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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE DE LETRAS DÉBORA DE CASTRO BARROS AS NOTAS DO TRADUTOR COMO LUGAR DISCURSIVO: UMA ANÁLISE DAS NOTAS DE DUAS TRADUÇÕES BRASILEIRAS DE O PAI GORIOT Rio de Janeiro, 2009.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE DE LETRAS

DÉBORA DE CASTRO BARROS

AS NOTAS DO TRADUTOR COMO LUGAR DISCURSIVO: UMA ANÁLISE DAS NOTAS DE DUAS TRADUÇÕES BRASILEIRAS DE

O PAI GORIOT

Rio de Janeiro, 2009.

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AS NOTAS DO TRADUTOR COMO LUGAR DISCURSIVO: UMA ANÁLISE DAS NOTAS DE DUAS TRADUÇÕES BRASILEIRAS DE

O PAI GORIOT

por DÉBORA DE CASTRO BARROS

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Linguísticos Neolatinos – Opção Língua Francesa)

Orientadora: Profa. Doutora Márcia Atálla Pietroluongo.

Rio de Janeiro Novembro de 2009.

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AGRADECIMENTOS

À minha orientadora, Márcia Atálla Pietroluongo, por ter me recebido como sua

orientanda e sempre com muita atenção, firmeza e paciência ter me conduzido no processo

que culminou nesta dissertação. Obrigada por todo o aprendizado.

Ao professor Marcelo Jacques de Moraes, por, mesmo depois de tantos anos desde

minha graduação, ter me acolhido e me apresentado à professora Márcia. Obrigada pelo

incentivo e por aceitar fazer parte da banca.

Aos demais professores do Mestrado, que me apoiaram e suscitaram tantas questões

novas e instigantes sobre o meu objeto de estudo.

Aos funcionários da Secretaria da Pós-Graduação, por sua disposição em me ajudar

nas tantas vezes em que precisei; em especial, nestes últimos momentos, ao Leonardo, por seu

empenho, e à Fátima, por sua solicitude.

À professora Marcella Mortara, que foi minha orientadora na Especialização da UERJ.

Seu incentivo e carinho naquela época foram muito importantes para meu ingresso no

Mestrado.

Aos meus colegas e amigos do Mestrado, que me incentivaram sempre, com muito

carinho.

Às minhas amigas Márcia da Anunciação Barbosa e Glícia da Silva Campos, que me

acompanham desde a Especialização, a primeira comigo também no Mestrado. Obrigada

pelos ouvidos atentos e pelos incentivos. À Márcia, especialmente, por partilhar comigo tudo

o que aprendeu durante o seu próprio caminho no Mestrado e agora no Doutorado.

À minha amiga Emilie Audigier, por estar sempre disponível para as minhas dúvidas

de língua francesa e por todas as palavras de incentivo em momentos de tanta tensão.

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À minha grande amiga Aparecida Maria Abranches, quase minha irmã, que foi a

primeira a me dizer para encarar esse processo, obrigada pelas horas de discussões ao telefone

ou na mesa de um bar – as últimas as melhores, ouso dizer. Suas ideias e análises de

professora doutora me esclareceram muitos pontos obscuros e muitas vezes me deram a

certeza de estar no caminho certo. Muito obrigada.

Aos queridos amigos que a vida me trouxe, muitos e especiais, obrigada.

À Ana Luísa Mello de Araújo, minha chefe e amiga de tantos anos, que entendeu que

eu precisava continuar estudando. Sem sua compreensão este trabalho não teria sido

realizado.

E, finalmente, ao meu pai, Geraldo Pereira de Barros, que carinhosamente e sempre

com muito cuidado revisou este trabalho. Segui os seus passos sem o saber e tenho muito

orgulho disso: o gosto pela leitura, pelas letras, pelas palavras bem-escritas; e à minha mãe,

Maria da Penha de Castro Barros, que me deu à luz uma segunda vez quando incentivou

minha saída de casa para estudar. Mãe, você não tem ideia do quanto isso foi importante.

Devo tudo a esse seu ato. Obrigada. E aos meus irmãos, Vinícius, Leonardo e Raquel,

obrigada pela jornada espiritual.

Um agradecimento especial a alguém que nos últimos momentos me disse a frase

certa, que me fez andar quando já não podia mais: “Débora, esse não é o trabalho da sua vida.

O trabalho da sua vida você faz todo dia, por isso escreva.” Tia Virgínia, nunca vou esquecer

essas palavras. Obrigada.

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A pessoa é para o que nasce...

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RESUMO

BARROS, Débora de Castro. As notas do tradutor como lugar discursivo: uma análise das notas de duas traduções brasileiras de O pai Goriot. Rio de Janeiro, 2009. Dissertação (Mestrado em Letras Neolatinas – Estudos Linguísticos Neolatinos – Opção Língua Francesa) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.

Esta pesquisa tem por objetivo analisar discursivamente as notas do tradutor (N.T.) de duas traduções brasileiras do romance de Honoré de Balzac, O pai Goriot, uma realizada pela Editora Globo em 1989, para a segunda edição, sob a coordenação de Paulo Rónai, e outra, mais recente, realizada pela Editora L&PM em 2006, por Celina Portocarrero e Ilana Heineberg. Usando como base teórica os conceitos da Análise de Discurso (AD) de Michel Pêcheux e os estudos de Michel Foucault sobre o poder, estes centrados no binômio poder-saber, o trabalho pretende revelar as imagens que os tradutores produzem nas N.T. a partir do seu discurso, bem como de que forma se apresenta seu poder-saber.

Palavras-chave: análise do discurso; processo tradutório; notas do tradutor; poder-saber; Michel Pêcheux; Michel Foucault

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RÉSUMÉ

BARROS, Débora de Castro. As notas do tradutor como lugar discursivo: uma análise das notas de duas traduções brasileiras de O pai Goriot. Rio de Janeiro, 2009. Dissertação (Mestrado em Letras Neolatinas – Estudos Linguísticos Neolatinos – Opção Língua Francesa) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.

Cette recherche a pour objet d’analyser discursivement les notes du traducteur (N.T.) de deux traductions brésiliennes du roman d’Honoré de Balzac, Le Père Goriot, la première réalisée par les Éditions Globo, en 1989, pour la deuxième édition, sous la coordination de Paulo Rónai, et la seconde, plus actuelle, réalisée par les Éditions L&PM, en 2006, par Celina Portocarrero et Ilana Heineberg. Utilisant comme support théorique les concepts de l’Analyse de Discours (AD) de Michel Pêcheux et les études de Michel Foucault sur le pouvoir, celles-ci centrées sur le binôme pouvoir-savoir, ce travail va révéler les images que les traducteurs produisent dans les N.T. à partir de leurs discours et la présence de leur pouvoir-savoir.

Mots-clés: analyse du discours; processus de traduction; notes du traducteur; pouvoir-

savoir; Michel Pêcheux; Michel Foucault

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 8

1 AS NOTAS DO TRADUTOR COMO LOCAL DE PRODUÇÃO DE DISCURSO 12

1.1 Notas do tradutor: que lugar é esse? 12 1.2 O lugar discursivo das notas dentro do processo tradutório:

a análise de discurso 19 1.3 As N.T. como local de produção de imagens 25 1.4 Paulo Rónai e A comédia humana 28

2 AS NOTAS DO TRADUTOR COMO LOCAL DE PODER-SABER 35 2.1 Arqueologia e genealogia: as duas fases dos estudos de Foucault 36 2.2 Poder-saber: o eixo da trama discursiva 40 2.3 O discurso do tradutor como espaço de exercício de poder,

de mostra de eruditismo, de saber 48 2.4 As N.T.: a “verdade” do tradutor 55

3 AS NOTAS DO TRADUTOR DE O PAI GORIOT 59 3.1 “O pai Goriot”, da Editora Globo, e O pai Goriot, da Editora L&PM 60 3.2 O quadro classificatório das notas 65 3.3 As N.T. das duas edições brasileiras de O pai Goriot 72 3.3.1 Primeira classificação: que tipo de saber as notas portam 74 3.3.2 Segunda classificação: a que as notas se referem 87 3.3.3 Casos especiais 103

CONCLUSÃO 108

BIBLIOGRAFIA 114

Apêndice QUADRO CLASSIFICATÓRIO DAS N.T. DE O PAI GORIOT 117

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INTRODUÇÃO

Os recentes estudos da tradução vêm ganhando crescente importância no meio

acadêmico. Trazendo uma nova perspectiva para pensar a tradução, eles a consideram

interdisciplinarmente, em que se relacionam disciplinas como as ciências sociais, a linguística

e mesmo a psicanálise. Isso porque são considerados aspectos como as identidades culturais,

as relações entre as línguas, para além das similaridades de significantes e significados, e o

papel que exerce a figura central desse processo, o tradutor, como sujeito discursivo, entre

outros.

Até bem pouco tempo, pensar a tradução quase que se restringia a vê-la como a

transmissão das ideias de um texto, o original – expresso na língua de partida –, em um outro

texto, o traduzido – expresso na língua de chegada. Assim, do tradutor era exigida uma

isenção textual, na qual ele deveria ser o mais fiel possível ao pensamento do autor, o que

dava à tradução um aspecto quase transcendental. Essa concepção – em que é esquecido o

papel do tradutor como sujeito de discurso –, que ganha vários matizes e que será chamada

nesta pesquisa de “tradicional”, ainda é a preconizada por muitos estudos da tradução e por

boa parte dos tradutores.

Não se questiona o fato de o texto traduzido ser um produto derivado do original.

Contudo, além de ele não trazer uma isenção textual, pois as palavras não trazem o

significado inscrito nelas, também não traz uma isenção discursiva, pois, como veremos, dois

textos similares, como são o original e sua tradução, apresentam em seu bojo dois discursos

diferentes.

Levando em conta essas duas linhas de pensamento sobre a tradução, esta pesquisa

pretende analisar o discurso do tradutor explicitamente expresso nas notas do tradutor

(doravante N.T.). Considera-se que seu discurso está presente em toda a tradução, no entanto

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se percebe que seu reconhecimento se dá nos paratextos da tradução: prefácios, introduções,

apresentações e notas de pé de página e de fim de capítulo. É nesses lugares que se configura

uma separação entre o discurso do autor, pretensamente acessado pelo tradutor e expresso no

texto da tradução, e o do tradutor, presente nos paratextos citados. Nestes, o tradutor pode

expressar sua opinião, fazer correções, intervenções e observações sem que a mensagem do

texto da tradução, pertencente ao autor, seja “maculada”.

Com essa finalidade, o foco deste trabalho será um olhar para a tradução diferenciado

do que a concepção dita tradicional tem. Tomando como suporte teórico a Análise de

Discurso (doravante AD) de Michel Pêcheux, o ato de traduzir será considerado como

processo tradutório, ou seja, como “um processo de produção de discurso” (Mittmann, 2003,

p. 11), e as notas serão analisadas como o lugar privilegiado de visibilidade do tradutor

(Venuti, 1994), onde inclusive elas ganham a marca N.T. Além disso, esse espaço textual e

discursivo será também considerado como expressão do poder-saber do tradutor, binômio

foucaultiano que apresenta o discurso das notas como local de saber e de expressão de poder.

Serão usadas, assim, como corpus as N.T. de duas traduções brasileiras de O pai

Goriot, romance de Honoré de Balzac, realizadas em épocas diferentes: aquelas presentes na

tradução da segunda edição dessa obra, de 1989, pela Editora Globo, realizada sob a

coordenação de Paulo Rónai, que possui 142 notas, e as de uma tradução mais recente,

realizada em 2006 por Celina Portocarrero e Ilana Heineberg para a Editora L&PM, a qual

possui 110 notas. No entanto, como objeto de análise e comparação, serão usadas da tradução

da L&PM somente as notas colocadas no mesmo local daquelas da tradução da Globo, ou

seja, o corpus primeiro e principal é o da edição coordenada por Paulo Rónai; as notas da

L&PM servirão de contraponto às de Rónai, com o objetivo de mostrar as diferenças de

discurso presentes nas N.T. das duas traduções realizadas em épocas distintas.

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Dessa forma, no primeiro capítulo, cujo título é “As notas do tradutor como local de

produção de discurso”, pretende-se apresentar uma discussão sobre as N.T. e o papel

desempenhado por elas em uma tradução, tendo como base o trabalho de Paulo Rónai

realizado na Comédia humana. Além disso, e este é o ponto mais importante, esse capítulo

apresentará uma das teorias com as quais esta pesquisa irá trabalhar, a Análise de Discurso de

Michel Pêcheux, os seus pontos mais relevantes e que interessam para uma análise do

processo tradutório. Será também trazido à discussão o discurso de Paulo Rónai sobre a

tradução, expresso em seu livro A tradução vivida, de 1981. Veremos que ele preconiza por

parte do tradutor a isenção textual de que se falou, configurando-se, assim, uma das

concepções tradicionais da tradução, em contraponto à concepção de processo tradutório que

será apresentada. O livro teórico de Paulo Rónai é importante, porque é ele o exemplo

principal nesta pesquisa do discurso do tradutor fora do ambiente da tradução, ou seja, ele se

apresenta como um metadiscurso da tradução.

No segundo capítulo, “As notas do tradutor como local de poder-saber”, serão

apresentados alguns aspectos da teoria foucaultiana do poder-saber e sua relação com o

discurso. Sendo o poder, para Foucault, disseminado em micropoderes, como ele se expressa

no discurso e, sobretudo, como se expressa no discurso do tradutor ao formular as N.T.? Que

saber ele corrobora? São perguntas que serão respondidas tendo sempre por base o discurso

de Paulo Rónai em seu livro A tradução vivida. O ponto importante deste capítulo é a relação

intrínseca e importante estabelecida entre poder-saber e discurso.

No terceiro, “As notas do tradutor de O pai Goriot”, será apresentada a parte empírica

desta pesquisa, a análise do corpus propriamente dita, levando em consideração as duas

teorias anteriormente apresentadas e tendo como suporte teórico também as análises

realizadas por Solange Mittmann em seu livro Notas do tradutor e processo tradutório –

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análise e reflexão sob uma perspectiva discursiva (2003). Mittmann revela-se muito

importante para este trabalho, porque, além de ter usado também como base teórica a AD

pêcheuxiana, suas análises são focadas nas N.T. Em seus estudos, são encontrados muitos

argumentos que confirmam o que percebemos em nossa pesquisa. Ainda aqui, será

apresentada a classificação das notas, cujo quadro completo encontra-se no Apêndice ao final

da dissertação.

No que será o quarto e último capítulo, será apresentada a conclusão. Chegando a esse

ponto, poderemos ter mais clareza quanto ao papel desempenhado pelas N.T., percebendo,

com a análise do corpus, que imagens são transmitidas pelo tradutor em seu discurso nas

notas, que efeitos discursivos elas suscitam, bem como de que forma o poder-saber dos

tradutores exerce efeitos sobre seu discurso. E esperamos que um dos objetivos desta pesquisa

seja alcançado: repensar o trabalho do tradutor através das N.T. produzidas por ele, com o

intuito de alçar a tradução a um outro patamar. Texto produzido tendo como matriz um outro,

sim, mas produzido com um discurso próprio, que não é o do autor. Processo de reescrita

textual, de retextualização, sobretudo de produção de discurso.

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1 AS NOTAS DO TRADUTOR COMO LOCAL DE PRODUÇÃO DE

DISCURSO

Traduzir pode ser uma operação pela qual se procura somente transportar o sentido do texto o mais exatamente possível, impor o Unívoco e estabelecer uma relação de controle, de autoridade, de fidelidade à Tradição e à transmissão em si. Mas pode e deve ser também um processo totalmente diferente, graças ao qual se coloca toda uma crítica e interpretação renovadas do texto, numa verdadeira abertura dialógica atenta ao equívoco, aos valores flutuantes das metáforas e das diferenças, (...) (Michaud, 2005, p. 122).

Como foi dito na Introdução, o objetivo desta pesquisa é desenvolver um outro olhar

sobre a tradução, diferente do correntemente entendido, de decalque e transposição do texto

original, para o de um texto que produz discurso. Nesse caso, tornar visível a voz do tradutor,

que trabalha diretamente sobre o texto original, tendo-o como matriz, produzindo efeitos

sobre ele, produzindo um outro texto, o da tradução. Daí observarmos que duas traduções de

um mesmo texto são diferentes, apesar da similaridade, e da mesma forma o discurso

produzido por elas.

Contudo, antes de adentrarmos essa discussão, é preciso lançar um olhar para o objeto

deste trabalho dentro da análise de traduções: as notas do tradutor, ou N.T.

1.1 NOTAS DO TRADUTOR: QUE LUGAR É ESSE?

Em geral, o lugar ocupado pelo texto das notas em uma tradução é no pé da página.

No entanto, segundo Henry:

espacialmente, ou tipograficamente, a nota pode ocupar diferentes posições: até a Idade Média, acontecia de ela vir dentro mesmo do texto. Era então frequentemente sinalizada por caracteres menores (corpo menor) ou diferentes (outra fonte). Em seguida, no século XVI, apareceram notas situadas na margem do texto, as notas marginais, ancestrais da nota de rodapé, ou nota de pé de página, que o uso consagrou no século XVII. Atualmente, além das notas marginais ou de pé de página, encontramos também notas colocadas em fim de artigo ou

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de capítulo, em fim de volume, até mesmo formando um volume especial. Os textos de pesquisa podem mesmo comportar um sistema de nível duplo, com notas de rodapé indicando um nome de autor ou uma data que remetem, por sua vez, a um corpo de notas bibliográficas mais completo em fim de artigo ou de livro. E encontramos também, na imprensa, notas entre parênteses no interior do texto dos artigos (2000, p. 229 – tradução nossa).

Nesse trecho, a autora descreve a disposição ao longo dos séculos não somente das

N.T., mas das notas de um modo geral. E o que podemos observar é que elas ou estão

colocadas à margem, de forma ampla (seja do lado do texto ou embaixo dele), ou, estando

dentro do texto, são de alguma forma destacadas dele, pelo uso de fonte diferente, corpo

menor ou parênteses. Por essa característica, de destaque, podemos pensar que as notas

ocupam sempre um lugar marginal, no sentido de estarem fora do texto original.

Pensando especificamente nas N.T., que papel elas desempenham em uma tradução?

Ou seja, já vimos que estão à margem do texto, conceito esse que será mais bem discutido

adiante, porém, no contexto de uma tradução, do trabalho do tradutor, qual é o seu papel,

considerando a tradução como produção de discurso?

Fazendo então um desvio, retomemos a tradução em si como ponto de partida para

analisarmos o papel das notas. Assim, quando pensamos no trabalho do tradutor, a primeira

questão que vem à mente é, necessariamente, o trabalho da tradução em si, ou seja, o de

transpor, de uma língua para outra, um texto escrito por alguém, o que configura a concepção

tradicional de tradução, de que traduzir seria transpor as ideias de um texto, o original, para

um outro texto em outra língua, o texto traduzido. Nesse caso, então, o papel do tradutor é

visto como secundário, porque esse profissional se revela como o instrumento que permite

que tal processo aconteça.

Entretanto, há outro caminho para considerarmos a tradução e, consequentemente, o

papel que o tradutor exerce nela: podemos seguir essa concepção tradicional ou, ao contrário,

considerar o ato de traduzir como processo tradutório, ou seja, como “um processo de

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produção de discurso” (Mittmann, 2003, p. 11), como “um processo de produção de um

discurso que se materializa no texto da tradução e que tem como especificidade partir da

leitura de um texto específico anterior, o texto original” (ibidem, p. 42). Tal concepção é a

adotada pela AD pêcheuxiana, e é com base nela que este trabalho pretende pensar a tradução

e também o papel que o tradutor exerce nesse processo, como explanado na Introdução.

Neste último caso, ao se considerar a tradução como processo tradutório, ou seja,

como processo de produção de discurso, o texto traduzido passa a portar um outro discurso,

aquele do tradutor, apesar de ter como base uma “matriz”. Contudo, independentemente de

qual posição se adote com relação à tradução, quem acaba por ficar em evidência, tanto para

as boas críticas como para as ruins, é o tradutor.

Mas esse “estar em evidência” não o revela de fato, porque seu papel é, na maioria das

vezes, visto como secundário em relação ao papel do autor ao produzir o texto original, isso

porque a concepção de que a tradução é a produção de um novo discurso não prevalece.

Assim, para que o tradutor seja visto, seja ouvido na sua própria voz, no seu próprio discurso,

e não como um eco da voz do autor, no sentido de que acessa a mensagem que este quer

transmitir, é preciso que seu discurso apareça. Isso quer dizer que, embora o texto traduzido já

seja um lugar de produção do discurso do tradutor, sua voz passa a ser reconhecida nos

prefácios, apresentações, isto é, nos paratextos, e, logicamente, nas notas do tradutor, em que

esse espaço de evidência ganha uma marca: a N.T. É na produção das notas que ele aparece

como produtor de um discurso dessa vez explicitamente seu; é nesse lugar que ele pode dar

sua opinião sobre o texto que traduz, fazer correções, mostrar conhecimento, ou simplesmente

interferir de alguma forma no texto. É nesse lugar que o tradutor se mostra como autor.

E se frisamos essa palavra – explicitamente – é para lembrar que, de acordo com a

concepção de processo tradutório, o discurso do tradutor está presente em todo o texto

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traduzido, pois nesse âmbito é impossível a esse profissional reproduzir tal e qual o texto

original, sendo o texto traduzido expresso através do seu discurso, um resultado do seu

discurso, de sua interpretação, mesmo se construído sobre uma matriz, que é o texto original.

No entanto, esse lugar explicitamente discursivo dado ao tradutor é visto como

marginal, ou seja, como não integrante do corpo do texto principal, a tradução. E o que é a

margem, na noção corrente, senão aquilo que está fora, que limita, que permeia, mas que não

se integra? Nesse caso, saindo do apagamento dado ao tradutor pela noção de que ele

reproduz o texto original, o lugar que lhe resta é à parte, fora, lugar que circunda, que

circunscreve, mas que não pertence ao que margeia. Será? Se a tradução é um processo

tradutório, de produção de discurso, ou seja, do discurso do tradutor, que é quem redige o

texto, e as notas são o local de evidência desse mesmo discurso, não serão estas uma

continuação do texto traduzido? E o que é a margem? Será mesmo o que está fora, o que

circunda, não tendo relação com o que está dentro a não ser aquela de limite? Se seguirmos o

pensamento de Derrida, é exatamente o contrário, pois

a margem não é um além, o que prescreveria o limite. Não é, por conseguinte, um “fora” (dehors) em oposição a um dentro (dedans). (...) O fora e o dentro se reescrevem e não se separam. A margem e o “marginalizado”, o “disseminado”, o “suplemento” e a possibilidade de ser da escritura (re)compõem o texto; mais do que exteriores a ele, são o “interior do interior”, razão de ser da estrutura que se deixa ler dentro (e) fora da superfície significante (Santiago, 1976, p. 57).

Se considerarmos esse modo de conceber a margem, local em que seriam colocados os

paratextos da tradução, e, logicamente, as N.T., estes passariam a fazer parte do que

teoricamente limitam, circundam, porque na verdade seriam uma extensão deste. E, por que

não?, já que, ao pensarmos a tradução como processo tradutório, como produção de discurso,

consideramos todo o texto traduzido como fruto do discurso de uma pessoa: o tradutor. E se a

tradução é fruto do seu discurso, e se as notas (e os outros paratextos) são o lugar onde esse

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discurso explicitamente aparece, as notas e a tradução seriam dois momentos de um mesmo

processo, dois lugares discursivos em que um origina o outro. Segundo Mittmann (2003, p.

119): “o tradutor não vai para fora dos limites do texto fechado [o da tradução], para produzir

um outro texto, o da N.T., mas apenas se estende, em resposta a uma determinada situação de

tradução”. E, mais adiante (p. 129): “O discurso da N.T. ocupa um lugar à parte, fora do texto

da tradução, e ao mesmo tempo é uma retomada de um elemento daquele texto, que é a

expressão a ser definida, comentada, etc. É uma extensão que, geralmente, cria a ilusão de um

fechamento de sentido.”

O interior e o exterior que se imbricam, se misturam, se complementam, não como

entes separados, mas como dois momentos de um mesmo processo. A margem (as notas de

tradução) e o marginalizado (o tradutor) seriam, nesse caso, “mais do que exteriores a ele, (...)

o ‘interior do interior’, razão de ser da estrutura que se deixa ler dentro (e) fora da superfície

significante”. Assim, o tradutor apresenta-se como aquele que, segundo Michaud, faz

“provavelmente uma das formas mais refinadas e superiores de leitura” (2005, p. 121). Ou

seja, é aquele que descortina o texto do autor, interpretando-o, esmiuçando-o, não para

resgatar seu pensamento, mas para virá-lo do avesso, trazer à tona uma outra “possibilidade

de ser da escritura” que vai recompor o texto. O tradutor vai ao “interior do interior”,

mergulha na alma do texto e transforma-o a partir desse contato, estando, nesse sentido,

totalmente imerso no processo. A isenção de si mesmo, de “exatidão” e de “fidelidade” ao

pensamento do autor do original, almejada na concepção corrente de tradução, é uma ilusão.

E aqui cabe um parêntese para falarmos um pouco dessa noção de “fidelidade”. As

concepções de tradução que a veem como reprodução do texto do autor, passagem da

mensagem da língua de chegada para a de partida, entre outras definições, pregam que o

tradutor deve ser “fiel” ao texto do autor, sobretudo ao seu pensamento, ao que ele quis dizer.

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Essa fidelidade vai variar em maior ou menor grau, mas está frequentemente ligada à letra e

seria uma das justificativas dos inúmeros paratextos que algumas traduções trazem, como é o

caso da Comédia humana. O próprio Paulo Rónai, ao falar dessa necessidade de fidelidade,

apresenta o tradutor como um eterno devedor do texto original, por não conseguir sempre essa

prerrogativa. Segundo ele,

o tradutor, esse modesto artista, “o único que se comporta como se fosse artesão”, procura justificar-se, em prefácios, esclarecimentos, advertências, notas, réplicas e posfácios, tentando a apologia, encarecendo a utilidade do próprio serviço, pedindo a compreensão e a paciência do leitor; e às vezes, consciente de sua culpa, implorando o perdão do autor (...) (1981, p. 25).

Ao comparar o tradutor a um “modesto artista” que “se comporta como se fosse

artesão” – mesmo que essa imagem hoje não seja tão forte, já que o trabalho artesanal está

saindo da marginalidade –, Rónai está lhe designando um lugar de somenos importância no

trabalho tradutório. Esse processo é falho, não chegará nunca à perfeição almejada, e por isso

o tradutor tem de fazer seu mea culpa. Isso em função de uma impossibilidade de fidelidade

completa, mas por falha do tradutor.

Contudo, pensando a tradução como processo tradutório, como se verá adiante, a

pretensa fidelidade, tão ardentemente almejada, cai por terra, pois a tradução passa a ser uma

interpretação, com todos os matizes de que esta é capaz.

Retomando o texto de Henry e a questão das N.T., a autora vai apresentar os tipos de

notas. Segundo ela:

(...) as duas principais categorias de notas são a nota autorial, nota do autor que vem acrescentar um ou dois dados em um espaço próprio, e a nota alográfica, isto é, redigida por um terceiro, editor (no sentido inglês do termo, ou seja, aquele que publica e/ou relê ou revisa o texto), tradutor, ou ainda glosador ou crítico (2000, p. 229 – tradução nossa, grifos do original).

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A nota autorial, como o próprio nome já diz, seria redigida pelo autor, e, portanto, se

se pensar no que foi dito antes, que as notas estariam à margem do texto, seria passível de

questionamento se essa nota seria realmente marginal, no sentido de não pertencer ao texto,

pois não seria escrita por um terceiro: ou seria redigida pelo próprio autor, assinada por ele, e

se configurando, neste caso, uma “continuação” do corpo do texto, ou então seria uma nota

escrita por um personagem do livro, tendo um caráter “falsamente paratextual”, segundo a

própria Henry (p. 230).

Já a nota alográfica é o cunho do objeto deste trabalho. Escrita por um terceiro,

normalmente, hoje em dia, é assinalada como sendo de outra pessoa (no caso das N.T., por

exemplo), tendo como característica o fato de fazer comentários críticos sobre a obra,

curiosidades linguísticas, dificuldades na tradução, etc.

Uma outra observação que a autora faz em seu texto e que se apresenta relevante para

este trabalho é o fato que motiva a presença ou não das N.T., especificamente, em um texto:

(...) a respeito das notas do tradutor, um dos elementos que determinam a presença de notas, sua abundância, seu tamanho e sua maior ou menor autonomia em relação ao texto é, com frequência, mais o tipo de edição de uma obra que o tipo da obra propriamente dita: assim, a edição “nua” dos poemas de Victor Hugo seria desprovida de notas, enquanto sua edição “erudita” comportaria todo um aparelho de notas críticas, dando detalhes biográficos, bibliográficos, históricos, sobre as diferentes versões sucessivas dos textos, etc. (2000, p. 230 – tradução nossa).

Como se verá por ocasião da menção à tradução da Comédia humana coordenada por

Paulo Rónai, a tradução dessa obra também se revela, segundo o texto de Henry, uma edição

“erudita”. Isso será observado em virtude das inúmeras notas e introduções, presentes na

tradução, a cada um dos romances, e inclusive em um capítulo inteiro dedicado à explicação

do processo de tradução, chamado “A operação Balzac”, de seu livro A tradução vivida. Tal

fato é corroborado ainda mais pela própria posição do professor Paulo Rónai em face da

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realização do trabalho: ele mesmo afirma em seu livro que foi chamado para coordenar a

equipe de tradução porque era “especialista em Balzac” (1981, p. 184) e defendera tese sobre

esse autor, segundo suas próprias palavras. Ou seja, veremos, antecipando o que será tratado

no próximo item, que o lugar de onde o sujeito fala diz muito sobre o tipo de discurso que

será produzido por ele e também sobre a maior ou menor legitimidade desse discurso. E sendo

a tradução um processo de produção de discurso, nada mais óbvio do que se levar em conta a

posição do produtor desse discurso, no caso, o tradutor.

Assim, é necessário considerar a perspectiva da AD, dessa vez com relação à posição

do sujeito em face do seu próprio discurso. E sujeito aqui não se refere a indivíduo, como

veremos no item seguinte, mas ao seu lugar discursivo: de onde fala, para quem, por quê, com

que objetivo. Vejamos.

