Drsquoele Poesia Completa2004 208

16

13 - ABORDAGENS SOBRE ldquoAS MAacuteSCARAS DO DESTINOrdquo ldquoOs contos satildeo como ela - siacutembolo de permanecircncia no pensamento da terra fio

de amor que manteacutem a sua magneacutetica forccedila saudade de tudo que podia

significar felicidade e expressatildeo do afectordquo17

Dedicada ao seu irmatildeo Apeles Demoacutestenes da Rocha Espanca ndash ldquoAs

Maacutescaras do Destinordquo eacute uma obra inspirada na tristeza e dor que a perda do

irmatildeo causa em Florbela Sua dedicatoacuteria ldquoeacute como um punho culpado que

Florbela assenta no proacuteprio peitordquo (FLORBELA ESPANCA 199825) assim diz

Agustina Bessa-Luiacutes autora do prefaacutecio escrito em 1979 que orienta-nos sobre

as condiccedilotildees de leitura que envolve esta obra

A dedicatoacuteria escrita por Florbela comprova o amor de irmatildeos Apeles era

ldquoAquele que das mesmas entranhas foi nascido que ao calor do mesmo

amplexo foi gerado Aquele que traz no rosto as linhas do teu rosto nos olhos a

aacutegua clara dos teus olhos o teu Amigo o teu Irmatildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA

199831 e 32) Ela escrevia tais palavras como uma matildee que acabara de

perder a um filho ldquopara que tua mocidade natildeo trema de o ver partir um dia

bom e meigo para que vivas na ilusatildeo bendita de teres um filho forte e belo

para te obrigar a encarar sorrindo as coisas vis e feias deste mundohelliprdquo

(FLORBELA ESPANCA 199831) Na realidade tais clamores professados soacute

a uma matildee que perdera seu filho eacute permitido senti-los

Escrita no final de 1927 reuacutene oito contos denominados ldquoO Aviador ldquoA Mortardquo

ldquoOs Mortos Natildeo Voltamrdquo ldquo O Resto Eacute Perfumerdquo ldquoA Paixatildeo de Manuel Garciardquo

ldquo O Inventorrdquo ldquoAs Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquoO Sobrenaturalrdquo

Como demonstram os tiacutetulos dados aos contos o tema ldquomorterdquo eacute o ponto de

convergecircncia entre os enredos e vem reforccedilar o pendor funesto da obra de

Florbela natildeo apenas pelo desaparecimento do irmatildeo mas que jaacute fazia parte

da proacutepria insatisfaccedilatildeo intimista que a escritora detinha Nesta altura por forccedilas

das circunstacircncias parecia estar desvinculada da vida como uma morta e sua

perpeacutetua busca lhe assegura uma espeacutecie de eternidade

Natildeo participando do enredo assim sendo em 3ordf pessoa mostrava-se uma

observadora a narrar fatos onde a realidade se confunde com o imaginaacuterio

17 Fragmento escrito por Agustina Bessa-Luiacutez retirado do prefaacutecio do livro As Maacutescaras do Destino de

Florbela Espanca 199810

17

fantaacutestico e soacute nos traacutes agrave lucidez da compreensatildeo devido as referecircncias

intertextuais as quais satildeo comuns aos contos pois ldquo o fantaacutestico se caracteiza

por una instrusioacuten brutal del misteacuterio en el marco de la vida real y estaacute ligado

generalmente a los estados moacuterbitos de la conciencia que en los fenoacutemenos

de pesadilla e de deliacuterio proyecta ante siacute imaacutegenes de sus angustias e de sus

terroresrdquo (GEORGES JEAN 1889 68 e 69) Mas a escritora natildeo desvincula-se

de sua obra uma forte tendecircncia de Florbela Marcando presenccedila no conto ldquoO

Resto Eacute Perfumerdquo interage como personagem assim assume o relato como

se procedesse de outro narrador para que pudesse penetraacute-lo e manter suas

caracteriacutesticas inquietantes e paradoxais acrescentando uma forte dose de

existencialismo e a presenccedila do ldquoEurdquo que vem reforccedilar a categoria de seus

relatos miacuteticos Aqui o ldquofantaacutesticordquo se confunde com o ldquomaravilhosordquo isso

devido aos relatos mitoloacutegicos que implica durante a leitura em um

redireccionamento do leitor a outro espaccedilo a outro tempo onde temos a ilusatildeo

de vivermos por um breve momento em outro lugar Florbela nos permite a

viagens imaginaacuterias em que o maravilhoso de seus contos dependeraacute de uma

infinidade de interpretaccedilotildees que natildeo seratildeo necessariamente interpretaccedilotildees

racionais pois as interpretaccedilotildees paralelas e divergentes satildeo sempre possiacuteveis

devido a riqueza do conto em si que no caso de Florbela estatildeo ligados aos

estados moacuterbidos de sua consciecircncia

Sabemos que algum dos elementos imaginaacuterios dos contos de Florbela estaacute

ligada ao realismo de sua histoacuteria verdadeira e isso eacute capaz pela virtudes que

soacute os contos de fadas pode proporcionar apesar de sua vida inconstante e

cheia de maacutegoas soube mascarar seu inconsciente e dar a seu relato um

intercacircmbio gracioso e sentimental com sua vida Por sua vez tais relatos

remetem-se a duas vertentes essenciais nos contos a primeira de propagar as

formas simboacutelicas durante a histoacuteria e a segunda de inserir essas formas

mediante a expansatildeo de sua escrita atraveacutes dos contos Um bom exemplo

disso eacute a clareza de como um conto complementa outro Atentemos para os

detalhes simboacutelicos de ldquoO Inventorrdquo que parece encerrar-se em ldquoO Aviadorrdquo da

mesma forma acontece em ldquoO Sobrenaturalrdquo e ldquoOs Mortos natildeo Voltamrdquo ldquoAs

Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquo A Paixatildeo de Manuel Garciardquo por fim

vemos a profunda reflexatildeo sobre a vida em ldquoO Resto eacute Perfumerdquo culminando

no conto ldquoA Mortardquo que tem em seu final a imersatildeo nas aacuteguas elemento

18

comum em todos os contos que parece como siacutembolo de redenccedilatildeo Temos

aqui um quadro para um estudo comparativo minucioso entre os proacuteprios

contos

Como afirma Agustina Bessa-Luiacutes ldquo para ler a prosa eacute preciso compreender a

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199816) Neste contexto natildeo ousamos falar

do quadro complexo que a palavra ldquomulherrdquo como um ser social objectiva mas

sim na simplicidade do comportamento de vaacuterias mulheres numa soacute imagem

constante nos contos que sente no seu intimo a dor da perca A primeira

referecircncia aqui eacute da mulher-irmatilde que vecirc no uacutenico irmatildeo morto a decadecircncia de

si mesma ldquo seraacute em breve uma sombra na tua sombrardquo (FLORBELA

ESPANCA 199832) Da mulher-matildee e o vazio de sua dor silenciosa ldquo A pobre

matildee abafou um soluccedilo voltou-se e olhou o mortordquo (FLORBELA ESPANCA

1998112) E por fim da mulher-religiosa que busca na cristandade respostas

para seus questionamentos e refuacutegio para seu tormento ldquomais fraacutegil mais

luminosa continuava a rezar as suas oraccedilotildeeshelliporaccedilotildees de amor sacriacutelegas

blasfemas oraccedilotildees de pecadohellipDe pecado Natildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA

1998154) Assim concebo a mulher Bela a compreensatildeo de sua escrita estaacute

nos olhos de quem as vecirc e na sensibilidade de a conhecer Desta feita ldquoa fase

dos equiacutevocos com que a gesta amorosa que a serve com a permanente

invenccedilatildeo de objectos meritoacuterios eacute substituiacuteda por uma feacute na alma feacute que se

acompanha do terriacutevel sentimento de estar morta de natildeo ser mais do que a

aparecircncia dum espaccedilo vividordquo (FLORBELA ESPANCA 199823) diz Agustina

Bessa-Luiacutes

Nesta obra duas propriedades do texto satildeo facilmente perceptiacuteveis a

intertextualidade e a influecircncia exercida em cada conto Essa uacuteltima

envolvendo as fortes caracteriacutesticas da escritora Florbela Espanca Contudo o

texto se constroacutei agrave medida que retoma fatos jaacute conhecidos como eacute o caso das

vaacuterias citaccedilotildees de autores e personagens que ilustram o livro Nesse sentido

quanto mais amplo for o repertoacuterio do leitor o seu acervo de conhecimentos

maior seraacute a sua competecircncia para perceber como os textos dialogam uns

com os outros por meio de referecircncias alusotildees e citaccedilotildees Eacute assim que

Florbela queria que a entendecircssemos atraveacutes de um diaacutelogo intriacutenseco para

descobrirmos suas maacutescaras

19

CAPIacuteTULO 02 21 - ldquoSONHO DE IacuteCAROrdquo

ldquoVoar voar subir subir

Ir por onde for descer ateacute o ceacuteu cair

Ou mudar de cor anjos de gaacutes

Asas de ilusatildeo e um sonho audaz

Feito um balatildeo

No ar no ar eu sou assim

Brilho do farol aleacutem do mais

Amargo fim simplesmente sol

Fugir meu bem eacute ser felizhellip

Ir ateacute que um dia chegue enfim

Em que o sol derreta a cera ateacute o fimrdquo18

A mitologia eacute uma das concepccedilotildees mais geniais que a humanidade produziu

Os gregos instauraram uma categoria intermediaacuteria entre os homens e os

deuses o semideus criando assim os heroacuteis mitoloacutegicos Isso veio a dar

margem a novas investigaccedilotildees sobre os fenoacutemenos da realidade natural

levando ao questionamento da origem dos seres a qual obtiveram respostas

sem sentido concreto Com isso incorporaram a concepccedilatildeo de que a vida e

suas manifestaccedilotildees satildeo obras das forccedilas do espiacuterito que habita em cada um

de noacutes sendo tambeacutem responsaacutevel pela nossa maneira de ser e de agir Isso eacute

sem duacutevida um meio de penetrar atraveacutes da imaginaccedilatildeo no misteacuterio da

existecircncia humana Desta forma o mito consiste nos acontecimentos que se

repetem ao longo da histoacuteria natildeo tendo fim O homem reconhecendo em cada

acto quotidiano uma participaccedilatildeo nos grandes ciclos da vida se sente

participar da grande eternidade miacutetica Partindo de suas origens o homem

consegue viver integralmente e uma vez dentro da mentalidade miacutetica a

proacutepria morte pode ter sentido

18 Fragmento da canccedilatildeo ldquosonho de Iacutecarordquo escrito por Pisca e Claacuteudio Rebelo interpretaccedilatildeo do cantor

brasileiro Byafra

20

Com o intuito de imortalizar o momento de uma trageacutedia Florbela lanccedila matildeo de

aspectos mitoloacutegicos dentro de seus contos que muito nos lembra a triste

histoacuteria de Deacutedalo e Iacutecaro 19 mostrando que o espiacuterito humano de vencer

barreiras e limites nos impulsiona a superar nossas proacuteprias limitaccedilotildees

Alcanccedilar o espaccedilo e as estrelas lanccedilar-se ao infinito experimentar da

sensaccedilatildeo de liberdade interior e o desvendar do misterioso infinito eacute o que

norteia o enredo dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquo O Inventorrdquo

Praticamente todas as culturas destacam o ceacuteu como um lugar especial Esse

local era normalmente designado como a morada dos deuses Muitos povos

consideravam que as constelaccedilotildees eram representaccedilotildees dos seus mitos e

lendas Dessa forma o ceacuteu era um lugar divino e os homens somente o

alcanccedilavam quando eram convidados ou homenageados pelos deuses Mas o

atrevimento de uns culminou na desgraccedila de outros Apenas aqueles com

sabedoria e dotado de iacutentima consciecircncia disciplinar sobre sua condiccedilatildeo

humana conseguiam graccedilas aos olhos dos deuses O conflito interior era um

grande empecilho para que fatos tivessem o desenrolar bem sucedidos

Quando isso natildeo acontecia o homem reconhecia sua condiccedilatildeo de inferioridade

em relaccedilatildeo aos deuses e eram designados ldquofilhos dos homensrdquo

O aparecimento da referecircncia mitoloacutegica pressupotildee uma forte ligaccedilatildeo aos elos

do mito de fundaccedilatildeo que sustenta a harmonia familiar juntamente com

preceitos de moral tendo por priori a identidade pessoal na figura paterna

como eram conhecidos os grandes heroacuteis mitoloacutegicos por serem semideuses

Nesta constante nos eacute dado a conhecer a condiccedilatildeo humana que tambeacutem

aparece de forma intertextualizada como referecircncia ao quadro do flamengo

19 Iacutecaro era filho de Deacutedalo o construtor do labirinto que o rei Minos aprisionava o Minotauro um ser

com corpo de homem e cabeccedila de touro A lenda grega conta que Deacutedalo ensinou Teseu que seria

devorado juntamente com outros jovens pelo monstro como sair do labirinto Deacutedalo sugeriu que ele

deveria utilizar um novelo que deveria ser desenrolado a medida em que fosse penetrando no labirinto

Dessa forma apoacutes ter matado o monstro ele conseguiu fugir do labirinto O rei Minos ficou furioso e

prendeu Deacutedalo e o seu filho Iacutecaro no labirinto Como o rei tinha deixado guardas vigiando as saiacutedas

Deacutedalo construiu asas com penas dos paacutessaros colando-as com cera Antes de levantar voo o pai

recomendou a Iacutecaro que quando ambos estivessem voando natildeo deveriam voar nem muito alto (perto do

Sol cujo calor derreteria a cera) e nem muito baixo (perto do mar pois a unidade tornaria as asas

pesadas) Entretanto a sensaccedilatildeo de voar foi tatildeo estonteante para Iacutecaro que ele esqueceu a recomendaccedilatildeo e

elevou-se tanto nos ares a ponto da previsatildeo de Deacutedalo ocorrer A cera derreteu e Iacutecaro perdeu as asas

precipitando-se no mar e morrendo afogado

21

Brueghel (a Queda de Iacutecaro)20 que Florbela tatildeo bem ilustra com uma descriccedilatildeo

que mais parece uma tela ldquo Os filhos dos homens caacute em baixo deixam cair

nos campos a enxada que faz nascer o patildeo e florir as rosas os pescadores

largam os remos audaciosos que rasgam os mares e os rios e os filhos dos

homens mais duramente castigados os que habitam o formigueiro das cidades

param nas suas insensatas correrias de formigas e todos voltam a face para o

ceacuteurdquo (FLORBELA ESPANCA 199838) Aqui a intertextualidade sugerida

numa linha ecfraacutestica vai de encontro a misteriosa temaacutetica de Florbela

significando isto que o espiacuterito de aventura eacute frequentemente motivo de

incompreensatildeo e de grande solidatildeo

Do mesmo modo que impotildee a condiccedilatildeo de mortal ao homem Florbela o

enaltece dando-lhe honrarias e elevando-o a condiccedilatildeo de um deus ldquo Nos olhos

leva visotildees que os filhos dos homens natildeo conhecem Eacute um homem Deixou laacute

em baixo todo o fardo pesado e vil com que o carregam ao nascer deixou laacute

em baixo todas as algemas todos os feacuterreos grilhotildees que o prendiam toda a

suprema maldiccedilatildeo de ter nascido homem deixou laacute em baixo a sua sacola de

pedinte o seu bordatildeo de Judeu Errante e livre indoacutemito sereno na sua

miacutesera couraccedila de pano azul estendeu em cruz os braccedilos que transformou em

asasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199839) Ao atingir tal supremacia o homem

liberta-se de sua vida anterior e ganha autonomia na forma da liberdade

intriacutenseca conseguindo a superaccedilatildeo de sua forma decadente e de seus

conflitos interiores atraveacutes da liberdade celestial alcanccedilada Deacutedalo foi

conhecido como o arquitecto e artista da liberdade mesmo tendo construiacutedo o

labirinto que eacute a representaccedilatildeo do aprisionamento Aqui Florbela utiliza desse

argumento como se seus escritos fossem labiriacutenticos e teriacuteamos de encontrar

as palavras certas para desvendarmos seus caminhos encontrando neles

assim a liberdade Essa mesma liberdade transformada aqui no voo mais alto

que levaria a traacutegica morte

Apesar de mostrada diferentemente temos aqui mais uma vez a dualidade

que percorre a obra de Florbela o aprisionamento e a liberdade a vida e a

morte antiacuteteses que perfilam seu anseio humano ldquo Um dia julgou ter achado

20 Quadro de Broeghel demonstrando a queda de Iacutecaro no mar enquanto os camponeses prosseguem a sua

labuta diaacuteria

22

Oh aquele dia A embriaguez do homem que se igualou a Deus O coraccedilatildeo a

bater a bater a sentir-se grande demais para um peito tatildeo pequeno para um

tatildeo mesquinho destino A humidade das laacutegrimas a embaciar o olhar gigante

que se esquecera um momento de ter nascido pigmeu O artista o poeta o

inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de movimento e de

vida todos os que desbravavam caminhos os que talham abrem por entre os

matagais selvagens e as belas estradas largas do pensamento e das ideias As

palavras satildeo o muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes

ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)

Ao atingir o voo pleno por vezes nos afastamos da realidade natural e nos

lanccedilamos ao desconhecido sem saber o que nos espera Com isso a queda eacute

inevitaacutevel Neste seguimento vemos a intertextualidade presente sob o estigma

dos cuidados de Zeus filho de Cromo e pai dos deuses que concedeu aos

heroacuteis uma morada afastada dos homens onde os semideuses pudessem se

estabelecer nos confins da terra Eacute laacute que habitam com o coraccedilatildeo livre de

cuidados nas Ilhas dos Bem-Aventurados nas praias dos turbilhotildees profundos

do Oceano satildeo eles os heroacuteis afortunados a quem Florbela tambeacutem concede

a morada preparada como tuacutemulo perfeito para o descanso eterno A

representaccedilatildeo das deusas das aacuteguas na presenccedila das ninfas efidriacuteades21 que

simbolizam a graccedila criativa e fecundadora da natureza fazem aparecer a

presenccedila feminina que surge com o intuito de exaltar a forccedila interior que so a

mulher tem para defrontar situaccedilotildees desastrosas e encontrar soluccedilatildeo nos mais

tenebrosos conflitos bem como de dar um toque de suavidade ternura beleza

e leveza que soacute a performance feminina consegue impor ldquo hellipAs filhas dos

deuses ondinas sereias nereidas princesas encantadas acodem todas

pressurosashellipEm volta das asas mortas satildeo como flores desfolhadas em

redor dum esquife negro E olhamhelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 199842) A

sabedoria feminina evidencia-se ao se manifestar a ldquoque tinha nos olhos uma

nostaacutelgica tristeza humanardquo (FLORBELA ESPANCA 199846) como uma matildee

protectora que acalenta o filho em seu sono profundo e compreende com

tristeza a dor dos mortais ou quem sabe sua proacutepria dor na condiccedilatildeo de

imortal pois somente aos deuses era permitido o poder de arrebatar o espiacuterito

21 Referecircncia as ninfas das aacuteguas da mitologia grega

23

a um homem ldquo E aquele que tinha sido um filho dos homens ficou a dormir na

eternidade como se fora um filho dos deusesrdquo (FLORBELA ESPANCA

199846)

Como podemos perceber Florbela em sua construccedilatildeo literaacuteria delineou nas

entrelinhas dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquoO Inventorrdquo aspectos simboacutelicos

determinantes do aprisionamento e da libertaccedilatildeo humana natildeo somente no

sentido denotativo mas tambeacutem conotativo na multiplicidade de sentidos que

tais palavras propotildeem Apesar da evidecircncia colocada pela escritora ainda nos

remete a reflexatildeo pois o aprisionamento pode ser um meio de libertaccedilatildeo e a

libertaccedilatildeo um aprisionamento ldquohellipOlhou o ceacuteu profundohellipe achou Ser aviador

eacutehellipabraccedilar no mesmo abraccedilo o ceacuteu e o mar Na linguagem dos siacutembolos a

acircncora definindo a esperanccedila nunca poderaacute valer as asas que satildeo a

libertaccedilatildeo A acircncora agarra-se ao fundo e fica as asas abrem-se no espaccedilo e

penetram o ceacuteuhellipSeria aviador Quando pela primeira vez voou natildeo se

esqueceu de sentar na carlinga a seu lado ao lado do seu coraccedilatildeo aquela

que dali em diante seria a companheira de todos os dias a companheira

indefectiacutevel de todos os aviadores a Morterdquo (FLORBELA ESPANCA 1998

129)

A produccedilatildeo intertextual desses dois contos traz-nos um imaginaacuterio voltado aos

princiacutepios fundadores de conceitos e referecircncia humana Florbela baseia-se na

representaccedilatildeo da infacircncia como elemento fundador da personalidade e do

caraacutecter ou seja a figura do pai que nunca a reconheceu em vida e por outro

lado na figura de Deacutedalo e Iacutecaro tendo o pai a dualidade em sua referecircncia

paterna Eacute assim que de ldquotentaccedilatildeo em tentaccedilatildeo de fraqueza em fraqueza os

compromissos de consciecircncia levam um homem honrado agrave praacutetica de todos os

crimeshelliprdquo22

22 Fragmento do conto O Inventor de Florbela Espanca As Maacutescaras do Destino1998122

24

22 - A MULTICIPLIDADE DO HEROacuteI

ldquo A vida parada e recolhida cria heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tarderdquo23

Ao encontrarmos facetas mitoloacutegicas entre as leituras de Florbela natildeo se pode

descartar a visatildeo do heroacutei que a autora engendrou na figura de seu irmatildeo

Apeles Tiacutetulo esse dado a homens excepcionais como Ulisses que eram

venerados por seu povo da mesma forma Florbela nutria uma verdadeira

veneraccedilatildeo que a levou a personificar o Aviador a um heroacutei merecedor de

honrarias e apesar da miacutesera condiccedilatildeo de mortal foi-lhe atribuiacutedo qualidades

fiacutesicas e morais dignas de um semideus ldquo A vida parada e recolhida cria

heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tardehellip o pincel de geacutenio daacute os uacuteltimos

retoques ao cenaacuterio de epopeiahellip laacute em cima a formidaacutevel apoteose desdobra-

se no meio do pasmo das coisas Eacute um homem que tem asas E as asas

pairam descem rodopiam ascendem de novo giram latejam batem ao sol

mais aacutegeis e mais robustas mais leves e mais possantes que as das aacuteguias Eacute

um homem A face eneacutergica vincada a cinzel emerge extraordinaacuteria da vida

intensa na indecisatildeo dos contornos que lhe fazem vagos e paacutelidos um vago

pano de fundo a face e as matildeoshellipOs muacutesculos da face adivinham na forccedila

brutal das maxilas cerradas Nos olhos leva visotildees que os filhos dos homens

natildeo conhecem Os olhos dele natildeo se vecircem olham para dentro e para fora satildeo

pedras como as das estaacutetuas e vecircem mais e mais para aleacutem do que as

miacuteseras pupilas humanas Satildeo astrosrdquo (FLORBELA ESPANCA 199838 e 39)

Esta mesma condiccedilatildeo eacute dada ao Inventor autor da imaginaccedilatildeo de Florbela

ldquoRealizara os seus sonhos todos os seus sonhos Que havia mais agora Jaacute

os homens podiam sulcar os ares sem medo aos vendavais agraves coacuteleras brutais

da Natureza jaacute o ceacuteu se podia coalhar de asas como o mar de velas Todo o

homem poderia ter sem perigo e sem riscos a cobiccedilada sensaccedilatildeo de

comandar nos elementos como um semideusrdquo (FLORBELA ESPANCA

1998133)

Sabemos que o heroacutei constitui o assunto da poesia eacutepica ele tem a sua

maneira proacutepria de agir pela sua coragem e bravura e prossegue objectivos

23 Fragmento do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca198837 e 38

25

bem determinados que ao longo de sua trajectoacuteria lhe satildeo atribuiacutedos cada qual

com sua importacircncia e valor Eacute dado a ele tambeacutem o poder de decisatildeo ora

sobre seus actos ora sobre si mesmo Isso como forma de valorizar sua

sabedoria e supremacia diante daqueles a quem defendia Assim se apresenta

o heroacutei dos contos de Florbela homem-deus detentor de toda visatildeo forte

dominador senhor supremo de seu destino a quem eacute concedido um lugar

eterno junto aos astros

A realidade fictiacutecia da mitologia eacute comparada aqui a realidade autecircntica

Florbela interessa-se pelo seu heroacutei fictiacutecio como se fosse ou tratasse de uma

pessoa real com isso podemos dizer que a escrita ficcional de Florbela eacute

mimese porque a realidade de sua vida humana eacute o seu material de escrita ela

consegue transformar a realidade objectiva na realidade subjectiva vivencial

razatildeo por que nos deixamos influenciar pela sua trajectoacuteria de vida em seus

escritos Isso justifica o fato da ldquovaliosa bravurardquo ndash por uma valiosa pintura - de

seu heroacutei ser retratado em uma tela por um titatilde24 personifica assim a grande

luta travada com as forccedilas da natureza ldquoEacute um Rembrandt pintado por um titatilderdquo

(FLORBELA ESPANCA 199839) A sua proacutepria natureza humana A propoacutesito

disso parece mais reportar ao paradoxo entre o bem e o mal que lutam

constantemente pelo domiacutenio da razatildeo interior talvez alvo de Florbela

Eacute interessante observar a relaccedilatildeo que existe entre o ldquohomem com asasrdquo com

as Harpias25 que na multi-significaccedilatildeo de seu discurso nos projecta a uma

realizaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo na figura do heroacutei alado em uma transposiccedilatildeo

imaginaacuteria com uma pluralidade de sentidos que poderia ocultar um sentido

uacutenico o seu proacuteprio desejo ou o desejo de arrebatar a alma de seu morto

Tambeacutem vemos a intertextualidade corrente na pessoa de Ulisses26 o heroacutei

grego navegante Robson Crusoeacute27 Piratas dos Sete Mares28 aos capitatildees e

24 Referecircncia a segunda geraccedilatildeo dos deus mitoloacutegicos representantes das forccedilas da natureza e sem uma

personalidade bem vincadaos quais Hesiacuteodo enumerou em doze seis machos e seis fecircmeas Oceano Ceacuteu

Crio Hiperiacuteon Jaacutepeto Cronos Teia Reja Teacutemis Mnemoacutesine Febe e Teacutetis 25 As Harpias filhas de Electra (ela proacutepria filha do Titatilde Oceano) e de Taumas (filho de Ponto e de Geia)

pertencem agrave geraccedilatildeo dos preacute-oliacutempicos Elas satildeo irmatildes de iacuteris a mensageira dos deuses Representadas

quer como mulheres aladas com um aspecto fameacutelico quer como paacutessaros com cabeccedila de mulher as

Harpias residem nas ilhas Estroacutefades do mar Egeu ou ainda agraves portas do Taacutertaro Impetuosas e brutais

como a tempestade as Harpias satildeo - este eacute o sentido do seu nome - raptoras com garras fortes 26 Odisseu (na Greacutecia) ou Ulisses (em Roma) eacute um personagem da Iliacuteada e da Odisseacuteia de Homero Apoacutes

a derrota dos troianos ele iniciou uma viagem de dez anos de volta para Iacutetaca onde a sua mulher o espera

com uma fidelidade obstinada apesar da demora Essa viagem mereceu a criaccedilatildeo por Homero do poema

26

navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a

coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a

solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o

enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio

multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos

diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio

Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os

naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de

navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS

Maacutescaras do Destino 1998 p 125)

Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada

com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a

renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que

convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos

escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a

partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental

aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A

viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas

suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte

recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os

heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas

ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o

navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira

de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que

nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era

eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que

deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-

1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado

a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe

herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico

sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O

romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como

tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar

que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os

Lusiacuteadas de Camotildees

27

no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo

da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)

Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida

funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo

conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente

nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de

alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva

Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer

tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos

heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os

portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens

tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que

de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os

navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por

deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da

Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do

texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute

simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no

poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES

1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou

passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da

Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas

natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer

vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de

ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um

heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com

o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas

forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um

aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem

mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva

30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos

Lisboa

Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal

28

presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de

Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura

greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito

especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela

escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a

morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem

para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de

transformaccedilatildeo fantaacutestica

Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que

na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena

confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir

uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute

infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu

desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma

personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo

inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade

aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios

filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa

escritora o seu carma

Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei

que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora

quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem

ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles

desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma

as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista

o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de

movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos

esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do

pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam

As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes

ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)

29

CAPIacuteTULO 03

31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS

ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de

doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32

No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute

intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em

todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do

proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade

de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma

comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro

cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser

estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute

antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de

alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas

oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir

as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava

perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o

fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo

para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que

muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da

escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e

complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e

pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma

formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela

graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa

assume

32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122

30

De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete

agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem

Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites

nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute

podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido

conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao

inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um

ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma

palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a

intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda

e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas

pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma

onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo

(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um

recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o

renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio

inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a

matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada

ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe

mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata

cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de

voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e

122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso

indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam

tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele

o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as

suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um

emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados

que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e

intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica

33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ

31

Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado

transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas

Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e

que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a

imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de

dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada

dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais

significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa

escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e

sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-

as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar

inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos

era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade

existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)

A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio

Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo

tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens

que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de

tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta

ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a

proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo

Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante

notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe

de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e

medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca

mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho

branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a

socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua

presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo

(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo

deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo

queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a

intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia

humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para

32

sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo

pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no

mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais

apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva

enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente

foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)

A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja

como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo

atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute

reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em

busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito

junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos

satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad

que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que

han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas

mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como

meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do

inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os

aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias

34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939

33

32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO

ldquoA vida vem em ondas

Como o mar

Num indo e vindo infinitohelliprdquo35

A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente

foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram

o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios

da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-

portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo

ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura

universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e

nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a

esquizofrenia de sua alma

O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos

grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma

visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes

de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-

racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas

fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma

encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no

espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada

ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar

duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava

que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se

35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos

em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria

imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia

grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios

Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e

cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam

da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela

Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a

sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor

34

sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o

olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de

um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o

seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No

reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que

constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia

Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor

das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que

participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na

claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma

a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial

apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se

imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA

ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta

solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser

acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas

pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de

existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas

dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma

mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar

agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)

As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar

aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de

Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a

37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta

nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet

tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido

advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte

de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga

(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre

1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a

questatildeo (Hamlet ato III cena I)

38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)

que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era

destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar

35

travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes

questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente

humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a

vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa

loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz

a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair

numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua

frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico

mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de

transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a

morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano

capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas

ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de

integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de

totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma

ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade

de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida

dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a

seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas

iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives

mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas

dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a

cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute

perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras

velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida

de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar

costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras

por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e

grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme

O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu

amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do

Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para

toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos

36

Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser

salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma

dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo

desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave

liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos

secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a

uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo

desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a

boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia

pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a

mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais

alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se

nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira

as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de

alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora

julga existir no seu misteacuterio

O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e

forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e

sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que

orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente

num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das

contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute

traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas

que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas

figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas

narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um

imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e

39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII

mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a

bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por

alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua

tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar

Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A

histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito

em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que

aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas

aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma

37

refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus

fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a

sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades

da dinacircmica universal

Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar

simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos

narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos

siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um

contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da

efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma

capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde

diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e

exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia

essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel

mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo

do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do

Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)

e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo

social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)

na representatividade literaacuteria do mar

38

CAPIacuteTULO 04

41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA

ldquoGosto de ti apaixonadamente

De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo

De ti que me trouxeste pela matildeo

Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40

Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso

a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade

directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na

poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua

dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees

Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita

capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e

um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz

e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a

dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas

conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute

e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria

serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem

quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto

anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse

em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita

maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte

com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e

quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e

emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos

paradoxos

40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no

livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004

Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo

Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11

39

Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos

toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-

romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido

num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia

com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes

profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas

sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo

acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando

a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A

derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a

conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas

da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da

sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No

entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas

romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a

impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo

definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha

aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento

em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o

passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era

tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto

A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos

acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-

Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs

Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os

Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de

Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de

Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o

egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo

narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica

Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute

neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o

poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem

40

esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma

essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no

iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma

questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos

encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem

sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos

interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas

as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um

exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo

tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo

daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita

conteacutem

41

42 - UM PERCURSO COMPARATIVO

ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os

vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e

outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que

ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute

foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41

ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto

Olhou em roda natildeo achou ningueacutem

Por entre as campas arrastando o manto

Com lentos passos caminhou aleacutem

Abandonado neste chatildeo repousa

Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui

Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa

Sobre este peito que bateu por tirdquo42

A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e

o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-

romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua

linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa

o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se

O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando

proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos

moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na

literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror

Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou

comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas

circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de

comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e

sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos

41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda

Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos

42

ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de

outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou

Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)

Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal

de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma

optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada

pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada

no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus

sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa

suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois

dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)

Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade

todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional

natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute

afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute

tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima

do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo

Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela

e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a

prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua

intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a

dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as

influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente

que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz

directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para

a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o

intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era

partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada

por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das

rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de

branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza

43

ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas

Longas roupagens de neveda cor

Singela croa de virgiacutenias rosas

Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43

ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de

branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila

devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa

nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)

Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de

conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se

para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da

imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a

partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a

presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os

uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem

eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera

absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor

ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria

A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a

intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um

testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista

e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas

caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da

temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao

fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma

retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras

masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo

homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma

mulher

43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12

44

(hellip)

Mulher formosa que adorei na vida

E que na tumba natildeo cessei damar

Por que atraiccediloas desleal mentida

O amor eterno que te ouvi jurar

Amor engano que na campa finda

Que a morte despe da ilusatildeo falaz

Quem dentros vivos se lembrara ainda

ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)

Talvez que rindo dos protestos nossos

Gozes com outro dinfernal prazer

E o olvido cobriraacute meus ossos

Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44

Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o

vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as

bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis

e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma

essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o

podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA

ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de

sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a

eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos

na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto

com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais

de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas

palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o

esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal

seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu

passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre

44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9

45

que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as

matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos

das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam

para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)

Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno

num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista

melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias

possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela

um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica

natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem

fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo

intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas

rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso

consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo

intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas

solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou

com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a

todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas

as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os

sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado

daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)

Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do

Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais

significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO

MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do

quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e

estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que

desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo

da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina

agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das

espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute

presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos

46

ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido

Das sepulturas o gelado poacute

Dois esqueletos um ao outro unido

Foram achados num sepulcro soacuterdquo45

Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de

imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da

intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo

buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma

enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo

recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as

laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas

deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo

sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais

moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas

austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade

dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete

palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam

pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e

59)

Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao

ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram

escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia

literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo

exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde

ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais

tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo

merecida

45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos

47

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas

interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca

Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo

depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves

transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo

sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia

ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas

metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver

com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao

sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas

tambeacutem ao que relaciona a morte

A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua

eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela

mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e

sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo

quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade

que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas

personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a

humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de

enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e

sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas

e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o

que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte

presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais

condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus

contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e

desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse

interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural

equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes

interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute

Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem

uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses

48

elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o

inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela

tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses

elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma

civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor

sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam

sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do

intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea

Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o

menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que

para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro

compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo

que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou

seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua

imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que

essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar

atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a

outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual

proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque

esconde-se ou projecta-se no discurso do outro

Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o

caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo

relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens

marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um

significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um

desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos

de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e

fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave

realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande

maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe

um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo

46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de

Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360

49

obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a

escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada

Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a

infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute

aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo

espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a

verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes

50

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Page 15: AS MÁSCARAS SIMBÓLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA … Jaqueline... · 2019-10-31 · A narrativa ficcional não é o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca, mas, assim como

15

A proposta de entendimento intertextual traacutes um reflexo de sua existecircncia

registado em sua ldquoDivina Comeacutediardquo15 pelos seus ldquoVersosrdquo16

ldquoVersos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip

Pedaccedilos de sorrisos branca espuma

Gargalhadas de luz cantos dispersos

Ou peacutetalas que caem uma a umahellip

VersosSei laacute Um verso eacute o teu olhar

Um verso eacute o teu sorriso e os de Dante

Eram o seu amor a soluccedilar

Aos peacutes de sua estremecida amante

Meus versos Sei eu laacute tambeacutem que satildeohellip

Sei laacute Sei laacute Meu pobre coraccedilatildeo

Partidos em mil pedaccedilos satildeo talvezhellip

Versos Versos Sei laacute o que satildeo versoshellip

Meus soluccedilos de dor que andam dispersos

Por este grande amor em que natildeo crecircsrdquo

15 Referecircncia a Obra de Dante Alighieri A Divina Comeacutedia uma viagem ao inferno purgatoacuterio e ao

paraiacuteso Aqui em relaccedilatildeo a vida de Florbela a palavra comeacutedia tem duplo significado o de origem dando

seguimento bom ao desenlace das personagens e em seu sentido coacutemico aos factores da inconstacircncia da

escritora 16 Referecircncia ao poema de Florbela escrito em O livro Drsquoele Poesia Completa2004 208

16

13 - ABORDAGENS SOBRE ldquoAS MAacuteSCARAS DO DESTINOrdquo ldquoOs contos satildeo como ela - siacutembolo de permanecircncia no pensamento da terra fio

de amor que manteacutem a sua magneacutetica forccedila saudade de tudo que podia

significar felicidade e expressatildeo do afectordquo17

Dedicada ao seu irmatildeo Apeles Demoacutestenes da Rocha Espanca ndash ldquoAs

Maacutescaras do Destinordquo eacute uma obra inspirada na tristeza e dor que a perda do

irmatildeo causa em Florbela Sua dedicatoacuteria ldquoeacute como um punho culpado que

Florbela assenta no proacuteprio peitordquo (FLORBELA ESPANCA 199825) assim diz

Agustina Bessa-Luiacutes autora do prefaacutecio escrito em 1979 que orienta-nos sobre

as condiccedilotildees de leitura que envolve esta obra

A dedicatoacuteria escrita por Florbela comprova o amor de irmatildeos Apeles era

ldquoAquele que das mesmas entranhas foi nascido que ao calor do mesmo

amplexo foi gerado Aquele que traz no rosto as linhas do teu rosto nos olhos a

aacutegua clara dos teus olhos o teu Amigo o teu Irmatildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA

199831 e 32) Ela escrevia tais palavras como uma matildee que acabara de

perder a um filho ldquopara que tua mocidade natildeo trema de o ver partir um dia

bom e meigo para que vivas na ilusatildeo bendita de teres um filho forte e belo

para te obrigar a encarar sorrindo as coisas vis e feias deste mundohelliprdquo

(FLORBELA ESPANCA 199831) Na realidade tais clamores professados soacute

a uma matildee que perdera seu filho eacute permitido senti-los

Escrita no final de 1927 reuacutene oito contos denominados ldquoO Aviador ldquoA Mortardquo

ldquoOs Mortos Natildeo Voltamrdquo ldquo O Resto Eacute Perfumerdquo ldquoA Paixatildeo de Manuel Garciardquo

ldquo O Inventorrdquo ldquoAs Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquoO Sobrenaturalrdquo

Como demonstram os tiacutetulos dados aos contos o tema ldquomorterdquo eacute o ponto de

convergecircncia entre os enredos e vem reforccedilar o pendor funesto da obra de

Florbela natildeo apenas pelo desaparecimento do irmatildeo mas que jaacute fazia parte

da proacutepria insatisfaccedilatildeo intimista que a escritora detinha Nesta altura por forccedilas

das circunstacircncias parecia estar desvinculada da vida como uma morta e sua

perpeacutetua busca lhe assegura uma espeacutecie de eternidade

Natildeo participando do enredo assim sendo em 3ordf pessoa mostrava-se uma

observadora a narrar fatos onde a realidade se confunde com o imaginaacuterio

17 Fragmento escrito por Agustina Bessa-Luiacutez retirado do prefaacutecio do livro As Maacutescaras do Destino de

Florbela Espanca 199810

17

fantaacutestico e soacute nos traacutes agrave lucidez da compreensatildeo devido as referecircncias

intertextuais as quais satildeo comuns aos contos pois ldquo o fantaacutestico se caracteiza

por una instrusioacuten brutal del misteacuterio en el marco de la vida real y estaacute ligado

generalmente a los estados moacuterbitos de la conciencia que en los fenoacutemenos

de pesadilla e de deliacuterio proyecta ante siacute imaacutegenes de sus angustias e de sus

terroresrdquo (GEORGES JEAN 1889 68 e 69) Mas a escritora natildeo desvincula-se

de sua obra uma forte tendecircncia de Florbela Marcando presenccedila no conto ldquoO

Resto Eacute Perfumerdquo interage como personagem assim assume o relato como

se procedesse de outro narrador para que pudesse penetraacute-lo e manter suas

caracteriacutesticas inquietantes e paradoxais acrescentando uma forte dose de

existencialismo e a presenccedila do ldquoEurdquo que vem reforccedilar a categoria de seus

relatos miacuteticos Aqui o ldquofantaacutesticordquo se confunde com o ldquomaravilhosordquo isso

devido aos relatos mitoloacutegicos que implica durante a leitura em um

redireccionamento do leitor a outro espaccedilo a outro tempo onde temos a ilusatildeo

de vivermos por um breve momento em outro lugar Florbela nos permite a

viagens imaginaacuterias em que o maravilhoso de seus contos dependeraacute de uma

infinidade de interpretaccedilotildees que natildeo seratildeo necessariamente interpretaccedilotildees

racionais pois as interpretaccedilotildees paralelas e divergentes satildeo sempre possiacuteveis

devido a riqueza do conto em si que no caso de Florbela estatildeo ligados aos

estados moacuterbidos de sua consciecircncia

Sabemos que algum dos elementos imaginaacuterios dos contos de Florbela estaacute

ligada ao realismo de sua histoacuteria verdadeira e isso eacute capaz pela virtudes que

soacute os contos de fadas pode proporcionar apesar de sua vida inconstante e

cheia de maacutegoas soube mascarar seu inconsciente e dar a seu relato um

intercacircmbio gracioso e sentimental com sua vida Por sua vez tais relatos

remetem-se a duas vertentes essenciais nos contos a primeira de propagar as

formas simboacutelicas durante a histoacuteria e a segunda de inserir essas formas

mediante a expansatildeo de sua escrita atraveacutes dos contos Um bom exemplo

disso eacute a clareza de como um conto complementa outro Atentemos para os

detalhes simboacutelicos de ldquoO Inventorrdquo que parece encerrar-se em ldquoO Aviadorrdquo da

mesma forma acontece em ldquoO Sobrenaturalrdquo e ldquoOs Mortos natildeo Voltamrdquo ldquoAs

Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquo A Paixatildeo de Manuel Garciardquo por fim

vemos a profunda reflexatildeo sobre a vida em ldquoO Resto eacute Perfumerdquo culminando

no conto ldquoA Mortardquo que tem em seu final a imersatildeo nas aacuteguas elemento

18

comum em todos os contos que parece como siacutembolo de redenccedilatildeo Temos

aqui um quadro para um estudo comparativo minucioso entre os proacuteprios

contos

Como afirma Agustina Bessa-Luiacutes ldquo para ler a prosa eacute preciso compreender a

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199816) Neste contexto natildeo ousamos falar

do quadro complexo que a palavra ldquomulherrdquo como um ser social objectiva mas

sim na simplicidade do comportamento de vaacuterias mulheres numa soacute imagem

constante nos contos que sente no seu intimo a dor da perca A primeira

referecircncia aqui eacute da mulher-irmatilde que vecirc no uacutenico irmatildeo morto a decadecircncia de

si mesma ldquo seraacute em breve uma sombra na tua sombrardquo (FLORBELA

ESPANCA 199832) Da mulher-matildee e o vazio de sua dor silenciosa ldquo A pobre

matildee abafou um soluccedilo voltou-se e olhou o mortordquo (FLORBELA ESPANCA

1998112) E por fim da mulher-religiosa que busca na cristandade respostas

para seus questionamentos e refuacutegio para seu tormento ldquomais fraacutegil mais

luminosa continuava a rezar as suas oraccedilotildeeshelliporaccedilotildees de amor sacriacutelegas

blasfemas oraccedilotildees de pecadohellipDe pecado Natildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA

1998154) Assim concebo a mulher Bela a compreensatildeo de sua escrita estaacute

nos olhos de quem as vecirc e na sensibilidade de a conhecer Desta feita ldquoa fase

dos equiacutevocos com que a gesta amorosa que a serve com a permanente

invenccedilatildeo de objectos meritoacuterios eacute substituiacuteda por uma feacute na alma feacute que se

acompanha do terriacutevel sentimento de estar morta de natildeo ser mais do que a

aparecircncia dum espaccedilo vividordquo (FLORBELA ESPANCA 199823) diz Agustina

Bessa-Luiacutes

Nesta obra duas propriedades do texto satildeo facilmente perceptiacuteveis a

intertextualidade e a influecircncia exercida em cada conto Essa uacuteltima

envolvendo as fortes caracteriacutesticas da escritora Florbela Espanca Contudo o

texto se constroacutei agrave medida que retoma fatos jaacute conhecidos como eacute o caso das

vaacuterias citaccedilotildees de autores e personagens que ilustram o livro Nesse sentido

quanto mais amplo for o repertoacuterio do leitor o seu acervo de conhecimentos

maior seraacute a sua competecircncia para perceber como os textos dialogam uns

com os outros por meio de referecircncias alusotildees e citaccedilotildees Eacute assim que

Florbela queria que a entendecircssemos atraveacutes de um diaacutelogo intriacutenseco para

descobrirmos suas maacutescaras

19

CAPIacuteTULO 02 21 - ldquoSONHO DE IacuteCAROrdquo

ldquoVoar voar subir subir

Ir por onde for descer ateacute o ceacuteu cair

Ou mudar de cor anjos de gaacutes

Asas de ilusatildeo e um sonho audaz

Feito um balatildeo

No ar no ar eu sou assim

Brilho do farol aleacutem do mais

Amargo fim simplesmente sol

Fugir meu bem eacute ser felizhellip

Ir ateacute que um dia chegue enfim

Em que o sol derreta a cera ateacute o fimrdquo18

A mitologia eacute uma das concepccedilotildees mais geniais que a humanidade produziu

Os gregos instauraram uma categoria intermediaacuteria entre os homens e os

deuses o semideus criando assim os heroacuteis mitoloacutegicos Isso veio a dar

margem a novas investigaccedilotildees sobre os fenoacutemenos da realidade natural

levando ao questionamento da origem dos seres a qual obtiveram respostas

sem sentido concreto Com isso incorporaram a concepccedilatildeo de que a vida e

suas manifestaccedilotildees satildeo obras das forccedilas do espiacuterito que habita em cada um

de noacutes sendo tambeacutem responsaacutevel pela nossa maneira de ser e de agir Isso eacute

sem duacutevida um meio de penetrar atraveacutes da imaginaccedilatildeo no misteacuterio da

existecircncia humana Desta forma o mito consiste nos acontecimentos que se

repetem ao longo da histoacuteria natildeo tendo fim O homem reconhecendo em cada

acto quotidiano uma participaccedilatildeo nos grandes ciclos da vida se sente

participar da grande eternidade miacutetica Partindo de suas origens o homem

consegue viver integralmente e uma vez dentro da mentalidade miacutetica a

proacutepria morte pode ter sentido

18 Fragmento da canccedilatildeo ldquosonho de Iacutecarordquo escrito por Pisca e Claacuteudio Rebelo interpretaccedilatildeo do cantor

brasileiro Byafra

20

Com o intuito de imortalizar o momento de uma trageacutedia Florbela lanccedila matildeo de

aspectos mitoloacutegicos dentro de seus contos que muito nos lembra a triste

histoacuteria de Deacutedalo e Iacutecaro 19 mostrando que o espiacuterito humano de vencer

barreiras e limites nos impulsiona a superar nossas proacuteprias limitaccedilotildees

Alcanccedilar o espaccedilo e as estrelas lanccedilar-se ao infinito experimentar da

sensaccedilatildeo de liberdade interior e o desvendar do misterioso infinito eacute o que

norteia o enredo dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquo O Inventorrdquo

Praticamente todas as culturas destacam o ceacuteu como um lugar especial Esse

local era normalmente designado como a morada dos deuses Muitos povos

consideravam que as constelaccedilotildees eram representaccedilotildees dos seus mitos e

lendas Dessa forma o ceacuteu era um lugar divino e os homens somente o

alcanccedilavam quando eram convidados ou homenageados pelos deuses Mas o

atrevimento de uns culminou na desgraccedila de outros Apenas aqueles com

sabedoria e dotado de iacutentima consciecircncia disciplinar sobre sua condiccedilatildeo

humana conseguiam graccedilas aos olhos dos deuses O conflito interior era um

grande empecilho para que fatos tivessem o desenrolar bem sucedidos

Quando isso natildeo acontecia o homem reconhecia sua condiccedilatildeo de inferioridade

em relaccedilatildeo aos deuses e eram designados ldquofilhos dos homensrdquo

O aparecimento da referecircncia mitoloacutegica pressupotildee uma forte ligaccedilatildeo aos elos

do mito de fundaccedilatildeo que sustenta a harmonia familiar juntamente com

preceitos de moral tendo por priori a identidade pessoal na figura paterna

como eram conhecidos os grandes heroacuteis mitoloacutegicos por serem semideuses

Nesta constante nos eacute dado a conhecer a condiccedilatildeo humana que tambeacutem

aparece de forma intertextualizada como referecircncia ao quadro do flamengo

19 Iacutecaro era filho de Deacutedalo o construtor do labirinto que o rei Minos aprisionava o Minotauro um ser

com corpo de homem e cabeccedila de touro A lenda grega conta que Deacutedalo ensinou Teseu que seria

devorado juntamente com outros jovens pelo monstro como sair do labirinto Deacutedalo sugeriu que ele

deveria utilizar um novelo que deveria ser desenrolado a medida em que fosse penetrando no labirinto

Dessa forma apoacutes ter matado o monstro ele conseguiu fugir do labirinto O rei Minos ficou furioso e

prendeu Deacutedalo e o seu filho Iacutecaro no labirinto Como o rei tinha deixado guardas vigiando as saiacutedas

Deacutedalo construiu asas com penas dos paacutessaros colando-as com cera Antes de levantar voo o pai

recomendou a Iacutecaro que quando ambos estivessem voando natildeo deveriam voar nem muito alto (perto do

Sol cujo calor derreteria a cera) e nem muito baixo (perto do mar pois a unidade tornaria as asas

pesadas) Entretanto a sensaccedilatildeo de voar foi tatildeo estonteante para Iacutecaro que ele esqueceu a recomendaccedilatildeo e

elevou-se tanto nos ares a ponto da previsatildeo de Deacutedalo ocorrer A cera derreteu e Iacutecaro perdeu as asas

precipitando-se no mar e morrendo afogado

21

Brueghel (a Queda de Iacutecaro)20 que Florbela tatildeo bem ilustra com uma descriccedilatildeo

que mais parece uma tela ldquo Os filhos dos homens caacute em baixo deixam cair

nos campos a enxada que faz nascer o patildeo e florir as rosas os pescadores

largam os remos audaciosos que rasgam os mares e os rios e os filhos dos

homens mais duramente castigados os que habitam o formigueiro das cidades

param nas suas insensatas correrias de formigas e todos voltam a face para o

ceacuteurdquo (FLORBELA ESPANCA 199838) Aqui a intertextualidade sugerida

numa linha ecfraacutestica vai de encontro a misteriosa temaacutetica de Florbela

significando isto que o espiacuterito de aventura eacute frequentemente motivo de

incompreensatildeo e de grande solidatildeo

Do mesmo modo que impotildee a condiccedilatildeo de mortal ao homem Florbela o

enaltece dando-lhe honrarias e elevando-o a condiccedilatildeo de um deus ldquo Nos olhos

leva visotildees que os filhos dos homens natildeo conhecem Eacute um homem Deixou laacute

em baixo todo o fardo pesado e vil com que o carregam ao nascer deixou laacute

em baixo todas as algemas todos os feacuterreos grilhotildees que o prendiam toda a

suprema maldiccedilatildeo de ter nascido homem deixou laacute em baixo a sua sacola de

pedinte o seu bordatildeo de Judeu Errante e livre indoacutemito sereno na sua

miacutesera couraccedila de pano azul estendeu em cruz os braccedilos que transformou em

asasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199839) Ao atingir tal supremacia o homem

liberta-se de sua vida anterior e ganha autonomia na forma da liberdade

intriacutenseca conseguindo a superaccedilatildeo de sua forma decadente e de seus

conflitos interiores atraveacutes da liberdade celestial alcanccedilada Deacutedalo foi

conhecido como o arquitecto e artista da liberdade mesmo tendo construiacutedo o

labirinto que eacute a representaccedilatildeo do aprisionamento Aqui Florbela utiliza desse

argumento como se seus escritos fossem labiriacutenticos e teriacuteamos de encontrar

as palavras certas para desvendarmos seus caminhos encontrando neles

assim a liberdade Essa mesma liberdade transformada aqui no voo mais alto

que levaria a traacutegica morte

Apesar de mostrada diferentemente temos aqui mais uma vez a dualidade

que percorre a obra de Florbela o aprisionamento e a liberdade a vida e a

morte antiacuteteses que perfilam seu anseio humano ldquo Um dia julgou ter achado

20 Quadro de Broeghel demonstrando a queda de Iacutecaro no mar enquanto os camponeses prosseguem a sua

labuta diaacuteria

22

Oh aquele dia A embriaguez do homem que se igualou a Deus O coraccedilatildeo a

bater a bater a sentir-se grande demais para um peito tatildeo pequeno para um

tatildeo mesquinho destino A humidade das laacutegrimas a embaciar o olhar gigante

que se esquecera um momento de ter nascido pigmeu O artista o poeta o

inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de movimento e de

vida todos os que desbravavam caminhos os que talham abrem por entre os

matagais selvagens e as belas estradas largas do pensamento e das ideias As

palavras satildeo o muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes

ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)

Ao atingir o voo pleno por vezes nos afastamos da realidade natural e nos

lanccedilamos ao desconhecido sem saber o que nos espera Com isso a queda eacute

inevitaacutevel Neste seguimento vemos a intertextualidade presente sob o estigma

dos cuidados de Zeus filho de Cromo e pai dos deuses que concedeu aos

heroacuteis uma morada afastada dos homens onde os semideuses pudessem se

estabelecer nos confins da terra Eacute laacute que habitam com o coraccedilatildeo livre de

cuidados nas Ilhas dos Bem-Aventurados nas praias dos turbilhotildees profundos

do Oceano satildeo eles os heroacuteis afortunados a quem Florbela tambeacutem concede

a morada preparada como tuacutemulo perfeito para o descanso eterno A

representaccedilatildeo das deusas das aacuteguas na presenccedila das ninfas efidriacuteades21 que

simbolizam a graccedila criativa e fecundadora da natureza fazem aparecer a

presenccedila feminina que surge com o intuito de exaltar a forccedila interior que so a

mulher tem para defrontar situaccedilotildees desastrosas e encontrar soluccedilatildeo nos mais

tenebrosos conflitos bem como de dar um toque de suavidade ternura beleza

e leveza que soacute a performance feminina consegue impor ldquo hellipAs filhas dos

deuses ondinas sereias nereidas princesas encantadas acodem todas

pressurosashellipEm volta das asas mortas satildeo como flores desfolhadas em

redor dum esquife negro E olhamhelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 199842) A

sabedoria feminina evidencia-se ao se manifestar a ldquoque tinha nos olhos uma

nostaacutelgica tristeza humanardquo (FLORBELA ESPANCA 199846) como uma matildee

protectora que acalenta o filho em seu sono profundo e compreende com

tristeza a dor dos mortais ou quem sabe sua proacutepria dor na condiccedilatildeo de

imortal pois somente aos deuses era permitido o poder de arrebatar o espiacuterito

21 Referecircncia as ninfas das aacuteguas da mitologia grega

23

a um homem ldquo E aquele que tinha sido um filho dos homens ficou a dormir na

eternidade como se fora um filho dos deusesrdquo (FLORBELA ESPANCA

199846)

Como podemos perceber Florbela em sua construccedilatildeo literaacuteria delineou nas

entrelinhas dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquoO Inventorrdquo aspectos simboacutelicos

determinantes do aprisionamento e da libertaccedilatildeo humana natildeo somente no

sentido denotativo mas tambeacutem conotativo na multiplicidade de sentidos que

tais palavras propotildeem Apesar da evidecircncia colocada pela escritora ainda nos

remete a reflexatildeo pois o aprisionamento pode ser um meio de libertaccedilatildeo e a

libertaccedilatildeo um aprisionamento ldquohellipOlhou o ceacuteu profundohellipe achou Ser aviador

eacutehellipabraccedilar no mesmo abraccedilo o ceacuteu e o mar Na linguagem dos siacutembolos a

acircncora definindo a esperanccedila nunca poderaacute valer as asas que satildeo a

libertaccedilatildeo A acircncora agarra-se ao fundo e fica as asas abrem-se no espaccedilo e

penetram o ceacuteuhellipSeria aviador Quando pela primeira vez voou natildeo se

esqueceu de sentar na carlinga a seu lado ao lado do seu coraccedilatildeo aquela

que dali em diante seria a companheira de todos os dias a companheira

indefectiacutevel de todos os aviadores a Morterdquo (FLORBELA ESPANCA 1998

129)

A produccedilatildeo intertextual desses dois contos traz-nos um imaginaacuterio voltado aos

princiacutepios fundadores de conceitos e referecircncia humana Florbela baseia-se na

representaccedilatildeo da infacircncia como elemento fundador da personalidade e do

caraacutecter ou seja a figura do pai que nunca a reconheceu em vida e por outro

lado na figura de Deacutedalo e Iacutecaro tendo o pai a dualidade em sua referecircncia

paterna Eacute assim que de ldquotentaccedilatildeo em tentaccedilatildeo de fraqueza em fraqueza os

compromissos de consciecircncia levam um homem honrado agrave praacutetica de todos os

crimeshelliprdquo22

22 Fragmento do conto O Inventor de Florbela Espanca As Maacutescaras do Destino1998122

24

22 - A MULTICIPLIDADE DO HEROacuteI

ldquo A vida parada e recolhida cria heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tarderdquo23

Ao encontrarmos facetas mitoloacutegicas entre as leituras de Florbela natildeo se pode

descartar a visatildeo do heroacutei que a autora engendrou na figura de seu irmatildeo

Apeles Tiacutetulo esse dado a homens excepcionais como Ulisses que eram

venerados por seu povo da mesma forma Florbela nutria uma verdadeira

veneraccedilatildeo que a levou a personificar o Aviador a um heroacutei merecedor de

honrarias e apesar da miacutesera condiccedilatildeo de mortal foi-lhe atribuiacutedo qualidades

fiacutesicas e morais dignas de um semideus ldquo A vida parada e recolhida cria

heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tardehellip o pincel de geacutenio daacute os uacuteltimos

retoques ao cenaacuterio de epopeiahellip laacute em cima a formidaacutevel apoteose desdobra-

se no meio do pasmo das coisas Eacute um homem que tem asas E as asas

pairam descem rodopiam ascendem de novo giram latejam batem ao sol

mais aacutegeis e mais robustas mais leves e mais possantes que as das aacuteguias Eacute

um homem A face eneacutergica vincada a cinzel emerge extraordinaacuteria da vida

intensa na indecisatildeo dos contornos que lhe fazem vagos e paacutelidos um vago

pano de fundo a face e as matildeoshellipOs muacutesculos da face adivinham na forccedila

brutal das maxilas cerradas Nos olhos leva visotildees que os filhos dos homens

natildeo conhecem Os olhos dele natildeo se vecircem olham para dentro e para fora satildeo

pedras como as das estaacutetuas e vecircem mais e mais para aleacutem do que as

miacuteseras pupilas humanas Satildeo astrosrdquo (FLORBELA ESPANCA 199838 e 39)

Esta mesma condiccedilatildeo eacute dada ao Inventor autor da imaginaccedilatildeo de Florbela

ldquoRealizara os seus sonhos todos os seus sonhos Que havia mais agora Jaacute

os homens podiam sulcar os ares sem medo aos vendavais agraves coacuteleras brutais

da Natureza jaacute o ceacuteu se podia coalhar de asas como o mar de velas Todo o

homem poderia ter sem perigo e sem riscos a cobiccedilada sensaccedilatildeo de

comandar nos elementos como um semideusrdquo (FLORBELA ESPANCA

1998133)

Sabemos que o heroacutei constitui o assunto da poesia eacutepica ele tem a sua

maneira proacutepria de agir pela sua coragem e bravura e prossegue objectivos

23 Fragmento do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca198837 e 38

25

bem determinados que ao longo de sua trajectoacuteria lhe satildeo atribuiacutedos cada qual

com sua importacircncia e valor Eacute dado a ele tambeacutem o poder de decisatildeo ora

sobre seus actos ora sobre si mesmo Isso como forma de valorizar sua

sabedoria e supremacia diante daqueles a quem defendia Assim se apresenta

o heroacutei dos contos de Florbela homem-deus detentor de toda visatildeo forte

dominador senhor supremo de seu destino a quem eacute concedido um lugar

eterno junto aos astros

A realidade fictiacutecia da mitologia eacute comparada aqui a realidade autecircntica

Florbela interessa-se pelo seu heroacutei fictiacutecio como se fosse ou tratasse de uma

pessoa real com isso podemos dizer que a escrita ficcional de Florbela eacute

mimese porque a realidade de sua vida humana eacute o seu material de escrita ela

consegue transformar a realidade objectiva na realidade subjectiva vivencial

razatildeo por que nos deixamos influenciar pela sua trajectoacuteria de vida em seus

escritos Isso justifica o fato da ldquovaliosa bravurardquo ndash por uma valiosa pintura - de

seu heroacutei ser retratado em uma tela por um titatilde24 personifica assim a grande

luta travada com as forccedilas da natureza ldquoEacute um Rembrandt pintado por um titatilderdquo

(FLORBELA ESPANCA 199839) A sua proacutepria natureza humana A propoacutesito

disso parece mais reportar ao paradoxo entre o bem e o mal que lutam

constantemente pelo domiacutenio da razatildeo interior talvez alvo de Florbela

Eacute interessante observar a relaccedilatildeo que existe entre o ldquohomem com asasrdquo com

as Harpias25 que na multi-significaccedilatildeo de seu discurso nos projecta a uma

realizaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo na figura do heroacutei alado em uma transposiccedilatildeo

imaginaacuteria com uma pluralidade de sentidos que poderia ocultar um sentido

uacutenico o seu proacuteprio desejo ou o desejo de arrebatar a alma de seu morto

Tambeacutem vemos a intertextualidade corrente na pessoa de Ulisses26 o heroacutei

grego navegante Robson Crusoeacute27 Piratas dos Sete Mares28 aos capitatildees e

24 Referecircncia a segunda geraccedilatildeo dos deus mitoloacutegicos representantes das forccedilas da natureza e sem uma

personalidade bem vincadaos quais Hesiacuteodo enumerou em doze seis machos e seis fecircmeas Oceano Ceacuteu

Crio Hiperiacuteon Jaacutepeto Cronos Teia Reja Teacutemis Mnemoacutesine Febe e Teacutetis 25 As Harpias filhas de Electra (ela proacutepria filha do Titatilde Oceano) e de Taumas (filho de Ponto e de Geia)

pertencem agrave geraccedilatildeo dos preacute-oliacutempicos Elas satildeo irmatildes de iacuteris a mensageira dos deuses Representadas

quer como mulheres aladas com um aspecto fameacutelico quer como paacutessaros com cabeccedila de mulher as

Harpias residem nas ilhas Estroacutefades do mar Egeu ou ainda agraves portas do Taacutertaro Impetuosas e brutais

como a tempestade as Harpias satildeo - este eacute o sentido do seu nome - raptoras com garras fortes 26 Odisseu (na Greacutecia) ou Ulisses (em Roma) eacute um personagem da Iliacuteada e da Odisseacuteia de Homero Apoacutes

a derrota dos troianos ele iniciou uma viagem de dez anos de volta para Iacutetaca onde a sua mulher o espera

com uma fidelidade obstinada apesar da demora Essa viagem mereceu a criaccedilatildeo por Homero do poema

26

navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a

coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a

solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o

enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio

multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos

diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio

Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os

naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de

navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS

Maacutescaras do Destino 1998 p 125)

Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada

com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a

renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que

convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos

escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a

partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental

aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A

viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas

suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte

recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os

heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas

ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o

navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira

de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que

nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era

eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que

deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-

1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado

a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe

herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico

sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O

romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como

tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar

que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os

Lusiacuteadas de Camotildees

27

no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo

da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)

Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida

funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo

conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente

nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de

alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva

Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer

tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos

heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os

portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens

tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que

de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os

navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por

deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da

Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do

texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute

simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no

poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES

1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou

passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da

Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas

natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer

vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de

ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um

heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com

o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas

forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um

aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem

mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva

30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos

Lisboa

Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal

28

presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de

Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura

greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito

especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela

escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a

morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem

para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de

transformaccedilatildeo fantaacutestica

Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que

na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena

confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir

uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute

infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu

desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma

personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo

inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade

aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios

filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa

escritora o seu carma

Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei

que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora

quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem

ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles

desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma

as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista

o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de

movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos

esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do

pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam

As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes

ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)

29

CAPIacuteTULO 03

31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS

ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de

doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32

No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute

intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em

todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do

proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade

de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma

comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro

cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser

estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute

antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de

alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas

oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir

as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava

perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o

fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo

para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que

muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da

escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e

complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e

pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma

formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela

graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa

assume

32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122

30

De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete

agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem

Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites

nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute

podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido

conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao

inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um

ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma

palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a

intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda

e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas

pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma

onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo

(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um

recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o

renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio

inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a

matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada

ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe

mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata

cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de

voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e

122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso

indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam

tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele

o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as

suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um

emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados

que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e

intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica

33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ

31

Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado

transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas

Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e

que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a

imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de

dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada

dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais

significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa

escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e

sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-

as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar

inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos

era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade

existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)

A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio

Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo

tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens

que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de

tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta

ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a

proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo

Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante

notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe

de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e

medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca

mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho

branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a

socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua

presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo

(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo

deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo

queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a

intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia

humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para

32

sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo

pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no

mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais

apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva

enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente

foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)

A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja

como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo

atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute

reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em

busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito

junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos

satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad

que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que

han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas

mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como

meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do

inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os

aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias

34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939

33

32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO

ldquoA vida vem em ondas

Como o mar

Num indo e vindo infinitohelliprdquo35

A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente

foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram

o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios

da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-

portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo

ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura

universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e

nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a

esquizofrenia de sua alma

O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos

grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma

visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes

de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-

racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas

fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma

encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no

espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada

ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar

duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava

que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se

35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos

em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria

imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia

grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios

Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e

cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam

da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela

Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a

sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor

34

sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o

olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de

um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o

seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No

reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que

constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia

Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor

das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que

participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na

claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma

a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial

apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se

imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA

ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta

solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser

acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas

pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de

existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas

dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma

mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar

agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)

As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar

aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de

Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a

37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta

nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet

tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido

advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte

de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga

(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre

1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a

questatildeo (Hamlet ato III cena I)

38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)

que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era

destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar

35

travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes

questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente

humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a

vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa

loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz

a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair

numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua

frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico

mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de

transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a

morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano

capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas

ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de

integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de

totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma

ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade

de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida

dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a

seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas

iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives

mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas

dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a

cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute

perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras

velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida

de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar

costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras

por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e

grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme

O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu

amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do

Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para

toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos

36

Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser

salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma

dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo

desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave

liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos

secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a

uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo

desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a

boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia

pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a

mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais

alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se

nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira

as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de

alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora

julga existir no seu misteacuterio

O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e

forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e

sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que

orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente

num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das

contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute

traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas

que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas

figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas

narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um

imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e

39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII

mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a

bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por

alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua

tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar

Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A

histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito

em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que

aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas

aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma

37

refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus

fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a

sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades

da dinacircmica universal

Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar

simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos

narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos

siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um

contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da

efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma

capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde

diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e

exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia

essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel

mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo

do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do

Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)

e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo

social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)

na representatividade literaacuteria do mar

38

CAPIacuteTULO 04

41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA

ldquoGosto de ti apaixonadamente

De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo

De ti que me trouxeste pela matildeo

Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40

Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso

a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade

directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na

poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua

dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees

Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita

capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e

um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz

e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a

dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas

conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute

e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria

serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem

quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto

anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse

em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita

maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte

com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e

quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e

emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos

paradoxos

40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no

livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004

Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo

Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11

39

Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos

toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-

romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido

num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia

com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes

profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas

sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo

acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando

a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A

derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a

conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas

da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da

sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No

entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas

romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a

impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo

definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha

aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento

em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o

passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era

tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto

A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos

acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-

Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs

Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os

Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de

Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de

Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o

egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo

narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica

Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute

neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o

poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem

40

esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma

essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no

iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma

questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos

encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem

sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos

interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas

as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um

exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo

tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo

daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita

conteacutem

41

42 - UM PERCURSO COMPARATIVO

ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os

vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e

outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que

ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute

foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41

ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto

Olhou em roda natildeo achou ningueacutem

Por entre as campas arrastando o manto

Com lentos passos caminhou aleacutem

Abandonado neste chatildeo repousa

Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui

Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa

Sobre este peito que bateu por tirdquo42

A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e

o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-

romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua

linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa

o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se

O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando

proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos

moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na

literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror

Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou

comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas

circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de

comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e

sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos

41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda

Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos

42

ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de

outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou

Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)

Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal

de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma

optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada

pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada

no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus

sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa

suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois

dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)

Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade

todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional

natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute

afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute

tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima

do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo

Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela

e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a

prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua

intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a

dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as

influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente

que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz

directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para

a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o

intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era

partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada

por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das

rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de

branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza

43

ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas

Longas roupagens de neveda cor

Singela croa de virgiacutenias rosas

Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43

ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de

branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila

devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa

nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)

Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de

conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se

para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da

imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a

partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a

presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os

uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem

eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera

absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor

ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria

A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a

intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um

testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista

e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas

caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da

temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao

fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma

retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras

masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo

homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma

mulher

43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12

44

(hellip)

Mulher formosa que adorei na vida

E que na tumba natildeo cessei damar

Por que atraiccediloas desleal mentida

O amor eterno que te ouvi jurar

Amor engano que na campa finda

Que a morte despe da ilusatildeo falaz

Quem dentros vivos se lembrara ainda

ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)

Talvez que rindo dos protestos nossos

Gozes com outro dinfernal prazer

E o olvido cobriraacute meus ossos

Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44

Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o

vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as

bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis

e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma

essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o

podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA

ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de

sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a

eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos

na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto

com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais

de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas

palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o

esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal

seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu

passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre

44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9

45

que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as

matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos

das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam

para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)

Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno

num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista

melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias

possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela

um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica

natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem

fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo

intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas

rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso

consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo

intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas

solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou

com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a

todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas

as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os

sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado

daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)

Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do

Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais

significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO

MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do

quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e

estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que

desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo

da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina

agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das

espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute

presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos

46

ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido

Das sepulturas o gelado poacute

Dois esqueletos um ao outro unido

Foram achados num sepulcro soacuterdquo45

Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de

imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da

intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo

buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma

enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo

recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as

laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas

deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo

sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais

moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas

austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade

dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete

palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam

pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e

59)

Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao

ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram

escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia

literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo

exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde

ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais

tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo

merecida

45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos

47

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas

interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca

Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo

depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves

transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo

sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia

ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas

metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver

com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao

sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas

tambeacutem ao que relaciona a morte

A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua

eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela

mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e

sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo

quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade

que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas

personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a

humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de

enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e

sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas

e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o

que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte

presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais

condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus

contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e

desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse

interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural

equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes

interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute

Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem

uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses

48

elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o

inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela

tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses

elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma

civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor

sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam

sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do

intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea

Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o

menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que

para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro

compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo

que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou

seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua

imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que

essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar

atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a

outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual

proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque

esconde-se ou projecta-se no discurso do outro

Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o

caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo

relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens

marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um

significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um

desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos

de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e

fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave

realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande

maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe

um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo

46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de

Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360

49

obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a

escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada

Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a

infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute

aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo

espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a

verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes

50

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Page 16: AS MÁSCARAS SIMBÓLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA … Jaqueline... · 2019-10-31 · A narrativa ficcional não é o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca, mas, assim como

16

13 - ABORDAGENS SOBRE ldquoAS MAacuteSCARAS DO DESTINOrdquo ldquoOs contos satildeo como ela - siacutembolo de permanecircncia no pensamento da terra fio

de amor que manteacutem a sua magneacutetica forccedila saudade de tudo que podia

significar felicidade e expressatildeo do afectordquo17

Dedicada ao seu irmatildeo Apeles Demoacutestenes da Rocha Espanca ndash ldquoAs

Maacutescaras do Destinordquo eacute uma obra inspirada na tristeza e dor que a perda do

irmatildeo causa em Florbela Sua dedicatoacuteria ldquoeacute como um punho culpado que

Florbela assenta no proacuteprio peitordquo (FLORBELA ESPANCA 199825) assim diz

Agustina Bessa-Luiacutes autora do prefaacutecio escrito em 1979 que orienta-nos sobre

as condiccedilotildees de leitura que envolve esta obra

A dedicatoacuteria escrita por Florbela comprova o amor de irmatildeos Apeles era

ldquoAquele que das mesmas entranhas foi nascido que ao calor do mesmo

amplexo foi gerado Aquele que traz no rosto as linhas do teu rosto nos olhos a

aacutegua clara dos teus olhos o teu Amigo o teu Irmatildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA

199831 e 32) Ela escrevia tais palavras como uma matildee que acabara de

perder a um filho ldquopara que tua mocidade natildeo trema de o ver partir um dia

bom e meigo para que vivas na ilusatildeo bendita de teres um filho forte e belo

para te obrigar a encarar sorrindo as coisas vis e feias deste mundohelliprdquo

(FLORBELA ESPANCA 199831) Na realidade tais clamores professados soacute

a uma matildee que perdera seu filho eacute permitido senti-los

Escrita no final de 1927 reuacutene oito contos denominados ldquoO Aviador ldquoA Mortardquo

ldquoOs Mortos Natildeo Voltamrdquo ldquo O Resto Eacute Perfumerdquo ldquoA Paixatildeo de Manuel Garciardquo

ldquo O Inventorrdquo ldquoAs Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquoO Sobrenaturalrdquo

Como demonstram os tiacutetulos dados aos contos o tema ldquomorterdquo eacute o ponto de

convergecircncia entre os enredos e vem reforccedilar o pendor funesto da obra de

Florbela natildeo apenas pelo desaparecimento do irmatildeo mas que jaacute fazia parte

da proacutepria insatisfaccedilatildeo intimista que a escritora detinha Nesta altura por forccedilas

das circunstacircncias parecia estar desvinculada da vida como uma morta e sua

perpeacutetua busca lhe assegura uma espeacutecie de eternidade

Natildeo participando do enredo assim sendo em 3ordf pessoa mostrava-se uma

observadora a narrar fatos onde a realidade se confunde com o imaginaacuterio

17 Fragmento escrito por Agustina Bessa-Luiacutez retirado do prefaacutecio do livro As Maacutescaras do Destino de

Florbela Espanca 199810

17

fantaacutestico e soacute nos traacutes agrave lucidez da compreensatildeo devido as referecircncias

intertextuais as quais satildeo comuns aos contos pois ldquo o fantaacutestico se caracteiza

por una instrusioacuten brutal del misteacuterio en el marco de la vida real y estaacute ligado

generalmente a los estados moacuterbitos de la conciencia que en los fenoacutemenos

de pesadilla e de deliacuterio proyecta ante siacute imaacutegenes de sus angustias e de sus

terroresrdquo (GEORGES JEAN 1889 68 e 69) Mas a escritora natildeo desvincula-se

de sua obra uma forte tendecircncia de Florbela Marcando presenccedila no conto ldquoO

Resto Eacute Perfumerdquo interage como personagem assim assume o relato como

se procedesse de outro narrador para que pudesse penetraacute-lo e manter suas

caracteriacutesticas inquietantes e paradoxais acrescentando uma forte dose de

existencialismo e a presenccedila do ldquoEurdquo que vem reforccedilar a categoria de seus

relatos miacuteticos Aqui o ldquofantaacutesticordquo se confunde com o ldquomaravilhosordquo isso

devido aos relatos mitoloacutegicos que implica durante a leitura em um

redireccionamento do leitor a outro espaccedilo a outro tempo onde temos a ilusatildeo

de vivermos por um breve momento em outro lugar Florbela nos permite a

viagens imaginaacuterias em que o maravilhoso de seus contos dependeraacute de uma

infinidade de interpretaccedilotildees que natildeo seratildeo necessariamente interpretaccedilotildees

racionais pois as interpretaccedilotildees paralelas e divergentes satildeo sempre possiacuteveis

devido a riqueza do conto em si que no caso de Florbela estatildeo ligados aos

estados moacuterbidos de sua consciecircncia

Sabemos que algum dos elementos imaginaacuterios dos contos de Florbela estaacute

ligada ao realismo de sua histoacuteria verdadeira e isso eacute capaz pela virtudes que

soacute os contos de fadas pode proporcionar apesar de sua vida inconstante e

cheia de maacutegoas soube mascarar seu inconsciente e dar a seu relato um

intercacircmbio gracioso e sentimental com sua vida Por sua vez tais relatos

remetem-se a duas vertentes essenciais nos contos a primeira de propagar as

formas simboacutelicas durante a histoacuteria e a segunda de inserir essas formas

mediante a expansatildeo de sua escrita atraveacutes dos contos Um bom exemplo

disso eacute a clareza de como um conto complementa outro Atentemos para os

detalhes simboacutelicos de ldquoO Inventorrdquo que parece encerrar-se em ldquoO Aviadorrdquo da

mesma forma acontece em ldquoO Sobrenaturalrdquo e ldquoOs Mortos natildeo Voltamrdquo ldquoAs

Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquo A Paixatildeo de Manuel Garciardquo por fim

vemos a profunda reflexatildeo sobre a vida em ldquoO Resto eacute Perfumerdquo culminando

no conto ldquoA Mortardquo que tem em seu final a imersatildeo nas aacuteguas elemento

18

comum em todos os contos que parece como siacutembolo de redenccedilatildeo Temos

aqui um quadro para um estudo comparativo minucioso entre os proacuteprios

contos

Como afirma Agustina Bessa-Luiacutes ldquo para ler a prosa eacute preciso compreender a

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199816) Neste contexto natildeo ousamos falar

do quadro complexo que a palavra ldquomulherrdquo como um ser social objectiva mas

sim na simplicidade do comportamento de vaacuterias mulheres numa soacute imagem

constante nos contos que sente no seu intimo a dor da perca A primeira

referecircncia aqui eacute da mulher-irmatilde que vecirc no uacutenico irmatildeo morto a decadecircncia de

si mesma ldquo seraacute em breve uma sombra na tua sombrardquo (FLORBELA

ESPANCA 199832) Da mulher-matildee e o vazio de sua dor silenciosa ldquo A pobre

matildee abafou um soluccedilo voltou-se e olhou o mortordquo (FLORBELA ESPANCA

1998112) E por fim da mulher-religiosa que busca na cristandade respostas

para seus questionamentos e refuacutegio para seu tormento ldquomais fraacutegil mais

luminosa continuava a rezar as suas oraccedilotildeeshelliporaccedilotildees de amor sacriacutelegas

blasfemas oraccedilotildees de pecadohellipDe pecado Natildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA

1998154) Assim concebo a mulher Bela a compreensatildeo de sua escrita estaacute

nos olhos de quem as vecirc e na sensibilidade de a conhecer Desta feita ldquoa fase

dos equiacutevocos com que a gesta amorosa que a serve com a permanente

invenccedilatildeo de objectos meritoacuterios eacute substituiacuteda por uma feacute na alma feacute que se

acompanha do terriacutevel sentimento de estar morta de natildeo ser mais do que a

aparecircncia dum espaccedilo vividordquo (FLORBELA ESPANCA 199823) diz Agustina

Bessa-Luiacutes

Nesta obra duas propriedades do texto satildeo facilmente perceptiacuteveis a

intertextualidade e a influecircncia exercida em cada conto Essa uacuteltima

envolvendo as fortes caracteriacutesticas da escritora Florbela Espanca Contudo o

texto se constroacutei agrave medida que retoma fatos jaacute conhecidos como eacute o caso das

vaacuterias citaccedilotildees de autores e personagens que ilustram o livro Nesse sentido

quanto mais amplo for o repertoacuterio do leitor o seu acervo de conhecimentos

maior seraacute a sua competecircncia para perceber como os textos dialogam uns

com os outros por meio de referecircncias alusotildees e citaccedilotildees Eacute assim que

Florbela queria que a entendecircssemos atraveacutes de um diaacutelogo intriacutenseco para

descobrirmos suas maacutescaras

19

CAPIacuteTULO 02 21 - ldquoSONHO DE IacuteCAROrdquo

ldquoVoar voar subir subir

Ir por onde for descer ateacute o ceacuteu cair

Ou mudar de cor anjos de gaacutes

Asas de ilusatildeo e um sonho audaz

Feito um balatildeo

No ar no ar eu sou assim

Brilho do farol aleacutem do mais

Amargo fim simplesmente sol

Fugir meu bem eacute ser felizhellip

Ir ateacute que um dia chegue enfim

Em que o sol derreta a cera ateacute o fimrdquo18

A mitologia eacute uma das concepccedilotildees mais geniais que a humanidade produziu

Os gregos instauraram uma categoria intermediaacuteria entre os homens e os

deuses o semideus criando assim os heroacuteis mitoloacutegicos Isso veio a dar

margem a novas investigaccedilotildees sobre os fenoacutemenos da realidade natural

levando ao questionamento da origem dos seres a qual obtiveram respostas

sem sentido concreto Com isso incorporaram a concepccedilatildeo de que a vida e

suas manifestaccedilotildees satildeo obras das forccedilas do espiacuterito que habita em cada um

de noacutes sendo tambeacutem responsaacutevel pela nossa maneira de ser e de agir Isso eacute

sem duacutevida um meio de penetrar atraveacutes da imaginaccedilatildeo no misteacuterio da

existecircncia humana Desta forma o mito consiste nos acontecimentos que se

repetem ao longo da histoacuteria natildeo tendo fim O homem reconhecendo em cada

acto quotidiano uma participaccedilatildeo nos grandes ciclos da vida se sente

participar da grande eternidade miacutetica Partindo de suas origens o homem

consegue viver integralmente e uma vez dentro da mentalidade miacutetica a

proacutepria morte pode ter sentido

18 Fragmento da canccedilatildeo ldquosonho de Iacutecarordquo escrito por Pisca e Claacuteudio Rebelo interpretaccedilatildeo do cantor

brasileiro Byafra

20

Com o intuito de imortalizar o momento de uma trageacutedia Florbela lanccedila matildeo de

aspectos mitoloacutegicos dentro de seus contos que muito nos lembra a triste

histoacuteria de Deacutedalo e Iacutecaro 19 mostrando que o espiacuterito humano de vencer

barreiras e limites nos impulsiona a superar nossas proacuteprias limitaccedilotildees

Alcanccedilar o espaccedilo e as estrelas lanccedilar-se ao infinito experimentar da

sensaccedilatildeo de liberdade interior e o desvendar do misterioso infinito eacute o que

norteia o enredo dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquo O Inventorrdquo

Praticamente todas as culturas destacam o ceacuteu como um lugar especial Esse

local era normalmente designado como a morada dos deuses Muitos povos

consideravam que as constelaccedilotildees eram representaccedilotildees dos seus mitos e

lendas Dessa forma o ceacuteu era um lugar divino e os homens somente o

alcanccedilavam quando eram convidados ou homenageados pelos deuses Mas o

atrevimento de uns culminou na desgraccedila de outros Apenas aqueles com

sabedoria e dotado de iacutentima consciecircncia disciplinar sobre sua condiccedilatildeo

humana conseguiam graccedilas aos olhos dos deuses O conflito interior era um

grande empecilho para que fatos tivessem o desenrolar bem sucedidos

Quando isso natildeo acontecia o homem reconhecia sua condiccedilatildeo de inferioridade

em relaccedilatildeo aos deuses e eram designados ldquofilhos dos homensrdquo

O aparecimento da referecircncia mitoloacutegica pressupotildee uma forte ligaccedilatildeo aos elos

do mito de fundaccedilatildeo que sustenta a harmonia familiar juntamente com

preceitos de moral tendo por priori a identidade pessoal na figura paterna

como eram conhecidos os grandes heroacuteis mitoloacutegicos por serem semideuses

Nesta constante nos eacute dado a conhecer a condiccedilatildeo humana que tambeacutem

aparece de forma intertextualizada como referecircncia ao quadro do flamengo

19 Iacutecaro era filho de Deacutedalo o construtor do labirinto que o rei Minos aprisionava o Minotauro um ser

com corpo de homem e cabeccedila de touro A lenda grega conta que Deacutedalo ensinou Teseu que seria

devorado juntamente com outros jovens pelo monstro como sair do labirinto Deacutedalo sugeriu que ele

deveria utilizar um novelo que deveria ser desenrolado a medida em que fosse penetrando no labirinto

Dessa forma apoacutes ter matado o monstro ele conseguiu fugir do labirinto O rei Minos ficou furioso e

prendeu Deacutedalo e o seu filho Iacutecaro no labirinto Como o rei tinha deixado guardas vigiando as saiacutedas

Deacutedalo construiu asas com penas dos paacutessaros colando-as com cera Antes de levantar voo o pai

recomendou a Iacutecaro que quando ambos estivessem voando natildeo deveriam voar nem muito alto (perto do

Sol cujo calor derreteria a cera) e nem muito baixo (perto do mar pois a unidade tornaria as asas

pesadas) Entretanto a sensaccedilatildeo de voar foi tatildeo estonteante para Iacutecaro que ele esqueceu a recomendaccedilatildeo e

elevou-se tanto nos ares a ponto da previsatildeo de Deacutedalo ocorrer A cera derreteu e Iacutecaro perdeu as asas

precipitando-se no mar e morrendo afogado

21

Brueghel (a Queda de Iacutecaro)20 que Florbela tatildeo bem ilustra com uma descriccedilatildeo

que mais parece uma tela ldquo Os filhos dos homens caacute em baixo deixam cair

nos campos a enxada que faz nascer o patildeo e florir as rosas os pescadores

largam os remos audaciosos que rasgam os mares e os rios e os filhos dos

homens mais duramente castigados os que habitam o formigueiro das cidades

param nas suas insensatas correrias de formigas e todos voltam a face para o

ceacuteurdquo (FLORBELA ESPANCA 199838) Aqui a intertextualidade sugerida

numa linha ecfraacutestica vai de encontro a misteriosa temaacutetica de Florbela

significando isto que o espiacuterito de aventura eacute frequentemente motivo de

incompreensatildeo e de grande solidatildeo

Do mesmo modo que impotildee a condiccedilatildeo de mortal ao homem Florbela o

enaltece dando-lhe honrarias e elevando-o a condiccedilatildeo de um deus ldquo Nos olhos

leva visotildees que os filhos dos homens natildeo conhecem Eacute um homem Deixou laacute

em baixo todo o fardo pesado e vil com que o carregam ao nascer deixou laacute

em baixo todas as algemas todos os feacuterreos grilhotildees que o prendiam toda a

suprema maldiccedilatildeo de ter nascido homem deixou laacute em baixo a sua sacola de

pedinte o seu bordatildeo de Judeu Errante e livre indoacutemito sereno na sua

miacutesera couraccedila de pano azul estendeu em cruz os braccedilos que transformou em

asasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199839) Ao atingir tal supremacia o homem

liberta-se de sua vida anterior e ganha autonomia na forma da liberdade

intriacutenseca conseguindo a superaccedilatildeo de sua forma decadente e de seus

conflitos interiores atraveacutes da liberdade celestial alcanccedilada Deacutedalo foi

conhecido como o arquitecto e artista da liberdade mesmo tendo construiacutedo o

labirinto que eacute a representaccedilatildeo do aprisionamento Aqui Florbela utiliza desse

argumento como se seus escritos fossem labiriacutenticos e teriacuteamos de encontrar

as palavras certas para desvendarmos seus caminhos encontrando neles

assim a liberdade Essa mesma liberdade transformada aqui no voo mais alto

que levaria a traacutegica morte

Apesar de mostrada diferentemente temos aqui mais uma vez a dualidade

que percorre a obra de Florbela o aprisionamento e a liberdade a vida e a

morte antiacuteteses que perfilam seu anseio humano ldquo Um dia julgou ter achado

20 Quadro de Broeghel demonstrando a queda de Iacutecaro no mar enquanto os camponeses prosseguem a sua

labuta diaacuteria

22

Oh aquele dia A embriaguez do homem que se igualou a Deus O coraccedilatildeo a

bater a bater a sentir-se grande demais para um peito tatildeo pequeno para um

tatildeo mesquinho destino A humidade das laacutegrimas a embaciar o olhar gigante

que se esquecera um momento de ter nascido pigmeu O artista o poeta o

inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de movimento e de

vida todos os que desbravavam caminhos os que talham abrem por entre os

matagais selvagens e as belas estradas largas do pensamento e das ideias As

palavras satildeo o muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes

ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)

Ao atingir o voo pleno por vezes nos afastamos da realidade natural e nos

lanccedilamos ao desconhecido sem saber o que nos espera Com isso a queda eacute

inevitaacutevel Neste seguimento vemos a intertextualidade presente sob o estigma

dos cuidados de Zeus filho de Cromo e pai dos deuses que concedeu aos

heroacuteis uma morada afastada dos homens onde os semideuses pudessem se

estabelecer nos confins da terra Eacute laacute que habitam com o coraccedilatildeo livre de

cuidados nas Ilhas dos Bem-Aventurados nas praias dos turbilhotildees profundos

do Oceano satildeo eles os heroacuteis afortunados a quem Florbela tambeacutem concede

a morada preparada como tuacutemulo perfeito para o descanso eterno A

representaccedilatildeo das deusas das aacuteguas na presenccedila das ninfas efidriacuteades21 que

simbolizam a graccedila criativa e fecundadora da natureza fazem aparecer a

presenccedila feminina que surge com o intuito de exaltar a forccedila interior que so a

mulher tem para defrontar situaccedilotildees desastrosas e encontrar soluccedilatildeo nos mais

tenebrosos conflitos bem como de dar um toque de suavidade ternura beleza

e leveza que soacute a performance feminina consegue impor ldquo hellipAs filhas dos

deuses ondinas sereias nereidas princesas encantadas acodem todas

pressurosashellipEm volta das asas mortas satildeo como flores desfolhadas em

redor dum esquife negro E olhamhelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 199842) A

sabedoria feminina evidencia-se ao se manifestar a ldquoque tinha nos olhos uma

nostaacutelgica tristeza humanardquo (FLORBELA ESPANCA 199846) como uma matildee

protectora que acalenta o filho em seu sono profundo e compreende com

tristeza a dor dos mortais ou quem sabe sua proacutepria dor na condiccedilatildeo de

imortal pois somente aos deuses era permitido o poder de arrebatar o espiacuterito

21 Referecircncia as ninfas das aacuteguas da mitologia grega

23

a um homem ldquo E aquele que tinha sido um filho dos homens ficou a dormir na

eternidade como se fora um filho dos deusesrdquo (FLORBELA ESPANCA

199846)

Como podemos perceber Florbela em sua construccedilatildeo literaacuteria delineou nas

entrelinhas dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquoO Inventorrdquo aspectos simboacutelicos

determinantes do aprisionamento e da libertaccedilatildeo humana natildeo somente no

sentido denotativo mas tambeacutem conotativo na multiplicidade de sentidos que

tais palavras propotildeem Apesar da evidecircncia colocada pela escritora ainda nos

remete a reflexatildeo pois o aprisionamento pode ser um meio de libertaccedilatildeo e a

libertaccedilatildeo um aprisionamento ldquohellipOlhou o ceacuteu profundohellipe achou Ser aviador

eacutehellipabraccedilar no mesmo abraccedilo o ceacuteu e o mar Na linguagem dos siacutembolos a

acircncora definindo a esperanccedila nunca poderaacute valer as asas que satildeo a

libertaccedilatildeo A acircncora agarra-se ao fundo e fica as asas abrem-se no espaccedilo e

penetram o ceacuteuhellipSeria aviador Quando pela primeira vez voou natildeo se

esqueceu de sentar na carlinga a seu lado ao lado do seu coraccedilatildeo aquela

que dali em diante seria a companheira de todos os dias a companheira

indefectiacutevel de todos os aviadores a Morterdquo (FLORBELA ESPANCA 1998

129)

A produccedilatildeo intertextual desses dois contos traz-nos um imaginaacuterio voltado aos

princiacutepios fundadores de conceitos e referecircncia humana Florbela baseia-se na

representaccedilatildeo da infacircncia como elemento fundador da personalidade e do

caraacutecter ou seja a figura do pai que nunca a reconheceu em vida e por outro

lado na figura de Deacutedalo e Iacutecaro tendo o pai a dualidade em sua referecircncia

paterna Eacute assim que de ldquotentaccedilatildeo em tentaccedilatildeo de fraqueza em fraqueza os

compromissos de consciecircncia levam um homem honrado agrave praacutetica de todos os

crimeshelliprdquo22

22 Fragmento do conto O Inventor de Florbela Espanca As Maacutescaras do Destino1998122

24

22 - A MULTICIPLIDADE DO HEROacuteI

ldquo A vida parada e recolhida cria heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tarderdquo23

Ao encontrarmos facetas mitoloacutegicas entre as leituras de Florbela natildeo se pode

descartar a visatildeo do heroacutei que a autora engendrou na figura de seu irmatildeo

Apeles Tiacutetulo esse dado a homens excepcionais como Ulisses que eram

venerados por seu povo da mesma forma Florbela nutria uma verdadeira

veneraccedilatildeo que a levou a personificar o Aviador a um heroacutei merecedor de

honrarias e apesar da miacutesera condiccedilatildeo de mortal foi-lhe atribuiacutedo qualidades

fiacutesicas e morais dignas de um semideus ldquo A vida parada e recolhida cria

heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tardehellip o pincel de geacutenio daacute os uacuteltimos

retoques ao cenaacuterio de epopeiahellip laacute em cima a formidaacutevel apoteose desdobra-

se no meio do pasmo das coisas Eacute um homem que tem asas E as asas

pairam descem rodopiam ascendem de novo giram latejam batem ao sol

mais aacutegeis e mais robustas mais leves e mais possantes que as das aacuteguias Eacute

um homem A face eneacutergica vincada a cinzel emerge extraordinaacuteria da vida

intensa na indecisatildeo dos contornos que lhe fazem vagos e paacutelidos um vago

pano de fundo a face e as matildeoshellipOs muacutesculos da face adivinham na forccedila

brutal das maxilas cerradas Nos olhos leva visotildees que os filhos dos homens

natildeo conhecem Os olhos dele natildeo se vecircem olham para dentro e para fora satildeo

pedras como as das estaacutetuas e vecircem mais e mais para aleacutem do que as

miacuteseras pupilas humanas Satildeo astrosrdquo (FLORBELA ESPANCA 199838 e 39)

Esta mesma condiccedilatildeo eacute dada ao Inventor autor da imaginaccedilatildeo de Florbela

ldquoRealizara os seus sonhos todos os seus sonhos Que havia mais agora Jaacute

os homens podiam sulcar os ares sem medo aos vendavais agraves coacuteleras brutais

da Natureza jaacute o ceacuteu se podia coalhar de asas como o mar de velas Todo o

homem poderia ter sem perigo e sem riscos a cobiccedilada sensaccedilatildeo de

comandar nos elementos como um semideusrdquo (FLORBELA ESPANCA

1998133)

Sabemos que o heroacutei constitui o assunto da poesia eacutepica ele tem a sua

maneira proacutepria de agir pela sua coragem e bravura e prossegue objectivos

23 Fragmento do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca198837 e 38

25

bem determinados que ao longo de sua trajectoacuteria lhe satildeo atribuiacutedos cada qual

com sua importacircncia e valor Eacute dado a ele tambeacutem o poder de decisatildeo ora

sobre seus actos ora sobre si mesmo Isso como forma de valorizar sua

sabedoria e supremacia diante daqueles a quem defendia Assim se apresenta

o heroacutei dos contos de Florbela homem-deus detentor de toda visatildeo forte

dominador senhor supremo de seu destino a quem eacute concedido um lugar

eterno junto aos astros

A realidade fictiacutecia da mitologia eacute comparada aqui a realidade autecircntica

Florbela interessa-se pelo seu heroacutei fictiacutecio como se fosse ou tratasse de uma

pessoa real com isso podemos dizer que a escrita ficcional de Florbela eacute

mimese porque a realidade de sua vida humana eacute o seu material de escrita ela

consegue transformar a realidade objectiva na realidade subjectiva vivencial

razatildeo por que nos deixamos influenciar pela sua trajectoacuteria de vida em seus

escritos Isso justifica o fato da ldquovaliosa bravurardquo ndash por uma valiosa pintura - de

seu heroacutei ser retratado em uma tela por um titatilde24 personifica assim a grande

luta travada com as forccedilas da natureza ldquoEacute um Rembrandt pintado por um titatilderdquo

(FLORBELA ESPANCA 199839) A sua proacutepria natureza humana A propoacutesito

disso parece mais reportar ao paradoxo entre o bem e o mal que lutam

constantemente pelo domiacutenio da razatildeo interior talvez alvo de Florbela

Eacute interessante observar a relaccedilatildeo que existe entre o ldquohomem com asasrdquo com

as Harpias25 que na multi-significaccedilatildeo de seu discurso nos projecta a uma

realizaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo na figura do heroacutei alado em uma transposiccedilatildeo

imaginaacuteria com uma pluralidade de sentidos que poderia ocultar um sentido

uacutenico o seu proacuteprio desejo ou o desejo de arrebatar a alma de seu morto

Tambeacutem vemos a intertextualidade corrente na pessoa de Ulisses26 o heroacutei

grego navegante Robson Crusoeacute27 Piratas dos Sete Mares28 aos capitatildees e

24 Referecircncia a segunda geraccedilatildeo dos deus mitoloacutegicos representantes das forccedilas da natureza e sem uma

personalidade bem vincadaos quais Hesiacuteodo enumerou em doze seis machos e seis fecircmeas Oceano Ceacuteu

Crio Hiperiacuteon Jaacutepeto Cronos Teia Reja Teacutemis Mnemoacutesine Febe e Teacutetis 25 As Harpias filhas de Electra (ela proacutepria filha do Titatilde Oceano) e de Taumas (filho de Ponto e de Geia)

pertencem agrave geraccedilatildeo dos preacute-oliacutempicos Elas satildeo irmatildes de iacuteris a mensageira dos deuses Representadas

quer como mulheres aladas com um aspecto fameacutelico quer como paacutessaros com cabeccedila de mulher as

Harpias residem nas ilhas Estroacutefades do mar Egeu ou ainda agraves portas do Taacutertaro Impetuosas e brutais

como a tempestade as Harpias satildeo - este eacute o sentido do seu nome - raptoras com garras fortes 26 Odisseu (na Greacutecia) ou Ulisses (em Roma) eacute um personagem da Iliacuteada e da Odisseacuteia de Homero Apoacutes

a derrota dos troianos ele iniciou uma viagem de dez anos de volta para Iacutetaca onde a sua mulher o espera

com uma fidelidade obstinada apesar da demora Essa viagem mereceu a criaccedilatildeo por Homero do poema

26

navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a

coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a

solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o

enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio

multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos

diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio

Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os

naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de

navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS

Maacutescaras do Destino 1998 p 125)

Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada

com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a

renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que

convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos

escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a

partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental

aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A

viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas

suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte

recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os

heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas

ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o

navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira

de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que

nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era

eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que

deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-

1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado

a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe

herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico

sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O

romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como

tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar

que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os

Lusiacuteadas de Camotildees

27

no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo

da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)

Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida

funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo

conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente

nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de

alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva

Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer

tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos

heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os

portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens

tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que

de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os

navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por

deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da

Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do

texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute

simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no

poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES

1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou

passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da

Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas

natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer

vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de

ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um

heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com

o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas

forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um

aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem

mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva

30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos

Lisboa

Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal

28

presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de

Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura

greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito

especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela

escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a

morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem

para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de

transformaccedilatildeo fantaacutestica

Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que

na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena

confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir

uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute

infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu

desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma

personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo

inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade

aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios

filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa

escritora o seu carma

Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei

que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora

quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem

ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles

desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma

as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista

o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de

movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos

esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do

pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam

As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes

ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)

29

CAPIacuteTULO 03

31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS

ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de

doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32

No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute

intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em

todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do

proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade

de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma

comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro

cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser

estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute

antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de

alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas

oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir

as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava

perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o

fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo

para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que

muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da

escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e

complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e

pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma

formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela

graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa

assume

32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122

30

De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete

agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem

Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites

nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute

podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido

conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao

inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um

ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma

palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a

intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda

e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas

pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma

onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo

(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um

recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o

renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio

inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a

matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada

ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe

mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata

cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de

voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e

122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso

indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam

tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele

o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as

suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um

emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados

que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e

intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica

33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ

31

Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado

transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas

Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e

que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a

imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de

dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada

dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais

significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa

escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e

sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-

as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar

inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos

era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade

existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)

A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio

Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo

tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens

que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de

tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta

ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a

proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo

Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante

notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe

de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e

medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca

mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho

branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a

socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua

presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo

(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo

deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo

queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a

intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia

humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para

32

sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo

pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no

mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais

apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva

enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente

foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)

A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja

como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo

atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute

reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em

busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito

junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos

satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad

que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que

han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas

mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como

meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do

inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os

aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias

34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939

33

32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO

ldquoA vida vem em ondas

Como o mar

Num indo e vindo infinitohelliprdquo35

A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente

foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram

o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios

da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-

portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo

ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura

universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e

nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a

esquizofrenia de sua alma

O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos

grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma

visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes

de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-

racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas

fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma

encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no

espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada

ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar

duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava

que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se

35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos

em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria

imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia

grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios

Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e

cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam

da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela

Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a

sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor

34

sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o

olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de

um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o

seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No

reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que

constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia

Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor

das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que

participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na

claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma

a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial

apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se

imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA

ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta

solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser

acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas

pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de

existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas

dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma

mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar

agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)

As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar

aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de

Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a

37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta

nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet

tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido

advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte

de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga

(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre

1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a

questatildeo (Hamlet ato III cena I)

38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)

que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era

destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar

35

travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes

questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente

humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a

vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa

loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz

a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair

numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua

frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico

mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de

transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a

morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano

capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas

ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de

integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de

totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma

ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade

de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida

dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a

seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas

iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives

mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas

dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a

cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute

perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras

velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida

de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar

costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras

por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e

grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme

O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu

amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do

Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para

toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos

36

Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser

salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma

dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo

desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave

liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos

secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a

uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo

desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a

boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia

pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a

mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais

alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se

nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira

as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de

alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora

julga existir no seu misteacuterio

O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e

forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e

sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que

orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente

num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das

contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute

traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas

que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas

figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas

narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um

imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e

39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII

mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a

bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por

alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua

tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar

Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A

histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito

em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que

aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas

aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma

37

refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus

fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a

sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades

da dinacircmica universal

Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar

simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos

narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos

siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um

contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da

efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma

capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde

diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e

exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia

essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel

mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo

do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do

Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)

e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo

social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)

na representatividade literaacuteria do mar

38

CAPIacuteTULO 04

41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA

ldquoGosto de ti apaixonadamente

De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo

De ti que me trouxeste pela matildeo

Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40

Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso

a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade

directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na

poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua

dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees

Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita

capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e

um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz

e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a

dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas

conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute

e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria

serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem

quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto

anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse

em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita

maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte

com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e

quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e

emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos

paradoxos

40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no

livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004

Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo

Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11

39

Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos

toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-

romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido

num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia

com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes

profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas

sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo

acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando

a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A

derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a

conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas

da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da

sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No

entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas

romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a

impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo

definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha

aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento

em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o

passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era

tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto

A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos

acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-

Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs

Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os

Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de

Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de

Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o

egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo

narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica

Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute

neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o

poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem

40

esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma

essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no

iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma

questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos

encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem

sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos

interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas

as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um

exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo

tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo

daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita

conteacutem

41

42 - UM PERCURSO COMPARATIVO

ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os

vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e

outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que

ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute

foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41

ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto

Olhou em roda natildeo achou ningueacutem

Por entre as campas arrastando o manto

Com lentos passos caminhou aleacutem

Abandonado neste chatildeo repousa

Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui

Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa

Sobre este peito que bateu por tirdquo42

A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e

o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-

romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua

linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa

o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se

O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando

proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos

moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na

literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror

Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou

comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas

circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de

comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e

sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos

41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda

Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos

42

ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de

outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou

Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)

Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal

de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma

optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada

pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada

no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus

sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa

suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois

dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)

Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade

todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional

natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute

afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute

tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima

do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo

Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela

e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a

prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua

intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a

dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as

influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente

que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz

directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para

a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o

intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era

partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada

por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das

rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de

branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza

43

ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas

Longas roupagens de neveda cor

Singela croa de virgiacutenias rosas

Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43

ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de

branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila

devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa

nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)

Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de

conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se

para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da

imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a

partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a

presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os

uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem

eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera

absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor

ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria

A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a

intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um

testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista

e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas

caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da

temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao

fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma

retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras

masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo

homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma

mulher

43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12

44

(hellip)

Mulher formosa que adorei na vida

E que na tumba natildeo cessei damar

Por que atraiccediloas desleal mentida

O amor eterno que te ouvi jurar

Amor engano que na campa finda

Que a morte despe da ilusatildeo falaz

Quem dentros vivos se lembrara ainda

ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)

Talvez que rindo dos protestos nossos

Gozes com outro dinfernal prazer

E o olvido cobriraacute meus ossos

Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44

Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o

vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as

bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis

e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma

essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o

podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA

ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de

sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a

eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos

na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto

com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais

de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas

palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o

esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal

seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu

passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre

44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9

45

que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as

matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos

das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam

para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)

Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno

num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista

melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias

possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela

um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica

natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem

fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo

intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas

rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso

consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo

intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas

solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou

com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a

todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas

as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os

sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado

daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)

Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do

Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais

significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO

MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do

quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e

estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que

desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo

da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina

agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das

espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute

presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos

46

ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido

Das sepulturas o gelado poacute

Dois esqueletos um ao outro unido

Foram achados num sepulcro soacuterdquo45

Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de

imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da

intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo

buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma

enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo

recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as

laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas

deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo

sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais

moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas

austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade

dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete

palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam

pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e

59)

Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao

ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram

escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia

literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo

exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde

ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais

tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo

merecida

45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos

47

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas

interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca

Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo

depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves

transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo

sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia

ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas

metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver

com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao

sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas

tambeacutem ao que relaciona a morte

A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua

eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela

mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e

sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo

quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade

que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas

personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a

humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de

enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e

sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas

e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o

que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte

presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais

condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus

contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e

desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse

interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural

equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes

interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute

Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem

uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses

48

elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o

inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela

tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses

elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma

civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor

sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam

sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do

intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea

Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o

menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que

para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro

compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo

que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou

seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua

imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que

essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar

atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a

outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual

proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque

esconde-se ou projecta-se no discurso do outro

Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o

caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo

relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens

marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um

significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um

desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos

de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e

fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave

realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande

maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe

um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo

46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de

Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360

49

obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a

escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada

Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a

infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute

aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo

espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a

verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes

50

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Page 17: AS MÁSCARAS SIMBÓLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA … Jaqueline... · 2019-10-31 · A narrativa ficcional não é o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca, mas, assim como

17

fantaacutestico e soacute nos traacutes agrave lucidez da compreensatildeo devido as referecircncias

intertextuais as quais satildeo comuns aos contos pois ldquo o fantaacutestico se caracteiza

por una instrusioacuten brutal del misteacuterio en el marco de la vida real y estaacute ligado

generalmente a los estados moacuterbitos de la conciencia que en los fenoacutemenos

de pesadilla e de deliacuterio proyecta ante siacute imaacutegenes de sus angustias e de sus

terroresrdquo (GEORGES JEAN 1889 68 e 69) Mas a escritora natildeo desvincula-se

de sua obra uma forte tendecircncia de Florbela Marcando presenccedila no conto ldquoO

Resto Eacute Perfumerdquo interage como personagem assim assume o relato como

se procedesse de outro narrador para que pudesse penetraacute-lo e manter suas

caracteriacutesticas inquietantes e paradoxais acrescentando uma forte dose de

existencialismo e a presenccedila do ldquoEurdquo que vem reforccedilar a categoria de seus

relatos miacuteticos Aqui o ldquofantaacutesticordquo se confunde com o ldquomaravilhosordquo isso

devido aos relatos mitoloacutegicos que implica durante a leitura em um

redireccionamento do leitor a outro espaccedilo a outro tempo onde temos a ilusatildeo

de vivermos por um breve momento em outro lugar Florbela nos permite a

viagens imaginaacuterias em que o maravilhoso de seus contos dependeraacute de uma

infinidade de interpretaccedilotildees que natildeo seratildeo necessariamente interpretaccedilotildees

racionais pois as interpretaccedilotildees paralelas e divergentes satildeo sempre possiacuteveis

devido a riqueza do conto em si que no caso de Florbela estatildeo ligados aos

estados moacuterbidos de sua consciecircncia

Sabemos que algum dos elementos imaginaacuterios dos contos de Florbela estaacute

ligada ao realismo de sua histoacuteria verdadeira e isso eacute capaz pela virtudes que

soacute os contos de fadas pode proporcionar apesar de sua vida inconstante e

cheia de maacutegoas soube mascarar seu inconsciente e dar a seu relato um

intercacircmbio gracioso e sentimental com sua vida Por sua vez tais relatos

remetem-se a duas vertentes essenciais nos contos a primeira de propagar as

formas simboacutelicas durante a histoacuteria e a segunda de inserir essas formas

mediante a expansatildeo de sua escrita atraveacutes dos contos Um bom exemplo

disso eacute a clareza de como um conto complementa outro Atentemos para os

detalhes simboacutelicos de ldquoO Inventorrdquo que parece encerrar-se em ldquoO Aviadorrdquo da

mesma forma acontece em ldquoO Sobrenaturalrdquo e ldquoOs Mortos natildeo Voltamrdquo ldquoAs

Oraccedilotildees de Soror Maria da Purezardquo e ldquo A Paixatildeo de Manuel Garciardquo por fim

vemos a profunda reflexatildeo sobre a vida em ldquoO Resto eacute Perfumerdquo culminando

no conto ldquoA Mortardquo que tem em seu final a imersatildeo nas aacuteguas elemento

18

comum em todos os contos que parece como siacutembolo de redenccedilatildeo Temos

aqui um quadro para um estudo comparativo minucioso entre os proacuteprios

contos

Como afirma Agustina Bessa-Luiacutes ldquo para ler a prosa eacute preciso compreender a

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199816) Neste contexto natildeo ousamos falar

do quadro complexo que a palavra ldquomulherrdquo como um ser social objectiva mas

sim na simplicidade do comportamento de vaacuterias mulheres numa soacute imagem

constante nos contos que sente no seu intimo a dor da perca A primeira

referecircncia aqui eacute da mulher-irmatilde que vecirc no uacutenico irmatildeo morto a decadecircncia de

si mesma ldquo seraacute em breve uma sombra na tua sombrardquo (FLORBELA

ESPANCA 199832) Da mulher-matildee e o vazio de sua dor silenciosa ldquo A pobre

matildee abafou um soluccedilo voltou-se e olhou o mortordquo (FLORBELA ESPANCA

1998112) E por fim da mulher-religiosa que busca na cristandade respostas

para seus questionamentos e refuacutegio para seu tormento ldquomais fraacutegil mais

luminosa continuava a rezar as suas oraccedilotildeeshelliporaccedilotildees de amor sacriacutelegas

blasfemas oraccedilotildees de pecadohellipDe pecado Natildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA

1998154) Assim concebo a mulher Bela a compreensatildeo de sua escrita estaacute

nos olhos de quem as vecirc e na sensibilidade de a conhecer Desta feita ldquoa fase

dos equiacutevocos com que a gesta amorosa que a serve com a permanente

invenccedilatildeo de objectos meritoacuterios eacute substituiacuteda por uma feacute na alma feacute que se

acompanha do terriacutevel sentimento de estar morta de natildeo ser mais do que a

aparecircncia dum espaccedilo vividordquo (FLORBELA ESPANCA 199823) diz Agustina

Bessa-Luiacutes

Nesta obra duas propriedades do texto satildeo facilmente perceptiacuteveis a

intertextualidade e a influecircncia exercida em cada conto Essa uacuteltima

envolvendo as fortes caracteriacutesticas da escritora Florbela Espanca Contudo o

texto se constroacutei agrave medida que retoma fatos jaacute conhecidos como eacute o caso das

vaacuterias citaccedilotildees de autores e personagens que ilustram o livro Nesse sentido

quanto mais amplo for o repertoacuterio do leitor o seu acervo de conhecimentos

maior seraacute a sua competecircncia para perceber como os textos dialogam uns

com os outros por meio de referecircncias alusotildees e citaccedilotildees Eacute assim que

Florbela queria que a entendecircssemos atraveacutes de um diaacutelogo intriacutenseco para

descobrirmos suas maacutescaras

19

CAPIacuteTULO 02 21 - ldquoSONHO DE IacuteCAROrdquo

ldquoVoar voar subir subir

Ir por onde for descer ateacute o ceacuteu cair

Ou mudar de cor anjos de gaacutes

Asas de ilusatildeo e um sonho audaz

Feito um balatildeo

No ar no ar eu sou assim

Brilho do farol aleacutem do mais

Amargo fim simplesmente sol

Fugir meu bem eacute ser felizhellip

Ir ateacute que um dia chegue enfim

Em que o sol derreta a cera ateacute o fimrdquo18

A mitologia eacute uma das concepccedilotildees mais geniais que a humanidade produziu

Os gregos instauraram uma categoria intermediaacuteria entre os homens e os

deuses o semideus criando assim os heroacuteis mitoloacutegicos Isso veio a dar

margem a novas investigaccedilotildees sobre os fenoacutemenos da realidade natural

levando ao questionamento da origem dos seres a qual obtiveram respostas

sem sentido concreto Com isso incorporaram a concepccedilatildeo de que a vida e

suas manifestaccedilotildees satildeo obras das forccedilas do espiacuterito que habita em cada um

de noacutes sendo tambeacutem responsaacutevel pela nossa maneira de ser e de agir Isso eacute

sem duacutevida um meio de penetrar atraveacutes da imaginaccedilatildeo no misteacuterio da

existecircncia humana Desta forma o mito consiste nos acontecimentos que se

repetem ao longo da histoacuteria natildeo tendo fim O homem reconhecendo em cada

acto quotidiano uma participaccedilatildeo nos grandes ciclos da vida se sente

participar da grande eternidade miacutetica Partindo de suas origens o homem

consegue viver integralmente e uma vez dentro da mentalidade miacutetica a

proacutepria morte pode ter sentido

18 Fragmento da canccedilatildeo ldquosonho de Iacutecarordquo escrito por Pisca e Claacuteudio Rebelo interpretaccedilatildeo do cantor

brasileiro Byafra

20

Com o intuito de imortalizar o momento de uma trageacutedia Florbela lanccedila matildeo de

aspectos mitoloacutegicos dentro de seus contos que muito nos lembra a triste

histoacuteria de Deacutedalo e Iacutecaro 19 mostrando que o espiacuterito humano de vencer

barreiras e limites nos impulsiona a superar nossas proacuteprias limitaccedilotildees

Alcanccedilar o espaccedilo e as estrelas lanccedilar-se ao infinito experimentar da

sensaccedilatildeo de liberdade interior e o desvendar do misterioso infinito eacute o que

norteia o enredo dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquo O Inventorrdquo

Praticamente todas as culturas destacam o ceacuteu como um lugar especial Esse

local era normalmente designado como a morada dos deuses Muitos povos

consideravam que as constelaccedilotildees eram representaccedilotildees dos seus mitos e

lendas Dessa forma o ceacuteu era um lugar divino e os homens somente o

alcanccedilavam quando eram convidados ou homenageados pelos deuses Mas o

atrevimento de uns culminou na desgraccedila de outros Apenas aqueles com

sabedoria e dotado de iacutentima consciecircncia disciplinar sobre sua condiccedilatildeo

humana conseguiam graccedilas aos olhos dos deuses O conflito interior era um

grande empecilho para que fatos tivessem o desenrolar bem sucedidos

Quando isso natildeo acontecia o homem reconhecia sua condiccedilatildeo de inferioridade

em relaccedilatildeo aos deuses e eram designados ldquofilhos dos homensrdquo

O aparecimento da referecircncia mitoloacutegica pressupotildee uma forte ligaccedilatildeo aos elos

do mito de fundaccedilatildeo que sustenta a harmonia familiar juntamente com

preceitos de moral tendo por priori a identidade pessoal na figura paterna

como eram conhecidos os grandes heroacuteis mitoloacutegicos por serem semideuses

Nesta constante nos eacute dado a conhecer a condiccedilatildeo humana que tambeacutem

aparece de forma intertextualizada como referecircncia ao quadro do flamengo

19 Iacutecaro era filho de Deacutedalo o construtor do labirinto que o rei Minos aprisionava o Minotauro um ser

com corpo de homem e cabeccedila de touro A lenda grega conta que Deacutedalo ensinou Teseu que seria

devorado juntamente com outros jovens pelo monstro como sair do labirinto Deacutedalo sugeriu que ele

deveria utilizar um novelo que deveria ser desenrolado a medida em que fosse penetrando no labirinto

Dessa forma apoacutes ter matado o monstro ele conseguiu fugir do labirinto O rei Minos ficou furioso e

prendeu Deacutedalo e o seu filho Iacutecaro no labirinto Como o rei tinha deixado guardas vigiando as saiacutedas

Deacutedalo construiu asas com penas dos paacutessaros colando-as com cera Antes de levantar voo o pai

recomendou a Iacutecaro que quando ambos estivessem voando natildeo deveriam voar nem muito alto (perto do

Sol cujo calor derreteria a cera) e nem muito baixo (perto do mar pois a unidade tornaria as asas

pesadas) Entretanto a sensaccedilatildeo de voar foi tatildeo estonteante para Iacutecaro que ele esqueceu a recomendaccedilatildeo e

elevou-se tanto nos ares a ponto da previsatildeo de Deacutedalo ocorrer A cera derreteu e Iacutecaro perdeu as asas

precipitando-se no mar e morrendo afogado

21

Brueghel (a Queda de Iacutecaro)20 que Florbela tatildeo bem ilustra com uma descriccedilatildeo

que mais parece uma tela ldquo Os filhos dos homens caacute em baixo deixam cair

nos campos a enxada que faz nascer o patildeo e florir as rosas os pescadores

largam os remos audaciosos que rasgam os mares e os rios e os filhos dos

homens mais duramente castigados os que habitam o formigueiro das cidades

param nas suas insensatas correrias de formigas e todos voltam a face para o

ceacuteurdquo (FLORBELA ESPANCA 199838) Aqui a intertextualidade sugerida

numa linha ecfraacutestica vai de encontro a misteriosa temaacutetica de Florbela

significando isto que o espiacuterito de aventura eacute frequentemente motivo de

incompreensatildeo e de grande solidatildeo

Do mesmo modo que impotildee a condiccedilatildeo de mortal ao homem Florbela o

enaltece dando-lhe honrarias e elevando-o a condiccedilatildeo de um deus ldquo Nos olhos

leva visotildees que os filhos dos homens natildeo conhecem Eacute um homem Deixou laacute

em baixo todo o fardo pesado e vil com que o carregam ao nascer deixou laacute

em baixo todas as algemas todos os feacuterreos grilhotildees que o prendiam toda a

suprema maldiccedilatildeo de ter nascido homem deixou laacute em baixo a sua sacola de

pedinte o seu bordatildeo de Judeu Errante e livre indoacutemito sereno na sua

miacutesera couraccedila de pano azul estendeu em cruz os braccedilos que transformou em

asasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199839) Ao atingir tal supremacia o homem

liberta-se de sua vida anterior e ganha autonomia na forma da liberdade

intriacutenseca conseguindo a superaccedilatildeo de sua forma decadente e de seus

conflitos interiores atraveacutes da liberdade celestial alcanccedilada Deacutedalo foi

conhecido como o arquitecto e artista da liberdade mesmo tendo construiacutedo o

labirinto que eacute a representaccedilatildeo do aprisionamento Aqui Florbela utiliza desse

argumento como se seus escritos fossem labiriacutenticos e teriacuteamos de encontrar

as palavras certas para desvendarmos seus caminhos encontrando neles

assim a liberdade Essa mesma liberdade transformada aqui no voo mais alto

que levaria a traacutegica morte

Apesar de mostrada diferentemente temos aqui mais uma vez a dualidade

que percorre a obra de Florbela o aprisionamento e a liberdade a vida e a

morte antiacuteteses que perfilam seu anseio humano ldquo Um dia julgou ter achado

20 Quadro de Broeghel demonstrando a queda de Iacutecaro no mar enquanto os camponeses prosseguem a sua

labuta diaacuteria

22

Oh aquele dia A embriaguez do homem que se igualou a Deus O coraccedilatildeo a

bater a bater a sentir-se grande demais para um peito tatildeo pequeno para um

tatildeo mesquinho destino A humidade das laacutegrimas a embaciar o olhar gigante

que se esquecera um momento de ter nascido pigmeu O artista o poeta o

inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de movimento e de

vida todos os que desbravavam caminhos os que talham abrem por entre os

matagais selvagens e as belas estradas largas do pensamento e das ideias As

palavras satildeo o muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes

ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)

Ao atingir o voo pleno por vezes nos afastamos da realidade natural e nos

lanccedilamos ao desconhecido sem saber o que nos espera Com isso a queda eacute

inevitaacutevel Neste seguimento vemos a intertextualidade presente sob o estigma

dos cuidados de Zeus filho de Cromo e pai dos deuses que concedeu aos

heroacuteis uma morada afastada dos homens onde os semideuses pudessem se

estabelecer nos confins da terra Eacute laacute que habitam com o coraccedilatildeo livre de

cuidados nas Ilhas dos Bem-Aventurados nas praias dos turbilhotildees profundos

do Oceano satildeo eles os heroacuteis afortunados a quem Florbela tambeacutem concede

a morada preparada como tuacutemulo perfeito para o descanso eterno A

representaccedilatildeo das deusas das aacuteguas na presenccedila das ninfas efidriacuteades21 que

simbolizam a graccedila criativa e fecundadora da natureza fazem aparecer a

presenccedila feminina que surge com o intuito de exaltar a forccedila interior que so a

mulher tem para defrontar situaccedilotildees desastrosas e encontrar soluccedilatildeo nos mais

tenebrosos conflitos bem como de dar um toque de suavidade ternura beleza

e leveza que soacute a performance feminina consegue impor ldquo hellipAs filhas dos

deuses ondinas sereias nereidas princesas encantadas acodem todas

pressurosashellipEm volta das asas mortas satildeo como flores desfolhadas em

redor dum esquife negro E olhamhelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 199842) A

sabedoria feminina evidencia-se ao se manifestar a ldquoque tinha nos olhos uma

nostaacutelgica tristeza humanardquo (FLORBELA ESPANCA 199846) como uma matildee

protectora que acalenta o filho em seu sono profundo e compreende com

tristeza a dor dos mortais ou quem sabe sua proacutepria dor na condiccedilatildeo de

imortal pois somente aos deuses era permitido o poder de arrebatar o espiacuterito

21 Referecircncia as ninfas das aacuteguas da mitologia grega

23

a um homem ldquo E aquele que tinha sido um filho dos homens ficou a dormir na

eternidade como se fora um filho dos deusesrdquo (FLORBELA ESPANCA

199846)

Como podemos perceber Florbela em sua construccedilatildeo literaacuteria delineou nas

entrelinhas dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquoO Inventorrdquo aspectos simboacutelicos

determinantes do aprisionamento e da libertaccedilatildeo humana natildeo somente no

sentido denotativo mas tambeacutem conotativo na multiplicidade de sentidos que

tais palavras propotildeem Apesar da evidecircncia colocada pela escritora ainda nos

remete a reflexatildeo pois o aprisionamento pode ser um meio de libertaccedilatildeo e a

libertaccedilatildeo um aprisionamento ldquohellipOlhou o ceacuteu profundohellipe achou Ser aviador

eacutehellipabraccedilar no mesmo abraccedilo o ceacuteu e o mar Na linguagem dos siacutembolos a

acircncora definindo a esperanccedila nunca poderaacute valer as asas que satildeo a

libertaccedilatildeo A acircncora agarra-se ao fundo e fica as asas abrem-se no espaccedilo e

penetram o ceacuteuhellipSeria aviador Quando pela primeira vez voou natildeo se

esqueceu de sentar na carlinga a seu lado ao lado do seu coraccedilatildeo aquela

que dali em diante seria a companheira de todos os dias a companheira

indefectiacutevel de todos os aviadores a Morterdquo (FLORBELA ESPANCA 1998

129)

A produccedilatildeo intertextual desses dois contos traz-nos um imaginaacuterio voltado aos

princiacutepios fundadores de conceitos e referecircncia humana Florbela baseia-se na

representaccedilatildeo da infacircncia como elemento fundador da personalidade e do

caraacutecter ou seja a figura do pai que nunca a reconheceu em vida e por outro

lado na figura de Deacutedalo e Iacutecaro tendo o pai a dualidade em sua referecircncia

paterna Eacute assim que de ldquotentaccedilatildeo em tentaccedilatildeo de fraqueza em fraqueza os

compromissos de consciecircncia levam um homem honrado agrave praacutetica de todos os

crimeshelliprdquo22

22 Fragmento do conto O Inventor de Florbela Espanca As Maacutescaras do Destino1998122

24

22 - A MULTICIPLIDADE DO HEROacuteI

ldquo A vida parada e recolhida cria heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tarderdquo23

Ao encontrarmos facetas mitoloacutegicas entre as leituras de Florbela natildeo se pode

descartar a visatildeo do heroacutei que a autora engendrou na figura de seu irmatildeo

Apeles Tiacutetulo esse dado a homens excepcionais como Ulisses que eram

venerados por seu povo da mesma forma Florbela nutria uma verdadeira

veneraccedilatildeo que a levou a personificar o Aviador a um heroacutei merecedor de

honrarias e apesar da miacutesera condiccedilatildeo de mortal foi-lhe atribuiacutedo qualidades

fiacutesicas e morais dignas de um semideus ldquo A vida parada e recolhida cria

heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tardehellip o pincel de geacutenio daacute os uacuteltimos

retoques ao cenaacuterio de epopeiahellip laacute em cima a formidaacutevel apoteose desdobra-

se no meio do pasmo das coisas Eacute um homem que tem asas E as asas

pairam descem rodopiam ascendem de novo giram latejam batem ao sol

mais aacutegeis e mais robustas mais leves e mais possantes que as das aacuteguias Eacute

um homem A face eneacutergica vincada a cinzel emerge extraordinaacuteria da vida

intensa na indecisatildeo dos contornos que lhe fazem vagos e paacutelidos um vago

pano de fundo a face e as matildeoshellipOs muacutesculos da face adivinham na forccedila

brutal das maxilas cerradas Nos olhos leva visotildees que os filhos dos homens

natildeo conhecem Os olhos dele natildeo se vecircem olham para dentro e para fora satildeo

pedras como as das estaacutetuas e vecircem mais e mais para aleacutem do que as

miacuteseras pupilas humanas Satildeo astrosrdquo (FLORBELA ESPANCA 199838 e 39)

Esta mesma condiccedilatildeo eacute dada ao Inventor autor da imaginaccedilatildeo de Florbela

ldquoRealizara os seus sonhos todos os seus sonhos Que havia mais agora Jaacute

os homens podiam sulcar os ares sem medo aos vendavais agraves coacuteleras brutais

da Natureza jaacute o ceacuteu se podia coalhar de asas como o mar de velas Todo o

homem poderia ter sem perigo e sem riscos a cobiccedilada sensaccedilatildeo de

comandar nos elementos como um semideusrdquo (FLORBELA ESPANCA

1998133)

Sabemos que o heroacutei constitui o assunto da poesia eacutepica ele tem a sua

maneira proacutepria de agir pela sua coragem e bravura e prossegue objectivos

23 Fragmento do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca198837 e 38

25

bem determinados que ao longo de sua trajectoacuteria lhe satildeo atribuiacutedos cada qual

com sua importacircncia e valor Eacute dado a ele tambeacutem o poder de decisatildeo ora

sobre seus actos ora sobre si mesmo Isso como forma de valorizar sua

sabedoria e supremacia diante daqueles a quem defendia Assim se apresenta

o heroacutei dos contos de Florbela homem-deus detentor de toda visatildeo forte

dominador senhor supremo de seu destino a quem eacute concedido um lugar

eterno junto aos astros

A realidade fictiacutecia da mitologia eacute comparada aqui a realidade autecircntica