1.2 O LUGAR DISCURSIVO DAS NOTAS DENTRO DO PROCESSO TRADUTÓRIO:

A ANÁLISE DE DISCURSO

Quando falamos em AD, temos de dizer a que escola a teoria se filia, porque há vários

tipos, com diferentes categorias. A AD do escopo teórico deste trabalho foi instituída por

Michel Pêcheux no final dos anos 1960, na França, e se caracteriza, principalmente, por trazer

em seu bojo três principais eixos pelos quais o discurso será considerado: o materialismo

histórico de Marx, o que se configura na ideologia como determinante para conceber e

produzir o discurso (o discurso sempre é ideológico, pois tem caráter inter e intrassocial); a

linguística, trazendo os estudos das teorias da língua, com seus processos sintáticos e de

enunciação; e o descentramento do sujeito, ou seja, o sujeito é permeado pelo próprio discurso

e pelo discurso dos outros, o que faz com que não esteja na posse do seu dizer. Nesse sentido,

há a contribuição de três grandes “ciências” para a formação da AD: as ciências sociais, a

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linguística e a psicanálise. Tais características dão à AD pêcheuxiana um caráter inovador, ao

configurar a linguagem como trama discursiva que perpassa o ser social que é o homem. Nas

palavras de Orlandi (2005, p. 15):

A Análise de Discurso, como seu próprio nome indica, não trata da língua, não trata da gramática, embora todas essas coisas lhe interessem. Ela trata do discurso. E a palavra discurso, etimologicamente, tem em si a ideia de curso, de percurso, de correr por, de movimento. O discurso é assim palavra em movimento, prática de linguagem: com o estudo do discurso observa-se o homem falando.

E aqui cabe uma distinção importante para a AD, antes de adentrarmos os outros

conceitos estabelecidos por ela: a distinção entre discurso e texto. Para esta, discurso não é a

transmissão de informações entre interlocutores, mas, sim, o que produz efeito de sentidos

entre eles. Já texto, nas palavras de Orlandi (ibidem, p. 63):

(...) é a unidade que o analista tem diante de si e da qual ele parte. O que faz ele diante de um texto? Ele o remete imediatamente a um discurso que, por sua vez, se explicita em suas regularidades pela sua referência a uma ou outra formação discursiva que, por sua vez, ganha sentido porque deriva de um jogo definido pela formação ideológica dominante naquela conjuntura.

O discurso é expresso materialmente no texto, e o texto, nesse sentido, manifesta o

discurso.

E considerando o discurso, para a AD ele é único e também é permeado por outros

discursos, no processo que Pêcheux denomina interdiscurso, ou seja, “o discurso não começa

nele mesmo, nem termina nele mesmo, mas remete sempre para outros discursos, anteriores

ou posteriores a ele” (Mittmann, 2003, p. 44). Da mesma forma, o discurso também remete

aos nossos próprios discursos, o que Pêcheux denomina intradiscurso, que é do campo da

formulação, do próprio sujeito, ou seja, o que se diz agora se relaciona também com o que foi

dito antes e será dito depois, mesmo que não nos lembremos. E para que esse discurso tenha

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lugar, para que seja eficaz e produza os efeitos de sentido de que é capaz, ele possui uma

memória, a memória discursiva. Esta está ligada diretamente ao interdiscurso, e sua eficácia

está no seu apagamento. É paradoxal, mas reproduzimos discursivamente o que sabemos sem

o sabermos que sabemos, porque está no nível dessa memória, que é esquecida. É o saber que

está na ordem do saber, na expressão foucaultiana, e também do não saber que constitui o

saber (ver capítulo 2).

Retomando o interdiscurso, deve-se considerá-lo em relação ao intertexto, dentro do

processo tradutório. O intertexto surge, no processo de tradução em si, quando o tradutor, para

traduzir, estabelece relações intertextuais com o texto original. No entanto, ao comentar a

tradução, por exemplo, o que se estabelece é a interdiscursividade: é um discurso sobre o

discurso, ou um metadiscurso.

Assim, pensando no processo tradutório, pode-se considerar que o texto das N.T.,

nosso objeto de análise, na verdade é o intradiscurso do tradutor, pois está no campo da

formulação subjetiva, vinculado ao interdiscurso, porque lança mão de outros discursos para

produzir o seu, e ao mesmo tempo é um intertexto, nas suas relações com o próprio texto da

tradução.

Como podemos perceber, interdiscurso e intertexto são paralelos, o primeiro

remetendo ao discurso no sentido corrente e o segundo, a obras propriamente ditas

(Maingueneau, 1998, p. 86-87). No caso das N.T., pode-se pensar nas relações

interdiscursivas como aquelas que se estabelecem com a apresentação de determinada

acepção retirada de um dicionário, por exemplo, e nas intertextuais como aquelas que

vinculam o texto da N.T. ao da tradução.

Pode-se perceber, dessa forma, que a noção de interdiscurso é importante, porque se

constitui na trama que sustenta todo o processo discursivo. O discurso é produzido com base

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no que temos consciência, mas também naquilo que aparentemente não sabemos. E, para

puxarmos o fio desse discurso, temos de historicizá-lo, para sabermos como ele foi produzido,

e daí como se estabeleceram as “verdades” estabelecidas acerca de determinado objeto e

também as imagens criadas a partir dessas verdades.

As imagens são da ordem do sujeito e estão ligadas às formações imaginárias, que são

as projeções que ele faz do lugar do outro, do seu lugar, da situação discursiva, pois

não são os sujeitos físicos nem os seus lugares empíricos como tal, isto é, como estão inscritos na sociedade, e que poderiam ser sociologicamente descritos, que funcionam no discurso, mas suas imagens que resultam de projeções. São essas projeções que permitem passar das situações empíricas – os lugares dos sujeitos – para as posições dos sujeitos no discurso (Orlandi, 2005, p. 40).

É o caso do discurso produzido sobre a tradução, por exemplo, de que esta é feita à

imagem e semelhança do texto original, de que tem o poder de “acessar” o pensamento do

autor, resgatar suas ideias presentes no texto. Isso tudo está em uma formação imaginária,

estabelecida a partir do discurso e consagrada na prática, ou seja, são imagens produzidas

sobre a tradução no discurso produzido sobre esse mesmo objeto e que acabam por suscitar,

por sua vez, outras imagens em quem produz o discurso. Por isso, estas são tomadas como

verdade e acabam regendo toda e qualquer concepção corrente sobre a tradução. No entanto, a

AD questiona essa concepção de tradução, e, mais do que isso, mostra que ela é apenas um

dos discursos que poderiam ter sido consagrados sobre ela. Para a AD de Michel Pêcheux, o

regime de “verdade discursiva” não existe, pois o discurso pode ser historicizado, na sua

formação (interdiscurso) e na sua formulação (intradiscurso), pois é perpassado pela

ideologia.

Isso é importante para retomarmos a questão da ilusão de que falava o item

precedente. A isenção do sujeito, pela perspectiva da AD, é impossível, pois ele estará sempre

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inserido em uma formação ideológica, pois, para a AD, “o sentido não existe em si mas é

determinado pelas posições ideológicas colocadas em jogo no processo sócio-histórico em

que as palavras são produzidas” (Orlandi, 2005, p. 42). A formação ideológica faz com que,

através do interdiscurso – ou seja, da memória discursiva que é apagada –, o sujeito não esteja

na posse do seu dizer, pois está inserido em uma formação discursiva, que “se define como

aquilo que numa formação ideológica dada – ou seja, a partir de uma posição dada em uma

conjuntura sócio-histórica dada – determina o que pode e deve ser dito” (idem, ibidem, p. 43).

Assim, para a AD, “o sujeito não é o indivíduo que fala ou escreve” (Mittmann, 2003,

p. 71), o que significa que “falar em sujeito, portanto, não é falar em indivíduo, e sim em uma

posição-sujeito a ser ocupada pelo indivíduo: a mesma posição-sujeito pode ser ocupada por

vários indivíduos, e um indivíduo pode ocupar várias posições-sujeito” (idem, ibidem). E a

posição-sujeito está inserida em uma determinada formação ideológica, que é refletida

diretamente no discurso produzido a partir da posição-sujeito ocupada pelo interlocutor.∗

Nesse caso, se o interlocutor fala a partir de um lugar, e seu discurso é produzido tendo por

base esse lugar, a noção de isenção, quer dizer, de “exatidão” e “fidelidade”, é rechaçada. E o

mesmo ocorrerá no caso do processo tradutório, pois o discurso do tradutor, como qualquer

outro discurso, será produzido a partir do lugar que ele ocupa na formação social,

considerando também a época histórica, social, ou seja, as condições de produção. Ainda

segundo Orlandi (ibidem, p. 30), as condições de produção

(...) compreendem fundamentalmente os sujeitos e a situação. Também a memória faz parte da produção do discurso. (...) Podemos considerar as condições de produção em sentido estrito e temos as circunstâncias da enunciação: é o contexto imediato. E se as considerarmos em sentido amplo, as condições de produção incluem o contexto sócio-histórico, ideológico.

∗ Uso interlocutor em um sentido amplo, podendo ser considerado não somente a pessoa com quem se fala, mas também aquele que produz o discurso com o qual se interage. No caso do tradutor, seu interlocutor é o autor do texto original – mesmo que a relação entre ambos seja somente textual, ou intertextual (ver acima) – e também, logicamente, o próprio leitor do texto traduzido.

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Considerando esses aspectos, a isenção preconizada pelo tradutor na concepção

tradicional de tradução se constitui em uma formação imaginária de língua, de que os sentidos

estão inscritos na materialidade discursiva e que basta ao tradutor resgatá-los. No entanto, as

palavras de uma língua estão inscritas, de fato, em uma dada formação discursiva, e é na

“formação discursiva que podemos compreender, no funcionamento discursivo, os diferentes

sentidos. Palavras iguais podem significar diferentemente porque se inscrevem em formações

discursivas diferentes” (idem, ibidem, p. 44). E essa formação discursiva está remetida a uma

determinada formação ideológica e também a formações imaginárias. Nesse caso, não há

sentido inscrito em palavras ditas. Este é produzido em uma dada formação discursiva, que

tem, como arcabouço, uma determinada formação ideológica, que, por sua vez, suscita

determinadas formações imaginárias, e essa formação de imagens ocorre em qualquer

produção discursiva e em qualquer posição-sujeito, pois sempre falamos a partir de um lugar,

construindo esse dizer com base nas imagens que formamos de nosso interlocutor, da situação

discursiva, do objeto do discurso e até de nós mesmos.

Trazendo essas reflexões para o trabalho do tradutor, foco desta pesquisa, pode-se

atentar para o fato de que traduzir é também considerar todas essas formações descritas

por Pêcheux e que interferem, formam, permeiam os discursos produzidos. O processo de

traduzir, ao se levarem em conta todas essas características do processo de produção de

um discurso, torna-se, assim, mais complexo do que se pensa, pois sai da materialidade da

língua para o âmbito da própria sociedade. Exemplo esclarecedor é dado por Orlandi no

mesmo livro já citado: “Por exemplo, a palavra ‘terra’ não significa o mesmo para um

índio, para um agricultor sem terra e para um grande proprietário rural. Ela significa

diferente se a escrevemos com letra maiúscula Terra ou com minúscula terra etc.”

(ibidem, p. 45).

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No seu trabalho, o tradutor muitas vezes deparará com esse tipo de questão. Algumas

vezes ele a resolverá no corpo do texto. Em outras, utilizará o recurso mais difundido no

meio: as N.T. Entretanto, o que se deve ter em mente é que esse uso das notas não é gratuito,

isto é, não há uma isenção do tradutor ao produzir as notas. Ao contrário, elas, como qualquer

outro discurso, produzirão imagens, do que já falamos um pouco. E é disso que trata o

próximo item.

1.3 AS N.T. COMO LOCAL DE PRODUÇÃO DE IMAGENS

Assim, retorno ao ponto em que a tradução, ou o processo tradutório, como aqui

tratada, é sempre o resultado de um trabalho de textualização do tradutor a partir daquele

realizado pelo autor, pois é fruto de sua (do tradutor) interpretação do texto original. Pode-se

considerar, nesse sentido, que esse profissional adquire um status de autor, esclarecendo, de

certa forma, por que um mesmo original vai produzir tantas traduções diferentes quantos

forem os tradutores, pois os discursos expressos nos textos são diferentes, dependendo das

condições de produção. O mesmo vale para as N.T. Isso será explicitado por ocasião da

análise das notas, no capítulo 3. Veremos que as N.T. das duas traduções utilizadas como

corpus, a realizada pela Globo e a da L&PM, contêm discursos muitas vezes diferentes.

E com relação à questão da produção de imagens, temos no conceito de formações

imaginárias, visto no item anterior, um dos pontos importantes da AD de Pêcheux, pois, para

esse autor, todo discurso será sempre produzido em função da imagem que fazemos do

interlocutor, da situação na qual estamos inseridos e até de nós mesmos nessa situação. Além

disso, as posições ocupadas pelos sujeitos – a posição-sujeito, como também vimos – nas

situações discursivas também serão determinantes para a produção do discurso: de onde falo,

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com quem falo, em que situação de discurso nos encontramos. Essas posições irão determinar,

de certa forma, a maior ou menor legitimidade do discurso produzido, sua maior ou menor

credibilidade. Pois o discurso também é legitimado em função de quem o produz; daí o saber

científico ser respaldado como o discurso da “verdade”, por ser produzido em uma dada

época, um dado lugar, por determinados sujeitos que ocupam determinadas posições-sujeito.

Desse modo, a posição que esses sujeitos ocupam faz com que esse discurso não seja

questionado e ocupe um lugar privilegiado em detrimento de outros, que não têm “respaldo

científico”. Ou seja, o discurso será respaldado pelo eixo poder-saber (expressão cunhada por

Michel Foucault): que lugar ocupo, que posição de poder é essa, e em função desse lugar, que

saber produzo? Isso será visto no próximo capítulo.

Trazendo essas questões para o campo discursivo no qual este trabalho se insere, o

campo da tradução, novamente a noção de fidelidade é questionada, pois, se o discurso é

sempre produzido através de imagens, logicamente que o discurso do tradutor também será

permeado por elas. A tradução produzida por ele será, assim, o resultado de sua interpretação,

mas também será recortada pelas imagens que o tradutor produz do texto original, remetido,

seja dito, à cultura no qual está inserido, à época em que foi produzido. Nesse sentido, todo

discurso é produtor de imagens, e a tradução, como discurso, também produzirá as suas.

Esse ponto é importante porque, no caso da tradução, logicamente quem faz esse

processo acontecer é o tradutor, por meio do seu discurso, que está presente em toda a

tradução, mas que claramente se mostra no local por excelência de visibilidade: as notas do

tradutor.

Cabe aqui um parêntese sobre a noção de fidelidade. O regime de fidelidade textual é

altamente reivindicado em termos de tradução. Correntemente se diz que uma tradução é ruim

porque não “seguiu” tal e qual o texto original, e alguns críticos chegam a ponto de questionar

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por que as palavras não são quase as mesmas, expressas na materialidade textual, algo que se

configura inaceitável. Esse caminho, de preconizar uma “fidelidade” ao texto original, revela-

se impossível pela perspectiva da AD, pois, se esta “considera que a linguagem não é

transparente” (Orlandi, 2005, p. 17), o sentido não está presente nas palavras, mas é produzido

no próprio discurso, considerando suas condições de produção, as formações discursiva e

ideológica nas quais se insere e levando em conta que todo discurso tem efeitos de sentido em

seus interlocutores, que produzem imagens de todo o processo discursivo. Nesse sentido,

buscar uma fidelidade em termos de tradução é exigir do tradutor que ele resgate do texto a

“mensagem” que o autor queria passar (posição adotada por Paulo Rónai, como veremos

adiante), é eliminar o sentido de tradução como interpretação, pessoal e intransferível. Tal

processo, de acordo com a AD, se mostra falso e inconsistente.

Voltando às N.T., elas são o local de evidência do discurso do tradutor, expresso na

materialidade textual, isso é claro, o lugar onde ele se mostra, onde aparece, onde se deixa

ver, mas também o lugar onde pode mostrar seu conhecimento, dar opiniões, fazer correções

ou observações sobre o texto original, e, também, o lugar explícito no qual ele se dirige ao

leitor. E, por meio das suas escolhas, do que ele observa ou não, do que remarca, corrige,

ressalta, o tradutor mostra, em maior ou menor grau, que imagens ele produz do leitor a quem

se dirige a obra traduzida ao redigir as notas, que leitor é esse, além de produzir, através do

seu discurso presente no texto das notas, imagens de si mesmo e da tradução que realizou,

bem como do autor e da obra. Essas imagens serão responsáveis por suas escolhas

discursivas, pois guiarão seu discurso em uma direção ou outra dependendo de a quem ele se

dirige, com que objetivo, em que época. Nesse sentido, trata-se de analisar quem é esse

tradutor, como ele se apresenta, não esquecendo que as N.T. também são o lugar de

legitimação do seu discurso, lugar de instituição do saber.

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Levando em consideração esses pontos, veremos no item seguinte como o tradutor

produz essas imagens mediante a análise do discurso do professor Paulo Rónai, quando

discorre sobre a tradução em seu livro A tradução vivida.

1.4 PAULO RÓNAI E A COMÉDIA HUMANA

Já que estamos tratando do discurso do tradutor, vamos considerá-lo in loco, tanto nas

N.T., objeto principal desta dissertação e que será visto no capítulo 3, como nas palavras de

um dos mais consagrados teóricos e tradutores do Brasil: o professor Paulo Rónai,

coordenador da tradução da obra completa de A comédia humana, de Balzac.

As N.T. presentes na Comédia humana traduzida pela Editora Globo constituem-se em

um corpus riquíssimo quando se trata de analisar o discurso do tradutor, pois totalizam 12 mil,

distribuídas nos 89 romances da obra. Para esta dissertação, como foi dito na Introdução, serão

usadas como corpus as N.T. de duas traduções brasileiras de O pai Goriot, romance de Balzac,

realizadas em épocas diferentes: aquelas presentes na tradução da segunda edição desta obra, de

1989, pela Editora Globo, realizada sob a coordenação de Paulo Rónai, que possui 142 notas, e

as de uma tradução mais recente, de 2006, realizada por Celina Portocarrero e Ilana Heineberg

para a Editora L&PM, a qual possui 110 notas. No entanto, como recorte epistemológico para a

análise, mostrou-se mais interessante utilizar da L&PM somente as notas redigidas no mesmo

local das da Editora Globo, para dessa forma poder comparar os discursos de diferentes

tradutores realizados em épocas diferentes. Dessa forma, a análise empírica deste trabalho será

centrada no discurso das notas da Editora Globo. Elas serão o ponto de partida.

Antes, porém, é preciso ressaltar que analisar o discurso do tradutor na tradução da

Comédia realizada sob a coordenação de Rónai é muito mais do que analisar as notas ligadas

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ao texto traduzido, porque, no caso dessa obra, uma equipe de tradutores se reuniu por 15

anos para fazer o trabalho, sob a supervisão e orientação do professor Paulo Rónai, que, no

entanto, foi quem redigiu as N.T. Isso significa que, antes de mais nada, Paulo Rónai assume

a posição do tradutor, ou seja, ocupa a posição-sujeito do tradutor, pois é ele quem assume o

lugar onde o discurso desse profissional se revela, quando redige as N.T. É seu nome que

sobressai quando se fala da tradução da Comédia, e muitas pessoas pensam que foi ele mesmo

quem a traduziu. Contudo, como ele mesmo afirma em seu livro:

(...) A versão brasileira foi obra de uma equipe composta de mais de vinte tradutores. Mas coube-me organizar a edição, isto é, estabelecer o plano geral, escolher parte dos tradutores, cotejar e anotar toda a tradução, redigir prefácios para cada uma das 89 obras que a compõem e escrever uma extensa biografia de Balzac, selecionar a documentação iconográfica, reunir uma espécie de antologia da literatura crítica sobre Balzac, compilar índices e concordâncias para o volume final (1981, p. 179).

Dessa forma, analisar as notas da Comédia configura-se analisar o discurso do

“tradutor” Paulo Rónai, mesmo que de fato ele não tenha feito a tradução, mas a

supervisionado. Assim, é interessante notar como esse autor vê a tradução, o que pode ser

observado no livro escrito por ele, A tradução vivida. Nesse livro, ele consegue abordar a

profissão de tradutor de forma direta e clara, dando exemplos não só em francês e em inglês,

mas também em outras línguas, e tratando dos problemas advindos da profissão: desde a

questão da escolha dos significados até as características que um bom tradutor deve ter,

segundo sua opinião. Para ele, a tradução é a “reformulação de uma mensagem num idioma

diferente daquele em que foi concebida” (1981, p. 16). Quer dizer, o autor tem uma

concepção tradicional do ato de traduzir, em que o tradutor é um “transmissor” da mensagem

do autor, pois, para reformulá-la, certamente ele teria de apreendê-la. Como afirma ele:

(...) todo texto é alguma coisa mais do que a simples soma das palavras que o compõem. O que devemos traduzir é sempre algo mais, isto é, a mensagem. E não há duas línguas que exprimam uma mensagem de certa complexidade de modo completamente igual. A língua A

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ora explicita algo que na língua B fica subentendido; ora deixa de exprimir, por óbvio, algo que naquela exige uma ou várias palavras (1981, p. 78 – grifo nosso).

Ou seja, para Paulo Rónai, o tradutor é capaz de apreender a mensagem do autor,

devendo transmiti-la tal e qual este quis passar, adaptando-a à estrutura da língua de chegada.

Na sua opinião, o que pode atrapalhar tal processo é a diferença entre as línguas, pois, em

função de estruturas e léxicos distintos, impediria que a mensagem fosse completa e

claramente passada ao leitor.

Atentemos para o fato de que tal concepção de tradução é a correntemente preconizada

pelos leigos e também por inúmeros teóricos. E, sendo assim, podemos supor que ela faça

parte do interdiscurso sobre a tradução, ou seja, discursos que reproduzem outros discursos

sem que se saiba, porque estão inscritos em uma memória discursiva que foi apagada. E essa

memória teria origem em uma concepção de língua marcada pela tradição filológica de que as

palavras carregariam em si o seu significado, tornando possível ao bom tradutor resgatá-lo.

Nesse sentido, se para Rónai o tradutor consegue transmitir a mensagem do texto

original, sendo o único empecilho ao êxito desse processo as diferenças linguísticas, pode-se

concluir que, para ele, os significados estão presentes de alguma forma no texto, inscritos

nele, e que basta ao tradutor tomá-los e “reformulá-los” do texto original. Ele não leva em

conta que o tradutor traduz a partir da leitura pessoal do texto, ou seja, que o texto produzido

por ele não porta o sentido, a mensagem do que o “autor quis dizer”, mas esse sentido é

produzido no processo discursivo, a partir da interpretação pessoal do texto realizada pelo

tradutor.

Voltando à Comédia humana e às N.T., Paulo Rónai, ao discorrer sobre o trabalho que

desenvolveu em sua tradução, trabalho esse que ele denomina “operação Balzac”, sendo este

um dos capítulos do seu livro, justifica com as seguintes palavras a produção das N.T. para a

supracitada obra:

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(...) pareceu-me que a distância que em espaço e tempo separava a França da Comédia Humana do Brasil de então era tamanha que exigia numerosas notas de pé de página. E já que me propunha a redigir essas notas, poderia, ao mesmo tempo, fazer um cotejo entre o texto original e as traduções (1981, p. 185).

Como se vê, ele justifica as inúmeras notas em função das diferenças, sobretudo

temporais, entre os dois países, mas também culturais, já que fala em espaço. Pode-se

considerar que Paulo Rónai produz “imagens” da França dos romances, mas também do

Brasil da época da tradução, o que justificaria as inúmeras notas, pois, como veremos adiante,

segundo ele, o leitor precisa ser esclarecido em inúmeros pontos para que sua leitura da obra

seja bem-sucedida. Nesse sentido, ele também produz uma imagem de leitor a quem dirige as

notas. Ou seja, todo e qualquer discurso é produzido com base em “imagens” que produzimos

da situação, do objeto do discurso, do interlocutor e até de nós mesmos, como já foi dito.

Mais adiante, há um comentário mais esclarecedor sobre as notas:

Uma palavra agora a respeito das notas de pé de página. A Comédia humana está tão cheia de alusões a instituições, acontecimentos, fatos, romances, peças e poesias da época, além de referências incessantes às artes das épocas anteriores, especialmente da Antiguidade clássica e da mitologia greco-romana, que a sua elucidação se tornava indispensável. Não convinha arriscar que a falta dessas explicações indispusesse o leitor com a obra; era bem pouco provável que ele mesmo se entregasse a pesquisas para esclarecer tantos trechos (1981, p. 189).

É interessante notar que, para Paulo Rónai, o fato de a tradução não conter explicações

das “instituições, acontecimentos, fatos, romances, peças e poesias da época” poderia

“indispor” o leitor com a obra. Vê-se, a partir daí, que o autor produz algumas “imagens” do

leitor a quem a sua tradução se dirige; nesse caso, a de um leitor ávido de conhecimento, mas

que não se entregaria “a pesquisas para esclarecer tantos trechos”, segundo nossa

interpretação∗ um leitor passivo, que espera um texto totalmente esmiuçado e que não ofereça

∗ Se grifo aqui esta expressão é para lembrar que o tempo todo eu também – como leitora de Paulo Rónai e das N.T. redigidas por ele para a Comédia –, de acordo com a AD, estou produzindo imagens do meu interlocutor, e que essa leitura que faço de seu discurso é apenas uma das leituras possíveis, e em momento algum pode ser tida como um regime de verdade.

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resistência à sua leitura. Ou seja, é a esse leitor imaginário, concebido por ele, que a tradução

da Comédia se dirige, e é para ele que as inúmeras N.T. são redigidas.

Em outro trecho de seu livro, Rónai fala um pouco mais desse leitor a quem as notas

são dirigidas:

Outro tipo de notas respeita às personagens e seus antecedentes. Nenhum leitor comum, ainda menos os de hoje, impacientes e solicitados por mil interesses, seria capaz de trazer na cabeça a biografia e os aparecimentos anteriores desta ou daquela personagem. Daí os vários cadastros e repertórios já publicados na França que constituem o Who’s who? do mundo balzaquiano. (...) Como a tradução e adaptação dessas obras seria muito trabalhosa além de pouco prática, pois raros leitores teriam a paciência de compulsá-las a cada passo, resolvi eu mesmo registrar os antecedentes dos protagonistas quando reapareciam pela primeira vez num novo romance. Por outro lado, distinguiria as personagens reais das fictícias (1981, p. 190-191 – grifos nossos).

Nesse trecho, podem-se verificar outras imagens produzidas por Rónai do leitor a

quem se dirigem as notas da Comédia. As expressões grifadas – leitor comum; os de hoje,

impacientes e solicitados por mil interesses; raros leitores; paciência – revelam a impressão

de um leitor, primeiramente, que não tem o saber que ele, professor Rónai, especialista em

Balzac, possui; daí a expressão leitor comum. Em seguida, revelam também como esse leitor

da época dele se apresenta a Rónai: os de hoje, impacientes e solicitados por mil interesses,

ou seja, um leitor que não teria tempo de se debruçar minuciosamente sobre o texto de Balzac,

pesquisar, tomar notas, ligar os fatos e acontecimentos dos vários romances e personagens da

Comédia. Aqui se observa que o professor busca no leitor das notas uma cumplicidade. De

certa forma, ele quer que esse leitor também tenha um conhecimento da obra balzaquiana,

compartilhado por ele, algo que lhe é impedido pelos tempos de hoje, pela impaciência e

inúmeras solicitações da vida atribulada do mundo atual (da época da tradução da obra).

As duas outras expressões – raros leitores e paciência – se coadunam com as duas

primeiras. Raros leitores remete a leitor comum. São aqueles que se lançam a pesquisas ou

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têm um interesse profundo nos meandros da obra balzaquiana. Por isso são raros, porque a

obra, na verdade, é lida por leitores comuns, em sua maioria, que leem apenas por prazer. Já

paciência remete a impacientes e solicitados por mil interesses, ou seja, os leitores de hoje, os

que não têm tempo para se lançar a um desenredar da Comédia. É a todos os leitores que as

N.T. dessa tradução se dirigem, para lhes acrescentar conhecimento, mergulhá-los mais fundo

no mundo balzaquiano, suscitar-lhes interesses maiores.

Assim, voltando ao que pensa Rónai sobre a tradução, se o tradutor, em uma visão

mais tradicional da tradução, como a dele, é visto como capaz de apreender a mensagem do

autor, como enfatizei anteriormente, ele também deve ter a capacidade de conduzir o leitor

até o pensamento do autor. Assim, pode-se entender que o número expressivo de N.T. da

Comédia contém a ideia de que o leitor também deve ser conduzido “pela mão” a um

conhecimento que ele supostamente – quer dizer, não necessariamente, mas a partir da

imagem que o tradutor faz desse leitor – não possui. Paulo Rónai diz exatamente isso em

seu livro A tradução vivida: “...é ao leitor que o tradutor pega pela mão para levá-lo para

outro meio linguístico que não o seu” (p. 20 – grifo nosso). Assim, levado pela mão, como

se faz com uma criança, o leitor passa a ser infantilizado, ou seja, em uma interpretação, na

visão de Paulo Rónai ele não tem capacidade, maturidade ou vontade suficientes para buscar

esse conhecimento, se este realmente lhe convier. Nesse sentido, a imagem que esse autor

tem do leitor de uma tradução é a de um sujeito passivo, que se deixa conduzir; assim, esse

leitor seria simplesmente o receptáculo das informações do texto que lê, informações essas

que habilmente o bom tradutor teria a mestria de revelar, apresentar ao leitor, e que

pertencem ao autor, sendo o tradutor um mero “canal” do pensamento do autor. Não se

menciona o fato de que esse leitor também vai produzir uma leitura pessoal do texto, e,

consequentemente, produzir um discurso e uma interpretação desse texto, e, o que é

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fundamental, tal leitura partirá do texto produzido pelo tradutor, e não mais do texto original

do autor.

Voltando às notas, elas também acabam por eliminar a possibilidade de interpretação

do texto pelo leitor, em alguns casos, pois a interpretação será aquela do tradutor. Assim, esse

leitor produzirá seu discurso, sua interpretação, emoldurado pelas explicações do tradutor.

Sua interpretação, então, passará, de certa forma, a ser “guiada” pelo próprio tradutor.

Por outro lado, as N.T., de fato, descortinam um universo de saberes, esclarecem

dúvidas, ampliam o conhecimento de um leitor que talvez não conseguisse por si só buscá-lo,

muitas vezes não por falta de vontade, mas por falta de tempo, ou de acesso a informações.

Ou então despertam nele um desejo de saber mais que não seria produzido caso as N.T. não

existissem no texto.

Contudo, além de produzirem imagens, as N.T. também se apresentam como local de

poder-saber, em que o tradutor pode apresentar seus conhecimentos, intervenções, ou seja,

pode exercer seu poder através do seu saber. Será essa a abordagem do próximo capítulo.

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2 AS NOTAS DO TRADUTOR COMO LOCAL DE PODER-SABER

Ora, o que esses intelectuais descobriram (...) é que as massas não necessitam deles para saber; elas sabem perfeitamente, claramente, muito melhor do que eles; e elas o dizem muitíssimo bem. Mas existe um sistema de poder que barra, interdita, invalida esse discurso e esse saber. Poder que não está apenas nas instâncias superiores da censura, mas que se enterra muito profundamente, muito sutilmente em toda a rede da sociedade (Foucault, [1972] 2006, p. 39).

No capítulo anterior, foram apresentados os conceitos da Análise de Discurso de

Michel Pêcheux para construir uma análise do processo tradutório, tendo como exemplo do

discurso do tradutor o de Paulo Rónai, explanado principalmente em seu livro A tradução

vivida. Neste capítulo, como contraponto à AD, vamos apresentar como suporte teórico as

considerações de Michel Foucault sobre o poder.

Foucault não empreendeu uma análise da tradução, tema desta pesquisa. Entretanto,

seu trabalho sobre as articulações do poder pode servir de base para se examinar o discurso do

tradutor explanado nas N.T. Nesse caso, o lugar discursivo das notas será visto como local de

poder-saber, expressão foucaultiana que abarca o seu olhar sobre a sociedade e suas

transformações. Afinal, segundo o próprio autor, em A vontade de saber (2007, p. 18), “o

poder penetra e controla o prazer cotidiano – tudo isso com efeitos que podem ser de recusa,

bloqueio, desqualificação, mas também de incitação, de intensificação, em suma, as ‘técnicas

polimorfas do poder’”. E se o poder possui várias formas, se permeia o cotidiano em

múltiplas atuações, seu polimorfismo também é expresso no discurso, tanto cotidiano como

acadêmico, tanto corrente como legitimado.

E é deste último que este capítulo irá tratar: do discurso do tradutor – legitimado pela

posição que este ocupa – sobre a tradução e expresso nas N.T. Que poder esse discurso irá

engendrar e que saber está ligado a esse poder? Ou melhor: como a relação poder-saber

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legitima esse discurso e como o tradutor, mesmo sem o saber, vale-se dessa prerrogativa,

desse lugar que ele ocupa para produzir o seu discurso nas notas? Que papel as N.T.

desempenham em uma tradução? Que efeitos de poder elas suscitam? Essas são algumas das

questões que serão respondidas, utilizando como suporte teórico as formulações de Michel

Foucault.

2.1 ARQUEOLOGIA E GENEALOGIA: AS DUAS FASES DOS ESTUDOS DE

FOUCAULT

O objeto deste trabalho não são os estudos filosóficos e históricos de Foucault, por

isso não entraremos a fundo em suas análises. No entanto, mostra-se necessária uma

abordagem de como se processou seu desenvolvimento epistemológico, até se chegar ao

ponto de interesse para esta pesquisa: a teoria em torno do poder.

Os estudos de Foucault são divididos em duas fases: a arqueologia e a genealogia, ou

seja, a arqueologia do saber e a genealogia do poder.

Segundo suas próprias palavras, ele entende por “‘arqueologia do saber’ (...) o

balizamento e a descrição dos tipos de discurso” ([1973], 2006, p. 49), isto é, o “termo

‘arqueologia’ remete, então, ao tipo de pesquisa que se dedica a extrair os acontecimentos

discursivos como se eles estivessem registrados em um arquivo” ([1978], 2006, p. 257). A

arqueologia será responsável pela detecção dos discursos e de sua formação histórica em um

determinado campo de saber: como, em um determinado campo, dado discurso se formou;

como surgiu e se configurou um discurso legitimado sobre determinado assunto. O discurso,

dentro da arqueologia, possui uma ordem, uma normatividade – a ordem do discurso –, que

ultrapassa as categorias linguísticas e normativas da língua. Essa ordem ou norma tem

inserção histórica ou social. E é assim que o autor, analisando os discursos sobre a loucura, a

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sexualidade, a medicina, por exemplo, vai mostrar como foi sua formação histórica, como eles

se modificaram, em quê, em qual momento. A partir desse estabelecimento de suas trajetórias,

será possível, assim, detectar seu aparecimento em determinado momento histórico e suas

influências no campo social. Pois, para Foucault, o que interessa,

no problema do discurso, é o fato de que alguém disse alguma coisa em um dado momento. Não é o sentido que eu busco evidenciar, mas a função que se pode atribuir uma vez que essa coisa foi dita naquele momento. Isto é o que eu chamo de acontecimento. Para mim, trata-se de considerar o discurso como uma série de acontecimentos, de estabelecer e descrever as relações que esses acontecimentos – que podemos chamar de acontecimentos discursivos – mantêm com outros acontecimentos que pertencem ao sistema econômico, ou ao campo político, ou às instituições ([1978], 2006, p. 255-256).

Podemos estabelecer aqui um liame com o capítulo anterior. Se o que interessa no

“problema do discurso é o fato de que alguém disse alguma coisa em um dado momento”,

pode-se remeter tal assertiva à configuração do que, na AD pêcheuxiana, é chamado de

posição-sujeito.

A posição-sujeito não remete a um lugar subjetivo, individual, mas à posição que o

indivíduo ocupa para dizer o que diz. Insere-o, assim, em um contexto social que determina o

que pode e deve ser dito, de que forma, em que momento, por quem. Isso quer dizer que essa

posição-sujeito sofre assujeitamento, pois está ligada à forma-sujeito histórica, isto é, em um

dado momento histórico, é a partir da forma-sujeito histórica que as posições-sujeito surgem e

se apresentam. Segundo Orlandi (2005, p. 50): “A forma-sujeito histórica que corresponde à

da sociedade atual representa bem a contradição: é um sujeito ao mesmo tempo livre e

submisso. Ele é capaz de uma liberdade sem limites e uma submissão sem falhas: pode tudo

dizer, contanto que se submeta à língua para sabê-la.” Nesse sentido, a forma-sujeito histórica

submete os indivíduos, em suas posições-sujeito, ao discurso, que, por sua vez, ganha maior

ou menor legitimidade dependendo do lugar e da posição social que o produtor do discurso

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ocupar – isto é, da posição-sujeito. E é esse grau de legitimação que vai fazer com que

determinado discurso, produzido em determinada época e por determinada pessoa ou grupo de

pessoas, remetidas a uma dada inserção social, ganhe legitimação tal que seja tomado como

regime de verdade. É esse estabelecimento de determinados regimes de verdade (o discurso

sobre a loucura, a sexualidade, a prisão) que é o objeto de estudos da arqueologia

foucaultiana.

Novamente aqui podemos remeter ao capítulo anterior. Como foi dito no item 1.3

desse capítulo, não existe um “regime de verdade discursivo”. A verdade é produzida pelo e

no discurso, e o que Foucault procura mostrar é que essas “verdades” podem se modificar a

partir do momento em que as regras de formação dos discursos que “portam” essas supostas

verdades são modificadas. Falaremos sobre a “verdade discursiva” mais adiante neste

capítulo.

E se o discurso produz “efeitos de verdade”, está, por sua vez, permeado pelos efeitos

de poder que percorrem todo e qualquer discurso. E aqui anunciamos a nova fase dos estudos

de Foucault. Depois da arqueologia do saber, a genealogia do poder. Contudo, estas não são

estudos estanques, mas instâncias que se entremeiam, imbricam, resultando na expressão

foucaultiana que resume suas pesquisas: o poder-saber.

A noção de poder para Foucault difere do que entendemos correntemente por poder.

Não se trata de algo simplesmente repressivo; ele está pulverizado no tecido social, em todas

as instâncias, bem como nas produções discursivas. Segundo suas próprias palavras: “O poder

não opera em um único lugar, mas em lugares múltiplos: a família, a vida sexual, a maneira

como se tratam os loucos, a exclusão dos homossexuais, as relações entre os homens e as

mulheres...” ([1973], 2006, p. 262). Nesse sentido, o poder é produtor: de individualidade, de

mais poder, de segregação mas também de junção. Ele não vem de cima, mas se espraia,

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configurando-se em um micropoder, que é mais eficaz que o poder reconhecido como

autoritário – mais eficaz porque não é localizável.

Foucault parte das instâncias discursivas tratadas em sua arqueologia para descobrir

nelas esse agenciamento de poder insidioso e permanente. Um poder que coage os saberes,

mantendo-os em uma teia discursiva que “seleciona”, por assim dizer, quais saberes devem ou

não ganhar legitimidade. Segundo ele, quando se elege um saber, ou um discurso – o

científico, por exemplo –, como o saber legítimo, desqualifica-se, em contrapartida, um outro

que não pode ganhar esse estatuto. Nesse sentido, a produção de saberes está sempre em uma

relação dialética com a desqualificação também de saberes. De acordo com o autor:

“Enquanto a arqueologia é o método próprio à análise da discursividade local, a genealogia é

a tática que, a partir da discursividade local assim descrita, ativa os saberes libertos da

sujeição que emergem desta discursividade” (1979, p. 172).

Portanto, o que Foucault pretende com sua genealogia é trazer à tona esses saberes não

legitimados e desqualificados pelo poder. É descobrir, perceber os efeitos de poder que são

expressos nesses discursos, que fazem com que a trama discursiva seja permeada pelo

binômio poder-saber. Ainda em suas palavras:

A genealogia seria portanto, com relação ao projeto de uma inscrição dos saberes na hierarquia de poderes próprios à ciência, um empreendimento para libertar da sujeição os saberes históricos, isto é, torná-los capazes de oposição e de luta contra a coerção de um discurso teórico, unitário, formal e científico (1979, p. 172).

Pode-se observar, então, que para Foucault saber e poder são inseparáveis. E se o

poder muitas vezes se expressa através do saber, como no caso dos discursos científicos, o

saber, por sua vez, tem sua expressão maior no discurso, e daí este se torna a unidade de

análise da qual Foucault parte na consideração dos seus objetos de estudos:

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Eu parto do discurso tal qual ele é! Em uma descrição fenomenológica, se busca deduzir do discurso alguma coisa que concerne ao sujeito falante; tenta-se encontrar, a partir do discurso, quais são as intencionalidades do sujeito falante – um pensamento em via de se fazer. O tipo de análise que pratico não trata do problema do sujeito falante, mas examina as diferentes maneiras pelas quais o discurso desempenha um papel no interior de um sistema estratégico em que o poder está implicado, e para o qual o poder funciona. Portanto, o poder não é nem fonte nem origem do discurso. O poder é alguma coisa que opera através do discurso, já que o próprio discurso é um elemento em um dispositivo estratégico de relações de poder ([1978], 2006, p. 253 – grifos nossos).

Assim, se o poder faz parte da trama discursiva, se ele a perpassa sem ser sua origem,

o que há na relação discurso-poder-saber é, pode-se supor, um mecanismo de

retroalimentação, em que as três instâncias engendram umas às outras, autorregulando-se,

autoproduzindo-se e produzindo, por sua vez, efeitos na trama social. Um saber que é

expresso em um discurso legitimado por um determinado poder. E é exatamente disso que

trataremos no tópico seguinte: o saber expresso pelo discurso do tradutor legitimado pela

posição que ele ocupa nesse campo de saber. Ou seja, de que forma o poder-saber perpassa o

discurso do tradutor, objeto desta dissertação?

2.2 PODER-SABER: O EIXO DA TRAMA DISCURSIVA

No capítulo anterior, foram apresentadas as N.T. como local discursivo, em que o

tradutor pode se expressar legitimamente, em que fica evidente e efetivamente produz

discurso. Mostrou-se também que, de acordo com a AD de Michel Pêcheux, todo discurso é

permeado por imagens produzidas pelos interlocutores, no e a partir do discurso produzido

por eles. Assim, o mesmo ocorre com o discurso expresso nas notas: elas são emolduradas por

imagens produzidas pelo tradutor – imagens do autor do texto original, da obra que está sendo

traduzida, do leitor a quem se dirige o texto, do seu próprio papel desempenhado de tradutor.

Mostrou-se, assim, que o discurso é expresso pela posição-sujeito do interlocutor: quem fala,

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de onde fala, a quem se dirige. Contudo, esse lugar discursivo, essa posição-sujeito também

pode se expressar de outra forma, como local de poder-saber: a partir do lugar que se ocupa,

que saber é expresso através do poder legitimado por esse lugar? Mais claramente: como a

posição-sujeito do tradutor possibilita que este exerça seu poder através do seu saber? E se o

poder-saber é expresso pelo indivíduo através da posição em que ele ocupa na sociedade,

segundo Foucault, e se para a AD o discurso legitimado depende da posição-sujeito, está aqui

um dos pontos em que as duas teorias se encontram, o que já foi mencionado no item anterior.

Para Gregolin (2006, p. 53-54) também, os dois teóricos – Foucault e Pêcheux –

possuem pontos em comum, mas também diferenças significativas, que darão a direção de

suas teorias. Segundo suas próprias palavras:

(...) ambos tinham projetos epistemológicos que, apesar de distintos, encontraram-se em vários pontos. Em Pêcheux, ele se concretiza na busca de construir a análise do discurso, e nela estão envolvidos a língua, os sujeitos e a História. Por estar fortemente centrado na construção desse campo, ele dialoga constantemente com a Linguística por meio de uma relação tensa com Saussure, Marx e Freud. Essa Tríplice Aliança acompanha a construção de um projeto teórico de refacções constantes e que visava à construção de uma teoria materialista do discurso aliada a um projeto político de intervenção na luta de classes, a partir da leitura althusseriana do marxismo-leninismo. Concebendo a teoria fortemente vinculada à prática política, Pêcheux tinha, ao mesmo tempo, uma busca metodológica que se materializa na tentativa de construir um método para a análise do discurso (a “análise automática”). O projeto foucaultiano também se relaciona tensivamente com uma “tríplice aliança” – Nietzsche, Freud, Marx – o que já indica a relação muito mais forte de Pêcheux com a Linguística e de Foucault com as problemáticas da História e da Filosofia. Por isso, o projeto foucaultiano não tinha como objetivo imediato construir uma teoria do discurso – suas temáticas sempre foram amplas e envolveram as relações entre os saberes e os poderes na história da sociedade ocidental e, inserido em vastas problemáticas, sua investigação abriu-se em várias direções: buscou compreender a transformação histórica dos saberes que possibilitaram o surgimento das “ciências humanas” na sua fase chamada de “arqueológica”; tentou compreender as articulações entre os saberes e os poderes, na fase denominada de “genealógica”; investigou a construção histórica das subjetividades, em uma “ética e estética da existência”. Essas temáticas estão, sempre, articuladas a uma reflexão sobre os discursos: pressupondo que as coisas não preexistem às práticas discursivas, Foucault entende que estas constituem e determinam os objetos. É, assim, no interior da reflexão sobre as transformações históricas do fazer e do dizer na sociedade ocidental que uma teoria do discurso vai-se delineando e encontra um lugar central na obra de Foucault (grifos do original).

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Tendo em vista essa citação e o que foi tratado no capítulo 1, pode-se perceber que,

enquanto Pêcheux se centrará muito mais na prática discursiva propriamente dita, Foucault

partirá do discurso para traçar os contornos da sociedade e do objeto que pretende estudar.

Assim, partindo do discurso produzido, ele estudará a loucura, a medicina, a prisão,

delineando as transformações sofridas pela sociedade nesses campos a partir do discurso

produzido neles e por eles. Como as transformações do discurso sobre determinado campo de

saber engendraram transformações nesse mesmo campo de saber?

Se fôssemos seguir o procedimento foucaultiano de análise empírica, teríamos de

tratar historicamente da tradução, isto é, quais foram os regimes discursivos que

estabeleceram, ao longo da história, a concepção de tradução que temos como “verdadeira”

atualmente? Lembremos que vimos no início desta pesquisa que uma das concepções

correntes de tradução a concebe, simplificadamente, como reprodução do texto original do

autor. Esta seria uma análise arqueológica e genealógica da tradução, que iria investigar a

matriz de poder-saber do discurso sobre esse objeto. Contudo, considerando a dimensão

restrita desta pesquisa, tomaremos como ponto de estudo somente o lugar ocupado pelo

discurso do tradutor nas N.T. Concebendo, como Foucault, que o discurso científico (aquele

da medicina, do sistema judiciário, por exemplo) é legitimado, levaremos em conta também a

importância do discurso do intelectual e como ele produz saber a partir do local que ocupa na

sociedade, ou seja, exercendo o seu poder. Nesse caso, qual a dimensão que ganha o discurso

de Paulo Rónai, como acadêmico e professor respeitado, ao discorrer, em seus livros

publicados no Brasil, sobre o ofício do tradutor e a obra de Balzac? Sobretudo, qual a sua

importância como intelectual? Que efeitos essa sua posição produz a partir de seu discurso?

Em Microfísica do poder (p. 13), Foucault discorre sobre o intelectual, figura para ele

importante na trama social do poder-saber:

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(...) ele é alguém que ocupa uma posição específica, mas cuja especificidade está ligada às funções gerais do dispositivo de verdade em nossas sociedades. (...) É então que sua posição pode adquirir uma significação geral, que seu combate local ou específico acarreta efeitos, tem implicações que não são somente profissionais ou setoriais. Ele funciona ou luta ao nível geral deste regime de verdade, que é tão essencial para as estruturas e para o funcionamento de nossa sociedade. Há um combate “pela verdade” ou, ao menos, “em torno da verdade” – entendendo-se, mais uma vez, que por verdade não quero dizer “o conjunto das coisas verdadeiras a descobrir ou a fazer aceitar”, mas o “conjunto das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribuem ao verdadeiro efeitos específicos de poder” (...).

Dessa forma, retomando as N.T., analisá-las passa a ser muito mais do que pensar o

lugar em que o tradutor se revela, se mostra, aparece. Trata-se, sobretudo, de pensar o lugar

do discurso do tradutor, e, assim, o lugar de produção de conhecimento, de produção de saber

e, consequentemente, de exercício de poder, em virtude da posição que ele ocupa na

sociedade (posição-sujeito, segundo Pêcheux), posição essa que dá a seu discurso um caráter

de “verdade”, pois ele passa a ser legitimado.

Para entender o discurso do tradutor sob essa perspectiva, é preciso ressaltar que, sob a

presente perspectiva de análise, não existe a dicotomia linguagem/realidade, pois a realidade

não pode ser considerada como uma “entidade”, ou seja, algo que possui uma essência em si,

aprioristicamente falando. Assim, se o discurso não é algo que se diz sobre uma realidade

preexistente, que pode retratá-la, a realidade é construída pelo e no discurso, na prática, o que

questiona a crença em uma verdade “transcendental” que deveria ser buscada, mas que nunca

poderia ser alcançada, porque é inacessível. Essa verdade, na visão foucaultiana, não existe.

Ela também é produzida pelo e no discurso, sendo corroborada por determinadas práticas

discursivas. Ou seja, a verdade é construída.

Segundo o próprio autor:

(...) a verdade não existe fora do poder ou sem poder (...). A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade: isto é, os tipos de

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discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sancionam uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro (1979, p. 12).

Deve-se atentar que, se cada sociedade produz a “sua” verdade, legitimada pelo e no

discurso, essa verdade [discursiva] vai variar de acordo com a época e quem a produz. Isso

será importante ao compararmos, no capítulo 3, os discursos produzidos em duas N.T.

referentes a um mesmo trecho da tradução, no corpus analisado, em duas traduções diferentes

da mesma obra. Veremos que esses discursos se alteram com a época e, consequentemente,

também os efeitos produzidos por eles serão de outra ordem. Nas palavras de Foucault:

Há efeitos de verdade que uma sociedade como a sociedade ocidental, e hoje se pode dizer a sociedade mundial, produz a cada instante. Produz-se verdade. Essas produções de verdades não podem ser dissociadas do poder e dos mecanismos de poder, ao mesmo tempo porque esses mecanismos de poder tornam possíveis, induzem essas produções de verdades, e porque essas produções de verdade têm, elas próprias, efeitos de poder que nos unem, nos atam. São essas relações verdade/poder, saber/poder que me preocupam (Foucault, [1977] 2006, p. 229).

Assim, se pensarmos o discurso do tradutor por essa via, poderemos afirmar que a

tradução, ao ser considerada como reprodução “fiel” do texto original, “re-produção”, na

concepção tradicional, no sentido de produzir algo novamente, já produzido antes, pode ser

comparada à questão de se buscar a verdade absoluta, “essencial”, transcendental, de algo. No

sentido de existir a priori uma “essência” das coisas, que devemos tentar alcançar a todo

custo. No caso do objeto desta pesquisa, essa essência seria o próprio “pensamento” do autor,

expresso no texto original, suas ideias, que caberia ao tradutor “des-cobrir” (ou seja, mostrar o

que estaria encoberto) e “re-produzir” no texto traduzido. Nesse sentido, a única coisa que

poderia obstar esse processo seria sua incompetência em “des-cortinar” (ou seja, tirar o véu)

esse pensamento previamente dado, que está à disposição. O tradutor deveria ser hábil para

trazê-lo à tona e revelá-lo ao leitor ávido pela verdade. Essa definição da tradução, que a

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resume a simplesmente uma reprodução tal e qual do texto original, é a definição corrente,

que a AD, como visto no capítulo 1, ao ser usada para analisar o processo tradutório,

questiona.

Se o discurso é prática e se a noção de “verdade” é produzida nele, não cabe ao

tradutor “buscar” uma verdade previamente dada, em um plano metafísico qualquer (no caso,

sendo esse plano o texto original do autor), mas sua tarefa será sempre a de produzir um

discurso próprio, que será uma interpretação (entre tantas possíveis) e trará em seu bojo outros

discursos, outras interpretações e todo um contexto social que se refletirá, em maior ou menor

grau, no seu texto. Os discursos não possuem uma “verdade”, um núcleo ao qual se pode

chegar, onde está a ideia que deve ser resgatada. Isso significa que é impossível ao tradutor

chegar ao que o autor “quis dizer”, pois ambos os discursos, do tradutor e do autor, são únicos

em si mesmos. Não existe uma “verdade transcendental” a ser revelada e transmitida. Existem

discursos a serem formulados, que estão sujeitos a certas condições de produção, condições

econômicas, sociais, do próprio “assujeitamento” do sujeito, ou seja, condições que envolvem

o discurso e que o determinam, pois estes “são séries de acontecimentos que a ordem do saber

produz e controla” (Araújo, 2004, p. 236).

Retomando as N.T., se elas se configuram o lugar de evidência do discurso do

tradutor, onde este se revela em sua singularidade, elas passam a refletir, em maior ou menor

grau, o comprometimento do tradutor com a produção de saberes e, assim, com o exercício de

seu “micropoder”.

Dessa forma, considerar o discurso do tradutor como local de exercício de poder,

expresso principalmente nas notas, é fundamental ao pensarmos esse profissional como

produtor de saberes, pois poder e saber são inseparáveis para Foucault, já que, para ele, não

existe um “poder”, no sentido absoluto da palavra, mas micropoderes, que estão pulverizados

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no tecido social e nas relações, e macropoderes, estes tendo como representantes principais o

Estado e as instituições.

Nas suas palavras ([1977] 2006, p. 233):

As relações de poder existem entre um homem e uma mulher, entre aquele que sabe e aquele que não sabe, entre os pais e as crianças, na família. Na sociedade, há milhares e milhares de relações de poder e, por conseguinte, relações de forças de pequenos enfrentamentos, microlutas, de algum modo. Se é verdade que essas pequenas relações de poder são com frequência comandadas, induzidas do alto pelos grandes poderes de Estado ou pelas grandes dominações de classe, é preciso ainda dizer que, em sentido inverso, uma dominação de classe ou uma estrutura de Estado só podem bem funcionar se há, na base, essas pequenas relações de poder. O que seria o poder de Estado, aquele que impõe, por exemplo, o serviço militar, se não houvesse, em torno de cada indivíduo, todo um feixe de relações de poder que o liga a seus pais, a seu patrão, a seu professor – àquele que sabe, àquele que lhe enfiou na cabeça tal ou tal ideia? (grifos nossos)

Esses macropoderes e micropoderes imbricam-se, entremeiam-se, e o que vemos é

uma rede de exercício de poderes, uma trama, na qual todos exercem uma parcela de poder.

Como o poder é exercido por todos e produz saber, ele “possui uma eficácia produtiva, uma

riqueza, uma estratégia, uma positividade” (Machado, 1995, p. XVI); ele “não destrói o

indivíduo; ao contrário, ele o fabrica” (idem, p. XX), produz o indivíduo porque o singulariza.

E sendo fabricado, esse indivíduo passa a também exercer poder, bem como a expressar saber.

Daí a formulação poder-saber como algo que não se exerce separadamente, constituindo-se

reciprocamente.

Ainda com relação à caracterização do poder como algo que está pulverizado na

sociedade e nas relações sociais e discursivas, Foucault tem o cuidado de separá-lo do

significado que comumente lhe damos de algo que somente é exercido como repressão, tendo

um caráter meramente cerceador:

Ora, me parece que a noção de repressão é totalmente inadequada para dar conta do que existe justamente de produtor no poder. Quando se definem os efeitos do poder pela repressão, tem-se uma concepção puramente jurídica deste mesmo poder; identifica-se o poder a uma lei que diz não. O fundamental seria a força da proibição. Ora, creio ser esta uma noção negativa, estreita e

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esquelética do poder que curiosamente todo mundo aceitou. Se o poder fosse somente repressivo, se não fizesse outra coisa a não ser dizer não você acredita que seria obedecido? O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir (1979, p. 8 – grifos nossos).

Assim, na perspectiva foucaultiana, qualquer relação social engendra um poder, e, se

trouxermos isso para o campo discursivo, poderemos dizer que todo discurso também

engendra um poder e um saber, um poder-saber, e que nesse sentido também existem

microssaberes, ou seja, um saber que se pulveriza, que possibilita a cada um assumir uma

posição, emitir uma opinião, mostrar seu saber “individual” (ou pelo menos ser percebido

como tal), lembrando que o indivíduo, quando se estabelece, passa a exercer também uma

parcela desse poder.

Entretanto, esses micropoderes e microssaberes também estão sujeitos a determinadas

condições históricas, pois para épocas diferentes são produzidas diferentes epistemes,

“grandes redes organizadoras do saber” (Araújo, 2004, p. 217), ou seja, diferentes

conhecimentos. Assim, o discurso precisa ser historicizado, pois, para Foucault, seu objeto

não são as matrizes linguísticas, ou os contextos em que os discursos se formaram; é muito

mais amplo. Trata-se de analisar por que determinado tipo de discurso surgiu em determinada

época, pois ele é da ordem do acontecimento, ou seja, da ordem da historicização. É preciso

estabelecer quais foram as condições sociais, históricas, políticas, econômicas, etc., que

possibilitaram que esse discurso fosse produzido. A análise, nesse sentido, sai do nível micro,

da linguística, para o nível macro, do corpo social.

Assim, nessa perspectiva, o que importa são os saberes situados historicamente, os

saberes que são produzidos sobre determinado objeto. Esses saberes irão mudar de acordo

com a época, o lugar, o contexto social, o grupo a que se referem, pois são produzidos na

prática social, não estão contidos no objeto de análise em si. Pode-se, então, pensar que o

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discurso do tradutor, sem que este se dê conta, é também engendrado por essas epistemes

epocais. Daí a constatação de que duas traduções da mesma obra realizadas em épocas

distintas produzirão traduções, ou textos (no processo tradutório), diferentes. É o que será

mostrado ao se analisar o corpus desta pesquisa, com relação às notas do tradutor, no próximo

capítulo.

Nos próximos itens, trataremos do discurso do tradutor sobre a tradução e desse

discurso expresso nas N.T. como se configurando um espaço de exercício de poder-saber.

Retomando as perguntas do início, vamos respondê-las com base no que foi discutido até

aqui.

2.3 O DISCURSO DO TRADUTOR COMO ESPAÇO DE EXERCÍCIO DE PODER, DE

MOSTRA DE ERUDITISMO, DE SABER

O primeiro aspecto que chama a atenção quanto às notas é o local em que elas se

encontram no texto da tradução. Como foi dito no capítulo 1, com o tempo elas se

deslocaram, e hoje em dia é comum vê-las em pé de página, destacadas, sempre com um sinal

indicativo, uma sigla, indicando que não se trata de texto pertencente ao texto da tradução.

Podemos começar por questionar a que remete essa sigla.

É claro que a sigla serve para indicar que o texto não pertence ao original, sendo um

adendo, um anexo, um paratexto, ligado ao texto da tradução. No entanto, a sigla N.T. já

denota algo no sentido de que remete a alguém habilitado para escrevê-la: não se trata de

qualquer texto, mas do tradutor da obra, ou seja, aquele que fez uma leitura minuciosa do

texto original e que por isso pode fazer observações sobre ele, ou sobre o processo da

tradução. Ele está legitimado para isso. Nesse sentido, pode-se considerar que a marca N.T. é

distintiva de lugar, do lugar do tradutor, legitimando, assim, o texto ao qual está aposta.

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Sem querer entrar na eterna e improfícua discussão de se colocarem ou não notas de

rodapé, de sua necessidade e logicamente de sua legitimidade, ou não, o objetivo deste

trabalho é olhar mais a fundo o que, talvez, essas notas produzem como efeitos de sentidos,

como efeitos discursivos, simplesmente por serem notas do tradutor. Assim, discorreremos

especificamente sobre o objeto empírico deste trabalho: o discurso do tradutor expresso nas

N.T., mais especificamente naquelas de duas traduções brasileiras de O pai Goriot. Da mesma

forma, trataremos também do discurso do tradutor sobre o processo mesmo da tradução, ou

seja, de um metadiscurso da tradução, usando como corpus a discussão de Paulo Rónai em

seu livro A tradução vivida, por se configurar, como assinalamos, como expressão de poder-

saber.