Florbela interessa-se pelo seu heroacutei fictiacutecio como se fosse ou tratasse de uma

pessoa real com isso podemos dizer que a escrita ficcional de Florbela eacute

mimese porque a realidade de sua vida humana eacute o seu material de escrita ela

consegue transformar a realidade objectiva na realidade subjectiva vivencial

razatildeo por que nos deixamos influenciar pela sua trajectoacuteria de vida em seus

escritos Isso justifica o fato da ldquovaliosa bravurardquo ndash por uma valiosa pintura - de

seu heroacutei ser retratado em uma tela por um titatilde24 personifica assim a grande

luta travada com as forccedilas da natureza ldquoEacute um Rembrandt pintado por um titatilderdquo

(FLORBELA ESPANCA 199839) A sua proacutepria natureza humana A propoacutesito

disso parece mais reportar ao paradoxo entre o bem e o mal que lutam

constantemente pelo domiacutenio da razatildeo interior talvez alvo de Florbela

Eacute interessante observar a relaccedilatildeo que existe entre o ldquohomem com asasrdquo com

as Harpias25 que na multi-significaccedilatildeo de seu discurso nos projecta a uma

realizaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo na figura do heroacutei alado em uma transposiccedilatildeo

imaginaacuteria com uma pluralidade de sentidos que poderia ocultar um sentido

uacutenico o seu proacuteprio desejo ou o desejo de arrebatar a alma de seu morto

Tambeacutem vemos a intertextualidade corrente na pessoa de Ulisses26 o heroacutei

grego navegante Robson Crusoeacute27 Piratas dos Sete Mares28 aos capitatildees e

24 Referecircncia a segunda geraccedilatildeo dos deus mitoloacutegicos representantes das forccedilas da natureza e sem uma

personalidade bem vincadaos quais Hesiacuteodo enumerou em doze seis machos e seis fecircmeas Oceano Ceacuteu

Crio Hiperiacuteon Jaacutepeto Cronos Teia Reja Teacutemis Mnemoacutesine Febe e Teacutetis 25 As Harpias filhas de Electra (ela proacutepria filha do Titatilde Oceano) e de Taumas (filho de Ponto e de Geia)

pertencem agrave geraccedilatildeo dos preacute-oliacutempicos Elas satildeo irmatildes de iacuteris a mensageira dos deuses Representadas

quer como mulheres aladas com um aspecto fameacutelico quer como paacutessaros com cabeccedila de mulher as

Harpias residem nas ilhas Estroacutefades do mar Egeu ou ainda agraves portas do Taacutertaro Impetuosas e brutais

como a tempestade as Harpias satildeo - este eacute o sentido do seu nome - raptoras com garras fortes 26 Odisseu (na Greacutecia) ou Ulisses (em Roma) eacute um personagem da Iliacuteada e da Odisseacuteia de Homero Apoacutes

a derrota dos troianos ele iniciou uma viagem de dez anos de volta para Iacutetaca onde a sua mulher o espera

com uma fidelidade obstinada apesar da demora Essa viagem mereceu a criaccedilatildeo por Homero do poema

26

navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a

coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a

solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o

enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio

multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos

diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio

Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os

naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de

navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS

Maacutescaras do Destino 1998 p 125)

Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada

com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a

renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que

convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos

escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a

partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental

aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A

viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas

suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte

recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os

heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas

ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o

navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira

de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que

nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era

eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que

deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-

1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado

a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe

herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico

sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O

romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como

tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar

que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os

Lusiacuteadas de Camotildees

27

no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo

da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)

Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida

funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo

conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente

nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de

alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva

Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer

tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos

heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os

portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens

tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que

de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os

navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por

deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da

Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do

texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute

simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no

poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES

1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou

passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da

Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas

natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer

vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de

ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um

heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com

o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas

forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um

aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem

mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva

30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos

Lisboa

Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal

28

presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de

Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura

greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito

especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela

escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a

morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem

para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de

transformaccedilatildeo fantaacutestica

Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que

na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena

confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir

uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute

infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu

desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma

personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo

inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade

aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios

filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa

escritora o seu carma

Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei

que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora

quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem

ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles

desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma

as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista

o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de

movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos

esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do

pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam

As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes

ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)

29

CAPIacuteTULO 03

31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS

ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de

doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32

No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute

intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em

todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do

proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade

de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma

comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro

cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser

estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute

antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de

alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas

oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir

as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava

perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o

fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo

para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que

muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da

escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e

complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e

pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma

formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela

graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa

assume

32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122

30

De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete

agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem

Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites

nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute

podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido

conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao

inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um

ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma

palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a

intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda

e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas

pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma

onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo

(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um

recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o

renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio

inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a

matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada

ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe

mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata

cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de

voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e

122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso

indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam

tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele

o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as

suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um

emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados

que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e

intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica

33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ

31

Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado

transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas

Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e

que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a

imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de

dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada

dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais

significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa

escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e

sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-

as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar

inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos

era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade

existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)

A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio

Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo

tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens

que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de

tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta

ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a

proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo

Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante

notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe

de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e

medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca

mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho

branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a

socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua

presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo

(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo

deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo

queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a

intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia

humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para

32

sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo

pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no

mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais

apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva

enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente

foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)

A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja

como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo

atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute

reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em

busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito

junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos

satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad

que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que

han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas

mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como

meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do

inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os

aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias

34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939

33

32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO

ldquoA vida vem em ondas

Como o mar

Num indo e vindo infinitohelliprdquo35

A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente

foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram

o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios

da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-

portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo

ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura

universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e

nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a

esquizofrenia de sua alma

O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos

grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma

visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes

de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-

racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas

fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma

encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no

espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada

ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar

duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava

que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se

35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos

em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria

imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia

grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios

Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e

cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam

da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela

Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a

sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor

34

sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o

olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de

um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o

seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No

reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que

constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia

Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor

das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que

participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na

claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma

a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial

apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se

imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA

ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta

solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser

acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas

pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de

existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas

dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma

mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar

agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)

As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar

aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de

Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a

37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta

nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet

tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido

advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte

de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga

(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre

1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a

questatildeo (Hamlet ato III cena I)

38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)

que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era

destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar

35

travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes

questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente

humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a

vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa

loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz

a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair

numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua

frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico

mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de

transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a

morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano

capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas

ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de

integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de

totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma

ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade

de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida

dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a

seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas

iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives

mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas

dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a

cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute

perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras

velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida

de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar

costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras

por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e

grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme

O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu

amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do

Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para

toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos

36

Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser

salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma

dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo

desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave

liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos

secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a

uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo

desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a

boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia

pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a

mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais

alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se

nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira

as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de

alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora

julga existir no seu misteacuterio

O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e

forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e

sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que

orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente

num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das

contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute

traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas

que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas

figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas

narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um

imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e

39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII

mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a

bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por

alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua

tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar

Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A

histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito

em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que

aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas

aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma

37

refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus

fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a

sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades

da dinacircmica universal

Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar

simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos

narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos

siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um

contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da

efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma

capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde

diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e

exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia

essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel

mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo

do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do

Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)

e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo

social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)

na representatividade literaacuteria do mar

38

CAPIacuteTULO 04

41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA

ldquoGosto de ti apaixonadamente

De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo

De ti que me trouxeste pela matildeo

Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40

Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso

a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade

directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na

poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua

dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees

Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita

capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e

um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz

e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a

dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas

conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute

e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria

serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem

quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto

anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse

em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita

maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte

com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e

quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e

emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos

paradoxos

40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no

livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004

Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo

Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11

39

Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos

toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-

romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido

num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia

com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes

profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas

sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo

acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando

a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A

derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a

conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas

da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da

sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No

entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas

romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a

impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo

definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha

aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento

em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o

passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era

tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto

A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos

acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-

Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs

Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os

Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de

Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de

Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o

egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo

narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica

Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute

neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o

poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem

40

esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma

essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no

iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma

questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos

encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem

sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos

interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas

as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um

exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo

tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo

daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita

conteacutem

41

42 - UM PERCURSO COMPARATIVO

ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os

vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e

outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que

ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute

foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41

ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto

Olhou em roda natildeo achou ningueacutem

Por entre as campas arrastando o manto

Com lentos passos caminhou aleacutem

Abandonado neste chatildeo repousa

Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui

Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa

Sobre este peito que bateu por tirdquo42

A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e

o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-

romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua

linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa

o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se

O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando

proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos

moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na

literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror

Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou

comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas

circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de

comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e

sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos

41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda

Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos

42

ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de

outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou

Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)

Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal

de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma

optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada

pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada

no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus

sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa

suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois

dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)

Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade

todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional

natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute

afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute

tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima

do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo

Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela

e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a

prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua

intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a

dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as

influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente

que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz

directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para

a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o

intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era

partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada

por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das

rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de

branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza

43

ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas

Longas roupagens de neveda cor

Singela croa de virgiacutenias rosas

Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43

ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de

branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila

devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa

nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)

Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de

conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se

para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da

imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a

partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a

presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os

uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem

eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera

absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor

ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria

A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a

intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um

testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista

e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas

caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da

temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao

fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma

retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras

masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo

homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma

mulher

43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12

44

(hellip)

Mulher formosa que adorei na vida

E que na tumba natildeo cessei damar

Por que atraiccediloas desleal mentida

O amor eterno que te ouvi jurar

Amor engano que na campa finda

Que a morte despe da ilusatildeo falaz

Quem dentros vivos se lembrara ainda

ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)

Talvez que rindo dos protestos nossos

Gozes com outro dinfernal prazer

E o olvido cobriraacute meus ossos

Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44

Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o

vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as

bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis

e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma

essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o

podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA

ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de

sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a

eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos

na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto

com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais

de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas

palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o

esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal

seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu

passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre

44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9

45

que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as

matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos

das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam

para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)

Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno

num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista

melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias

possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela

um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica

natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem

fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo

intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas

rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso

consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo

intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas

solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou

com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a

todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas

as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os

sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado

daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)

Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do

Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais

significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO

MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do

quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e

estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que

desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo

da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina

agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das

espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute

presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos

46

ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido

Das sepulturas o gelado poacute

Dois esqueletos um ao outro unido

Foram achados num sepulcro soacuterdquo45

Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de

imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da

intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo

buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma

enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo

recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as

laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas

deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo

sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais

moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas

austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade

dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete

palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam

pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e

59)

Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao

ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram

escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia

literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo

exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde

ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais

tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo

merecida

45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos

47

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas

interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca

Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo

depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves

transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo

sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia

ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas

metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver

com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao

sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas

tambeacutem ao que relaciona a morte

A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua

eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela

mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e

sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo

quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade

que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas

personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a

humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de

enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e

sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas

e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o

que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte

presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais

condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus

contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e

desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse

interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural

equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes

interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute

Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem

uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses

48

elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o

inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela

tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses

elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma

civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor

sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam

sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do

intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea

Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o

menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que

para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro

compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo

que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou

seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua

imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que

essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar

atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a

outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual

proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque

esconde-se ou projecta-se no discurso do outro

Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o

caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo

relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens

marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um

significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um

desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos

de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e

fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave

realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande

maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe

um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo

46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de

Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360

49

obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a

escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada

Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a

infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute

aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo

espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a

verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes

50

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Page 18: AS MÁSCARAS SIMBÓLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA … Jaqueline... · 2019-10-31 · A narrativa ficcional não é o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca, mas, assim como

18

comum em todos os contos que parece como siacutembolo de redenccedilatildeo Temos

aqui um quadro para um estudo comparativo minucioso entre os proacuteprios

contos

Como afirma Agustina Bessa-Luiacutes ldquo para ler a prosa eacute preciso compreender a

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199816) Neste contexto natildeo ousamos falar

do quadro complexo que a palavra ldquomulherrdquo como um ser social objectiva mas

sim na simplicidade do comportamento de vaacuterias mulheres numa soacute imagem

constante nos contos que sente no seu intimo a dor da perca A primeira

referecircncia aqui eacute da mulher-irmatilde que vecirc no uacutenico irmatildeo morto a decadecircncia de

si mesma ldquo seraacute em breve uma sombra na tua sombrardquo (FLORBELA

ESPANCA 199832) Da mulher-matildee e o vazio de sua dor silenciosa ldquo A pobre

matildee abafou um soluccedilo voltou-se e olhou o mortordquo (FLORBELA ESPANCA

1998112) E por fim da mulher-religiosa que busca na cristandade respostas

para seus questionamentos e refuacutegio para seu tormento ldquomais fraacutegil mais

luminosa continuava a rezar as suas oraccedilotildeeshelliporaccedilotildees de amor sacriacutelegas

blasfemas oraccedilotildees de pecadohellipDe pecado Natildeohelliprdquo (FLORBELA ESPANCA

1998154) Assim concebo a mulher Bela a compreensatildeo de sua escrita estaacute

nos olhos de quem as vecirc e na sensibilidade de a conhecer Desta feita ldquoa fase

dos equiacutevocos com que a gesta amorosa que a serve com a permanente

invenccedilatildeo de objectos meritoacuterios eacute substituiacuteda por uma feacute na alma feacute que se

acompanha do terriacutevel sentimento de estar morta de natildeo ser mais do que a

aparecircncia dum espaccedilo vividordquo (FLORBELA ESPANCA 199823) diz Agustina

Bessa-Luiacutes

Nesta obra duas propriedades do texto satildeo facilmente perceptiacuteveis a

intertextualidade e a influecircncia exercida em cada conto Essa uacuteltima

envolvendo as fortes caracteriacutesticas da escritora Florbela Espanca Contudo o

texto se constroacutei agrave medida que retoma fatos jaacute conhecidos como eacute o caso das

vaacuterias citaccedilotildees de autores e personagens que ilustram o livro Nesse sentido

quanto mais amplo for o repertoacuterio do leitor o seu acervo de conhecimentos

maior seraacute a sua competecircncia para perceber como os textos dialogam uns

com os outros por meio de referecircncias alusotildees e citaccedilotildees Eacute assim que

Florbela queria que a entendecircssemos atraveacutes de um diaacutelogo intriacutenseco para

descobrirmos suas maacutescaras

19

CAPIacuteTULO 02 21 - ldquoSONHO DE IacuteCAROrdquo

ldquoVoar voar subir subir

Ir por onde for descer ateacute o ceacuteu cair

Ou mudar de cor anjos de gaacutes

Asas de ilusatildeo e um sonho audaz

Feito um balatildeo

No ar no ar eu sou assim

Brilho do farol aleacutem do mais

Amargo fim simplesmente sol

Fugir meu bem eacute ser felizhellip

Ir ateacute que um dia chegue enfim

Em que o sol derreta a cera ateacute o fimrdquo18

A mitologia eacute uma das concepccedilotildees mais geniais que a humanidade produziu

Os gregos instauraram uma categoria intermediaacuteria entre os homens e os

deuses o semideus criando assim os heroacuteis mitoloacutegicos Isso veio a dar

margem a novas investigaccedilotildees sobre os fenoacutemenos da realidade natural

levando ao questionamento da origem dos seres a qual obtiveram respostas

sem sentido concreto Com isso incorporaram a concepccedilatildeo de que a vida e

suas manifestaccedilotildees satildeo obras das forccedilas do espiacuterito que habita em cada um

de noacutes sendo tambeacutem responsaacutevel pela nossa maneira de ser e de agir Isso eacute

sem duacutevida um meio de penetrar atraveacutes da imaginaccedilatildeo no misteacuterio da

existecircncia humana Desta forma o mito consiste nos acontecimentos que se

repetem ao longo da histoacuteria natildeo tendo fim O homem reconhecendo em cada

acto quotidiano uma participaccedilatildeo nos grandes ciclos da vida se sente

participar da grande eternidade miacutetica Partindo de suas origens o homem

consegue viver integralmente e uma vez dentro da mentalidade miacutetica a

proacutepria morte pode ter sentido

18 Fragmento da canccedilatildeo ldquosonho de Iacutecarordquo escrito por Pisca e Claacuteudio Rebelo interpretaccedilatildeo do cantor

brasileiro Byafra

20

Com o intuito de imortalizar o momento de uma trageacutedia Florbela lanccedila matildeo de

aspectos mitoloacutegicos dentro de seus contos que muito nos lembra a triste

histoacuteria de Deacutedalo e Iacutecaro 19 mostrando que o espiacuterito humano de vencer

barreiras e limites nos impulsiona a superar nossas proacuteprias limitaccedilotildees

Alcanccedilar o espaccedilo e as estrelas lanccedilar-se ao infinito experimentar da

sensaccedilatildeo de liberdade interior e o desvendar do misterioso infinito eacute o que

norteia o enredo dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquo O Inventorrdquo

Praticamente todas as culturas destacam o ceacuteu como um lugar especial Esse

local era normalmente designado como a morada dos deuses Muitos povos

consideravam que as constelaccedilotildees eram representaccedilotildees dos seus mitos e

lendas Dessa forma o ceacuteu era um lugar divino e os homens somente o

alcanccedilavam quando eram convidados ou homenageados pelos deuses Mas o

atrevimento de uns culminou na desgraccedila de outros Apenas aqueles com

sabedoria e dotado de iacutentima consciecircncia disciplinar sobre sua condiccedilatildeo

humana conseguiam graccedilas aos olhos dos deuses O conflito interior era um

grande empecilho para que fatos tivessem o desenrolar bem sucedidos

Quando isso natildeo acontecia o homem reconhecia sua condiccedilatildeo de inferioridade

em relaccedilatildeo aos deuses e eram designados ldquofilhos dos homensrdquo

O aparecimento da referecircncia mitoloacutegica pressupotildee uma forte ligaccedilatildeo aos elos

do mito de fundaccedilatildeo que sustenta a harmonia familiar juntamente com

preceitos de moral tendo por priori a identidade pessoal na figura paterna

como eram conhecidos os grandes heroacuteis mitoloacutegicos por serem semideuses

Nesta constante nos eacute dado a conhecer a condiccedilatildeo humana que tambeacutem

aparece de forma intertextualizada como referecircncia ao quadro do flamengo

19 Iacutecaro era filho de Deacutedalo o construtor do labirinto que o rei Minos aprisionava o Minotauro um ser

com corpo de homem e cabeccedila de touro A lenda grega conta que Deacutedalo ensinou Teseu que seria

devorado juntamente com outros jovens pelo monstro como sair do labirinto Deacutedalo sugeriu que ele

deveria utilizar um novelo que deveria ser desenrolado a medida em que fosse penetrando no labirinto

Dessa forma apoacutes ter matado o monstro ele conseguiu fugir do labirinto O rei Minos ficou furioso e

prendeu Deacutedalo e o seu filho Iacutecaro no labirinto Como o rei tinha deixado guardas vigiando as saiacutedas

Deacutedalo construiu asas com penas dos paacutessaros colando-as com cera Antes de levantar voo o pai

recomendou a Iacutecaro que quando ambos estivessem voando natildeo deveriam voar nem muito alto (perto do

Sol cujo calor derreteria a cera) e nem muito baixo (perto do mar pois a unidade tornaria as asas

pesadas) Entretanto a sensaccedilatildeo de voar foi tatildeo estonteante para Iacutecaro que ele esqueceu a recomendaccedilatildeo e

elevou-se tanto nos ares a ponto da previsatildeo de Deacutedalo ocorrer A cera derreteu e Iacutecaro perdeu as asas

precipitando-se no mar e morrendo afogado

21

Brueghel (a Queda de Iacutecaro)20 que Florbela tatildeo bem ilustra com uma descriccedilatildeo

que mais parece uma tela ldquo Os filhos dos homens caacute em baixo deixam cair

nos campos a enxada que faz nascer o patildeo e florir as rosas os pescadores

largam os remos audaciosos que rasgam os mares e os rios e os filhos dos

homens mais duramente castigados os que habitam o formigueiro das cidades

param nas suas insensatas correrias de formigas e todos voltam a face para o

ceacuteurdquo (FLORBELA ESPANCA 199838) Aqui a intertextualidade sugerida

numa linha ecfraacutestica vai de encontro a misteriosa temaacutetica de Florbela

significando isto que o espiacuterito de aventura eacute frequentemente motivo de

incompreensatildeo e de grande solidatildeo

Do mesmo modo que impotildee a condiccedilatildeo de mortal ao homem Florbela o

enaltece dando-lhe honrarias e elevando-o a condiccedilatildeo de um deus ldquo Nos olhos

leva visotildees que os filhos dos homens natildeo conhecem Eacute um homem Deixou laacute

em baixo todo o fardo pesado e vil com que o carregam ao nascer deixou laacute

em baixo todas as algemas todos os feacuterreos grilhotildees que o prendiam toda a

suprema maldiccedilatildeo de ter nascido homem deixou laacute em baixo a sua sacola de

pedinte o seu bordatildeo de Judeu Errante e livre indoacutemito sereno na sua

miacutesera couraccedila de pano azul estendeu em cruz os braccedilos que transformou em

asasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199839) Ao atingir tal supremacia o homem

liberta-se de sua vida anterior e ganha autonomia na forma da liberdade

intriacutenseca conseguindo a superaccedilatildeo de sua forma decadente e de seus

conflitos interiores atraveacutes da liberdade celestial alcanccedilada Deacutedalo foi

conhecido como o arquitecto e artista da liberdade mesmo tendo construiacutedo o

labirinto que eacute a representaccedilatildeo do aprisionamento Aqui Florbela utiliza desse

argumento como se seus escritos fossem labiriacutenticos e teriacuteamos de encontrar

as palavras certas para desvendarmos seus caminhos encontrando neles

assim a liberdade Essa mesma liberdade transformada aqui no voo mais alto

que levaria a traacutegica morte

Apesar de mostrada diferentemente temos aqui mais uma vez a dualidade

que percorre a obra de Florbela o aprisionamento e a liberdade a vida e a

morte antiacuteteses que perfilam seu anseio humano ldquo Um dia julgou ter achado

20 Quadro de Broeghel demonstrando a queda de Iacutecaro no mar enquanto os camponeses prosseguem a sua

labuta diaacuteria

22

Oh aquele dia A embriaguez do homem que se igualou a Deus O coraccedilatildeo a

bater a bater a sentir-se grande demais para um peito tatildeo pequeno para um

tatildeo mesquinho destino A humidade das laacutegrimas a embaciar o olhar gigante

que se esquecera um momento de ter nascido pigmeu O artista o poeta o

inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de movimento e de

vida todos os que desbravavam caminhos os que talham abrem por entre os

matagais selvagens e as belas estradas largas do pensamento e das ideias As

palavras satildeo o muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes

ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)

Ao atingir o voo pleno por vezes nos afastamos da realidade natural e nos

lanccedilamos ao desconhecido sem saber o que nos espera Com isso a queda eacute

inevitaacutevel Neste seguimento vemos a intertextualidade presente sob o estigma

dos cuidados de Zeus filho de Cromo e pai dos deuses que concedeu aos

heroacuteis uma morada afastada dos homens onde os semideuses pudessem se

estabelecer nos confins da terra Eacute laacute que habitam com o coraccedilatildeo livre de

cuidados nas Ilhas dos Bem-Aventurados nas praias dos turbilhotildees profundos

do Oceano satildeo eles os heroacuteis afortunados a quem Florbela tambeacutem concede

a morada preparada como tuacutemulo perfeito para o descanso eterno A

representaccedilatildeo das deusas das aacuteguas na presenccedila das ninfas efidriacuteades21 que

simbolizam a graccedila criativa e fecundadora da natureza fazem aparecer a

presenccedila feminina que surge com o intuito de exaltar a forccedila interior que so a

mulher tem para defrontar situaccedilotildees desastrosas e encontrar soluccedilatildeo nos mais

tenebrosos conflitos bem como de dar um toque de suavidade ternura beleza

e leveza que soacute a performance feminina consegue impor ldquo hellipAs filhas dos

deuses ondinas sereias nereidas princesas encantadas acodem todas

pressurosashellipEm volta das asas mortas satildeo como flores desfolhadas em

redor dum esquife negro E olhamhelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 199842) A

sabedoria feminina evidencia-se ao se manifestar a ldquoque tinha nos olhos uma

nostaacutelgica tristeza humanardquo (FLORBELA ESPANCA 199846) como uma matildee

protectora que acalenta o filho em seu sono profundo e compreende com

tristeza a dor dos mortais ou quem sabe sua proacutepria dor na condiccedilatildeo de

imortal pois somente aos deuses era permitido o poder de arrebatar o espiacuterito

21 Referecircncia as ninfas das aacuteguas da mitologia grega

23

a um homem ldquo E aquele que tinha sido um filho dos homens ficou a dormir na

eternidade como se fora um filho dos deusesrdquo (FLORBELA ESPANCA

199846)

Como podemos perceber Florbela em sua construccedilatildeo literaacuteria delineou nas

entrelinhas dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquoO Inventorrdquo aspectos simboacutelicos

determinantes do aprisionamento e da libertaccedilatildeo humana natildeo somente no

sentido denotativo mas tambeacutem conotativo na multiplicidade de sentidos que

tais palavras propotildeem Apesar da evidecircncia colocada pela escritora ainda nos

remete a reflexatildeo pois o aprisionamento pode ser um meio de libertaccedilatildeo e a

libertaccedilatildeo um aprisionamento ldquohellipOlhou o ceacuteu profundohellipe achou Ser aviador

eacutehellipabraccedilar no mesmo abraccedilo o ceacuteu e o mar Na linguagem dos siacutembolos a

acircncora definindo a esperanccedila nunca poderaacute valer as asas que satildeo a

libertaccedilatildeo A acircncora agarra-se ao fundo e fica as asas abrem-se no espaccedilo e

penetram o ceacuteuhellipSeria aviador Quando pela primeira vez voou natildeo se

esqueceu de sentar na carlinga a seu lado ao lado do seu coraccedilatildeo aquela

que dali em diante seria a companheira de todos os dias a companheira

indefectiacutevel de todos os aviadores a Morterdquo (FLORBELA ESPANCA 1998

129)

A produccedilatildeo intertextual desses dois contos traz-nos um imaginaacuterio voltado aos

princiacutepios fundadores de conceitos e referecircncia humana Florbela baseia-se na

representaccedilatildeo da infacircncia como elemento fundador da personalidade e do

caraacutecter ou seja a figura do pai que nunca a reconheceu em vida e por outro

lado na figura de Deacutedalo e Iacutecaro tendo o pai a dualidade em sua referecircncia

paterna Eacute assim que de ldquotentaccedilatildeo em tentaccedilatildeo de fraqueza em fraqueza os

compromissos de consciecircncia levam um homem honrado agrave praacutetica de todos os

crimeshelliprdquo22

22 Fragmento do conto O Inventor de Florbela Espanca As Maacutescaras do Destino1998122

24

22 - A MULTICIPLIDADE DO HEROacuteI

ldquo A vida parada e recolhida cria heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tarderdquo23

Ao encontrarmos facetas mitoloacutegicas entre as leituras de Florbela natildeo se pode

descartar a visatildeo do heroacutei que a autora engendrou na figura de seu irmatildeo

Apeles Tiacutetulo esse dado a homens excepcionais como Ulisses que eram

venerados por seu povo da mesma forma Florbela nutria uma verdadeira

veneraccedilatildeo que a levou a personificar o Aviador a um heroacutei merecedor de

honrarias e apesar da miacutesera condiccedilatildeo de mortal foi-lhe atribuiacutedo qualidades

fiacutesicas e morais dignas de um semideus ldquo A vida parada e recolhida cria

heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tardehellip o pincel de geacutenio daacute os uacuteltimos

retoques ao cenaacuterio de epopeiahellip laacute em cima a formidaacutevel apoteose desdobra-

se no meio do pasmo das coisas Eacute um homem que tem asas E as asas

pairam descem rodopiam ascendem de novo giram latejam batem ao sol

mais aacutegeis e mais robustas mais leves e mais possantes que as das aacuteguias Eacute

um homem A face eneacutergica vincada a cinzel emerge extraordinaacuteria da vida

intensa na indecisatildeo dos contornos que lhe fazem vagos e paacutelidos um vago

pano de fundo a face e as matildeoshellipOs muacutesculos da face adivinham na forccedila

brutal das maxilas cerradas Nos olhos leva visotildees que os filhos dos homens

natildeo conhecem Os olhos dele natildeo se vecircem olham para dentro e para fora satildeo

pedras como as das estaacutetuas e vecircem mais e mais para aleacutem do que as

miacuteseras pupilas humanas Satildeo astrosrdquo (FLORBELA ESPANCA 199838 e 39)

Esta mesma condiccedilatildeo eacute dada ao Inventor autor da imaginaccedilatildeo de Florbela

ldquoRealizara os seus sonhos todos os seus sonhos Que havia mais agora Jaacute

os homens podiam sulcar os ares sem medo aos vendavais agraves coacuteleras brutais

da Natureza jaacute o ceacuteu se podia coalhar de asas como o mar de velas Todo o

homem poderia ter sem perigo e sem riscos a cobiccedilada sensaccedilatildeo de

comandar nos elementos como um semideusrdquo (FLORBELA ESPANCA

1998133)

Sabemos que o heroacutei constitui o assunto da poesia eacutepica ele tem a sua

maneira proacutepria de agir pela sua coragem e bravura e prossegue objectivos

23 Fragmento do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca198837 e 38

25

bem determinados que ao longo de sua trajectoacuteria lhe satildeo atribuiacutedos cada qual

com sua importacircncia e valor Eacute dado a ele tambeacutem o poder de decisatildeo ora

sobre seus actos ora sobre si mesmo Isso como forma de valorizar sua

sabedoria e supremacia diante daqueles a quem defendia Assim se apresenta

o heroacutei dos contos de Florbela homem-deus detentor de toda visatildeo forte

dominador senhor supremo de seu destino a quem eacute concedido um lugar

eterno junto aos astros

A realidade fictiacutecia da mitologia eacute comparada aqui a realidade autecircntica

Florbela interessa-se pelo seu heroacutei fictiacutecio como se fosse ou tratasse de uma

pessoa real com isso podemos dizer que a escrita ficcional de Florbela eacute

mimese porque a realidade de sua vida humana eacute o seu material de escrita ela

consegue transformar a realidade objectiva na realidade subjectiva vivencial

razatildeo por que nos deixamos influenciar pela sua trajectoacuteria de vida em seus

escritos Isso justifica o fato da ldquovaliosa bravurardquo ndash por uma valiosa pintura - de

seu heroacutei ser retratado em uma tela por um titatilde24 personifica assim a grande

luta travada com as forccedilas da natureza ldquoEacute um Rembrandt pintado por um titatilderdquo

(FLORBELA ESPANCA 199839) A sua proacutepria natureza humana A propoacutesito

disso parece mais reportar ao paradoxo entre o bem e o mal que lutam

constantemente pelo domiacutenio da razatildeo interior talvez alvo de Florbela

Eacute interessante observar a relaccedilatildeo que existe entre o ldquohomem com asasrdquo com

as Harpias25 que na multi-significaccedilatildeo de seu discurso nos projecta a uma

realizaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo na figura do heroacutei alado em uma transposiccedilatildeo

imaginaacuteria com uma pluralidade de sentidos que poderia ocultar um sentido

uacutenico o seu proacuteprio desejo ou o desejo de arrebatar a alma de seu morto

Tambeacutem vemos a intertextualidade corrente na pessoa de Ulisses26 o heroacutei

grego navegante Robson Crusoeacute27 Piratas dos Sete Mares28 aos capitatildees e

24 Referecircncia a segunda geraccedilatildeo dos deus mitoloacutegicos representantes das forccedilas da natureza e sem uma

personalidade bem vincadaos quais Hesiacuteodo enumerou em doze seis machos e seis fecircmeas Oceano Ceacuteu

Crio Hiperiacuteon Jaacutepeto Cronos Teia Reja Teacutemis Mnemoacutesine Febe e Teacutetis 25 As Harpias filhas de Electra (ela proacutepria filha do Titatilde Oceano) e de Taumas (filho de Ponto e de Geia)

pertencem agrave geraccedilatildeo dos preacute-oliacutempicos Elas satildeo irmatildes de iacuteris a mensageira dos deuses Representadas

quer como mulheres aladas com um aspecto fameacutelico quer como paacutessaros com cabeccedila de mulher as

Harpias residem nas ilhas Estroacutefades do mar Egeu ou ainda agraves portas do Taacutertaro Impetuosas e brutais

como a tempestade as Harpias satildeo - este eacute o sentido do seu nome - raptoras com garras fortes 26 Odisseu (na Greacutecia) ou Ulisses (em Roma) eacute um personagem da Iliacuteada e da Odisseacuteia de Homero Apoacutes

a derrota dos troianos ele iniciou uma viagem de dez anos de volta para Iacutetaca onde a sua mulher o espera

com uma fidelidade obstinada apesar da demora Essa viagem mereceu a criaccedilatildeo por Homero do poema

26

navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a

coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a

solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o

enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio

multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos

diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio

Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os

naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de

navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS

Maacutescaras do Destino 1998 p 125)

Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada

com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a

renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que

convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos

escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a

partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental

aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A

viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas

suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte

recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os

heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas

ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o

navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira

de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que

nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era

eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que

deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-

1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado

a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe

herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico

sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O

romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como

tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar

que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os

Lusiacuteadas de Camotildees

27

no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo

da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)

Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida

funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo

conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente

nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de

alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva

Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer

tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos

heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os

portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens

tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que

de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os

navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por

deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da

Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do

texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute

simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no

poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES

1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou

passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da

Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas

natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer

vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de

ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um

heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com

o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas

forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um

aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem

mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva

30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos

Lisboa

Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal

28

presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de

Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura

greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito

especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela

escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a

morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem

para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de

transformaccedilatildeo fantaacutestica

Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que

na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena

confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir

uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute

infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu

desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma

personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo

inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade

aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios

filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa

escritora o seu carma

Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei

que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora

quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem

ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles

desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma

as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista

o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de

movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos

esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do

pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam

As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes

ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)

29

CAPIacuteTULO 03

31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS

ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de

doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32

No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute

intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em

todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do

proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade

de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma

comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro

cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser

estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute

antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de

alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas

oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir

as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava

perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o

fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo

para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que

muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da

escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e

complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e

pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma

formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela

graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa

assume

32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122

30

De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete

agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem

Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites

nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute

podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido

conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao

inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um

ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma

palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a

intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda

e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas

pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma

onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo

(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um

recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o

renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio

inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a

matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada

ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe

mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata

cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de

voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e

122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso

indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam

tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele

o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as

suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um

emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados

que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e

intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica

33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ

31

Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado

transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas

Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e

que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a

imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de

dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada

dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais

significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa

escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e

sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-

as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar

inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos

era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade

existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)

A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio

Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo

tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens

que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de

tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta

ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a

proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo

Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante

notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe

de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e

medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca

mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho

branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a

socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua

presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo

(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo

deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo

queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a

intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia

humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para

32

sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo

pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no

mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais

apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva

enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente

foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)

A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja

como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo

atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute

reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em

busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito

junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos

satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad

que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que

han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas

mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como

meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do

inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os

aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias

34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939

33

32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO

ldquoA vida vem em ondas

Como o mar

Num indo e vindo infinitohelliprdquo35

A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente

foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram

o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios

da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-

portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo

ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura

universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e

nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a

esquizofrenia de sua alma

O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos

grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma

visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes

de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-

racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas

fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma

encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no

espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada

ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar

duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava

que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se

35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos

em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria

imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia

grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios

Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e

cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam

da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela

Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a

sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor

34

sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o

olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de

um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o

seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No

reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que

constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia

Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor

das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que

participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na

claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma

a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial

apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se

imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA

ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta

solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser

acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas

pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de

existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas

dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma

mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar

agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)

As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar

aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de

Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a

37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta

nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet

tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido

advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte

de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga

(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre

1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a

questatildeo (Hamlet ato III cena I)

38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)

que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era

destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar

35

travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes

questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente

humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a

vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa

loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz

a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair

numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua

frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico

mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de

transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a

morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano

capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas

ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de

integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de

totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma

ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade

de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida

dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a

seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas

iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives

mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas

dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a

cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute

perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras

velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida

de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar

costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras

por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e

grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme

O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu

amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do

Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para

toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos

36

Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser

salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma

dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo

desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave

liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos

secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a

uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo

desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a

boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia

pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a

mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais

alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se

nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira

as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de

alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora

julga existir no seu misteacuterio

O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e

forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e

sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que

orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente

num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das

contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute

traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas

que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas

figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas

narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um

imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e

39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII

mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a

bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por

alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua

tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar

Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A

histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito

em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que

aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas

aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma

37

refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus

fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a

sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades

da dinacircmica universal

Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar

simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos

narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos

siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um

contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da

efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma

capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde

diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e

exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia

essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel

mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo

do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do

Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)

e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo

social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)

na representatividade literaacuteria do mar

38

CAPIacuteTULO 04

41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA

ldquoGosto de ti apaixonadamente

De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo

De ti que me trouxeste pela matildeo

Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40

Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso

a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade

directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na

poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua

dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees

Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita

capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e

um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz

e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a

dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas

conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute

e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria

serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem

quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto

anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse

em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita

maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte

com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e

quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e

emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos

paradoxos

40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no

livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004

Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo

Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11

39

Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos

toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-

romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido

num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia

com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes

profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas

sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo

acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando

a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A

derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a

conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas

da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da

sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No

entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas

romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a

impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo

definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha

aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento

em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o

passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era

tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto

A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos

acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-

Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs

Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os

Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de

Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de

Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o

egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo

narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica

Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute

neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o

poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem

40

esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma

essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no

iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma

questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos

encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem

sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos

interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas

as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um

exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo

tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo

daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita

conteacutem

41

42 - UM PERCURSO COMPARATIVO

ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os

vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e

outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que

ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute

foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41

ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto

Olhou em roda natildeo achou ningueacutem

Por entre as campas arrastando o manto

Com lentos passos caminhou aleacutem

Abandonado neste chatildeo repousa

Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui

Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa

Sobre este peito que bateu por tirdquo42

A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e

o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-

romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua

linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa

o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se

O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando

proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos

moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na

literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror

Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou

comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas

circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de

comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e

sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos

41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda

Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos

42

ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de

outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou

Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)

Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal

de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma

optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada

pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada

no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus

sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa

suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois

dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)

Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade

todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional

natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute

afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute

tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima

do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo

Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela

e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a

prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua

intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a

dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as

influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente

que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz

directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para

a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o

intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era

partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada

por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das

rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de

branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza

43

ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas

Longas roupagens de neveda cor

Singela croa de virgiacutenias rosas

Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43

ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de

branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila

devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa

nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)

Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de

conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se

para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da

imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a

partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a

presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os

uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem

eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera

absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor

ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria

A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a

intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um

testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista

e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas

caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da

temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao

fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma

retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras

masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo

homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma

mulher

43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12

44

(hellip)

Mulher formosa que adorei na vida

E que na tumba natildeo cessei damar

Por que atraiccediloas desleal mentida

O amor eterno que te ouvi jurar

Amor engano que na campa finda

Que a morte despe da ilusatildeo falaz

Quem dentros vivos se lembrara ainda

ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)

Talvez que rindo dos protestos nossos

Gozes com outro dinfernal prazer

E o olvido cobriraacute meus ossos

Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44

Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o

vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as

bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis

e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma

essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o

podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA

ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de

sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a

eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos

na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto

com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais

de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas

palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o

esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal

seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu

passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre

44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9

45

que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as

matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos

das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam

para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)

Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno

num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista

melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias

possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela

um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica

natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem

fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo

intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas

rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso

consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo

intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas

solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou

com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a

todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas

as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os

sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado

daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)

Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do

Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais

significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO

MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do

quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e

estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que

desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo

da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina

agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das

espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute

presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos

46

ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido

Das sepulturas o gelado poacute

Dois esqueletos um ao outro unido

Foram achados num sepulcro soacuterdquo45

Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de

imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da

intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo

buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma

enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo

recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as

laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas

deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo

sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais

moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas

austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade

dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete

palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam

pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e

59)

Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao

ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram

escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia

literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo

exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde

ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais

tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo

merecida

45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos

47

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas

interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca

Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo

depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves

transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo

sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia

ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas

metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver

com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao

sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas

tambeacutem ao que relaciona a morte

A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua

eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela

mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e

sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo

quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade

que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas

personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a

humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de

enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e

sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas

e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o

que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte

presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais

condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus

contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e

desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse

interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural

equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes

interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute

Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem

uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses

48

elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o

inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela

tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses

elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma

civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor

sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam

sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do

intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea

Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o

menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que

para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro

compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo

que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou

seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua

imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que

essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar

atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a

outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual

proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque

esconde-se ou projecta-se no discurso do outro

Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o

caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo

relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens

marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um

significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um

desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos

de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e

fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave

realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande

maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe

um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo

46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de

Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360

49

obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a

escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada

Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a

infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute

aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo

espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a

verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes

50

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Page 19: AS MÁSCARAS SIMBÓLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA … Jaqueline... · 2019-10-31 · A narrativa ficcional não é o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca, mas, assim como

19

CAPIacuteTULO 02 21 - ldquoSONHO DE IacuteCAROrdquo

ldquoVoar voar subir subir

Ir por onde for descer ateacute o ceacuteu cair

Ou mudar de cor anjos de gaacutes

Asas de ilusatildeo e um sonho audaz

Feito um balatildeo

No ar no ar eu sou assim

Brilho do farol aleacutem do mais

Amargo fim simplesmente sol

Fugir meu bem eacute ser felizhellip

Ir ateacute que um dia chegue enfim

Em que o sol derreta a cera ateacute o fimrdquo18

A mitologia eacute uma das concepccedilotildees mais geniais que a humanidade produziu

Os gregos instauraram uma categoria intermediaacuteria entre os homens e os

deuses o semideus criando assim os heroacuteis mitoloacutegicos Isso veio a dar

margem a novas investigaccedilotildees sobre os fenoacutemenos da realidade natural

levando ao questionamento da origem dos seres a qual obtiveram respostas

sem sentido concreto Com isso incorporaram a concepccedilatildeo de que a vida e

suas manifestaccedilotildees satildeo obras das forccedilas do espiacuterito que habita em cada um

de noacutes sendo tambeacutem responsaacutevel pela nossa maneira de ser e de agir Isso eacute

sem duacutevida um meio de penetrar atraveacutes da imaginaccedilatildeo no misteacuterio da

existecircncia humana Desta forma o mito consiste nos acontecimentos que se

repetem ao longo da histoacuteria natildeo tendo fim O homem reconhecendo em cada

acto quotidiano uma participaccedilatildeo nos grandes ciclos da vida se sente

participar da grande eternidade miacutetica Partindo de suas origens o homem

consegue viver integralmente e uma vez dentro da mentalidade miacutetica a

proacutepria morte pode ter sentido

18 Fragmento da canccedilatildeo ldquosonho de Iacutecarordquo escrito por Pisca e Claacuteudio Rebelo interpretaccedilatildeo do cantor

brasileiro Byafra

20

Com o intuito de imortalizar o momento de uma trageacutedia Florbela lanccedila matildeo de

aspectos mitoloacutegicos dentro de seus contos que muito nos lembra a triste

histoacuteria de Deacutedalo e Iacutecaro 19 mostrando que o espiacuterito humano de vencer

barreiras e limites nos impulsiona a superar nossas proacuteprias limitaccedilotildees

Alcanccedilar o espaccedilo e as estrelas lanccedilar-se ao infinito experimentar da

sensaccedilatildeo de liberdade interior e o desvendar do misterioso infinito eacute o que

norteia o enredo dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquo O Inventorrdquo

Praticamente todas as culturas destacam o ceacuteu como um lugar especial Esse

local era normalmente designado como a morada dos deuses Muitos povos

consideravam que as constelaccedilotildees eram representaccedilotildees dos seus mitos e

lendas Dessa forma o ceacuteu era um lugar divino e os homens somente o

alcanccedilavam quando eram convidados ou homenageados pelos deuses Mas o

atrevimento de uns culminou na desgraccedila de outros Apenas aqueles com

sabedoria e dotado de iacutentima consciecircncia disciplinar sobre sua condiccedilatildeo

humana conseguiam graccedilas aos olhos dos deuses O conflito interior era um

grande empecilho para que fatos tivessem o desenrolar bem sucedidos

Quando isso natildeo acontecia o homem reconhecia sua condiccedilatildeo de inferioridade

em relaccedilatildeo aos deuses e eram designados ldquofilhos dos homensrdquo

O aparecimento da referecircncia mitoloacutegica pressupotildee uma forte ligaccedilatildeo aos elos

do mito de fundaccedilatildeo que sustenta a harmonia familiar juntamente com

preceitos de moral tendo por priori a identidade pessoal na figura paterna

como eram conhecidos os grandes heroacuteis mitoloacutegicos por serem semideuses

Nesta constante nos eacute dado a conhecer a condiccedilatildeo humana que tambeacutem

aparece de forma intertextualizada como referecircncia ao quadro do flamengo

19 Iacutecaro era filho de Deacutedalo o construtor do labirinto que o rei Minos aprisionava o Minotauro um ser

com corpo de homem e cabeccedila de touro A lenda grega conta que Deacutedalo ensinou Teseu que seria

devorado juntamente com outros jovens pelo monstro como sair do labirinto Deacutedalo sugeriu que ele

deveria utilizar um novelo que deveria ser desenrolado a medida em que fosse penetrando no labirinto

Dessa forma apoacutes ter matado o monstro ele conseguiu fugir do labirinto O rei Minos ficou furioso e

prendeu Deacutedalo e o seu filho Iacutecaro no labirinto Como o rei tinha deixado guardas vigiando as saiacutedas

Deacutedalo construiu asas com penas dos paacutessaros colando-as com cera Antes de levantar voo o pai

recomendou a Iacutecaro que quando ambos estivessem voando natildeo deveriam voar nem muito alto (perto do

Sol cujo calor derreteria a cera) e nem muito baixo (perto do mar pois a unidade tornaria as asas

pesadas) Entretanto a sensaccedilatildeo de voar foi tatildeo estonteante para Iacutecaro que ele esqueceu a recomendaccedilatildeo e

elevou-se tanto nos ares a ponto da previsatildeo de Deacutedalo ocorrer A cera derreteu e Iacutecaro perdeu as asas

precipitando-se no mar e morrendo afogado

21

Brueghel (a Queda de Iacutecaro)20 que Florbela tatildeo bem ilustra com uma descriccedilatildeo

que mais parece uma tela ldquo Os filhos dos homens caacute em baixo deixam cair

nos campos a enxada que faz nascer o patildeo e florir as rosas os pescadores

largam os remos audaciosos que rasgam os mares e os rios e os filhos dos

homens mais duramente castigados os que habitam o formigueiro das cidades

param nas suas insensatas correrias de formigas e todos voltam a face para o

ceacuteurdquo (FLORBELA ESPANCA 199838) Aqui a intertextualidade sugerida

numa linha ecfraacutestica vai de encontro a misteriosa temaacutetica de Florbela

significando isto que o espiacuterito de aventura eacute frequentemente motivo de

incompreensatildeo e de grande solidatildeo

Do mesmo modo que impotildee a condiccedilatildeo de mortal ao homem Florbela o

enaltece dando-lhe honrarias e elevando-o a condiccedilatildeo de um deus ldquo Nos olhos

leva visotildees que os filhos dos homens natildeo conhecem Eacute um homem Deixou laacute

em baixo todo o fardo pesado e vil com que o carregam ao nascer deixou laacute

em baixo todas as algemas todos os feacuterreos grilhotildees que o prendiam toda a

suprema maldiccedilatildeo de ter nascido homem deixou laacute em baixo a sua sacola de

pedinte o seu bordatildeo de Judeu Errante e livre indoacutemito sereno na sua

miacutesera couraccedila de pano azul estendeu em cruz os braccedilos que transformou em

asasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199839) Ao atingir tal supremacia o homem

liberta-se de sua vida anterior e ganha autonomia na forma da liberdade

intriacutenseca conseguindo a superaccedilatildeo de sua forma decadente e de seus

conflitos interiores atraveacutes da liberdade celestial alcanccedilada Deacutedalo foi

conhecido como o arquitecto e artista da liberdade mesmo tendo construiacutedo o

labirinto que eacute a representaccedilatildeo do aprisionamento Aqui Florbela utiliza desse

argumento como se seus escritos fossem labiriacutenticos e teriacuteamos de encontrar

as palavras certas para desvendarmos seus caminhos encontrando neles

assim a liberdade Essa mesma liberdade transformada aqui no voo mais alto

que levaria a traacutegica morte

Apesar de mostrada diferentemente temos aqui mais uma vez a dualidade

que percorre a obra de Florbela o aprisionamento e a liberdade a vida e a

morte antiacuteteses que perfilam seu anseio humano ldquo Um dia julgou ter achado

20 Quadro de Broeghel demonstrando a queda de Iacutecaro no mar enquanto os camponeses prosseguem a sua

labuta diaacuteria

22

Oh aquele dia A embriaguez do homem que se igualou a Deus O coraccedilatildeo a

bater a bater a sentir-se grande demais para um peito tatildeo pequeno para um

tatildeo mesquinho destino A humidade das laacutegrimas a embaciar o olhar gigante

que se esquecera um momento de ter nascido pigmeu O artista o poeta o

inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de movimento e de

vida todos os que desbravavam caminhos os que talham abrem por entre os

matagais selvagens e as belas estradas largas do pensamento e das ideias As

palavras satildeo o muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes

ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)

Ao atingir o voo pleno por vezes nos afastamos da realidade natural e nos

lanccedilamos ao desconhecido sem saber o que nos espera Com isso a queda eacute

inevitaacutevel Neste seguimento vemos a intertextualidade presente sob o estigma

dos cuidados de Zeus filho de Cromo e pai dos deuses que concedeu aos

heroacuteis uma morada afastada dos homens onde os semideuses pudessem se

estabelecer nos confins da terra Eacute laacute que habitam com o coraccedilatildeo livre de

cuidados nas Ilhas dos Bem-Aventurados nas praias dos turbilhotildees profundos

do Oceano satildeo eles os heroacuteis afortunados a quem Florbela tambeacutem concede

a morada preparada como tuacutemulo perfeito para o descanso eterno A

representaccedilatildeo das deusas das aacuteguas na presenccedila das ninfas efidriacuteades21 que

simbolizam a graccedila criativa e fecundadora da natureza fazem aparecer a

presenccedila feminina que surge com o intuito de exaltar a forccedila interior que so a

mulher tem para defrontar situaccedilotildees desastrosas e encontrar soluccedilatildeo nos mais

tenebrosos conflitos bem como de dar um toque de suavidade ternura beleza

e leveza que soacute a performance feminina consegue impor ldquo hellipAs filhas dos

deuses ondinas sereias nereidas princesas encantadas acodem todas

pressurosashellipEm volta das asas mortas satildeo como flores desfolhadas em

redor dum esquife negro E olhamhelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 199842) A

sabedoria feminina evidencia-se ao se manifestar a ldquoque tinha nos olhos uma

nostaacutelgica tristeza humanardquo (FLORBELA ESPANCA 199846) como uma matildee

protectora que acalenta o filho em seu sono profundo e compreende com

tristeza a dor dos mortais ou quem sabe sua proacutepria dor na condiccedilatildeo de

imortal pois somente aos deuses era permitido o poder de arrebatar o espiacuterito

21 Referecircncia as ninfas das aacuteguas da mitologia grega

23

a um homem ldquo E aquele que tinha sido um filho dos homens ficou a dormir na

eternidade como se fora um filho dos deusesrdquo (FLORBELA ESPANCA

199846)

Como podemos perceber Florbela em sua construccedilatildeo literaacuteria delineou nas

entrelinhas dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquoO Inventorrdquo aspectos simboacutelicos

determinantes do aprisionamento e da libertaccedilatildeo humana natildeo somente no

sentido denotativo mas tambeacutem conotativo na multiplicidade de sentidos que

tais palavras propotildeem Apesar da evidecircncia colocada pela escritora ainda nos

remete a reflexatildeo pois o aprisionamento pode ser um meio de libertaccedilatildeo e a

libertaccedilatildeo um aprisionamento ldquohellipOlhou o ceacuteu profundohellipe achou Ser aviador

eacutehellipabraccedilar no mesmo abraccedilo o ceacuteu e o mar Na linguagem dos siacutembolos a

acircncora definindo a esperanccedila nunca poderaacute valer as asas que satildeo a

libertaccedilatildeo A acircncora agarra-se ao fundo e fica as asas abrem-se no espaccedilo e

penetram o ceacuteuhellipSeria aviador Quando pela primeira vez voou natildeo se

esqueceu de sentar na carlinga a seu lado ao lado do seu coraccedilatildeo aquela

que dali em diante seria a companheira de todos os dias a companheira

indefectiacutevel de todos os aviadores a Morterdquo (FLORBELA ESPANCA 1998

129)

A produccedilatildeo intertextual desses dois contos traz-nos um imaginaacuterio voltado aos

princiacutepios fundadores de conceitos e referecircncia humana Florbela baseia-se na

representaccedilatildeo da infacircncia como elemento fundador da personalidade e do

caraacutecter ou seja a figura do pai que nunca a reconheceu em vida e por outro

lado na figura de Deacutedalo e Iacutecaro tendo o pai a dualidade em sua referecircncia

paterna Eacute assim que de ldquotentaccedilatildeo em tentaccedilatildeo de fraqueza em fraqueza os

compromissos de consciecircncia levam um homem honrado agrave praacutetica de todos os

crimeshelliprdquo22

22 Fragmento do conto O Inventor de Florbela Espanca As Maacutescaras do Destino1998122

24

22 - A MULTICIPLIDADE DO HEROacuteI

ldquo A vida parada e recolhida cria heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tarderdquo23

Ao encontrarmos facetas mitoloacutegicas entre as leituras de Florbela natildeo se pode

descartar a visatildeo do heroacutei que a autora engendrou na figura de seu irmatildeo

Apeles Tiacutetulo esse dado a homens excepcionais como Ulisses que eram

venerados por seu povo da mesma forma Florbela nutria uma verdadeira

veneraccedilatildeo que a levou a personificar o Aviador a um heroacutei merecedor de

honrarias e apesar da miacutesera condiccedilatildeo de mortal foi-lhe atribuiacutedo qualidades

fiacutesicas e morais dignas de um semideus ldquo A vida parada e recolhida cria

heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tardehellip o pincel de geacutenio daacute os uacuteltimos

retoques ao cenaacuterio de epopeiahellip laacute em cima a formidaacutevel apoteose desdobra-

se no meio do pasmo das coisas Eacute um homem que tem asas E as asas

pairam descem rodopiam ascendem de novo giram latejam batem ao sol

mais aacutegeis e mais robustas mais leves e mais possantes que as das aacuteguias Eacute

um homem A face eneacutergica vincada a cinzel emerge extraordinaacuteria da vida

intensa na indecisatildeo dos contornos que lhe fazem vagos e paacutelidos um vago

pano de fundo a face e as matildeoshellipOs muacutesculos da face adivinham na forccedila

brutal das maxilas cerradas Nos olhos leva visotildees que os filhos dos homens

natildeo conhecem Os olhos dele natildeo se vecircem olham para dentro e para fora satildeo

pedras como as das estaacutetuas e vecircem mais e mais para aleacutem do que as

miacuteseras pupilas humanas Satildeo astrosrdquo (FLORBELA ESPANCA 199838 e 39)

Esta mesma condiccedilatildeo eacute dada ao Inventor autor da imaginaccedilatildeo de Florbela

ldquoRealizara os seus sonhos todos os seus sonhos Que havia mais agora Jaacute

os homens podiam sulcar os ares sem medo aos vendavais agraves coacuteleras brutais

da Natureza jaacute o ceacuteu se podia coalhar de asas como o mar de velas Todo o

homem poderia ter sem perigo e sem riscos a cobiccedilada sensaccedilatildeo de

comandar nos elementos como um semideusrdquo (FLORBELA ESPANCA

1998133)

Sabemos que o heroacutei constitui o assunto da poesia eacutepica ele tem a sua

maneira proacutepria de agir pela sua coragem e bravura e prossegue objectivos

23 Fragmento do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca198837 e 38

25

bem determinados que ao longo de sua trajectoacuteria lhe satildeo atribuiacutedos cada qual

com sua importacircncia e valor Eacute dado a ele tambeacutem o poder de decisatildeo ora

sobre seus actos ora sobre si mesmo Isso como forma de valorizar sua

sabedoria e supremacia diante daqueles a quem defendia Assim se apresenta

o heroacutei dos contos de Florbela homem-deus detentor de toda visatildeo forte

dominador senhor supremo de seu destino a quem eacute concedido um lugar

eterno junto aos astros

A realidade fictiacutecia da mitologia eacute comparada aqui a realidade autecircntica

Florbela interessa-se pelo seu heroacutei fictiacutecio como se fosse ou tratasse de uma

pessoa real com isso podemos dizer que a escrita ficcional de Florbela eacute

mimese porque a realidade de sua vida humana eacute o seu material de escrita ela

consegue transformar a realidade objectiva na realidade subjectiva vivencial

razatildeo por que nos deixamos influenciar pela sua trajectoacuteria de vida em seus

escritos Isso justifica o fato da ldquovaliosa bravurardquo ndash por uma valiosa pintura - de

seu heroacutei ser retratado em uma tela por um titatilde24 personifica assim a grande

luta travada com as forccedilas da natureza ldquoEacute um Rembrandt pintado por um titatilderdquo

(FLORBELA ESPANCA 199839) A sua proacutepria natureza humana A propoacutesito

disso parece mais reportar ao paradoxo entre o bem e o mal que lutam

constantemente pelo domiacutenio da razatildeo interior talvez alvo de Florbela

Eacute interessante observar a relaccedilatildeo que existe entre o ldquohomem com asasrdquo com

as Harpias25 que na multi-significaccedilatildeo de seu discurso nos projecta a uma

realizaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo na figura do heroacutei alado em uma transposiccedilatildeo

imaginaacuteria com uma pluralidade de sentidos que poderia ocultar um sentido

uacutenico o seu proacuteprio desejo ou o desejo de arrebatar a alma de seu morto

Tambeacutem vemos a intertextualidade corrente na pessoa de Ulisses26 o heroacutei

grego navegante Robson Crusoeacute27 Piratas dos Sete Mares28 aos capitatildees e

24 Referecircncia a segunda geraccedilatildeo dos deus mitoloacutegicos representantes das forccedilas da natureza e sem uma

personalidade bem vincadaos quais Hesiacuteodo enumerou em doze seis machos e seis fecircmeas Oceano Ceacuteu

Crio Hiperiacuteon Jaacutepeto Cronos Teia Reja Teacutemis Mnemoacutesine Febe e Teacutetis 25 As Harpias filhas de Electra (ela proacutepria filha do Titatilde Oceano) e de Taumas (filho de Ponto e de Geia)

pertencem agrave geraccedilatildeo dos preacute-oliacutempicos Elas satildeo irmatildes de iacuteris a mensageira dos deuses Representadas

quer como mulheres aladas com um aspecto fameacutelico quer como paacutessaros com cabeccedila de mulher as

Harpias residem nas ilhas Estroacutefades do mar Egeu ou ainda agraves portas do Taacutertaro Impetuosas e brutais

como a tempestade as Harpias satildeo - este eacute o sentido do seu nome - raptoras com garras fortes 26 Odisseu (na Greacutecia) ou Ulisses (em Roma) eacute um personagem da Iliacuteada e da Odisseacuteia de Homero Apoacutes

a derrota dos troianos ele iniciou uma viagem de dez anos de volta para Iacutetaca onde a sua mulher o espera

com uma fidelidade obstinada apesar da demora Essa viagem mereceu a criaccedilatildeo por Homero do poema

26

navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a

coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a

solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o

enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio

multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos

diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio

Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os

naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de

navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS

Maacutescaras do Destino 1998 p 125)

Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada

com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a

renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que

convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos

escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a

partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental

aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A

viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas

suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte

recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os

heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas

ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o

navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira

de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que

nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era

eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que

deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-

1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado

a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe

herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico

sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O

romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como

tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar

que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os

Lusiacuteadas de Camotildees

27

no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo

da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)

Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida

funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo

conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente

nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de

alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva

Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer

tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos

heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os

portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens

tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que

de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os

navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por

deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da

Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do

texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute

simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no

poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES

1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou

passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da

Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas

natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer

vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de

ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um

heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com

o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas

forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um

aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem

mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva

30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos

Lisboa

Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal

28

presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de

Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura

greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito

especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela

escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a

morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem

para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de

transformaccedilatildeo fantaacutestica

Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que

na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena

confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir

uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute

infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu

desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma

personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo

inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade

aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios

filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa

escritora o seu carma

Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei

que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora

quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem

ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles

desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma

as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista

o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de

movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos

esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do

pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam

As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes

ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)

29

CAPIacuteTULO 03

31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS

ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de

doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32

No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute

intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em

todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do

proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade

de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma

comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro

cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser

estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute

antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de

alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas

oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir

as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava

perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o

fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo

para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que

muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da

escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e

complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e

pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma

formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela

graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa

assume

32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122

30

De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete

agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem

Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites

nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute

podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido

conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao

inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um

ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma

palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a

intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda

e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas

pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma

onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo

(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um

recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o

renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio

inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a

matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada

ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe

mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata

cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de

voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e

122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso

indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam

tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele

o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as

suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um

emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados

que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e

intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica

33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ

31

Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado

transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas

Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e

que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a

imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de

dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada

dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais

significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa

escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e

sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-

as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar

inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos

era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade

existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)

A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio

Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo

tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens

que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de

tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta

ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a

proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo

Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante

notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe

de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e

medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca

mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho

branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a

socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua

presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo

(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo

deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo

queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a

intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia

humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para

32

sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo

pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no

mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais

apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva

enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente

foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)

A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja

como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo

atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute

reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em

busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito

junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos

satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad

que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que

han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas

mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como

meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do

inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os

aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias

34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939

33

32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO

ldquoA vida vem em ondas

Como o mar

Num indo e vindo infinitohelliprdquo35

A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente

foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram

o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios

da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-

portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo

ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura

universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e

nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a

esquizofrenia de sua alma

O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos

grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma

visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes

de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-

racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas

fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma

encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no

espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada

ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar

duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava

que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se

35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos

em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria

imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia

grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios

Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e

cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam

da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela

Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a

sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor

34

sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o

olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de

um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o

seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No

reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que

constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia

Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor

das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que

participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na

claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma

a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial

apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se

imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA

ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta

solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser

acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas

pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de

existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas

dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma

mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar

agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)

As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar

aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de

Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a

37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta

nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet

tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido

advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte

de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga

(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre

1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a

questatildeo (Hamlet ato III cena I)