No capítulo 1, foi explicitado por um outro ângulo o discurso de Rónai sobre a

tradução e também especificamente sobre a tradução da Comédia, da qual ele foi

coordenador. Como foi devidamente citado, o professor justifica as inúmeras N.T. em função,

segundo suas próprias palavras, da “distância que em espaço e tempo separava a França da

Comédia humana do Brasil de então” (Rónai, 1981, p. 185).

Não há dúvida de que as notas propiciam conhecimento, ajudam o leitor, esclarecem

pontos obscuros, mas elas são, sobretudo, como vem sendo falado neste trabalho, expressão do

discurso do tradutor, do seu saber. E se, segundo Foucault, todo saber engendra um poder, elas

se configuram como espaço de poder-saber: um saber expresso e legitimado em função de um

poder exercido e reconhecido pela posição que se ocupa. Segundo o próprio Rónai, em seu livro

A tradução vivida, ele foi escolhido para o trabalho na Comédia porque “era especialista em

língua e literatura francesa e defendera tese sobre Balzac” (1981, p. 184). Não se questiona aqui

o fato da escolha da editora. É óbvio e claro que um trabalho é realizado – ou deveria ser – por

aquele que tem a mestria no assunto. O que chama a atenção aqui é o discurso expressando o

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poder-saber do professor: sua escolha foi feita em função da especialidade que havia adquirido

ao defender tese sobre Balzac, ou seja, seu saber era legitimado pela posição que ocupava.

É importante ressaltar que o livro de Paulo Rónai, A tradução vivida, é praticamente

um manual sobre como traduzir: que erros não cometer, quais as prerrogativas de um bom

tradutor, isto é, que caminho este deve trilhar. A parte empírica da obra se revela na

explicação do trabalho realizado para a tradução da Comédia humana, sob sua supervisão.

Para isso, há um capítulo específico, cujo título é “A operação Balzac”, em que Rónai ressalta

os pormenores do trabalho que empreendeu.

O referido capítulo inicia-se com uma sucinta descrição da tarefa do tradutor – o que

já tinha sido tratado nos outros capítulos do livro –, para, em seguida, dar início à explicação

do processo de tradução especificamente no âmbito da Comédia humana. Rónai explica como

a equipe de tradutores foi formada e qual foi sua tarefa nessa empreitada. A seguir, principia

uma descrição pormenorizada da obra balzaquiana e de sua importância, o que ocupará quatro

páginas do capítulo. O parágrafo que dá origem a essa descrição tem o seguinte texto:

“Imagino que nem todos os que me leem sejam especialistas de literatura francesa e ainda

menos de Balzac; a estes quero, pois, explicar sucintamente a importância de sua obra, que só

faz crescer com os anos” (1981, p. 179). Nesse pequeno texto já se pode perceber a marcação

de lugar de saber, de eruditismo de Rónai, fato esse que lhe permite dar informações mais

esclarecedoras sobre a obra em questão.

A descrição da obra e de sua produção continua, revelando em Rónai um exímio

conhecedor da literatura francesa e especialmente do texto balzaquiano. Quatro páginas

depois, o professor retoma a descrição da “operação Balzac”, voltando a esclarecer os

percalços e problemas ocorridos durante a tradução da Comédia, bem como as soluções

adotadas, a maior parte sugerida por ele. Observemos os parágrafos seguintes:

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Deveria ter sido escolhido e imposto no começo do trabalho o texto de uma das muitas edições da Comédia Humana. Como isso não ocorrera aos editores, resolvi adotar por minha conta a edição reputada melhor, a da Pléiade, organizada por Marcel Bouteron, a ela conformar, nos trechos onde havia alteração, as traduções já entregues e pedir aos tradutores das obras ainda não começadas que utilizassem esse original. No caso específico de Balzac a opção por uma ou outra edição tinha muita importância. É que, quando o escritor morreu, deixou inacabados três de seus romances mais significativos, Les Paysans, Les Employés e Le Député d’Arcis. A viúva de Balzac, algum tempo depois da morte, confiou a um escritor de terceira ordem, Charles Rabou, a difícil tarefa de terminar os dois últimos. Rabou executou a encomenda, e essas duas obras saíram em sua primeira edição como livros completos, sem que houvesse qualquer indicação daquela colaboração espúria. Assim, Le Député d’Arcis, não só nessa primeira edição mas em diversas reedições, saiu com uma segunda parte não escrita por Balzac, oito vezes mais extensa que a primeira parte! Na edição da Pléiade, obviamente, esses acréscimos indesejáveis já não figuravam (1981, p. 186-187).

Esse trecho revela-se muito interessante para nossa análise. Primeiramente, com

“resolvi adotar por minha conta a edição reputada melhor, a da Pléiade”, Rónai já revela a que

veio: como especialista e conhecedor da obra balzaquiana, tinha todo o respaldo para decidir

sobre a melhor edição a ser usada na tradução, já que havia divergências entre as várias

existentes. Ele continua a mostrar isso no parágrafo seguinte, ao afirmar a importância da

escolha da edição correta, denotando ainda seu eruditismo, ao discorrer sobre pormenores da

produção da obra após a morte do escritor, e também a autoridade que lhe é permitida como

especialista no assunto do qual está tratando, característica que pode ser observada em

palavras como: “escritor de terceira ordem”, “difícil tarefa”, “colaboração espúria”,

“acréscimos indesejáveis”. Esses vocábulos revelam sua autoridade no assunto e também

certa “intimidade” com o tema, se podemos dizer assim, fato que só acontece a quem se

dedica ao estudo de algo durante parte da vida. E é interessante também atentar para a palavra

“obviamente”, com relação à edição da Pléiade. Somente alguém que conheça bem a literatura

francesa e suas publicações pode afirmar com tanta veemência ser essa edição a melhor. E tal

afirmação requer também do leitor uma cumplicidade, pois o que é óbvio o é para todos, ou

seja, está claro para quem quiser ver.

Na continuação do trecho citado, Rónai nos fornece um belo material para análise:

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Mas num ponto essa edição, excelente em tudo mais, não me satisfazia. É que nela o texto de Balzac, já difícil por si em muitos trechos, saía excessivamente compacto, sem um espaço branco, uma interrupção, um parágrafo numa dezena de páginas. Se tal fosse a intenção do autor, teríamos de aceitar essa característica, assim como os tradutores de Proust e de Joyce respeitam aquela disposição maciça de linhas impressas sem um respiradouro ao longo de tantas páginas. Mas, devido à familiaridade com a história bibliográfica da obra, sabia que todos aqueles romances tinham saído inicialmente em rodapés de jornais, divididos em capítulos breves, com títulos muitas vezes espirituosos, engraçados, pitorescos, mantidos nas primeiras edições em volumes. Foram os editores sucessivos que, contra a vontade de Balzac, suprimiram a divisão em capítulos por motivos de economia. Em benefício do leitor brasileiro, reintroduzi a divisão em capítulos, assim como os títulos primitivos (1981, p. 187).

Com a afirmação “não me satisfazia”, o professor Rónai mais uma vez reafirma a

autoridade com que desenvolveu o trabalho na Comédia. As decisões eram tomadas por ele,

pois tinha “familiaridade com a história bibliográfica da obra” e “sabia que todos aqueles

romances tinham saído inicialmente em rodapés de jornais...”.

No entanto, há outro aspecto interessante nesse trecho. No capítulo 1, discorremos um

pouco sobre as visões de tradução e verificamos que Paulo Rónai expressa no texto de seu

livro uma visão “tradicional” da tradução, de que esta deve ser tal qual o texto original, que

deve resgatar a mensagem passada pelo autor. Vemos aqui, na citação anterior, mais uma

mostra desse pensamento. Com “Se tal fosse a intenção do autor”, Rónai revela que é possível

saber qual é a intenção do autor de determinada obra. Ora, se como estudioso (no caso dele)

ou como leitores podemos entrever essa intenção, da mesma forma o tradutor tem essa

capacidade, e, mais ainda, é sua prerrogativa fazê-lo ao realizar a tradução.

Tal característica também é expressa quando ele utiliza os exemplos dos tradutores de

Proust e Joyce para reforçar sua ideia de que o tradutor deve ser “fiel” ao texto original,

inclusive na sua forma, pois o aspecto de texto maciço da Comédia deveria ser respeitado se

“tal fosse a intenção do autor”, “assim como os tradutores de Proust e de Joyce respeitam

aquela disposição maciça de linhas impressas sem um respiradouro ao longo de tantas

páginas”. A observação dessa característica é importante porque refletirá fortemente na

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produção das notas. Muitas delas foram redigidas na tentativa de produzir um texto da

tradução o mais próximo possível do original. Veremos isso no capítulo 3, quando da análise

empírica.

Retomando a expressão poder-saber, citar as obras de Joyce e Proust também se

configura como uma mostra de eruditismo, de poder-saber, pois ambas as obras são de

célebres autores, muito conhecidos por textos difíceis de serem lidos e, consequentemente, de

serem traduzidos – já que a tradução, como dissemos no capítulo 1, é uma das leituras mais

minuciosas de qualquer texto. Assim, tal menção, longe de ser inocente, denota um saber de

especialista, aliado ao poder expresso por esse discurso.

E, finalizando esse trecho, não podemos deixar de observar a imagem que Rónai

produz do leitor brasileiro: “Em benefício do leitor brasileiro...”. Ou seja, o objetivo de tantas

pesquisas e observações sobre a divisão da obra em capítulos é para facilitar o leitor brasileiro

em sua leitura. Muito além especificamente do leitor brasileiro, Rónai denota aqui a imagem

que produz do próprio tradutor: este, além de ser “fiel” ao texto original, deve também

procurar, na medida do possível, fazer uma tradução que desperte no leitor curiosidade sem

“indispô-lo com a obra” (o que já foi visto no capítulo 1), competindo ao tradutor facilitar ao

máximo esse acesso ao pensamento do autor do texto original e, consequentemente, à

mensagem que ele queria passar ao escrever o texto.

Assim, respondendo às duas primeiras perguntas expressas no início deste capítulo –

Que poder o discurso do tradutor irá engendrar e que saber está ligado a esse poder? Como a

relação poder-saber legitima esse discurso, e como o tradutor, mesmo sem o saber, vale-se

dessa prerrogativa, desse lugar que ele ocupa para produzir o seu discurso nas notas? –,

podemos perceber que o tradutor recorre a vários meios para expressar seu saber, que é

perpassado por um poder no mais das vezes não percebido por ele. Seu poder-saber é

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expresso no próprio discurso, legitimado pela posição de tradutor e muitas vezes, como no

caso de Paulo Rónai, pela de especialista no assunto do qual está tratando, ou pelo fato de ser

acadêmico, professor, posições que denotam por si só eruditismo e que são reconhecidas

socialmente. E tendo já dito, o tradutor vale-se dessa prerrogativa ao se colocar na própria

posição-sujeito do profissional, que já é legitimada como lugar de destaque, de saber e de

expressão de poder. O tradutor é aquele que faz a leitura mais profunda da obra, mas que

também, segundo Rónai, teria o poder de “acessar o pensamento do autor do original”. Nesse

caso, é dele a capacidade de transmitir ao leitor a mensagem do autor, com o máximo de

isenção possível, tendo em vista o caráter de certa forma “sagrado” do texto original.

Contudo, apesar de pregar uma isenção do tradutor – estando o sentido transcendental

de busca da verdade presente no discurso de Rónai –, ou seja, o tradutor deve ser o máximo

possível “isento” na sua tradução, para “preservar” o texto do autor, o próprio Paulo Rónai

entra em contradição. Isso acontece porque sua pretensa “isenção” é contradita pelo número

de notas do tradutor produzidas por ele para a Comédia – 12 mil, como já mencionado. Se as

N.T. são o local onde o tradutor aparece “de fato”, essa “pretensa” isenção desaparece pela

efetiva presença da sigla N.T. no texto da tradução (mesmo que seu aparecimento não se

efetive, como nas notas escritas por Rónai, em que a sigla não existe). Isto é, o eruditismo de

Rónai, sua especialidade em Balzac, é o tempo todo revelado nas N.T., que são, nesse caso,

seu lugar de poder-saber.

E continuando a utilizar o discurso de Rónai sobre o processo de tradução da Comédia,

no próximo item serão respondidas as duas últimas questões apresentadas anteriormente: Que

papel as N.T. desempenham em uma tradução? Que efeitos de poder elas suscitam?

Não se tratará especificamente do texto das N.T., pois isso será realizado no capítulo

seguinte, mas, sim, do discurso de Paulo Rónai em seu livro sobre a tradução.

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2.4 AS N.T.: A “VERDADE” DO TRADUTOR

Um dos pontos mais importantes deste capítulo, tendo por base a teoria de Michel

Foucault, é o caráter de “não verdade” dos discursos. Ou seja, como foi explicado, para

Foucault a verdade é construída – pelo discurso, pelas práticas discursivas, discurso esse

inserido em uma dada formação social, o que vai refletir as “verdades” produzidas por essa

dada sociedade, que, por sua vez, serão diferentes de outras “verdades” produzidas por uma

outra sociedade. Podemos então dizer que é a “vontade de verdade” que irá produzir

determinados discursos, principalmente aqueles legitimados, isto é, os científicos, os

acadêmicos, que estão ancorados em uma determinada expressão de poder-saber. As N.T. se

configuram como esse lugar, como veremos.

Como vimos no item anterior, o poder-saber do tradutor vai se expressar pela sua

posição-sujeito, na expressão da Análise de Discurso, ou seja, pela posição que ele ocupa no

tecido social. No caso de Rónai, essa posição é legitimada pelo fato de ele ser especialista em

língua francesa e na obra balzaquiana, o que o autorizou a coordenar, como autoridade, a

tradução, durante 15 anos, dos 17 volumes da Comédia humana. Assim, ao tradutor é

permitido tomar a palavra, pois o que ele diz é corroborado por sua posição de “sujeito

qualificado”, na expressão de Araújo (2004, p. 234).

Observamos também, principalmente no capítulo 1, que Rónai apresenta, como forma

de trabalho, uma concepção tradicional da tradução, que afirma como tarefa principal do

tradutor o resgate da mensagem do texto original e sua transmissão, com o máximo de

isenção, ao leitor da obra traduzida. Relembrando suas palavras em A tradução vivida, a

tradução seria “a reformulação de uma mensagem num idioma diferente daquele em que foi

concebida” (1981, p. 16).

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No entanto, como dito também no final do item anterior, ao redigir tantas notas em um

texto de tradução, como foi o caso da Comédia, Rónai entra em contradição, pois sua possível

não isenção com relação ao texto original é revelada, tendo em vista que o lugar das notas é

um daqueles onde o tradutor aparece. Ou seja, as notas vêm mascaradas sob a forma de

esclarecimento ao leitor, mas escondem a intenção do tradutor de se fazer presente, de se

mostrar como “dono” do texto da tradução, de intervenção.

Cabe também verificar que, no caso da Comédia, não é somente nas N.T. que a

presença do tradutor se revela de forma tão enfática. Como Rónai diz em seu livro, ficou a seu

cargo também a redação das notas introdutórias que acompanham cada um dos 89 romances

da obra. Segundo suas próprias palavras:

Cabe-me dizer algo a respeito das notas introdutórias que escrevi para cada uma das oitenta e nove unidades da Comédia. Sem qualquer veleidade de eruditismo tentei dar nelas algumas informações indispensáveis a respeito da gênese e da fortuna da obra visada, dos modelos vivos das personagens, da base real (quando havia) do enredo, das reações da crítica etc. (...) Evitei antecipar nessas notas a ação e o desfecho das obras para não minorar o efeito de surpresa e o prazer estético (1981, p. 188-189).

Interessante notar o caráter de “falsa modéstia” do discurso de Rónai. “Sem qualquer

veleidade de eruditismo” denota certamente um recurso retórico, pois não há como questionar

o fato de que Paulo Rónai se revela, sim, como o “grande tradutor” da Comédia, apesar de

não tê-la traduzido, e que seu trabalho nessa obra foi o que marcou sua carreira como

acadêmico no nosso País. A tradução dessa obra é perpassada por sua presença, e mesmo nas

atuais traduções dos romances ele é mencionado, como se verifica na Apresentação a O pai

Goriot escrita por Ivan Pinheiro Machado, romance traduzido pela L&PM, cujas notas serão

usadas no capítulo 3 como contraponto às da tradução coordenada por Rónai. Nas palavras de

Ivan Machado: “O grande intelectual Paulo Rónai (1907-1992), escritor, tradutor, crítico e

coordenador da publicação de A comédia humana no Brasil, nas décadas de 1940 e 1950,

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escreveu em seu ensaio biográfico ‘A vida de Balzac’: (...)” (2006, p. 10). Ou seja, Rónai é o

grande “intelectual” e certamente “erudito” que revelou a Comédia humana ao leitor

brasileiro.

Retomando as N.T. e respondendo à primeira questão apresentada – Que papel as N.T.

desempenham em uma tradução? –, o papel desempenhado por elas é, legitimamente, o de

esclarecer o leitor sobre determinados pontos obscuros da tradução, pontos esses que o

tradutor não resolveu na trama do texto traduzido. Nesse sentido, elas podem ser o lugar da

“reticência” do tradutor, ou seja, os points de suspension em que o tradutor para, pensa e toma

outro rumo. Constituem uma mudança de direção, no sentido de que o tradutor deixa de lado

o discurso produzido em cima do discurso do texto original e toma as rédeas de um discurso

explicitamente seu, que ganhará uma marca denotando sua presença. São também o local de

mostra de saber, em que o tradutor esclarece pontos do texto, acrescenta conhecimento,

corrige eventuais “enganos” do texto original. Nesse espaço, ele revela sua “proximidade”

com o texto original, com a “verdade” do autor, revelando, por sua vez, a própria “verdade”

discursiva.

Nesse caso, respondendo à segunda pergunta – Que efeitos de poder as notas do

tradutor suscitam? –, se a “vontade de verdade” irá produzir determinados discursos,

principalmente os legitimados, como já dito, ou seja, irá produzir saber, as notas, como local

dessa expressão de “verdade”, irão revelar o poder legitimado, o científico, o acadêmico,

determinado no binômio poder-saber.

Elas, então, deixam de ser apenas um local de evidência do tradutor para ser o lugar de

exercício de poder, engendrado por um saber, expresso no discurso do tradutor, pois este

emerge na sua própria voz. Retomando o nosso objeto empírico, Paulo Rónai, ao mesmo

tempo em que aconselha uma tradução mais próxima ao original (ver A tradução vivida,

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1981), que preconiza essa isenção do tradutor e não ousa tanto no texto da tradução, marca

sua presença com as N.T., revela sua “verdade discursiva” nesse espaço, expressa seu poder-

saber, o saber de especialista em Balzac, de acadêmico, ligado a instituições que denotam esse

poder, que lhe dão um título e o legitimam para exercer a função de intelectual. Pois não é

intelectual quem quer. Este é reconhecido por determinados meio, função, discurso. E tudo

isso será corroborado pelas epistemes epocais, que se alterarão conforme a época, como a

própria expressão denota.

E é levando em conta essas epistemes epocais que adentraremos o capítulo 3.

Apresentando o corpus de notas de O pai Goriot da tradução de Paulo Rónai, este capítulo

terá como objetivo verificar o discurso do tradutor in loco, tendo como suporte teórico tudo o

que foi discutido até o presente momento nos dois primeiros capítulos. E como contraponto

serão analisadas, juntamente com as notas produzidas por Rónai, as que estão presentes na

tradução da L&PM. O intuito é verificar se há diferença de discurso em um decurso de tempo

de 20 anos, e, se houver, em que isso é relevante e quais “verdades” esses novos discursos

irão produzir.

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3 AS NOTAS DO TRADUTOR DE O PAI GORIOT

A tradução não é uma espécie de permuta na qual se trocariam as expressões de uma língua por aquelas de uma outra, embora sendo para o melhor no melhor dos mundos. Ela mostra – e é precisamente a razão da dificuldade de traduzir – que os léxicos não são indicações para objetos já providos de sentidos na realidade, eles não se resolvem com dedos estendidos em direção a alguma coisa que lhes é preexistente (Pury, 2005, p. 43 [tradução nossa]).

Nos capítulos anteriores foram discutidos dois eixos teóricos que servirão de base para

a parte empírica deste trabalho: a análise das notas de duas traduções brasileiras de “O pai

Goriot”, romance de Balzac que faz parte da Comédia humana. Como foi dito na Introdução a

esta dissertação, as N.T. com maior foco serão as da tradução empreendida sob a supervisão

de Paulo Rónai, por dois motivos: (i) foi a primeira tradução brasileira desta obra; (ii) o

discurso das N.T. dessa tradução guarda uma particularidade, como já foi mencionado: apesar

de Rónai ter supervisionado, revisado, coordenado a tradução dos 89 romances, ele não

traduziu nenhum deles, ou seja, não é ele o tradutor. No entanto, foi ele quem redigiu as N.T.,

o que faz com que o discurso presente das notas seja o seu discurso, e não o do tradutor. Ele

ocupa, nesse sentido, a posição-sujeito do professor-revisor-tradutor.

Assim, tendo como base o corpo de notas do tradutor da Editora Globo, serão

utilizadas como contraponto as notas do tradutor da L&PM, para verificar a diferença – caso

exista – de discurso entre elas. As notas da L&PM utilizadas, então, serão somente aquelas

referentes ao mesmo trecho nas duas traduções. Essa edição, em pocket book, possui ao todo

110 notas, distribuídas pelas 282 páginas do texto do romance. Foram compiladas 84 notas.

Veremos, ao longo da análise, que o número de notas não vai se diferenciar muito do das

notas de Rónai – na tradução coordenada por ele, há 142, distribuídas por 213 páginas de

texto do romance.

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Como suporte teórico para essa análise, serão utilizadas as observações de Solange

Mittmann em seu livro Notas do tradutor e processo tradutório – análise e reflexão sob uma

perspectiva discursiva (2003). Essa autora, além de usar como base teórica a Análise de

Discurso de Michel Pêcheux, que já foi tratada no capítulo 1, faz um trabalho específico sobre

as N.T., o que o torna primordial para discutirmos o corpus selecionado aqui.

3.1 “O PAI GORIOT”, DA EDITORA GLOBO, E O PAI GORIOT, DA EDITORA L&PM

Como vem sendo afirmado ao longo desta dissertação, o objetivo desta pesquisa não

foi verificar diferenças entre as duas traduções, em um processo de comparação, mas analisar

o discurso do tradutor expresso nas N.T. Nesse sentido, o foco principal foi a análise do

processo tradutório tomando como base as notas, porque “a N.T. materializa o discurso do

tradutor produzido durante o processo tradutório” (Mittmann, 2003, p. 128).

Essa faculdade da N.T. de tornar explícito, evidente, visível o discurso do tradutor foi

exaustivamente afirmada ao longo deste trabalho. Vimos que a tradução compreende todo um

processo tradutório, de produção de discurso, que faz com que o texto produzido nesse

processo não seja uma reprodução do original do autor, mas um outro, produzido com base

neste, mas mesmo assim inédito. Isso faz com que duas traduções, realizadas por dois

tradutores diferentes, sejam distintas, levando-se em consideração também a época em que

foram produzidas, o leitor a que se dirigiam, a editora que as publicou, ou seja, as condições

de produção a que estavam sujeitas.

Pensando por essa via, as duas traduções do romance balzaquiano objeto de análise

também produziriam textos distintos. Nesse caso, podemos considerar o mesmo para as notas

contidas em cada uma delas.

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Em um primeiro momento, deve ser assinalado que, para diferenciar as duas

traduções, foram utilizadas as aspas para a de Rónai e o itálico para a de Portocarrero e

Heineberg, pelo seguinte: a tradução da Globo está inserida no volume IV da coleção da

Comédia humana, que compreende 17 volumes, enquanto a da L&PM se encontra em um

volume separado, em edição de bolso. No entanto, as diferenças não são significativas entre

ambas, como veremos.

O pai Goriot, seguindo a trilha deixada por Rónai, também contém uma introdução ao

romance, escrita por Ivan Pinheiro Machado, que também escreveu uma apresentação para a

obra, na qual cita o trabalho de Rónai realizado para a Comédia. E há mais similaridades: as

notas da L&PM, além de praticamente se igualarem em termos de número com as de Rónai –

110 e 142, respectivamente –, também seguiram o formato das escritas por ele no sentido de

que procuram ambientar o leitor na teia de personagens da Comédia. Como pode ser visto no

Apêndice, das 84 notas compiladas de O pai Goriot para esta pesquisa, 29 são alusivas a

outros romances da Comédia ou às personagens que apareceram ou aparecerão nesses outros

romances, ou a qualquer fato relativo a essas personagens, que é a classificação de número (6)

do Quadro. Respectivamente, em “O pai Goriot”, na amostra total de notas, que é de 142, há

18 N.T. com essa classificação. Lembrando que as da L&PM servem de contraponto às da

Globo, não totalizando as da obra, proporcionalmente as tradutoras foram muito mais

meticulosas em entrelaçar as personagens dos romances. Isso será visto com exemplos mais

adiante.

Assim, podemos considerar a hipótese de que a edição da L&PM sofreu influências

da edição da Comédia coordenada por Rónai – até mesmo pela menção feita a ele na

apresentação –, tendo as notas, no entanto, ganhado um novo “discurso”, no sentido de que,

mesmo guardando muitas vezes o mesmo local das notas escritas por Rónai, elas portam um

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outro tipo de conhecimento, um discurso mais “politicamente correto”, como hoje em dia é

apregoado, no sentido de que com menos inferências emocionais e opiniões pessoais, e

assim mais próximo do discurso “científico”. É esse o ponto que interessa para este

trabalho.

De qualquer forma, tendo o trabalho de Paulo Rónai sido citado na apresentação da

tradução da L&PM, podemos observar a importância que se dá a ele e questionar o quanto

isso pode ter influenciado, e ainda influenciar, as traduções posteriores dos romances da

Comédia. Será que essa tradução talvez tenha se tornado de certa forma um estigma, no

sentido de que tudo o que vier depois dela lhe deverá muito?

Outro fator importante a ser pensado é qual a edição francesa usada pela L&PM para a

tradução. Não é dito no livro. Rónai utilizou a da Pléiade, como ele mesmo afirma: “resolvi

adotar por minha conta a edição reputada melhor, a da Pléiade, organizada por Marcel

Bouteron” (1981, p. 186). A importância disso está no seguinte: ao compilar as notas 141 e

109 das duas traduções (ver Apêndice), percebe-se que em um parágrafo da tradução há um

trecho na edição de O pai Goriot que não existe na edição da Globo. Vejamos:

Logo viu as duas irmãs, a sra. de Restaud e a sra. de Nucingen. (...) Esse espetáculo não era de tornar os pensamentos de Rastignac menos tristes. Se havia visto Vautrin no coronel italiano109, reviu então, sob os diamantes das duas irmãs, o catre sobre o qual jazia o pai Goriot (grifo nosso).

O trecho em itálico simplesmente não existe na edição da Globo, mas consta da edição

francesa Le Livre de Poche, portando uma nota (ver 1995, p. 326). Contudo, tal trecho remete

a um outro, do qual trata a nota 141 de Rónai, que, como explicado e citado por ele, foi

suprimido das edições francesas posteriores a partir de 1834. Dessa forma, a edição francesa

utilizada pela L&PM não é a mesma usada por Rónai, que foi organizada por Marcel

Bouteron, pois nesta o trecho também não existe (ver Balzac, 1951, p. 1.061).

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Continuando na comparação das duas edições, ainda quanto ao texto do corpo da

tradução, pode-se observar nos trechos compilados que, enquanto Rónai mesclou a tradução

dos nomes com a manutenção destes na língua de origem, a edição da L&PM optou por

mantê-los em francês, inclusive os nomes de ruas, lugares e mesmo aqueles nomes próprios

que já têm traduções consagradas em português, como é o caso do rei Luís XIV, que foi

mantido Louis. Quanto às notas, veremos que há uma diferença significativa de discurso em

seus textos, tanto de léxico como de estrutura, e é por isso que se torna interessante essa

análise comparativa.

Outra observação extremamente relevante diz respeito à sigla N.T., usada para remeter

ao discurso explícito do tradutor. Mittmann afirma o seguinte sobre ela:

No processo tradutório, observamos que é assim que, embora o discurso original e o interdiscurso sejam constitutivos de todo o processo, o tradutor circunscreve um espaço, ao pé da página, para o seu dizer, colocando inclusive o “crachá de identificação (a marca [N. do T.])” (Hattnher, 1994, p. 34), como se somente ali, na N.T., estivesse inscrita a voz do tradutor, o que sustenta a ilusão de que no texto da tradução, quer dizer, fora da N.T., quem fala é o autor do original. Por outro lado, apesar desta separação, a N.T. é a marca da presença do tradutor no processo tradutório (Mittmann, 2003, p. 137).

A sigla N.T., essa marca de que o tradutor está ali, presente, simplesmente não existe

na tradução coordenada por Rónai, estando presente, no entanto, na outra tradução. Nesse

sentido, as notas de “O pai Goriot” são, na verdade, simplesmente notas de pé de página, e

não notas do tradutor. Por esse fato, apresentam-se duas hipóteses. A primeira é de que, como

não foi ele quem realizou a tradução dos romances da Comédia, mesmo tendo redigido as

notas, estas não são notas do tradutor, mas do revisor técnico (podemos considerá-lo dessa

forma, por sua especialidade), coordenador, organizador. Então, pode ser que, nesse caso, ele

tenha preferido deixar sem nenhuma indicação e dessa forma se esquivar de assumir o lugar

do tradutor, que na verdade, nesse trabalho, não era mesmo o dele.