38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)

que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era

destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar

35

travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes

questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente

humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a

vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa

loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz

a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair

numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua

frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico

mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de

transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a

morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano

capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas

ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de

integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de

totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma

ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade

de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida

dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a

seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas

iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives

mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas

dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a

cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute

perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras

velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida

de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar

costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras

por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e

grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme

O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu

amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do

Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para

toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos

36

Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser

salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma

dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo

desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave

liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos

secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a

uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo

desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a

boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia

pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a

mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais

alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se

nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira

as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de

alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora

julga existir no seu misteacuterio

O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e

forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e

sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que

orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente

num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das

contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute

traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas

que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas

figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas

narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um

imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e

39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII

mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a

bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por

alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua

tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar

Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A

histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito

em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que

aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas

aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma

37

refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus

fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a

sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades

da dinacircmica universal

Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar

simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos

narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos

siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um

contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da

efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma

capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde

diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e

exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia

essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel

mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo

do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do

Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)

e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo

social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)

na representatividade literaacuteria do mar

38

CAPIacuteTULO 04

41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA

ldquoGosto de ti apaixonadamente

De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo

De ti que me trouxeste pela matildeo

Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40

Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso

a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade

directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na

poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua

dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees

Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita

capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e

um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz

e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a

dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas

conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute

e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria

serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem

quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto

anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse

em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita

maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte

com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e

quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e

emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos

paradoxos

40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no

livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004

Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo

Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11

39

Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos

toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-

romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido

num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia

com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes

profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas

sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo

acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando

a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A

derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a

conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas

da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da

sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No

entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas

romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a

impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo

definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha

aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento

em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o

passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era

tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto

A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos

acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-

Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs

Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os

Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de

Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de

Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o

egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo

narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica

Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute

neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o

poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem

40

esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma

essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no

iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma

questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos

encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem

sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos

interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas

as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um

exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo

tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo

daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita

conteacutem

41

42 - UM PERCURSO COMPARATIVO

ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os

vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e

outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que

ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute

foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41

ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto

Olhou em roda natildeo achou ningueacutem

Por entre as campas arrastando o manto

Com lentos passos caminhou aleacutem

Abandonado neste chatildeo repousa

Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui

Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa

Sobre este peito que bateu por tirdquo42

A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e

o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-

romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua

linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa

o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se

O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando

proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos

moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na

literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror

Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou

comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas

circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de

comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e

sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos

41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda

Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos

42

ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de

outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou

Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)

Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal

de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma

optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada

pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada

no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus

sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa

suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois

dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)

Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade

todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional

natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute

afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute

tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima

do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo

Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela

e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a

prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua

intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a

dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as

influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente

que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz

directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para

a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o

intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era

partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada

por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das

rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de

branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza

43

ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas

Longas roupagens de neveda cor

Singela croa de virgiacutenias rosas

Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43

ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de

branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila

devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa

nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)

Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de

conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se

para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da

imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a

partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a

presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os

uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem

eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera

absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor

ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria

A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a

intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um

testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista

e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas

caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da

temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao

fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma

retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras

masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo

homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma

mulher

43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12

44

(hellip)

Mulher formosa que adorei na vida

E que na tumba natildeo cessei damar

Por que atraiccediloas desleal mentida

O amor eterno que te ouvi jurar

Amor engano que na campa finda

Que a morte despe da ilusatildeo falaz

Quem dentros vivos se lembrara ainda

ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)

Talvez que rindo dos protestos nossos

Gozes com outro dinfernal prazer

E o olvido cobriraacute meus ossos

Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44

Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o

vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as

bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis

e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma

essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o

podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA

ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de

sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a

eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos

na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto

com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais

de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas

palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o

esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal

seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu

passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre

44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9

45

que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as

matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos

das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam

para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)

Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno

num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista

melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias

possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela

um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica

natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem

fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo

intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas

rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso

consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo

intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas

solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou

com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a

todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas

as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os

sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado

daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)

Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do

Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais

significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO

MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do

quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e

estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que

desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo

da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina

agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das

espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute

presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos

46

ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido

Das sepulturas o gelado poacute

Dois esqueletos um ao outro unido

Foram achados num sepulcro soacuterdquo45

Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de

imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da

intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo

buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma

enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo

recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as

laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas

deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo

sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais

moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas

austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade

dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete

palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam

pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e

59)

Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao

ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram

escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia

literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo

exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde

ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais

tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo

merecida

45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos

47

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas

interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca

Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo

depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves

transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo

sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia

ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas

metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver

com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao

sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas

tambeacutem ao que relaciona a morte

A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua

eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela

mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e

sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo

quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade

que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas

personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a

humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de

enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e

sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas

e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o

que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte

presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais

condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus

contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e

desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse

interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural

equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes

interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute

Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem

uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses

48

elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o

inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela

tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses

elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma

civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor

sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam

sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do

intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea

Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o

menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que

para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro

compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo

que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou

seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua

imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que

essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar

atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a

outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual

proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque

esconde-se ou projecta-se no discurso do outro

Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o

caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo

relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens

marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um

significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um

desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos

de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e

fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave

realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande

maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe

um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo

46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de

Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360

49

obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a

escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada

Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a

infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute

aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo

espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a

verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes

50

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Page 20: AS MÁSCARAS SIMBÓLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA … Jaqueline... · 2019-10-31 · A narrativa ficcional não é o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca, mas, assim como

20

Com o intuito de imortalizar o momento de uma trageacutedia Florbela lanccedila matildeo de

aspectos mitoloacutegicos dentro de seus contos que muito nos lembra a triste

histoacuteria de Deacutedalo e Iacutecaro 19 mostrando que o espiacuterito humano de vencer

barreiras e limites nos impulsiona a superar nossas proacuteprias limitaccedilotildees

Alcanccedilar o espaccedilo e as estrelas lanccedilar-se ao infinito experimentar da

sensaccedilatildeo de liberdade interior e o desvendar do misterioso infinito eacute o que

norteia o enredo dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquo O Inventorrdquo

Praticamente todas as culturas destacam o ceacuteu como um lugar especial Esse

local era normalmente designado como a morada dos deuses Muitos povos

consideravam que as constelaccedilotildees eram representaccedilotildees dos seus mitos e

lendas Dessa forma o ceacuteu era um lugar divino e os homens somente o

alcanccedilavam quando eram convidados ou homenageados pelos deuses Mas o

atrevimento de uns culminou na desgraccedila de outros Apenas aqueles com

sabedoria e dotado de iacutentima consciecircncia disciplinar sobre sua condiccedilatildeo

humana conseguiam graccedilas aos olhos dos deuses O conflito interior era um

grande empecilho para que fatos tivessem o desenrolar bem sucedidos

Quando isso natildeo acontecia o homem reconhecia sua condiccedilatildeo de inferioridade

em relaccedilatildeo aos deuses e eram designados ldquofilhos dos homensrdquo

O aparecimento da referecircncia mitoloacutegica pressupotildee uma forte ligaccedilatildeo aos elos

do mito de fundaccedilatildeo que sustenta a harmonia familiar juntamente com

preceitos de moral tendo por priori a identidade pessoal na figura paterna

como eram conhecidos os grandes heroacuteis mitoloacutegicos por serem semideuses

Nesta constante nos eacute dado a conhecer a condiccedilatildeo humana que tambeacutem

aparece de forma intertextualizada como referecircncia ao quadro do flamengo

19 Iacutecaro era filho de Deacutedalo o construtor do labirinto que o rei Minos aprisionava o Minotauro um ser

com corpo de homem e cabeccedila de touro A lenda grega conta que Deacutedalo ensinou Teseu que seria

devorado juntamente com outros jovens pelo monstro como sair do labirinto Deacutedalo sugeriu que ele

deveria utilizar um novelo que deveria ser desenrolado a medida em que fosse penetrando no labirinto

Dessa forma apoacutes ter matado o monstro ele conseguiu fugir do labirinto O rei Minos ficou furioso e

prendeu Deacutedalo e o seu filho Iacutecaro no labirinto Como o rei tinha deixado guardas vigiando as saiacutedas

Deacutedalo construiu asas com penas dos paacutessaros colando-as com cera Antes de levantar voo o pai

recomendou a Iacutecaro que quando ambos estivessem voando natildeo deveriam voar nem muito alto (perto do

Sol cujo calor derreteria a cera) e nem muito baixo (perto do mar pois a unidade tornaria as asas

pesadas) Entretanto a sensaccedilatildeo de voar foi tatildeo estonteante para Iacutecaro que ele esqueceu a recomendaccedilatildeo e

elevou-se tanto nos ares a ponto da previsatildeo de Deacutedalo ocorrer A cera derreteu e Iacutecaro perdeu as asas

precipitando-se no mar e morrendo afogado

21

Brueghel (a Queda de Iacutecaro)20 que Florbela tatildeo bem ilustra com uma descriccedilatildeo

que mais parece uma tela ldquo Os filhos dos homens caacute em baixo deixam cair

nos campos a enxada que faz nascer o patildeo e florir as rosas os pescadores

largam os remos audaciosos que rasgam os mares e os rios e os filhos dos

homens mais duramente castigados os que habitam o formigueiro das cidades

param nas suas insensatas correrias de formigas e todos voltam a face para o

ceacuteurdquo (FLORBELA ESPANCA 199838) Aqui a intertextualidade sugerida

numa linha ecfraacutestica vai de encontro a misteriosa temaacutetica de Florbela

significando isto que o espiacuterito de aventura eacute frequentemente motivo de

incompreensatildeo e de grande solidatildeo

Do mesmo modo que impotildee a condiccedilatildeo de mortal ao homem Florbela o

enaltece dando-lhe honrarias e elevando-o a condiccedilatildeo de um deus ldquo Nos olhos

leva visotildees que os filhos dos homens natildeo conhecem Eacute um homem Deixou laacute

em baixo todo o fardo pesado e vil com que o carregam ao nascer deixou laacute

em baixo todas as algemas todos os feacuterreos grilhotildees que o prendiam toda a

suprema maldiccedilatildeo de ter nascido homem deixou laacute em baixo a sua sacola de

pedinte o seu bordatildeo de Judeu Errante e livre indoacutemito sereno na sua

miacutesera couraccedila de pano azul estendeu em cruz os braccedilos que transformou em

asasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199839) Ao atingir tal supremacia o homem

liberta-se de sua vida anterior e ganha autonomia na forma da liberdade

intriacutenseca conseguindo a superaccedilatildeo de sua forma decadente e de seus

conflitos interiores atraveacutes da liberdade celestial alcanccedilada Deacutedalo foi

conhecido como o arquitecto e artista da liberdade mesmo tendo construiacutedo o

labirinto que eacute a representaccedilatildeo do aprisionamento Aqui Florbela utiliza desse

argumento como se seus escritos fossem labiriacutenticos e teriacuteamos de encontrar

as palavras certas para desvendarmos seus caminhos encontrando neles

assim a liberdade Essa mesma liberdade transformada aqui no voo mais alto

que levaria a traacutegica morte

Apesar de mostrada diferentemente temos aqui mais uma vez a dualidade

que percorre a obra de Florbela o aprisionamento e a liberdade a vida e a

morte antiacuteteses que perfilam seu anseio humano ldquo Um dia julgou ter achado

20 Quadro de Broeghel demonstrando a queda de Iacutecaro no mar enquanto os camponeses prosseguem a sua

labuta diaacuteria

22

Oh aquele dia A embriaguez do homem que se igualou a Deus O coraccedilatildeo a

bater a bater a sentir-se grande demais para um peito tatildeo pequeno para um

tatildeo mesquinho destino A humidade das laacutegrimas a embaciar o olhar gigante

que se esquecera um momento de ter nascido pigmeu O artista o poeta o

inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de movimento e de

vida todos os que desbravavam caminhos os que talham abrem por entre os

matagais selvagens e as belas estradas largas do pensamento e das ideias As

palavras satildeo o muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes

ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)

Ao atingir o voo pleno por vezes nos afastamos da realidade natural e nos

lanccedilamos ao desconhecido sem saber o que nos espera Com isso a queda eacute

inevitaacutevel Neste seguimento vemos a intertextualidade presente sob o estigma

dos cuidados de Zeus filho de Cromo e pai dos deuses que concedeu aos

heroacuteis uma morada afastada dos homens onde os semideuses pudessem se

estabelecer nos confins da terra Eacute laacute que habitam com o coraccedilatildeo livre de

cuidados nas Ilhas dos Bem-Aventurados nas praias dos turbilhotildees profundos

do Oceano satildeo eles os heroacuteis afortunados a quem Florbela tambeacutem concede

a morada preparada como tuacutemulo perfeito para o descanso eterno A

representaccedilatildeo das deusas das aacuteguas na presenccedila das ninfas efidriacuteades21 que

simbolizam a graccedila criativa e fecundadora da natureza fazem aparecer a

presenccedila feminina que surge com o intuito de exaltar a forccedila interior que so a

mulher tem para defrontar situaccedilotildees desastrosas e encontrar soluccedilatildeo nos mais

tenebrosos conflitos bem como de dar um toque de suavidade ternura beleza

e leveza que soacute a performance feminina consegue impor ldquo hellipAs filhas dos

deuses ondinas sereias nereidas princesas encantadas acodem todas

pressurosashellipEm volta das asas mortas satildeo como flores desfolhadas em

redor dum esquife negro E olhamhelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 199842) A

sabedoria feminina evidencia-se ao se manifestar a ldquoque tinha nos olhos uma

nostaacutelgica tristeza humanardquo (FLORBELA ESPANCA 199846) como uma matildee

protectora que acalenta o filho em seu sono profundo e compreende com

tristeza a dor dos mortais ou quem sabe sua proacutepria dor na condiccedilatildeo de

imortal pois somente aos deuses era permitido o poder de arrebatar o espiacuterito

21 Referecircncia as ninfas das aacuteguas da mitologia grega

23

a um homem ldquo E aquele que tinha sido um filho dos homens ficou a dormir na

eternidade como se fora um filho dos deusesrdquo (FLORBELA ESPANCA

199846)

Como podemos perceber Florbela em sua construccedilatildeo literaacuteria delineou nas

entrelinhas dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquoO Inventorrdquo aspectos simboacutelicos

determinantes do aprisionamento e da libertaccedilatildeo humana natildeo somente no

sentido denotativo mas tambeacutem conotativo na multiplicidade de sentidos que

tais palavras propotildeem Apesar da evidecircncia colocada pela escritora ainda nos

remete a reflexatildeo pois o aprisionamento pode ser um meio de libertaccedilatildeo e a

libertaccedilatildeo um aprisionamento ldquohellipOlhou o ceacuteu profundohellipe achou Ser aviador

eacutehellipabraccedilar no mesmo abraccedilo o ceacuteu e o mar Na linguagem dos siacutembolos a

acircncora definindo a esperanccedila nunca poderaacute valer as asas que satildeo a

libertaccedilatildeo A acircncora agarra-se ao fundo e fica as asas abrem-se no espaccedilo e

penetram o ceacuteuhellipSeria aviador Quando pela primeira vez voou natildeo se

esqueceu de sentar na carlinga a seu lado ao lado do seu coraccedilatildeo aquela

que dali em diante seria a companheira de todos os dias a companheira

indefectiacutevel de todos os aviadores a Morterdquo (FLORBELA ESPANCA 1998

129)

A produccedilatildeo intertextual desses dois contos traz-nos um imaginaacuterio voltado aos

princiacutepios fundadores de conceitos e referecircncia humana Florbela baseia-se na

representaccedilatildeo da infacircncia como elemento fundador da personalidade e do

caraacutecter ou seja a figura do pai que nunca a reconheceu em vida e por outro

lado na figura de Deacutedalo e Iacutecaro tendo o pai a dualidade em sua referecircncia

paterna Eacute assim que de ldquotentaccedilatildeo em tentaccedilatildeo de fraqueza em fraqueza os

compromissos de consciecircncia levam um homem honrado agrave praacutetica de todos os

crimeshelliprdquo22

22 Fragmento do conto O Inventor de Florbela Espanca As Maacutescaras do Destino1998122

24

22 - A MULTICIPLIDADE DO HEROacuteI

ldquo A vida parada e recolhida cria heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tarderdquo23

Ao encontrarmos facetas mitoloacutegicas entre as leituras de Florbela natildeo se pode

descartar a visatildeo do heroacutei que a autora engendrou na figura de seu irmatildeo

Apeles Tiacutetulo esse dado a homens excepcionais como Ulisses que eram

venerados por seu povo da mesma forma Florbela nutria uma verdadeira

veneraccedilatildeo que a levou a personificar o Aviador a um heroacutei merecedor de

honrarias e apesar da miacutesera condiccedilatildeo de mortal foi-lhe atribuiacutedo qualidades

fiacutesicas e morais dignas de um semideus ldquo A vida parada e recolhida cria

heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tardehellip o pincel de geacutenio daacute os uacuteltimos

retoques ao cenaacuterio de epopeiahellip laacute em cima a formidaacutevel apoteose desdobra-

se no meio do pasmo das coisas Eacute um homem que tem asas E as asas

pairam descem rodopiam ascendem de novo giram latejam batem ao sol

mais aacutegeis e mais robustas mais leves e mais possantes que as das aacuteguias Eacute

um homem A face eneacutergica vincada a cinzel emerge extraordinaacuteria da vida

intensa na indecisatildeo dos contornos que lhe fazem vagos e paacutelidos um vago

pano de fundo a face e as matildeoshellipOs muacutesculos da face adivinham na forccedila

brutal das maxilas cerradas Nos olhos leva visotildees que os filhos dos homens

natildeo conhecem Os olhos dele natildeo se vecircem olham para dentro e para fora satildeo

pedras como as das estaacutetuas e vecircem mais e mais para aleacutem do que as

miacuteseras pupilas humanas Satildeo astrosrdquo (FLORBELA ESPANCA 199838 e 39)

Esta mesma condiccedilatildeo eacute dada ao Inventor autor da imaginaccedilatildeo de Florbela

ldquoRealizara os seus sonhos todos os seus sonhos Que havia mais agora Jaacute

os homens podiam sulcar os ares sem medo aos vendavais agraves coacuteleras brutais

da Natureza jaacute o ceacuteu se podia coalhar de asas como o mar de velas Todo o

homem poderia ter sem perigo e sem riscos a cobiccedilada sensaccedilatildeo de

comandar nos elementos como um semideusrdquo (FLORBELA ESPANCA

1998133)

Sabemos que o heroacutei constitui o assunto da poesia eacutepica ele tem a sua

maneira proacutepria de agir pela sua coragem e bravura e prossegue objectivos

23 Fragmento do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca198837 e 38

25

bem determinados que ao longo de sua trajectoacuteria lhe satildeo atribuiacutedos cada qual

com sua importacircncia e valor Eacute dado a ele tambeacutem o poder de decisatildeo ora

sobre seus actos ora sobre si mesmo Isso como forma de valorizar sua

sabedoria e supremacia diante daqueles a quem defendia Assim se apresenta

o heroacutei dos contos de Florbela homem-deus detentor de toda visatildeo forte

dominador senhor supremo de seu destino a quem eacute concedido um lugar

eterno junto aos astros

A realidade fictiacutecia da mitologia eacute comparada aqui a realidade autecircntica

Florbela interessa-se pelo seu heroacutei fictiacutecio como se fosse ou tratasse de uma

pessoa real com isso podemos dizer que a escrita ficcional de Florbela eacute

mimese porque a realidade de sua vida humana eacute o seu material de escrita ela

consegue transformar a realidade objectiva na realidade subjectiva vivencial

razatildeo por que nos deixamos influenciar pela sua trajectoacuteria de vida em seus

escritos Isso justifica o fato da ldquovaliosa bravurardquo ndash por uma valiosa pintura - de

seu heroacutei ser retratado em uma tela por um titatilde24 personifica assim a grande

luta travada com as forccedilas da natureza ldquoEacute um Rembrandt pintado por um titatilderdquo

(FLORBELA ESPANCA 199839) A sua proacutepria natureza humana A propoacutesito

disso parece mais reportar ao paradoxo entre o bem e o mal que lutam

constantemente pelo domiacutenio da razatildeo interior talvez alvo de Florbela

Eacute interessante observar a relaccedilatildeo que existe entre o ldquohomem com asasrdquo com

as Harpias25 que na multi-significaccedilatildeo de seu discurso nos projecta a uma

realizaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo na figura do heroacutei alado em uma transposiccedilatildeo

imaginaacuteria com uma pluralidade de sentidos que poderia ocultar um sentido

uacutenico o seu proacuteprio desejo ou o desejo de arrebatar a alma de seu morto

Tambeacutem vemos a intertextualidade corrente na pessoa de Ulisses26 o heroacutei

grego navegante Robson Crusoeacute27 Piratas dos Sete Mares28 aos capitatildees e

24 Referecircncia a segunda geraccedilatildeo dos deus mitoloacutegicos representantes das forccedilas da natureza e sem uma

personalidade bem vincadaos quais Hesiacuteodo enumerou em doze seis machos e seis fecircmeas Oceano Ceacuteu

Crio Hiperiacuteon Jaacutepeto Cronos Teia Reja Teacutemis Mnemoacutesine Febe e Teacutetis 25 As Harpias filhas de Electra (ela proacutepria filha do Titatilde Oceano) e de Taumas (filho de Ponto e de Geia)

pertencem agrave geraccedilatildeo dos preacute-oliacutempicos Elas satildeo irmatildes de iacuteris a mensageira dos deuses Representadas

quer como mulheres aladas com um aspecto fameacutelico quer como paacutessaros com cabeccedila de mulher as

Harpias residem nas ilhas Estroacutefades do mar Egeu ou ainda agraves portas do Taacutertaro Impetuosas e brutais

como a tempestade as Harpias satildeo - este eacute o sentido do seu nome - raptoras com garras fortes 26 Odisseu (na Greacutecia) ou Ulisses (em Roma) eacute um personagem da Iliacuteada e da Odisseacuteia de Homero Apoacutes

a derrota dos troianos ele iniciou uma viagem de dez anos de volta para Iacutetaca onde a sua mulher o espera

com uma fidelidade obstinada apesar da demora Essa viagem mereceu a criaccedilatildeo por Homero do poema

26

navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a

coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a

solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o

enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio

multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos

diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio

Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os

naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de

navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS

Maacutescaras do Destino 1998 p 125)

Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada

com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a

renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que

convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos

escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a

partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental

aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A

viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas

suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte

recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os

heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas

ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o

navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira

de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que

nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era

eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que

deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-

1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado

a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe

herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico

sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O

romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como

tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar

que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os

Lusiacuteadas de Camotildees

27

no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo

da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)

Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida

funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo

conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente

nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de

alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva

Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer

tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos

heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os

portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens

tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que

de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os

navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por

deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da

Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do

texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute

simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no

poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES

1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou

passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da

Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas

natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer

vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de

ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um

heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com

o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas

forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um

aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem

mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva

30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos

Lisboa

Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal

28

presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de

Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura

greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito

especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela

escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a

morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem

para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de

transformaccedilatildeo fantaacutestica

Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que

na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena

confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir

uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute

infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu

desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma

personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo

inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade

aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios

filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa

escritora o seu carma

Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei

que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora

quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem

ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles

desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma

as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista

o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de

movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos

esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do

pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam

As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes

ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)

29

CAPIacuteTULO 03

31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS

ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de

doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32

No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute

intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em

todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do

proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade

de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma

comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro

cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser

estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute

antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de

alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas

oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir

as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava

perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o

fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo

para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que

muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da

escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e

complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e

pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma

formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela

graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa

assume

32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122

30

De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete

agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem

Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites

nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute

podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido

conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao

inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um

ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma

palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a

intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda

e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas

pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma

onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo

(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um

recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o

renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio

inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a

matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada

ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe

mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata

cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de

voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e

122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso

indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam

tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele

o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as

suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um

emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados

que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e

intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica

33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ

31

Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado

transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas

Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e

que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a

imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de

dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada

dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais

significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa

escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e

sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-

as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar

inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos

era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade

existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)

A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio

Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo

tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens

que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de

tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta

ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a

proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo

Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante

notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe

de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e

medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca

mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho

branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a

socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua

presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo

(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo

deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo

queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a

intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia

humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para

32

sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo

pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no

mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais

apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva

enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente

foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)

A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja

como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo

atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute

reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em

busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito

junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos

satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad

que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que

han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas

mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como

meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do

inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os

aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias

34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939

33

32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO

ldquoA vida vem em ondas

Como o mar

Num indo e vindo infinitohelliprdquo35

A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente

foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram

o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios

da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-

portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo

ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura

universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e

nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a

esquizofrenia de sua alma

O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos

grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma

visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes

de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-

racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas

fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma

encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no

espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada

ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar

duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava

que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se

35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos

em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria

imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia

grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios

Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e

cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam

da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela

Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a

sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor

34

sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o

olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de

um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o

seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No

reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que

constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia

Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor

das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que

participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na

claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma

a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial

apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se

imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA

ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta

solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser

acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas

pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de

existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas

dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma

mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar

agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)

As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar

aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de

Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a

37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta

nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet

tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido

advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte

de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga

(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre

1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a

questatildeo (Hamlet ato III cena I)

38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)

que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era

destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar

35

travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes

questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente

humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a

vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa

loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz

a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair

numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua

frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico

mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de

transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a

morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano

capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas

ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de

integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de

totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma

ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade

de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida

dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a

seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas

iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives

mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas

dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a

cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute

perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras

velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida

de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar

costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras

por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e

grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme

O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu

amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do

Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para

toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos

36

Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser

salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma

dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo

desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave

liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos

secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a

uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo

desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a

boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia

pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a

mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais

alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se

nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira

as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de

alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora

julga existir no seu misteacuterio

O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e

forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e

sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que

orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente

num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das

contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute

traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas

que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas

figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas

narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um

imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e

39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII

mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a

bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por

alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua

tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar

Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A

histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito

em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que

aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas

aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma

37

refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus

fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a

sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades

da dinacircmica universal

Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar

simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos

narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos

siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um

contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da

efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma

capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde

diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e

exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia

essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel

mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo

do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do

Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)

e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo

social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)

na representatividade literaacuteria do mar

38

CAPIacuteTULO 04

41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA

ldquoGosto de ti apaixonadamente

De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo

De ti que me trouxeste pela matildeo

Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40

Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso

a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade

directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na

poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua

dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees

Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita

capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e

um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz

e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a

dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas

conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute

e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria

serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem

quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto

anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse

em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita

maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte

com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e

quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e

emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos

paradoxos

40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no

livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004

Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo

Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11

39

Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos

toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-

romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido

num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia

com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes

profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas

sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo

acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando

a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A

derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a

conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas

da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da

sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No

entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas

romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a

impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo

definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha

aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento

em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o

passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era

tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto

A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos

acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-

Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs

Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os

Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de

Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de

Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o

egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo

narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica

Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute

neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o

poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem

40

esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma

essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no

iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma

questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos

encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem

sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos

interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas

as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um

exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo

tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo

daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita

conteacutem

41

42 - UM PERCURSO COMPARATIVO

ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os

vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e

outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que

ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute

foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41

ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto

Olhou em roda natildeo achou ningueacutem

Por entre as campas arrastando o manto

Com lentos passos caminhou aleacutem

Abandonado neste chatildeo repousa

Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui

Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa

Sobre este peito que bateu por tirdquo42

A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e

o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-

romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua

linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa

o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se

O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando

proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos

moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na

literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror

Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou

comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas

circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de

comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e

sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos

41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda

Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos

42

ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de

outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou

Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)

Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal

de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma

optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada

pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada

no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus

sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa

suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois

dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)

Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade

todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional

natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute

afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute

tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima

do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo

Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela

e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a

prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua

intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a

dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as

influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente

que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz

directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para

a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o

intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era

partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada

por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das

rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de

branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza

43

ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas

Longas roupagens de neveda cor

Singela croa de virgiacutenias rosas

Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43

ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de

branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila

devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa

nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)

Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de

conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se

para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da

imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a

partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a

presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os

uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem

eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera

absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor

ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria

A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a

intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um

testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista

e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas

caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da

temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao

fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma

retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras

masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo

homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma

mulher

43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12

44

(hellip)

Mulher formosa que adorei na vida

E que na tumba natildeo cessei damar

Por que atraiccediloas desleal mentida

O amor eterno que te ouvi jurar

Amor engano que na campa finda

Que a morte despe da ilusatildeo falaz

Quem dentros vivos se lembrara ainda

ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)

Talvez que rindo dos protestos nossos

Gozes com outro dinfernal prazer

E o olvido cobriraacute meus ossos

Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44

Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o

vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as

bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis

e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma

essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o

podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA

ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de

sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a

eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos

na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto

com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais

de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas

palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o

esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal

seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu

passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre

44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9

45

que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as

matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos

das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam

para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)

Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno

num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista

melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias

possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela

um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica

natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem

fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo

intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas

rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso

consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo

intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas

solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou

com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a

todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas

as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os

sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado

daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)

Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do

Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais

significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO

MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do

quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e

estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que

desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo

da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina

agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das

espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute

presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos

46

ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido

Das sepulturas o gelado poacute

Dois esqueletos um ao outro unido

Foram achados num sepulcro soacuterdquo45

Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de

imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da

intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo

buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma

enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo

recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as

laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas

deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo

sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais

moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas

austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade

dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete

palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam

pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e

59)

Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao

ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram

escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia

literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo

exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde

ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais

tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo

merecida

45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos

47

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas

interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca

Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo

depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves

transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo

sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia

ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas

metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver

com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao

sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas

tambeacutem ao que relaciona a morte

A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua

eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela

mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e

sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo

quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade

que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas

personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a

humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de

enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e

sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas

e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o

que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte

presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais

condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus

contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e

desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse

interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural

equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes

interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute

Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem

uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses

48

elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o

inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela

tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses

elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma

civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor

sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam

sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do

intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea

Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o

menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que

para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro

compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo

que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou

seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua

imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que

essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar

atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a

outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual

proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque

esconde-se ou projecta-se no discurso do outro

Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o

caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo

relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens

marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um

significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um

desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos

de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e

fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave

realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande

maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe

um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo

46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de

Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360

49

obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a

escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada

Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a

infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute

aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo

espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a

verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes

50

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Page 21: AS MÁSCARAS SIMBÓLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA … Jaqueline... · 2019-10-31 · A narrativa ficcional não é o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca, mas, assim como

21

Brueghel (a Queda de Iacutecaro)20 que Florbela tatildeo bem ilustra com uma descriccedilatildeo

que mais parece uma tela ldquo Os filhos dos homens caacute em baixo deixam cair

nos campos a enxada que faz nascer o patildeo e florir as rosas os pescadores

largam os remos audaciosos que rasgam os mares e os rios e os filhos dos

homens mais duramente castigados os que habitam o formigueiro das cidades

param nas suas insensatas correrias de formigas e todos voltam a face para o

ceacuteurdquo (FLORBELA ESPANCA 199838) Aqui a intertextualidade sugerida

numa linha ecfraacutestica vai de encontro a misteriosa temaacutetica de Florbela

significando isto que o espiacuterito de aventura eacute frequentemente motivo de

incompreensatildeo e de grande solidatildeo

Do mesmo modo que impotildee a condiccedilatildeo de mortal ao homem Florbela o

enaltece dando-lhe honrarias e elevando-o a condiccedilatildeo de um deus ldquo Nos olhos

leva visotildees que os filhos dos homens natildeo conhecem Eacute um homem Deixou laacute

em baixo todo o fardo pesado e vil com que o carregam ao nascer deixou laacute

em baixo todas as algemas todos os feacuterreos grilhotildees que o prendiam toda a

suprema maldiccedilatildeo de ter nascido homem deixou laacute em baixo a sua sacola de

pedinte o seu bordatildeo de Judeu Errante e livre indoacutemito sereno na sua

miacutesera couraccedila de pano azul estendeu em cruz os braccedilos que transformou em

asasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199839) Ao atingir tal supremacia o homem

liberta-se de sua vida anterior e ganha autonomia na forma da liberdade

intriacutenseca conseguindo a superaccedilatildeo de sua forma decadente e de seus

conflitos interiores atraveacutes da liberdade celestial alcanccedilada Deacutedalo foi

conhecido como o arquitecto e artista da liberdade mesmo tendo construiacutedo o

labirinto que eacute a representaccedilatildeo do aprisionamento Aqui Florbela utiliza desse

argumento como se seus escritos fossem labiriacutenticos e teriacuteamos de encontrar

as palavras certas para desvendarmos seus caminhos encontrando neles

assim a liberdade Essa mesma liberdade transformada aqui no voo mais alto

que levaria a traacutegica morte

Apesar de mostrada diferentemente temos aqui mais uma vez a dualidade

que percorre a obra de Florbela o aprisionamento e a liberdade a vida e a

morte antiacuteteses que perfilam seu anseio humano ldquo Um dia julgou ter achado

20 Quadro de Broeghel demonstrando a queda de Iacutecaro no mar enquanto os camponeses prosseguem a sua

labuta diaacuteria

22

Oh aquele dia A embriaguez do homem que se igualou a Deus O coraccedilatildeo a

bater a bater a sentir-se grande demais para um peito tatildeo pequeno para um

tatildeo mesquinho destino A humidade das laacutegrimas a embaciar o olhar gigante

que se esquecera um momento de ter nascido pigmeu O artista o poeta o

inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de movimento e de

vida todos os que desbravavam caminhos os que talham abrem por entre os

matagais selvagens e as belas estradas largas do pensamento e das ideias As

palavras satildeo o muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes

ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)

Ao atingir o voo pleno por vezes nos afastamos da realidade natural e nos

lanccedilamos ao desconhecido sem saber o que nos espera Com isso a queda eacute

inevitaacutevel Neste seguimento vemos a intertextualidade presente sob o estigma

dos cuidados de Zeus filho de Cromo e pai dos deuses que concedeu aos

heroacuteis uma morada afastada dos homens onde os semideuses pudessem se

estabelecer nos confins da terra Eacute laacute que habitam com o coraccedilatildeo livre de

cuidados nas Ilhas dos Bem-Aventurados nas praias dos turbilhotildees profundos

do Oceano satildeo eles os heroacuteis afortunados a quem Florbela tambeacutem concede

a morada preparada como tuacutemulo perfeito para o descanso eterno A

representaccedilatildeo das deusas das aacuteguas na presenccedila das ninfas efidriacuteades21 que

simbolizam a graccedila criativa e fecundadora da natureza fazem aparecer a

presenccedila feminina que surge com o intuito de exaltar a forccedila interior que so a

mulher tem para defrontar situaccedilotildees desastrosas e encontrar soluccedilatildeo nos mais

tenebrosos conflitos bem como de dar um toque de suavidade ternura beleza

e leveza que soacute a performance feminina consegue impor ldquo hellipAs filhas dos

deuses ondinas sereias nereidas princesas encantadas acodem todas

pressurosashellipEm volta das asas mortas satildeo como flores desfolhadas em

redor dum esquife negro E olhamhelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 199842) A

sabedoria feminina evidencia-se ao se manifestar a ldquoque tinha nos olhos uma

nostaacutelgica tristeza humanardquo (FLORBELA ESPANCA 199846) como uma matildee

protectora que acalenta o filho em seu sono profundo e compreende com

tristeza a dor dos mortais ou quem sabe sua proacutepria dor na condiccedilatildeo de

imortal pois somente aos deuses era permitido o poder de arrebatar o espiacuterito

21 Referecircncia as ninfas das aacuteguas da mitologia grega

23

a um homem ldquo E aquele que tinha sido um filho dos homens ficou a dormir na

eternidade como se fora um filho dos deusesrdquo (FLORBELA ESPANCA

199846)

Como podemos perceber Florbela em sua construccedilatildeo literaacuteria delineou nas

entrelinhas dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquoO Inventorrdquo aspectos simboacutelicos

determinantes do aprisionamento e da libertaccedilatildeo humana natildeo somente no

sentido denotativo mas tambeacutem conotativo na multiplicidade de sentidos que

tais palavras propotildeem Apesar da evidecircncia colocada pela escritora ainda nos

remete a reflexatildeo pois o aprisionamento pode ser um meio de libertaccedilatildeo e a

libertaccedilatildeo um aprisionamento ldquohellipOlhou o ceacuteu profundohellipe achou Ser aviador

eacutehellipabraccedilar no mesmo abraccedilo o ceacuteu e o mar Na linguagem dos siacutembolos a

acircncora definindo a esperanccedila nunca poderaacute valer as asas que satildeo a

libertaccedilatildeo A acircncora agarra-se ao fundo e fica as asas abrem-se no espaccedilo e

penetram o ceacuteuhellipSeria aviador Quando pela primeira vez voou natildeo se

esqueceu de sentar na carlinga a seu lado ao lado do seu coraccedilatildeo aquela

que dali em diante seria a companheira de todos os dias a companheira

indefectiacutevel de todos os aviadores a Morterdquo (FLORBELA ESPANCA 1998

129)

A produccedilatildeo intertextual desses dois contos traz-nos um imaginaacuterio voltado aos

princiacutepios fundadores de conceitos e referecircncia humana Florbela baseia-se na

representaccedilatildeo da infacircncia como elemento fundador da personalidade e do

caraacutecter ou seja a figura do pai que nunca a reconheceu em vida e por outro

lado na figura de Deacutedalo e Iacutecaro tendo o pai a dualidade em sua referecircncia

paterna Eacute assim que de ldquotentaccedilatildeo em tentaccedilatildeo de fraqueza em fraqueza os

compromissos de consciecircncia levam um homem honrado agrave praacutetica de todos os

crimeshelliprdquo22

22 Fragmento do conto O Inventor de Florbela Espanca As Maacutescaras do Destino1998122

24

22 - A MULTICIPLIDADE DO HEROacuteI

ldquo A vida parada e recolhida cria heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tarderdquo23

Ao encontrarmos facetas mitoloacutegicas entre as leituras de Florbela natildeo se pode

descartar a visatildeo do heroacutei que a autora engendrou na figura de seu irmatildeo

Apeles Tiacutetulo esse dado a homens excepcionais como Ulisses que eram

venerados por seu povo da mesma forma Florbela nutria uma verdadeira

veneraccedilatildeo que a levou a personificar o Aviador a um heroacutei merecedor de

honrarias e apesar da miacutesera condiccedilatildeo de mortal foi-lhe atribuiacutedo qualidades

fiacutesicas e morais dignas de um semideus ldquo A vida parada e recolhida cria

heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tardehellip o pincel de geacutenio daacute os uacuteltimos

retoques ao cenaacuterio de epopeiahellip laacute em cima a formidaacutevel apoteose desdobra-

se no meio do pasmo das coisas Eacute um homem que tem asas E as asas

pairam descem rodopiam ascendem de novo giram latejam batem ao sol

mais aacutegeis e mais robustas mais leves e mais possantes que as das aacuteguias Eacute

um homem A face eneacutergica vincada a cinzel emerge extraordinaacuteria da vida

intensa na indecisatildeo dos contornos que lhe fazem vagos e paacutelidos um vago

pano de fundo a face e as matildeoshellipOs muacutesculos da face adivinham na forccedila

brutal das maxilas cerradas Nos olhos leva visotildees que os filhos dos homens

natildeo conhecem Os olhos dele natildeo se vecircem olham para dentro e para fora satildeo

pedras como as das estaacutetuas e vecircem mais e mais para aleacutem do que as

miacuteseras pupilas humanas Satildeo astrosrdquo (FLORBELA ESPANCA 199838 e 39)

Esta mesma condiccedilatildeo eacute dada ao Inventor autor da imaginaccedilatildeo de Florbela

ldquoRealizara os seus sonhos todos os seus sonhos Que havia mais agora Jaacute

os homens podiam sulcar os ares sem medo aos vendavais agraves coacuteleras brutais

da Natureza jaacute o ceacuteu se podia coalhar de asas como o mar de velas Todo o

homem poderia ter sem perigo e sem riscos a cobiccedilada sensaccedilatildeo de

comandar nos elementos como um semideusrdquo (FLORBELA ESPANCA

1998133)

Sabemos que o heroacutei constitui o assunto da poesia eacutepica ele tem a sua

maneira proacutepria de agir pela sua coragem e bravura e prossegue objectivos

23 Fragmento do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca198837 e 38

25

bem determinados que ao longo de sua trajectoacuteria lhe satildeo atribuiacutedos cada qual

com sua importacircncia e valor Eacute dado a ele tambeacutem o poder de decisatildeo ora

sobre seus actos ora sobre si mesmo Isso como forma de valorizar sua

sabedoria e supremacia diante daqueles a quem defendia Assim se apresenta

o heroacutei dos contos de Florbela homem-deus detentor de toda visatildeo forte

dominador senhor supremo de seu destino a quem eacute concedido um lugar

eterno junto aos astros

A realidade fictiacutecia da mitologia eacute comparada aqui a realidade autecircntica

Florbela interessa-se pelo seu heroacutei fictiacutecio como se fosse ou tratasse de uma

pessoa real com isso podemos dizer que a escrita ficcional de Florbela eacute

mimese porque a realidade de sua vida humana eacute o seu material de escrita ela

consegue transformar a realidade objectiva na realidade subjectiva vivencial

razatildeo por que nos deixamos influenciar pela sua trajectoacuteria de vida em seus

escritos Isso justifica o fato da ldquovaliosa bravurardquo ndash por uma valiosa pintura - de

seu heroacutei ser retratado em uma tela por um titatilde24 personifica assim a grande

luta travada com as forccedilas da natureza ldquoEacute um Rembrandt pintado por um titatilderdquo

(FLORBELA ESPANCA 199839) A sua proacutepria natureza humana A propoacutesito

disso parece mais reportar ao paradoxo entre o bem e o mal que lutam

constantemente pelo domiacutenio da razatildeo interior talvez alvo de Florbela

Eacute interessante observar a relaccedilatildeo que existe entre o ldquohomem com asasrdquo com

as Harpias25 que na multi-significaccedilatildeo de seu discurso nos projecta a uma

realizaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo na figura do heroacutei alado em uma transposiccedilatildeo

imaginaacuteria com uma pluralidade de sentidos que poderia ocultar um sentido

uacutenico o seu proacuteprio desejo ou o desejo de arrebatar a alma de seu morto

Tambeacutem vemos a intertextualidade corrente na pessoa de Ulisses26 o heroacutei

grego navegante Robson Crusoeacute27 Piratas dos Sete Mares28 aos capitatildees e

24 Referecircncia a segunda geraccedilatildeo dos deus mitoloacutegicos representantes das forccedilas da natureza e sem uma

personalidade bem vincadaos quais Hesiacuteodo enumerou em doze seis machos e seis fecircmeas Oceano Ceacuteu

Crio Hiperiacuteon Jaacutepeto Cronos Teia Reja Teacutemis Mnemoacutesine Febe e Teacutetis 25 As Harpias filhas de Electra (ela proacutepria filha do Titatilde Oceano) e de Taumas (filho de Ponto e de Geia)

pertencem agrave geraccedilatildeo dos preacute-oliacutempicos Elas satildeo irmatildes de iacuteris a mensageira dos deuses Representadas

quer como mulheres aladas com um aspecto fameacutelico quer como paacutessaros com cabeccedila de mulher as

Harpias residem nas ilhas Estroacutefades do mar Egeu ou ainda agraves portas do Taacutertaro Impetuosas e brutais

como a tempestade as Harpias satildeo - este eacute o sentido do seu nome - raptoras com garras fortes 26 Odisseu (na Greacutecia) ou Ulisses (em Roma) eacute um personagem da Iliacuteada e da Odisseacuteia de Homero Apoacutes

a derrota dos troianos ele iniciou uma viagem de dez anos de volta para Iacutetaca onde a sua mulher o espera

com uma fidelidade obstinada apesar da demora Essa viagem mereceu a criaccedilatildeo por Homero do poema

26

navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a

coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a

solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o

enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio

multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos

diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio

Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os

naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de

navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS

Maacutescaras do Destino 1998 p 125)

Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada

com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a

renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que

convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos

escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a

partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental

aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A

viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas

suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte

recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os

heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas

ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o

navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira

de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que

nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era

eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que

deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-

1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado

a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe

herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico

sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O

romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como

tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar

que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os

Lusiacuteadas de Camotildees

27

no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo

da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)

Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida

funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo

conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente

nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de

alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva

Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer

tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos

heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os

portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens

tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que

de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os

navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por

deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da

Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do

texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute

simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no

poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES

1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou

passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da

Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas

natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer

vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de

ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um

heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com

o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas

forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um

aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem

mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva

30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos

Lisboa

Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal

28

presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de

Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura

greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito

especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela

escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a

morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem

para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de

transformaccedilatildeo fantaacutestica

Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que

na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena

confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir

uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute

infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu

desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma

personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo

inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade

aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios

filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa

escritora o seu carma

Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei

que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora

quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem

ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles

desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma

as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista

o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de

movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos

esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do

pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam

As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes

ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)

29

CAPIacuteTULO 03

31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS

ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de

doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32

No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute

intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em

todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do

proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade

de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma

comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro

cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser

estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute

antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de

alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas

oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir

as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava

perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o

fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo

para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que

muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da

escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e

complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e

pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma

formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela

graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa

assume

32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122

30

De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete

agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem

Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites

nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute

podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido

conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao

inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um

ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma

palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a

intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda

e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas

pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma

onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo

(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um

recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o

renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio

inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a

matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada

ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe

mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata

cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de

voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e

122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso

indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam

tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele

o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as

suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um

emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados

que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e

intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica

33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ

31

Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado

transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas

Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e

que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a

imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de

dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada

dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais

significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa

escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e

sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-

as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar

inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos

era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade

existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)

A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio

Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo

tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens

que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de

tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta

ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a

proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo

Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante

notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe

de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e

medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca

mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho

branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a

socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua

presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo

(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo

deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo

queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a

intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia

humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para

32

sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo

pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no

mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais

apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva

enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente

foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)

A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja

como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo

atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute

reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em

busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito

junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos

satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad

que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que

han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas

mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como

meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do

inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os

aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias

34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939

33

32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO

ldquoA vida vem em ondas

Como o mar

Num indo e vindo infinitohelliprdquo35

A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente

foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram

o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios

da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-

portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo

ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura

universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e

nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a

esquizofrenia de sua alma

O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos

grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma

visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes

de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-

racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas

fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma

encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no

espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada

ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar

duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava

que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se

35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos

em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria

imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia

grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios

Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e

cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam

da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela

Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a

sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor

34

sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o

olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de

um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o

seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No

reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que

constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia

Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor

das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que

participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na

claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma

a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial

apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se

imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA

ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta

solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser

acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas

pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de

existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas

dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma

mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar

agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)

As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar

aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de

Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a

37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta

nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet

tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido

advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte

de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga

(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre

1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a

questatildeo (Hamlet ato III cena I)

38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)

que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era

destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar

35

travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes

questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente

humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a

vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa

loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz

a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair

numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua

frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico

mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de

transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a

morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano

capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas

ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de

integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de

totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma

ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade

de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida

dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a

seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas

iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives

mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas

dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a

cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute

perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras

velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida

de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar

costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras

por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e

grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme

O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu

amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do

Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para

toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos

36

Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser

salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma

dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo

desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave

liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos

secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a

uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo

desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a

boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia

pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a

mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais

alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se

nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira

as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de

alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora

julga existir no seu misteacuterio

O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e

forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e

sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que

orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente

num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das

contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute

traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas

que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas

figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas

narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um

imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e

39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII

mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a

bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por

alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua

tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar

Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A

histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito

em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que

aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas

aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma

37

refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus

fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a

sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades

da dinacircmica universal

Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar

simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos

narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos

siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um

contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da

efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma

capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde

diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e

exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia

essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel

mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo

do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do

Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)

e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo

social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)

na representatividade literaacuteria do mar

38

CAPIacuteTULO 04

41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA

ldquoGosto de ti apaixonadamente

De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo

De ti que me trouxeste pela matildeo

Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40

Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso

a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade

directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na

poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua

dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees

Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita

capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e

um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz

e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a

dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas

conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute

e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria

serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem

quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto

anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse

em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita

maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte

com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e

quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e

emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos

paradoxos

40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no

livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004

Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo

Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11

39

Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos

toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-

romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido

num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia

com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes

profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas

sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo

acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando

a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A

derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a

conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas

da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da

sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No

entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas

romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a

impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo

definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha

aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento

em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o

passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era

tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto

A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos

acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-

Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs

Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os

Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de

Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de

Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o

egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo

narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica

Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute

neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o

poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem

40

esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma

essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no

iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma

questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos

encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem

sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos

interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas

as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um

exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo

tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo

daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita

conteacutem

41

42 - UM PERCURSO COMPARATIVO

ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os

vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e

outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que

ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute

foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41

ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto

Olhou em roda natildeo achou ningueacutem

Por entre as campas arrastando o manto

Com lentos passos caminhou aleacutem

Abandonado neste chatildeo repousa

Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui

Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa

Sobre este peito que bateu por tirdquo42

A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e

o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-

romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua

linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa

o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se

O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando

proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos

moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na

literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror

Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou

comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas

circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de

comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e

sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos

41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda

Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos

42

ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de

outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou

Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)

Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal

de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma

optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada

pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada

no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus

sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa

suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois

dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)

Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade

todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional

natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute

afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute

tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima

do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo

Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela

e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a

prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua

intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a

dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as

influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente

que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz

directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para

a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o

intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era

partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada

por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das

rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de

branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza

43

ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas

Longas roupagens de neveda cor

Singela croa de virgiacutenias rosas

Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43

ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de

branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila

devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa

nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)

Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de

conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se

para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da

imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a

partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a

presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os

uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem

eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera

absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor

ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria

A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a

intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um

testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista

e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas

caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da

temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao

fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma

retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras

masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo

homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma

mulher

43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12

44

(hellip)

Mulher formosa que adorei na vida

E que na tumba natildeo cessei damar

Por que atraiccediloas desleal mentida

O amor eterno que te ouvi jurar

Amor engano que na campa finda

Que a morte despe da ilusatildeo falaz

Quem dentros vivos se lembrara ainda

ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)

Talvez que rindo dos protestos nossos

Gozes com outro dinfernal prazer

E o olvido cobriraacute meus ossos

Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44

Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o

vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as

bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis

e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma

essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o

podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA

ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de

sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a

eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos

na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto

com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais

de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas

palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o

esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal

seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu

passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre

44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9

45

que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as

matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos

das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam

para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)

Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno

num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista

melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias

possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela

um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica

natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem

fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo

intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas

rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso

consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo

intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas

solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou

com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a

todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas

as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os

sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado

daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)

Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do

Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais

significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO

MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do

quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e

estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que

desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo

da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina

agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das

espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute

presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos

46

ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido

Das sepulturas o gelado poacute

Dois esqueletos um ao outro unido

Foram achados num sepulcro soacuterdquo45

Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de

imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da

intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo

buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma

enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo

recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as

laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas

deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo

sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais

moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas

austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade

dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete

palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam

pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e

59)

Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao

ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram

escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia

literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo

exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde

ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais

tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo

merecida

45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos

47

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas

interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca

Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo

depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves

transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo

sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia

ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas

metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver

com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao

sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas

tambeacutem ao que relaciona a morte

A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua

eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela

mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e

sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo

quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade

que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas

personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a

humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de

enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e

sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas

e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o

que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte

presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais

condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus

contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e

desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse

interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural

equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes

interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute

Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem

uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses

48

elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o

inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela

tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses

elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma

civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor

sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam

sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do

intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea

Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o

menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que

para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro

compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo

que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou

seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua

imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que

essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar

atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a

outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual

proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque

esconde-se ou projecta-se no discurso do outro

Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o

caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo

relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens

marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um

significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um

desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos

de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e

fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave

realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande

maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe

um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo

46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de

Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360

49

obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a

escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada

Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a

infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute

aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo

espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a

verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes

50

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httpwwwprahojecombrflorbelacat=15

httpwwwfclarunespbrpublicaccedilotildeesrevistaliberdadehtm

httparestasdeventonosapoptlabaredas2html

Page 22: AS MÁSCARAS SIMBÓLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA … Jaqueline... · 2019-10-31 · A narrativa ficcional não é o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca, mas, assim como

22

Oh aquele dia A embriaguez do homem que se igualou a Deus O coraccedilatildeo a

bater a bater a sentir-se grande demais para um peito tatildeo pequeno para um

tatildeo mesquinho destino A humidade das laacutegrimas a embaciar o olhar gigante

que se esquecera um momento de ter nascido pigmeu O artista o poeta o

inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de movimento e de

vida todos os que desbravavam caminhos os que talham abrem por entre os

matagais selvagens e as belas estradas largas do pensamento e das ideias As

palavras satildeo o muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes

ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)

Ao atingir o voo pleno por vezes nos afastamos da realidade natural e nos

lanccedilamos ao desconhecido sem saber o que nos espera Com isso a queda eacute

inevitaacutevel Neste seguimento vemos a intertextualidade presente sob o estigma

dos cuidados de Zeus filho de Cromo e pai dos deuses que concedeu aos

heroacuteis uma morada afastada dos homens onde os semideuses pudessem se

estabelecer nos confins da terra Eacute laacute que habitam com o coraccedilatildeo livre de

cuidados nas Ilhas dos Bem-Aventurados nas praias dos turbilhotildees profundos

do Oceano satildeo eles os heroacuteis afortunados a quem Florbela tambeacutem concede

a morada preparada como tuacutemulo perfeito para o descanso eterno A

representaccedilatildeo das deusas das aacuteguas na presenccedila das ninfas efidriacuteades21 que

simbolizam a graccedila criativa e fecundadora da natureza fazem aparecer a

presenccedila feminina que surge com o intuito de exaltar a forccedila interior que so a

mulher tem para defrontar situaccedilotildees desastrosas e encontrar soluccedilatildeo nos mais

tenebrosos conflitos bem como de dar um toque de suavidade ternura beleza

e leveza que soacute a performance feminina consegue impor ldquo hellipAs filhas dos

deuses ondinas sereias nereidas princesas encantadas acodem todas

pressurosashellipEm volta das asas mortas satildeo como flores desfolhadas em

redor dum esquife negro E olhamhelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 199842) A

sabedoria feminina evidencia-se ao se manifestar a ldquoque tinha nos olhos uma

nostaacutelgica tristeza humanardquo (FLORBELA ESPANCA 199846) como uma matildee

protectora que acalenta o filho em seu sono profundo e compreende com

tristeza a dor dos mortais ou quem sabe sua proacutepria dor na condiccedilatildeo de

imortal pois somente aos deuses era permitido o poder de arrebatar o espiacuterito

21 Referecircncia as ninfas das aacuteguas da mitologia grega

23

a um homem ldquo E aquele que tinha sido um filho dos homens ficou a dormir na

eternidade como se fora um filho dos deusesrdquo (FLORBELA ESPANCA

199846)

Como podemos perceber Florbela em sua construccedilatildeo literaacuteria delineou nas

entrelinhas dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquoO Inventorrdquo aspectos simboacutelicos

determinantes do aprisionamento e da libertaccedilatildeo humana natildeo somente no

sentido denotativo mas tambeacutem conotativo na multiplicidade de sentidos que

tais palavras propotildeem Apesar da evidecircncia colocada pela escritora ainda nos

remete a reflexatildeo pois o aprisionamento pode ser um meio de libertaccedilatildeo e a

libertaccedilatildeo um aprisionamento ldquohellipOlhou o ceacuteu profundohellipe achou Ser aviador

eacutehellipabraccedilar no mesmo abraccedilo o ceacuteu e o mar Na linguagem dos siacutembolos a

acircncora definindo a esperanccedila nunca poderaacute valer as asas que satildeo a

libertaccedilatildeo A acircncora agarra-se ao fundo e fica as asas abrem-se no espaccedilo e

penetram o ceacuteuhellipSeria aviador Quando pela primeira vez voou natildeo se

esqueceu de sentar na carlinga a seu lado ao lado do seu coraccedilatildeo aquela

que dali em diante seria a companheira de todos os dias a companheira

indefectiacutevel de todos os aviadores a Morterdquo (FLORBELA ESPANCA 1998

129)

A produccedilatildeo intertextual desses dois contos traz-nos um imaginaacuterio voltado aos

princiacutepios fundadores de conceitos e referecircncia humana Florbela baseia-se na

representaccedilatildeo da infacircncia como elemento fundador da personalidade e do

caraacutecter ou seja a figura do pai que nunca a reconheceu em vida e por outro

lado na figura de Deacutedalo e Iacutecaro tendo o pai a dualidade em sua referecircncia

paterna Eacute assim que de ldquotentaccedilatildeo em tentaccedilatildeo de fraqueza em fraqueza os

compromissos de consciecircncia levam um homem honrado agrave praacutetica de todos os

crimeshelliprdquo22

22 Fragmento do conto O Inventor de Florbela Espanca As Maacutescaras do Destino1998122

24

22 - A MULTICIPLIDADE DO HEROacuteI

ldquo A vida parada e recolhida cria heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tarderdquo23

Ao encontrarmos facetas mitoloacutegicas entre as leituras de Florbela natildeo se pode

descartar a visatildeo do heroacutei que a autora engendrou na figura de seu irmatildeo

Apeles Tiacutetulo esse dado a homens excepcionais como Ulisses que eram

venerados por seu povo da mesma forma Florbela nutria uma verdadeira

veneraccedilatildeo que a levou a personificar o Aviador a um heroacutei merecedor de

honrarias e apesar da miacutesera condiccedilatildeo de mortal foi-lhe atribuiacutedo qualidades

fiacutesicas e morais dignas de um semideus ldquo A vida parada e recolhida cria

heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tardehellip o pincel de geacutenio daacute os uacuteltimos

retoques ao cenaacuterio de epopeiahellip laacute em cima a formidaacutevel apoteose desdobra-

se no meio do pasmo das coisas Eacute um homem que tem asas E as asas

pairam descem rodopiam ascendem de novo giram latejam batem ao sol

mais aacutegeis e mais robustas mais leves e mais possantes que as das aacuteguias Eacute

um homem A face eneacutergica vincada a cinzel emerge extraordinaacuteria da vida

intensa na indecisatildeo dos contornos que lhe fazem vagos e paacutelidos um vago

pano de fundo a face e as matildeoshellipOs muacutesculos da face adivinham na forccedila

brutal das maxilas cerradas Nos olhos leva visotildees que os filhos dos homens

natildeo conhecem Os olhos dele natildeo se vecircem olham para dentro e para fora satildeo

pedras como as das estaacutetuas e vecircem mais e mais para aleacutem do que as

miacuteseras pupilas humanas Satildeo astrosrdquo (FLORBELA ESPANCA 199838 e 39)

Esta mesma condiccedilatildeo eacute dada ao Inventor autor da imaginaccedilatildeo de Florbela

ldquoRealizara os seus sonhos todos os seus sonhos Que havia mais agora Jaacute

os homens podiam sulcar os ares sem medo aos vendavais agraves coacuteleras brutais

da Natureza jaacute o ceacuteu se podia coalhar de asas como o mar de velas Todo o

homem poderia ter sem perigo e sem riscos a cobiccedilada sensaccedilatildeo de

comandar nos elementos como um semideusrdquo (FLORBELA ESPANCA

1998133)

Sabemos que o heroacutei constitui o assunto da poesia eacutepica ele tem a sua

maneira proacutepria de agir pela sua coragem e bravura e prossegue objectivos

23 Fragmento do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca198837 e 38

25

bem determinados que ao longo de sua trajectoacuteria lhe satildeo atribuiacutedos cada qual

com sua importacircncia e valor Eacute dado a ele tambeacutem o poder de decisatildeo ora

sobre seus actos ora sobre si mesmo Isso como forma de valorizar sua

sabedoria e supremacia diante daqueles a quem defendia Assim se apresenta

o heroacutei dos contos de Florbela homem-deus detentor de toda visatildeo forte

dominador senhor supremo de seu destino a quem eacute concedido um lugar

eterno junto aos astros

A realidade fictiacutecia da mitologia eacute comparada aqui a realidade autecircntica

Florbela interessa-se pelo seu heroacutei fictiacutecio como se fosse ou tratasse de uma

pessoa real com isso podemos dizer que a escrita ficcional de Florbela eacute

mimese porque a realidade de sua vida humana eacute o seu material de escrita ela

consegue transformar a realidade objectiva na realidade subjectiva vivencial

razatildeo por que nos deixamos influenciar pela sua trajectoacuteria de vida em seus

escritos Isso justifica o fato da ldquovaliosa bravurardquo ndash por uma valiosa pintura - de

seu heroacutei ser retratado em uma tela por um titatilde24 personifica assim a grande

luta travada com as forccedilas da natureza ldquoEacute um Rembrandt pintado por um titatilderdquo

(FLORBELA ESPANCA 199839) A sua proacutepria natureza humana A propoacutesito

disso parece mais reportar ao paradoxo entre o bem e o mal que lutam

constantemente pelo domiacutenio da razatildeo interior talvez alvo de Florbela

Eacute interessante observar a relaccedilatildeo que existe entre o ldquohomem com asasrdquo com

as Harpias25 que na multi-significaccedilatildeo de seu discurso nos projecta a uma

realizaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo na figura do heroacutei alado em uma transposiccedilatildeo

imaginaacuteria com uma pluralidade de sentidos que poderia ocultar um sentido

uacutenico o seu proacuteprio desejo ou o desejo de arrebatar a alma de seu morto

Tambeacutem vemos a intertextualidade corrente na pessoa de Ulisses26 o heroacutei

grego navegante Robson Crusoeacute27 Piratas dos Sete Mares28 aos capitatildees e

24 Referecircncia a segunda geraccedilatildeo dos deus mitoloacutegicos representantes das forccedilas da natureza e sem uma

personalidade bem vincadaos quais Hesiacuteodo enumerou em doze seis machos e seis fecircmeas Oceano Ceacuteu

Crio Hiperiacuteon Jaacutepeto Cronos Teia Reja Teacutemis Mnemoacutesine Febe e Teacutetis 25 As Harpias filhas de Electra (ela proacutepria filha do Titatilde Oceano) e de Taumas (filho de Ponto e de Geia)

pertencem agrave geraccedilatildeo dos preacute-oliacutempicos Elas satildeo irmatildes de iacuteris a mensageira dos deuses Representadas

quer como mulheres aladas com um aspecto fameacutelico quer como paacutessaros com cabeccedila de mulher as

Harpias residem nas ilhas Estroacutefades do mar Egeu ou ainda agraves portas do Taacutertaro Impetuosas e brutais

como a tempestade as Harpias satildeo - este eacute o sentido do seu nome - raptoras com garras fortes 26 Odisseu (na Greacutecia) ou Ulisses (em Roma) eacute um personagem da Iliacuteada e da Odisseacuteia de Homero Apoacutes

a derrota dos troianos ele iniciou uma viagem de dez anos de volta para Iacutetaca onde a sua mulher o espera

com uma fidelidade obstinada apesar da demora Essa viagem mereceu a criaccedilatildeo por Homero do poema

26

navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a

coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a

solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o

enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio

multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos

diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio

Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os

naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de

navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS

Maacutescaras do Destino 1998 p 125)

Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada

com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a

renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que

convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos

escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a

partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental

aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A

viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas

suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte

recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os

heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas

ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o

navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira

de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que

nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era

eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que

deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-

1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado

a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe

herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico

sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O

romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como

tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar

que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os

Lusiacuteadas de Camotildees

27

no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo

da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)

Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida

funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo

conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente

nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de

alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva

Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer

tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos

heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os

portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens

tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que

de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os

navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por

deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da

Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do

texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute

simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no

poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES

1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou

passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da

Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas

natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer

vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de

ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um

heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com

o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas

forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um

aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem

mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva

30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos

Lisboa

Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal

28

presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de

Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura

greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito

especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela

escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a

morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem

para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de

transformaccedilatildeo fantaacutestica

Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que

na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena

confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir

uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute

infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu

desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma

personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo

inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade

aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios

filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa

escritora o seu carma

Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei

que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora

quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem

ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles

desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma

as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista

o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de

movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos

esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do

pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam

As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes

ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)

29

CAPIacuteTULO 03

31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS

ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de

doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32

No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute

intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em

todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do

proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade

de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma

comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro

cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser

estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute

antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de

alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas

oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir

as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava

perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o

fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo

para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que

muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da

escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e

complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e

pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma

formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela

graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa

assume

32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122

30

De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete

agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem

Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites

nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute

podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido

conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao

inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um

ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma

palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a

intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda

e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas

pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma

onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo

(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um

recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o

renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio

inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a

matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada

ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe

mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata

cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de

voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e

122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso

indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam

tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele

o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as

suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um

emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados

que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e

intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica

33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ

31

Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado

transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas

Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e

que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a

imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de

dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada

dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais

significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa

escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e

sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-

as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar

inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos

era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade

existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)