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No entanto, uma segunda hipótese desponta ao pensarmos na relação de Rónai com a

tradução. Ou melhor, por seguir uma concepção tradicional da tradução, a ideia que ele tem

desta, como foi dito nos capítulos precedentes, é a de “reformulação de uma mensagem num

idioma diferente daquele em que foi concebida” (1981, p. 16). Assim, partindo dessa

concepção, há de se cogitar que, já que o tradutor deve interferir o mínimo no texto, as notas

não são bem-vindas. De fato, o professor afirma em seu livro que em textos de ficção elas são

desaconselhadas. Admite-as, contudo, para obras não literárias e, sobretudo, para as clássicas,

“distantes de nós em tempo, lugar e espírito”:

Que se há de fazer, quando o texto, insuficientemente claro para leitores de outra nação, exige explicações? Há o recurso às notas, ao pé da página ou no fim do volume. Tais notas atualmente são desaconselhadas em livros de ficção, onde, ao que se diz, contribuem para quebrar a ilusão, prejudicando a identificação do leitor com a obra. Por isso há quem recomende ao tradutor encontrar um jeito para incorporá-las ao texto sem o sobrecarregar (1981, p. 100).

Paulo Rónai, então, tendo redigido as 12 mil notas de pé de página distribuídas ao

longo dos 89 romances da Comédia humana, justifica-as no trecho seguinte: “Elas porém

podem parecer desejáveis em obras clássicas, distantes de nós em tempo, lugar e espírito;

como se verá mais adiante, achei-as indispensáveis na edição brasileira de A Comédia

Humana de Balzac” (ibidem).

Ou seja, o professor critica o uso das notas pelo tradutor, mas usa-as em abundância na

tradução coordenada por ele, por considerar o original uma obra clássica e com a justificativa,

já citada no capítulo 1, de que “(...) a distância que em espaço e tempo separava a França da

Comédia Humana do Brasil de então era tamanha que exigia numerosas notas de pé de

página” (1981, p. 185). Assim, ele nega veementemente a presença da voz do tradutor no

texto da tradução e, além disso, nega também sua presença manifesta, ao suprimir a marca

N.T. – ou qualquer outra que denote uma presença que não a do autor, como N.R.T., para nota

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do revisor técnico – das notas, o que faz com que estas se configurem, a um leitor desavisado,

como uma extensão do texto da tradução. Esse leitor pode se questionar, de início, se as notas

pertenceriam ao autor.

Podemos perceber que essas características da tradução coordenada por Rónai transformam

a edição da Comédia da Editora Globo em uma edição erudita, isto é, que teria o papel de informar,

instruir. Exatamente o papel desempenhado por Rónai em sua vida profissional: o de professor e

pesquisador. Vemos, então, que sua posição-sujeito influencia o processo tradutório.

Observaremos esse ponto mais minuciosamente quando da efetiva análise das notas.

3.2 O QUADRO CLASSIFICATÓRIO DAS NOTAS

A classificação das notas foi feita ao longo de sua leitura, primeiramente aquelas de

“O pai Goriot” e depois as da edição de bolso. Elas compreendem duas classificações, a

primeira remetendo a uma visão mais geral e a segunda mais pormenorizada, com

características dos assuntos tratados por elas. Assim, ficou desta forma:

Primeira classificação:

(I) Notas do tradutor – que expressam esclarecimentos sobre a tradução.

(II) Notas de erudição – que expressam a erudição e o saber de quem as redigiu. Podem

portar, no caso da obra analisada:

(a) um saber de especialista em Balzac.

(b) um saber de historiador, acadêmico ou professor.

Segunda classificação:

(1) Notas sobre personalidades – autores, cientistas, filósofos, poetas, etc. –, lugares e

acontecimentos históricos reais.

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(2) Alusivas a costumes e hábitos da época e de outras épocas e culturas.

(3) Traduções de palavras em outras línguas, que não o francês, no original.

(4) Alusivas a descrições de lugares em Paris, tanto que ainda existem como que não existem mais.

(5) Alusivas a obras e personagens literários e mitológicos.

(6) Alusivas a outros romances da Comédia ou às personagens que apareceram ou aparecerão

nesses outros romances, ou a qualquer fato relativo a essas personagens.∗

(7) Explicações de expressões, problemas e curiosidades da tradução.

(8) Notas sobre o próprio Balzac e sua obra.

Com relação à primeira classificação, deve-se observar que em ambas as traduções, a

maior parte das notas ganhou o número (II). Nesse sentido, como já foi visto no capítulo 1, a

tradução da Comédia, coordenada por Rónai, forma uma edição erudita, já que, em virtude

das inúmeras notas de pé de página e introduções redigidas por ele, não apresenta

simplesmente a tradução dos romances, tendo como objetivo, além disso, instruir o leitor,

dando-lhe informações sobre a fortuna da obra, a época em que foi realizada, seu autor. E o

mesmo se dá com a edição da L&PM, como veremos.

Sobre as introduções redigidas por Paulo Rónai para cada um dos romances, pode-se

pensar que se trata de uma extensão das notas de pé de página, pois têm a mesma função:

ambientar o leitor, dar-lhe informações sobre os romances, evitar que se indisponha com a

obra. E Rónai fala mesmo em “notas introdutórias” na página 188 de seu livro. Quer dizer,

usa o mesmo léxico, o que nos remete às notas de pé de página. Considerando essas

características, as notas escritas por ele são eruditas no sentido de que falam muito dele, de

seu trabalho, de sua especialidade, ao passo que, como veremos, as da L&PM têm um formato

∗ Conforme Paulo Rónai explica em A tradução vivida (p. 185), os 89 romances da Comédia são entrelaçados, mas não necessariamente têm uma sequência cronológica. Eles podem ser lidos separadamente, mas quem se aventurar a ler a obra inteira perceberá que muitas personagens figuram em várias histórias, o que faz com que o leitor as acompanhe em vários momentos das suas vidas. Na nossa opinião, Paulo Rónai, ao citar os outros romances nos quais as personagens aparecem, instiga no leitor o desejo de lê-los. O mesmo caminho seguiu a tradução realizada pela L&PM.

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mais enciclopédico, de dicionário, sem tantas marcações de opinião pessoal e julgamentos de

valor – apesar de estes existirem também, como será visto. Isso é bem claro nas notas da

mesma classificação (6).

As tradutoras de O pai Goriot redigiram as N.T. que portam a classificação (6) de

forma padronizada, como podemos ver nos exemplos a seguir:

Nota 10: Eugène de Rastignac, personagem central de A comédia humana (A casa Nucingen, Ilusões perdidas, Esplendores e misérias das cortesãs, O gabinete das antigüidades, Ursule Mirouët, Uma filha de Eva, O deputado de Arcis, Um príncipe da Boêmia). (N.T.) Nota 11: Sr. Poiret, personagem de A comédia humana (Os empregados, Esplendores e misérias das cortesãs). (N.T.)

O formato é sempre este: o nome da personagem, a expressão “personagem de A

comédia humana” e, em seguida, entre parênteses, os romances em que a personagem figura.

Essa edição traz exaustivamente as personagens com os muitos romances, superando até

mesmo a compilação feita por Rónai.

Aproveitando o ensejo, podem-se observar algumas diferenças entre a primeira nota

citada e sua correspondente na edição da Globo. Esta traz um outro tipo de discurso:

Globo: Nota 11: Eugênio de Rastignac: uma das personagens mais importantes de A Comédia Humana, já encontrado acessoriamente (é ele quem conta a anedota de Estudo de Mulher); é porém em O Pai Goriot que o conhecemos de verdade.

Vejamos. Primeiramente, observa-se o que já foi dito: a primeira nota guarda o nome

da personagem em francês, ao passo que Rónai o traduz. Porém, o mais relevante são as

palavras de um e outro texto. Enquanto a primeira se limita a dar a informação, tendo como

única inferência a palavra “central”, que reforça a importância da personagem, no texto da

segunda verificamos várias marcações de ênfase: “uma das personagens mais importantes”,

“acessoriamente”, “o conhecemos de verdade”. O discurso de Rónai é de outra ordem: mostra

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seu conhecimento da personagem, pois ele sabe que é um dos mais importantes da obra e que

também posa de personagem acessória em outro romance desta; a ênfase no fato de que “o

conhecemos de verdade” nesse romance revela também intimidade com o texto, pois somente

alguém que o leu inteiramente conhece seus pormenores e pode saber em que ponto uma

personagem aparece em suas completas características. Mais uma vez aqui está presente o

saber de especialista em Balzac, que denota sua posição-sujeito. No exemplo seguinte isso

fica ainda mais claro:

Globo: Nota 23: Viscondessa de Beauséant: uma das belas e grandes figuras femininas do mundo balzaquiano, cuja história é narrada na novela A Mulher Abandonada. L&PM: Nota 23: Viscondessa de Beauséant, personagem de A comédia humana (Gobseck, O gabinete das antigüidades, A mulher abandonada, Albert Savarus, Os segredos da princesa de Cardignan). (N.T.)

Aqui, Rónai realmente “se envolve” com a personagem de que fala: “uma das belas e

grandes figuras femininas do mundo balzaquiano” denota mais uma vez seu conhecimento

aprofundado da obra e também a capacidade, por sua posição, de apresentar suas características

em meio ao “mundo balzaquiano”. Já a nota da L&PM guarda o formato citado.

Outra característica que ressalta o caráter de formato mais enciclopédico das N.T. da

L&PM é o fato de, quando do esclarecimento sobre alguma personagem real, sempre serem

citadas as datas de nascimento e morte dessa pessoa. Isso caracteriza claramente uma

formulação enciclopédica, dicionarizada, que aponta para o interdiscurso, pois o leitor pode

reconhecer, nesse caso, a formatação de uma fonte de consulta legitimada. Vejamos:

Globo: Nota 76: Jean François d’Escars: mordomo de Luís XVIII, glutão famoso, que teria morrido de indigestão após haver comido de um prato preparado exclusivamente para o rei e ele mesmo. L&PM: Nota 77: Duque de Escars (1747-1822), primeiro maître de Louis XVIII. Morreu de indigestão e obteve de seu patrão real a seguinte oração fúnebre: “Esse pobre Escars! Possuo no entanto um estômago melhor do que o dele!” (N.T.)

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A data presente na nota 77 estabelece para o leitor uma certa distância do texto. Ele

tem a impressão de estar lendo uma informação em uma obra especializada. O mesmo se diga

para as informações que seguem: de caráter histórico, acabam por trazer um discurso

histórico. Já na nota 76 pode-se observar, novamente, um envolvimento maior de seu autor

com o assunto do qual está tratando: “glutão famoso” denota um julgamento de valor. Nesse

sentido, Rónai, por meio de seu texto, estabelece um laço mais íntimo com o leitor, dirigindo-

lhe opiniões, convidando-o, de certa forma, a compartilhá-las com ele.

Até o momento, todas as notas citadas, com exceção das duas últimas, ganharam a

classificação (6), tendo as últimas o número (1), pois se referem a personagens reais. E por

coincidência, os pares de notas receberam a mesma classificação nesses casos. No entanto,

não é sempre que isso acontece, como pode ser observado no corpus do Apêndice. Há notas

que, apesar de tratarem do mesmo trecho, ou até do mesmo assunto, receberam classificações

distintas. Como exemplo, temos:

Globo: Classificação (5) Nota 14: Jafé: engano de Balzac. Na verdade, Japeto, lembrado na Mitologia como pai de Prometeu, que roubou do céu o fogo para os homens. Considerado às vezes como antepassado de toda a humanidade; daí, “filhos de Japeto” são todos os homens. L&PM: Classificação (7) Nota 12: Balzac provavelmente pretendia fazer alusão a um verso célebre (“Ao navio”, Odes) do poeta latino Horácio (65 a.C.-8 a.C.). O trecho “à raça audaciosa dos filhos de Jafé” seria uma tradução de “audax Iapeti genus”. Na ode de Horácio, a descendência de Jáspeto designa não somente Prometeu, mas todos os homens, considerados filhos deste último. Ao errar a grafia do nome, Balzac acaba por remeter erroneamente ao personagem bíblico Jafé, filho caçula de Noé, do qual descende a raça branca. No entanto, a referência bíblica não parece fazer sentido algum nesse contexto. (N.T.)

Ambas as notas referem-se à mesma palavra do texto das traduções: Jafé; no entanto,

como se percebe, portam discursos distintos.

A primeira característica que se nota em ambas as notas é que elas apontam o possível

engano de Balzac. Mas, mesmo aqui, mais uma vez está presente a diferença de discurso dos

redatores: se Rónai logo de início já afirma “engano de Balzac”, as duas tradutoras são mais

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cautelosas, usando como termo amenizador a palavra “provavelmente”, que remete a uma

dúvida, porém, mais adiante, tornando também o discurso assertivo: “Ao errar a grafia do

nome...”. Trata-se, nesse caso, de um recurso de linguagem que torna o discurso menos

incisivo.

Quanto à classificação, a primeira ganhou o número (5) – alusivas a obras e

personagens literárias e mitológicas –, ao passo que a segunda, o número (7) – explicações de

expressões, problemas e curiosidades da tradução. Isso se dá porque, na primeira nota, o texto

se prende à explicação da personagem mitológica citada, com a devida correção do nome. Já

na segunda, além de a grafia correta do nome diferir daquela dada por Rónai – Japeto para a

primeira e Jáspeto para a segunda –, o texto procura esclarecer o engano do autor, mais uma

vez usando o recurso enciclopédico das datas. Contudo, mesmo com essa pretensa “isenção”

discursiva, as tradutoras marcam seu lugar, revelam-se, na última frase: “No entanto, a

referência bíblica não parece fazer sentido algum nesse contexto”. A conjunção adversativa

revela um embate entre o tradutor e o autor, no qual este se permite discordar daquele. Há um

diálogo implícito, aqui, entre os dois. As tradutoras, ao usarem a locução verbal “parece

fazer” ao invés de “faz”, de certa forma mantêm a dúvida do início, amenizando o discurso, e

parecem perguntar ao autor o que é o correto, inferindo, daí, uma resposta, que já havia sido

dada ao dizerem “ao errar a grafia do nome”.

Rónai, se tivesse tido a oportunidade de ler essa nota, talvez não aprovasse seu texto.

Em A tradução vivida, ao tratar das notas de pé de página, relata que já lhe acontecera de

encontrar tradutor que em suas glosas se permitia discutir com o autor ou contradizê-lo abertamente. Uma colaboração desse tipo lembra a do Urso que, na conhecida fábula de La Fontaine, para enxotar uma mosca pousada no nariz do Homem seu amigo, esmagou a ambos com um paralelepípedo (1981, p. 100).

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Quando as tradutoras redigem a nota, apresentando a possibilidade de um engano de

citação, e não simplesmente corrigem um erro de grafia, elas estão discutindo com o autor,

estão contradizendo-o. Rónai, por seu turno, redige a nota de forma que o leitor pensa tratar-

se somente de um erro de grafia, o que pode até ter sido. Mas elas levantam a cortina que

esconde algo que não deveria ser dito. Ao levantar esse véu, fazem como o Urso da fábula

narrada por Rónai e esmagam o autor e, por sua vez, a si mesmas, por não terem o direito de

discutir com o autor.

Há outro trecho de seu livro que corrobora o que vem sendo dito:

Em geral é preferível que o tradutor se considere o procurador do autor antes que o seu colaborador. Quanto à medida de sua colaboração, as opiniões divergem. Todos concordarão em que ele pode e deve corrigir os erros tipográficos do original, eventuais trocas de palavras e confusões de nomes. Mas, segundo Valery Larbaud, não deve passar disso: (...) (1981, p. 98).

Agindo como um colaborador restrito, Rónai somente “corrige” a eventual falha de

Balzac, sem especular se seria ou não aquilo que ele queria dizer. As tradutoras, ao contrário,

agem como interventoras, influindo no texto e levantando a hipótese de que houve um

engano. Assim, pela concepção tradicional, elas passam a coautoras, mais do que tradutoras,

pois não se limitam a apenas transmitir a mensagem do texto original. Por outro lado,

relembrando o que foi dito nos capítulos anteriores, sendo a tradução um processo de

interpretação, esta fica muito evidente no texto da nota da L&PM.

Contudo, Paulo Rónai, apesar de preconizar essa isenção do tradutor em relação ao

texto da tradução, permitindo somente sua intervenção, a menor possível, nas notas e nos

outros paratextos, não se dá conta de que as N.T. estão sempre em uma dupla posição:

marcam o lugar do tradutor, fazendo-o “visível”, mas ao mesmo tempo criam a ilusão de que

seu discurso está presente somente ali, no rodapé. Ou seja, contribuem para a ilusão de que o

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texto traduzido é reprodução fiel do original. As N.T. dão a ilusão de que o discurso pode ser

controlado, pois este está delimitado no espaço do rodapé da página. Segundo Mittmann: “O

discurso da N.T. ocupa um lugar à parte, fora do texto da tradução, e ao mesmo tempo é uma

retomada de um elemento daquele texto, que é a expressão a ser definida, comentada etc. É

uma extensão que, geralmente, cria a ilusão de um fechamento de sentido” (2003, p. 129), isto

é, a ilusão de controle discursivo.

3.3 AS N.T. DAS DUAS EDIÇÕES BRASILEIRAS DE O PAI GORIOT

De início, pelo quadro classificatório apresentado no tópico anterior e seus resultados

em termos de contagem de notas, apresentados adiante, podemos concluir que ambas as

traduções são edições eruditas, porque, como já dito no capítulo 1, trazem “todo um aparelho

de notas críticas, dando detalhes biográficos, bibliográficos, históricos, sobre as diferentes

versões sucessivas dos textos, etc.” (Henry, 2000, p. 230). Ou seja, pelas N.T. presentes nos

textos, pode-se perceber que a intenção dos tradutores não era somente traduzir o texto, mas

também esclarecer o leitor de todos os obscurantismos que o original do autor pudesse ter.

Entretanto, essa forma de agir dos tradutores pode não ser consciente. Ela é derivada da

perspectiva tradicional da tradução, de que ao tradutor cabe o papel de interpretar

corretamente o texto, porque teria acesso ao pensamento do autor. Segundo Mittmann (2003,

p. 159), deve-se “à responsabilidade atribuída ao tradutor em não deixar espaços em aberto”,

ou seja, espaços em aberto no sentido.

No quadro classificatório já apresentado, tivemos a seguinte contagem de N.T. para as

142 notas da edição da Globo e as 84 da L&PM:

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Globo L&PM

Primeira classificação:

(I) 16 notas 6 notas

(IIa) 38 notas 31 notas

(IIb) 108 notas 50 notas

Segunda classificação:

(1) 36 notas 28 notas

(2) 2 notas 2 notas

(3) 7 notas 2 notas

(4) 25 notas 8 notas

(5) 23 notas 10 notas

(6) 18 notas 29 notas

(7) 31 notas 5 notas

(8) 13 notas 2 notas

A primeira classificação refere-se a que tipo de saber as notas portam, isto é: (i) um

saber de tradutor, pois tratam de problemas de tradução; (IIa) um saber de especialista em

Balzac; e (IIb) um saber de historiador, acadêmico ou professor, ou seja, de intelectual. Pode-

se perceber pelo quadro que o número maior de N.T. está na classificação (IIb), o que

corrobora o que foi dito no primeiro parágrafo deste tópico, que as duas traduções configuram

edições eruditas, pois têm o intuito de informar o leitor, esclarecer dúvidas que, supostamente,

ele poderia ter. Isso é reforçado quando observamos a segunda classificação. A que apresenta

o maior número de notas, para ambas as obras, é a de número (1), referente a personalidades –

autores, cientistas, filósofos, poetas, etc. –, lugares e acontecimentos históricos reais. A

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interpelação ideológica sofrida pelos tradutores faz com que eles produzam uma imagem do

leitor da obra: um leitor que precisará de esclarecimentos, que deve ser ensinado e informado,

um leitor ávido por conhecimento.

Usando como exemplos as notas do corpus, apresentado completo no Apêndice,

verificaremos agora in loco como se dão essa interpelação ideológica, que permeia todo e

qualquer discurso, a formação de imagens e também a produção de saberes no discurso das N.T.

Veremos que todas as notas ganharam pelo menos um número das duas classificações, “pelo

menos um número” porque se pode verificar que em muitos casos algumas notas ganharam

mais de um número da mesma classificação, apresentando, assim, características múltiplas.

3.3.1 PRIMEIRA CLASSIFICAÇÃO: QUE TIPO DE SABER AS NOTAS PORTAM

Observemos o seguinte trecho:

Globo: Texto de referência: “Ele tem apenas uma bossa, a da paternidade. Será um padre eterno53.” Classificação (I); (7) Nota 53: Padre eterno: em francês “pai” e “padre” se exprimem pela mesma palavra, père.

A classificação de número (I) refere-se às notas do tradutor – que expressam

esclarecimentos sobre a tradução. Essa classificação compreende o esclarecimento de

expressões do texto original, tanto no próprio francês como em outras línguas, e alguns

problemas de tradução. Frequentemente, por sua característica, vem acompanhada do número

(7) da segunda classificação: explicações de expressões, problemas e curiosidades da

tradução, como se pode ver no exemplo citado. Aqui, o tradutor se revela exatamente em sua

função e apresenta, segundo Mittmann, a “expressão da incerteza”, pois “não traz a definição

como verdade absoluta”. Rónai, ao apresentar na nota uma segunda definição para père,

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divide a interpretação com o leitor, dizendo-lhe que, apesar de sua escolha ser aquela,

“padre”, existe também a segunda, “pai”. Esse caso mostra, então, “o embate entre, por um

lado, a tentativa de não deixar em aberto o sentido, preenchendo-o com uma definição ou

apontando para um suposto referente, e, por outro lado, a incerteza, a manifestação de que o

sentido pode ser outro” (Mittmann, 2003, p. 160). Aqui, vemos o que foi dito anteriormente,

que o tradutor carrega a responsabilidade de não deixar nenhum espaço em aberto, nenhuma

“falha” de sentido. Essa suposta função do tradutor é preconizada por aqueles que seguem a

concepção tradicional do tradutor, que desejam para ele um apagamento do seu discurso em

face do discurso do autor. Contudo, como se pode perceber, essa atitude revela o tradutor em

seus impasses, suas dúvidas, e abre para a informação de que o discurso da tradução pode

apresentar múltiplos sentidos. No exemplo tratado, aproxima o processo tradutório do leitor,

ao convidá-lo a perceber um outro discurso: no lugar de “padre”, que foi primeira escolha,

pode ser “pai”, uma outra escolha possível, parece o tradutor querer dizer.

Em outro exemplo, temos:

L&PM: Texto de referência: “Se fizer algumas pequenas baixezas políticas, como ler num boletim Vitel69 em vez de Manuel (dá rima, deixa a consciência tranqüila70), será, aos quarenta anos, procurador geral e poderá se tornar deputado.” Classificação: (I); (7) Nota 69: No original, Villèle. Optamos pela mudança de grafia para que o texto (a rima logo a seguir mencionada) faça sentido para o leitor brasileiro. (N.T.)

A primeira questão a se observar é que, no mesmo trecho na tradução da Globo, há

somente uma nota, e ela está localizada em outro lugar, não apresentando a mesma

classificação que a da L&PM, pois o texto não tem o mesmo caráter. Nesse caso, vamos

utilizar somente esta última para ilustrar nosso exemplo.

Como vemos nesse trecho, a nota 69 trata-se de uma típica nota do tradutor, em que

este explica uma posição tomada na hora do processo tradutório, o porquê de ter sido alterada

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uma grafia. Segundo Mittmann, a “marca de primeira pessoa [nesse caso, ‘optamos’],

apontando para o tradutor, é uma reafirmação do tradutor como enunciador do discurso da

N.T.” (2003, p. 141). E, mais adiante, “o tradutor se coloca como sujeito enunciador, do lado

de fora do seu dizer e capaz de comentar e justificar o próprio discurso” (ibidem). Isso só é

possível pela ilusão de que o processo tradutório, no lugar de produzir discurso, acessa o

discurso do autor, reproduzindo-o fielmente. Essa ilusão não é percebida pelo tradutor, que

toma o cuidado de justificar suas escolhas com receio de “ferir” o texto original ao alterá-lo.

A alteração de uma grafia pelo tradutor poderia ser vista como “erro”, “deslize”, o que

comprometeria o trabalho do tradutor como profissional e atestaria sua infidelidade ao texto

original.

Já a classificação de número (II), que apresenta as notas de erudição – aquelas que

expressam a erudição e o saber de quem as redigiu –, foi subdividida em: (a) um saber de

especialista em Balzac e (b) um saber de historiador, acadêmico ou professor. Aqui, o tradutor

se mune de seu poder-saber para apresentar conhecimento, esclarecimento ao leitor. Saindo da

sua posição-sujeito de tradutor, ou melhor, incorporando outras posições-sujeito, o tradutor

revela seu conhecimento de especialista em determinada área, fazendo com que o

conhecimento apresentado ganhe legitimidade pela posição-sujeito que passa a ocupar. Nesse

caso, apresenta-se também uma rica formação imaginária, em que o profissional da tradução

tece seu discurso visando a um determinado tipo de leitor, ao mesmo tempo em que se baseia

em uma determinada imagem que faz do autor do texto original, de sua obra e da função que

ela exerce, ou da posição que ela ocupa em dado campo literário.

A subclassificação (IIa), que remete à especialidade em Balzac, compreende um

grande número de notas para ambas as edições de O pai Goriot: 38 para a da Globo e 31 para

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a da L&PM. Essa classificação está diretamente ligada às de números (6) e (8) da segunda

classificação, que compreendem as notas (6), alusivas a outros romances da Comédia ou aos

personagens que apareceram ou aparecerão nesses outros romances, ou a qualquer fato

relativo a essas personagens, e (8), sobre o próprio Balzac e sua obra. São notas que denotam

um conhecimento da obra balzaquiana e o desejo de inteirar o leitor dos seus pormenores, seja

remetendo-o aos meandros da obra, relacionando os romances, seja apresentando algumas

características do próprio Balzac com relação à Comédia e ao tempo em que esta foi escrita.

Como já foi dito, o próprio Rónai se apresenta como “especialista em língua e

literatura francesa”, tendo defendido “tese sobre Balzac” (1981, p. 184), o que o legitima para

coordenar o trabalho da tradução completa da Comédia. Já as tradutoras da L&PM, apesar de

não se apresentarem dessa forma, têm uma tradução, como visto, que de certa forma se

aproxima da coordenada por Rónai, pois elas também redigem inúmeras N.T., sendo algumas

claramente um esclarecimento sobre a obra balzaquiana e seu autor.

É interessante notar, nesse ínterim, que a edição de Le père Goriot publicada pela Le

Livre de Poche em 1995 também se configura como uma edição erudita, dessa vez da obra

original. Na folha de rosto, vemos a seguinte frase: “Introduction, notes et dossier de

Stéphane Vachon”,∗ e, no fim do livro, no dossiê, lemos: “Le lecteur trouvera, dans nos

commentaires et notre dossier, quelques services annexes et des compléments indispensables

à son étude de ce roman de Balzac (...)”∗∗ (1995, p. 357). Ou seja, como as edições

brasileiras, objeto de análise deste trabalho, a edição francesa citada também tem uma

introdução e está repleta de notas, quase uma por página também, apresentando, no fim, um

grande anexo, chamado de dossiê, que contém explicações sobre a obra, sobre o próprio

Balzac e sua época, além de trazer alguns documentos. Considerando esse fato, podemos

∗ “Introdução, notas e dossiê de Stéphane Vachon”. ∗∗ “O leitor encontrará, em nossos comentários e dossiê, alguns ofícios anexos e complementos indispensáveis a seu estudo deste romance de Balzac (...)”.

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levantar a hipótese de que seria de praxe, assim, publicar as edições de tradução em um

volume de estudo, por causa da fortuna da obra.

Retomando a classificação (IIa), de início já se pode entrever que imagens Paulo

Rónai apresenta dele mesmo, explicitadas mais claramente na classificação (6), alusiva às

personagens da Comédia. Esse autor, ao se mostrar tão meticuloso e criterioso na redação das

notas, dá a perceber que se trata de alguém que detém um saber sobre o assunto do qual está

tratando, ou seja, um saber de especialista em Balzac, pois somente um especialista nesse

autor poderia conhecer a fundo essa obra, composta de 17 volumes. Paulo Rónai, aqui, age

como um acadêmico, professor, que ensina aos alunos onde devem buscar o conhecimento

necessário. Ele dá uma explicação que faz com que o leitor se sinta atraído por ler os outros

romances e lhe transmite a imagem de que ele detém esse saber, mesmo que esse leitor não

saiba quem foi Paulo Rónai e qual o seu grau de erudição e formação. O mesmo se dá com as

tradutoras na edição da L&PM, com a diferença de que, como vimos, as notas relativas aos

outros romances da Comédia, ou classificação (6), têm um formato enciclopédico e almejam à

exaustividade na apresentação dos outros romances da obra ou das personagens que

apareceram ou aparecerão nesses outros romances, bem como de qualquer fato relativo a

essas personagens. Vejamos alguns exemplos:

Globo: Texto de referência: “De lá, ele voltou a este bairro, à rua do Grês, e entrou na casa de um conhecido usurário, chamado papá Gobseck36, um grandíssimo patife,...” Classificação: (IIa); (6) Nota 36: Gobseck: essa personagem de Balzac é encontrada em Gobseck, novela cronologicamente posterior a O Pai Goriot, mas que no plano da Comédia Humana o precede. L&PM: Texto de referência: “Ele voltou para este bairro, pela Rue des Grès, onde entrou na casa de um agiota conhecido, chamado Gobseck50, um tipo estranho,...” Classificação: (IIa); (6) Nota 50: Jean-Esther van Gobseck, personagem de A comédia humana (Gobseck, César Birotteau, Contrato de casamento, Os camponeses). (N.T.) Globo: Texto de referência: “Lá está de Marsay no camarote da princesa Galathionne80.” Classificação: (IIa); (6) Nota 80: Princesa Galathionne: personagem balzaquiana cujos bailes freqüentava a Condessa Félix de Vandenesse (Uma Filha de Eva) e cujo marido quis seduzir a sra. Schontz, amante do Marquês de Rochefide (Beatriz). L&PM: Texto de referência: “Eis ali de Marsay no camarote da princesa Galathionne80.”

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Classificação: (IIa); (6) Nota 80: Princesa Galathionne, personagem de A comédia humana (Uma filha de Eva). (N.T.)

Contudo, esse saber de “especialista” em Balzac também pode ser verificado em

outros exemplos, e não se refere somente à classificação (6). O professor Rónai apresenta,

frequentemente, pormenores da obra balzaquina, de seu autor, fatos que são revelados ao

leitor às vezes a título de curiosidade, outros, como esclarecimento de algum ponto obscuro.

Verifiquemos nos trechos seguintes:

Globo: Texto de referência: “‘Parece tão forte como Augusto, rei da Polônia!’33,...” Classificação (IIa) e (IIb); (1) Nota 33: Trata-se de Augusto de Saxe (1670-1733), que Balzac provavelmente confunde com seu filho, o marechal de Saxe, de uma força lendária. Globo: Texto de referência: “a fim de não cometer nenhuma dessas asneiras, em face das quais se diz pitorescamente na Polônia: Atrele cinco bois a seu carro!43, certamente para tirar a vítima do atoleiro em que se meteu.” Classificação (IIa); (8) Nota 43: Atrele cinco bois a seu carro!: reminiscência do encontro de Balzac com a Condessa Hanska em 1833. Alusões como esta, disseminadas nos romances de Balzac, constituíam uma espécie de correspondência disfarçada para a amante distante. Globo: Texto de referência: “– Chá que a zenhorra o convita – disse o barão, espesso alsaciano, cujo rosto redondo denunciava uma astúcia perigosa –, pode estar zecurro de zer pem recepido82.” Classificação (I) e (IIa); (8) Nota 82: Balzac gosta muito de transcrever o sotaque de suas personagens estrangeiras. O tradutor procurou imitá-lo, fazendo o Barão de Nucingen pronunciar o português à maneira alemã.

Este primeiro grupo de notas traz discursos reveladores. À primeira vista, podemos

observar que são todas da Globo e não trazem como contraponto nenhuma da L&PM. Ou

seja, nesta última edição não existia nota que correspondesse ao mesmo trecho das de Rónai.

Todas elas trazem a classificação (IIa) e duas trazem a de número (8), que, como já vimos,

está diretamente ligada ao saber de especialista em Balzac.

No trecho inicial vemos o seguinte fragmento de frase: “Balzac provavelmente

confunde com seu filho”. É interessante notar como Rónai apresenta aqui uma dúvida e

sugere uma correção do texto do autor, apontando-lhe uma falha, estando isso coerente com o

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discurso que apresenta em seu livro, segundo o qual, sobre o nível de colaboração que o

tradutor deve ter com o autor ao traduzir seu texto, “ele pode e deve corrigir os erros

tipográficos do original, eventuais trocas de palavras e confusões de nomes” (1981, p. 98).

No segundo trecho, encontramos: “reminiscência do encontro de Balzac com a Condessa

Hanska em 1833. Alusões como esta, disseminadas nos romances de Balzac, constituíam uma

espécie de correspondência disfarçada para a amante distante”. Aqui Rónai expressa todo o seu

conhecimento não só da obra balzaquiana, mas também da vida do autor. Assim, divide com o

leitor uma informação que, longe de ser necessária ao entendimento da obra, serve como floreio

e curiosidade do mundo balzaquiano, que logicamente transcendia sua obra.

Já no último, temos: “Balzac gosta muito de transcrever o sotaque de suas personagens

estrangeiras”. O que chama a atenção aqui é o verbo no presente: “gosta”, que dá uma

sensação de intimidade entre o “tradutor”, o especialista Rónai, e o autor. Esse trecho mostra

que tal atitude por parte de Balzac é corriqueira: ele “gosta”, e que Rónai sabe disso,

compartilha isso. Há um sabor de confidência aqui.

Passemos a outro caso:

Globo: Texto de referência: “– Olhe aqui – replicou o estudante de Medicina –, ao sair da aula de Cuvier87,...” Classificação (IIa) e (IIb); (1) e (8) Nota 87: Georges de Cuvier (1769-1832): fundador da Anatomia Comparada e da Paleontologia, citado no Prefácio de A Comédia Humana; o próprio Balzac assistiu a suas aulas e procurou aplicar-lhe as teorias à sociedade humana. L&PM: Texto de referência: “– Então me conte – continuou o estudante de Medicina saindo do curso de Cuvier83...” Classificação (IIb); (1) Nota 83: Barão Cuvier (1769-1832), naturalista francês, conselheiro de Estado, professor de História Natural no prestigioso Collège de France. (N.T.)

Nesses trechos, já temos o contraponto entre as duas notas e podemos observar algo

interessante: enquanto a classificação da primeira nota é uma, a da segunda é outra. A

classificação da nota da Globo é múltipla, trazendo tanto um saber de especialista em Balzac

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como um de historiador, acadêmico. Da mesma forma, trata tanto de apresentar um

esclarecimento sobre personalidades reais, ganhando a classificação (1), como sobre o próprio

Balzac, demonstrado pelo número (8). Isso porque a nota começa de forma enciclopédica, até

mesmo similar à da L&PM – “Georges de Cuvier (1769-1832): fundador da Anatomia

Comparada e da Paleontologia” –, mas em seguida continua com a ligação da personagem

com Balzac, transcendendo a literatura para a vida real, pois o autor até mesmo assistiu a suas

aulas e procurou aplicar suas teorias. Em contraponto, a nota da outra edição limita-se a

explicar quem foi Cuvier e por isso se circunscreve a um saber de historiador, ou seja,

enciclopédico, sobre uma personagem real, classificações (IIb) e (1), respectivamente.

Continuando ainda na classificação (II), passemos à sua subclassificação (IIb), que

traz um saber de historiador, acadêmico ou professor. No trecho a seguir, observa-se como

esse saber se manifesta:

Globo: Texto de referência: “O carro da civilização, semelhante ao do ídolo de Jaggernat2,...” Classificação (IIb); (2) Nota 2: Ídolo de Jaggernat: alusão a uma prática dos fanáticos de Jaggernat ou Djaggernat, cidade da Índia, os quais em determinados dias de festa se atiram sob as rodas do carro gigantesco no qual a estátua do deus é carregada pelas ruas. L&PM: Texto de referência: “O carro da civilização, qual o do ídolo de Jaggernat1,...” Classificação (IIb); (2) Nota 1: Jaggnernat ou Jaggernaut (em sânscrito Jaggannatha, “senhor do universo”): Deus hindu, cuja estátua, em gigantesco carro triunfal, era rolada para fora do tempo e cujos devotos muitas vezes morriam por se curvar em êxtase religioso diante do carro. (N.T.)

Primeiramente, o que temos de observar é o tipo de saber que essas notas portam. Ao

esclarecer o leitor, elas exercem a função de um professor, ou historiador, ou seja, portam um

saber enciclopédico – sendo ambas alusivas a costumes e hábitos, ganhando também a

classificação (2) –, e assim fazem com que seu discurso seja legitimado. Mas, o mais

interessante é como esse discurso é expresso.

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Claramente, Paulo Rónai esclarece-o por meio de um julgamento de valor revelado em

seu discurso de tradutor: “alusão a uma prática dos fanáticos de Jaggernat ou Djaggernat”. A

palavra grifada revela que, para ele, a atitude dos indianos, em face da festa de um de seus

deuses, é vista como fanatismo. É com os olhos de homem ocidental que Paulo Rónai

descreve essa prática; ele não leva em conta as diferenças culturais, de costumes, sobretudo

religiosas, para descrever o ritual indiano. Ou seja, Paulo Rónai passa aqui uma certa imagem

de intolerância para com costumes diferentes dos seus, além de também produzir uma

imagem para o leitor de que essas pessoas são fanáticas, que o leitor menos desavisado não

questionará, tendo em vista que o discurso do tradutor é legitimado como o discurso do saber

no campo da tradução a que se refere. Além disso, o autor reproduz, de certa forma, o

discurso do homem ocidental, que vê com olhos críticos as manifestações religiosas orientais.

Seu discurso, nessa nota, reflete uma posição etnocêntrica, de olhar estrangeiro, que toma

sempre por base a própria cultura para olhar a do outro – nesse caso, a cultura de homem

ocidental, mas sobretudo de europeu, já que Rónai não era brasileiro, mas húngaro. Assim, o

tradutor deve tomar cuidado em estabelecer uma “ética da tradução”, como propõe Venuti,

que se traduz na escolha do léxico usado no texto da tradução, mas também certamente no

discurso do tradutor presente nas notas, pois esses discursos podem ter efeitos sociais que

podem ser estabelecidos pela tradução (Venuti, 2002, p. 195).

Em contraponto à nota da Globo, pode-se perceber que a da L&PM porta um discurso

bem diferente: além de trazer “Deus” em letra maiúscula, o que já denota respeito pela

religião hindu (usualmente Deus em maiúsculo só é usado para o Deus Supremo das religiões

monoteístas judaico-cristãs, não para as politeístas), em vez de “fanáticos”, as tradutoras

referem-se aos praticantes do ritual como “devotos”, bem como, diferentemente de Rónai, que

afirma que eles “se atiram sob as rodas do carro gigantesco no qual a estátua do deus é

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carregada pelas ruas”, elas afirmam que eles se curvam “em êxtase religioso diante do carro”.

Podemos perceber aqui a presença da interpelação ideológica. Estamos na época do

“politicamente correto”, da “tentativa de tolerância” para com outras práticas religiosas, bem

como da “tentativa de aceitação” de outras culturas e manifestações, seja de que ordem forem.

O mesmo não acontecia na época em que Rónai redigiu as notas do tradutor. As notas desse

exemplo revelam, em seu discurso, muito mais do que a presença do tradutor; elas

demonstram um tipo de formação intelectual e cultural, um tipo de saber que está calcado em

determinadas epistemes epocais. As grandes redes organizadoras do saber das tradutoras da

L&PM são manifestamente outras, se comparadas com as do discurso de Rónai. Indo além, a

N.T. de O pai Goriot tem muito mais um caráter de enciclopédia do que a de Rónai, percebida

pela preocupação em dar o significado em outra língua: “(em sânscrito Jaggannatha, ‘senhor

do universo’)”. Vemos aqui, então, a interpelação do interdiscurso, isto é, do discurso

histórico, que é usado para “dar sustentação ao seu discurso, ao definir e delimitar o sentido

de uma expressão do texto da tradução” [“senhor do universo”]. “Esse outro discurso pode ser

proveniente de dicionários, obras de temas específicos, enciclopédias etc. E entra no espaço

da nota com um intertexto (...)” (Mittmann, 2003, p. 145). Notemos em outro exemplo:

Globo: Texto de referência: “Encontram-se ali móveis indescritíveis, proscritos em toda a parte, mas postos ali como os rebotalhos da civilização nos Incuráveis7.” Classificação: (IIb); (4) Nota 7: Incuráveis: nome de um hospício em Paris, construído na rua de Sèvres em 1634 para acolher anciães indigentes e incapazes de ganhar a vida. L&PM: Texto de referência: “Ali se encontram daqueles móveis indestrutíveis, proscritos em toda parte, mas lá colocados como são as sobras da civilização para os Incurables5.” Classificação: (IIb); (4) Nota 5: Incurables, hospital parisiense que recebia não apenas doentes desenganados, mas também idosos, indigentes e paralíticos. (N.T.)∗

∗ Sobre a diferença de palavras nos trechos das traduções: “indescritíveis” e “indestrutíveis” para as notas da Globo e da L&PM, respectivamente, ver o trecho em francês da edição da Livre de Poche: “Il s’y rencontre de ces meubles indestructibles, proscrits partout, mais placés là comme le sont les débris de la civilisation aux Incurables” (1995, p. 54). A palavra indestructibles significa algo que não pode ser destruído, ou seja, indestrutível. Vemos aqui que a edição da L&PM traz a correção de um deslize cometido pela tradução da Globo.

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Essas notas, como segunda classificação, ganharam o número (4), que se refere a

descrições de lugares em Paris, tanto que ainda existem como que não existem mais.

Entretanto, o discurso que apresentam se revela bem diferente entre ambas. O que chama a

atenção logo de início é a escolha entre “hospício” e “hospital”. O primeiro significado para

“hospício”, no dicionário de português, é para “estabelecimento onde se dá hospedagem e/ou

tratamento gratuitos a pessoas pobres ou doentes; asilo, abrigo” (Houaiss eletrônico, verbete

“hospício”). E em francês, a par da palavra “hôpital” usa-se “hospice” para esse tipo de

estabelecimento, sendo esta última mais usada na época, por guardar o sentido de, em 1770,

“établissement public ou privé qui accueillait des orphelins, des enfants abandonnés, des

vieillards, des infirmes, des malades incurables”∗ (Le Petit Robert, 2000, p. 1.236). No

entanto, na língua portuguesa do Brasil essa palavra aos poucos foi migrando para a segunda

entrada do verbete como uso mais comum: “asilo de loucos; hospital de alienados;

manicômio”, enquanto “hospital” não guarda esse significado. Assim, pode-se inferir que o

uso de “hospital” na tradução mais recente da obra se deve a essa mudança de significado, ou

seja, à adequação a um uso mais corriqueiro, o que, sem dúvida, exclui a possibilidade de

entendimento de que os Incurables fosse um manicômio. Acontece que, naquela época, os

internamentos eram conjuntos, isto é, era confinado junto todo tipo de gente, desde doentes

físicos a doente mentais, desde pessoas que não tinham onde morar até idosos, pois não havia

o reconhecimento dos doentes mentais como doentes mentais; a “loucura”, como conceito,

não era reconhecida. Assim, a instituição do hospício, como a conhecemos hoje, não existia.

Dessa forma, quando Rónai escolhe a palavra “hospício” como tradução, automaticamente

privilegia um tipo de significado, que é o de loucura, ao passo que as tradutoras privilegiam o

de doença. Isso revela que “o sentido não é universal, mas é produzido por uma posição

∗ “2. (1770) Estabelecimento público ou privado que acolhia órfãos, crianças abandonadas, idosos, enfermos, doentes incuráveis.”

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ideológica, dentro de uma comunidade” (Mittmann, p. 150). É o que afirma a autora mais

adiante, na mesma obra, na página 153:

o tradutor, ao atribuir – através do atravessamento de um outro discurso, ou não – um sentido para a palavra, silencia os demais sentidos possíveis. O silenciamento, espontâneo ou não, mas sempre necessário para que se possa dizer algo, está diretamente ligado à tentativa de controle do discurso.

Assim, Rónai, ao optar por determinado significante, “hospício”, indica ao leitor um

possível caminho de interpretação, e o mesmo o fazem as tradutoras quando optam por

“hospital”. No significante escolhido por Rónai está oculta a palavra “louco”, mesmo não

tendo sido citada por ele; é ela que sobressai. Já no escolhido pelas tradutoras sobressai o

significado “doente”, e não necessariamente o “doente mental”, mas qualquer um que precise

de cuidados médicos. Verificamos aqui, mais uma vez, a interpelação ideológica sofrida pelo

tradutor, em que “a ideologia se apresenta como prática, como materialidade, atuando

internamente no processo tradutório e, portanto, no discurso do tradutor, criando no e pelo

discurso os efeitos de evidência, universalidade e individualidade” (Mittmann, 2003, p. 172).

É nesse sentido que se afirmou, no início desta pesquisa, que nenhum discurso é isento, pois o

sujeito é perpassado pelas formações ideológicas, discursivas, em que está inserido, e seu

discurso exibe outros discursos que se apresentam pelo atravessamento do interdiscurso.

Ainda no âmbito de (IIb), também se pode perceber que não só a imagem de

“historiador” da obra balzaquiana é apresentada nas notas, mas a de historiador no sentido

daquele que estuda História:

Globo: Texto de referência: “Tem o olhar vidrado, a expressão inocente de uma alcoviteira que se agasta para se fazer pagar mais caro, mas, por outro lado, parece disposta a tudo para amenizar a sorte, a entregar Georges9...” Classificação (IIb); (1) Nota 9: Georges Cadoudal: famoso conspirador monarquista, preso em 9 de março de 1804 e executado em 25 de junho do mesmo ano.

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Globo: Texto de referência: “...ou Pichegru10...” Classificação (IIb); (1) Nota 10: O General Pichegru: cúmplice de Georges Cadoudal, que se suicidou na prisão em 5 de abril de 1804.

L&PM: Texto de referência: “Ela tem os olhos sem brilho, o ar inocente de uma alcoviteira que vai se enfurecer para receber mais, mas que está disposta a tudo para se dar melhor, a entregar Georges ou Pichegru6...” Classificação (IIb); (1) Nota 6: Georges Cadoudal (1771-1804) e Jean Charles Pichegru (1761-1804), monarquistas franceses que, por conspirarem contra Napoleão Bonaparte, foram denunciados e presos em 1804. (N.T.)

No trecho citado, a nota 6 da edição da L&PM trata dos assuntos das notas 9 e 10 da

Globo, por isso a deslocamos um pouco no parágrafo, para dar destaque a esse fato.

As duas notas da Globo fazem parte de uma mesma sequência de texto, como se pode

notar, e é por esse motivo, provavelmente, que as tradutoras da edição da L&PM colocaram

uma nota só. As três possuem a mesma classificação, apresentando um saber de historiador,

acadêmico, sobre personagens reais. Nesse caso, o saber é transmitido de modo a informar o

leitor sobre quem foram as personagens, como um historiador comumente faz, ao transmitir

informações sobre fatos que são de seu conhecimento acadêmico. Contudo, novamente

percebemos nas notas de Rónai um julgamento de valor e palavras em uma construção frasal

mais “emotiva” que a da outra nota. O trecho “famoso conspirador monarquista” retira a

pretensa ilusão de neutralidade que o discurso enciclopédico que a nota 6 da L&PM pretende

passar. Rónai, nesse caso, ao usar a palavra “famoso”, que denota um julgamento de valor,

apresenta sua opinião sobre as personagens de forma mais explícita. Não que o discurso da

nota 6 seja isento, mas o recurso ao discurso enciclopédico, presente nas datas e na forma de

apresentar o texto, sem marcas de emotividade e julgamentos de valor, faz com que este passe

uma maior credibilidade, pois se apoia em um discurso legitimado e reconhecido como tal

para esclarecer o ponto referido. Nas palavras de Mittmann, “as definições apresentadas pelos

dicionários [e aqui podemos incluir também pelas enciclopédias] são tomadas como o sentido

próprio da palavra, uma verdade irrefutável, que existe por si, é evidente e neutra” (2003, p.

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149). Entretanto, já se viu no capítulo 2 que a verdade é deste mundo, é construída pelo e no

discurso e varia com o tempo, a época, o lugar. Mesmo o saber enciclopédico altera-se, apesar

de ainda se manter a ilusão de um discurso neutro.

Tendo esmiuçado a primeira classificação das notas, de caráter mais geral, passemos

agora à segunda, que traz especificamente de que tipo de assunto as notas tratam.

3.3.2 SEGUNDA CLASSIFICAÇÃO: A QUE AS NOTAS SE REFEREM

O caráter das notas analisadas, em ambas as traduções, varia desde esclarecimentos

sobre problemas de tradução, explicação de expressões do texto original, até informações

sobre a obra e seu autor. Como apresentamos no item 2 deste capítulo, elas se dividem em

oito tipos, que serão exemplificados neste subitem.

Vimos, no subitem anterior, que as N.T. não são gratuitas, muito menos trazem um

discurso isento, pois transmitem claramente, no caso analisado, um determinado tipo de saber.

Acontece que essa “transmissão de saberes” pelo tradutor não é ingênua, ou por acaso, mesmo

que seja inconsciente. Todo paratexto de uma tradução, e aí incluídas as notas, fala muito do

tradutor, mas principalmente da imagem que ele tem de si mesmo, da obra que traduziu, do

leitor a quem esta se dirige, do autor do original. Essas imagens são as formações imaginárias,

dentro das quais todo e qualquer discurso é produzido e sem o que o funcionamento

discursivo não se efetiva. É pelas formações imaginárias que são constituídas as verdades

discursivas, que por sua vez se encontram em dadas formações ideológicas em um corpo

social. E todo esse arcabouço é o que dá as características das condições de produção, que

moldam os vários discursos existentes. Assim,

o funcionamento de uma N.T. estará de acordo com a imagem que o tradutor faz de si, do autor e do leitor, e da imagem que ele faz do próprio processo tradutório, já que é esta imagem

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(que não precisa ser necessariamente consciente) que vai guiar a produção da nota pelo tradutor (Mittmann, 2003, p. 110).

Remetendo ao nosso objeto de pesquisa, percebemos que a imagem que Rónai faz do

processo tradutório é de isenção, isto é, o tradutor deve ser o mais “fiel” possível ao

pensamento do autor, tendo como papel, nesse processo, o de procurador mais do que de

colaborador. E pelo número de notas do tradutor da L&PM, similar ao da Globo, pode-se

concluir que o mesmo se dá com as tradutoras da edição mais recente. Na trilha de Rónai,

conscientemente ou não, elas também produziram uma edição erudita da obra e redigiram

inúmeras notas de pé de página, transmitindo, com esses procedimentos, uma pretensão à

isenção discursiva, ou seja, o texto da tradução passa a guardar a verdade transcendental que

deve ser buscada, esclarecida e decodificada para o leitor da obra. Ao tradutor somente restam

os espaços dos paratextos, sobretudo das N.T., para mostrar-se presente. Contudo, essa

presença, pelos adeptos da concepção tradicional da tradução, não é aceita, mas tolerada,

porque é simplesmente questão de necessidade. Segundo Mittmann (2003, p. 118), para os

adeptos dessa concepção

a N.T. (...) é um recurso para resolver problemas de tradução que não foram resolvidos no próprio texto, servindo então como instrumento facilitador da leitura do texto da tradução, já que se pressupõe que ela esclareça o sentido. Não é lugar para manifestação da subjetividade do tradutor, já que as explicações e os esclarecimentos devem ser objetivos, não cabendo opiniões do tradutor.

Como se viu no tópico anterior, essa subjetividade se revela, no entanto, várias vezes

exatamente no discurso de Rónai, apesar de sua crítica em o tradutor se fazer visível no texto

da tradução. Rónai é traído, podemos dizer, pela sua própria vontade de verdade.

Ambas as traduções, assim, resolvem nas notas coisas que poderiam resolver no texto,

em nome de uma pretensa isenção discursiva, pois circunscrevem o discurso do tradutor aos

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paratextos, à margem do texto. Todavia, como se viu no capítulo 1, a margem também se

mostra como uma extensão do texto, faz parte dele, é o texto que se expande. Nesse sentido,

“o tradutor não vai para fora dos limites do texto fechado, para produzir um outro texto, o da

N.T., mas apenas se estende, em resposta a uma determinada situação de tradução”

(Mittmann, 2003, p. 119). A N.T., nesse caso, mostra-se como a confirmação do discurso do

tradutor, de sua interpretação, de seus impasses em relação ao texto original. Mas também

revela as imagens produzidas por ele no âmbito de seu discurso.

E as imagens produzidas pelos tradutores nas edições realizadas não se limitam ao

próprio processo tradutório ou a como o tradutor deve se portar. Há um outro tipo que fica

menos explícito em seus discursos, mas que pode se revelar o grande motivador da redação

das inúmeras notas: trata-se da imagem do leitor produzida pelo tradutor, neste caso,

especificamente do leitor brasileiro, e também do Brasil.

Usaremos, para exemplificar esse caso, o discurso de Rónai em seu livro A tradução

vivida. Na página 185, há um trecho em que ele explica um dos motivos da redação de inúmeras

notas de pé de página, trecho este já citado anteriormente neste trabalho: “(...) pareceu-me que a

distância que em espaço e tempo separava a França da Comédia Humana do Brasil de então era

tamanha que exigia numerosas notas de pé de página”. Percebe-se que, para o autor, o acesso do

Brasil à França do século XIX era precário, o que pode ser percebido como a imagem que o

Brasil passa de ser um país continental, situado fora da Europa e, o que sugere a leitura do

autor, isolado do ponto de vista da informação. Sendo as notas de tão variadas espécies, indo de

esclarecimentos sobre a obra a explicações de lugares de Paris, como verificamos, pode-se

inferir que o professor Paulo Rónai tinha uma imagem de leitor pouco afeito a pesquisas, mas

também de pouco acesso a informação, por causa da distância que separava a França do Brasil

de então, ou seja, pelo fator tempo, mas também pela distância geográfica, o que se deduz

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quando se questiona sobre se ele teria o mesmo cuidado caso a tradução tivesse sido feita, sob

sua supervisão, em um país vizinho da França. Nesse caso, na sua opinião, as notas são

imprescindíveis, para que o leitor não se indisponha com a obra, ou para que não lhe falte a

informação necessária para entendê-la, informação essa que lhe seria dificultoso conseguir.

Assim, as notas se configuram como um instrumento facilitador da leitura.

Facilitando a leitura, apresentando ao leitor a interpretação do tradutor, esclarecendo

pontos mais ou menos obscuros, vemos em ambas as edições do romance balzaquiano um

grande número de notas. Passemos agora à análise do segundo grupo, objeto deste tópico.

Como se viu no item 2, quando foi apresentado o quadro classificatório, as notas desse

segundo grupo foram divididas em oito modalidades, algumas estreitamente ligadas a

problemas de tradução propriamente ditos, como as de número (7) – relativas a explicações de

expressões, problemas e curiosidades da tradução –, e outras que se mostram claramente

como expressão do poder-saber dos tradutores, como as de número (8) – notas sobre o próprio

Balzac e sua obra. Apresentaremos sempre dois exemplos de cada classificação, que

contenham notas das duas edições, sobre o mesmo trecho, para que haja um contraponto

discursivo. Depois de cada um dos exemplos, segue um comentário sobre o duo de notas.

(1) Notas sobre personalidades – autores, cientistas, filósofos, poetas, etc. –, lugares e

acontecimentos históricos reais

Estas notas contabilizam 64 ao todo nas duas edições – sendo o grupo dessa

classificação que detém o maior número –, 36 notas na edição da Globo e 28 na da L&PM.

São notas que expressam claramente um saber de acadêmico, historiador, professor.

Globo: Texto de referência: “Freqüentemente, uma facécia digna de Juvenal16,...” Classificação (IIb); (1) Nota 16: Juvenal (65-128 d.C.): poeta latino autor de famosas sátiras em que açoita os vícios de seu tempo com veemente indignação. L&PM: Texto de referência: “Muitas vezes um gracejo digno de Juvenal15,...”

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Classificação (IIb); (1) Nota 15: Decimus Iunius Juvenalis, conhecido apenas como Juvenal, poeta satírico do século I. (N.T.)

Nesse primeiro exemplo, pode-se perceber a diferença de discurso já apontada em

outros momentos neste capítulo: enquanto Rónai se revela em um discurso mais enfático, com

palavras do tipo “açoita”, “veemente”, as tradutoras mantêm um discurso mais enciclopédico,

em que é dado o nome oficial da personalidade, em latim, com informações mais diretas.

Observemos também que, ao contrário do comumente realizado por Rónai, nessa nota ele dá a

data de nascimento e morte da personalidade, o que, como vimos, se relaciona a um discurso

de dicionário, com o objetivo de dar informações históricas. O interdiscurso se apresenta aí,

nesse caso.

Globo: Texto de referência: “Pois bem, um homem tão probo quanto você pensa ser ainda, o sr. de Turenne97, fazia, sem se considerar comprometido, pequenos negócios com salteadores.” Classificação: (IIa) e (IIb); (1) e (6) Nota 97: Visconde Henri de la Tour d’Auvergne (1611-1675): marechal da França, que comandou o Exército francês durante a guerra da Devolução e a da Holanda, e conquistou a Alsácia em 1675; a tradição o representa como homem de uma simplicidade e modéstia notáveis, e que não ligava importância ao dinheiro. Talvez Vautrin haja encontrado esta informação em algum libelo dos protestantes que passaram a atacar Turenne depois de sua conversão ao catolicismo. L&PM: Texto de referência: “Pois bem, um homem que tinha tanta probidade quanto o senhor acredita ter ainda, o sr. de la Turenne87, sem acreditar-se comprometido, pequenos negócios com bandidos.” Classificação: (IIb); (1) Nota 87: Visconde de la Turenne ou Henri de la Tour-d’Auvergne (1611-1675), marechal e general francês. (N.T.)

Nesse pequeno excerto do corpus, acontece algo interessante: a nota 97 ganha duas

classificações, (1) e (6), a primeira sendo a que nos interessa no momento, sem dúvida, mas a

de número (6) vindo se entremear no discurso mais acadêmico. Ambas as notas dão as datas

de nascimento e morte da personalidade, mas o discurso de Rónai revela-se, todavia, muito

mais prolixo, com um adendo a mais. Seguindo o fio discursivo, o professor aproveita para

dar uma informação sobre a personagem fictícia da Comédia, Vautrin, mas com uma

característica: a informação é duvidosa, pois se inicia por “talvez”, o que denota uma

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interpretação sua do fato narrado no romance. Tal suposição, feita por ele, revela sua

intimidade com a obra, e aqui o professor estabelece um diálogo com o autor, levantando a

hipótese de que seja da forma como afirma. Vemos que na maior parte das vezes Rónai, se

tenta em algum momento, não consegue despir-se do seu papel principal no trabalho na

Comédia: o fato de ser especialista em Balzac.

(2) Notas alusivas a costumes e hábitos da época e de outras épocas e culturas

Este fragmento do corpus revela-se o menor de todos para as notas da Globo: 2

somente, tendo o mesmo número para as da L&PM. Assim, são os dois conjuntos a seguir.

Globo: Texto de referência: “O carro da civilização, semelhante ao do ídolo de Jaggernat2,...” Classificação: (IIb); (2) Nota 2: Ídolo de Jaggernat: alusão a uma prática dos fanáticos de Jaggernat ou Djaggernat, cidade da Índia, os quais em determinados dias de festa se atiram sob as rodas do carro gigantesco no qual a estátua do deus é carregada pelas ruas. L&PM: Texto de referência: “O carro da civilização, qual o do ídolo de Jaggernat1,...” Classificação: (IIb); (2) Nota 1: Jaggnernat ou Jaggernaut (em sânscrito Jaggannatha, “senhor do universo”): Deus hindu, cuja estátua, em gigantesco carro triunfal, era rolada para fora do tempo e cujos devotos muitas vezes morriam por se curvar em êxtase religioso diante do carro. (N.T.)

Esse primeiro grupo de notas já foi tratado anteriormente neste capítulo, quando

falamos da classificação (IIb). Como se verifica, a narrativa de Rónai do ritual hindu está

repleta de julgamentos de valor, e, para a sociedade de hoje, porta um discurso

preconceituoso, se formos considerar a estimulação que os nossos tempos fazem do discurso

tolerante e “politicamente correto” (mesmo que esta última característica seja eivada de

preconceitos da mesma forma).