A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio

Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo

tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens

que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de

tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta

ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a

proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo

Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante

notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe

de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e

medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca

mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho

branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a

socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua

presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo

(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo

deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo

queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a

intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia

humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para

32

sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo

pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no

mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais

apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva

enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente

foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)

A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja

como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo

atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute

reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em

busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito

junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos

satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad

que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que

han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas

mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como

meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do

inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os

aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias

34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939

33

32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO

ldquoA vida vem em ondas

Como o mar

Num indo e vindo infinitohelliprdquo35

A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente

foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram

o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios

da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-

portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo

ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura

universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e

nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a

esquizofrenia de sua alma

O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos

grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma

visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes

de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-

racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas

fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma

encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no

espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada

ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar

duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava

que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se

35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos

em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria

imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia

grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios

Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e

cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam

da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela

Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a

sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor

34

sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o

olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de

um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o

seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No

reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que

constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia

Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor

das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que

participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na

claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma

a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial

apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se

imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA

ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta

solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser

acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas

pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de

existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas

dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma

mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar

agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)

As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar

aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de

Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a

37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta

nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet

tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido

advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte

de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga

(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre

1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a

questatildeo (Hamlet ato III cena I)

38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)

que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era

destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar

35

travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes

questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente

humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a

vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa

loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz

a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair

numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua

frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico

mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de

transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a

morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano

capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas

ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de

integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de

totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma

ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade

de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida

dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a

seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas

iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives

mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas

dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a

cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute

perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras

velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida

de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar

costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras

por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e

grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme

O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu

amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do

Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para

toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos

36

Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser

salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma

dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo

desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave

liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos

secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a

uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo

desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a

boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia

pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a

mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais

alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se

nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira

as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de

alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora

julga existir no seu misteacuterio

O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e

forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e

sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que

orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente

num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das

contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute

traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas

que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas

figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas

narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um

imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e

39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII

mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a

bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por

alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua

tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar

Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A

histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito

em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que

aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas

aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma

37

refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus

fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a

sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades

da dinacircmica universal

Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar

simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos

narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos

siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um

contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da

efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma

capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde

diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e

exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia

essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel

mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo

do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do

Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)

e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo

social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)

na representatividade literaacuteria do mar

38

CAPIacuteTULO 04

41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA

ldquoGosto de ti apaixonadamente

De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo

De ti que me trouxeste pela matildeo

Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40

Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso

a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade

directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na

poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua

dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees

Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita

capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e

um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz

e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a

dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas

conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute

e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria

serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem

quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto

anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse

em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita

maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte

com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e

quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e

emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos

paradoxos

40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no

livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004

Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo

Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11

39

Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos

toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-

romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido

num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia

com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes

profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas

sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo

acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando

a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A

derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a

conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas

da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da

sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No

entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas

romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a

impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo

definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha

aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento

em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o

passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era

tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto

A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos

acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-

Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs

Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os

Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de

Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de

Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o

egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo

narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica

Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute

neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o

poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem

40

esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma

essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no

iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma

questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos

encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem

sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos

interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas

as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um

exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo

tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo

daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita

conteacutem

41

42 - UM PERCURSO COMPARATIVO

ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os

vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e

outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que

ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute

foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41

ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto

Olhou em roda natildeo achou ningueacutem

Por entre as campas arrastando o manto

Com lentos passos caminhou aleacutem

Abandonado neste chatildeo repousa

Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui

Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa

Sobre este peito que bateu por tirdquo42

A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e

o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-

romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua

linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa

o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se

O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando

proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos

moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na

literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror

Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou

comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas

circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de

comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e

sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos

41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda

Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos

42

ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de

outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou

Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)

Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal

de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma

optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada

pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada

no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus

sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa

suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois

dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)

Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade

todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional

natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute

afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute

tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima

do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo

Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela

e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a

prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua

intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a

dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as

influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente

que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz

directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para

a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o

intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era

partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada

por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das

rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de

branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza

43

ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas

Longas roupagens de neveda cor

Singela croa de virgiacutenias rosas

Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43

ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de

branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila

devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa

nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)

Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de

conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se

para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da

imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a

partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a

presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os

uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem

eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera

absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor

ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria

A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a

intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um

testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista

e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas

caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da

temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao

fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma

retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras

masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo

homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma

mulher

43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12

44

(hellip)

Mulher formosa que adorei na vida

E que na tumba natildeo cessei damar

Por que atraiccediloas desleal mentida

O amor eterno que te ouvi jurar

Amor engano que na campa finda

Que a morte despe da ilusatildeo falaz

Quem dentros vivos se lembrara ainda

ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)

Talvez que rindo dos protestos nossos

Gozes com outro dinfernal prazer

E o olvido cobriraacute meus ossos

Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44

Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o

vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as

bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis

e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma

essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o

podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA

ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de

sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a

eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos

na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto

com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais

de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas

palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o

esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal

seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu

passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre

44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9

45

que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as

matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos

das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam

para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)

Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno

num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista

melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias

possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela

um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica

natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem

fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo

intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas

rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso

consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo

intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas

solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou

com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a

todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas

as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os

sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado

daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)

Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do

Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais

significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO

MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do

quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e

estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que

desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo

da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina

agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das

espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute

presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos

46

ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido

Das sepulturas o gelado poacute

Dois esqueletos um ao outro unido

Foram achados num sepulcro soacuterdquo45

Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de

imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da

intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo

buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma

enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo

recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as

laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas

deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo

sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais

moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas

austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade

dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete

palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam

pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e

59)

Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao

ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram

escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia

literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo

exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde

ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais

tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo

merecida

45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos

47

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas

interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca

Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo

depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves

transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo

sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia

ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas

metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver

com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao

sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas

tambeacutem ao que relaciona a morte

A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua

eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela

mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e

sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo

quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade

que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas

personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a

humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de

enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e

sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas

e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o

que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte

presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais

condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus

contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e

desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse

interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural

equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes

interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute

Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem

uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses

48

elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o

inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela

tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses

elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma

civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor

sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam

sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do

intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea

Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o

menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que

para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro

compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo

que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou

seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua

imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que

essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar

atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a

outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual

proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque

esconde-se ou projecta-se no discurso do outro

Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o

caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo

relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens

marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um

significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um

desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos

de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e

fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave

realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande

maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe

um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo

46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de

Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360

49

obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a

escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada

Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a

infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute

aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo

espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a

verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes

50

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Page 23: AS MÁSCARAS SIMBÓLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA … Jaqueline... · 2019-10-31 · A narrativa ficcional não é o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca, mas, assim como

23

a um homem ldquo E aquele que tinha sido um filho dos homens ficou a dormir na

eternidade como se fora um filho dos deusesrdquo (FLORBELA ESPANCA

199846)

Como podemos perceber Florbela em sua construccedilatildeo literaacuteria delineou nas

entrelinhas dos contos ldquoO Aviadorrdquo e ldquoO Inventorrdquo aspectos simboacutelicos

determinantes do aprisionamento e da libertaccedilatildeo humana natildeo somente no

sentido denotativo mas tambeacutem conotativo na multiplicidade de sentidos que

tais palavras propotildeem Apesar da evidecircncia colocada pela escritora ainda nos

remete a reflexatildeo pois o aprisionamento pode ser um meio de libertaccedilatildeo e a

libertaccedilatildeo um aprisionamento ldquohellipOlhou o ceacuteu profundohellipe achou Ser aviador

eacutehellipabraccedilar no mesmo abraccedilo o ceacuteu e o mar Na linguagem dos siacutembolos a

acircncora definindo a esperanccedila nunca poderaacute valer as asas que satildeo a

libertaccedilatildeo A acircncora agarra-se ao fundo e fica as asas abrem-se no espaccedilo e

penetram o ceacuteuhellipSeria aviador Quando pela primeira vez voou natildeo se

esqueceu de sentar na carlinga a seu lado ao lado do seu coraccedilatildeo aquela

que dali em diante seria a companheira de todos os dias a companheira

indefectiacutevel de todos os aviadores a Morterdquo (FLORBELA ESPANCA 1998

129)

A produccedilatildeo intertextual desses dois contos traz-nos um imaginaacuterio voltado aos

princiacutepios fundadores de conceitos e referecircncia humana Florbela baseia-se na

representaccedilatildeo da infacircncia como elemento fundador da personalidade e do

caraacutecter ou seja a figura do pai que nunca a reconheceu em vida e por outro

lado na figura de Deacutedalo e Iacutecaro tendo o pai a dualidade em sua referecircncia

paterna Eacute assim que de ldquotentaccedilatildeo em tentaccedilatildeo de fraqueza em fraqueza os

compromissos de consciecircncia levam um homem honrado agrave praacutetica de todos os

crimeshelliprdquo22

22 Fragmento do conto O Inventor de Florbela Espanca As Maacutescaras do Destino1998122

24

22 - A MULTICIPLIDADE DO HEROacuteI

ldquo A vida parada e recolhida cria heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tarderdquo23

Ao encontrarmos facetas mitoloacutegicas entre as leituras de Florbela natildeo se pode

descartar a visatildeo do heroacutei que a autora engendrou na figura de seu irmatildeo

Apeles Tiacutetulo esse dado a homens excepcionais como Ulisses que eram

venerados por seu povo da mesma forma Florbela nutria uma verdadeira

veneraccedilatildeo que a levou a personificar o Aviador a um heroacutei merecedor de

honrarias e apesar da miacutesera condiccedilatildeo de mortal foi-lhe atribuiacutedo qualidades

fiacutesicas e morais dignas de um semideus ldquo A vida parada e recolhida cria

heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tardehellip o pincel de geacutenio daacute os uacuteltimos

retoques ao cenaacuterio de epopeiahellip laacute em cima a formidaacutevel apoteose desdobra-

se no meio do pasmo das coisas Eacute um homem que tem asas E as asas

pairam descem rodopiam ascendem de novo giram latejam batem ao sol

mais aacutegeis e mais robustas mais leves e mais possantes que as das aacuteguias Eacute

um homem A face eneacutergica vincada a cinzel emerge extraordinaacuteria da vida

intensa na indecisatildeo dos contornos que lhe fazem vagos e paacutelidos um vago

pano de fundo a face e as matildeoshellipOs muacutesculos da face adivinham na forccedila

brutal das maxilas cerradas Nos olhos leva visotildees que os filhos dos homens

natildeo conhecem Os olhos dele natildeo se vecircem olham para dentro e para fora satildeo

pedras como as das estaacutetuas e vecircem mais e mais para aleacutem do que as

miacuteseras pupilas humanas Satildeo astrosrdquo (FLORBELA ESPANCA 199838 e 39)

Esta mesma condiccedilatildeo eacute dada ao Inventor autor da imaginaccedilatildeo de Florbela

ldquoRealizara os seus sonhos todos os seus sonhos Que havia mais agora Jaacute

os homens podiam sulcar os ares sem medo aos vendavais agraves coacuteleras brutais

da Natureza jaacute o ceacuteu se podia coalhar de asas como o mar de velas Todo o

homem poderia ter sem perigo e sem riscos a cobiccedilada sensaccedilatildeo de

comandar nos elementos como um semideusrdquo (FLORBELA ESPANCA

1998133)

Sabemos que o heroacutei constitui o assunto da poesia eacutepica ele tem a sua

maneira proacutepria de agir pela sua coragem e bravura e prossegue objectivos

23 Fragmento do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca198837 e 38

25

bem determinados que ao longo de sua trajectoacuteria lhe satildeo atribuiacutedos cada qual

com sua importacircncia e valor Eacute dado a ele tambeacutem o poder de decisatildeo ora

sobre seus actos ora sobre si mesmo Isso como forma de valorizar sua

sabedoria e supremacia diante daqueles a quem defendia Assim se apresenta

o heroacutei dos contos de Florbela homem-deus detentor de toda visatildeo forte

dominador senhor supremo de seu destino a quem eacute concedido um lugar

eterno junto aos astros

A realidade fictiacutecia da mitologia eacute comparada aqui a realidade autecircntica

Florbela interessa-se pelo seu heroacutei fictiacutecio como se fosse ou tratasse de uma

pessoa real com isso podemos dizer que a escrita ficcional de Florbela eacute

mimese porque a realidade de sua vida humana eacute o seu material de escrita ela

consegue transformar a realidade objectiva na realidade subjectiva vivencial

razatildeo por que nos deixamos influenciar pela sua trajectoacuteria de vida em seus

escritos Isso justifica o fato da ldquovaliosa bravurardquo ndash por uma valiosa pintura - de

seu heroacutei ser retratado em uma tela por um titatilde24 personifica assim a grande

luta travada com as forccedilas da natureza ldquoEacute um Rembrandt pintado por um titatilderdquo

(FLORBELA ESPANCA 199839) A sua proacutepria natureza humana A propoacutesito

disso parece mais reportar ao paradoxo entre o bem e o mal que lutam

constantemente pelo domiacutenio da razatildeo interior talvez alvo de Florbela

Eacute interessante observar a relaccedilatildeo que existe entre o ldquohomem com asasrdquo com

as Harpias25 que na multi-significaccedilatildeo de seu discurso nos projecta a uma

realizaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo na figura do heroacutei alado em uma transposiccedilatildeo

imaginaacuteria com uma pluralidade de sentidos que poderia ocultar um sentido

uacutenico o seu proacuteprio desejo ou o desejo de arrebatar a alma de seu morto

Tambeacutem vemos a intertextualidade corrente na pessoa de Ulisses26 o heroacutei

grego navegante Robson Crusoeacute27 Piratas dos Sete Mares28 aos capitatildees e

24 Referecircncia a segunda geraccedilatildeo dos deus mitoloacutegicos representantes das forccedilas da natureza e sem uma

personalidade bem vincadaos quais Hesiacuteodo enumerou em doze seis machos e seis fecircmeas Oceano Ceacuteu

Crio Hiperiacuteon Jaacutepeto Cronos Teia Reja Teacutemis Mnemoacutesine Febe e Teacutetis 25 As Harpias filhas de Electra (ela proacutepria filha do Titatilde Oceano) e de Taumas (filho de Ponto e de Geia)

pertencem agrave geraccedilatildeo dos preacute-oliacutempicos Elas satildeo irmatildes de iacuteris a mensageira dos deuses Representadas

quer como mulheres aladas com um aspecto fameacutelico quer como paacutessaros com cabeccedila de mulher as

Harpias residem nas ilhas Estroacutefades do mar Egeu ou ainda agraves portas do Taacutertaro Impetuosas e brutais

como a tempestade as Harpias satildeo - este eacute o sentido do seu nome - raptoras com garras fortes 26 Odisseu (na Greacutecia) ou Ulisses (em Roma) eacute um personagem da Iliacuteada e da Odisseacuteia de Homero Apoacutes

a derrota dos troianos ele iniciou uma viagem de dez anos de volta para Iacutetaca onde a sua mulher o espera

com uma fidelidade obstinada apesar da demora Essa viagem mereceu a criaccedilatildeo por Homero do poema

26

navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a

coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a

solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o

enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio

multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos

diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio

Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os

naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de

navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS

Maacutescaras do Destino 1998 p 125)

Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada

com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a

renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que

convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos

escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a

partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental

aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A

viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas

suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte

recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os

heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas

ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o

navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira

de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que

nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era

eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que

deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-

1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado

a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe

herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico

sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O

romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como

tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar

que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os

Lusiacuteadas de Camotildees

27

no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo

da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)

Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida

funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo

conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente

nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de

alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva

Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer

tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos

heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os

portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens

tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que

de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os

navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por

deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da

Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do

texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute

simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no

poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES

1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou

passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da

Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas

natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer

vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de

ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um

heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com

o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas

forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um

aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem

mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva

30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos

Lisboa

Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal

28

presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de

Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura

greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito

especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela

escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a

morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem

para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de

transformaccedilatildeo fantaacutestica

Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que

na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena

confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir

uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute

infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu

desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma

personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo

inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade

aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios

filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa

escritora o seu carma

Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei

que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora

quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem

ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles

desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma

as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista

o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de

movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos

esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do

pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam

As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes

ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)

29

CAPIacuteTULO 03

31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS

ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de

doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32

No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute

intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em

todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do

proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade

de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma

comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro

cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser

estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute

antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de

alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas

oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir

as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava

perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o

fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo

para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que

muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da

escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e

complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e

pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma

formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela

graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa

assume

32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122

30

De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete

agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem

Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites

nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute

podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido

conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao

inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um

ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma

palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a

intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda

e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas

pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma

onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo

(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um

recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o

renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio

inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a

matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada

ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe

mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata

cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de

voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e

122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso

indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam

tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele

o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as

suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um

emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados

que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e

intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica

33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ

31

Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado

transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas

Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e

que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a

imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de

dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada

dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais

significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa

escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e

sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-

as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar

inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos

era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade

existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)

A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio

Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo

tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens

que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de

tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta

ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a

proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo

Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante

notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe

de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e

medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca

mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho

branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a

socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua

presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo

(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo

deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo

queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a

intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia

humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para

32

sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo

pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no

mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais

apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva

enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente

foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)

A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja

como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo

atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute

reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em

busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito

junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos

satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad

que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que

han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas

mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como

meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do

inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os

aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias

34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939

33

32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO

ldquoA vida vem em ondas

Como o mar

Num indo e vindo infinitohelliprdquo35

A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente

foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram

o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios

da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-

portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo

ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura

universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e

nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a

esquizofrenia de sua alma

O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos

grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma

visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes

de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-

racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas

fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma

encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no

espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada

ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar

duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava

que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se

35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos

em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria

imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia

grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios

Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e

cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam

da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela

Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a

sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor

34

sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o

olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de

um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o

seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No

reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que

constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia

Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor

das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que

participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na

claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma

a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial

apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se

imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA

ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta

solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser

acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas

pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de

existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas

dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma

mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar

agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)

As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar

aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de

Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a

37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta

nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet

tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido

advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte

de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga

(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre

1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a

questatildeo (Hamlet ato III cena I)

38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)

que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era

destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar

35

travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes

questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente

humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a

vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa

loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz

a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair

numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua

frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico

mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de

transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a

morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano

capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas

ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de

integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de

totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma

ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade

de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida

dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a

seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas

iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives

mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas

dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a

cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute

perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras

velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida

de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar

costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras

por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e

grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme

O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu

amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do

Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para

toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos

36

Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser

salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma

dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo

desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave

liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos

secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a

uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo

desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a

boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia

pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a

mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais

alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se

nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira

as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de

alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora

julga existir no seu misteacuterio

O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e

forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e

sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que

orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente

num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das

contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute

traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas

que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas

figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas

narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um

imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e

39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII

mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a

bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por

alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua

tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar

Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A

histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito

em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que

aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas

aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma

37

refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus

fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a

sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades

da dinacircmica universal

Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar

simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos

narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos

siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um

contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da

efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma

capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde

diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e

exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia

essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel

mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo

do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do

Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)

e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo

social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)

na representatividade literaacuteria do mar

38

CAPIacuteTULO 04

41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA

ldquoGosto de ti apaixonadamente

De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo

De ti que me trouxeste pela matildeo

Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40

Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso

a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade

directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na

poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua

dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees

Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita

capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e

um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz

e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a

dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas

conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute

e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria

serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem

quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto

anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse

em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita

maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte

com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e

quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e

emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos

paradoxos

40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no

livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004

Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo

Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11

39

Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos

toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-

romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido

num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia

com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes

profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas

sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo

acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando

a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A

derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a

conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas

da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da

sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No

entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas

romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a

impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo

definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha

aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento

em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o

passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era

tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto

A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos

acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-

Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs

Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os

Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de

Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de

Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o

egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo

narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica

Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute

neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o

poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem

40

esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma

essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no

iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma

questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos

encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem

sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos

interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas

as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um

exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo

tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo

daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita

conteacutem

41

42 - UM PERCURSO COMPARATIVO

ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os

vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e

outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que

ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute

foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41

ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto

Olhou em roda natildeo achou ningueacutem

Por entre as campas arrastando o manto

Com lentos passos caminhou aleacutem

Abandonado neste chatildeo repousa

Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui

Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa

Sobre este peito que bateu por tirdquo42

A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e

o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-

romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua

linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa

o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se

O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando

proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos

moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na

literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror

Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou

comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas

circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de

comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e

sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos

41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda

Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos

42

ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de

outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou

Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)

Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal

de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma

optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada

pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada

no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus

sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa

suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois

dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)

Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade

todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional

natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute

afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute

tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima

do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo

Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela

e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a

prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua

intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a

dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as

influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente

que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz

directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para

a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o

intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era

partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada

por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das

rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de

branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza

43

ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas

Longas roupagens de neveda cor

Singela croa de virgiacutenias rosas

Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43

ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de

branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila

devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa

nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)

Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de

conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se

para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da

imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a

partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a

presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os

uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem

eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera

absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor

ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria

A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a

intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um

testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista

e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas

caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da

temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao

fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma

retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras

masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo

homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma

mulher

43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12

44

(hellip)

Mulher formosa que adorei na vida

E que na tumba natildeo cessei damar

Por que atraiccediloas desleal mentida

O amor eterno que te ouvi jurar

Amor engano que na campa finda

Que a morte despe da ilusatildeo falaz

Quem dentros vivos se lembrara ainda

ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)

Talvez que rindo dos protestos nossos

Gozes com outro dinfernal prazer

E o olvido cobriraacute meus ossos

Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44

Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o

vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as

bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis

e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma

essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o

podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA

ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de

sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a

eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos

na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto

com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais

de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas

palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o

esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal

seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu

passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre

44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9

45

que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as

matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos

das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam

para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)

Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno

num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista

melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias

possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela

um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica

natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem

fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo

intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas

rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso

consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo

intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas

solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou

com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a

todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas

as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os

sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado

daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)

Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do

Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais

significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO

MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do

quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e

estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que

desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo

da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina

agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das

espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute

presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos

46

ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido

Das sepulturas o gelado poacute

Dois esqueletos um ao outro unido

Foram achados num sepulcro soacuterdquo45

Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de

imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da

intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo

buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma

enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo

recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as

laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas

deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo

sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais

moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas

austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade

dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete

palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam

pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e

59)

Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao

ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram

escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia

literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo

exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde

ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais

tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo

merecida

45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos

47

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas

interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca

Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo

depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves

transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo

sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia

ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas

metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver

com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao

sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas

tambeacutem ao que relaciona a morte

A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua

eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela

mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e

sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo

quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade

que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas

personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a

humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de

enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e

sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas

e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o

que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte

presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais

condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus

contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e

desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse

interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural

equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes

interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute

Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem

uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses

48

elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o

inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela

tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses

elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma

civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor

sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam

sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do

intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea

Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o

menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que

para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro

compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo

que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou

seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua

imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que

essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar

atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a

outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual

proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque

esconde-se ou projecta-se no discurso do outro

Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o

caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo

relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens

marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um

significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um

desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos

de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e

fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave

realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande

maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe

um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo

46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de

Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360

49

obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a

escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada

Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a

infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute

aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo

espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a

verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes

50

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Page 24: AS MÁSCARAS SIMBÓLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA … Jaqueline... · 2019-10-31 · A narrativa ficcional não é o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca, mas, assim como

24

22 - A MULTICIPLIDADE DO HEROacuteI

ldquo A vida parada e recolhida cria heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tarderdquo23

Ao encontrarmos facetas mitoloacutegicas entre as leituras de Florbela natildeo se pode

descartar a visatildeo do heroacutei que a autora engendrou na figura de seu irmatildeo

Apeles Tiacutetulo esse dado a homens excepcionais como Ulisses que eram

venerados por seu povo da mesma forma Florbela nutria uma verdadeira

veneraccedilatildeo que a levou a personificar o Aviador a um heroacutei merecedor de

honrarias e apesar da miacutesera condiccedilatildeo de mortal foi-lhe atribuiacutedo qualidades

fiacutesicas e morais dignas de um semideus ldquo A vida parada e recolhida cria

heroacuteis nos imponderaacuteveis fluidos da tardehellip o pincel de geacutenio daacute os uacuteltimos

retoques ao cenaacuterio de epopeiahellip laacute em cima a formidaacutevel apoteose desdobra-

se no meio do pasmo das coisas Eacute um homem que tem asas E as asas

pairam descem rodopiam ascendem de novo giram latejam batem ao sol

mais aacutegeis e mais robustas mais leves e mais possantes que as das aacuteguias Eacute

um homem A face eneacutergica vincada a cinzel emerge extraordinaacuteria da vida

intensa na indecisatildeo dos contornos que lhe fazem vagos e paacutelidos um vago

pano de fundo a face e as matildeoshellipOs muacutesculos da face adivinham na forccedila

brutal das maxilas cerradas Nos olhos leva visotildees que os filhos dos homens

natildeo conhecem Os olhos dele natildeo se vecircem olham para dentro e para fora satildeo

pedras como as das estaacutetuas e vecircem mais e mais para aleacutem do que as

miacuteseras pupilas humanas Satildeo astrosrdquo (FLORBELA ESPANCA 199838 e 39)

Esta mesma condiccedilatildeo eacute dada ao Inventor autor da imaginaccedilatildeo de Florbela

ldquoRealizara os seus sonhos todos os seus sonhos Que havia mais agora Jaacute

os homens podiam sulcar os ares sem medo aos vendavais agraves coacuteleras brutais

da Natureza jaacute o ceacuteu se podia coalhar de asas como o mar de velas Todo o

homem poderia ter sem perigo e sem riscos a cobiccedilada sensaccedilatildeo de

comandar nos elementos como um semideusrdquo (FLORBELA ESPANCA

1998133)

Sabemos que o heroacutei constitui o assunto da poesia eacutepica ele tem a sua

maneira proacutepria de agir pela sua coragem e bravura e prossegue objectivos

23 Fragmento do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca198837 e 38

25

bem determinados que ao longo de sua trajectoacuteria lhe satildeo atribuiacutedos cada qual

com sua importacircncia e valor Eacute dado a ele tambeacutem o poder de decisatildeo ora

sobre seus actos ora sobre si mesmo Isso como forma de valorizar sua

sabedoria e supremacia diante daqueles a quem defendia Assim se apresenta

o heroacutei dos contos de Florbela homem-deus detentor de toda visatildeo forte

dominador senhor supremo de seu destino a quem eacute concedido um lugar

eterno junto aos astros

A realidade fictiacutecia da mitologia eacute comparada aqui a realidade autecircntica

Florbela interessa-se pelo seu heroacutei fictiacutecio como se fosse ou tratasse de uma

pessoa real com isso podemos dizer que a escrita ficcional de Florbela eacute

mimese porque a realidade de sua vida humana eacute o seu material de escrita ela

consegue transformar a realidade objectiva na realidade subjectiva vivencial

razatildeo por que nos deixamos influenciar pela sua trajectoacuteria de vida em seus

escritos Isso justifica o fato da ldquovaliosa bravurardquo ndash por uma valiosa pintura - de

seu heroacutei ser retratado em uma tela por um titatilde24 personifica assim a grande

luta travada com as forccedilas da natureza ldquoEacute um Rembrandt pintado por um titatilderdquo

(FLORBELA ESPANCA 199839) A sua proacutepria natureza humana A propoacutesito

disso parece mais reportar ao paradoxo entre o bem e o mal que lutam

constantemente pelo domiacutenio da razatildeo interior talvez alvo de Florbela

Eacute interessante observar a relaccedilatildeo que existe entre o ldquohomem com asasrdquo com

as Harpias25 que na multi-significaccedilatildeo de seu discurso nos projecta a uma

realizaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo na figura do heroacutei alado em uma transposiccedilatildeo

imaginaacuteria com uma pluralidade de sentidos que poderia ocultar um sentido

uacutenico o seu proacuteprio desejo ou o desejo de arrebatar a alma de seu morto

Tambeacutem vemos a intertextualidade corrente na pessoa de Ulisses26 o heroacutei

grego navegante Robson Crusoeacute27 Piratas dos Sete Mares28 aos capitatildees e

24 Referecircncia a segunda geraccedilatildeo dos deus mitoloacutegicos representantes das forccedilas da natureza e sem uma

personalidade bem vincadaos quais Hesiacuteodo enumerou em doze seis machos e seis fecircmeas Oceano Ceacuteu

Crio Hiperiacuteon Jaacutepeto Cronos Teia Reja Teacutemis Mnemoacutesine Febe e Teacutetis 25 As Harpias filhas de Electra (ela proacutepria filha do Titatilde Oceano) e de Taumas (filho de Ponto e de Geia)

pertencem agrave geraccedilatildeo dos preacute-oliacutempicos Elas satildeo irmatildes de iacuteris a mensageira dos deuses Representadas

quer como mulheres aladas com um aspecto fameacutelico quer como paacutessaros com cabeccedila de mulher as

Harpias residem nas ilhas Estroacutefades do mar Egeu ou ainda agraves portas do Taacutertaro Impetuosas e brutais

como a tempestade as Harpias satildeo - este eacute o sentido do seu nome - raptoras com garras fortes 26 Odisseu (na Greacutecia) ou Ulisses (em Roma) eacute um personagem da Iliacuteada e da Odisseacuteia de Homero Apoacutes

a derrota dos troianos ele iniciou uma viagem de dez anos de volta para Iacutetaca onde a sua mulher o espera

com uma fidelidade obstinada apesar da demora Essa viagem mereceu a criaccedilatildeo por Homero do poema

26

navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a

coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a

solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o

enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio

multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos

diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio

Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os

naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de

navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS

Maacutescaras do Destino 1998 p 125)

Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada

com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a

renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que

convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos

escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a

partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental

aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A

viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas

suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte

recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os

heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas

ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o

navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira

de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que

nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era

eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que

deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-

1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado

a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe

herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico

sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O

romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como

tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar

que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os

Lusiacuteadas de Camotildees

27

no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo

da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)

Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida

funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo

conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente

nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de

alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva

Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer

tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos

heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os

portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens

tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que

de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os

navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por

deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da

Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do

texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute

simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no

poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES

1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou

passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da

Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas

natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer

vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de

ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um

heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com

o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas

forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um

aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem

mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva

30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos

Lisboa

Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal

28

presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de

Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura

greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito

especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela

escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a

morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem

para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de

transformaccedilatildeo fantaacutestica

Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que

na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena

confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir

uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute

infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu

desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma

personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo

inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade

aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios

filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa

escritora o seu carma

Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei

que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora

quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem

ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles

desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma

as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista

o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de

movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos

esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do

pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam

As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes

ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)

29

CAPIacuteTULO 03

31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS

ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de

doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32

No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute

intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em

todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do

proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade

de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma

comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro

cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser

estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute

antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de

alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas

oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir

as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava

perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o

fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo

para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que

muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da

escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e

complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e

pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma

formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela

graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa

assume

32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122

30

De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete

agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem

Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites

nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute

podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido

conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao

inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um

ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma

palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a

intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda

e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas

pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma

onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo

(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um

recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o

renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio

inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a

matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada

ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe

mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata

cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de

voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e

122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso

indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam

tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele

o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as

suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um

emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados

que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e

intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica

33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ

31

Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado

transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas

Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e

que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a

imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de

dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada

dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais

significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa

escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e

sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-

as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar

inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos

era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade

existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)

A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio

Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo

tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens

que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de

tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta

ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a

proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo

Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante

notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe

de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e

medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca

mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho

branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a

socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua

presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo

(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo

deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo

queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a

intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia

humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para

32

sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo

pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no

mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais

apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva

enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente

foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)

A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja

como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo

atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute

reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em

busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito

junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos

satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad

que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que

han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas

mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como

meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do

inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os

aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias

34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939

33

32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO

ldquoA vida vem em ondas

Como o mar

Num indo e vindo infinitohelliprdquo35

A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente

foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram

o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios

da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-

portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo

ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura

universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e

nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a

esquizofrenia de sua alma

O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos

grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma

visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes

de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-

racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas

fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma

encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no

espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada

ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar

duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava

que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se

35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos

em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria

imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia

grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios

Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e

cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam

da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela

Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a

sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor

34

sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o

olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de

um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o

seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No

reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que

constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia

Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor

das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que

participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na

claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma

a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial

apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se

imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA

ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta

solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser

acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas

pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de

existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas

dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma

mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar

agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)

As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar

aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de

Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a

37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta

nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet

tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido

advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte

de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga

(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre

1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a

questatildeo (Hamlet ato III cena I)

38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)

que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era

destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar

35

travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes

questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente

humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a

vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa

loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz

a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair

numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua

frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico

mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de

transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a

morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano

capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas

ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de

integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de

totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma

ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade

de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida

dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a

seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas

iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives

mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas

dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a

cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute

perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras

velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida

de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar

costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras

por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e

grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme

O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu

amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do

Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para

toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos

36

Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser

salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma

dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo

desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave

liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos

secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a

uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo

desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a

boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia

pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a

mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais

alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se

nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira

as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de

alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora

julga existir no seu misteacuterio

O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e

forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e

sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que

orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente

num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das

contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute

traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas

que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas

figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas

narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um

imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e

39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII

mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a

bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por

alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua

tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar

Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A

histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito

em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que

aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas

aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma

37

refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus

fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a

sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades

da dinacircmica universal

Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar

simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos

narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos

siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um

contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da

efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma

capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde

diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e

exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia

essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel

mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo

do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do

Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)

e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo

social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)

na representatividade literaacuteria do mar

38

CAPIacuteTULO 04

41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA

ldquoGosto de ti apaixonadamente

De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo

De ti que me trouxeste pela matildeo

Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40

Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso

a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade

directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na

poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua

dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees

Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita

capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e

um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz

e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a

dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas

conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute

e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria

serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem

quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto

anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse

em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita

maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte

com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e

quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e

emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos

paradoxos

40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no

livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004

Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo

Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11

39

Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos

toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-

romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido

num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia

com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes

profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas

sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo

acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando

a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A

derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a

conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas

da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da

sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No

entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas

romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a

impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo

definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha

aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento

em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o

passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era

tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto

A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos

acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-

Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs

Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os

Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de

Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de

Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o

egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo

narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica

Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute

neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o

poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem

40

esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma

essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no

iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma

questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos

encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem

sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos

interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas

as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um

exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo

tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo

daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita

conteacutem

41

42 - UM PERCURSO COMPARATIVO

ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os

vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e

outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que

ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute

foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41

ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto

Olhou em roda natildeo achou ningueacutem

Por entre as campas arrastando o manto

Com lentos passos caminhou aleacutem

Abandonado neste chatildeo repousa

Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui

Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa

Sobre este peito que bateu por tirdquo42

A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e

o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-

romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua

linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa

o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se

O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando

proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos

moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na

literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror

Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou

comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas

circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de

comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e

sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos

41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda

Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos

42

ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de

outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou

Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)

Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal

de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma

optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada

pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada

no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus

sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa

suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois

dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)

Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade

todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional

natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute

afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute

tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima

do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo

Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela

e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a

prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua

intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a

dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as

influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente

que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz

directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para

a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o

intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era

partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada

por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das

rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de

branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza

43

ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas

Longas roupagens de neveda cor

Singela croa de virgiacutenias rosas

Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43

ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de

branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila

devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa

nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)

Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de

conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se

para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da

imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a

partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a

presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os

uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem

eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera

absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor

ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria

A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a

intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um

testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista

e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas

caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da

temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao

fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma

retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras

masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo

homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma

mulher

43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12

44

(hellip)

Mulher formosa que adorei na vida

E que na tumba natildeo cessei damar

Por que atraiccediloas desleal mentida

O amor eterno que te ouvi jurar

Amor engano que na campa finda

Que a morte despe da ilusatildeo falaz

Quem dentros vivos se lembrara ainda

ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)

Talvez que rindo dos protestos nossos

Gozes com outro dinfernal prazer

E o olvido cobriraacute meus ossos

Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44

Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o

vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as

bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis

e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma

essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o

podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA

ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de

sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a

eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos

na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto

com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais

de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas

palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o

esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal

seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu

passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre

44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9

45

que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as

matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos

das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam

para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)

Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno

num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista

melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias

possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela

um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica

natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem

fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo

intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas

rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso

consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo

intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas

solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou

com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a

todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas

as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os

sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado

daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)

Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do

Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais

significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO

MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do

quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e

estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que

desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo

da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina

agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das

espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute

presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos

46

ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido

Das sepulturas o gelado poacute

Dois esqueletos um ao outro unido

Foram achados num sepulcro soacuterdquo45

Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de

imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da

intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo

buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma

enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo

recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as

laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas

deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo

sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais

moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas

austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade

dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete

palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam

pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e

59)

Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao

ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram

escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia

literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo

exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde

ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais

tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo

merecida

45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos

47

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas

interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca

Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo

depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves

transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo

sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia

ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas

metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver

com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao

sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas

tambeacutem ao que relaciona a morte

A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua

eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela

mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e

sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo

quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade

que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas

personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a

humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de

enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e

sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas

e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o

que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte

presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais

condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus

contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e

desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse

interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural

equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes

interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute

Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem

uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses

48

elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o

inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela

tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses

elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma

civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor

sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam

sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do

intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea

Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o

menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que

para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro

compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo

que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou

seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua

imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que

essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar

atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a

outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual

proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque

esconde-se ou projecta-se no discurso do outro

Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o

caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo

relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens

marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um

significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um

desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos

de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e

fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave

realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande

maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe

um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo

46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de

Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360

49

obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a

escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada

Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a

infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute

aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo

espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a

verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes

50

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Page 25: AS MÁSCARAS SIMBÓLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA … Jaqueline... · 2019-10-31 · A narrativa ficcional não é o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca, mas, assim como

25

bem determinados que ao longo de sua trajectoacuteria lhe satildeo atribuiacutedos cada qual

com sua importacircncia e valor Eacute dado a ele tambeacutem o poder de decisatildeo ora

sobre seus actos ora sobre si mesmo Isso como forma de valorizar sua

sabedoria e supremacia diante daqueles a quem defendia Assim se apresenta

o heroacutei dos contos de Florbela homem-deus detentor de toda visatildeo forte

dominador senhor supremo de seu destino a quem eacute concedido um lugar

eterno junto aos astros

A realidade fictiacutecia da mitologia eacute comparada aqui a realidade autecircntica

Florbela interessa-se pelo seu heroacutei fictiacutecio como se fosse ou tratasse de uma

pessoa real com isso podemos dizer que a escrita ficcional de Florbela eacute

mimese porque a realidade de sua vida humana eacute o seu material de escrita ela

consegue transformar a realidade objectiva na realidade subjectiva vivencial

razatildeo por que nos deixamos influenciar pela sua trajectoacuteria de vida em seus

escritos Isso justifica o fato da ldquovaliosa bravurardquo ndash por uma valiosa pintura - de

seu heroacutei ser retratado em uma tela por um titatilde24 personifica assim a grande

luta travada com as forccedilas da natureza ldquoEacute um Rembrandt pintado por um titatilderdquo

(FLORBELA ESPANCA 199839) A sua proacutepria natureza humana A propoacutesito

disso parece mais reportar ao paradoxo entre o bem e o mal que lutam

constantemente pelo domiacutenio da razatildeo interior talvez alvo de Florbela

Eacute interessante observar a relaccedilatildeo que existe entre o ldquohomem com asasrdquo com

as Harpias25 que na multi-significaccedilatildeo de seu discurso nos projecta a uma

realizaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo na figura do heroacutei alado em uma transposiccedilatildeo

imaginaacuteria com uma pluralidade de sentidos que poderia ocultar um sentido

uacutenico o seu proacuteprio desejo ou o desejo de arrebatar a alma de seu morto

Tambeacutem vemos a intertextualidade corrente na pessoa de Ulisses26 o heroacutei

grego navegante Robson Crusoeacute27 Piratas dos Sete Mares28 aos capitatildees e

24 Referecircncia a segunda geraccedilatildeo dos deus mitoloacutegicos representantes das forccedilas da natureza e sem uma

personalidade bem vincadaos quais Hesiacuteodo enumerou em doze seis machos e seis fecircmeas Oceano Ceacuteu

Crio Hiperiacuteon Jaacutepeto Cronos Teia Reja Teacutemis Mnemoacutesine Febe e Teacutetis 25 As Harpias filhas de Electra (ela proacutepria filha do Titatilde Oceano) e de Taumas (filho de Ponto e de Geia)

pertencem agrave geraccedilatildeo dos preacute-oliacutempicos Elas satildeo irmatildes de iacuteris a mensageira dos deuses Representadas

quer como mulheres aladas com um aspecto fameacutelico quer como paacutessaros com cabeccedila de mulher as

Harpias residem nas ilhas Estroacutefades do mar Egeu ou ainda agraves portas do Taacutertaro Impetuosas e brutais

como a tempestade as Harpias satildeo - este eacute o sentido do seu nome - raptoras com garras fortes 26 Odisseu (na Greacutecia) ou Ulisses (em Roma) eacute um personagem da Iliacuteada e da Odisseacuteia de Homero Apoacutes

a derrota dos troianos ele iniciou uma viagem de dez anos de volta para Iacutetaca onde a sua mulher o espera

com uma fidelidade obstinada apesar da demora Essa viagem mereceu a criaccedilatildeo por Homero do poema

26

navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a

coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a

solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o

enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio

multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos

diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio

Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os

naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de

navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS

Maacutescaras do Destino 1998 p 125)

Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada

com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a

renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que

convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos

escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a

partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental

aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A

viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas

suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte

recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os

heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas

ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o

navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira

de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que

nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era

eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que

deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-

1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado

a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe

herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico

sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O

romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como

tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar

que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os

Lusiacuteadas de Camotildees

27

no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo

da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)

Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida

funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo

conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente

nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de

alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva

Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer

tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos

heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os

portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens

tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que

de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os

navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por

deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da

Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do

texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute

simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no

poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES

1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou

passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da

Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas

natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer

vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de

ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um

heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com

o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas

forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um

aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem

mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva

30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos

Lisboa

Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal

28

presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de

Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura

greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito

especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela

escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a

morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem

para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de

transformaccedilatildeo fantaacutestica

Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que

na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena

confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir

uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute

infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu

desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma

personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo

inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade

aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios

filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa

escritora o seu carma

Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei

que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora

quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem

ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles

desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma

as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista

o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de

movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos

esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do

pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam

As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes

ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)

29

CAPIacuteTULO 03

31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS

ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de

doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32

No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute

intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em

todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do

proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade

de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma

comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro

cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser

estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute

antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de

alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas

oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir

as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava

perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o

fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo

para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que

muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da

escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e

complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e

pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma

formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela

graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa

assume

32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122

30

De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete

agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem

Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites

nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute

podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido

conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao

inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um

ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma

palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a

intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda

e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas

pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma

onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo

(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um

recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o

renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio

inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a

matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada

ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe

mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata

cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de

voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e

122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso

indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam

tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele

o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as

suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um

emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados

que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e

intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica

33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ

31

Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado

transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas

Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e

que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a

imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de

dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada

dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais

significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa

escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e

sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-

as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar

inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos

era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade

existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)

A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio

Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo

tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens

que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de

tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta

ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a

proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo

Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante

notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe

de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e

medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca

mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho

branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a

socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua

presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo

(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo

deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo

queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a

intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia

humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para

32

sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo

pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no

mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais

apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva

enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente

foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)

A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja

como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo

atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute

reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em

busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito

junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos

satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad

que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que

han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas

mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como

meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do

inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os

aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias

34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939

33

32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO

ldquoA vida vem em ondas

Como o mar

Num indo e vindo infinitohelliprdquo35

A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente

foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram

o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios

da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-

portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo

ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura

universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e

nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a

esquizofrenia de sua alma

O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos

grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma

visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes

de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-

racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas

fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma

encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no

espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada

ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar

duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava

que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se

35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos

em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria

imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia

grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios

Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e

cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam

da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela

Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a

sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor

34

sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o

olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de

um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o

seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No

reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que

constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia

Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor

das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que

participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na

claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma

a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial

apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se

imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA

ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta

solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser

acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas

pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de

existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas

dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma

mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar

agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)

As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar

aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de

Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a

37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta

nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet

tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido

advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte

de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga

(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre

1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a

questatildeo (Hamlet ato III cena I)

38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)

que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era

destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar

35

travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes

questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente

humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a

vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa

loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz

a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair

numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua

frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico

mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de

transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a

morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano

capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas

ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de

integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de

totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma

ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade

de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida

dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a

seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas

iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives

mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas

dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a

cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute

perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras

velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida

de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar

costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras

por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e

grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme

O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu

amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do

Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para

toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos

36

Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser

salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma

dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo

desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave

liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos

secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a

uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo

desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a

boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia

pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a

mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais

alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se

nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira

as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de

alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora

julga existir no seu misteacuterio

O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e

forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e

sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que

orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente

num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das

contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute

traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas

que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas

figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas

narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um

imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e

39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII

mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a

bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por

alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua

tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar

Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A

histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito

em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que

aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas

aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma

37

refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus

fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a

sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades

da dinacircmica universal

Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar

simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos

narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos

siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um

contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da

efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma

capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde

diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e

exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia

essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel

mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo

do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do

Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)

e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo

social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)

na representatividade literaacuteria do mar

38

CAPIacuteTULO 04

41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA

ldquoGosto de ti apaixonadamente

De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo

De ti que me trouxeste pela matildeo

Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40

Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso

a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade

directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na

poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua

dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees

Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita

capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e

um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz

e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a

dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas

conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute

e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria

serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem

quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto

anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse

em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita

maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte

com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e

quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e

emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos

paradoxos

40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no

livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004

Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo

Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11

39

Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos

toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-

romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido

num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia

com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes

profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas

sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo

acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando

a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A

derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a

conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas

da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da

sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No

entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas

romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a

impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo

definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha

aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento

em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o

passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era

tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto

A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos

acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-

Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs

Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os

Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de

Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de

Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o

egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo

narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica

Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute

neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o

poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem

40

esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma

essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no

iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma

questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos

encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem

sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos

interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas

as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um

exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo

tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo

daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita

conteacutem

41

42 - UM PERCURSO COMPARATIVO

ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os

vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e

outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que

ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute

foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41

ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto

Olhou em roda natildeo achou ningueacutem

Por entre as campas arrastando o manto

Com lentos passos caminhou aleacutem

Abandonado neste chatildeo repousa

Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui

Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa

Sobre este peito que bateu por tirdquo42

A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e

o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-

romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua

linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa

o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se

O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando

proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos

moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na

literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror

Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou

comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas

circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de

comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e

sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos

41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda

Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos

42

ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de

outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou

Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)

Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal

de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma

optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada

pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada

no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus

sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa

suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois

dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)

Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade

todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional

natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute

afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute

tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima

do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo

Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela

e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a

prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua

intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a

dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as

influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente

que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz

directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para

a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o

intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era

partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada

por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das

rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de

branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza

43

ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas

Longas roupagens de neveda cor

Singela croa de virgiacutenias rosas

Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43

ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de

branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila

devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa

nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)

Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de

conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se

para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da

imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a

partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a

presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os

uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem

eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera

absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor

ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria

A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a

intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um

testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista

e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas

caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da

temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao

fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma

retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras

masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo

homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma

mulher

43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12

44

(hellip)

Mulher formosa que adorei na vida

E que na tumba natildeo cessei damar

Por que atraiccediloas desleal mentida

O amor eterno que te ouvi jurar

Amor engano que na campa finda

Que a morte despe da ilusatildeo falaz

Quem dentros vivos se lembrara ainda

ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)

Talvez que rindo dos protestos nossos

Gozes com outro dinfernal prazer

E o olvido cobriraacute meus ossos

Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44

Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o

vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as

bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis

e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma

essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o

podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA

ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de

sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a

eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos

na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto

com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais

de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas

palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o

esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal

seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu

passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre

44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9

45

que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as

matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos

das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam

para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)

Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno

num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista

melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias

possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela

um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica

natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem

fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo

intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas

rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso

consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo

intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas

solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou

com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a

todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas

as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os

sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado

daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)

Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do

Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais

significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO

MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do

quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e

estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que

desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo

da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina

agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das

espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute

presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos

46

ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido

Das sepulturas o gelado poacute

Dois esqueletos um ao outro unido

Foram achados num sepulcro soacuterdquo45

Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de

imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da

intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo

buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma

enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo

recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as

laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas

deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo

sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais

moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas

austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade

dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete

palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam

pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e

59)

Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao

ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram

escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia

literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo

exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde

ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais

tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo

merecida

45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos

47

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas

interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca

Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo

depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves

transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo

sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia

ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas

metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver

com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao

sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas

tambeacutem ao que relaciona a morte

A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua

eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela

mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e

sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo

quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade

que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas

personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a

humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de

enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e

sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas

e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o

que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte

presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais

condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus

contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e

desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse

interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural

equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes

interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute

Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem

uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses

48

elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o

inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela

tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses

elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma

civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor

sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam

sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do

intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea

Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o

menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que

para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro

compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo

que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou

seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua

imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que

essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar

atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a

outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual

proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque

esconde-se ou projecta-se no discurso do outro

Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o

caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo

relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens

marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um

significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um

desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos

de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e

fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave

realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande

maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe

um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo

46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de

Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360

49

obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a

escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada

Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a

infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute

aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo

espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a

verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes

50

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Page 26: AS MÁSCARAS SIMBÓLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA … Jaqueline... · 2019-10-31 · A narrativa ficcional não é o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca, mas, assim como

26

navegantes portugueses 29 leituras que tecircm em comum as aventuras a

coragem de seus protagonistas o desbravamento rumo ao desconhecido a

solidatildeo a superaccedilatildeo de si mesmo a soberania sobre as forccedilas da natureza o

enfrentamento de odisseias que se repetem de acordo com o imaginaacuterio

multitextual que se faz na assimilaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo que ocorre nos

diferentes textos ldquoJaacute homenzinhohelliplecirc embevecido horas a fio todo o Juacutelio

Verne histoacuterias de piratas e corsaacuterios o navio fantasma enfeiticcedila-o os

naufraacutegios heroacuteicos entusiasmam-no foi durante anos todos os capitatildees de

navios naufragados morrendo no seu posto aos vivas de Portugalrdquo (AS

Maacutescaras do Destino 1998 p 125)

Em relaccedilatildeo ao heroacutei Ulisses a ideia de viagem na Odisseia estaacute relacionada

com a recusa da imortalidade Essa recusa de imortalidade prende-se com a

renovaccedilatildeo da vida atraveacutes da experiecircncia vivificante das aventuras que

convergem no retorno a sua cidade natal tal qual surgia na performance dos

escritos de Bela Entretanto Ulisses tendo regressado a Iacutetaca pode voltar a

partir porque a ela voltaraacute ciclicamente renovado seria esse fundamental

aspecto que infiltra a intencionalidade de tais referecircncias intertextuais A

viagem de Ulisses eacute a aceitaccedilatildeo dos limites da vida e da condiccedilatildeo humana nas

suas vicissitudes dramas tristezas ausecircncias luta com o medo e a morte

recusando o estatuto de divindade-imortalidade a que poderiam ascender os

heroacuteis da epopeia claacutessica se assim o desejassem por determinaccedilatildeo de ninfas

ou deuses restringiu-se a ser um simples navegante Assim eacute descrito o

navegante sonhador de Florbela ldquo Para ele ser marinheiro era a uacutenica maneira

de ser homem era viver a vida mais ampla mais livre mais satilde mais alta que

nenhuma outra neste mundo O seu forte coraccedilatildeo sedento de liberdade era

eacutepico Odisseacuteia na qual satildeo narradas as aventuras e desventuras de Odisseu e sua tripulaccedilatildeo desde que

deixam Troacuteia algumas causadas por eles e outras graccedilas agrave intervenccedilatildeo dos deuses 27 A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoeacute (1719) romance ceacutelebre de Daniel Defoe (1660-

1731) Defoe inspirou-se na histoacuteria veriacutedica de um marinheiro escocecircs Alexander Selkirk abandonado

a seu pedido numa ilha do arquipeacutelago Juan Fernaacutendez onde viveu soacute de 1704 a 1709 Robinson Crusoe

herda desta histoacuteria o mito da solidatildeo na medida em que depois de um naufraacutegio de que eacute o uacutenico

sobrevivente vive sozinho durante vinte e oito anos antes de encontrar a personagem Sexta-Feira O

romance simboliza a luta do homem soacute contra a natureza 28 A popularizaccedilatildeo do termo parece ter ocorrido em 1896 quando o poeta Rudyard Kipling a usou como

tiacutetulo de um de seus livros The Seven Seas (Os Sete Mares) Piratas termo esse dado a homens do mar

que desejavam obter riquezas e liberdades reais Muitos eram escravos fugitivos ou servos sem rumo 29Referecircncia aos grandes feitos dos navegantes portugueses principalmente quanto ao ceacutelebre eacutepico Os

Lusiacuteadas de Camotildees

27

no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo

da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)

Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida

funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo

conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente

nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de

alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva

Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer

tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos

heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os

portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens

tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que

de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os

navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por

deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da

Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do

texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute

simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no

poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES

1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou

passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da

Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas

natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer

vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de

ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um

heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com

o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas

forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um

aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem

mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva

30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos

Lisboa

Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal

28

presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de

Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura

greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito

especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela

escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a

morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem

para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de

transformaccedilatildeo fantaacutestica

Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que

na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena

confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir

uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute

infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu

desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma

personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo

inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade

aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios

filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa

escritora o seu carma

Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei

que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora

quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem

ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles

desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma

as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista

o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de

movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos

esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do

pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam

As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes

ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)

29

CAPIacuteTULO 03

31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS

ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de

doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32

No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute

intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em

todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do

proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade

de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma

comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro

cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser

estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute

antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de

alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas

oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir

as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava

perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o

fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo

para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que

muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da

escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e

complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e

pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma

formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela

graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa

assume

32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122

30

De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete

agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem

Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites

nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute

podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido

conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao

inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um

ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma

palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a

intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda

e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas

pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma

onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo

(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um

recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o

renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio

inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a

matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada

ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe

mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata

cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de

voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e

122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso

indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam

tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele

o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as

suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um

emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados

que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e

intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica

33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ

31

Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado

transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas

Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e

que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a

imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de

dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada

dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais

significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa

escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e

sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-

as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar

inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos

era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade

existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)

A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio

Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo

tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens

que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de

tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta

ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a

proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo

Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante

notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe

de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e

medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca

mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho

branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a

socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua

presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo

(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo

deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo

queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a

intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia

humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para

32

sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo

pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no

mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais

apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva

enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente

foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)

A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja

como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo

atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute

reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em

busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito

junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos

satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad

que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que

han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas

mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como

meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do

inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os

aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias

34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939

33

32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO

ldquoA vida vem em ondas

Como o mar

Num indo e vindo infinitohelliprdquo35

A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente

foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram

o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios

da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-

portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo

ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura

universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e

nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a

esquizofrenia de sua alma

O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos

grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma

visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes

de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-

racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas

fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma

encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no

espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada

ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar

duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava

que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se

35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos

em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria

imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia

grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios

Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e

cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam

da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela

Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a

sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor

34

sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o

olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de

um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o

seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No

reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que

constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia

Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor

das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que

participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na

claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma

a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial

apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se

imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA

ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta

solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser

acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas

pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de

existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas

dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma

mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar

agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)

As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar

aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de

Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a

37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta

nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet

tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido

advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte

de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga

(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre

1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a

questatildeo (Hamlet ato III cena I)

38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)

que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era

destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar

35

travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes

questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente

humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a

vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa

loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz

a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair

numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua

frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico

mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de

transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a

morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano

capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas

ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de

integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de

totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma

ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade

de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida

dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a

seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas

iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives

mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas

dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a

cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute

perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras

velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida

de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar

costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras

por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e

grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme

O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu

amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do

Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para

toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos

36

Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser

salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma

dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo

desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave

liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos

secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a

uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo

desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a

boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia

pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a

mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais

alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se

nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira

as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de

alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora

julga existir no seu misteacuterio

O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e

forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e

sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que

orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente

num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das

contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute

traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas

que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas

figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas

narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um

imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e

39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII

mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a

bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por

alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua

tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar

Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A

histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito

em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que

aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas

aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma

37

refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus

fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a

sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades

da dinacircmica universal

Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar

simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos

narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos

siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um

contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da

efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma

capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde

diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e

exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia

essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel

mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo

do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do

Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)

e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo

social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)

na representatividade literaacuteria do mar

38

CAPIacuteTULO 04

41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA

ldquoGosto de ti apaixonadamente

De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo

De ti que me trouxeste pela matildeo

Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40

Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso

a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade

directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na

poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua

dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees

Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita

capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e

um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz

e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a

dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas

conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute

e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria

serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem

quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto

anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse

em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita

maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte

com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e

quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e

emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos

paradoxos

40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no

livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004

Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo

Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11

39

Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos

toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-

romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido

num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia

com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes

profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas

sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo

acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando

a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A

derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a

conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas

da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da

sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No

entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas

romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a

impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo

definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha

aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento

em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o

passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era

tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto

A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos

acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-

Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs

Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os

Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de

Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de

Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o

egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo

narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica

Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute

neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o

poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem

40

esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma

essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no

iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma

questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos

encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem

sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos

interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas

as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um

exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo

tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo

daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita

conteacutem

41

42 - UM PERCURSO COMPARATIVO

ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os

vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e

outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que

ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute

foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41

ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto

Olhou em roda natildeo achou ningueacutem

Por entre as campas arrastando o manto

Com lentos passos caminhou aleacutem

Abandonado neste chatildeo repousa

Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui

Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa

Sobre este peito que bateu por tirdquo42

A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e

o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-

romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua

linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa

o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se

O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando

proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos

moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na

literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror

Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou

comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas

circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de

comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e

sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos

41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda

Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos

42

ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de

outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou

Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)

Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal

de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma

optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada

pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada

no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus

sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa

suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois

dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)

Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade

todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional

natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute

afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute

tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima

do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo

Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela

e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a

prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua

intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a

dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as

influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente

que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz

directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para

a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o

intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era

partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada

por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das

rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de

branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza

43

ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas

Longas roupagens de neveda cor

Singela croa de virgiacutenias rosas

Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43

ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de

branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila

devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa

nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)

Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de

conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se

para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da

imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a

partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a

presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os

uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem

eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera

absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor

ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria

A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a

intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um

testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista

e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas

caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da

temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao

fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma

retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras

masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo

homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma

mulher

43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12

44

(hellip)

Mulher formosa que adorei na vida

E que na tumba natildeo cessei damar

Por que atraiccediloas desleal mentida

O amor eterno que te ouvi jurar

Amor engano que na campa finda

Que a morte despe da ilusatildeo falaz

Quem dentros vivos se lembrara ainda

ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)

Talvez que rindo dos protestos nossos

Gozes com outro dinfernal prazer

E o olvido cobriraacute meus ossos

Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44

Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o

vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as

bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis

e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma

essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o

podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA

ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de

sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a

eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos

na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto

com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais

de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas

palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o

esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal

seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu

passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre

44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9

45

que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as

matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos

das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam

para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)

Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno

num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista

melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias

possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela

um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica

natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem

fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo

intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas

rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso

consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo

intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas

solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou

com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a

todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas

as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os

sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado

daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)

Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do

Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais

significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO

MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do

quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e

estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que

desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo

da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina

agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das

espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute

presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos

46

ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido

Das sepulturas o gelado poacute

Dois esqueletos um ao outro unido

Foram achados num sepulcro soacuterdquo45

Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de

imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da

intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo

buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma

enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo

recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as

laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas

deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo

sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais

moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas

austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade

dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete

palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam

pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e

59)

Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao

ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram

escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia

literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo

exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde

ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais

tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo

merecida

45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos

47

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas

interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca

Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo

depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves

transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo

sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia

ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas

metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver

com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao

sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas

tambeacutem ao que relaciona a morte

A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua

eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela

mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e

sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo

quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade

que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas

personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a

humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de

enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e

sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas

e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o

que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte

presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais

condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus

contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e

desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse

interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural

equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes

interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute

Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem

uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses

48

elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o

inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela

tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses

elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma

civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor

sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam

sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do

intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea

Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o

menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que

para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro

compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo

que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou

seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua

imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que

essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar

atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a

outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual

proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque

esconde-se ou projecta-se no discurso do outro

Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o

caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo

relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens

marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um

significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um

desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos

de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e

fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave

realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande

maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe

um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo

46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de

Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360

49

obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a

escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada

Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a

infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute

aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo

espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a

verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes

50

REFEREcircNCIA BIBLIOGRAacuteFICA

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Page 27: AS MÁSCARAS SIMBÓLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA … Jaqueline... · 2019-10-31 · A narrativa ficcional não é o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca, mas, assim como

27

no seu rude arcaboiccedilo de marujo como um pequeno jaguar saltando do fundo

da jaulahelliprdquo (FLORBELA ESPANCA 1998126)

Na epopeia camoniana a consciecircncia da fugacidade e inseguranccedila da vida

funciona como um desafio para a criaccedilatildeo de feitos valorosos que vatildeo

conferindo o estatuto de heroacutei a quem os pratica desta forma estaacute presente

nesta intertextualidade o espiacuterito aventureiro do povo portuguecircs navegantes de

alma desbravadora que ao decorrer de sua intencionalidade discursiva

Florbela retoma tais valores por fazer parte deles e pretende com isso fazer

tambeacutem parte de sua histoacuteria Como assim o foi posto que a divinizaccedilatildeo dos

heroacuteis eacute a conclusatildeo para que aponta a intriga mitoloacutegica em Os Lusiacuteadas30 os

portugueses satildeo favorecidos por Veacutenus e hostilizados por Baco Os homens

tornam-se deuses e apeiam do pedestal as antigas divindades Eacute factos que

de certo modo divinizam-se eles tambeacutem Mas como ponto primordial os

navegantes cometeram actos tatildeo grandiosos que se tornam amados por

deusas Florbela eacute o paradoxo Natildeo apontamos aqui a imagem de Vasco da

Gama como heroacutei e sim a Viagem em si determinante da narrativa poeacutetica do

texto de Camotildees Como diz Heacutelio J S Alves ldquoDe facto Vasco da Gama eacute

simplesmente o raquoCapitatildeolaquo da frota portuguesa e a palavra heroacutei (rara no

poema) nunca aparece directamente referida a elerdquo31(HEacuteLIO J S ALVES

1997299) A visatildeo criacutetica de Bela em relaccedilatildeo a suas leituras natildeo deixou

passar despercebido esse estranho fato da falta de heroiacutesmo de Vasco da

Gama que ldquonatildeo se arrisca natildeo se molha na aacutegua natildeo se livra das intrigas

natildeo se mancha de sangue e pior natildeo soacute natildeo age como natildeo tem sequer

vontade de agirrdquo (HEacuteLIO J S ALVES 1997299) mesmo assim natildeo deixou de

ser grande e vangloriado atraveacutes dos tempos Florbela tambeacutem descreve um

heroacutei alado desprovido de caraacutecter ldquo Um aviador que natildeo brinca sorrindo com

o seu mau destino que natildeo vence com piparote as horas maacutes as tiracircnicas

forccedilas da Natureza sempre em luta terriacutevel descobridora de desalentos um

aviador que natildeo eacute o senhor do ceacuteu da terra e do mar agrave forccedilahellipum aviador sem

mascote sem audaacutecia sem panache ndash e laacute eacute um aviadorrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998134) A convergecircncia entre a intencionalidade discursiva