Já o recurso das tradutoras, ao recorrerem ao significado em outra língua, dá ao seu discurso,

mais uma vez, um caráter enciclopédico, trazendo o interdiscurso dos dicionários e enciclopédias e

criando a ilusão de transparência e verdade inquestionável que esses veículos carregam.

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Globo: Texto de referência: “Embora um pouco rústico, vestia-se com tamanho apuro, tomava tão elegantemente o rapé e o aspirava como um homem seguro de ter sempre a tabaqueira cheia de macuba17 que,...” Classificação: (IIb); (2) Nota 17: Macuba:∗ tabaco estimado de Macuba, na Martinica. L&PM: Texto de referência: “Embora um pouco rústico, ele andava tão bem-posto, era tão entendido em tabaco, aspirava-o como um homem tão certo de ter sempre sua tabaqueira cheia de macouba17 que,...” Classificação: (IIb); (2) Nota 17: Macouba, variedade de tabaco da Martinica com perfume de rosas. (N.T.)

É interessante como o discurso de Rónai traz palavras sempre mais denotativas de

afeição, valor, do que o das tradutoras. Novamente, aqui, aparece uma outra: “estimado”, que

evoca no leitor a interpretação de que é algo usado na Martinica, mas sobretudo de que se

gosta muito. A informação traz um algo mais, faz mais do que simplesmente informar.

(3) Notas referentes a traduções de palavras em outras línguas, que não o francês, no

original

Neste pequeno excerto do corpus encontram-se também poucas notas: 7 para a edição

da Globo e apenas 2 para a da L&PM, o que limitou nossas escolhas.

Globo: Texto de referência: “Ah! Sabei-o: este drama não é ficção nem romance. All is true3: ele é tão verídico que qualquer um pode reconhecer em si mesmo e, talvez em seu próprio coração, os elementos que o compõem.” Classificação: (I) e (IIa); (3) Nota 3: All is true: “tudo é verdade” (em inglês no original). Nas edições anteriores a 1839, esta frase servia de epígrafe ao romance. L&PM: Texto de referência: “Ah! Pois fiquem sabendo: este drama não é uma ficção, nem um romance. All is true2, ele é tão verdadeiro que todos podem reconhecer seus elementos em si mesmos, talvez seu coração.” Classificação: (I); (3) Nota 2: Tudo é verdade. Em inglês no original. (N.T.)

Ambas as notas têm quase o mesmo discurso, não fosse pela frase de Rónai na

redigida por ele: “Nas edições anteriores a 1839, esta frase servia de epígrafe ao romance.”

∗ No original francês da Le Livre de Poche (1995, p. 69), encontramos macouba, inclusive trazendo também uma nota de pé de página. E no dicionário eletrônico Houaiss encontramos a mesma palavra, macouba, com a seguinte explicação: “variedade de fumo da Martinica, com cheiro que evoca o da rosa”. Ou seja, provavelmente houve um engano na tradução coordenada por Rónai, que a L&PM corrigiu.

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Novamente o professor expressa seu saber de especialista em Balzac, dando ao leitor uma

informação que não necessariamente seria imprescindível, mas que se trata de outra

curiosidade da obra. Essa pequena frase corrobora o que dissemos anteriormente, que essa

edição da Comédia é erudita, pois serve também para instruir o leitor.

Quanto à menção “em inglês no original”, há quem condene o tradutor por fazê-la,

pois nada esclarece, sendo até desnecessária, e seria uma forma de ele se fazer presente. Não

precisamos dizer que essa posição contrária vem daqueles que condenam a presença ostensiva

do tradutor no texto da tradução, ou seja, dos partidários da concepção tradicional.

Globo: Texto de referência: “Viu a sociedade tal qual é: as leis e a moral impotentes para com os ricos e viu na fortuna a ultima ratio mundi51.” Classificação: (I); (3) Nota 51: Ultima ratio mundi: em latim no original “o supremo argumento do mundo”. L&PM: Texto de referência: “Ele viu o mundo como é: as leis e a moral impotentes entre os ricos, e viu na fortuna a ultima ratio mundi62.” Classificação: (I); (3) Nota 62: O argumento definitivo. Em latim no original. (N.T.)

Esse pequeno excerto do corpus da classificação (2) não se mostra muito diferente do

primeiro apresentado. Há de se atentar somente para as palavras utilizadas: “supremo”, no

caso de Rónai, “definitivo”, no caso das tradutoras. Logicamente, a ênfase maior encontra-se

na primeira, não só pela escolha do léxico, mas também pela inversão frasal; vindo o adjetivo

antes do substantivo, ele acaba ganhando um destaque maior.

(4) Notas alusivas a descrições de lugares em Paris, tanto que ainda existem como que não

existem mais

Neste item, apresentam-se 25 notas para a tradução da Globo e 8 para a da L&PM.

Vejamos:

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Globo: Texto de referência: “Quando essas munições foram postas em uso e a viúva se viu de armas na mão, ficou perfeitamente parecida com a tabuleta do Boi na Moda21.” Classificação: (IIb); (4) Nota 21: Boi na moda: famoso restaurante da época, em cuja tabuleta o dono mandou pintar um boi vestido dos atavios elegantes da moda: um chapéu, um xale, etc. L&PM: Texto de referência: “Quando tais munições foram empregadas e a viúva ficou armada para a batalha, ela se parecida exatamente com o cartaz do restaurante Boeuf à la Mode19.” Classificação: (IIb); (4) Nota 19: O cartaz do célebre restaurante Boeuf à la Mode, situado na Rue du Lycée, exibia um boi ornado de xale e chapéu. (N.T.)

Aqui se observa o que já foi dito: que a tradução da L&PM guardou os nomes em francês,

enquanto Rónai os traduziu. Ambos os discursos são enfáticos nesse caso, o que se percebe pelas

palavras “famoso” e “célebre”. No entanto, o texto da nota 19 é menos interpretativo que o da

nota 21. Este último traz que “o dono mandou pintar”, dando a impressão que quem escreve sabia

do fato por tê-lo presenciado. E a nota 19, como de costume nas dessa edição, preocupa-se em

passar mais informações objetivas, como onde estava situado o restaurante à época.

Globo: Texto de referência: “– Mas preciso encontrar-me com alguém nas Variedades78.” Classificação: (IIb); (4) Nota 78: Théâtre des Variétés: inaugurado em 1807, no bulevar Montmartre, para a representação de vaudevilles (comédias leves entremeadas de canções). L&PM: Texto de referência: “...–, mas devo me encontrar com alguém no Variétés78.” Classificação: (IIb); (4) Nota 78: O Théâtre des Variétés apresentava na época sobretudo vaudevilles, comédia que combina pantomima, dança e canções. (N.T.)

Vemos que Rónai, como seu costume, traduziu o nome do teatro no texto,

“Variedades”, mas não na nota, onde o apresentou na forma francesa. E ele novamente

externaliza uma interpretação: na sua opinião, as vaudevilles são comédias “leves”, mas dessa

vez dá a data de inauguração, o que não foi feito na nota 78.

(5) Notas alusivas a obras e personagens literários e mitológicos

As notas deste item são em número de 33: 23 para as da Globo e 10 para as da L&PM.

Refletem, em sua maioria, um saber de historiador, professor, acadêmico, por seu caráter

primordial de instruir e transmitir conhecimento.

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Globo: Texto de referência: “Esse homem parecia, em suma, ter sido uma das bestas do nosso grande moinho social, um desses Ratons parisienses que nem mesmo conhecem seus Bertrands15,...” Classificação: (IIb); (5) Nota 15: Seus Bertrands: alusão a duas personagens de uma fábula de La Fontaine, O macaco e o gato (livro IX, fábula 16). O macaco Bertrand incita o gato Raton a tirar do fogo as castanhas, e depois as come ele mesmo. A metáfora significa, pois, mais ou menos isto: “um desses explorados que nem mesmo conhece seus exploradores”. L&PM: Texto de referência: “Enfim, aquele homem parecia ter sido um dos burros de carga do nosso grande moinho social, um desses Ratons parisienses que sequer conhecem seus Bertrands14,...” Classificação: (IIb); (5) Nota 14: Referência à fábula de La Fontaine “O macaco e o gato”, animais cujos nomes eram, respectivamente, Bertrand e Raton. (N.T.)

Vê-se aqui, novamente, uma maior intervenção discursiva de Rónai. A partir do seu

texto para a nota, pode-se notar a imagem que ele faz de si mesmo: como professor, deve

transmitir seu saber ao leitor. Ele supõe, dessa forma, uma ignorância do leitor sobre o

assunto e explica a fábula em mais detalhes, além de fazer relação com o sentido do texto.

Lembrando Mittmann, o tradutor aqui deve preencher todos os sentidos possíveis, não

deixando espaços em aberto, em uma tentativa de controle da leitura.

Globo: Texto de referência: “...magníficas imagens da probidade, que nos deram duas obras-primas: Alceste83 de Molière...” Classificação: (IIb); (5) Nota 83: Alceste: personagem principal de O Misantropo, de Molière. L&PM: Texto de referência: “...magníficas imagens da probidade que nos valeram duas obras-primas, Alceste de Molière81...” Classificação: (IIb); (5) Nota 81: Alceste é personagem da peça O misantropo (1666), do dramaturgo francês Molière (1522-1673). (N.T.)

Há algo interessante a notar nesse excerto do corpus. Enquanto ambos os textos trazem

mais informações sobre a personagem, “Alceste”, dizendo qual a obra e quem é o autor, o da

nota 81 traz a nacionalidade de Molière juntamente com as datas de seu nascimento e morte,

informações que não constam da nota 83. Assim, pode-se levantar a hipótese de que Rónai supõe

que o leitor saiba quem foi Molière, o que pressupõe que esse leitor tenha um conhecimento

sobre a literatura francesa. É a um leitor de formação mais erudita que ele se dirige, então.

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(6) Notas alusivas a outros romances da Comédia ou às personagens que apareceram ou

aparecerão nesses outros romances, ou a qualquer fato relativo a essas personagens

Este grupo de notas foi o mais discutido nesta pesquisa, e é o único em que no corpus

analisado as notas da L&PM superam em número as de Rónai: 29 e 18 notas,

respectivamente. Trata-se, também, do grupo em que todas as notas são de erudição,

apresentando sempre um saber de especialista em Balzac.

Globo: Texto de referência: “Imaginai grandes olhos negros, mãos magníficas, pés bem talhados, fogo nos gestos, uma mulher que o Marquês de Ronquerolles26 denominava um cavalo puro-sangue.” Classificação: (IIa); (6) Nota 26: Marquês de Ronquerolles: irmão da condessa de Sérisy (Uma Estréia na Vida) e protagonista de A História dos Treze. L&PM: Texto de referência: “Imaginem grandes olhos negros, uma mão magnífica, um pé bem-desenhado, fogo em seus movimentos, uma mulher que o marquês de Ronquerolles26 chamava de um cavalo puro-sangue.” Classificação: (IIa); (6) Nota 26: Marquês de Ronquerolles, personagem de A comédia humana (Ferragus, A duquesa de Langeais, O lírio do vale, Contrato de casamento, A menina dos olhos de ouro). (N.T.)

Vê-se nesse grupo o que já havia sido dito anteriormente: o fato de as notas da L&PM

citarem à exaustão as obras da Comédia nas quais os personagens figuram e também de terem

um formato padronizado para o texto. Na nota 26, Rónai liga a personagem a um outro,

citando duas obras, uma para cada um. Curiosamente, a obra citada por ele na qual o

“Marquês” aparece não é mencionada na nota da L&PM.

Globo: Texto de referência: “O sr. d’Ajuda ia casar-se com uma srta. de Rochefide41.” Classificação: (IIa); (6) Nota 41: Srta. de Rochefide: provavelmente uma parente do Marquês Artur de Rochefide, marido de Beatriz, no romance de mesmo nome. L&PM: Texto de referência: “O sr. d’Ajuda deveria se casar. Desposaria uma senhorita de Rochefide58.” Classificação: (IIa); (6) Nota 58: Berthe de Rochefide, futura marquesa d’Ajuda-Pinto, personagem de A comédia humana (A duquesa de Langeais). (N.T.)

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Aqui, apesar de ambas as notas se referirem à mesma personagem, as informações

dadas são completamente diferentes. Na de número 41, Rónai infere uma informação que se

revela, no entanto, uma hipótese, atestada pela palavra “provavelmente”. Isso denota, mais

uma vez, um saber de especialista em Balzac, que lhe possibilita supor fatos, tecer hipóteses

em virtude de uma análise profunda da obra. A nota 58 mantém o mesmo formato da nota 26

do grupo anterior.

(7) Notas com explicações de expressões, problemas e curiosidades da tradução

Este grupo de notas é bem heterogêneo. Pode trazer problemas de tradução

propriamente ditos, em que o tradutor vai mostrar, mesmo inconscientemente, onde teve

dúvidas, onde parou para se questionar, revelando-se, assim, o processo de escolha de que, na

verdade, se compõe o processo tradutório. Os excertos do corpus, porém, também podem

apresentar informações de esclarecimentos de expressões do francês que, não tendo

correspondência diretamente em português, estão ligadas apenas à cultura francesa,

suscitando a necessidade, segundo os tradutores, de uma explicação nas notas. Na contagem

total, o grupo possui 31 notas da Globo e 5 da L&PM.

Globo: Texto de referência: “Um milhão, e imediatamente. Sem isso, com a pequena cabeça que tem, poderia ir passear nas redes de Saint-Cloud62 para ver se existe um Ser Supremo. Vou dar-lhe esse milhão.” Classificação: (IIb); (7) Nota 62: Jogar-se no Sena e ser apanhado, morto, à altura de Saint-Cloud. L&PM: Texto de referência: “Um milhão, e depressa; sem o que, com nossa cabecinha, poderíamos ir flanar pelas redes de Saint-Cloud67, a ver se existe um Ser Supremo. Esse milhão, vou lhe dar.” Classificação: (IIb); (7) Nota 67: As redes estendidas de uma margem a outra do Sena na altura de St. Cloud retinham os cadáveres que desciam o rio. (N.T.)

As notas desse grupo tratam exatamente do segundo caso apresentado: esclarecimento

de uma expressão francesa que não tem correspondência em português. Os tradutores sentem

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a necessidade, então, de esclarecer o leitor sobre um costume/acontecimento com o qual

supostamente este não tem familiaridade, uma informação de cunho histórico, sem dúvida –

cadáveres eram jogados ao Sena nessa época, sendo apanhados por redes colocadas para esse

fim na altura de Saint-Cloud –, mas que também tem ligação com uma expressão linguística:

passear/flanar nas redes de Saint-Cloud era ser apanhado morto pelas tais redes.

Globo: Texto de referência: “Fazemo-nos advogado para nos tornarmos presidente de um tribunal, enviar às galés pobres-diabos melhores do que nós, com um T.F.63 nas costas, a fim de provar aos ricos que eles podem dormir tranqüilamente.” Classificação: (IIb); (7) Nota 63: T.F.: iniciais de Travaux Forcés (“trabalhos forçados”), as quais eram gravadas com ferro quente nas costas dos condenados às galés. L&PM: Texto de referência: “Tornamo-nos advogados para virmos a ser presidentes de um tribunal, condenarmos aos trabalhos forçados uns pobres-diabos que valem mais do que nós com T.F. tatuado sobre os ombros68, para provar aos ricos que eles podem dormir em paz.” Classificação: (IIb); (7) Nota 68: T.F. é a abreviação de “travaux forcés”, trabalhos forçados, que era inscrita no ombro dos prisioneiros das galés. (N.T.)

Nesse grupo, as notas guardam uma informação de cunho histórico somente, que até

poderia ter sido resolvida no corpo do texto, caso os tradutores o desejassem.

(8) Notas sobre o próprio Balzac e sua obra

O grupo de notas desta classificação teve também sua escolha limitada, devido ao

número de notas que possui: 13 notas para a edição da Globo e apenas 2 para a da L&PM.

Essa classificação confirma a posição de Rónai como especialista em Balzac, porque fala

exclusivamente sobre o autor e sua obra.

Globo: Texto de referência: “O sr. Poiret era uma espécie de autômato. Vendo-o passar como uma sombra (...); muitos perguntavam se essa sombra chinesa pertencia mesmo à audaciosa raça dos filhos de Jafé14 que perambulam pelo bulevar dos Italianos.” Classificação: (I), (IIa) e (IIb); (5) Nota 14: Jafé: engano de Balzac. Na verdade, Japeto, lembrado na Mitologia como pai de Prometeu, que roubou do céu o fogo para os homens. Considerado às vezes como antepassado de toda a humanidade; daí, “filhos de Japeto” são todos os homens. L&PM: Texto de referência: “O sr. Poiret11 era uma espécie de autômato. Ao vê-lo se estender como uma sombra (...), muita gente se perguntava se aquele espectro pertenceria à raça audaciosa dos filhos de Jafé12 que borboleteiam no Boulevard Italien13.”

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Classificação: (I), (IIa) e (IIb); (7) e (8) Nota 12: Balzac provavelmente pretendia fazer alusão a um verso célebre (“Ao navio”, Odes) do poeta latino Horácio (65 a.C.-8 a.C.). O trecho “à raça audaciosa dos filhos de Jafé” seria uma tradução de “audax Iapeti genus”. Na ode de Horácio, a descendência de Jáspeto designa não somente Prometeu, mas todos os homens, considerados filhos deste último. Ao errar a grafia do nome, Balzac acaba por remeter erroneamente ao personagem bíblico Jafé, filho caçula de Noé, do qual descende a raça branca. No entanto, a referência bíblica não parece fazer sentido algum nesse contexto. (N.T.)

Esse grupo de notas já foi analisado anteriormente, por ocasião da diferença de

classificação. Curiosamente, o saber de especialista em Balzac se apresenta na nota 12 da

L&PM. As tradutoras, com os trechos “Balzac provavelmente pretendia fazer alusão a um

verso célebre...” e “Ao errar a grafia do nome, Balzac acaba por remeter erroneamente ao

personagem bíblico Jafé, filho caçula de Noé, do qual descende a raça branca. No entanto, a

referência bíblica não parece fazer sentido algum nesse contexto”, corrigem um erro do autor

e também estabelecem um diálogo com ele, contradizendo-o. Como já tratamos desse caso no

início do capítulo, não vamos entrar em mais detalhes aqui.

Globo: Texto de referência: “Voltando para o baile, Eugênio deu uma volta pelos salões com a sra. de Beauséant, derradeira e delicada atenção daquela amável mulher141.” Classificação: (IIa); (8) Nota 141: Depois desta frase há o seguinte trecho, que consta de todas as edições até 1843:

“Entrando na galeria onde dançavam, Rastignac surpreendeu-se ao deparar com um desses pares que a reunião de todas as belezas humanas torna sublimes à vista. Nunca tivera ocasião de admirar perfeições iguais. Para tudo exprimir numa palavra, o homem era um Antínoo vivo e suas maneiras não destruíam o encanto que sentia ao contemplá-lo. A mulher, uma fada; fascinava o olhar, sacudia os sentidos mais frios. Num e noutro, o vestuário harmonizava-se com a beleza. Todos os contemplavam com prazer e invejavam a ventura que resplandecia na harmonia de seus olhos e de seus gestos.

– Meu Deus! Quem é essa mulher? – perguntou Rastignac. – Oh! É incontestavelmente a mais bela – respondeu a viscondessa. – É lady Brandon,

tão famosa pela felicidade como pela beleza. Sacrificou tudo por aquele rapaz. Dizem que têm filhos. A desgraça, porém, paira sobre eles. Dizem que lord Brandon jurou tirar uma pavorosa vingança da mulher e do amante. São felizes, mas vivem num constante temor.

– E ele? – Como? Não conhece o belo coronel Franchessini? – Aquele que se bateu em duelo... – Há três dias. Esse mesmo. Foi provocado pelo filho de um banqueiro: queria feri-lo,

apenas, mas por desgraça o matou. – Oh! – Que tem? Está tremendo – disse a viscondessa. – Nada – respondeu Rastignac.

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Um suor frio escorria-lhe pelas costas. Vautrin aparecia-lhe com sua fisionomia de bronze. O herói das prisões dando a mão ao herói do baile mudava, para ele, o aspecto da sociedade.”

Na edição de 1834, Balzac suprimiu esse trecho, provavelmente para não distrair a atenção da ação central quando esta chega precisamente ao auge. Sem dúvida, quis inseri-lo em outro lugar da Comédia Humana, pois é indispensável à compreensão de uma das novelas da mesma, O Romeiral, de que forma o prelúdio; mas a morte, que o impediu de acabar sua grandiosa obra, não lhe deixou tempo para fazê-lo. L&PM: Texto de referência: “Ao voltar ao baile, Eugène deu uma volta com a sra. de Beauséant, última e delicada atenção daquela mulher graciosa. Logo viu as duas irmãs, a sra. de Restaud e a sra. de Nucingen. (...) Esse espetáculo não era de tornar os pensamentos de Rastignac menos tristes. Se havia visto Vautrin no coronel italiano109, reviu então, sob os diamantes das duas irmãs, o catre sobre o qual jazia o pai Goriot.”∗Classificação: (IIa); (8) Nota 109: Em edições anteriores, Balzac incluíra uma cena em que Eugene de Rastignac encontra, no baile da sra. de Beauséant, o coronel Franchessini. Ao suprimir essa passagem na edição definitiva de suas obras completas, o autor esqueceu de retirar também essa menção ao personagem assassino de Taillefer. (N.T.)

Este, sem dúvida, se apresenta como o grupo de notas mais interessante para nossa

análise. Aqui, Paulo Rónai mostra-se em toda a sua autonomia de professor de língua e

literatura francesas e de especialista em Balzac, autor do qual defendeu uma tese. O trecho a

seguir, que se encontra no fim da nota, apresenta vários aspectos importantes a serem

discutidos:

Na edição de 1834, Balzac suprimiu esse trecho, provavelmente para não distrair a atenção da ação central quando esta chega precisamente ao auge. Sem dúvida, quis inseri-lo em outro lugar da Comédia Humana, pois é indispensável à compreensão de uma das novelas da mesma, O Romeiral, de que forma o prelúdio; mas a morte, que o impediu de acabar sua grandiosa obra, não lhe deixou tempo para fazê-lo.

Em primeiro lugar, tal trecho não se encontra especificado na edição da L&PM, muito

menos na da Le Livre de Poche,∗∗ bem como também não na da Pléiade, edição do original

∗ (Grifo nosso) A nota da L&PM sem dúvida trata do mesmo texto citado na nota da Globo. Só que elas estão em lugares diferentes, e no texto da Editora Globo a passagem grifada não existe: “Logo depois, avistou as duas irmãs, senhoras de Restaud e de Nucingen. (...) Esse espetáculo não era de natureza a tornar menos tristes os pensamentos de Rastignac. Reviu, sob os diamantes das irmãs, o catre em que jazia o pai Goriot.” Como vimos anteriormente, o trecho também não consta da edição organizada por Marcel Bouteron, edição essa utilizada por Rónai para fazer a tradução brasileira. ∗∗ O trecho, nessa edição francesa, se encontra no Anexo da edição, nos “Comentários” redigidos por Stéphane Vachon. Na página 325 há uma nota remetendo a essa explicação no fim do livro.

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usada por Rónai para corrigir as traduções dos romances, por ser a mais abalizada, segundo

suas próprias palavras, como já foi visto.

O que chama a atenção, no entanto, são as inferências que o professor faz da intenção

de Balzac ao suprimir o texto. Trechos como: “Balzac suprimiu esse trecho, provavelmente

para não distrair a atenção da ação central quando esta chega precisamente ao auge”, “Sem

dúvida, quis inseri-lo em outro lugar da Comédia Humana”, “a morte, que o impediu de

acabar sua grandiosa obra, não lhe deixou tempo para fazê-lo” mostram o conhecimento

profundo da obra que tem Rónai, sua riqueza de pesquisa, sua especialidade. Tudo isso já

havia sido visto por ocasião de outros trechos, mas nesse a confirmação da erudição da obra

mostra-se indubitável. Não há como não reputar que a edição da Comédia coordenada por

Rónai é, sem dúvida, a mais completa em termos de pesquisa.

Contudo, o mais revelador se mostra na nota escrita pela L&PM. Apesar de não

remeter ao mesmo trecho da Globo, ela trata do mesmo assunto: do texto retirado por Balzac.

Acontece que ele retirou um trecho grande, mas esqueceu de eliminar um fragmento de frase

que ficou no parágrafo adiante. A L&PM, provavelmente em virtude da edição utilizada para

a tradução, manteve a frase colocando uma nota, em que explica o esquecimento de Balzac. O

mesmo se dá com a edição francesa da Le Livre de Poche (1995, p. 325-326):

Bientôt il aperçut les deux soeurs, madame de Restaud et madame de Nucingen. (...) Ce spectacle n’était pas de nature à rendre les pensées de Rastignac moins tristes. S’il avait revu Vautrin dans le colonel italien1, il revit alors, sous les diamants des deux soeurs, le grabat sur lequel gisait le père Goriot. 1 Franchessini. Ce membre de phrase, que Balzac a oublié de rayer, ne s’explique que par le passage supprimé, p. 325.

No entanto, como já foi dito, a edição francesa usada por Rónai foi a organizada por

Marcel Bouteron, em que o fragmento de frase também não existe. Como não se trata de uma

edição erudita, contudo, não há nenhuma explicação sobre sua supressão. Veja-se (1951, p.

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1.061): “Bientôt il aperçut les deux soeurs, madame de Restaud et madame de Nucingen. (...)

Ce spectacle n’était pas de nature à rendre les pensées de Rastignac moins tristes. Il revit

alors, sous les diamants des deux soeurs, le grabat sur lequel gisait le père Goriot.”

Encerramos aqui a análise da segunda classificação do corpus, mas não a análise das

notas. No item seguinte, apontaremos alguns casos especiais, em que algumas características

diferentes das apresentadas aqui se revelam.

3.3.3 CASOS ESPECIAIS

Alguns casos no corpus, mesmo estando incluídos nas classificações precedentes,

apresentam características que devem ser remarcadas. Há dois grupos de notas a seguir: dois em

que há somente referência da Editora Globo e dois em que há referências de ambas as edições.

Globo: Texto de referência: “Note, meu caro menino, que teremos feito alguns rasgões em nossa conscienciazinha, teremos passado vinte anos de aborrecimentos e misérias secretas, e nossas irmãs terão ficado para pentear Santa Catarina65.” Classificação (I); (7) Nota 65: Pentear Santa Catarina: expressão francesa que significa “ter passado a idade de vinte e cinco anos sem ter casado”.

A menção a esse trecho e à sua nota correspondente deve-se ao fato de que, quando se

fala no trabalho de Rónai na Comédia, o exemplo mais citado por todos de suas intervenções

discursivas é exatamente esse. A nota sobre a expressão “pentear Santa Catarina”, que teria

correspondência em “ficar para a titia”, é mencionada em qualquer grupo de pesquisa sobre

tradução. Veremos que a L&PM apresenta um outro texto para o mesmo trecho: “Observe, meu

caro menino, que teremos arranhado nossa conscienciazinha, que teremos tido vinte anos de

aborrecimentos, de misérias secretas, e que nossas irmãs terão ficado para titias” (1989, p. 122).

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O trecho da tradução coordenada por Rónai geralmente é usado como exemplo do que

não deve ser feito em uma tradução: traduzir tão “ao pé da letra” o original que acaba se

fazendo necessária uma nota. Ele revela claramente a pouca liberdade que o tradutor se dá

para traduzir e também a ideia que ele tem da tradução: o texto traduzido deve guardar o

máximo possível uma “fidelidade” ao texto original, à materialidade textual. O tradutor do

romance analisado nessa pesquisa é Gomes da Silveira, como consta da folha de rosto do

volume IV da Comédia humana. Entretanto, sabemos, como Rónai mesmo diz em seu livro A

tradução vivida, que ele coordenou o trabalho de tradução, inclusive nas correções de seus

textos. Nesse caso, há de se dividir a responsabilidade por essa escolha entre o tradutor,

Gomes da Silveira, e Paulo Rónai, o grande nome associado ao trabalho na Comédia.

Globo: Texto de referência: “Enquanto isso, o príncipe a quem todos atiram pedras e que despreza suficientemente a humanidade para cuspir-lhe na cara tantos juramentos quantos ela lhe pede, impediu a partilha da França no Congresso de Viena: devem-lhe coroas e atiram-lhe lama73.” Classificação: (IIb); (1) Nota 73: Alusão a Talleyrand.

Essa nota chamou nossa atenção pelo seguinte: seu texto nada informa. Verificamos

nas outras notas se há alguma menção a Talleyrand e, na ausência desta, tivemos de ir a outras

fontes para completar essa informação. Vimos que se trata de um político e diplomata francês,

nascido em 1754 e morto em 1838, que atuou na época de Napoleão (Wikipédia, 2009). Nesse

caso, pode-se levantar a hipótese de que claramente Paulo Rónai supõe que o leitor conheça a

personagem. Caso seu nome seja citado no texto, mesmo assim a nota, por chamar a atenção

do leitor e dar destaque à personagem, deveria ser completa. Da forma com que foi redigida

ela perde sua função informativa.

Globo: Texto de referência: “O homem que prestou menos serviços à França é um ídolo venerado, por ter sido sempre visto vestido de encarnado, e que quando muito poderia servir para ser exposto no Conservatório, entre os instrumentos, com um letreiro: La Fayette72.”

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Classificação: (IIa); (8) Nota 72: Quem fala aqui é o Balzac partidário, cujas opiniões legitimistas eram opostas ao liberalismo de La Fayette. Balzac trata este último em termos não menos severos nas Memórias de Duas Jovens Esposas. L&PM: Texto de referência: “O homem que menos serviu à França é um fetiche venerado por ter sempre visto tudo vermelho, ele é no máximo bom para ser posto no Conservatório73, entre as máquinas, etiquetando La Fayette74,...” Classificação: (IIb); (4) e (1) Nota 74: Marquês Marie-Paul-Yves-Roch-Gilbert du Motier La Fayette (1757-1834), general e político da Restauração. Participou da independência americana. (N.T.)

Esse grupo de notas, trazendo uma de cada das edições analisadas, revela-se muito

interessante. Apesar de as notas se referirem ao mesmo ponto – a personagem real La Fayette

–, elas são de cunho totalmente díspares. Enquanto a nota 74, da L&PM, informa sobre quem

foi La Fayette, a nota 72, da Globo, por seu turno, usa a personagem para falar de Balzac. Na

verdade, a nota 72 refere-se a toda a frase, e não simplesmente ao nome da pessoa. Ela trata

do conteúdo da referência. Rónai, novamente aqui, revela-se um grande conhecedor da obra

balzaquiana e também do seu autor.