30 Referecircncia a obra de Luiacutes Vaz de Camotildees escritor claacutessico portuguecircs 31 Confrontar com o livro Literatura de Viagem narrativa histoacuteria mito 1997299 Ediccedilotildees Cosmos

Lisboa

Organizado por Ana Margarida Falccedilatildeo Maria Teresa Nascimento e Maria Luiacuteza Leal

28

presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de

Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura

greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito

especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela

escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a

morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem

para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de

transformaccedilatildeo fantaacutestica

Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que

na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena

confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir

uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute

infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu

desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma

personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo

inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade

aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios

filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa

escritora o seu carma

Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei

que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora

quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem

ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles

desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma

as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista

o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de

movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos

esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do

pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam

As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes

ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)

29

CAPIacuteTULO 03

31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS

ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de

doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32

No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute

intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em

todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do

proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade

de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma

comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro

cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser

estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute

antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de

alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas

oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir

as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava

perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o

fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo

para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que

muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da

escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e

complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e

pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma

formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela

graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa

assume

32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122

30

De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete

agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem

Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites

nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute

podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido

conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao

inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um

ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma

palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a

intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda

e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas

pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma

onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo

(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um

recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o

renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio

inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a

matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada

ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe

mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata

cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de

voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e

122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso

indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam

tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele

o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as

suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um

emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados

que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e

intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica

33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ

31

Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado

transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas

Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e

que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a

imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de

dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada

dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais

significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa

escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e

sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-

as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar

inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos

era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade

existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)

A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio

Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo

tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens

que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de

tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta

ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a

proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo

Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante

notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe

de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e

medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca

mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho

branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a

socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua

presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo

(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo

deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo

queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a

intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia

humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para

32

sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo

pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no

mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais

apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva

enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente

foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)

A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja

como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo

atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute

reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em

busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito

junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos

satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad

que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que

han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas

mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como

meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do

inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os

aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias

34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939

33

32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO

ldquoA vida vem em ondas

Como o mar

Num indo e vindo infinitohelliprdquo35

A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente

foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram

o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios

da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-

portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo

ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura

universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e

nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a

esquizofrenia de sua alma

O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos

grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma

visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes

de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-

racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas

fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma

encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no

espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada

ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar

duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava

que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se

35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos

em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria

imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia

grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios

Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e

cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam

da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela

Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a

sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor

34

sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o

olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de

um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o

seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No

reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que

constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia

Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor

das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que

participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na

claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma

a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial

apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se

imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA

ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta

solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser

acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas

pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de

existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas

dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma

mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar

agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)

As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar

aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de

Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a

37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta

nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet

tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido

advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte

de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga

(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre

1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a

questatildeo (Hamlet ato III cena I)

38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)

que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era

destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar

35

travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes

questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente

humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a

vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa

loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz

a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair

numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua

frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico

mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de

transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a

morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano

capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas

ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de

integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de

totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma

ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade

de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida

dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a

seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas

iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives

mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas

dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a

cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute

perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras

velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida

de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar

costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras

por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e

grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme

O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu

amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do

Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para

toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos

36

Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser

salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma

dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo

desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave

liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos

secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a

uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo

desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a

boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia

pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a

mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais

alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se

nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira

as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de

alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora

julga existir no seu misteacuterio

O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e

forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e

sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que

orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente

num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das

contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute

traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas

que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas

figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas

narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um

imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e

39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII

mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a

bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por

alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua

tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar

Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A

histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito

em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que

aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas

aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma

37

refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus

fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a

sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades

da dinacircmica universal

Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar

simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos

narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos

siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um

contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da

efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma

capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde

diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e

exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia

essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel

mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo

do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do

Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)

e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo

social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)

na representatividade literaacuteria do mar

38

CAPIacuteTULO 04

41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA

ldquoGosto de ti apaixonadamente

De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo

De ti que me trouxeste pela matildeo

Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40

Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso

a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade

directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na

poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua

dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees

Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita

capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e

um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz

e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a

dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas

conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute

e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria

serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem

quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto

anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse

em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita

maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte

com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e

quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e

emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos

paradoxos

40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no

livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004

Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo

Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11

39

Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos

toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-

romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido

num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia

com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes

profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas

sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo

acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando

a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A

derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a

conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas

da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da

sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No

entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas

romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a

impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo

definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha

aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento

em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o

passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era

tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto

A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos

acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-

Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs

Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os

Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de

Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de

Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o

egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo

narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica

Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute

neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o

poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem

40

esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma

essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no

iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma

questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos

encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem

sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos

interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas

as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um

exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo

tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo

daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita

conteacutem

41

42 - UM PERCURSO COMPARATIVO

ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os

vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e

outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que

ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute

foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41

ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto

Olhou em roda natildeo achou ningueacutem

Por entre as campas arrastando o manto

Com lentos passos caminhou aleacutem

Abandonado neste chatildeo repousa

Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui

Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa

Sobre este peito que bateu por tirdquo42

A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e

o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-

romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua

linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa

o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se

O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando

proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos

moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na

literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror

Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou

comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas

circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de

comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e

sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos

41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda

Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos

42

ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de

outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou

Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)

Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal

de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma

optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada

pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada

no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus

sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa

suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois

dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)

Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade

todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional

natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute

afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute

tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima

do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo

Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela

e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a

prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua

intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a

dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as

influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente

que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz

directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para

a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o

intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era

partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada

por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das

rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de

branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza

43

ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas

Longas roupagens de neveda cor

Singela croa de virgiacutenias rosas

Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43

ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de

branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila

devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa

nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)

Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de

conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se

para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da

imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a

partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a

presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os

uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem

eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera

absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor

ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria

A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a

intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um

testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista

e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas

caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da

temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao

fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma

retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras

masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo

homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma

mulher

43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12

44

(hellip)

Mulher formosa que adorei na vida

E que na tumba natildeo cessei damar

Por que atraiccediloas desleal mentida

O amor eterno que te ouvi jurar

Amor engano que na campa finda

Que a morte despe da ilusatildeo falaz

Quem dentros vivos se lembrara ainda

ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)

Talvez que rindo dos protestos nossos

Gozes com outro dinfernal prazer

E o olvido cobriraacute meus ossos

Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44

Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o

vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as

bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis

e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma

essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o

podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA

ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de

sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a

eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos

na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto

com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais

de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas

palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o

esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal

seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu

passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre

44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9

45

que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as

matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos

das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam

para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)

Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno

num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista

melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias

possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela

um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica

natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem

fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo

intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas

rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso

consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo

intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas

solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou

com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a

todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas

as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os

sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado

daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)

Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do

Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais

significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO

MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do

quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e

estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que

desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo

da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina

agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das

espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute

presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos

46

ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido

Das sepulturas o gelado poacute

Dois esqueletos um ao outro unido

Foram achados num sepulcro soacuterdquo45

Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de

imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da

intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo

buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma

enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo

recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as

laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas

deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo

sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais

moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas

austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade

dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete

palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam

pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e

59)

Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao

ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram

escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia

literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo

exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde

ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais

tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo

merecida

45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos

47

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas

interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca

Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo

depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves

transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo

sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia

ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas

metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver

com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao

sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas

tambeacutem ao que relaciona a morte

A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua

eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela

mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e

sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo

quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade

que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas

personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a

humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de

enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e

sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas

e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o

que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte

presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais

condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus

contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e

desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse

interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural

equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes

interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute

Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem

uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses

48

elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o

inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela

tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses

elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma

civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor

sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam

sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do

intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea

Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o

menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que

para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro

compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo

que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou

seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua

imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que

essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar

atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a

outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual

proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque

esconde-se ou projecta-se no discurso do outro

Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o

caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo

relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens

marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um

significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um

desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos

de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e

fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave

realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande

maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe

um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo

46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de

Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360

49

obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a

escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada

Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a

infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute

aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo

espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a

verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes

50

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httpwwwfclarunespbrpublicaccedilotildeesrevistaliberdadehtm

httparestasdeventonosapoptlabaredas2html

Page 28: AS MÁSCARAS SIMBÓLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA … Jaqueline... · 2019-10-31 · A narrativa ficcional não é o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca, mas, assim como

28

presente nestes dois fragmentos denota uma visatildeo mais ampla e genuiacutena de

Bela Aqui vemos o intuito de Florbela que constroacutei com elementos da cultura

greco-latina e de seu proacuteprio povo o mito mas este elaborado para o efeito

especiacutefico que visa na interpretaccedilatildeo do seu ldquoEurdquo Este efeito desejado pela

escritora eacute o de imortalizar o heroacutei atraveacutes de um acontecimento nuclear a

morte de seu irmatildeo Isso porque o homem de sua inspiraccedilatildeo eacute um homem

para quem as coisas existem concretamente sem possibilidade alguma de

transformaccedilatildeo fantaacutestica

Nesta visatildeo como eacute citado Florbela o teria personificado em um Crusoeacute que

na aparecircncia ingeacutenua natildeo se deixa enganar facilmente eacute activo e tem plena

confianccedila na forccedila do homem e no seu destino vitorioso Apesar de natildeo possuir

uma inteligecircncia extraordinaacuteria pertence ao grupo dos vencedores eacute

infatigaacutevel tenaz e engenhoso na sua necessidade de sobrevivecircncia e no seu

desejo de se sobrepor agrave natureza Ao mesmo tempo Crusoeacute eacute uma

personagem perturbada por problemaacuteticas espirituais bem proacuteprias do mundo

inglecircs do seu tempo que o colocam no limiar de uma certa modernidade

aquela que permite afirmar o individualismo radical nos mais diversos domiacutenios

filosoacutefico poliacutetico econoacutemico etc Domiacutenios os quais foram para nossa

escritora o seu carma

Apesar das muacuteltiplas leituras feitas sobre a personificaccedilatildeo intertextual do heroacutei

que se fazem presente nos contos temos a interpretaccedilatildeo da proacutepria escritora

quanto a figura do heroacutei e chega a se igualar a ele na esperanccedila de tambeacutem

ser interpretada compreendida e definitivamente aceita Dirigida agravequeles

desejosos de a compreender e a seus misteacuterios Mesmo carregando de enigma

as palavra para que seja desvendada a sua alma e assim libertada ldquoO artista

o poeta o inventor de novos siacutembolos de novas formas o criador de

movimento e de vida todos os que desbravam caminhos os que os campos

esteacutereis da ignoracircncia e da banalidade as belas estradas largas do

pensamento e das ideias esses que me compreendam e que o compreendam

As palavras satildeo muro de pedra e cal a fechar o horizonte infinito das grandes

ideias clarasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998131)

29

CAPIacuteTULO 03

31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS

ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de

doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32

No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute

intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em

todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do

proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade

de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma

comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro

cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser

estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute

antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de

alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas

oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir

as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava

perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o

fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo

para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que

muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da

escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e

complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e

pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma

formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela

graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa

assume

32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122

30

De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete

agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem

Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites

nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute

podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido

conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao

inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um

ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma

palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a

intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda

e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas

pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma

onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo

(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um

recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o

renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio

inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a

matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada

ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe

mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata

cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de

voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e

122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso

indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam

tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele

o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as

suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um

emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados

que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e

intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica

33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ

31

Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado

transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas

Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e

que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a

imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de

dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada

dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais

significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa

escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e

sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-

as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar

inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos

era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade

existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)

A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio

Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo

tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens

que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de

tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta

ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a

proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo

Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante

notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe

de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e

medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca

mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho

branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a

socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua

presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo

(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo

deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo

queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a

intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia

humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para

32

sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo

pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no

mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais

apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva

enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente

foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)

A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja

como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo

atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute

reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em

busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito

junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos

satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad

que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que

han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas

mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como

meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do

inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os

aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias

34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939

33

32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO

ldquoA vida vem em ondas

Como o mar

Num indo e vindo infinitohelliprdquo35

A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente

foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram

o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios

da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-

portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo

ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura

universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e

nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a

esquizofrenia de sua alma

O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos

grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma

visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes

de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-

racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas

fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma

encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no

espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada

ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar

duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava

que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se

35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos

em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria

imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia

grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios

Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e

cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam

da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela

Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a

sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor

34

sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o

olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de

um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o

seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No

reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que

constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia

Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor

das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que

participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na

claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma

a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial

apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se

imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA

ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta

solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser

acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas

pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de

existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas

dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma

mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar

agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)

As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar

aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de

Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a

37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta

nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet

tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido

advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte

de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga

(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre

1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a

questatildeo (Hamlet ato III cena I)

38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)

que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era

destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar

35

travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes

questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente

humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a

vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa

loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz

a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair

numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua

frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico

mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de

transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a

morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano

capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas

ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de

integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de

totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma

ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade

de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida

dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a

seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas

iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives

mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas

dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a

cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute

perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras

velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida

de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar

costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras

por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e

grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme

O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu

amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do

Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para

toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos

36

Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser

salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma

dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo

desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave

liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos

secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a

uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo

desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a

boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia

pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a

mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais

alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se

nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira

as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de

alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora

julga existir no seu misteacuterio

O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e

forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e

sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que

orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente

num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das

contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute

traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas

que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas

figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas

narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um

imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e

39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII

mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a

bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por

alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua

tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar

Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A

histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito

em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que

aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas

aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma

37

refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus

fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a

sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades

da dinacircmica universal

Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar

simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos

narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos

siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um

contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da

efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma

capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde

diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e

exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia

essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel

mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo

do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do

Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)

e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo

social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)

na representatividade literaacuteria do mar

38

CAPIacuteTULO 04

41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA

ldquoGosto de ti apaixonadamente

De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo

De ti que me trouxeste pela matildeo

Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40

Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso

a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade

directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na

poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua

dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees

Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita

capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e

um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz

e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a

dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas

conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute

e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria

serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem

quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto

anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse

em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita

maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte

com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e

quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e

emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos

paradoxos

40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no

livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004

Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo

Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11

39

Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos

toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-

romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido

num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia

com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes

profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas

sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo

acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando

a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A

derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a

conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas

da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da

sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No

entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas

romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a

impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo

definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha

aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento

em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o

passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era

tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto

A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos

acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-

Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs

Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os

Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de

Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de

Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o

egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo

narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica

Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute

neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o

poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem

40

esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma

essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no

iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma

questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos

encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem

sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos

interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas

as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um

exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo

tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo

daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita

conteacutem

41

42 - UM PERCURSO COMPARATIVO

ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os

vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e

outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que

ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute

foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41

ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto

Olhou em roda natildeo achou ningueacutem

Por entre as campas arrastando o manto

Com lentos passos caminhou aleacutem

Abandonado neste chatildeo repousa

Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui

Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa

Sobre este peito que bateu por tirdquo42

A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e

o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-

romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua

linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa

o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se

O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando

proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos

moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na

literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror

Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou

comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas

circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de

comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e

sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos

41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda

Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos

42

ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de

outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou

Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)

Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal

de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma

optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada

pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada

no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus

sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa

suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois

dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)

Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade

todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional

natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute

afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute

tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima

do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo

Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela

e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a

prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua

intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a

dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as

influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente

que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz

directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para

a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o

intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era

partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada

por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das

rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de

branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza

43

ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas

Longas roupagens de neveda cor

Singela croa de virgiacutenias rosas

Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43

ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de

branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila

devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa

nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)

Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de

conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se

para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da

imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a

partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a

presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os

uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem

eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera

absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor

ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria

A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a

intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um

testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista

e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas

caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da

temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao

fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma

retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras

masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo

homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma

mulher

43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12

44

(hellip)

Mulher formosa que adorei na vida

E que na tumba natildeo cessei damar

Por que atraiccediloas desleal mentida

O amor eterno que te ouvi jurar

Amor engano que na campa finda

Que a morte despe da ilusatildeo falaz

Quem dentros vivos se lembrara ainda

ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)

Talvez que rindo dos protestos nossos

Gozes com outro dinfernal prazer

E o olvido cobriraacute meus ossos

Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44

Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o

vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as

bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis

e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma

essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o

podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA

ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de

sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a

eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos

na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto

com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais

de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas

palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o

esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal

seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu

passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre

44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9

45

que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as

matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos

das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam

para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)

Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno

num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista

melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias

possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela

um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica

natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem

fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo

intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas

rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso

consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo

intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas

solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou

com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a

todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas

as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os

sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado

daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)

Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do

Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais

significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO

MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do

quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e

estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que

desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo

da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina

agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das

espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute

presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos

46

ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido

Das sepulturas o gelado poacute

Dois esqueletos um ao outro unido

Foram achados num sepulcro soacuterdquo45

Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de

imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da

intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo

buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma

enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo

recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as

laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas

deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo

sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais

moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas

austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade

dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete

palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam

pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e

59)

Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao

ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram

escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia

literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo

exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde

ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais

tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo

merecida

45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos

47

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas

interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca

Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo

depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves

transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo

sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia

ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas

metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver

com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao

sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas

tambeacutem ao que relaciona a morte

A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua

eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela

mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e

sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo

quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade

que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas

personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a

humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de

enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e

sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas

e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o

que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte

presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais

condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus

contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e

desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse

interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural

equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes

interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute

Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem

uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses

48

elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o

inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela

tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses

elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma

civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor

sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam

sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do

intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea

Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o

menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que

para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro

compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo

que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou

seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua

imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que

essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar

atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a

outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual

proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque

esconde-se ou projecta-se no discurso do outro

Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o

caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo

relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens

marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um

significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um

desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos

de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e

fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave

realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande

maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe

um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo

46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de

Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360

49

obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a

escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada

Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a

infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute

aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo

espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a

verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes

50

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Page 29: AS MÁSCARAS SIMBÓLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA … Jaqueline... · 2019-10-31 · A narrativa ficcional não é o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca, mas, assim como

29

CAPIacuteTULO 03

31 - A INTENCIONALIDADE DAS AacuteGUAS

ldquoNum gesto quase sensual afagava a aacutegua que se abria teacutepida e a envolvia de

doccedilurardquo Assim ldquoa aacutegua fulge chapeada de claridaderdquo32

No decorrer da leitura do livro de contos As Maacutescaras do Destino vemos que eacute

intencional a utilizaccedilatildeo da imagem da aacutegua pela escritora Esta presente em

todos os contos na palavra mar ou na alusatildeo a rios ou apenas atraveacutes do

proacuteprio termo aacutegua que vatildeo se emoldurando ao texto conforme a necessidade

de expressatildeo de Florbela A escritora lanccedila-nos agrave tentativa de uma

comunicaccedilatildeo assim como eacute jogada uma garrafa ao mar um gesto difiacutecil raro

cheio de incertezas na espera da construccedilatildeo de um diaacutelogo que poderaacute ser

estabelecido natildeo pelo gesto de decifraccedilatildeo em Florbela essa comunicaccedilatildeo eacute

antes um gesto na construccedilatildeo de sentidos na projecccedilatildeo de seu estado de

alma isso muito visiacutevel em aacuteguas de um mar que nunca transborda mas

oferece sua mansidatildeo agrave reflexatildeo nostaacutelgica ldquo A pungente melodia fez-me subir

as laacutegrimas aos olhos e ao coraccedilatildeo uma turba de recordaccedilotildees que eu julgava

perdidas no mar da vida como uma taccedila lendaacuteria sobre as aacuteguas do marrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199869) O mar trazia o passado de volta tal qual o

fenoacutemeno das mareacutes ondas que trazem agrave superfiacutecie tudo que estaacute no fundo

para ser revisto uma alusatildeo feita agravequeles sentimentos inconscientes que

muitas vezes pensamos esquecidos Fica entatildeo a intencionalidade da

escritora de entregar-nos o misteacuterio anichado de seu ldquoserrdquo na pretensiosa e

complicada ldquoondardquo de enigmas relativas as interpretaccedilotildees que estudiosos e

pesquisadores atribuem agrave profundeza (o ventre) do mar que aqui toma

formas quase que indecifraacuteveis devido a complexidade construiacuteda por Florbela

graccedilas a dualidade de interpretaccedilatildeo que a intertextualidade de sua prosa

assume

32 Citaccedilatildeo do livro As Maacutescaras do Destino Florbela Espanca 1998121 e 122

30

De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete

agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem

Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites

nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute

podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido

conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao

inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um

ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma

palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a

intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda

e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas

pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma

onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo

(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um

recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o

renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio

inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a

matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada

ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe

mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata

cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de

voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e

122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso

indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam

tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele

o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as

suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um

emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados

que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e

intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica

33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ

31

Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado

transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas

Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e

que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a

imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de

dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada

dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais

significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa

escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e

sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-

as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar

inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos

era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade

existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)

A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio

Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo

tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens

que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de

tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta

ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a

proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo

Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante

notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe

de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e

medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca

mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho

branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a

socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua

presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo

(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo

deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo

queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a

intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia

humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para

32

sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo

pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no

mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais

apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva

enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente

foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)

A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja

como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo

atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute

reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em

busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito

junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos

satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad

que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que

han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas

mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como

meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do

inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os

aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias

34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939

33

32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO

ldquoA vida vem em ondas

Como o mar

Num indo e vindo infinitohelliprdquo35

A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente

foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram

o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios

da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-

portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo

ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura

universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e

nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a

esquizofrenia de sua alma

O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos

grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma

visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes

de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-

racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas

fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma

encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no

espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada

ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar

duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava

que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se

35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos

em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria

imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia

grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios

Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e

cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam

da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela

Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a

sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor

34

sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o

olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de

um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o

seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No

reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que

constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia

Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor

das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que

participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na

claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma

a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial

apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se

imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA

ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta

solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser

acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas

pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de

existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas

dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma

mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar

agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)

As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar

aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de

Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a

37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta

nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet

tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido

advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte

de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga

(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre

1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a

questatildeo (Hamlet ato III cena I)

38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)

que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era

destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar

35

travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes

questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente

humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a

vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa

loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz

a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair

numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua

frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico

mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de

transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a

morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano

capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas

ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de

integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de

totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma

ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade

de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida

dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a

seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas

iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives

mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas

dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a

cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute

perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras

velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida

de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar

costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras

por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e

grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme

O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu

amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do

Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para

toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos

36

Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser

salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma

dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo

desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave

liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos

secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a

uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo

desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a

boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia

pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a

mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais

alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se

nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira

as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de

alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora

julga existir no seu misteacuterio

O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e

forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e

sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que

orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente

num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das

contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute

traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas

que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas

figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas

narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um

imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e

39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII

mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a

bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por

alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua

tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar

Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A

histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito

em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que

aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas

aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma

37

refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus

fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a

sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades

da dinacircmica universal

Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar

simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos

narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos

siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um

contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da

efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma

capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde

diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e

exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia

essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel

mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo

do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do

Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)

e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo

social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)

na representatividade literaacuteria do mar

38

CAPIacuteTULO 04

41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA

ldquoGosto de ti apaixonadamente

De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo

De ti que me trouxeste pela matildeo

Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40

Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso

a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade

directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na

poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua

dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees

Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita

capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e

um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz

e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a

dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas

conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute

e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria

serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem

quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto

anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse

em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita

maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte

com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e

quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e

emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos

paradoxos

40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no

livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004

Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo

Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11

39

Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos

toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-

romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido

num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia

com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes

profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas

sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo

acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando

a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A

derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a

conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas

da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da

sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No

entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas

romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a

impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo

definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha

aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento

em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o

passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era

tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto

A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos

acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-

Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs

Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os

Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de

Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de

Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o

egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo

narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica

Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute

neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o

poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem

40

esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma

essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no

iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma

questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos

encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem

sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos

interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas

as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um

exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo

tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo

daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita

conteacutem

41

42 - UM PERCURSO COMPARATIVO

ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os

vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e

outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que

ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute

foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41

ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto

Olhou em roda natildeo achou ningueacutem

Por entre as campas arrastando o manto

Com lentos passos caminhou aleacutem

Abandonado neste chatildeo repousa

Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui

Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa

Sobre este peito que bateu por tirdquo42

A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e

o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-

romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua

linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa

o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se

O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando

proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos

moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na

literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror

Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou

comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas

circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de

comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e

sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos

41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda

Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos

42

ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de

outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou

Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)

Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal

de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma

optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada

pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada

no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus

sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa

suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois

dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)

Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade

todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional

natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute

afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute

tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima

do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo

Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela

e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a

prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua

intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a

dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as

influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente

que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz

directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para

a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o

intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era

partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada

por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das

rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de

branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza

43

ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas

Longas roupagens de neveda cor

Singela croa de virgiacutenias rosas

Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43

ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de

branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila

devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa

nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)

Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de

conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se

para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da

imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a

partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a

presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os

uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem

eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera

absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor

ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria

A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a

intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um

testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista

e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas

caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da

temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao

fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma

retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras

masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo

homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma

mulher

43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12

44

(hellip)

Mulher formosa que adorei na vida

E que na tumba natildeo cessei damar

Por que atraiccediloas desleal mentida

O amor eterno que te ouvi jurar

Amor engano que na campa finda

Que a morte despe da ilusatildeo falaz

Quem dentros vivos se lembrara ainda

ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)

Talvez que rindo dos protestos nossos

Gozes com outro dinfernal prazer

E o olvido cobriraacute meus ossos

Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44

Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o

vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as

bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis

e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma

essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o

podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA

ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de

sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a

eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos

na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto

com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais

de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas

palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o

esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal

seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu

passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre

44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9

45

que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as

matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos

das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam

para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)

Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno

num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista

melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias

possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela

um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica

natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem

fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo

intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas

rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso

consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo

intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas

solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou

com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a

todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas

as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os

sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado

daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)

Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do

Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais

significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO

MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do

quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e

estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que

desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo

da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina

agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das

espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute

presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos

46

ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido

Das sepulturas o gelado poacute

Dois esqueletos um ao outro unido

Foram achados num sepulcro soacuterdquo45

Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de

imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da

intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo

buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma

enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo

recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as

laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas

deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo

sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais

moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas

austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade

dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete

palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam

pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e

59)

Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao

ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram

escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia

literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo

exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde

ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais

tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo

merecida

45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos

47

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas

interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca

Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo

depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves

transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo

sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia

ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas

metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver

com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao

sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas

tambeacutem ao que relaciona a morte

A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua

eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela

mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e

sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo

quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade

que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas

personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a

humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de

enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e

sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas

e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o

que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte

presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais

condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus

contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e

desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse

interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural

equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes

interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute

Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem

uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses

48

elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o

inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela

tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses

elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma

civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor

sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam

sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do

intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea

Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o

menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que

para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro

compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo

que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou

seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua

imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que

essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar

atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a

outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual

proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque

esconde-se ou projecta-se no discurso do outro

Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o

caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo

relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens

marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um

significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um

desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos

de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e

fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave

realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande

maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe

um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo

46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de

Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360

49

obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a

escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada

Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a

infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute

aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo

espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a

verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes

50

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Page 30: AS MÁSCARAS SIMBÓLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA … Jaqueline... · 2019-10-31 · A narrativa ficcional não é o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca, mas, assim como

30

De acordo com Jean Chevalier em seu dicionaacuterio de siacutembolos33 o mar remete

agrave imagem do indecifraacutevel do incoacutegnito Eacute local onde as emoccedilotildees fluem

Simbolizado pelo elemento aacutegua ligado agrave subjectividade porque natildeo haacute limites

nem forma fixa O mar eacute a emoccedilatildeo profunda e desconhecida pelo homem soacute

podendo ser visiacutevel superficialmente enquanto no fundo habita o desconhecido

conotativamente associado aos sentimentos interiores guardados e ao

inconsciente Relativamente a presenccedila intertextual das ldquoaacuteguasrdquo torna-se um

ponto de convergecircncia agrave construccedilatildeo do imaginaacuterio da escritora Revela-se uma

palavra de forccedila como alicerce que daacute sustentabilidade ao que a

intencionalidade do texto nos propotildee Umas vezes mostrada em forma branda

e serena o local de descanso eterno na imagem do ldquoriordquo ldquo Marulho de ondas

pequeninas O riohellipDebruccedilou-sehellipMarulho de ondashellipE a morta foi mais uma

onda uma onda pequenina uma onda azul na taccedila de prata a faiscarhelliprdquo

(FLORBELA ESPANCA 199858) De outra feita a aacutegua dentro de um

recipiente tem um aspecto maternal pois imergir e submergir traacutes o

renascimento do eterno ventre que eacute a aacutegua ou seja um penetrar no proacuteprio

inconsciente humano como forma de expiaccedilatildeo e purificaccedilatildeo dos pecados Eacute a

matriz de onde se sai portanto de onde tambeacutem se volta de forma renovada

ldquoA sua minuacutescula bacia de trecircs palmos onde em trecircs litros de aacutegua a matildee lhe

mergulhavahellipO tanque ao longe no meio dos salgueiros parecia de prata

cheirava a fresco Dum salto atira-se agrave aacutegua Os olhos fecham-se de

voluptuosidade E o pequeno mergulhardquo (FLORBELA ESPANCA 1998121 e

122) No entanto aparece tambeacutem de forma oponente majestoso

indecifraacutevel lugar de tribulaccedilotildees reivindicador daqueles que o enfrentam

tenebroso como a sua profundeza e suas maravilhas o mar ldquohellipjaacute era para ele

o mar o mar imenso a extensatildeo infinita com todas as suas maravilhas as

suas vagas enormes os seus embustes as suas traiccedilotildeesrdquo (FLORBELA

ESPANCA 1998119) Percebemos assim um jogo de antagonismos um

emaranhado de situaccedilotildees que apoiam-se na multi-interpretaccedilatildeo e significados

que tais palavras remetem para suster os textos de ideias fantaacutesticas e

intertextualidades dado a multiplicidade de sua semacircntica

33 Confrontar em Dicionaacuterio de Siacutembolos 2003 Editora Joseacute Oliacutempio RJ

31

Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado

transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas

Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e

que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a

imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de

dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada

dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais

significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa

escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e

sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-

as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar

inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos

era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade

existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)

A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio

Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo

tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens

que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de

tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta

ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a

proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo

Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante

notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe

de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e

medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca

mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho

branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a

socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua

presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo

(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo

deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo

queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a

intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia

humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para

32

sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo

pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no

mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais

apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva

enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente

foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)

A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja

como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo

atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute

reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em

busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito

junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos

satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad

que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que

han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas

mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como

meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do

inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os

aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias

34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939

33

32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO

ldquoA vida vem em ondas

Como o mar

Num indo e vindo infinitohelliprdquo35

A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente

foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram

o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios

da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-

portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo

ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura

universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e

nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a

esquizofrenia de sua alma

O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos

grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma

visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes

de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-

racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas

fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma

encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no

espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada

ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar

duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava

que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se

35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos

em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria

imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia

grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios

Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e

cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam

da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela

Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a

sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor

34

sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o

olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de

um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o

seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No

reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que

constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia

Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor

das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que

participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na

claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma

a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial

apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se

imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA

ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta

solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser

acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas

pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de

existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas

dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma

mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar

agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)

As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar

aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de

Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a

37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta

nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet

tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido

advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte

de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga

(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre

1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a

questatildeo (Hamlet ato III cena I)

38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)

que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era

destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar

35

travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes

questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente

humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a

vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa

loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz

a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair

numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua

frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico

mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de

transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a

morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano

capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas

ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de

integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de

totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma

ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade

de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida

dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a

seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas

iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives

mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas

dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a

cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute

perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras

velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida

de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar

costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras

por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e

grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme

O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu

amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do

Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para

toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos

36

Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser

salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma

dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo

desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave

liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos

secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a

uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo

desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a

boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia

pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a

mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais

alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se

nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira

as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de

alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora

julga existir no seu misteacuterio

O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e

forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e

sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que

orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente

num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das

contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute

traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas

que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas

figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas

narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um

imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e

39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII

mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a

bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por

alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua

tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar

Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A

histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito

em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que

aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas

aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma

37

refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus

fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a

sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades

da dinacircmica universal

Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar

simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos

narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos

siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um

contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da

efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma

capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde

diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e

exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia

essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel

mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo

do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do

Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)

e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo

social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)

na representatividade literaacuteria do mar

38

CAPIacuteTULO 04

41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA

ldquoGosto de ti apaixonadamente

De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo

De ti que me trouxeste pela matildeo

Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40

Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso

a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade

directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na

poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua

dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees

Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita

capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e

um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz

e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a

dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas

conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute

e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria

serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem

quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto

anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse

em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita

maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte

com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e

quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e

emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos

paradoxos

40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no

livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004

Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo

Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11

39

Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos

toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-

romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido

num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia

com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes

profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas

sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo

acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando

a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A

derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a

conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas

da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da

sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No

entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas

romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a

impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo

definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha

aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento

em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o

passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era

tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto

A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos

acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-

Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs

Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os

Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de

Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de

Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o

egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo

narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica

Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute

neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o

poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem

40

esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma

essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no

iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma

questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos

encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem

sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos

interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas

as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um

exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo

tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo

daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita

conteacutem

41

42 - UM PERCURSO COMPARATIVO

ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os

vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e

outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que

ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute

foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41

ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto

Olhou em roda natildeo achou ningueacutem

Por entre as campas arrastando o manto

Com lentos passos caminhou aleacutem

Abandonado neste chatildeo repousa

Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui

Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa

Sobre este peito que bateu por tirdquo42

A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e

o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-

romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua

linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa

o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se

O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando

proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos

moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na

literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror

Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou

comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas

circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de

comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e

sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos

41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda

Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos

42

ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de

outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou

Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)

Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal

de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma

optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada

pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada

no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus

sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa

suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois

dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)

Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade

todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional

natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute

afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute

tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima

do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo

Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela

e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a

prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua

intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a

dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as

influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente

que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz

directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para

a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o

intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era

partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada

por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das

rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de

branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza

43

ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas

Longas roupagens de neveda cor

Singela croa de virgiacutenias rosas

Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43

ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de

branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila

devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa

nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)

Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de

conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se

para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da

imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a

partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a

presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os

uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem

eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera

absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor

ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria

A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a

intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um

testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista

e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas

caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da

temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao

fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma

retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras

masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo

homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma

mulher

43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12

44

(hellip)

Mulher formosa que adorei na vida

E que na tumba natildeo cessei damar

Por que atraiccediloas desleal mentida

O amor eterno que te ouvi jurar

Amor engano que na campa finda

Que a morte despe da ilusatildeo falaz

Quem dentros vivos se lembrara ainda

ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)

Talvez que rindo dos protestos nossos

Gozes com outro dinfernal prazer

E o olvido cobriraacute meus ossos

Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44

Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o

vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as

bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis

e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma

essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o

podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA

ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de

sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a

eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos

na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto

com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais

de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas

palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o

esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal

seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu

passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre

44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9

45

que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as

matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos

das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam

para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)

Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno

num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista

melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias

possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela

um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica

natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem

fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo

intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas

rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso

consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo

intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas

solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou

com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a

todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas

as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os

sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado

daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)

Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do

Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais

significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO

MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do

quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e

estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que

desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo

da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina

agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das

espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute

presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos

46

ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido

Das sepulturas o gelado poacute

Dois esqueletos um ao outro unido

Foram achados num sepulcro soacuterdquo45

Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de

imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da

intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo

buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma

enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo

recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as

laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas

deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo

sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais

moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas

austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade

dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete

palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam

pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e

59)

Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao

ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram

escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia

literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo

exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde

ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais

tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo

merecida

45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos

47

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas

interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca

Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo

depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves

transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo

sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia

ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas

metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver

com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao

sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas

tambeacutem ao que relaciona a morte

A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua

eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela

mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e

sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo

quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade

que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas

personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a

humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de

enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e

sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas

e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o

que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte

presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais

condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus

contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e

desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse

interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural

equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes

interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute

Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem

uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses

48

elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o

inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela

tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses

elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma

civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor

sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam

sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do

intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea

Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o

menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que

para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro

compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo

que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou

seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua

imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que

essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar

atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a

outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual

proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque

esconde-se ou projecta-se no discurso do outro

Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o

caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo

relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens

marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um

significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um

desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos

de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e

fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave

realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande

maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe

um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo

46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de

Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360

49

obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a

escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada

Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a

infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute

aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo

espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a

verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes

50

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Page 31: AS MÁSCARAS SIMBÓLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA … Jaqueline... · 2019-10-31 · A narrativa ficcional não é o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca, mas, assim como

31

Florbela insiste nas aacuteguas em movimento o que simboliza um estado

transitoacuterio entre as possibilidades ainda informes agraves realidades configuradas

Uma situaccedilatildeo de ambivalecircncia que eacute a de incerteza de duacutevida de indecisatildeo e

que se pode concluir bem ou mal Vem daiacute que o mar eacute ao mesmo tempo a

imagem da vida e a imagem da morte Simbolicamente ele tem propriedade de

dar e de tirar a vida Mas o mar florbeliano deteacutem a propriedade da pousada

dos mortos eacute nele que a ldquopassagemrdquo parece ser mais amena e mais

significativa tanto para quem vai quanto a quem fica Aos olhos de nossa

escritora no leito de morte do fundo do mar haacute beleza e horror haacute incoacutegnita e

sentido ldquoA morte eacute o Reutlinger das recordaccedilotildees na objectiva do coraccedilatildeo foca-

as para sempre em beleza imutaacutevel e uacutenicahellipQuando a vi olhar num olhar

inexprimiacutevel desalento aquele mar mortalha imensa dum ente que para todos

era haacute muito apenas recordaccedilatildeo e que para ela era a uacutenica realidade

existenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199873)

A aacutegua liacutempida e transparente tece uma mortalha visiacutevel em nosso imaginaacuterio

Eacute uma mortalha que cobre as intenccedilotildees e interpretaccedilotildees mas que ao mesmo

tempo deixa-as visivelmente pretendidas atraveacutes das palavras e das imagens

que compomos com as descriccedilotildees feitas pela autora Assim haacute a tentativa de

tirar do mar a vida mesmo que seja na apariccedilatildeo de uma alma viva-morta

ldquo Agravequele brado de anguacutestia agravequele chamamento agravequele apelo desesperado a

proacutepria noite se enrodilhou agrave espera que das ondas surgisse o morto novo

Laacutezaro Surge et ambulardquo (FLORBELA ESPANCA 199876) Eacute interessante

notarmos como neste seguimento haacute uma breve intenccedilatildeo de que o mar deixe

de pertencer ao imaginaacuterio romacircntico adquirindo sentido da certeza de dor e

medo ldquo Foi um segundo de emoccedilatildeo como nunca tinha vivido como nunca

mais poderei viverhellipLiacutedia tornou a cair na cadeira como um triste farrapinho

branco numa crise de soluccedilos que a sufocava todos levantaram para a

socorrer Eu fiquei a olhar o para o mar o mar impiedoso que guardava a sua

presa que se espreguiccedilava molemente como uma fera que tem sonordquo

(FLORBELA ESPANCA 199876) Tal intenccedilatildeo revela a tentativa de natildeo

deixar a imaginaccedilatildeo sobrepor a realidade que Florbela vivenciara e de que natildeo

queria esquecer Assim como o balanccedilo das ondas que vatildeo e vem eacute a

intenccedilatildeo de nossa escritora retomar sua histoacuteria seu designo e sua trageacutedia

humana Isso sempre na certeza de encontrarmos vestiacutegios que apontam para

32

sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo

pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no

mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais

apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva

enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente

foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)

A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja

como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo

atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute

reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em

busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito

junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos

satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad

que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que

han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas

mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como

meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do

inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os

aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias

34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939

33

32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO

ldquoA vida vem em ondas

Como o mar

Num indo e vindo infinitohelliprdquo35

A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente

foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram

o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios

da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-

portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo

ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura

universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e

nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a

esquizofrenia de sua alma

O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos

grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma

visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes

de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-

racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas

fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma

encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no

espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada

ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar

duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava

que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se

35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos

em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria

imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia

grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios

Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e

cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam

da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela

Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a

sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor

34

sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o

olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de

um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o

seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No

reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que

constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia

Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor

das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que

participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na

claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma

a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial

apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se

imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA

ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta

solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser

acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas

pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de

existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas

dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma

mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar

agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)

As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar

aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de

Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a

37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta

nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet

tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido

advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte

de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga

(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre

1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a

questatildeo (Hamlet ato III cena I)

38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)

que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era

destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar

35

travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes

questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente

humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a

vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa

loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz

a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair

numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua

frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico

mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de

transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a

morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano

capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas

ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de

integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de

totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma

ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade

de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida

dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a

seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas

iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives

mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas

dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a

cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute

perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras

velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida

de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar

costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras

por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e

grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme

O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu

amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do

Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para

toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos

36

Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser

salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma

dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo

desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave

liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos

secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a

uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo

desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a

boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia

pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a

mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais

alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se

nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira

as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de

alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora

julga existir no seu misteacuterio

O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e

forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e

sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que

orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente

num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das

contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute

traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas

que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas

figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas

narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um

imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e

39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII

mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a

bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por

alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua

tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar

Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A

histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito

em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que

aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas

aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma

37

refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus

fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a

sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades

da dinacircmica universal

Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar

simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos

narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos

siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um

contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da

efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma

capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde

diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e

exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia

essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel

mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo

do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do

Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)

e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo

social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)

na representatividade literaacuteria do mar

38

CAPIacuteTULO 04

41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA

ldquoGosto de ti apaixonadamente

De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo

De ti que me trouxeste pela matildeo

Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40

Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso

a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade

directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na

poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua

dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees

Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita

capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e

um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz

e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a

dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas

conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute

e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria

serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem

quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto

anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse

em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita

maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte

com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e

quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e

emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos

paradoxos

40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no

livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004

Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo

Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11

39

Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos

toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-

romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido

num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia

com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes

profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas

sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo

acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando

a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A

derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a

conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas

da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da

sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No

entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas

romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a

impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo

definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha

aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento

em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o

passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era

tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto

A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos

acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-

Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs

Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os

Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de

Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de

Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o

egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo

narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica

Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute

neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o

poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem

40

esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma

essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no

iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma

questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos

encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem

sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos

interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas

as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um

exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo

tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo

daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita

conteacutem

41

42 - UM PERCURSO COMPARATIVO

ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os

vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e

outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que

ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute

foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41

ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto

Olhou em roda natildeo achou ningueacutem

Por entre as campas arrastando o manto

Com lentos passos caminhou aleacutem

Abandonado neste chatildeo repousa

Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui

Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa

Sobre este peito que bateu por tirdquo42

A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e

o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-

romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua

linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa

o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se

O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando

proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos

moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na

literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror

Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou

comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas

circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de

comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e

sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos

41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda

Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos

42

ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de

outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou

Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)

Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal

de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma

optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada

pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada

no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus

sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa

suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois

dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)

Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade

todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional

natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute

afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute

tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima

do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo

Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela

e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a

prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua

intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a

dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as

influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente

que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz

directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para

a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o

intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era

partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada

por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das

rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de

branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza

43

ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas

Longas roupagens de neveda cor

Singela croa de virgiacutenias rosas

Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43

ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de

branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila

devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa

nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)

Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de

conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se

para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da

imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a

partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a

presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os

uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem

eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera

absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor

ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria

A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a

intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um

testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista

e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas

caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da

temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao

fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma

retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras

masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo

homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma

mulher

43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12

44

(hellip)

Mulher formosa que adorei na vida

E que na tumba natildeo cessei damar

Por que atraiccediloas desleal mentida

O amor eterno que te ouvi jurar

Amor engano que na campa finda

Que a morte despe da ilusatildeo falaz

Quem dentros vivos se lembrara ainda

ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)

Talvez que rindo dos protestos nossos

Gozes com outro dinfernal prazer

E o olvido cobriraacute meus ossos

Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44

Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o

vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as

bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis

e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma

essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o

podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA

ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de

sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a

eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos

na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto

com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais

de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas

palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o

esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal

seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu

passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre

44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9

45

que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as

matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos

das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam

para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)

Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno

num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista

melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias

possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela

um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica

natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem

fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo

intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas

rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso

consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo

intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas

solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou

com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a

todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas

as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os

sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado

daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)

Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do

Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais

significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO

MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do

quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e

estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que

desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo

da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina

agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das

espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute

presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos

46

ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido

Das sepulturas o gelado poacute

Dois esqueletos um ao outro unido

Foram achados num sepulcro soacuterdquo45

Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de

imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da

intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo

buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma

enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo

recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as

laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas

deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo

sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais

moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas

austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade

dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete

palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam

pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e

59)

Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao

ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram

escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia

literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo

exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde

ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais

tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo

merecida

45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos

47

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas

interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca

Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo

depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves

transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo

sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia

ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas

metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver

com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao

sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas

tambeacutem ao que relaciona a morte

A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua

eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela

mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e

sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo

quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade

que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas

personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a

humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de

enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e

sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas

e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o

que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte

presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais

condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus

contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e

desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse

interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural

equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes

interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute

Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem

uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses

48

elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o

inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela

tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses

elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma

civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor

sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam

sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do

intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea

Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o

menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que

para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro

compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo

que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou

seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua

imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que

essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar

atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a

outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual

proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque

esconde-se ou projecta-se no discurso do outro

Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o

caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo

relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens

marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um

significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um

desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos

de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e

fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave

realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande

maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe

um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo

46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de

Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360

49

obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a

escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada

Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a

infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute

aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo

espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a

verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes

50

REFEREcircNCIA BIBLIOGRAacuteFICA

Activa

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Editorial Venda Nova

ESPANCA Florbela (1998) Diaacuterio do Uacuteltimo Ano 4ordf ediccedilatildeo Bertrand Editorial

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Lisboa

REacuteGIO Joseacute (1981) Sonetos de Florbela Espanca 19ordf ediccedilatildeo Lisboa

Passiva

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Page 32: AS MÁSCARAS SIMBÓLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA … Jaqueline... · 2019-10-31 · A narrativa ficcional não é o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca, mas, assim como

32

sua trajectoacuteria ou que remetem a sua pessoa e dos que amava ldquoNatildeo vocecirc natildeo

pode lembrar-se hellipdum seu camarada que morreu viacutetima de um desastre no

mar hellipO cadaacutever apesar de incansaacuteveis pesquisas nunca mais

apareceuhellipNos primeiros dias houve muito seacuterios receios de que a noiva

enlouquecessehellipesteve numa casa de sauacutede na Alemanha viajou pelo Oriente

foi a Jerusaleacutem Voltourdquo (FLORBELA ESPANCA 199871 e 72)

A onda sai do mar e retorna a ele o que simboliza a dinacircmica da vida seja

como for Florbela utiliza desse aspecto simboacutelico para reforccedilar a reflexatildeo

atraveacutes das lembranccedilas como vemos aparecer nas entrelinhas lembrar eacute

reviver E para poder reviver eacute preciso banhar-se num ritual simboacutelico em

busca da purificaccedilatildeo de uma nova personalidade e isso soacute poderaacute ser feito

junto a ideia de renovaccedilatildeo pela aacutegua Os banhos que ora aparecem nos contos

satildeo banhos purificadores pois como diz Marie-Louise Von Franz ldquoa suciedad

que cubre el cuerpo puede significar influencias psicoloacutegicas del entrorno que

han contaminadas la personalidad originalrdquo34 Desta forma o banho em aacuteguas

mansas ou turbulentas eacute uma necessidade de expulsar maldiccedilotildees como

meacutetodo de redenccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da forccedila espiritual na compreensatildeo do

inconsciente e dos afectos do coraccedilatildeo ou ainda para fazer enxergar os

aspectos incorrectos ou incoerentes de suas ideias

34 Citaccedilatildeo do livro de Marie-Louise Von Franz Siacutembolos de redencioacuten en los cuentos de hadas 199939

33

32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO

ldquoA vida vem em ondas

Como o mar

Num indo e vindo infinitohelliprdquo35

A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente

foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram

o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios

da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-

portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo

ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura

universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e

nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a

esquizofrenia de sua alma

O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos

grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma

visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes

de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-

racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas

fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma

encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no

espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada

ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar

duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava

que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se

35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos

em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria

imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia

grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios

Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e

cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam

da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela

Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a

sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor

34

sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o

olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de

um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o

seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No

reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que

constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia

Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor

das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que

participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na

claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma

a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial

apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se

imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA

ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta

solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser

acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas

pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de

existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas

dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma

mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar

agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)

As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar

aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de

Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a

37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta

nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet

tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido

advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte

de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga

(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre

1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a

questatildeo (Hamlet ato III cena I)

38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)

que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era

destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar

35

travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes

questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente

humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a

vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa

loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz

a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair

numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua

frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico

mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de

transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a

morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano

capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas

ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de

integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de

totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma

ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade

de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida

dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a

seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas

iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives

mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas

dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a

cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute

perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras

velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida

de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar

costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras

por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e

grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme

O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu

amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do

Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para

toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos

36

Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser

salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma

dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo

desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave

liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos

secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a

uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo

desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a

boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia

pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a

mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais

alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se

nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira

as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de

alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora

julga existir no seu misteacuterio

O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e

forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e

sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que

orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente

num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das

contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute

traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas

que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas

figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas

narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um

imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e

39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII

mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a

bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por

alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua

tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar

Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A

histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito

em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que

aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas

aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma

37

refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus

fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a

sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades

da dinacircmica universal

Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar

simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos

narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos

siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um

contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da

efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma

capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde

diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e

exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia

essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel

mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo

do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do

Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)

e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo

social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)

na representatividade literaacuteria do mar

38

CAPIacuteTULO 04

41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA

ldquoGosto de ti apaixonadamente

De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo

De ti que me trouxeste pela matildeo

Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40

Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso

a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade

directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na

poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua

dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees

Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita

capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e

um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz

e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a

dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas

conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute

e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria

serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem

quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto

anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse

em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita

maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte

com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e

quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e

emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos

paradoxos

40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no

livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004

Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo

Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11

39

Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos

toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-

romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido

num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia

com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes

profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas

sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo

acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando

a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A

derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a

conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas

da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da

sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No

entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas

romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a

impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo

definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha

aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento

em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o

passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era

tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto

A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos

acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-

Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs

Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os

Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de

Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de

Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o

egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo

narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica

Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute

neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o

poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem

40

esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma

essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no

iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma

questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos

encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem

sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos

interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas

as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um

exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo

tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo

daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita

conteacutem

41

42 - UM PERCURSO COMPARATIVO

ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os

vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e

outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que

ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute

foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41

ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto

Olhou em roda natildeo achou ningueacutem

Por entre as campas arrastando o manto

Com lentos passos caminhou aleacutem

Abandonado neste chatildeo repousa

Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui

Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa

Sobre este peito que bateu por tirdquo42

A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e

o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-

romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua

linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa

o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se

O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando

proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos

moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na

literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror

Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou

comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas

circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de

comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e

sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos

41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda

Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos

42

ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de

outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou

Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)

Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal

de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma

optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada

pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada

no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus

sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa

suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois

dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)

Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade

todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional

natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute

afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute

tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima

do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo

Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela

e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a

prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua

intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a

dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as

influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente

que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz

directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para

a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o

intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era

partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada

por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das

rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de

branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza

43

ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas

Longas roupagens de neveda cor

Singela croa de virgiacutenias rosas

Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43

ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de

branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila

devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa

nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)

Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de

conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se

para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da

imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a

partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a

presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os

uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem

eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera

absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor

ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria

A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a

intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um

testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista

e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas

caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da

temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao

fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma

retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras

masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo

homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma

mulher

43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12

44

(hellip)

Mulher formosa que adorei na vida

E que na tumba natildeo cessei damar

Por que atraiccediloas desleal mentida

O amor eterno que te ouvi jurar

Amor engano que na campa finda

Que a morte despe da ilusatildeo falaz

Quem dentros vivos se lembrara ainda

ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)

Talvez que rindo dos protestos nossos

Gozes com outro dinfernal prazer

E o olvido cobriraacute meus ossos

Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44

Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o

vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as

bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis

e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma

essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o

podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA

ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de

sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a

eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos

na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto

com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais

de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas

palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o

esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal

seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu

passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre

44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9

45

que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as

matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos

das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam

para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)

Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno

num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista

melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias

possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela

um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica

natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem

fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo

intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas

rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso

consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo

intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas

solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou

com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a

todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas

as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os

sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado

daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)

Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do

Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais

significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO

MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do

quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e

estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que

desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo

da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina

agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das

espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute

presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos

46

ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido

Das sepulturas o gelado poacute

Dois esqueletos um ao outro unido

Foram achados num sepulcro soacuterdquo45

Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de

imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da

intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo

buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma

enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo

recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as

laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas

deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo

sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais

moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas

austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade

dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete

palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam

pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e

59)

Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao

ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram

escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia

literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo

exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde

ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais

tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo

merecida

45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos

47

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas

interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca

Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo

depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves

transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo

sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia

ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas

metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver

com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao

sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas

tambeacutem ao que relaciona a morte

A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua

eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela

mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e

sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo

quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade

que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas

personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a

humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de

enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e

sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas

e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o

que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte

presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais

condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus

contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e

desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse

interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural

equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes

interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute

Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem

uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses

48

elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o

inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela

tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses

elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma

civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor

sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam

sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do

intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea

Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o

menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que

para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro

compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo

que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou

seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua

imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que

essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar

atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a

outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual

proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque

esconde-se ou projecta-se no discurso do outro

Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o

caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo

relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens

marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um

significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um

desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos

de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e

fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave

realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande

maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe

um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo

46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de

Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360

49

obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a

escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada

Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a

infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute

aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo

espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a

verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes

50

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Page 33: AS MÁSCARAS SIMBÓLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA … Jaqueline... · 2019-10-31 · A narrativa ficcional não é o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca, mas, assim como

33

32 - A SIMBOLOGIA DO MAR FLORBELIANO

ldquoA vida vem em ondas

Como o mar

Num indo e vindo infinitohelliprdquo35

A inspiraccedilatildeo mariacutetima eacute tatildeo antiga como a literatura portuguesa Curiosamente

foram os poetas trovadorescos e palacianos (seacutecs XII a XIV) que descobriram

o mar bem antes das descobertas quinhentistas Com efeito jaacute nos primoacuterdios

da nacionalidade o apelo do mar se fazia sentir no lirismo amoroso galaico-

portuguecircs inspiradas na temaacutetica mariacutetima que por sua vez ao longo do tempo

ilustra natildeo soacute os escritos dos autores lusitanos mas tambeacutem da literatura

universal O mar florbeliano emerge simbolicamente com atmosfera miacutetica e

nas suas costuras intertextuais vai compondo atraveacutes do elemento ldquoaacuteguardquo a

esquizofrenia de sua alma

O Mar e as aacuteguas concebidos por Florbela deteacutem a personificaccedilatildeo dos

grandes e fecundos mitos literaacuterios assim enfocam a tendecircncia para uma

visatildeo simboacutelica do mar e de personagens que fulguram seu imaginaacuterio atraveacutes

de descriccedilotildees recheadas de subjectividade comparaccedilotildees assonacircncias e anti-

racionalismo Personagens feridos e perturbados na liquidez de muacuteltiplas

fracturas da aacutegua encontram refuacutegio em suas maacutescaras Desta forma

encontramos o mito de Narciso36 mirando fatidicamente a sua beleza no

espelho das aacuteguas o que simboliza a beleza sugerida e natildeo retratada

ldquoLembro-me muito bem da cara dele principalmente dos olhos tinha um olhar

duro um estranho olhar que nos penetrava como uma verruma que afirmava

que insistia mas quando nos pressentia o vago mal-estar de uma alma que se

35Fragmento da canccedilatildeo ldquoComo uma ondardquo letra de Nelson Motta musicado e cantado por Lulu Santos

em 1983 36 A lenda de Narciso surgida provavelmente da supersticcedilatildeo grega segundo a qual contemplar a proacutepria

imagem prenunciava maacute sorte possui um simbolismo que fez dela uma das mais duradouras da mitologia

grega Pausacircnias localiza a fonte de Narciso na cama de juncos em Donacon no territoacuterio dos Teacutespios

Pausacircnias acha incriacutevel que algueacutem natildeo conseguisse distinguir um reflexo de uma pessoa verdadeira e

cita uma variante menos conhecida da histoacuteria na qual Narciso tinha uma irmatilde geacutemea Ambos se vestiam

da mesma forma e usavam o mesmo tipo de roupas e caccedilavam juntos Narciso apaixonou-se por ela

Quando ela morreu Narciso consumiu-se de desgosto por ela e fingiu que o reflexo que via na aacutegua era a

sua irmatilde Onde o seu corpo se encontrava apenas restou uma flor

34

sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o

olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de

um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o

seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No

reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que

constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia

Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor

das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que

participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na

claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma

a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial

apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se

imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA

ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta

solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser

acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas

pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de

existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas

dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma

mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar

agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)

As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar

aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de

Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a

37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta

nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet

tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido

advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte

de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga

(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre

1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a

questatildeo (Hamlet ato III cena I)

38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)

que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era

destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar

35

travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes

questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente

humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a

vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa

loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz

a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair

numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua

frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico

mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de

transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a

morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano

capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas

ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de

integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de

totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma

ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade

de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida

dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a

seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas

iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives

mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas

dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a

cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute

perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras

velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida

de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar

costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras

por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e

grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme

O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu

amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do

Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para

toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos

36

Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser

salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma

dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo

desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave

liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos

secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a

uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo

desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a

boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia

pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a

mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais

alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se

nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira

as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de

alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora

julga existir no seu misteacuterio

O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e

forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e

sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que

orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente

num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das

contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute

traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas

que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas

figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas

narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um

imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e

39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII

mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a

bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por

alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua

tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar

Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A

histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito

em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que

aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas

aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma

37

refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus

fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a

sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades

da dinacircmica universal

Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar

simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos

narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos

siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um

contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da

efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma

capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde

diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e

exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia

essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel

mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo

do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do

Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)

e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo

social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)

na representatividade literaacuteria do mar

38

CAPIacuteTULO 04

41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA

ldquoGosto de ti apaixonadamente

De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo

De ti que me trouxeste pela matildeo

Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40

Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso

a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade

directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na

poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua

dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees

Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita

capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e

um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz

e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a

dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas

conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute

e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria

serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem

quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto

anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse

em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita

maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte

com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e

quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e

emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos

paradoxos

40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no

livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004

Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo

Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11

39

Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos

toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-

romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido

num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia

com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes

profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas

sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo

acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando

a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A

derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a

conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas

da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da

sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No

entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas

romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a

impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo

definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha

aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento

em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o

passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era

tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto

A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos

acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-

Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs

Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os

Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de

Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de

Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o

egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo

narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica

Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute

neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o

poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem

40

esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma

essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no

iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma

questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos

encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem

sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos

interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas

as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um

exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo

tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo

daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita

conteacutem

41

42 - UM PERCURSO COMPARATIVO

ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os

vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e

outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que

ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute

foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41

ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto

Olhou em roda natildeo achou ningueacutem

Por entre as campas arrastando o manto

Com lentos passos caminhou aleacutem

Abandonado neste chatildeo repousa

Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui

Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa

Sobre este peito que bateu por tirdquo42

A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e

o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-

romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua

linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa

o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se

O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando

proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos

moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na

literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror

Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou

comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas

circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de

comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e

sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos

41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda

Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos

42

ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de

outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou

Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)

Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal

de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma

optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada

pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada

no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus

sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa

suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois

dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)

Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade

todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional

natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute

afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute

tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima

do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo

Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela

e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a

prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua

intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a

dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as

influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente

que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz

directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para

a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o

intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era

partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada

por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das

rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de

branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza

43

ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas

Longas roupagens de neveda cor

Singela croa de virgiacutenias rosas

Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43

ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de

branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila

devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa

nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)

Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de

conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se

para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da

imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a

partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a

presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os

uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem

eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera

absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor

ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria

A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a

intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um

testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista

e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas

caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da

temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao

fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma

retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras

masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo

homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma

mulher

43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12

44

(hellip)

Mulher formosa que adorei na vida

E que na tumba natildeo cessei damar

Por que atraiccediloas desleal mentida

O amor eterno que te ouvi jurar

Amor engano que na campa finda

Que a morte despe da ilusatildeo falaz

Quem dentros vivos se lembrara ainda

ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)

Talvez que rindo dos protestos nossos

Gozes com outro dinfernal prazer

E o olvido cobriraacute meus ossos

Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44

Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o

vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as

bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis

e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma

essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o

podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA

ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de

sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a

eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos

na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto

com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais

de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas

palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o

esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal

seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu

passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre

44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9

45

que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as

matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos

das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam

para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)

Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno

num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista

melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias

possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela

um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica

natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem

fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo

intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas

rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso

consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo

intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas

solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou

com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a

todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas

as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os

sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado

daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)

Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do

Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais

significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO

MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do

quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e

estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que

desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo

da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina

agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das

espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute

presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos

46

ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido

Das sepulturas o gelado poacute

Dois esqueletos um ao outro unido

Foram achados num sepulcro soacuterdquo45

Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de

imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da

intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo

buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma

enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo

recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as

laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas

deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo

sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais

moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas

austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade

dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete

palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam

pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e

59)

Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao

ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram

escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia

literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo

exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde

ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais

tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo

merecida

45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos

47

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas

interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca

Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo

depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves

transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo

sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia

ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas

metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver

com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao

sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas

tambeacutem ao que relaciona a morte

A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua

eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela

mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e

sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo

quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade

que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas

personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a

humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de

enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e

sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas

e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o

que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte

presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais

condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus

contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e

desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse

interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural

equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes

interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute

Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem

uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses

48

elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o

inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela

tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses

elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma

civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor

sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam

sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do

intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea

Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o

menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que

para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro

compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo

que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou

seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua

imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que

essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar

atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a

outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual

proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque

esconde-se ou projecta-se no discurso do outro

Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o

caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo

relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens

marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um

significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um

desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos

de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e

fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave

realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande

maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe

um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo

46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de

Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360

49

obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a

escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada

Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a

infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute

aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo

espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a

verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes

50

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Page 34: AS MÁSCARAS SIMBÓLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA … Jaqueline... · 2019-10-31 · A narrativa ficcional não é o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca, mas, assim como

34

sente vasculhada adivinhada ateacute aos seus mais recocircnditos esconderijos o

olhar maacutegico dulcificava-se aveludava-se transformava-se na suavidade de

um olhar quase feminino lacircnguido e caricioso Era realmente um belo rapazrdquo

(FLORBELA ESPANCA 199872) Havia em Florbela a intenccedilatildeo de transmitir o

seu desejo de transcendecircncia e integraccedilatildeo coacutesmica na figura do irmatildeo No

reflexo o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpaacuteveis que

constituem o outro siacutembolo do duplicado tenebroso da consciecircncia

Tambeacutem vemos aparecer o mito de Ofeacutelia37 boiando doce e fatalmente agrave flor

das aacuteguas simboliza a fusatildeo do corpo e da aacutegua na imagem da mulher que

participa da vida nas sombras ldquo O seu vestido de rendas prateadas na

claridade leitosa da Lua que se elevava acima das ondas vestia-a de espuma

a faiscarhellipNaquele terraccedilo quase agraves escuras fez-me pensar numa imaterial

apariccedilatildeo parecia mais uma onda que tivesse galgado o terraccedilo e que se

imobilizasse na expectativa dum prodigioso e inefaacutevel milagrerdquo (FLORBELA

ESPANCA 199874) Entre a simbologia da presenccedila e ausecircncia e da secreta

solidatildeo Florbela luta contra a passagem temporal entre o ser e o natildeo-ser

acentuada pela duplicidade A tristeza a melancolia e a solidatildeo vivenciadas

pela escritora convergem com a dilaceraccedilatildeo da alma e uma profunda dor de

existirrdquo Todos noacutes que aqui estamos conhecemos mulheres que em eacutepocas

dolorosas de sua vida procuraram um consolo um analgeacutesicohellipmas uma

mulher que se agarre como agrave uacutenica taacutebua de salvaccedilatildeo que a pode fazer boiar

agrave tona de aacutegua agraves palavras dum doido qual de vocecircs conhecem essa

mulherrdquo (FLORBELA ESPANCA 199881)

As constantes que encontramos de personagens a beira dos rios e do mar

aferindo a uma profunda reflexatildeo sugerem na linguagem vaga o mito de

Caronte38 transportando na sua barca os mortos que se preparam para a

37 Ophelia ou Ofeacutelia eacute uma personagem da obra Hamlet de William Shakespeare Eacute uma jovem da alta

nobreza da Dinamarca filha de Poloacutenio irmatilde de Laertes e noiva do Priacutencipe Hamlet Ela e Hamlet

tiveram sentimentos romacircnticos um pelo outro embora eles (pelo menos implicitamente) tenham sido

advertidos que seria politicamente inadequado para eles se casarem Atormentada por Hamlet como parte

de sua loucura a morte de seu pai eacute a causa da perda de sua sanidade Ela cai em um riacho e se afoga

(de propoacutesito ou acidentalmente dependendo da interpretaccedilatildeo) Escrita numa data natildeo confirmada entre

1600 e 1602 Eacute uma de suas peccedilas mais famosas sendo fonte da ceacutelebre citaccedilatildeo Ser ou natildeo ser eis a

questatildeo (Hamlet ato III cena I)

38 Caronte (em grego Χάρων mdash o brilho) era uma figura mitoloacutegica do mundo inferior grego (o Hades)

que transportava os receacutem-mortos na sua barca atraveacutes do rio Aqueronte ateacute o local no Hades que lhes era

destinado Era costume grego colocar uma moeda chamada oacutebolo sob a liacutengua do cadaacutever para pagar

35

travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes

questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente

humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a

vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa

loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz

a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair

numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua

frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico

mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de

transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a

morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano

capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas

ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de

integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de

totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma

ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade

de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida

dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a

seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas

iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives

mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas

dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a

cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute

perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras

velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida

de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar

costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras

por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e

grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme

O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu

amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do

Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para

toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos

36

Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser

salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma

dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo

desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave

liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos

secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a

uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo

desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a

boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia

pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a

mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais

alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se

nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira

as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de

alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora

julga existir no seu misteacuterio

O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e

forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e

sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que

orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente

num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das

contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute

traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas

que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas

figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas

narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um

imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e

39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII

mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a

bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por

alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua

tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar

Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A

histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito

em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que

aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas

aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma

37

refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus

fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a

sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades

da dinacircmica universal

Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar

simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos

narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos

siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um

contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da

efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma

capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde

diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e

exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia

essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel

mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo

do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do

Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)

e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo

social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)

na representatividade literaacuteria do mar

38

CAPIacuteTULO 04

41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA

ldquoGosto de ti apaixonadamente

De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo

De ti que me trouxeste pela matildeo

Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40

Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso

a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade

directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na

poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua

dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees

Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita

capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e

um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz

e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a

dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas

conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute

e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria

serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem

quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto

anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse

em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita

maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte

com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e

quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e

emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos

paradoxos

40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no

livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004

Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo

Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11

39

Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos

toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-

romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido

num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia

com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes

profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas

sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo

acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando

a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A

derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a

conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas

da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da

sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No

entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas

romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a

impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo

definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha

aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento

em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o

passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era

tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto

A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos

acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-

Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs

Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os

Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de

Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de

Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o

egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo

narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica

Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute

neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o

poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem

40

esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma

essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no

iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma

questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos

encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem

sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos

interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas

as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um

exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo

tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo

daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita

conteacutem

41

42 - UM PERCURSO COMPARATIVO

ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os

vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e

outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que

ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute

foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41

ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto

Olhou em roda natildeo achou ningueacutem

Por entre as campas arrastando o manto

Com lentos passos caminhou aleacutem

Abandonado neste chatildeo repousa

Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui

Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa

Sobre este peito que bateu por tirdquo42

A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e

o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-

romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua

linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa

o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se

O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando

proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos

moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na

literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror

Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou

comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas

circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de

comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e

sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos

41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda

Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos

42

ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de

outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou

Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)

Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal

de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma

optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada

pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada

no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus

sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa

suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois

dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)

Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade

todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional

natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute

afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute

tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima

do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo

Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela

e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a

prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua

intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a

dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as

influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente

que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz

directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para

a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o

intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era

partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada

por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das

rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de

branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza

43

ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas

Longas roupagens de neveda cor

Singela croa de virgiacutenias rosas

Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43

ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de

branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila

devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa

nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)

Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de

conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se

para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da

imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a

partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a

presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os

uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem

eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera

absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor

ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria

A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a

intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um

testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista

e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas

caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da

temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao

fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma

retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras

masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo

homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma

mulher

43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12

44

(hellip)

Mulher formosa que adorei na vida

E que na tumba natildeo cessei damar

Por que atraiccediloas desleal mentida

O amor eterno que te ouvi jurar

Amor engano que na campa finda

Que a morte despe da ilusatildeo falaz

Quem dentros vivos se lembrara ainda

ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)

Talvez que rindo dos protestos nossos

Gozes com outro dinfernal prazer

E o olvido cobriraacute meus ossos

Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44

Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o

vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as

bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis

e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma

essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o

podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA

ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de

sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a

eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos

na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto

com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais

de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas

palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o

esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal

seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu

passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre

44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9

45

que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as

matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos

das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam

para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)

Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno

num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista

melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias

possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela

um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica

natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem

fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo

intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas

rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso

consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo

intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas

solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou

com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a

todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas

as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os

sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado

daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)

Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do

Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais

significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO

MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do

quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e

estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que

desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo

da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina

agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das

espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute

presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos

46

ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido

Das sepulturas o gelado poacute

Dois esqueletos um ao outro unido

Foram achados num sepulcro soacuterdquo45

Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de

imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da

intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo

buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma

enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo

recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as

laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas

deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo

sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais

moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas

austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade

dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete

palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam

pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e

59)

Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao

ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram

escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia

literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo

exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde

ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais

tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo

merecida

45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos

47

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas

interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca

Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo

depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves

transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo

sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia

ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas

metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver

com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao

sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas

tambeacutem ao que relaciona a morte

A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua

eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela

mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e

sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo

quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade

que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas

personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a

humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de

enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e

sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas

e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o

que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte

presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais

condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus

contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e

desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse

interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural

equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes

interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute

Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem

uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses

48

elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o

inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela

tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses

elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma

civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor

sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam

sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do

intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea

Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o

menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que

para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro

compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo

que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou

seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua

imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que

essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar

atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a

outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual

proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque

esconde-se ou projecta-se no discurso do outro

Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o

caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo

relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens

marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um

significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um

desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos

de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e

fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave

realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande

maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe

um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo

46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de

Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360

49

obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a

escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada

Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a

infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute

aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo

espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a

verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes

50

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Page 35: AS MÁSCARAS SIMBÓLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA … Jaqueline... · 2019-10-31 · A narrativa ficcional não é o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca, mas, assim como

35

travessia final Florbela coloca seus personagens a ldquomargemrdquo de grandes

questionamentos atraveacutes da exploraccedilatildeo das zonas desconhecidas da mente

humana (o inconsciente e o subconsciente) e tambeacutem pela loucura que limita a

vida e a morte ldquo O filho bizarro como ele caiacutera com a idade numa completa

loucurahellipEu fiz dele o meu uacutenico confidentehellipacabaram por me deixar em paz

a mim e ao meu amigo doidohellipA palavra dele era como a aacutegua gotinha a cair

numa raiz abrasadahelliptorrente impetuosa que tudo arrasta que tudo leva agrave sua

frenterdquo (FLORBELA ESPANCA 199882 83 e 84) Eacute agrave frente do enigmaacutetico

mar que Florbela sustenta valores tais como o espiritualismo o desejo de

transcendecircncia e de integraccedilatildeo com o universo o misteacuterio o misticismo a

morte e a dor existencial que seria uma nuance do decadentismo florbeliano

capaz de sugerir sua proacutepria realidade como se o mar trouxesse em suas

ondas as respostas de suas reflexotildees existenciais Dai surge uma espeacutecie de

integraccedilatildeo de sua escrita com a vida coacutesmica isso atraveacutes do sentimento de

totalidade como se sua escrita fosse uma religiatildeo e nos apresentasse uma

ldquoessecircncia de vidardquo Eacute agrave beira do mar que se espera Caronte na oportunidade

de ser arrastada para seu ventre ldquoEu queria dizer-te agora o que eacute a vida

dentro do mundo Os mortos sabem Eu seihellipeu vi Aparecem de seacuteculos a

seacuteculos vivos que vecircemhellipchamam-lhes santos profetas artistas

iniciadoreshellipJoana drsquoArchellipPascalhellipSavanolahellipJoatildeo HusshellipVinci Tu vives

mas natildeo sabes da vida Estes sabiam-na mesmo com os olhos fechados mas

dentro da vidahellipOlha e arrancando abruptamente um cacho de lilaacutes deu-mo a

cheirar ldquo eacute perfume A vida eacute esse cacho de lilaacuteshellipMais nadahellipO resto eacute

perfumerdquohelliprepetiu lentamente a minha amiga olhando o mar que as primeiras

velas sulcavam E matildeos no regaccedilo vi-a pela primeira vez imoacutevel esquecida

de mim e de tudordquo (FLORBELA ESPANCA 199890 e 91) Eacute ainda um mar

costeiro visto de terra Tem suas ondas e mareacutes mais ou menos ameaccediladoras

por vezes ateacute confidentes de coraccedilotildees saudosos Natildeo eacute ainda o mar largo e

grandioso Eacute apenas um mar que se admira e teme

O mar eacute o cenaacuterio do encontro amoroso da mulher apaixonada com o seu

amado Esse aspecto nos remete a uma leitura intertextual com o mito do

Caronte pela viagem Se a alma natildeo pudesse pagar ficaria forccedilosamente na margem do Aqueronte para

toda a eternidade e os gregos temiam que pudesse regressar para perturbar os vivos

36

Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser

salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma

dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo

desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave

liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos

secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a

uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo

desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a

boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia

pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a

mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais

alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se

nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira

as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de

alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora

julga existir no seu misteacuterio

O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e

forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e

sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que

orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente

num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das

contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute

traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas

que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas

figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas

narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um

imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e

39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII

mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a

bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por

alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua

tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar

Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A

histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito

em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que

aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas

aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma

37

refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus

fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a

sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades

da dinacircmica universal

Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar

simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos

narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos

siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um

contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da

efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma

capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde

diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e

exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia

essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel

mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo

do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do

Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)

e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo

social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)

na representatividade literaacuteria do mar

38

CAPIacuteTULO 04

41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA

ldquoGosto de ti apaixonadamente

De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo

De ti que me trouxeste pela matildeo

Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40

Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso

a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade

directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na

poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua

dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees

Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita

capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e

um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz

e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a

dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas

conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute

e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria

serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem

quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto

anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse

em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita

maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte

com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e

quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e

emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos

paradoxos

40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no

livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004

Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo

Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11

39

Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos

toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-

romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido

num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia

com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes

profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas

sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo

acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando

a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A

derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a

conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas

da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da

sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No

entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas

romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a

impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo

definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha

aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento

em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o

passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era

tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto

A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos

acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-

Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs

Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os

Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de

Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de

Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o

egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo

narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica

Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute

neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o

poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem

40

esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma

essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no

iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma

questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos

encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem

sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos

interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas

as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um

exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo

tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo

daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita

conteacutem

41

42 - UM PERCURSO COMPARATIVO

ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os

vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e

outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que

ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute

foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41

ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto

Olhou em roda natildeo achou ningueacutem

Por entre as campas arrastando o manto

Com lentos passos caminhou aleacutem

Abandonado neste chatildeo repousa

Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui

Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa

Sobre este peito que bateu por tirdquo42

A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e

o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-

romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua

linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa

o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se

O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando

proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos

moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na

literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror

Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou

comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas

circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de

comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e

sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos

41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda

Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos

42

ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de

outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou

Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)

Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal

de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma

optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada

pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada

no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus

sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa

suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois

dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)

Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade

todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional

natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute

afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute

tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima

do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo

Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela

e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a

prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua

intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a

dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as

influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente

que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz

directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para

a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o

intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era

partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada

por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das

rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de

branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza

43

ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas

Longas roupagens de neveda cor

Singela croa de virgiacutenias rosas

Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43

ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de

branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila

devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa

nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)

Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de

conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se

para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da

imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a

partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a

presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os

uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem

eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera

absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor

ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria

A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a

intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um

testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista

e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas

caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da

temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao

fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma

retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras

masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo

homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma

mulher

43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12

44

(hellip)

Mulher formosa que adorei na vida

E que na tumba natildeo cessei damar

Por que atraiccediloas desleal mentida

O amor eterno que te ouvi jurar

Amor engano que na campa finda

Que a morte despe da ilusatildeo falaz

Quem dentros vivos se lembrara ainda

ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)

Talvez que rindo dos protestos nossos

Gozes com outro dinfernal prazer

E o olvido cobriraacute meus ossos

Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44

Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o

vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as

bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis

e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma

essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o

podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA

ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de

sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a

eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos

na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto

com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais

de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas

palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o

esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal

seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu

passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre

44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9

45

que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as

matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos

das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam

para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)

Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno

num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista

melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias

possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela

um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica

natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem

fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo

intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas

rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso

consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo

intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas

solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou

com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a

todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas

as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os

sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado

daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)

Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do

Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais

significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO

MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do

quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e

estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que

desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo

da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina

agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das

espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute

presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos

46

ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido

Das sepulturas o gelado poacute

Dois esqueletos um ao outro unido

Foram achados num sepulcro soacuterdquo45

Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de

imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da

intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo

buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma

enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo

recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as

laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas

deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo

sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais

moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas

austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade

dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete

palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam

pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e

59)

Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao

ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram

escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia

literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo

exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde

ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais

tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo

merecida

45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos

47

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas

interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca

Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo

depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves

transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo

sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia

ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas

metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver

com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao

sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas

tambeacutem ao que relaciona a morte

A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua

eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela

mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e

sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo

quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade

que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas

personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a

humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de

enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e

sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas

e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o

que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte

presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais

condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus

contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e

desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse

interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural

equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes

interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute

Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem

uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses

48

elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o

inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela

tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses

elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma

civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor

sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam

sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do

intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea

Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o

menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que

para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro

compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo

que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou

seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua

imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que

essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar

atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a

outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual

proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque

esconde-se ou projecta-se no discurso do outro

Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o

caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo

relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens

marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um

significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um

desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos

de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e

fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave

realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande

maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe

um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo

46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de

Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360

49

obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a

escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada

Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a

infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute

aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo

espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a

verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes

50

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Page 36: AS MÁSCARAS SIMBÓLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA … Jaqueline... · 2019-10-31 · A narrativa ficcional não é o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca, mas, assim como

36

Holandecircs Errante39 alegoria do homem condenado agrave erracircncia perpeacutetua ateacute ser

salvo pelo amor de uma mulher Neste contexto o mar descrito ganha uma

dimensatildeo de aprisionamento Um caacutercere de almas angustiadas retidas pelo

desejo do amor natildeo correspondido ou almas a espera da morte redentora agrave

liberdade ldquoQue natildeo ficasse pedra sobre pedra que os campos fossem rasos

secos raspados por todas as pragas que sobre eles caiacutessem em maldiccedilatildeo E a

uacuteltima visatildeo do seu sonho criminoso e insensato foi a visatildeo do mundo

desaparecido engolido pela vastidatildeo de enormes oceanos e agrave tona de aacutegua a

boiar o esquife onde o filho dormia repousadamente embalado em cadecircncia

pelo ritmo das ondasrdquo (FLORBELA ESPANCA 1998114) Assim a

mensagem que Florbela remete eacute a perseguiccedilatildeo de um destino que jamais

alcanccedilaraacute visto na imagem de um fantasma entre as espumas e dissolve-se

nas brumas do mar descontente Eacute esse o encanto de Florbela sempre admira

as coisas de que pode controlar e deseja aquilo que jaacute eacute seu como forma de

alcanccedilar aquilo que lhe falta a promessa da felicidade Isso nossa escritora

julga existir no seu misteacuterio

O mar florbeliano eacute um espaccedilo de memoacuterias e de sonhos Eacute inspirador eacute vida e

forccedila cor ritmo movimento desafio e aventura O mar eacute igualmente dor e

sofrimento alegria e riqueza Eacute esta bipolaridade interactiva e intertextual que

orienta a estrutura enunciativa da ficccedilatildeo de Florbela fundada simultaneamente

num redundante compromisso eacutetico e numa consciecircncia extremada das

contradiccedilotildees inerentes agrave condiccedilatildeo humana Uma condiccedilatildeo de dor social que eacute

traduzidas atraveacutes de visotildees alucinadas e por outro lado as feridas iacutentimas

que transcendem o espaccedilo da subjectividade individual e projectam-se nas

figuras mitoloacutegicas surgidas do mar Da mesma forma o mar entra nas

narrativas constituindo uma progressatildeo sem soluccedilotildees e daacute continuidade a um

imaginaacuterio decadentista-simbolista materializado em uma espeacutecie de fluxo e

39 A lenda do barco fantasma comandado por um holandecircs errante tem a sua origem no seacuteculo XVII

mas varia conforme as versotildees A lenda mais difundida eacute a do capitatildeo Van der Decken que navegava a

bordo do seu barco desde a Holanda ateacute agraves Iacutendias Orientais quando uma violenta tempestade estalou por

alturas do Cabo de Boa Esperanccedila Confiando em seus dons de navegante e pese as suacuteplicas da sua

tripulaccedilatildeo Van der Decken provoca com arrogacircncia o Todo-poderoso que trata de fazecirc-lo naufragar

Consegue escapar mas em castigo pela sua blasfeacutemia eacute condenado a navegar eternamente pelos mares A

histoacuteria foi contada oralmente durante seacuteculos antes que o poeta alematildeo Heinrich Heine a tenha escrito

em 1830 Nesta versatildeo o marinheiro errante eacute libertado da sua maldiccedilatildeo por amor de uma mulher que

aceita morrer para que ele encontre repouso E o buquecirc de velas vermelhas eacute finalmente tragado pelas

aacuteguasRichard Wagner inspira-se neste texto para compor em 1843 a sua oacutepera O Navio Fantasma

37

refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus

fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a

sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades

da dinacircmica universal

Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar

simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos

narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos

siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um

contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da

efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma

capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde

diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e

exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia

essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel

mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo

do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do

Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)

e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo

social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)

na representatividade literaacuteria do mar

38

CAPIacuteTULO 04

41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA

ldquoGosto de ti apaixonadamente

De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo

De ti que me trouxeste pela matildeo

Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40

Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso

a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade

directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na

poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua

dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees

Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita

capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e

um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz

e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a

dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas

conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute

e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria

serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem

quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto

anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse

em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita

maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte

com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e

quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e

emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos

paradoxos

40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no

livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004

Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo

Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11

39

Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos

toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-

romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido

num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia

com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes

profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas

sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo

acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando

a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A

derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a

conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas

da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da

sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No

entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas

romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a

impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo

definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha

aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento

em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o

passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era

tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto

A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos

acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-

Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs

Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os

Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de

Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de

Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o

egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo

narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica

Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute

neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o

poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem

40

esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma

essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no

iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma

questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos

encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem

sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos

interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas

as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um

exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo

tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo

daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita

conteacutem

41

42 - UM PERCURSO COMPARATIVO

ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os

vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e

outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que

ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute

foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41

ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto

Olhou em roda natildeo achou ningueacutem

Por entre as campas arrastando o manto

Com lentos passos caminhou aleacutem

Abandonado neste chatildeo repousa

Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui

Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa

Sobre este peito que bateu por tirdquo42

A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e

o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-

romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua

linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa

o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se

O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando

proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos

moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na

literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror

Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou

comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas

circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de

comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e

sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos

41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda

Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos

42

ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de

outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou

Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)

Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal

de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma

optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada

pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada

no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus

sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa

suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois

dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)

Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade

todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional

natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute

afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute

tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima

do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo

Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela

e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a

prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua

intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a

dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as

influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente

que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz

directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para

a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o

intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era

partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada

por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das

rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de

branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza

43

ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas

Longas roupagens de neveda cor

Singela croa de virgiacutenias rosas

Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43

ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de

branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila

devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa

nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)

Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de

conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se

para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da

imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a

partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a

presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os

uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem

eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera

absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor

ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria

A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a

intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um

testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista

e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas

caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da

temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao

fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma

retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras

masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo

homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma

mulher

43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12

44

(hellip)

Mulher formosa que adorei na vida

E que na tumba natildeo cessei damar

Por que atraiccediloas desleal mentida

O amor eterno que te ouvi jurar

Amor engano que na campa finda

Que a morte despe da ilusatildeo falaz

Quem dentros vivos se lembrara ainda

ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)

Talvez que rindo dos protestos nossos

Gozes com outro dinfernal prazer

E o olvido cobriraacute meus ossos

Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44

Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o

vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as

bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis

e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma

essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o

podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA

ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de

sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a

eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos

na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto

com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais

de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas

palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o

esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal

seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu

passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre

44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9

45

que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as

matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos

das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam

para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)

Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno

num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista

melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias

possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela

um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica

natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem

fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo

intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas

rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso

consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo

intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas

solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou

com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a

todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas

as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os

sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado

daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)

Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do

Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais

significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO

MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do

quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e

estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que

desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo

da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina

agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das

espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute

presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos

46

ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido

Das sepulturas o gelado poacute

Dois esqueletos um ao outro unido

Foram achados num sepulcro soacuterdquo45

Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de

imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da

intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo

buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma

enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo

recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as

laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas

deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo

sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais

moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas

austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade

dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete

palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam

pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e

59)

Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao

ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram

escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia

literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo

exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde

ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais

tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo

merecida

45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos

47

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas

interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca

Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo

depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves

transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo

sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia

ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas

metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver

com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao

sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas

tambeacutem ao que relaciona a morte

A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua

eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela

mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e

sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo

quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade

que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas

personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a

humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de

enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e

sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas

e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o

que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte

presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais

condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus

contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e

desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse

interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural

equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes

interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute

Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem

uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses

48

elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o

inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela

tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses

elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma

civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor

sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam

sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do

intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea

Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o

menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que

para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro

compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo

que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou

seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua

imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que

essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar

atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a

outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual

proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque

esconde-se ou projecta-se no discurso do outro

Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o

caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo

relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens

marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um

significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um

desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos

de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e

fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave

realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande

maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe

um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo

46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de

Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360

49

obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a

escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada

Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a

infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute

aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo

espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a

verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes

50

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Page 37: AS MÁSCARAS SIMBÓLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA … Jaqueline... · 2019-10-31 · A narrativa ficcional não é o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca, mas, assim como

37

refluxos emocionais e reflexivos de Florbela ou na encenaccedilatildeo de seus

fantasmas (medos traumas dor sofrimentoshellip) duplos comprometidos com a

sua natureza humana e retratados paradoxalmente com as intertextualidades

da dinacircmica universal

Eacute-nos perceptiacutevel que haja uma desvalorizaccedilatildeo dos enredos para ilustrar

simbolicamente as punccedilotildees que se confrontam no interior egocecircntrico dos

narradores como o de Florbela Isso sugere-nos uma cosmovisatildeo liacuterica dos

siacutembolos nucleares do mar e do ceacuteu em seus contos o que pontua um

contraste enigmaacutetico e irradiante mediante a alma universal Portanto da

efemeridade do social com o seu cortejo de maacutescaras releva-se uma

capacidade solidaacuteria com a perenidade simboacutelica e esteacutetica de um ser humilde

diante do esplendor do mar E tudo isso se torna simultaneamente interior e

exterior agraves intertextualidades nas suas diversas variantes como a energia

essencial agrave vida e em uacuteltima instacircncia lhe propicia o uacutenico sentido possiacutevel

mediante ao reflexo incondicional das aacuteguas em uma relaccedilatildeo com a ldquomaacutescarardquo

do formalismo social ou da morte Por isso nos contos de As Maacutescaras do

Destino eacute tambeacutem nuclear a oposiccedilatildeo reiterada entre o ldquoeu socialrdquo (a maacutescara)

e o ldquoeu profundordquo (inquietudes e sonhos) a imposiccedilatildeo do ldquoserrdquo para consumo

social (liacutequida solvente) e a vertigem do ldquoserrdquo autecircntico (liacutempida transparente)

na representatividade literaacuteria do mar

38

CAPIacuteTULO 04

41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA

ldquoGosto de ti apaixonadamente

De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo

De ti que me trouxeste pela matildeo

Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40

Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso

a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade

directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na

poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua

dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees

Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita

capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e

um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz

e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a

dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas

conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute

e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria

serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem

quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto

anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse

em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita

maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte

com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e

quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e

emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos

paradoxos

40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no

livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004

Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo

Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11

39

Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos

toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-

romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido

num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia

com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes

profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas

sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo

acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando

a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A

derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a

conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas

da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da

sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No

entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas

romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a

impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo

definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha

aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento

em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o

passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era

tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto

A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos

acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-

Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs

Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os

Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de

Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de

Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o

egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo

narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica

Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute

neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o

poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem

40

esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma

essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no

iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma

questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos

encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem

sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos

interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas

as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um

exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo

tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo

daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita

conteacutem

41

42 - UM PERCURSO COMPARATIVO

ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os

vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e

outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que

ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute

foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41

ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto

Olhou em roda natildeo achou ningueacutem

Por entre as campas arrastando o manto

Com lentos passos caminhou aleacutem

Abandonado neste chatildeo repousa

Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui

Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa

Sobre este peito que bateu por tirdquo42

A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e

o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-

romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua

linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa

o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se

O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando

proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos

moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na

literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror

Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou

comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas

circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de

comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e

sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos

41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda

Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos

42

ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de

outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou

Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)

Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal

de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma

optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada

pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada

no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus

sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa

suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois

dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)

Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade

todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional

natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute

afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute

tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima

do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo

Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela

e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a

prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua

intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a

dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as

influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente

que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz

directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para

a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o

intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era

partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada

por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das

rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de

branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza

43

ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas

Longas roupagens de neveda cor

Singela croa de virgiacutenias rosas

Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43

ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de

branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila

devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa

nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)

Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de

conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se

para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da

imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a

partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a

presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os

uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem

eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera

absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor

ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria

A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a

intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um

testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista

e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas

caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da

temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao

fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma

retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras

masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo

homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma

mulher

43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12

44

(hellip)

Mulher formosa que adorei na vida

E que na tumba natildeo cessei damar

Por que atraiccediloas desleal mentida

O amor eterno que te ouvi jurar

Amor engano que na campa finda

Que a morte despe da ilusatildeo falaz

Quem dentros vivos se lembrara ainda

ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)

Talvez que rindo dos protestos nossos

Gozes com outro dinfernal prazer

E o olvido cobriraacute meus ossos

Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44

Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o

vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as

bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis

e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma

essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o

podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA

ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de

sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a

eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos

na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto

com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais

de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas

palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o

esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal

seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu

passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre

44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9

45

que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as

matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos

das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam

para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)

Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno

num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista

melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias

possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela

um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica

natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem

fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo

intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas

rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso

consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo

intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas

solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou

com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a

todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas

as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os

sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado

daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)

Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do

Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais

significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO

MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do

quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e

estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que

desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo

da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina

agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das

espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute

presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos

46

ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido

Das sepulturas o gelado poacute

Dois esqueletos um ao outro unido

Foram achados num sepulcro soacuterdquo45

Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de

imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da

intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo

buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma

enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo

recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as

laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas

deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo

sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais

moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas

austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade

dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete

palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam

pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e

59)

Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao

ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram

escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia

literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo

exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde

ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais

tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo

merecida

45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos

47

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas

interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca

Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo

depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves

transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo

sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia

ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas

metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver

com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao

sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas

tambeacutem ao que relaciona a morte

A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua

eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela

mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e

sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo

quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade

que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas

personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a

humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de

enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e

sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas

e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o

que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte

presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais

condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus

contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e

desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse

interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural

equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes

interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute

Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem

uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses

48

elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o

inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela

tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses

elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma

civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor

sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam

sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do

intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea

Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o

menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que

para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro

compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo

que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou

seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua

imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que

essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar

atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a

outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual

proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque

esconde-se ou projecta-se no discurso do outro

Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o

caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo

relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens

marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um

significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um

desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos

de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e

fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave

realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande

maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe

um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo

46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de

Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360

49

obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a

escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada

Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a

infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute

aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo

espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a

verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes

50

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Page 38: AS MÁSCARAS SIMBÓLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA … Jaqueline... · 2019-10-31 · A narrativa ficcional não é o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca, mas, assim como

38

CAPIacuteTULO 04

41 - A INTERTEXTUALIDADE ULTRA - ROMAcircNTICA EM FLORBELA

ldquoGosto de ti apaixonadamente

De ti eacutes a vitoacuteria a salvaccedilatildeo

De ti que me trouxeste pela matildeo

Ateacute ao brilho desta chama quenterdquo40

Os poemas de Florbela satildeo mais conhecidos do que sua prosa Apesar disso

a postura assumida diante da linguagem apontam agrave uma intertextualidade

directa de tendecircncias e temaacutetica aos dois niacuteveis de sua escrita Tanto na

poesia quanto na prosa ela eacute solitaacuteria por excelecircncia Eacute aquela que fala da sua

dor e a transporta para um infinito Uma sonhadora uma criadora de ilusotildees

Para ela a vida eacute uma desgraccedila que se assume com imensa dor uma infinita

capacidade de a chorar Haacute uma tomada de consciecircncia de caraacutecter traacutegico e

um elo fortiacutessimo com a morte Cheia de paradoxos sempre lutando entre a luz

e a sombra conseguindo deixar a sua obra em constante transiccedilatildeo entre a

dualidade de intensidade e suavidade Bela conseguia o que raros artistas

conseguem ter equiliacutebrio nos paradoxos Ela julga-se intensa como de fato o eacute

e muito ao mesmo tempo que descreve isso como se fosse a proacutepria

serenidade traacutes uma capacidade de expressatildeo que geralmente natildeo se tem

quando se estaacute atormentado Sua sentimentalidade a levava a escritos de auto

anaacutelise quase como se fizesse um estudo de si proacutepria ainda que estivesse

em total descontrole emocional ao ponto do suiciacutedio Ela conseguia com muita

maestria descrever seus tormentos e alegrias iacutentimas e fazer beliacutessima arte

com eles sem perder jamais uma certa ldquofriezardquo para expressaacute-los Fria e

quente atormentada e serena impulsiva e moderada intensa e suave loacutegica e

emocional eroacutetica e virginal sensual e recatadahellip Ela era o equiliacutebrio dos

paradoxos

40 Fragmento do poema entitulado ldquoI He hum natildeo querer mais que bem querer (Camotildees) contido no

livro Charneca em Flor de Florbela Espanca Ver Poesia Completa publicaccedilotildees Dom Quixote 2004

Lisboa Paacutegina 345 Poema musicado pelo cantor brasileiro Raimundo Fagner intitulado ldquoChama Quenterdquo

Cearaacute Sony Music 2000 2 CD Disco 2 f 11

39

Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos

toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-

romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido

num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia

com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes

profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas

sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo

acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando

a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A

derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a

conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas

da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da

sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No

entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas

romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a

impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo

definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha

aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento

em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o

passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era

tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto

A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos

acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-

Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs

Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os

Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de

Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de

Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o

egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo

narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica

Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute

neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o

poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem

40

esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma

essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no

iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma

questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos

encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem

sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos

interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas

as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um

exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo

tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo

daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita

conteacutem

41

42 - UM PERCURSO COMPARATIVO

ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os

vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e

outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que

ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute

foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41

ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto

Olhou em roda natildeo achou ningueacutem

Por entre as campas arrastando o manto

Com lentos passos caminhou aleacutem

Abandonado neste chatildeo repousa

Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui

Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa

Sobre este peito que bateu por tirdquo42

A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e

o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-

romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua

linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa

o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se

O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando

proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos

moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na

literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror

Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou

comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas

circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de

comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e

sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos

41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda

Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos

42

ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de

outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou

Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)

Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal

de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma

optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada

pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada

no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus

sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa

suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois

dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)

Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade

todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional

natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute

afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute

tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima

do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo

Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela

e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a

prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua

intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a

dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as

influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente

que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz

directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para

a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o

intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era

partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada

por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das

rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de

branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza

43

ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas

Longas roupagens de neveda cor

Singela croa de virgiacutenias rosas

Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43

ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de

branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila

devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa

nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)

Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de

conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se

para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da

imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a

partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a

presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os

uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem

eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera

absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor

ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria

A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a

intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um

testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista

e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas

caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da

temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao

fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma

retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras

masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo

homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma

mulher

43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12

44

(hellip)

Mulher formosa que adorei na vida

E que na tumba natildeo cessei damar

Por que atraiccediloas desleal mentida

O amor eterno que te ouvi jurar

Amor engano que na campa finda

Que a morte despe da ilusatildeo falaz

Quem dentros vivos se lembrara ainda

ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)

Talvez que rindo dos protestos nossos

Gozes com outro dinfernal prazer

E o olvido cobriraacute meus ossos

Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44

Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o

vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as

bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis

e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma

essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o

podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA

ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de

sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a

eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos

na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto

com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais

de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas

palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o

esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal

seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu

passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre

44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9

45

que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as

matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos

das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam

para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)

Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno

num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista

melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias

possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela

um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica

natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem

fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo

intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas

rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso

consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo

intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas

solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou

com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a

todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas

as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os

sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado

daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)

Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do

Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais

significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO

MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do

quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e

estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que

desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo

da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina

agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das

espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute

presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos

46

ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido

Das sepulturas o gelado poacute

Dois esqueletos um ao outro unido

Foram achados num sepulcro soacuterdquo45

Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de

imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da

intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo

buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma

enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo

recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as

laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas

deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo

sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais

moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas

austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade

dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete

palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam

pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e

59)

Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao

ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram

escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia

literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo

exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde

ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais

tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo

merecida

45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos

47

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas

interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca

Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo

depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves

transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo

sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia

ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas

metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver

com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao

sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas

tambeacutem ao que relaciona a morte

A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua

eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela

mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e

sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo

quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade

que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas

personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a

humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de

enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e

sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas

e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o

que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte

presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais

condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus

contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e

desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse

interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural

equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes

interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute

Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem

uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses

48

elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o

inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela

tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses

elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma

civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor

sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam

sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do

intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea

Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o

menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que

para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro

compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo

que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou

seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua

imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que

essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar

atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a

outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual

proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque

esconde-se ou projecta-se no discurso do outro

Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o

caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo

relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens

marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um

significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um

desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos

de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e

fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave

realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande

maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe

um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo

46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de

Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360

49

obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a

escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada

Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a

infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute

aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo

espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a

verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes

50

REFEREcircNCIA BIBLIOGRAacuteFICA

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httpwwwfclarunespbrpublicaccedilotildeesrevistaliberdadehtm

httparestasdeventonosapoptlabaredas2html

Page 39: AS MÁSCARAS SIMBÓLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA … Jaqueline... · 2019-10-31 · A narrativa ficcional não é o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca, mas, assim como

39

Daiacute se nota a atitude de radicalismo antagoacutenico entre a vida e a morte que nos

toca com um lirismo profundo e nos remete agraves nuances de tendecircncias ultra-

romacircnticas uma vez que para ela a paixatildeo eacute um estaacutegio que tem de ser vivido

num arrebatamento miacutestico mesmo que natildeo haja qualquer correspondecircncia

com o real Era assim o comportamento de Florbela com atitudes

profundamente pessimistas diante a vida vivia entediada sem perspectivas

sonhando com amores inalcanccedilaacuteveis e anunciando sua morte Seu romantismo

acentuava traccedilos de subjectivismo egocentrismo e sentimentalismo ampliando

a visatildeo para uma sondagem interior com nuances agrave investigaccedilatildeo psicoloacutegica A

derrota inevitaacutevel de seu ego produzia um estado de frustraccedilatildeo e teacutedio que a

conduzia agrave evasatildeo ultra - romacircntica Seguem-se constantes e muacuteltiplas fugas

da realidade o fumo a saudade da terra as constantes idealizaccedilotildees da

sociedade do amor e de si mesma Ela foge no tempo e no espaccedilo No

entanto essas fugas tecircm ida e volta excepccedilatildeo feita agrave maior de todas as fugas

romacircnticas a morte Sua atitude pessimista nos apresenta uma artista diante a

impossibilidade de realizar o sonho do ldquoeurdquo levando-a ao suiciacutedio soluccedilatildeo

definitiva para o conhecido Mal-do-Seacuteculo Para Florbela a morte tinha

aparentemente um significado algo incomum era a libertaccedilatildeo do sofrimento

em que vivia e ao mesmo tempo um consolo para as desgraccedilas e o

passaporte para o infinito o absoluto que tanto desejava alcanccedilar Era

tambeacutem e acima de tudo o regresso ao encontro do irmatildeo morto

A prosa de Florbela do livro acima aludido apresenta mais ou menos

acentuados as caracteriacutesticas que a Histoacuteria Literaacuteria atribui a temaacutetica Ultra-

Romacircntica a elevada temperatura dos afectos e sentimentalismo burguecircs

Temas como o baile onde nascem paixotildees tempestivas o sobrenatural (Os

Mortos natildeo Voltam O Sobrenatural) a matildee e o filho morto (A paixatildeo de

Manuel Garcia) o cemiteacuterio (A morta) a religiosidade fugaz (As Oraccedilotildees de

Soror Maria da Pureza) o fantaacutestico a morte (O Aviador O Inventor) e o

egocentrismo (O Resto eacute Perfume) apontam agrave uma esteacutetica no formalismo

narrativo de essecircncia intertextual ultra-romacircntica

Dos contos em questatildeo voltemos nossa atenccedilatildeo para ldquoA Mortardquo que seraacute

neste momento nosso foco de estudo Eacute impressionante a semelhanccedila com o

poema de Soares de Passos ldquo O Noivado do Sepulcrordquo Apesar de terem

40

esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma

essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no

iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma

questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos

encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem

sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos

interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas

as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um

exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo

tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo

daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita

conteacutem

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42 - UM PERCURSO COMPARATIVO

ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os

vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e

outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que

ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute

foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41

ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto

Olhou em roda natildeo achou ningueacutem

Por entre as campas arrastando o manto

Com lentos passos caminhou aleacutem

Abandonado neste chatildeo repousa

Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui

Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa

Sobre este peito que bateu por tirdquo42

A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e

o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-

romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua

linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa

o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se

O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando

proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos

moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na

literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror

Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou

comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas

circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de

comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e

sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos

41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda

Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos

42

ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de

outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou

Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)

Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal

de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma

optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada

pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada

no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus

sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa

suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois

dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)

Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade

todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional

natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute

afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute

tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima

do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo

Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela

e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a

prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua

intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a

dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as

influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente

que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz

directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para

a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o

intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era

partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada

por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das

rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de

branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza

43

ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas

Longas roupagens de neveda cor

Singela croa de virgiacutenias rosas

Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43

ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de

branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila

devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa

nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)

Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de

conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se

para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da

imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a

partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a

presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os

uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem

eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera

absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor

ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria

A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a

intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um

testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista

e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas

caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da

temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao

fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma

retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras

masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo

homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma

mulher

43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12

44

(hellip)

Mulher formosa que adorei na vida

E que na tumba natildeo cessei damar

Por que atraiccediloas desleal mentida

O amor eterno que te ouvi jurar

Amor engano que na campa finda

Que a morte despe da ilusatildeo falaz

Quem dentros vivos se lembrara ainda

ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)

Talvez que rindo dos protestos nossos

Gozes com outro dinfernal prazer

E o olvido cobriraacute meus ossos

Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44

Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o

vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as

bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis

e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma

essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o

podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA

ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de

sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a

eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos

na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto

com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais

de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas

palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o

esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal

seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu

passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre

44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9

45

que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as

matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos

das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam

para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)

Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno

num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista

melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias

possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela

um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica

natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem

fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo

intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas

rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso

consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo

intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas

solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou

com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a

todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas

as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os

sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado

daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)

Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do

Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais

significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO

MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do

quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e

estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que

desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo

da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina

agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das

espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute

presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos

46

ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido

Das sepulturas o gelado poacute

Dois esqueletos um ao outro unido

Foram achados num sepulcro soacuterdquo45

Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de

imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da

intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo

buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma

enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo

recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as

laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas

deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo

sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais

moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas

austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade

dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete

palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam

pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e

59)

Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao

ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram

escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia

literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo

exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde

ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais

tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo

merecida

45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos

47

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas

interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca

Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo

depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves

transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo

sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia

ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas

metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver

com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao

sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas

tambeacutem ao que relaciona a morte

A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua

eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela

mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e

sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo

quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade

que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas

personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a

humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de

enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e

sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas

e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o

que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte

presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais

condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus

contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e

desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse

interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural

equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes

interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute

Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem

uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses

48

elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o

inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela

tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses

elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma

civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor

sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam

sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do

intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea

Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o

menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que

para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro

compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo

que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou

seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua

imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que

essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar

atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a

outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual

proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque

esconde-se ou projecta-se no discurso do outro

Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o

caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo

relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens

marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um

significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um

desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos

de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e

fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave

realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande

maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe

um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo

46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de

Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360

49

obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a

escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada

Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a

infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute

aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo

espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a

verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes

50

REFEREcircNCIA BIBLIOGRAacuteFICA

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httpwwwfclarunespbrpublicaccedilotildeesrevistaliberdadehtm

httparestasdeventonosapoptlabaredas2html

Page 40: AS MÁSCARAS SIMBÓLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA … Jaqueline... · 2019-10-31 · A narrativa ficcional não é o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca, mas, assim como

40

esteacuteticas diferenciadas e serem escritos em tempos distintos trazem a mesma

essecircncia interpretativa por diferentes autores isso reafirma o que foi dito no

iniacutecio que a interpretaccedilatildeo de um texto aqui no caso poeacutetico e o conto eacute uma

questatildeo de estudo global pois constituem-se de objectos cerrados repetitivos

encantadores de sentido imediato e oculto onde sua funccedilatildeo profunda tem

sentido universal Podemos dizer que Florbela atraveacutes do poema de Passos

interiorizou uma revoluccedilatildeo de seu ser e conseguiu a plena realizaccedilatildeo de todas

as suas potencialidades ao escrever Com isso seu conto nos levar a um

exerciacutecio interpretativo que envolve o ldquosilecircncio das palavrasrdquo nossa atenccedilatildeo

tende a volta-se para o interior do conto no momento de profunda inspiraccedilatildeo

daiacute encontraremos a intencionalidade que o texto num trabalho de reescrita

conteacutem

41

42 - UM PERCURSO COMPARATIVO

ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os

vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e

outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que

ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute

foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41

ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto

Olhou em roda natildeo achou ningueacutem

Por entre as campas arrastando o manto

Com lentos passos caminhou aleacutem

Abandonado neste chatildeo repousa

Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui

Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa

Sobre este peito que bateu por tirdquo42

A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e

o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-

romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua

linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa

o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se

O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando

proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos

moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na

literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror

Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou

comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas

circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de

comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e

sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos

41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda

Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos

42

ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de

outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou

Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)

Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal

de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma

optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada

pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada

no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus

sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa

suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois

dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)

Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade

todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional

natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute

afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute

tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima

do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo

Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela

e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a

prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua

intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a

dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as

influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente

que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz

directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para

a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o

intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era

partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada

por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das

rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de

branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza

43

ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas

Longas roupagens de neveda cor

Singela croa de virgiacutenias rosas

Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43

ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de

branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila

devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa

nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)

Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de

conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se

para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da

imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a

partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a

presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os

uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem

eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera

absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor

ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria

A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a

intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um

testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista

e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas

caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da

temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao

fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma

retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras

masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo

homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma

mulher

43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12

44

(hellip)

Mulher formosa que adorei na vida

E que na tumba natildeo cessei damar

Por que atraiccediloas desleal mentida

O amor eterno que te ouvi jurar

Amor engano que na campa finda

Que a morte despe da ilusatildeo falaz

Quem dentros vivos se lembrara ainda

ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)

Talvez que rindo dos protestos nossos

Gozes com outro dinfernal prazer

E o olvido cobriraacute meus ossos

Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44

Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o

vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as

bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis

e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma

essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o

podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA

ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de

sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a

eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos

na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto

com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais

de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas

palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o

esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal

seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu

passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre

44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9

45

que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as

matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos

das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam

para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)

Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno

num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista

melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias

possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela

um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica

natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem

fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo

intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas

rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso

consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo

intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas

solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou

com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a

todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas

as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os

sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado

daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)

Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do

Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais

significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO

MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do

quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e

estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que

desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo

da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina

agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das

espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute

presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos

46

ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido

Das sepulturas o gelado poacute

Dois esqueletos um ao outro unido

Foram achados num sepulcro soacuterdquo45

Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de

imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da

intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo

buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma

enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo

recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as

laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas

deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo

sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais

moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas

austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade

dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete

palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam

pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e

59)

Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao

ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram

escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia

literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo

exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde

ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais

tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo

merecida

45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos

47

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas

interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca

Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo

depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves

transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo

sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia

ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas

metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver

com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao

sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas

tambeacutem ao que relaciona a morte

A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua

eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela

mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e

sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo

quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade

que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas

personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a

humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de

enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e

sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas

e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o

que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte

presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais

condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus

contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e

desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse

interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural

equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes

interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute

Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem

uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses

48

elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o

inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela

tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses

elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma

civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor

sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam

sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do

intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea

Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o

menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que

para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro

compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo

que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou

seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua

imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que

essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar

atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a

outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual

proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque

esconde-se ou projecta-se no discurso do outro

Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o

caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo

relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens

marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um

significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um

desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos

de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e

fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave

realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande

maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe

um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo

46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de

Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360

49

obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a

escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada

Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a

infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute

aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo

espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a

verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes

50

REFEREcircNCIA BIBLIOGRAacuteFICA

Activa

ESPANCA Florbela (1998) As Maacutescaras do Destino 7ordf ediccedilatildeo Bertrand

Editorial Venda Nova

ESPANCA Florbela (1998) Diaacuterio do Uacuteltimo Ano 4ordf ediccedilatildeo Bertrand Editorial

Venda Nova

ESPANCA Florbela (2004) Poesias Completas Publicaccedilotildees Dom Quixote

Lisboa

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Passiva

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Editora Aacutetica Satildeo Paulo

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104Traduccioacuten de Juan Diacuteas de Atauri Edicioacuten Visor Dis SA Madri

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Rio de Janeiro

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Editora Rocco Rio de Janeiro

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Hadas Lucieacuternaga Grupo Editorial Oceano Barcelona

GODINHO Helder (1982) O Mito e o Estilo Presenccedila Lisboa

51

GREINER Herbert (2006) Dicionaacuterio Akal de Literatura General y

ComparadaTraduccioacuten revisioacuten y ampliacioacuten de la edicioacuten espantildeola Ediciones

Akal SA Madrid

HAMBURGER kate (1986) A Loacutegica da Criaccedilatildeo Literaacuteria 2ordf ediccedilatildeo Editora

Perspectiva SA Satildeo Paulo

HARO Pedro Aulloacuten GABALDOacuteN Jesuacutes Garcia y PASTOR Santiago Navarro

(2002) Ivan Andres y La Teoria Comparatista Coleccioacuten Literaria Actas

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JUacuteDICE Nuno (1998) As Maacutescaras do Poema Editora Ariacutem Lisboa

JUacuteDICE Nuno (2005) A Viagem das Palavras Editora Colibri Lisboa

JUacuteDICE Nuno (1986) A Era do ldquoOrpheurdquo Colecccedilatildeo Terra Nostra Editorial

Teorema Lisboa

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Ferraz Editora Perspectiva Satildeo Paulo

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Secretaria da Cultura Ciecircncia e Tecnologia do Estado de Satildeo Paulo Satildeo

Paulo

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ediccedilatildeo Biblioteca Breve vol 104 Instituto de Cultura e Liacutengua Portuguesa

Lisboa

NIETO Joseacute Mordf Fernaacutendez (1987) El Mar y La Poesia Liacuterica Del Mar

Biblioteca de Temas Almerienses seacuterie menor 27 2ordf edicioacuten Editorial Cajal

Almeria

52

RALLO Caacutermen Lara (2007) Las Voces Y Los Ecos Perspectiva sobre La

Intertextualidad Campus de Teatinos Universidad de Maacutelaga Edicioacuten Analecta

Malaciana Maacutelaga

SCHNEIDER Michel (1990) Ladratildeo de Palavras Ensaio sobre o plaacutegio a

psicanaacutelise e o pensamento Editora UNICAMP Satildeo Paulo

WEBIBLIOGRAFIA

httpwwwprahojecombrflorbelacat=15

httpwwwfclarunespbrpublicaccedilotildeesrevistaliberdadehtm

httparestasdeventonosapoptlabaredas2html

Page 41: AS MÁSCARAS SIMBÓLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA … Jaqueline... · 2019-10-31 · A narrativa ficcional não é o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca, mas, assim como

41

42 - UM PERCURSO COMPARATIVO

ldquoO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o podem entender os

vivoshellipMas um dia uma tarde a Morta esperou em vatildeo e esperou outra e

outra e outra ainda de infindaacuteveis horas de infindaacuteveis tardeshellipe foi entatildeo que

ela ergueu os braccedilos levantou brandamente a tampa do caixatildeohellipE a Morta laacute

foi pela soturna avenida no seu passo de manto a roccedilagarhelliprdquo41

ldquo Ergueu-se ergueu-se com sombrio espanto

Olhou em roda natildeo achou ningueacutem

Por entre as campas arrastando o manto

Com lentos passos caminhou aleacutem

Abandonado neste chatildeo repousa

Haacute jaacute trecircs dias e natildeo vens aqui

Ai quatildeo pesada me tem sido a lousa

Sobre este peito que bateu por tirdquo42

A semelhanccedila da temaacutetica e principalmente do enredo do conto de Florbela e

o poema de Soares de Passos nos impulsiona a acreditar que o autor ultra-

romacircntico era lido por Bela e esta evidentemente identificava-se com sua

linha de escrita acabando por produzir ou quem sabe ldquoreescreverrdquo em prosa

o famoso poema que a caracterizava no momento em que encontrava-se

O horror como elemento literaacuterio ou artiacutestico remonta agrave Idade Meacutedia quando

proliferaram a meditaccedilatildeo sobre a morte despertando pensamentos

moralizadores sobre a variedade da curta existecircncia terrestre Poreacutem na

literatura portuguesa despertou mais visotildees de melancolia que de horror

Mesmo ldquoO Noivado do Sepulcrordquo celebra uma uniatildeo macabra que comove (ou

comovia) mas natildeo assustava Em ldquoA Mortardquo apesar das mesmas

circunstacircncias em que atravessa a personagem fantasmagoacuterica o elo de

comoccedilatildeo se daacute pelo fato de natildeo haver a celebraccedilatildeo da uniatildeo dos amantes e

sim uma fusatildeo elementar agrave margem do rio ldquo Foi entatildeo que lhe chegou aos

41 Fragmento do conto ldquoA Mortardquo in As Maacutescaras do Destino 1998 p 55-56 Editora Bertrand Venda

Nova 42 Versos 4 e 8 do poema ldquoNoivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos

42

ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de

outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou

Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)

Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal

de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma

optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada

pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada

no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus

sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa

suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois

dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)

Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade

todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional

natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute

afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute

tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima

do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo

Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela

e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a

prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua

intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a

dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as

influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente

que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz

directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para

a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o

intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era

partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada

por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das

rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de

branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza

43

ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas

Longas roupagens de neveda cor

Singela croa de virgiacutenias rosas

Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43

ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de

branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila

devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa

nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)

Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de

conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se

para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da

imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a

partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a

presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os

uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem

eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera

absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor

ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria

A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a

intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um

testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista

e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas

caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da

temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao

fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma

retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras

masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo

homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma

mulher

43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12

44

(hellip)

Mulher formosa que adorei na vida

E que na tumba natildeo cessei damar

Por que atraiccediloas desleal mentida

O amor eterno que te ouvi jurar

Amor engano que na campa finda

Que a morte despe da ilusatildeo falaz

Quem dentros vivos se lembrara ainda

ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)

Talvez que rindo dos protestos nossos

Gozes com outro dinfernal prazer

E o olvido cobriraacute meus ossos

Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44

Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o

vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as

bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis

e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma

essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o

podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA

ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de

sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a

eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos

na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto

com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais

de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas

palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o

esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal

seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu

passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre

44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9

45

que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as

matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos

das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam

para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)

Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno

num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista

melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias

possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela

um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica

natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem

fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo

intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas

rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso

consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo

intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas

solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou

com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a

todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas

as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os

sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado

daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)

Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do

Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais

significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO

MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do

quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e

estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que

desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo

da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina

agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das

espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute

presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos

46

ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido

Das sepulturas o gelado poacute

Dois esqueletos um ao outro unido

Foram achados num sepulcro soacuterdquo45

Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de

imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da

intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo

buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma

enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo

recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as

laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas

deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo

sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais

moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas

austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade

dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete

palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam

pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e

59)

Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao

ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram

escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia

literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo

exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde

ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais

tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo

merecida

45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos

47

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas

interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca

Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo

depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves

transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo

sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia

ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas

metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver

com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao

sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas

tambeacutem ao que relaciona a morte

A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua

eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela

mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e

sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo

quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade

que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas

personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a

humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de

enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e

sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas

e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o

que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte

presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais

condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus

contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e

desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse

interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural

equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes

interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute

Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem

uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses

48

elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o

inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela

tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses

elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma

civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor

sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam

sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do

intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea

Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o

menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que

para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro

compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo

que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou

seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua

imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que

essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar

atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a

outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual

proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque

esconde-se ou projecta-se no discurso do outro

Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o

caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo

relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens

marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um

significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um

desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos

de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e

fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave

realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande

maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe

um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo

46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de

Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360

49

obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a

escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada

Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a

infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute

aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo

espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a

verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes

50

REFEREcircNCIA BIBLIOGRAacuteFICA

Activa

ESPANCA Florbela (1998) As Maacutescaras do Destino 7ordf ediccedilatildeo Bertrand

Editorial Venda Nova

ESPANCA Florbela (1998) Diaacuterio do Uacuteltimo Ano 4ordf ediccedilatildeo Bertrand Editorial

Venda Nova

ESPANCA Florbela (2004) Poesias Completas Publicaccedilotildees Dom Quixote

Lisboa

REacuteGIO Joseacute (1981) Sonetos de Florbela Espanca 19ordf ediccedilatildeo Lisboa

Passiva

CARVALHAL Tacircnia Franco (1986) Literatura Comparada Seacuterie Princiacutepios

Editora Aacutetica Satildeo Paulo

CESERANI Remo (1999) Lo Fantaacutestico Coleccioacuten La Balsa de la Medusa

104Traduccioacuten de Juan Diacuteas de Atauri Edicioacuten Visor Dis SA Madri

CHEVALIER Jean (2003) Dicionaacuterio de Siacutembolos 18ordf ediccedilatildeo Joseacute Oliacutempio

Rio de Janeiro

COUTINHO Eduardo F (1994) Literatura Comparada textos fundadores

Editora Rocco Rio de Janeiro

FRANZ Marie-Louise Von ( 1990) Siacutembolos de Redencioacuten en Los Cuentos de

Hadas Lucieacuternaga Grupo Editorial Oceano Barcelona

GODINHO Helder (1982) O Mito e o Estilo Presenccedila Lisboa

51

GREINER Herbert (2006) Dicionaacuterio Akal de Literatura General y

ComparadaTraduccioacuten revisioacuten y ampliacioacuten de la edicioacuten espantildeola Ediciones

Akal SA Madrid

HAMBURGER kate (1986) A Loacutegica da Criaccedilatildeo Literaacuteria 2ordf ediccedilatildeo Editora

Perspectiva SA Satildeo Paulo

HARO Pedro Aulloacuten GABALDOacuteN Jesuacutes Garcia y PASTOR Santiago Navarro

(2002) Ivan Andres y La Teoria Comparatista Coleccioacuten Literaria Actas

Valecircncia

JEAN George (1988) El Poder de Los Cuentos Traduccedilatildeo de Caterina

Molina1ordf edicioacuten Pirene Editorial Barcelona

JUacuteDICE Nuno (1998) As Maacutescaras do Poema Editora Ariacutem Lisboa

JUacuteDICE Nuno (2005) A Viagem das Palavras Editora Colibri Lisboa

JUacuteDICE Nuno (1986) A Era do ldquoOrpheurdquo Colecccedilatildeo Terra Nostra Editorial

Teorema Lisboa

KRISTEVA Juacutelia (1974) Introduccedilatildeo agrave Semanaacutelise Trad Luacutecia Helena Franccedila

Ferraz Editora Perspectiva Satildeo Paulo

LOPEZ Edward (1978) Uma Teoria do Interpretante 1ordf ediccedilatildeo Cultrix ndash

Secretaria da Cultura Ciecircncia e Tecnologia do Estado de Satildeo Paulo Satildeo

Paulo

MACHADO Aacutelvaro Manoel (1986) O Romantismo na Poesia Portuguesa 1ordf

ediccedilatildeo Biblioteca Breve vol 104 Instituto de Cultura e Liacutengua Portuguesa

Lisboa

NIETO Joseacute Mordf Fernaacutendez (1987) El Mar y La Poesia Liacuterica Del Mar

Biblioteca de Temas Almerienses seacuterie menor 27 2ordf edicioacuten Editorial Cajal

Almeria

52

RALLO Caacutermen Lara (2007) Las Voces Y Los Ecos Perspectiva sobre La

Intertextualidad Campus de Teatinos Universidad de Maacutelaga Edicioacuten Analecta

Malaciana Maacutelaga

SCHNEIDER Michel (1990) Ladratildeo de Palavras Ensaio sobre o plaacutegio a

psicanaacutelise e o pensamento Editora UNICAMP Satildeo Paulo

WEBIBLIOGRAFIA

httpwwwprahojecombrflorbelacat=15

httpwwwfclarunespbrpublicaccedilotildeesrevistaliberdadehtm

httparestasdeventonosapoptlabaredas2html

Page 42: AS MÁSCARAS SIMBÓLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA … Jaqueline... · 2019-10-31 · A narrativa ficcional não é o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca, mas, assim como

42

ouvidos um ciciar brandinhohellipSeriam passosRufar de asasFolhas de

outono tombado Marulho de ondas pequeninas O rio E a Morta parou

Debruccedilou-sehelliprdquo(FLORBELA ESPANCA 199857 e 58)

Ambos escritores tinham uma linha de escrita delicada reflexo da dor pessoal

de cada um do sentimento amoroso ou traacutegico (por vezes rematado de forma

optimista numa compensaccedilatildeo metafiacutesica do sofrimento humano) e marcada

pelo aspecto real da morterdquo E laacute foihellipDesceu os degraus da escada baloiccedilada

no seu esquife branco com a cabeccedila tonta do perfume das flores e dos seus

sonhos de amor encerrados com ela como se laacute tivessem encerrado numa

suprema oferta de todas as primaveras que no mundo haviam de florir depois

dela E laacute a deixaramrdquo (FLORBELA ESPANCA 199852 e 53)

Sabendo noacutes que ao longo da evoluccedilatildeo literaacuteria e intelectual da humanidade

todas as correntes de pensamento se articulam entre racional e emocional

natural e artificial perfeiccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo verificamos que o sentimentalismo eacute

afinal o primeiro momento de reacccedilatildeo violenta aos moldes claacutessicos eacute

tambeacutem portanto o primeiro momento de introduccedilatildeo de algo que se aproxima

do Romantismo infiltrando-se dependendo de seu teor no Ultra-Romantismo

Diante disso sendo o sentimentalismo que pulsiona a linha literaacuteria de Florbela

e Soares de Passos eacute importante referir que as camadas de influecircncia sob a

prosa de ficccedilatildeo escrita por Bela natildeo substituem-se mas na sua

intertextualidade interagem entre si sendo que a uacuteltima eacute obviamente a

dominante mas sempre submetida a um substrato ao qual presidem as

influecircncias de textos ou tendecircncias anteriores Com isto verifica-se igualmente

que como jaacute se sabe nem sempre a evoluccedilatildeo de um para outro texto se faz

directamente os caminhos infiltram-se atraveacutes da temaacutetica querida de um para

a intertextualidade intriacutenseca do outro compondo um mosaico textual com o

intuito de satisfazer a fantasia interior Aqui no caso essa fantasia era

partilhada por ambos autores numa espeacutecie de preluacutedio da morte anunciada

por meio agrave natureza seja pela imagem do mar ou pela beleza e suavidade das

rosas A mesma semelhanccedila se daacute em relaccedilatildeo a imagem da mulher vestida de

branco representaccedilatildeo da virgem noiva e da pureza

43

ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas

Longas roupagens de neveda cor

Singela croa de virgiacutenias rosas

Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43

ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de

branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila

devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa

nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)

Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de

conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se

para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da

imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a

partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a

presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os

uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem

eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera

absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor

ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria

A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a

intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um

testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista

e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas

caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da

temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao

fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma

retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras

masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo

homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma

mulher

43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12

44

(hellip)

Mulher formosa que adorei na vida

E que na tumba natildeo cessei damar

Por que atraiccediloas desleal mentida

O amor eterno que te ouvi jurar

Amor engano que na campa finda

Que a morte despe da ilusatildeo falaz

Quem dentros vivos se lembrara ainda

ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)

Talvez que rindo dos protestos nossos

Gozes com outro dinfernal prazer

E o olvido cobriraacute meus ossos

Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44

Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o

vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as

bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis

e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma

essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o

podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA

ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de

sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a

eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos

na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto

com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais

de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas

palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o

esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal

seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu

passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre

44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9

45

que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as

matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos

das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam

para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)

Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno

num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista

melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias

possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela

um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica

natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem

fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo

intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas

rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso

consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo

intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas

solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou

com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a

todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas

as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os

sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado

daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)

Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do

Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais

significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO

MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do

quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e

estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que

desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo

da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina

agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das

espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute

presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos

46

ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido

Das sepulturas o gelado poacute

Dois esqueletos um ao outro unido

Foram achados num sepulcro soacuterdquo45

Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de

imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da

intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo

buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma

enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo

recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as

laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas

deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo

sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais

moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas

austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade

dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete

palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam

pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e

59)

Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao

ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram

escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia

literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo

exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde

ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais

tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo

merecida

45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos

47

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas

interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca

Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo

depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves

transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo

sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia

ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas

metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver

com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao

sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas

tambeacutem ao que relaciona a morte

A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua

eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela

mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e

sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo

quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade

que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas

personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a

humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de

enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e

sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas

e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o

que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte

presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais

condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus

contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e

desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse

interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural

equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes

interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute

Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem

uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses

48

elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o

inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela

tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses

elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma

civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor

sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam

sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do

intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea

Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o

menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que

para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro

compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo

que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou

seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua

imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que

essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar

atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a

outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual

proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque

esconde-se ou projecta-se no discurso do outro

Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o

caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo

relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens

marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um

significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um

desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos

de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e

fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave

realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande

maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe

um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo

46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de

Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360

49

obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a

escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada

Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a

infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute

aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo

espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a

verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes

50

REFEREcircNCIA BIBLIOGRAacuteFICA

Activa

ESPANCA Florbela (1998) As Maacutescaras do Destino 7ordf ediccedilatildeo Bertrand

Editorial Venda Nova

ESPANCA Florbela (1998) Diaacuterio do Uacuteltimo Ano 4ordf ediccedilatildeo Bertrand Editorial

Venda Nova

ESPANCA Florbela (2004) Poesias Completas Publicaccedilotildees Dom Quixote

Lisboa

REacuteGIO Joseacute (1981) Sonetos de Florbela Espanca 19ordf ediccedilatildeo Lisboa

Passiva

CARVALHAL Tacircnia Franco (1986) Literatura Comparada Seacuterie Princiacutepios

Editora Aacutetica Satildeo Paulo

CESERANI Remo (1999) Lo Fantaacutestico Coleccioacuten La Balsa de la Medusa

104Traduccioacuten de Juan Diacuteas de Atauri Edicioacuten Visor Dis SA Madri

CHEVALIER Jean (2003) Dicionaacuterio de Siacutembolos 18ordf ediccedilatildeo Joseacute Oliacutempio

Rio de Janeiro

COUTINHO Eduardo F (1994) Literatura Comparada textos fundadores

Editora Rocco Rio de Janeiro

FRANZ Marie-Louise Von ( 1990) Siacutembolos de Redencioacuten en Los Cuentos de

Hadas Lucieacuternaga Grupo Editorial Oceano Barcelona

GODINHO Helder (1982) O Mito e o Estilo Presenccedila Lisboa

51

GREINER Herbert (2006) Dicionaacuterio Akal de Literatura General y

ComparadaTraduccioacuten revisioacuten y ampliacioacuten de la edicioacuten espantildeola Ediciones

Akal SA Madrid

HAMBURGER kate (1986) A Loacutegica da Criaccedilatildeo Literaacuteria 2ordf ediccedilatildeo Editora

Perspectiva SA Satildeo Paulo

HARO Pedro Aulloacuten GABALDOacuteN Jesuacutes Garcia y PASTOR Santiago Navarro

(2002) Ivan Andres y La Teoria Comparatista Coleccioacuten Literaria Actas

Valecircncia

JEAN George (1988) El Poder de Los Cuentos Traduccedilatildeo de Caterina

Molina1ordf edicioacuten Pirene Editorial Barcelona

JUacuteDICE Nuno (1998) As Maacutescaras do Poema Editora Ariacutem Lisboa

JUacuteDICE Nuno (2005) A Viagem das Palavras Editora Colibri Lisboa

JUacuteDICE Nuno (1986) A Era do ldquoOrpheurdquo Colecccedilatildeo Terra Nostra Editorial

Teorema Lisboa

KRISTEVA Juacutelia (1974) Introduccedilatildeo agrave Semanaacutelise Trad Luacutecia Helena Franccedila

Ferraz Editora Perspectiva Satildeo Paulo

LOPEZ Edward (1978) Uma Teoria do Interpretante 1ordf ediccedilatildeo Cultrix ndash

Secretaria da Cultura Ciecircncia e Tecnologia do Estado de Satildeo Paulo Satildeo

Paulo

MACHADO Aacutelvaro Manoel (1986) O Romantismo na Poesia Portuguesa 1ordf

ediccedilatildeo Biblioteca Breve vol 104 Instituto de Cultura e Liacutengua Portuguesa

Lisboa

NIETO Joseacute Mordf Fernaacutendez (1987) El Mar y La Poesia Liacuterica Del Mar

Biblioteca de Temas Almerienses seacuterie menor 27 2ordf edicioacuten Editorial Cajal

Almeria

52

RALLO Caacutermen Lara (2007) Las Voces Y Los Ecos Perspectiva sobre La

Intertextualidad Campus de Teatinos Universidad de Maacutelaga Edicioacuten Analecta

Malaciana Maacutelaga

SCHNEIDER Michel (1990) Ladratildeo de Palavras Ensaio sobre o plaacutegio a

psicanaacutelise e o pensamento Editora UNICAMP Satildeo Paulo

WEBIBLIOGRAFIA

httpwwwprahojecombrflorbelacat=15

httpwwwfclarunespbrpublicaccedilotildeesrevistaliberdadehtm

httparestasdeventonosapoptlabaredas2html

Page 43: AS MÁSCARAS SIMBÓLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA … Jaqueline... · 2019-10-31 · A narrativa ficcional não é o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca, mas, assim como

43

ldquo Cobrem-lhe as formas divinas airosas

Longas roupagens de neveda cor

Singela croa de virgiacutenias rosas

Lhe cerca a fronte dum mortal palorrdquo43

ldquoVestiram-na de branco ungiram-na de branco envolveram-na numa nuvem de

branco Era branca a almofada de rendas onde lhe poisaram a cabeccedila

devagarinho no gesto sagrado de quem poisa uma reliacutequia trecircs vezes santa

nas rendas dum altarrdquo (FLORBELA ESPANCA 199851)

Com efeito os sentimentalistas traduzem a sua natureza soacute depois de

conhecerem o sobrenatural isso porque a realidade ndash que compreenda-se

para um romacircntico eacute a natureza ndash eacute claramente construiacuteda a partir da

imaginaccedilatildeomemoacuteria (vectores essenciais do pensamento romacircntico) logo a

partir da fantasia e da intencionalidade que queiram exprimir Em outro plano a

presenccedila fantasmagoacuterica o espanto e o horror satildeo no conto florbeliano os

uacutenicos instrumentos de intensificaccedilatildeo de sua trageacutedia e lhe datildeo plenitude Sem

eles o enredo reduzir-se-ia aos protocolos da narrativa literaacuteria agrave espera

absurda do desenlace final que aqui se faz necessaacuterio a intervenccedilatildeo do leitor

ldquorecheandordquo o texto com uma cumplicidade intertextual proacutepria

A fidelidade do geacutenero das personagens em ambos os contos reforccedila a

intenccedilatildeo dos autores em mostrar atraveacutes de vozes diferentes e de um

testemunho fantaacutestico um uacutenico discurso isso de acordo com a visatildeo intimista

e o tipo de discurso que envolve a narrativa do homem e da mulher em suas

caracteriacutesticas individuais Contudo eacute referido aqui natildeo soacute a semelhanccedila da

temaacutetica mas tambeacutem na linguagem utilizada pelos autores Eacute dado ldquoao

fantasmardquo de Soares de Passos a expressatildeo de sua proacutepria voz em uma

retoacuterica amorosa cheia de melancolia e uma perturbaccedilatildeo a seus brios e honras

masculinos numa justificativa de ocultar a forte comoccedilatildeo em que vivia ldquoo

homemrdquo devido suas incapacidades e fragilidades sentimentais para com uma

mulher

43 Fragmento do poema ldquoO Noivado do Sepulcrordquo de Soares de Passos Verso 12

44

(hellip)

Mulher formosa que adorei na vida

E que na tumba natildeo cessei damar

Por que atraiccediloas desleal mentida

O amor eterno que te ouvi jurar

Amor engano que na campa finda

Que a morte despe da ilusatildeo falaz

Quem dentros vivos se lembrara ainda

ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)

Talvez que rindo dos protestos nossos

Gozes com outro dinfernal prazer

E o olvido cobriraacute meus ossos

Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44

Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o

vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as

bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis

e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma

essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o

podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA

ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de

sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a

eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos

na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto

com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais

de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas

palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o

esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal

seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu

passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre

44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9

45

que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as

matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos

das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam

para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)

Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno

num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista

melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias

possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela

um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica

natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem

fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo

intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas

rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso

consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo

intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas

solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou

com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a

todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas

as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os

sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado

daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)

Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do

Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais

significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO

MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do

quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e

estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que

desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo

da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina

agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das

espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute

presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos

46

ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido

Das sepulturas o gelado poacute

Dois esqueletos um ao outro unido

Foram achados num sepulcro soacuterdquo45

Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de

imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da

intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo

buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma

enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo

recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as

laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas

deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo

sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais

moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas

austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade

dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete

palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam

pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e

59)

Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao

ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram

escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia

literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo

exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde

ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais

tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo

merecida

45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos

47

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas

interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca

Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo

depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves

transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo

sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia

ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas

metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver

com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao

sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas

tambeacutem ao que relaciona a morte

A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua

eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela

mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e

sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo

quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade

que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas

personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a

humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de

enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e

sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas

e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o

que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte

presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais

condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus

contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e

desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse

interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural

equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes

interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute

Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem

uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses

48

elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o

inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela

tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses

elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma

civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor

sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam

sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do

intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea

Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o

menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que

para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro

compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo

que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou

seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua

imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que

essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar

atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a

outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual

proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque

esconde-se ou projecta-se no discurso do outro

Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o

caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo

relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens

marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um

significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um

desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos

de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e

fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave

realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande

maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe

um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo

46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de

Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360

49

obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a

escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada

Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a

infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute

aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo

espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a

verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes

50

REFEREcircNCIA BIBLIOGRAacuteFICA

Activa

ESPANCA Florbela (1998) As Maacutescaras do Destino 7ordf ediccedilatildeo Bertrand

Editorial Venda Nova

ESPANCA Florbela (1998) Diaacuterio do Uacuteltimo Ano 4ordf ediccedilatildeo Bertrand Editorial

Venda Nova

ESPANCA Florbela (2004) Poesias Completas Publicaccedilotildees Dom Quixote

Lisboa

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Passiva

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Editora Aacutetica Satildeo Paulo

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104Traduccioacuten de Juan Diacuteas de Atauri Edicioacuten Visor Dis SA Madri

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Rio de Janeiro

COUTINHO Eduardo F (1994) Literatura Comparada textos fundadores

Editora Rocco Rio de Janeiro

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GODINHO Helder (1982) O Mito e o Estilo Presenccedila Lisboa

51

GREINER Herbert (2006) Dicionaacuterio Akal de Literatura General y

ComparadaTraduccioacuten revisioacuten y ampliacioacuten de la edicioacuten espantildeola Ediciones

Akal SA Madrid

HAMBURGER kate (1986) A Loacutegica da Criaccedilatildeo Literaacuteria 2ordf ediccedilatildeo Editora

Perspectiva SA Satildeo Paulo

HARO Pedro Aulloacuten GABALDOacuteN Jesuacutes Garcia y PASTOR Santiago Navarro

(2002) Ivan Andres y La Teoria Comparatista Coleccioacuten Literaria Actas

Valecircncia

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Molina1ordf edicioacuten Pirene Editorial Barcelona

JUacuteDICE Nuno (1998) As Maacutescaras do Poema Editora Ariacutem Lisboa

JUacuteDICE Nuno (2005) A Viagem das Palavras Editora Colibri Lisboa

JUacuteDICE Nuno (1986) A Era do ldquoOrpheurdquo Colecccedilatildeo Terra Nostra Editorial

Teorema Lisboa

KRISTEVA Juacutelia (1974) Introduccedilatildeo agrave Semanaacutelise Trad Luacutecia Helena Franccedila

Ferraz Editora Perspectiva Satildeo Paulo

LOPEZ Edward (1978) Uma Teoria do Interpretante 1ordf ediccedilatildeo Cultrix ndash

Secretaria da Cultura Ciecircncia e Tecnologia do Estado de Satildeo Paulo Satildeo

Paulo

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ediccedilatildeo Biblioteca Breve vol 104 Instituto de Cultura e Liacutengua Portuguesa

Lisboa

NIETO Joseacute Mordf Fernaacutendez (1987) El Mar y La Poesia Liacuterica Del Mar

Biblioteca de Temas Almerienses seacuterie menor 27 2ordf edicioacuten Editorial Cajal

Almeria

52

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Intertextualidad Campus de Teatinos Universidad de Maacutelaga Edicioacuten Analecta

Malaciana Maacutelaga

SCHNEIDER Michel (1990) Ladratildeo de Palavras Ensaio sobre o plaacutegio a

psicanaacutelise e o pensamento Editora UNICAMP Satildeo Paulo

WEBIBLIOGRAFIA

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Page 44: AS MÁSCARAS SIMBÓLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA … Jaqueline... · 2019-10-31 · A narrativa ficcional não é o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca, mas, assim como

44

(hellip)

Mulher formosa que adorei na vida

E que na tumba natildeo cessei damar

Por que atraiccediloas desleal mentida

O amor eterno que te ouvi jurar

Amor engano que na campa finda

Que a morte despe da ilusatildeo falaz

Quem dentros vivos se lembrara ainda

ldquoDo pobre morto que na terra jaz (hellip)

Talvez que rindo dos protestos nossos

Gozes com outro dinfernal prazer

E o olvido cobriraacute meus ossos

Na fria terra sem vinganccedila ter hellip44

Jaacute ldquoa fantasmardquo de Florbela eacute emudecida pela voz da proacutepria autora ldquoEntre o

vivo e a morta o diaacutelogo era duma sobre-humana belezahellipDiaacutelogo em que as

bocas ficavam mudas em que os sons eram imateriais e os gestos intangiacuteveis

e o perfume que eacute a alma dos sentimentos natildeo era mais pesado que uma

essecircncia de perfumehellipO vivo e a morta falavam e o que eles diziam natildeo o

podem entender os vivos nem talvez mesmo os outros mortoshelliprdquo (FLORBELA

ESPANCA 199855) Florbela natildeo consegue despreender-se do discurso de

sua morta ndash o que Passos faz claramente dando ao seu morto toda a

eloquecircncia do discurso ndash eacute de Bela todas as vontades e sentimentos expressos

na figura fantasmagoacuterica um elo que tentava manter aleacutem da vida um contacto

com forccedilas sobrenaturais as quais era tentada que neste caso trata-se mais

de um refuacutegio na imortalidade de si e de sua obra o descanso imortal de suas

palavras e do seu sentimento de mundo Atraveacutes desta intimidade funeacuterea o

esplendor da vida para ela eacute digna de pena pois o vislumbramento imortal

seria o aliacutevio agravequeles que vivem ldquo E a Morta laacute foi pela soturna avenida no seu

passo de manto a roccedilagarhellipe na cidade adormecida foi uma flor de milagre

44 Fragmento do poema O Noivado do Sepulcro versos 5 6 e 9

45

que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as

matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos

das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam

para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)

Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno

num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista

melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias

possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela

um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica

natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem

fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo

intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas

rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso

consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo

intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas

solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou

com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a

todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas

as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os

sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado

daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)

Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do

Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais

significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO

MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do

quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e

estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que

desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo

da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina

agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das

espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute

presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos

46

ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido

Das sepulturas o gelado poacute

Dois esqueletos um ao outro unido

Foram achados num sepulcro soacuterdquo45

Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de

imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da

intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo

buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma

enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo

recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as

laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas

deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo

sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais

moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas

austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade

dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete

palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam

pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e

59)

Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao

ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram

escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia

literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo

exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde

ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais

tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo

merecida

45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos

47

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas

interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca

Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo

depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves

transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo

sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia

ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas

metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver

com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao

sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas

tambeacutem ao que relaciona a morte

A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua

eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela

mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e

sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo

quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade

que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas

personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a

humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de

enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e

sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas

e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o

que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte

presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais

condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus

contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e

desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse

interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural

equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes

interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute

Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem

uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses

48

elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o

inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela

tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses

elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma

civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor

sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam

sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do

intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea

Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o

menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que

para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro

compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo

que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou

seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua

imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que

essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar

atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a

outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual

proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque

esconde-se ou projecta-se no discurso do outro

Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o

caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo

relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens

marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um

significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um

desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos

de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e

fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave

realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande

maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe

um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo

46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de

Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360

49

obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a

escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada

Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a

infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute

aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo

espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a

verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes

50

REFEREcircNCIA BIBLIOGRAacuteFICA

Activa

ESPANCA Florbela (1998) As Maacutescaras do Destino 7ordf ediccedilatildeo Bertrand

Editorial Venda Nova

ESPANCA Florbela (1998) Diaacuterio do Uacuteltimo Ano 4ordf ediccedilatildeo Bertrand Editorial

Venda Nova

ESPANCA Florbela (2004) Poesias Completas Publicaccedilotildees Dom Quixote

Lisboa

REacuteGIO Joseacute (1981) Sonetos de Florbela Espanca 19ordf ediccedilatildeo Lisboa

Passiva

CARVALHAL Tacircnia Franco (1986) Literatura Comparada Seacuterie Princiacutepios

Editora Aacutetica Satildeo Paulo

CESERANI Remo (1999) Lo Fantaacutestico Coleccioacuten La Balsa de la Medusa

104Traduccioacuten de Juan Diacuteas de Atauri Edicioacuten Visor Dis SA Madri

CHEVALIER Jean (2003) Dicionaacuterio de Siacutembolos 18ordf ediccedilatildeo Joseacute Oliacutempio

Rio de Janeiro

COUTINHO Eduardo F (1994) Literatura Comparada textos fundadores

Editora Rocco Rio de Janeiro

FRANZ Marie-Louise Von ( 1990) Siacutembolos de Redencioacuten en Los Cuentos de

Hadas Lucieacuternaga Grupo Editorial Oceano Barcelona

GODINHO Helder (1982) O Mito e o Estilo Presenccedila Lisboa

51

GREINER Herbert (2006) Dicionaacuterio Akal de Literatura General y

ComparadaTraduccioacuten revisioacuten y ampliacioacuten de la edicioacuten espantildeola Ediciones

Akal SA Madrid

HAMBURGER kate (1986) A Loacutegica da Criaccedilatildeo Literaacuteria 2ordf ediccedilatildeo Editora

Perspectiva SA Satildeo Paulo

HARO Pedro Aulloacuten GABALDOacuteN Jesuacutes Garcia y PASTOR Santiago Navarro

(2002) Ivan Andres y La Teoria Comparatista Coleccioacuten Literaria Actas

Valecircncia

JEAN George (1988) El Poder de Los Cuentos Traduccedilatildeo de Caterina

Molina1ordf edicioacuten Pirene Editorial Barcelona

JUacuteDICE Nuno (1998) As Maacutescaras do Poema Editora Ariacutem Lisboa

JUacuteDICE Nuno (2005) A Viagem das Palavras Editora Colibri Lisboa

JUacuteDICE Nuno (1986) A Era do ldquoOrpheurdquo Colecccedilatildeo Terra Nostra Editorial

Teorema Lisboa

KRISTEVA Juacutelia (1974) Introduccedilatildeo agrave Semanaacutelise Trad Luacutecia Helena Franccedila

Ferraz Editora Perspectiva Satildeo Paulo

LOPEZ Edward (1978) Uma Teoria do Interpretante 1ordf ediccedilatildeo Cultrix ndash

Secretaria da Cultura Ciecircncia e Tecnologia do Estado de Satildeo Paulo Satildeo

Paulo

MACHADO Aacutelvaro Manoel (1986) O Romantismo na Poesia Portuguesa 1ordf

ediccedilatildeo Biblioteca Breve vol 104 Instituto de Cultura e Liacutengua Portuguesa

Lisboa

NIETO Joseacute Mordf Fernaacutendez (1987) El Mar y La Poesia Liacuterica Del Mar

Biblioteca de Temas Almerienses seacuterie menor 27 2ordf edicioacuten Editorial Cajal

Almeria

52

RALLO Caacutermen Lara (2007) Las Voces Y Los Ecos Perspectiva sobre La

Intertextualidad Campus de Teatinos Universidad de Maacutelaga Edicioacuten Analecta

Malaciana Maacutelaga

SCHNEIDER Michel (1990) Ladratildeo de Palavras Ensaio sobre o plaacutegio a

psicanaacutelise e o pensamento Editora UNICAMP Satildeo Paulo

WEBIBLIOGRAFIA

httpwwwprahojecombrflorbelacat=15

httpwwwfclarunespbrpublicaccedilotildeesrevistaliberdadehtm

httparestasdeventonosapoptlabaredas2html

Page 45: AS MÁSCARAS SIMBÓLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA … Jaqueline... · 2019-10-31 · A narrativa ficcional não é o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca, mas, assim como

45

que os vivos sentiram desabrochar Foram mais ternos os beijos das noivas as

matildees sentiram mais calmos os sonhos dos filhos sobre os berccedilos os braccedilos

das amantes ampararam melhor as cabeccedilas desfalecidas e os que estavam

para morrer tiveram pena da vidardquo (FLORBELA ESPANCA 199857)

Desta feita as imagens sombrias aliam-se a um estado de espiacuterito soturno

num tom confessional que implica na degradaccedilatildeo sentimentalista

melodramaacutetica e uma auto-ironia mediante seu destino Essas tendecircncias

possivelmente provida de sua formaccedilatildeo cultural provinciana revela em Florbela

um caso isolado para uma escritora de sua eacutepoca sua degradaccedilatildeo romacircntica

natildeo repete fielmente aos poetas do ultra-romacircntismo haacute uma linguagem

fortemente metafoacuterica conduzindo agrave simbolismos que remetem sua visatildeo

intimista numa transiccedilatildeo vasta de esteacutetica de escrita Isso implica complexas

rupturas e continuidades em seu estilo agrave procura de novos limites no regresso

consciente a modelos iniciais romacircnticos Esta seria a grande ldquotravessiardquo

intelectual e existencial vivida por Florbela ldquoAtravessou ruas ermas estradas

solitaacuterias povoamentos de sombras mais vatildes e fugidias que ela era procurou

com as suas pupilas sem luz o claratildeo que as acendera estendeu os braccedilos a

todos os gritos andou de porta em porta subiu todos os lares resolveu todas

as agonias debruccedilou-se em todos os abismos penetrou o misteacuterio de todos os

sonhos E cada vez iam-se apagando estrelas-cadentes no negrume cerrado

daquele Goacutelgota Nada (FLORBELA ESPANCA 1998 57)

Ao acompanharmos o raciociacutenio de Manuel Machado eacute certo que O Noivado do

Sepulcro natildeo eacute do melhor de Soares de Passos ldquomas eacute sem duacutevida o mais

significativo em termos de moda literaacuteria provincianardquo (MANUEL AacuteLVARO

MACHADO 198668) A popularidade do poema que passou a fazer parte do

quotidiano portuense atravessou os anos e apesar das novas tendecircncias e

estilos de escrita penetrou na sensibilidade da ldquoBelardquo alma alentejana que

desagradando em sua eacutepoca trouxe de volta o desejo de repouso na ldquomansatildeo

da morterdquo retratado aqui pela busca acalentada da ldquomortardquo Busca que culmina

agrave margem das aacuteguas lugar onde natildeo haacute morte haacute sim o renascer das

espumas de suas ondas para um novo recomeccedilo Esse mesmo recomeccedilo estaacute

presente na concretizaccedilatildeo do imortal amor da uniatildeo funeacuterea de Passos

46

ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido

Das sepulturas o gelado poacute

Dois esqueletos um ao outro unido

Foram achados num sepulcro soacuterdquo45

Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de

imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da

intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo

buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma

enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo

recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as

laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas

deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo

sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais

moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas

austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade

dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete

palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam

pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e

59)

Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao

ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram

escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia

literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo

exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde

ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais

tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo

merecida

45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos

47

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas

interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca

Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo

depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves

transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo

sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia

ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas

metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver

com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao

sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas

tambeacutem ao que relaciona a morte

A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua

eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela

mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e

sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo

quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade

que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas

personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a

humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de

enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e

sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas

e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o

que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte

presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais

condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus

contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e

desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse

interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural

equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes

interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute

Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem

uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses

48

elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o

inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela

tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses

elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma

civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor

sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam

sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do

intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea

Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o

menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que

para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro

compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo

que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou

seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua

imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que

essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar

atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a

outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual

proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque

esconde-se ou projecta-se no discurso do outro

Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o

caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo

relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens

marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um

significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um

desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos

de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e

fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave

realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande

maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe

um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo

46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de

Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360

49

obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a

escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada

Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a

infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute

aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo

espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a

verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes

50

REFEREcircNCIA BIBLIOGRAacuteFICA

Activa

ESPANCA Florbela (1998) As Maacutescaras do Destino 7ordf ediccedilatildeo Bertrand

Editorial Venda Nova

ESPANCA Florbela (1998) Diaacuterio do Uacuteltimo Ano 4ordf ediccedilatildeo Bertrand Editorial

Venda Nova

ESPANCA Florbela (2004) Poesias Completas Publicaccedilotildees Dom Quixote

Lisboa

REacuteGIO Joseacute (1981) Sonetos de Florbela Espanca 19ordf ediccedilatildeo Lisboa

Passiva

CARVALHAL Tacircnia Franco (1986) Literatura Comparada Seacuterie Princiacutepios

Editora Aacutetica Satildeo Paulo

CESERANI Remo (1999) Lo Fantaacutestico Coleccioacuten La Balsa de la Medusa

104Traduccioacuten de Juan Diacuteas de Atauri Edicioacuten Visor Dis SA Madri

CHEVALIER Jean (2003) Dicionaacuterio de Siacutembolos 18ordf ediccedilatildeo Joseacute Oliacutempio

Rio de Janeiro

COUTINHO Eduardo F (1994) Literatura Comparada textos fundadores

Editora Rocco Rio de Janeiro

FRANZ Marie-Louise Von ( 1990) Siacutembolos de Redencioacuten en Los Cuentos de

Hadas Lucieacuternaga Grupo Editorial Oceano Barcelona

GODINHO Helder (1982) O Mito e o Estilo Presenccedila Lisboa

51

GREINER Herbert (2006) Dicionaacuterio Akal de Literatura General y

ComparadaTraduccioacuten revisioacuten y ampliacioacuten de la edicioacuten espantildeola Ediciones

Akal SA Madrid

HAMBURGER kate (1986) A Loacutegica da Criaccedilatildeo Literaacuteria 2ordf ediccedilatildeo Editora

Perspectiva SA Satildeo Paulo

HARO Pedro Aulloacuten GABALDOacuteN Jesuacutes Garcia y PASTOR Santiago Navarro

(2002) Ivan Andres y La Teoria Comparatista Coleccioacuten Literaria Actas

Valecircncia

JEAN George (1988) El Poder de Los Cuentos Traduccedilatildeo de Caterina

Molina1ordf edicioacuten Pirene Editorial Barcelona

JUacuteDICE Nuno (1998) As Maacutescaras do Poema Editora Ariacutem Lisboa

JUacuteDICE Nuno (2005) A Viagem das Palavras Editora Colibri Lisboa

JUacuteDICE Nuno (1986) A Era do ldquoOrpheurdquo Colecccedilatildeo Terra Nostra Editorial

Teorema Lisboa

KRISTEVA Juacutelia (1974) Introduccedilatildeo agrave Semanaacutelise Trad Luacutecia Helena Franccedila

Ferraz Editora Perspectiva Satildeo Paulo

LOPEZ Edward (1978) Uma Teoria do Interpretante 1ordf ediccedilatildeo Cultrix ndash

Secretaria da Cultura Ciecircncia e Tecnologia do Estado de Satildeo Paulo Satildeo

Paulo

MACHADO Aacutelvaro Manoel (1986) O Romantismo na Poesia Portuguesa 1ordf

ediccedilatildeo Biblioteca Breve vol 104 Instituto de Cultura e Liacutengua Portuguesa

Lisboa

NIETO Joseacute Mordf Fernaacutendez (1987) El Mar y La Poesia Liacuterica Del Mar

Biblioteca de Temas Almerienses seacuterie menor 27 2ordf edicioacuten Editorial Cajal

Almeria

52

RALLO Caacutermen Lara (2007) Las Voces Y Los Ecos Perspectiva sobre La

Intertextualidad Campus de Teatinos Universidad de Maacutelaga Edicioacuten Analecta

Malaciana Maacutelaga

SCHNEIDER Michel (1990) Ladratildeo de Palavras Ensaio sobre o plaacutegio a

psicanaacutelise e o pensamento Editora UNICAMP Satildeo Paulo

WEBIBLIOGRAFIA

httpwwwprahojecombrflorbelacat=15

httpwwwfclarunespbrpublicaccedilotildeesrevistaliberdadehtm

httparestasdeventonosapoptlabaredas2html

Page 46: AS MÁSCARAS SIMBÓLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA … Jaqueline... · 2019-10-31 · A narrativa ficcional não é o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca, mas, assim como

46

ldquoPoreacutem mais tarde quando foi volvido

Das sepulturas o gelado poacute

Dois esqueletos um ao outro unido

Foram achados num sepulcro soacuterdquo45

Para finalizar seu conto Florbela apropria-se de uma linguagem impregnada de

imagens simboacutelicas ressaltando a fidelidade dos fatos diante da

intertextualidade com o poema de Passos ressalva que ldquoisto aconteceurdquo

buscando dar legitimidade ao acontecimento sobrenatural com uma

enigmaacutetica uniatildeo prosopopaica e metafoacuterica com a natureza onde tudo

recomeccedila ldquo De manhatildezinha quando as pombas sedentas vieram beber as

laacutegrimas na urna quebrada quando o sapo de magniacuteficos olhos como estrelas

deixou o seu fresco leito de liacuterios e a saudade se enrodilhou de novo

sumptuoso tuacutemulo de maacutermore a soluccedilar quando a musa de curvas sensuais

moldou a boca que toda a noite dera beijos na imobilidade riacutegida das linhas

austeras e frias quando enfim as sombras se esvaiacuteram na silenciosa cidade

dos mortos um caixatildeo foi encontrado vazio uma caixinha branca de sete

palmos pequeninos onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam

pender as paacutelidas cabeccedilas desmaiadasrdquo (FLORBELA ESPANCA 199858 e

59)

Apesar do conto ldquoA Mortardquo ser em sua temaacutetica e discurso semelhante ao

ldquoNoivado do Sepulcrordquo devemos atentar para a eacutepoca em que ambos foram

escritos em 1852 Soares de Passos expressava-se mediante uma tendecircncia

literaacuteria da eacutepoca passados 75 anos Florbela trouxe de volta o sentimentalismo

exagerado mas agora com uma escrita mais apurada natildeo mais ao molde

ingeacutenuo e oacutebvio de outrora sua autenticidade mesclada de tendecircncias mais

tarde lhe daraacute aos olhos dos famosos escritores de sua eacutepoca a consagraccedilatildeo

merecida

45 O Noivado do Sepulcro uacuteltimo verso Soares de Passos

47

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas

interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca

Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo

depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves

transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo

sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia

ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas

metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver

com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao

sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas

tambeacutem ao que relaciona a morte

A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua

eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela

mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e

sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo

quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade

que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas

personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a

humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de

enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e

sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas

e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o

que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte

presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais

condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus

contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e

desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse

interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural

equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes

interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute

Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem

uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses

48

elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o

inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela

tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses

elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma

civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor

sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam

sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do

intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea

Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o

menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que

para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro

compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo

que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou

seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua

imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que

essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar

atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a

outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual

proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque

esconde-se ou projecta-se no discurso do outro

Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o

caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo

relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens

marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um

significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um

desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos

de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e

fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave

realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande

maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe

um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo

46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de

Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360

49

obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a

escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada

Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a

infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute

aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo

espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a

verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes

50

REFEREcircNCIA BIBLIOGRAacuteFICA

Activa

ESPANCA Florbela (1998) As Maacutescaras do Destino 7ordf ediccedilatildeo Bertrand

Editorial Venda Nova

ESPANCA Florbela (1998) Diaacuterio do Uacuteltimo Ano 4ordf ediccedilatildeo Bertrand Editorial

Venda Nova

ESPANCA Florbela (2004) Poesias Completas Publicaccedilotildees Dom Quixote

Lisboa

REacuteGIO Joseacute (1981) Sonetos de Florbela Espanca 19ordf ediccedilatildeo Lisboa

Passiva

CARVALHAL Tacircnia Franco (1986) Literatura Comparada Seacuterie Princiacutepios

Editora Aacutetica Satildeo Paulo

CESERANI Remo (1999) Lo Fantaacutestico Coleccioacuten La Balsa de la Medusa

104Traduccioacuten de Juan Diacuteas de Atauri Edicioacuten Visor Dis SA Madri

CHEVALIER Jean (2003) Dicionaacuterio de Siacutembolos 18ordf ediccedilatildeo Joseacute Oliacutempio

Rio de Janeiro

COUTINHO Eduardo F (1994) Literatura Comparada textos fundadores

Editora Rocco Rio de Janeiro

FRANZ Marie-Louise Von ( 1990) Siacutembolos de Redencioacuten en Los Cuentos de

Hadas Lucieacuternaga Grupo Editorial Oceano Barcelona

GODINHO Helder (1982) O Mito e o Estilo Presenccedila Lisboa

51

GREINER Herbert (2006) Dicionaacuterio Akal de Literatura General y

ComparadaTraduccioacuten revisioacuten y ampliacioacuten de la edicioacuten espantildeola Ediciones

Akal SA Madrid

HAMBURGER kate (1986) A Loacutegica da Criaccedilatildeo Literaacuteria 2ordf ediccedilatildeo Editora

Perspectiva SA Satildeo Paulo

HARO Pedro Aulloacuten GABALDOacuteN Jesuacutes Garcia y PASTOR Santiago Navarro

(2002) Ivan Andres y La Teoria Comparatista Coleccioacuten Literaria Actas

Valecircncia

JEAN George (1988) El Poder de Los Cuentos Traduccedilatildeo de Caterina

Molina1ordf edicioacuten Pirene Editorial Barcelona

JUacuteDICE Nuno (1998) As Maacutescaras do Poema Editora Ariacutem Lisboa

JUacuteDICE Nuno (2005) A Viagem das Palavras Editora Colibri Lisboa

JUacuteDICE Nuno (1986) A Era do ldquoOrpheurdquo Colecccedilatildeo Terra Nostra Editorial

Teorema Lisboa

KRISTEVA Juacutelia (1974) Introduccedilatildeo agrave Semanaacutelise Trad Luacutecia Helena Franccedila

Ferraz Editora Perspectiva Satildeo Paulo

LOPEZ Edward (1978) Uma Teoria do Interpretante 1ordf ediccedilatildeo Cultrix ndash

Secretaria da Cultura Ciecircncia e Tecnologia do Estado de Satildeo Paulo Satildeo

Paulo

MACHADO Aacutelvaro Manoel (1986) O Romantismo na Poesia Portuguesa 1ordf

ediccedilatildeo Biblioteca Breve vol 104 Instituto de Cultura e Liacutengua Portuguesa

Lisboa

NIETO Joseacute Mordf Fernaacutendez (1987) El Mar y La Poesia Liacuterica Del Mar

Biblioteca de Temas Almerienses seacuterie menor 27 2ordf edicioacuten Editorial Cajal

Almeria

52

RALLO Caacutermen Lara (2007) Las Voces Y Los Ecos Perspectiva sobre La

Intertextualidad Campus de Teatinos Universidad de Maacutelaga Edicioacuten Analecta

Malaciana Maacutelaga

SCHNEIDER Michel (1990) Ladratildeo de Palavras Ensaio sobre o plaacutegio a

psicanaacutelise e o pensamento Editora UNICAMP Satildeo Paulo

WEBIBLIOGRAFIA

httpwwwprahojecombrflorbelacat=15

httpwwwfclarunespbrpublicaccedilotildeesrevistaliberdadehtm

httparestasdeventonosapoptlabaredas2html

Page 47: AS MÁSCARAS SIMBÓLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA … Jaqueline... · 2019-10-31 · A narrativa ficcional não é o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca, mas, assim como

47

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao longo de nosso estudo encontramos algumas consideraccedilotildees comparativas

interpretativas e intertextuais sobre a linha narrativa de Florbela Espanca

Vemos transparecer um momento de sua vida situado em uma condiccedilatildeo

depressiva relacionada com sua biografia numa temaacutetica voltada agraves

transmigraccedilotildees sobrenaturais e agraves vertentes mitoloacutegicas que datildeo

sustentabilidade agrave sua visatildeo de imbricamento da existecircncia real e a existecircncia

ficcional As imagens surgem no momento de sua agonia em alucinadas

metaacuteforas incoacutegnitas simboacutelicas e uma subtil irracionalidade que tem a ver

com suas divagaccedilotildees dando uma impressatildeo sentimentalista em relaccedilatildeo ao

sobrenatural que tem um tom de supremacia natildeo apenas em sua vida mas

tambeacutem ao que relaciona a morte

A incompatibilidade de fundo entre o idealismo e a sociedade real de sua

eacutepoca parece ter sido a determinante de sua postura ente o mundo e ela

mesma Seus escritos foram dedicados agrave parte interior da pessoa humana e

sua problemaacutetica com um ideal subjectivismo contrapondo o seu opressivo

quotidiano burguecircs em um acircmbito proacuteprio de auto realizaccedilatildeo e de liberdade

que a levava a exerciacutecios metafiacutesicos e de transfiguraccedilatildeo atraveacutes de suas

personagens reflexos da contraditoacuteria relaccedilatildeo entre a aspiraccedilatildeo individual e a

humanidade a naturalidade e a verdade e por fim a sociedade e a maneira de

enfrentaacute-la Isso daacute a Florbela uma postura extremamente romacircntica e

sentimentalista o que nos lembra Agustina Bessa-Luiacutes quando diz ldquo os poetas

e os projectos satildeo assim usam disfarces que os tornam semelhantes a tudo o

que os cercardquo (FLORBELA ESPANCA 199813) Apesar disso a forte

presenccedila simbolista representantes dos conflitos e relaccedilotildees individuais

condensados nos relatos e episoacutedios mais significativos vividos em seus

contos deixam atraveacutes de sua ambiguidade a interpretaccedilatildeo e

desvendamentos encomendada agrave sensibilidade e imaginaccedilatildeo do leitor Esse

interage intertextualmente tornando a obra em um amplo ldquoquadrordquo cultural

equivalendo-a a uma cultura escrita devido as mais vastas leituras e variantes

interpretativas que esse estilo de escrita nos daacute

Os elementos fundadores simboacutelicos como a aacutegua o fogo e a natureza abrem

uma vertente para a associaccedilatildeo com outras leituras que interagem com esses

48

elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o

inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela

tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses

elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma

civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor

sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam

sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do

intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea

Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o

menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que

para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro

compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo

que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou

seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua

imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que

essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar

atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a

outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual

proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque

esconde-se ou projecta-se no discurso do outro

Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o

caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo

relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens

marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um

significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um

desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos

de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e

fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave

realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande

maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe

um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo

46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de

Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360

49

obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a

escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada

Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a

infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute

aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo

espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a

verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes

50

REFEREcircNCIA BIBLIOGRAacuteFICA

Activa

ESPANCA Florbela (1998) As Maacutescaras do Destino 7ordf ediccedilatildeo Bertrand

Editorial Venda Nova

ESPANCA Florbela (1998) Diaacuterio do Uacuteltimo Ano 4ordf ediccedilatildeo Bertrand Editorial

Venda Nova

ESPANCA Florbela (2004) Poesias Completas Publicaccedilotildees Dom Quixote

Lisboa

REacuteGIO Joseacute (1981) Sonetos de Florbela Espanca 19ordf ediccedilatildeo Lisboa

Passiva

CARVALHAL Tacircnia Franco (1986) Literatura Comparada Seacuterie Princiacutepios

Editora Aacutetica Satildeo Paulo

CESERANI Remo (1999) Lo Fantaacutestico Coleccioacuten La Balsa de la Medusa

104Traduccioacuten de Juan Diacuteas de Atauri Edicioacuten Visor Dis SA Madri

CHEVALIER Jean (2003) Dicionaacuterio de Siacutembolos 18ordf ediccedilatildeo Joseacute Oliacutempio

Rio de Janeiro

COUTINHO Eduardo F (1994) Literatura Comparada textos fundadores

Editora Rocco Rio de Janeiro

FRANZ Marie-Louise Von ( 1990) Siacutembolos de Redencioacuten en Los Cuentos de

Hadas Lucieacuternaga Grupo Editorial Oceano Barcelona

GODINHO Helder (1982) O Mito e o Estilo Presenccedila Lisboa

51

GREINER Herbert (2006) Dicionaacuterio Akal de Literatura General y

ComparadaTraduccioacuten revisioacuten y ampliacioacuten de la edicioacuten espantildeola Ediciones

Akal SA Madrid

HAMBURGER kate (1986) A Loacutegica da Criaccedilatildeo Literaacuteria 2ordf ediccedilatildeo Editora

Perspectiva SA Satildeo Paulo

HARO Pedro Aulloacuten GABALDOacuteN Jesuacutes Garcia y PASTOR Santiago Navarro

(2002) Ivan Andres y La Teoria Comparatista Coleccioacuten Literaria Actas

Valecircncia

JEAN George (1988) El Poder de Los Cuentos Traduccedilatildeo de Caterina

Molina1ordf edicioacuten Pirene Editorial Barcelona

JUacuteDICE Nuno (1998) As Maacutescaras do Poema Editora Ariacutem Lisboa

JUacuteDICE Nuno (2005) A Viagem das Palavras Editora Colibri Lisboa

JUacuteDICE Nuno (1986) A Era do ldquoOrpheurdquo Colecccedilatildeo Terra Nostra Editorial

Teorema Lisboa

KRISTEVA Juacutelia (1974) Introduccedilatildeo agrave Semanaacutelise Trad Luacutecia Helena Franccedila

Ferraz Editora Perspectiva Satildeo Paulo

LOPEZ Edward (1978) Uma Teoria do Interpretante 1ordf ediccedilatildeo Cultrix ndash

Secretaria da Cultura Ciecircncia e Tecnologia do Estado de Satildeo Paulo Satildeo

Paulo

MACHADO Aacutelvaro Manoel (1986) O Romantismo na Poesia Portuguesa 1ordf

ediccedilatildeo Biblioteca Breve vol 104 Instituto de Cultura e Liacutengua Portuguesa

Lisboa

NIETO Joseacute Mordf Fernaacutendez (1987) El Mar y La Poesia Liacuterica Del Mar

Biblioteca de Temas Almerienses seacuterie menor 27 2ordf edicioacuten Editorial Cajal

Almeria

52

RALLO Caacutermen Lara (2007) Las Voces Y Los Ecos Perspectiva sobre La

Intertextualidad Campus de Teatinos Universidad de Maacutelaga Edicioacuten Analecta

Malaciana Maacutelaga

SCHNEIDER Michel (1990) Ladratildeo de Palavras Ensaio sobre o plaacutegio a

psicanaacutelise e o pensamento Editora UNICAMP Satildeo Paulo

WEBIBLIOGRAFIA

httpwwwprahojecombrflorbelacat=15

httpwwwfclarunespbrpublicaccedilotildeesrevistaliberdadehtm

httparestasdeventonosapoptlabaredas2html

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48

elementos pois pode atraveacutes deles invocar a forccedila do mito para explicar o

inexplicaacutevel principalmente quanto ao aspecto sobrenatural no qual Florbela

tanto insiste quando o aproxima da existecircncia e da vida Eacute comparando esses

elementos contidos na obra de Florbela que nos permitiu relacionar a uma

civilizaccedilatildeo a uma eacutepoca a uma literatura a um geacutenero a uma obra e um autor

sem deixar de percebermos a diacronia e a sincronia ldquoparticularrdquo que situam

sua escrita diante de seu tempo e espaccedilo aproximando-a ainda mais do

intimismo subjectivo e da escrita do ldquoeurdquo pois como cita Jesuacutes Garciacutea

Gabaldoacuten ldquo todo estudio literario estaacute obligado al comparatismo em la mayor o

menor medida que exige la realidad de su objetordquo46 Portanto pode-se dizer que

para compreender a intencionalidade de Florbela eacute preciso primeiro

compreender e dominar as fontes literaacuterias citadas em suas obras e a relaccedilatildeo

que tecircm com seu interior artiacutestico ficcional e seu interior sentimentalista real ou

seja tem que conhecer a artista (poetisa) a mulher (Bela) e desvendar sua

imaginaccedilatildeo entrando no caraacutecter oculto do significado mas natildeo deixando que

essa pluralidade de sentidos oculte um sentido uacutenico O que temos que tomar

atenccedilatildeo eacute o fato de termos nos contos uma proposta discursiva relacionada a

outras leituras ou seja uma leitura interdiscursiva ou intertextual

proporcionada por Florbela ao escrevecirc-los e que parece proposital porque

esconde-se ou projecta-se no discurso do outro

Aleacutem disso haacute tambeacutem entre os contos uma rede de correlaccedilotildees entre o

caraacutecter dos protagonistas os respectivos discursos e a sua situaccedilatildeo

relativamente agrave temaacutetica que os rodeia Satildeo geralmente personagens

marcadas pelo sofrimento pela dor dispersas conflituadas agrave busca de um

significado para a existecircncia e tendo sempre a incoacutegnita como preluacutedio de um

desfecho final Florbela parece desintegrar-se e volta a reaparecer nos corpos

de seus protagonistas como se cada um deles compusesse uma parte Dela e

fosse montando-a num fenoacutemeno transcendental e a trouxesse de volta agrave

realidade Salientando no mais que as pessoas do discurso na grande

maioria dos contos ficavam a margem da observaccedilatildeo Essa posiccedilatildeo dava-lhe

um certo domiacutenio sobre suas personagens impondo-lhes situaccedilotildees natildeo

46 Citaccedilatildeo da obra Juan Andreacutes y La Teoria Comparatista Coleccedilatildeo Literaria Actas ediciacuteon de Pedro de

Haro Jesuacutes Garciacutea Gabaldoacuten y Santiago Navarro Pastor P 360

49

obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a

escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada

Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a

infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute

aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo

espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a

verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes

50

REFEREcircNCIA BIBLIOGRAacuteFICA

Activa

ESPANCA Florbela (1998) As Maacutescaras do Destino 7ordf ediccedilatildeo Bertrand

Editorial Venda Nova

ESPANCA Florbela (1998) Diaacuterio do Uacuteltimo Ano 4ordf ediccedilatildeo Bertrand Editorial

Venda Nova

ESPANCA Florbela (2004) Poesias Completas Publicaccedilotildees Dom Quixote

Lisboa

REacuteGIO Joseacute (1981) Sonetos de Florbela Espanca 19ordf ediccedilatildeo Lisboa

Passiva

CARVALHAL Tacircnia Franco (1986) Literatura Comparada Seacuterie Princiacutepios

Editora Aacutetica Satildeo Paulo

CESERANI Remo (1999) Lo Fantaacutestico Coleccioacuten La Balsa de la Medusa

104Traduccioacuten de Juan Diacuteas de Atauri Edicioacuten Visor Dis SA Madri

CHEVALIER Jean (2003) Dicionaacuterio de Siacutembolos 18ordf ediccedilatildeo Joseacute Oliacutempio

Rio de Janeiro

COUTINHO Eduardo F (1994) Literatura Comparada textos fundadores

Editora Rocco Rio de Janeiro

FRANZ Marie-Louise Von ( 1990) Siacutembolos de Redencioacuten en Los Cuentos de

Hadas Lucieacuternaga Grupo Editorial Oceano Barcelona

GODINHO Helder (1982) O Mito e o Estilo Presenccedila Lisboa

51

GREINER Herbert (2006) Dicionaacuterio Akal de Literatura General y

ComparadaTraduccioacuten revisioacuten y ampliacioacuten de la edicioacuten espantildeola Ediciones

Akal SA Madrid

HAMBURGER kate (1986) A Loacutegica da Criaccedilatildeo Literaacuteria 2ordf ediccedilatildeo Editora

Perspectiva SA Satildeo Paulo

HARO Pedro Aulloacuten GABALDOacuteN Jesuacutes Garcia y PASTOR Santiago Navarro

(2002) Ivan Andres y La Teoria Comparatista Coleccioacuten Literaria Actas

Valecircncia

JEAN George (1988) El Poder de Los Cuentos Traduccedilatildeo de Caterina

Molina1ordf edicioacuten Pirene Editorial Barcelona

JUacuteDICE Nuno (1998) As Maacutescaras do Poema Editora Ariacutem Lisboa

JUacuteDICE Nuno (2005) A Viagem das Palavras Editora Colibri Lisboa

JUacuteDICE Nuno (1986) A Era do ldquoOrpheurdquo Colecccedilatildeo Terra Nostra Editorial

Teorema Lisboa

KRISTEVA Juacutelia (1974) Introduccedilatildeo agrave Semanaacutelise Trad Luacutecia Helena Franccedila

Ferraz Editora Perspectiva Satildeo Paulo

LOPEZ Edward (1978) Uma Teoria do Interpretante 1ordf ediccedilatildeo Cultrix ndash

Secretaria da Cultura Ciecircncia e Tecnologia do Estado de Satildeo Paulo Satildeo

Paulo

MACHADO Aacutelvaro Manoel (1986) O Romantismo na Poesia Portuguesa 1ordf

ediccedilatildeo Biblioteca Breve vol 104 Instituto de Cultura e Liacutengua Portuguesa

Lisboa

NIETO Joseacute Mordf Fernaacutendez (1987) El Mar y La Poesia Liacuterica Del Mar

Biblioteca de Temas Almerienses seacuterie menor 27 2ordf edicioacuten Editorial Cajal

Almeria

52

RALLO Caacutermen Lara (2007) Las Voces Y Los Ecos Perspectiva sobre La

Intertextualidad Campus de Teatinos Universidad de Maacutelaga Edicioacuten Analecta

Malaciana Maacutelaga

SCHNEIDER Michel (1990) Ladratildeo de Palavras Ensaio sobre o plaacutegio a

psicanaacutelise e o pensamento Editora UNICAMP Satildeo Paulo

WEBIBLIOGRAFIA

httpwwwprahojecombrflorbelacat=15

httpwwwfclarunespbrpublicaccedilotildeesrevistaliberdadehtm

httparestasdeventonosapoptlabaredas2html

Page 49: AS MÁSCARAS SIMBÓLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA … Jaqueline... · 2019-10-31 · A narrativa ficcional não é o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca, mas, assim como

49

obstante agrave sua proacutepria realidade Podia desta forma ter o controlo mediante a

escrita dos desiacutegnios de uma vida austera e magoada

Ler Florbela eacute viajar pelo inconsciente da pessoa humana Eacute reflectir sobre a

infinidade de interpretaccedilatildeo que podemos alcanccedilar com voos tatildeo altos Eacute

aprender a perdoar-nos por razotildees convictas ou inconvictas Eacute sobretudo

espiar-nos Desta forma eacute suposto dizer que tem uma verosimilhanccedila com a

verdade subjectiva intriacutenseca em cada um de noacutes

50

REFEREcircNCIA BIBLIOGRAacuteFICA

Activa

ESPANCA Florbela (1998) As Maacutescaras do Destino 7ordf ediccedilatildeo Bertrand

Editorial Venda Nova

ESPANCA Florbela (1998) Diaacuterio do Uacuteltimo Ano 4ordf ediccedilatildeo Bertrand Editorial

Venda Nova

ESPANCA Florbela (2004) Poesias Completas Publicaccedilotildees Dom Quixote

Lisboa

REacuteGIO Joseacute (1981) Sonetos de Florbela Espanca 19ordf ediccedilatildeo Lisboa

Passiva

CARVALHAL Tacircnia Franco (1986) Literatura Comparada Seacuterie Princiacutepios

Editora Aacutetica Satildeo Paulo

CESERANI Remo (1999) Lo Fantaacutestico Coleccioacuten La Balsa de la Medusa

104Traduccioacuten de Juan Diacuteas de Atauri Edicioacuten Visor Dis SA Madri

CHEVALIER Jean (2003) Dicionaacuterio de Siacutembolos 18ordf ediccedilatildeo Joseacute Oliacutempio

Rio de Janeiro

COUTINHO Eduardo F (1994) Literatura Comparada textos fundadores

Editora Rocco Rio de Janeiro

FRANZ Marie-Louise Von ( 1990) Siacutembolos de Redencioacuten en Los Cuentos de

Hadas Lucieacuternaga Grupo Editorial Oceano Barcelona

GODINHO Helder (1982) O Mito e o Estilo Presenccedila Lisboa

51

GREINER Herbert (2006) Dicionaacuterio Akal de Literatura General y

ComparadaTraduccioacuten revisioacuten y ampliacioacuten de la edicioacuten espantildeola Ediciones

Akal SA Madrid

HAMBURGER kate (1986) A Loacutegica da Criaccedilatildeo Literaacuteria 2ordf ediccedilatildeo Editora

Perspectiva SA Satildeo Paulo

HARO Pedro Aulloacuten GABALDOacuteN Jesuacutes Garcia y PASTOR Santiago Navarro

(2002) Ivan Andres y La Teoria Comparatista Coleccioacuten Literaria Actas

Valecircncia

JEAN George (1988) El Poder de Los Cuentos Traduccedilatildeo de Caterina

Molina1ordf edicioacuten Pirene Editorial Barcelona

JUacuteDICE Nuno (1998) As Maacutescaras do Poema Editora Ariacutem Lisboa

JUacuteDICE Nuno (2005) A Viagem das Palavras Editora Colibri Lisboa

JUacuteDICE Nuno (1986) A Era do ldquoOrpheurdquo Colecccedilatildeo Terra Nostra Editorial

Teorema Lisboa

KRISTEVA Juacutelia (1974) Introduccedilatildeo agrave Semanaacutelise Trad Luacutecia Helena Franccedila

Ferraz Editora Perspectiva Satildeo Paulo

LOPEZ Edward (1978) Uma Teoria do Interpretante 1ordf ediccedilatildeo Cultrix ndash

Secretaria da Cultura Ciecircncia e Tecnologia do Estado de Satildeo Paulo Satildeo

Paulo

MACHADO Aacutelvaro Manoel (1986) O Romantismo na Poesia Portuguesa 1ordf

ediccedilatildeo Biblioteca Breve vol 104 Instituto de Cultura e Liacutengua Portuguesa

Lisboa

NIETO Joseacute Mordf Fernaacutendez (1987) El Mar y La Poesia Liacuterica Del Mar

Biblioteca de Temas Almerienses seacuterie menor 27 2ordf edicioacuten Editorial Cajal

Almeria

52

RALLO Caacutermen Lara (2007) Las Voces Y Los Ecos Perspectiva sobre La

Intertextualidad Campus de Teatinos Universidad de Maacutelaga Edicioacuten Analecta

Malaciana Maacutelaga

SCHNEIDER Michel (1990) Ladratildeo de Palavras Ensaio sobre o plaacutegio a

psicanaacutelise e o pensamento Editora UNICAMP Satildeo Paulo

WEBIBLIOGRAFIA

httpwwwprahojecombrflorbelacat=15

httpwwwfclarunespbrpublicaccedilotildeesrevistaliberdadehtm

httparestasdeventonosapoptlabaredas2html

Page 50: AS MÁSCARAS SIMBÓLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA … Jaqueline... · 2019-10-31 · A narrativa ficcional não é o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca, mas, assim como

50

REFEREcircNCIA BIBLIOGRAacuteFICA

Activa

ESPANCA Florbela (1998) As Maacutescaras do Destino 7ordf ediccedilatildeo Bertrand

Editorial Venda Nova

ESPANCA Florbela (1998) Diaacuterio do Uacuteltimo Ano 4ordf ediccedilatildeo Bertrand Editorial

Venda Nova

ESPANCA Florbela (2004) Poesias Completas Publicaccedilotildees Dom Quixote

Lisboa

REacuteGIO Joseacute (1981) Sonetos de Florbela Espanca 19ordf ediccedilatildeo Lisboa

Passiva

CARVALHAL Tacircnia Franco (1986) Literatura Comparada Seacuterie Princiacutepios

Editora Aacutetica Satildeo Paulo

CESERANI Remo (1999) Lo Fantaacutestico Coleccioacuten La Balsa de la Medusa

104Traduccioacuten de Juan Diacuteas de Atauri Edicioacuten Visor Dis SA Madri

CHEVALIER Jean (2003) Dicionaacuterio de Siacutembolos 18ordf ediccedilatildeo Joseacute Oliacutempio

Rio de Janeiro

COUTINHO Eduardo F (1994) Literatura Comparada textos fundadores

Editora Rocco Rio de Janeiro

FRANZ Marie-Louise Von ( 1990) Siacutembolos de Redencioacuten en Los Cuentos de

Hadas Lucieacuternaga Grupo Editorial Oceano Barcelona

GODINHO Helder (1982) O Mito e o Estilo Presenccedila Lisboa

51

GREINER Herbert (2006) Dicionaacuterio Akal de Literatura General y

ComparadaTraduccioacuten revisioacuten y ampliacioacuten de la edicioacuten espantildeola Ediciones

Akal SA Madrid

HAMBURGER kate (1986) A Loacutegica da Criaccedilatildeo Literaacuteria 2ordf ediccedilatildeo Editora

Perspectiva SA Satildeo Paulo

HARO Pedro Aulloacuten GABALDOacuteN Jesuacutes Garcia y PASTOR Santiago Navarro

(2002) Ivan Andres y La Teoria Comparatista Coleccioacuten Literaria Actas

Valecircncia

JEAN George (1988) El Poder de Los Cuentos Traduccedilatildeo de Caterina

Molina1ordf edicioacuten Pirene Editorial Barcelona

JUacuteDICE Nuno (1998) As Maacutescaras do Poema Editora Ariacutem Lisboa

JUacuteDICE Nuno (2005) A Viagem das Palavras Editora Colibri Lisboa

JUacuteDICE Nuno (1986) A Era do ldquoOrpheurdquo Colecccedilatildeo Terra Nostra Editorial

Teorema Lisboa

KRISTEVA Juacutelia (1974) Introduccedilatildeo agrave Semanaacutelise Trad Luacutecia Helena Franccedila

Ferraz Editora Perspectiva Satildeo Paulo

LOPEZ Edward (1978) Uma Teoria do Interpretante 1ordf ediccedilatildeo Cultrix ndash

Secretaria da Cultura Ciecircncia e Tecnologia do Estado de Satildeo Paulo Satildeo

Paulo

MACHADO Aacutelvaro Manoel (1986) O Romantismo na Poesia Portuguesa 1ordf

ediccedilatildeo Biblioteca Breve vol 104 Instituto de Cultura e Liacutengua Portuguesa

Lisboa

NIETO Joseacute Mordf Fernaacutendez (1987) El Mar y La Poesia Liacuterica Del Mar

Biblioteca de Temas Almerienses seacuterie menor 27 2ordf edicioacuten Editorial Cajal

Almeria

52

RALLO Caacutermen Lara (2007) Las Voces Y Los Ecos Perspectiva sobre La

Intertextualidad Campus de Teatinos Universidad de Maacutelaga Edicioacuten Analecta

Malaciana Maacutelaga

SCHNEIDER Michel (1990) Ladratildeo de Palavras Ensaio sobre o plaacutegio a

psicanaacutelise e o pensamento Editora UNICAMP Satildeo Paulo

WEBIBLIOGRAFIA

httpwwwprahojecombrflorbelacat=15

httpwwwfclarunespbrpublicaccedilotildeesrevistaliberdadehtm

httparestasdeventonosapoptlabaredas2html

Page 51: AS MÁSCARAS SIMBÓLICAS E INTERTEXTUAIS EM FLORBELA … Jaqueline... · 2019-10-31 · A narrativa ficcional não é o que conhecemos de melhor em Florbela Espanca, mas, assim como

51

GREINER Herbert (2006) Dicionaacuterio Akal de Literatura General y

ComparadaTraduccioacuten revisioacuten y ampliacioacuten de la edicioacuten espantildeola Ediciones

Akal SA Madrid

HAMBURGER kate (1986) A Loacutegica da Criaccedilatildeo Literaacuteria 2ordf ediccedilatildeo Editora

Perspectiva SA Satildeo Paulo

HARO Pedro Aulloacuten GABALDOacuteN Jesuacutes Garcia y PASTOR Santiago Navarro

(2002) Ivan Andres y La Teoria Comparatista Coleccioacuten Literaria Actas

Valecircncia

JEAN George (1988) El Poder de Los Cuentos Traduccedilatildeo de Caterina

Molina1ordf edicioacuten Pirene Editorial Barcelona

JUacuteDICE Nuno (1998) As Maacutescaras do Poema Editora Ariacutem Lisboa

JUacuteDICE Nuno (2005) A Viagem das Palavras Editora Colibri Lisboa

JUacuteDICE Nuno (1986) A Era do ldquoOrpheurdquo Colecccedilatildeo Terra Nostra Editorial

Teorema Lisboa

KRISTEVA Juacutelia (1974) Introduccedilatildeo agrave Semanaacutelise Trad Luacutecia Helena Franccedila

Ferraz Editora Perspectiva Satildeo Paulo

LOPEZ Edward (1978) Uma Teoria do Interpretante 1ordf ediccedilatildeo Cultrix ndash

Secretaria da Cultura Ciecircncia e Tecnologia do Estado de Satildeo Paulo Satildeo

Paulo

MACHADO Aacutelvaro Manoel (1986) O Romantismo na Poesia Portuguesa 1ordf

ediccedilatildeo Biblioteca Breve vol 104 Instituto de Cultura e Liacutengua Portuguesa

Lisboa

NIETO Joseacute Mordf Fernaacutendez (1987) El Mar y La Poesia Liacuterica Del Mar

Biblioteca de Temas Almerienses seacuterie menor 27 2ordf edicioacuten Editorial Cajal

Almeria

52

RALLO Caacutermen Lara (2007) Las Voces Y Los Ecos Perspectiva sobre La

Intertextualidad Campus de Teatinos Universidad de Maacutelaga Edicioacuten Analecta

Malaciana Maacutelaga

SCHNEIDER Michel (1990) Ladratildeo de Palavras Ensaio sobre o plaacutegio a

psicanaacutelise e o pensamento Editora UNICAMP Satildeo Paulo

WEBIBLIOGRAFIA

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