Globo: Texto de referência: “– Para salvar a vida de Máximo, isto é, para salvar toda a minha felicidade – acrescentou a condessa, encorajada por esses testemunhos de uma ternura calorosa e palpitante –, levei à casa daquele agiota que vocês conhecem, um homem fabricado pelo inferno, a quem nada pode comover, aquele sr. Gobseck, os diamantes de família de que Restaud tanto gostava, os seus, os meus, tudo, eu os vendi. Vendi! Compreendem? Ele está salvo, mas estou morta. O sr. de Restaud soube de tudo136.” Classificação: (IIa); (6) Nota 136: Esse episódio é contado em Gobseck. L&PM: Texto de referência: “– Para salvar a vida de Maxime, enfim, para salvar toda minha felicidade – prosseguiu a condessa encorajada por esses testemunhos de um carinho terno e palpitante –, levei a esse usurário que vocês conhecem, o sr. Gobseck, um homem fabricado pelo inferno que não se amolece com nada, os diamantes de família tão cara ao sr. de Restaud105, os seus, os meus, eu vendi tudo. Vendidos! Vocês entendem? Ele foi salvo! Mas eu estou morta. Restaud descobriu tudo.” Classificação: (IIa); (6) Nota 105: Conde de Restaud: personagem que aparece em Gobseck. (N.E.)

E nesse último grupo uma outra importante característica apresenta-se: a nota 105, da

L&PM, traz uma nova posição-sujeito. Vimos ao longo do trabalho, principalmente no

capítulo 1, que as N.T. revelam o discurso do tradutor na posição-sujeito que ele assume de

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tradutor, mas também de historiador, professor, especialista em Balzac, de acordo com o tipo

de discurso que profere. Contudo, as notas de pé de página em geral também podem trazer

uma outra posição-sujeito. Uma delas foi anteriormente citada nesta pesquisa, quando

tratamos do fato de as notas da Globo não terem um N.T. como marca. Lembramos que, pelo

fato de Rónai não ter sido o tradutor, mesmo tendo redigido as notas, ele não se autodenomina

assim, preferindo não marcar as notas, mesmo se pudesse utilizar outra marca, como N.R.T. –

nota do revisor técnico. Nesse caso, ele marcaria o seu lugar como revisor. Contudo, preferiu

deixar essa definição em aberto. Mas vemos na nota 105 uma marca diferente: N.E. Surge

aqui a figura do editor. Não é mais o tradutor que ocupa o lugar de discurso reconhecidamente

a ele destinado na tradução, mas o editor. Aparece, nesse caso, uma outra voz, que é percebida

também pela forma diferente como a nota foi redigida. Vimos anteriormente que as notas da

L&PM, que guardam a classificação (6), têm uma padronização. Assim, essa nota, se tivesse

sido redigida pelas tradutoras, deveria vir da seguinte forma: “Conde de Restaud, personagem

de A comédia humana (Gobseck). (N.T.)” Isso nos faz perceber que o discurso da nova

posição-sujeito, a do editor, é percebido não somente pela sua marca (N.E.), mas também pela

forma como se apresenta.

Concluímos aqui o capítulo de análise do corpus. Não pretendemos a exaustividade de

análise e muitas lacunas ainda ficaram por ser preenchidas. Todavia, podemos verificar, pelos

exemplos apresentados, que a isenção discursiva preconizada pelos tradutores e deles exigida

não procede. Mesmo com uma tradução muito próxima, lexicamente falando, ao original –

como no caso muito citado de “pentear Santa Catarina” –, o discurso do tradutor revela-se

nessas escolhas lexicais e também nas escolhas de se colocar ou não uma N.T. Esta, por sua

vez, é sempre o ponto de suspensão do tradutor, em que houve uma dúvida, seja ela de que

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tipo for. Nesse sentido, para finalizar este capítulo, ficamos com as palavras de Mittmann

(2003, p. 173):

(...) Autor, tradutor e leitor produzem sentidos, ou ainda, os sentidos são produzidos nos intervalos entre autor, tradutor e leitor da tradução. Isso não significa, porém, considerar o tradutor como um indivíduo capaz de produzir os sentidos que quiser, ou dono de seu dizer. É preciso considerar a interpelação que transforma este indivíduo tradutor em sujeito tradutor, que não está fora de seu discurso, controlando-o, mas se inscreve no discurso como uma posição-sujeito. A interpelação causa não só o efeito de reconhecimento do indivíduo como sujeito de seu discurso e do sentido como único, universal e transparente, mas também o efeito de desconhecimento do próprio fato da interpelação e dos outros sentidos possíveis que estão presentes no interdiscurso. É a interpelação – que se realiza pela Formação Discursiva – que gera a ilusão de que o sujeito tradutor sabe do que fala, como deve falar e que está apenas reproduzindo os sentidos que supõe estarem contidos no texto original. Esta ilusão é necessária para que o processo tradutório se realize.

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CONCLUSÃO

O objetivo desta dissertação foi verificar o discurso do tradutor expresso nas notas do

tradutor, um dos paratextos da tradução – compostos pelas notas de pé de página, prefácios,

introduções – e também o lugar em que o tradutor mais ganha evidência, tendo inclusive uma

marca: a sigla N.T. Para isso, seguimos duas linhas teóricas: a Análise de Discurso de Michel

Pêcheux, para analisar que imagens se formam no discurso do tradutor, como se dá esse

discurso, que interdiscursos o perpassam, e os estudos sobre o poder realizados por Michel

Foucault, tendo como base o binômio poder-saber.

Afastando-nos da concepção tradicional de tradução, consideramo-la como processo

tradutório, ou seja, de produção de discurso, em que o discurso que se apresenta no texto é o

do tradutor, não mais o do autor. Verificamos que o apagamento do tradutor do texto

traduzido é sempre uma ilusão, pois o tradutor nunca é neutro em suas escolhas, desde a

escolha do texto a traduzir até a dos signos que serão utilizados no texto da tradução. Essas

escolhas vêm determinadas por formações ideológicas, nas quais se inserem formações

discursivas que permeiam os discursos, que são produzidos pelo interlocutor a partir da

posição-sujeito que ele ocupa na sociedade. De onde falo e com quem são importantes para a

AD.

Assim, estando o discurso do tradutor presente nos paratextos de forma explícita, a

produção discursiva nas notas, objeto deste trabalho, não é marginal no sentido de que está

fora, limita, mas está integrada ao texto; ambos, texto da tradução e notas de tradutor, estão

em uma mesma continuidade, porque são fruto de um mesmo discurso. As N.T. são uma

extensão do discurso do tradutor presente no texto da tradução. São o fora que está dentro e o

dentro que está fora.

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As escolhas do tradutor são estabelecidas logicamente por ele mesmo; no entanto, elas

são também feitas no nível de uma memória discursiva que é apagada, que detém o saber que

é difundido, sem que se saiba. Tudo isso dá a diretriz de como ele se conduzirá em seu

trabalho. Este, por sua vez, acontece em uma dada época, que também estabelece as regras

tanto de comportamento como de discurso. É em função disso que duas traduções de um

mesmo texto feitas em épocas diferentes produzirão dois textos distintos, apesar de guardarem

a mesma ideia, a mesma matriz. Da mesma forma acontece quando dois ou mais tradutores

traduzem o mesmo texto, em um dado momento. Assim, o mesmo vai ocorrer com as N.T.

Vimos no capítulo 3, quando da análise do corpus, que os discursos tomam diferentes linhas

nas duas edições de O pai Goriot. Eles acabam por refletir a época em que se inscrevem.

Nesse sentido, as traduções podem ser responsáveis pela construção de representações

e imagens. E a primeira destas é exatamente a imagem do tradutor. Ainda se preconiza em

algumas linhas teóricas de tradução – como a defendida por Rónai – a possibilidade de um

trabalho “fiel” ao texto original. Por isso o tradutor é chamado de “traidor” quando não atinge

essa “fidelidade” almejada. No entanto, vimos que fidelidade em termos de tradução é

impossível, pois toda tradução – e toda leitura, em um sentido mais amplo – é interpretação, e

sendo assim não pode ser fiel, pois é pessoal, intransferível, única. Tal noção de fidelidade se

atém a uma concepção de língua que não se aplica no caso da AD, pois para essa teoria todo

discurso é prática. Dessa forma, se toda tradução e toda leitura são interpretação, o tradutor,

ao ler o texto para traduzi-lo, o está interpretando, e esse feito terá um resultado diferente (a

tradução, no caso) do resultado de um mesmo feito realizado por outro tradutor, pois ambos

os profissionais são indivíduos distintos, com referenciais distintos também. Ou seja, o

tradutor produz um texto próprio, seu, pois é fruto de sua interpretação do texto original, não

podendo haver fidelidade, então. Indo mais além, o leitor, ao ler a tradução, também a

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interpreta, produzindo um outro texto, um outro discurso, diferente daquele do tradutor, e

também daquele do autor. Assim, teremos três textos diferentes: o original, o do tradutor e

aquele produzido pelo leitor, tendo os dois últimos como matriz o primeiro.

As N.T., nesse sentido, são importantes porque são portadoras do discurso explícito do

tradutor. É nesse lugar que o profissional da tradução aparece, que seu discurso ganha vida,

que ele passa a ser visto como autor. Mas, além de portadoras do discurso explícito do

tradutor, lembrando que esse discurso está presente em todo o texto, as notas também

denotam algumas imagens: do tradutor, do leitor visto por esse tradutor, da tradução, do país

ao qual se dirige a tradução. Esse fato é relevante, pois, segundo a AD, qualquer discurso está

sempre inserido em formações imaginárias, ou seja, imagens do outro a quem me dirijo, da

posição que ele ocupa, mas também da nossa posição na situação discursiva. Essas imagens

sempre serão fruto de uma interpretação, e é o que gera as visões diferentes que as pessoas

estabelecem sobre uma mesma pessoa ou fato. Isso também ocorre na tradução, e vimos que o

tradutor deve ser cauteloso com o seu discurso, pois, partindo da sua posição de um saber

institucionalizado, ele pode transmitir ao leitor um tipo de imagem que de certa forma pode se

mostrar antiética. Nesse caso, deve-se ter em mente sempre uma “ética do discurso”, em que

levaremos em conta quais efeitos determinadas formulações discursivas podem ter sobre

certos interlocutores. Deve-se levar em conta que lugares ocupamos na teia discursiva. E o

tradutor, sem dúvida, por sua posição legitimada, deve estar atento aos efeitos que seu

trabalho pode produzir.

Pela perspectiva foucaultiana, mostramos também que as N.T. se constituem em lugar

de poder-saber, no sentido de que o lugar de tradutor exercido por Paulo Rónai – e em

diferente grau também pelas tradutoras da L&PM –, no caso, a posição-sujeito, expressa o

saber legitimado de um especialista em Balzac, acadêmico, tradutor renomado, ou seja, um

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poder-saber exercido por ele e expresso através de seu discurso nas notas, mas também em

trechos de seu livro A tradução vivida.

Para Foucault, o papel do discurso não é o de refletir a realidade, mas é sempre formado

na realidade, imbricado com ela, sendo sempre prática, daí se falar em prática discursiva, um

dos pontos no qual as duas teorias – pêcheuxiana e foucaultiana – se encontram.

Vimos também que Paulo Rónai forma uma imagem do leitor a quem se dirige a obra:

alguém que ele deve poupar de “se indispor” com o texto da tradução em virtude de não ter

conhecimento das inúmeras “alusões a instituições, acontecimentos, fatos, romances, peças e

poesias da época, além de referências incessantes às artes das épocas anteriores,

especialmente da Antiguidade clássica e da mitologia greco-romana” (1981, p. 189). Assim, o

“tradutor” Paulo Rónai se revela, sobretudo, como um intelectual, mas um intelectual que

pensa, segundo nossa leitura, que o saber deve ser exercido por aqueles que o detêm e que são

legitimados para tal. Nesse sentido, a inserção de tantas notas na Comédia revela-se, na sua

visão, imprescindível, pois o tradutor deve ser “fiel” ao texto original, ou seja, deve ser isento

ao produzir seu texto, mas, contraditoriamente a essa isenção, em que sua presença não

deveria ser percebida, ele tem o dever de esclarecer o leitor sobre quaisquer aspectos

“nebulosos” que, para ele (frise-se, para o tradutor), poderiam atrapalhar a leitura. Assim, a

pretensa “isenção” é desmascarada pela forte presença do discurso do tradutor presente nas

notas, lugar de evidência, mas também de poder-saber.

O número excessivo de N.T., então, se revela sob dois aspectos: ao mesmo tempo em

que mostra a dificuldade do tradutor em lidar com o texto do autor, também apresenta o

discurso do tradutor de forma ostensiva, o que, por outro lado, pode denunciar neste um

desejo de ser participante, interventor. Segundo Mittmann, o tradutor é cobrado, por sua

posição, a não deixar espaços em aberto nos sentidos.

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Como contraponto ao discurso de Rónai, percebemos que as duas tradutoras da L&PM

seguiram a mesma linha preconizada por ele, em função do número de notas – quase o mesmo

para ambas as traduções – e também do texto presente nelas. Vimos que, no caso dessa

tradução mais recente, levou-se a explicação sobre a obra da Comédia à exaustão, presente na

classificação de número (6), que trata das notas alusivas a outros romances da obra ou às

personagens que apareceram ou aparecerão nesses outros romances, ou a qualquer fato

relativo a essas personagens. Assim, ambas as traduções refletem a concepção tradicional de

tradução e detêm uma imagem do leitor de que precisa ser “conduzido pela mão”, como

Rónai diz em seu livro, como se faz com um aluno. Tal fato nos levou à conclusão de que as

duas traduções são edições eruditas, que não simplesmente têm o intuito de divertir, mas

também de instruir, transmitir conhecimento e saber. Nesse sentido, já que todo saber está

ligado ao poder, essa faculdade de instrução que elas apresentam deve-se ao fato de o tradutor

ser legitimado para isso, visto como especialista, que faz a leitura mais profunda da obra e

que, muito mais, consegue acessar o pensamento do tradutor e reproduzir na língua de

chegada a mensagem que ele queria transmitir.

Observa-se também que o interdiscurso, no caso analisado, apresenta-se, sobretudo,

com o recurso aos dicionários e enciclopédias, na forma de fornecimento das datas de

nascimento e morte das personalidades, principalmente nas notas da L&PM, e também no uso

das palavras de origem estrangeira para explicar os termos que suscitam dúvidas. Mesmo que

o interdiscurso não seja explícito, como seria no caso de uso de citações, ele é percebido na

forma como o texto é apresentado.

Assim, a questão que se deve responder, e à qual devemos ficar atentos, é se é possível

fazer uma tradução que consiga dar conta de todos os problemas inerentes às estruturas das

duas línguas e ser um texto que “reproduza fielmente” o original. Vimos que não, que ambas

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as coisas não são possíveis. Então, podemos passar a uma outra questão: qual o papel que o

tradutor exerce com seu trabalho e em que este se torna importante? Trata-se, aqui, de pensar

o tradutor não como imitador, copista e tantas outras designações possíveis nesse sentido, mas

como produtor de discurso, discurso esse que não somente é visto por ocasião das notas

produzidas por ele, mas no próprio texto traduzido, que lhe pertence, a partir desse momento,

e não mais ao autor do texto original. Discurso esse que não está à margem do texto, mas

totalmente inserido nele, imbricado, e que tem como consequência dotar o trabalho da

tradução de um caráter de ineditismo, pois cada discurso é único.

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Apêndice∗

QUADRO CLASSIFICATÓRIO DAS N.T. DE O PAI GORIOT

Primeira classificação (que tipo de saber as notas portam):

(I) Notas do tradutor – que expressam esclarecimentos sobre a tradução.

(II) Notas de erudição – que expressam a erudição e o saber de quem as redigiu. Podem

portar, no caso da obra analisada:

(a) um saber de especialista em Balzac.

(b) um saber de historiador, acadêmico ou professor.

Segunda classificação (a que as notas se referem):

(1) Notas sobre personalidades – autores, cientistas, filósofos, poetas, etc. –, lugares e

acontecimentos históricos reais.

(2) Alusivas a costumes e hábitos da época e de outras épocas e culturas.

(3) Traduções de palavras em outras línguas, que não o francês, no original.

(4) Alusivas a descrições de lugares em Paris, tanto que ainda existem como que não existem

mais.

(5) Alusivas a obras e personagens literários e mitológicos.

(6) Alusivas a outros romances da Comédia ou aos personagens que apareceram ou

aparecerão nesses outros romances, ou a qualquer fato relativo a esses personagens.

(7) Explicações de expressões, problemas e curiosidades da tradução.

(8) Notas sobre o próprio Balzac e sua obra.

Corpus para a dissertação

O grupo de notas que vem primeiro se refere às da Globo. Elas vêm sempre na margem do

texto. As notas da L&PM aparecem em seguida à nota a que referem com um recuo à

esquerda.

Número da nota: 1

Página: 23

∗ Sobre este Apêndice: como pode ser observado, em toda a dissertação a grafia do português foi usada segundo o NOA – Novo Acordo Ortográfico. No entanto, optamos por manter a grafia antiga no corpus, bem como nas suas citações realizadas ao longo dos capítulos. Atualizamos, no entanto, a grafia nas outras citações que não as referenciais a trechos das traduções.

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Texto de referência: “Ao grande e ilustre Geoffroy Saint-Hilaire1,...”

Texto da nota: Etienne Geoffroy Saint-Hilaire (1772-1844): célebre naturalista francês,

professor de Zoologia, campeão da teoria da composição orgânica na diversidade das

espécies, a quem Balzac exalta no “Prefácio” de A Comédia Humana.

Classificação: (IIa) e (IIb); (1) e (8)

Número da nota: 2

Página: 24

Texto de referência: “O carro da civilização, semelhante ao do ídolo de Jaggernat2,...”

Texto da nota: Ídolo de Jaggernat: alusão a uma prática dos fanáticos de Jaggernat ou

Djaggernat, cidade da Índia, os quais em determinados dias de festa se atiram sob as rodas do

carro gigantesco no qual a estátua do deus é carregada pelas ruas.

Classificação: (IIb); (2)

Número da nota: 1

Página: 18

Texto de referência: “O carro da civilização, qual o do ídolo de

Jaggernat1,...”

Texto da nota: Jaggnernat ou Jaggernaut (em sânscrito Jaggannatha,

“senhor do universo”): Deus hindu, cuja estátua, em gigantesco carro

triunfal, era rolada para fora do tempo e cujos devotos muitas vezes

morriam por se curvar em êxtase religioso diante do carro. (N.T.)

Classificação: (IIb); (2)

Número da nota: 3

Página: 24

Texto de referência: “Ah! Sabei-o: este drama não é ficção nem romance. All is true3: ele é

tão verídico que qualquer um pode reconhecer em si mesmo e, talvez em seu próprio coração,

os elementos que o compõem.”

Texto da nota: All is true: “tudo é verdade” (em inglês no original). Nas edições anteriores a

1839, esta frase servia de epígrafe ao romance.

Classificação: (I) e (IIa); (3)

Número da nota: 2

Página: 18

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Texto de referência: “Ah! Pois fiquem sabendo: este drama não é

uma ficção, nem um romance. All is true2, ele é tão verdadeiro que

todos podem reconhecer seus elementos em si mesmos, talvez seu

coração.”

Texto da nota: Tudo é verdade. Em inglês no original. (N.T.)

Classificação: (I); (3)

Número da nota: 4

Página: 25

Texto de referência: “A rua Nova de Santa Genoveva, sobretudo, é como uma moldura de

bronze, a única que convém a esta narrativa, para qual o espírito nunca estaria demasiado

preparado por cores escuras e idéias graves, assim como, de degrau em degrau, a luz vai

diminuindo e a voz do guia se tornando mais débil enquanto o viajante desce às

Catacumbas4.”

Texto da nota: Catacumbas: grande ossuário, numa das extensas pedreiras subterrâneas de

Paris para onde foram transportados, por motivo de higiene, no século XVIII, os despojos das

gerações antigas enterradas em bairros residenciais, aos quais foram juntados os restos

mortais de milhares de vítimas da Revolução Francesa. Hoje uma das curiosidades de Paris,

visitadas pelos turistas.

Classificação: (IIb); (4)

Número da nota: 5

Página: 25

Texto de referência: “Ao verem o verniz cheio de falhas que a cobre, os amadores de

símbolos descobriram nela, talvez, um mito do amor parisiense que se cura a alguns passos

dali. Sob o pedestal, esta inscrição meio apagada recorda a data desse ornamento, pelo

entusiasmo que testemunha por Voltaire, ao voltar a Paris em 1777:

Seja quem fores, eis teu dono:

Ele o é, ou foi, ou há de sê-lo5.”

Texto da nota: Um mito do amor parisiense: o Hospital dos Capuchinhos ou dos Venerianos

do Faubourg Saint Jacques. – O epigrama de Voltaire traz o título de “Inscrição para uma

Estátua do Amor” e reza assim no original: Qui que tu sois, voici ton maître; / Il l’est, le fut

ou doit être.

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Classificação: (IIb); (4) e (7)

Número da nota: 4

Página: 19

Texto de referência: “Diante do verniz lascado que a recobre, os

amantes de símbolos talvez descobrissem um mito do amor parisiense

do qual se trata a alguns passos dali. Sob o pedestal, esta inscrição

meio apagada lembra o tempo ao qual remonta aquele enfeite pelo

entusiasmo que demonstra por Voltaire, que voltou a Paris em 17774:”

Texto da nota: Na realidade, é em 1778 que Voltaire (1694-1778),

procedente de Ferney, foi triunfalmente recebido em Paris. Esse

dístico foi composto para o castelo de Maisons, mas também pode ser

encontrado nos de Cirey e Sceaux. (N.T.)

Classificação: (IIb); (1)

Número da nota: 6

Página: 27

Texto de referência: “A parte superior é coberta com um papel envernizado representando as

principais cenas de Telêmaco6,...”

Texto da nota: Cenas de Telêmaco: mais exatamente Aventuras de Telêmaco (1699),

romance épico, em prosa, de Fénelon, imitação agradável das epopéias antigas, cheias de

alusões e críticas indiretas ao reinado de Luís XVI; muito popular no século XVIII. O herói é

Telêmaco, filho de Ulisses, que parte à procura de seu pai; no decorrer de sua viagem chega à

ilha da ninfa Calipso, que retivera Ulisses durante sete anos.

Classificação: (IIb); (5)

Número da nota: 7

Página: 27

Texto de referência: “Encontram-se ali móveis indescritíveis, proscritos em toda a parte, mas

postos ali como os rebotalhos da civilização nos Incuráveis7.”

Texto da nota: Incuráveis: nome de um hospício em Paris, construído na rua de Sèvres em

1634 para acolher anciães indigentes e incapazes de ganhar a vida.

Classificação: (IIb); (4)

Número da nota: 5

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121

Página: 22

Texto de referência: “Ali se encontram daqueles móveis

indestrutíveis, proscritos em toda parte, mas lá colocados como são as

sobras da civilização para os Incurables5.”

Texto da nota: Incurables, hospital parisiense que recebia não apenas

doentes desenganados, mas também idosos, indigentes e paralíticos.

(N.T.)

Classificação: (IIb); (4)

Número da nota: 8

Página: 27

Texto de referência: “Vereis lá (...) candeeiros de Argand8 nos quais a poeira se combina

com o azeite;...”

Texto da nota: Argand: físico suíço, inventor de um candeeiro de corrente de ar duplo.

Classificação: (IIb); (1)

Número da nota: 9

Página: 28

Texto de referência: “Tem o olhar vidrado, a expressão inocente de uma alcoviteira que se

agasta para se fazer pagar mais caro, mas, por outro lado, parece disposta a tudo para

amenizar a sorte, a entregar Georges9...”

Texto da nota: Georges Cadoudal: famoso conspirador monarquista, preso em 9 de março de

1804 e executado em 25 de junho do mesmo ano.

Classificação: (IIb); (1)

Número da nota: 10

Página: 28

Texto de referência: “...ou Pichegru10...”

Texto da nota: O General Pichegru: cúmplice de Georges Cadoudal, que se suicidou na

prisão em 5 de abril de 1804.

Classificação: (IIb); (1)

Número da nota: 6∗

∗ A nota 6 da edição da L&PM trata dos assuntos das notas 9 e 10 da Globo.

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Página: 24

Texto de referência: “Ela tem os olhos sem brilho, o ar inocente de

uma alcoviteira que vai se enfurecer para receber mais, mas que está

disposta a tudo para se dar melhor, a entregar Georges ou Pichegru6...”

Texto da nota: Georges Cadoudal (1771-1804) e Jean Charles

Pichegru (1761-1804), monarquistas franceses que, por conspirarem

contra Napoleão Bonaparte, foram denunciados e presos em 1804.

(N.T.)

Classificação: (IIb); (1)

Número da nota: 11

Página: 29

Texto de referência: “Eugênio de Rastignac11, assim se chamava ele,...”

Texto da nota: Eugênio de Rastignac: uma das personagens mais importantes de A Comédia

Humana, já encontrado acessoriamente (é ele quem conta a anedota de Estudo de Mulher); é

porém em O Pai Goriot que o conhecemos de verdade.

Classificação: (IIa); (6)

Número da nota: 10

Página: 25

Texto de referência: “Eugène de Rastignac10, como se chamava,...”

Texto da nota: Eugène de Rastignac, personagem central de A

comédia humana (A casa Nucingen, Ilusões perdidas, Esplendores e

misérias das cortesãs, O gabinete das antigüidades, Ursule Mirouët,

Uma filha de Eva, O deputado de Arcis, Um príncipe da Boêmia).

(N.T.)

Classificação: (IIa); (6)

Número da nota: 12

Página: 30

Texto de referência: “Os dois hóspedes do segundo andar pagavam apenas setenta e dois

francos por mês. Essa pechincha, que só se encontra no Faubourg Saint-Marceau, entre a

Bourbe12...”

Texto da nota: Bourbe (“lodo”): sobrenome dado outrora ao famoso convento de Port-Royal,

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transformado depois em maternidade.

Classificação: (IIb); (4)

Número da nota: 13

Página: 30

Texto de referência: “...e a Salpêtrière13...”

Texto da nota: Salpêtrière: célebre hospício de Paris.

Classificação: (IIb); (4)

Número da nota: 14

Página: 31

Texto de referência: “O sr. Poiret era uma espécie de autômato. Vendo-o passar como uma

sombra (...); muitos perguntavam se essa sombra chinesa pertencia mesmo à audaciosa raça

dos filhos de Jafé14 que perambulam pelo bulevar dos Italianos.”

Texto da nota: Jafé: engano de Balzac. Na verdade, Japeto, lembrado na Mitologia como pai

de Prometeu, que roubou do céu o fogo para os homens. Considerado às vezes como

antepassado de toda a humanidade; daí, “filhos de Japeto” são todos os homens.

Classificação: (I), (IIa) e (IIb); (5)

Número das notas: 11, 12 e 13

Páginas: 27 e 28

Texto de referência: “O sr. Poiret11 era uma espécie de autômato. Ao

vê-lo se estender como uma sombra (...), muita gente se perguntava se

aquele espectro pertenceria à raça audaciosa dos filhos de Jafé12 que

borboleteiam no Boulevard Italien13.”

Texto das notas: 11. Sr. Poiret, personagem de A comédia humana

(Os empregados, Esplendores e misérias das cortesãs). (N.T.)

12. Balzac provavelmente pretendia fazer alusão a um verso célebre

(“Ao navio”, Odes) do poeta latino Horácio (65 a.C.-8 a.C.). O trecho

“à raça audaciosa dos filhos de Jafé” seria uma tradução de “audax

Iapeti genus”. Na ode de Horácio, a descendência de Jáspeto designa

não somente Prometeu, mas todos os homens, considerados filhos

deste último. Ao errar a grafia do nome, Balzac acaba por remeter

erroneamente ao personagem bíblico Jafé, filho caçula de Noé, do

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qual descende a raça branca. No entanto, a referência bíblica não

parece fazer sentido algum nesse contexto. (N.T.)

13. O Boulevard Italien era, na época de Balzac, o ponto de encontro

da boemia parisiense. (N.T.)

Classificação: 11. (IIa); (6)

12. (I), (IIa) e (IIb); (7) e (8)

13. (IIb); (4)

Número da nota: 15

Página: 32

Texto de referência: “Esse homem parecia, em suma, ter sido uma das bestas do nosso

grande moinho social, um desses Ratons parisienses que nem mesmo conhecem seus

Bertrands15,...”

Texto da nota: Seus Bertrands: alusão a duas personagens de uma fábula de La Fontaine, O

macaco e o gato (livro IX, fábula 16). O macaco Bertrand incita o gato Raton a tirar do fogo

as castanhas, e depois as come ele mesmo. A metáfora significa, pois, mais ou menos isto:

“um desses explorados que nem mesmo conhece seus exploradores”.

Classificação: (IIb); (5)

Número da nota: 14

Página: 28

Texto de referência: “Enfim, aquele homem parecia ter sido um dos

burros de carga do nosso grande moinho social, um desses Ratons

parisienses que sequer conhecem seus Bertrands14,...”

Texto da nota: Referência à fábula de La Fontaine “O macaco e o

gato”, animais cujos nomes eram, respectivamente, Bertrand e Raton.

(N.T.)

Classificação: (IIb); (5)

Número da nota: 16

Página: 34

Texto de referência: “Freqüentemente, uma facécia digna de Juvenal16,...”

Texto da nota: Juvenal (65-128 d.C.): poeta latino autor de famosas sátiras em que açoita os

vícios de seu tempo com veemente indignação.

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125

Classificação: (IIb); (1)

Número da nota: 15

Página: 31

Texto de referência: “Muitas vezes um gracejo digno de

Juvenal15,...”

Texto da nota: Decimus Iunius Juvenalis, conhecido apenas como

Juvenal, poeta satírico do século I. (N.T.)

Classificação: (IIb); (1)

Número da nota: 17

Página: 37

Texto de referência: “Embora um pouco rústico, vestia-se com tamanho apuro, tomava tão

elegantemente o rapé e o aspirava como um homem seguro de ter sempre a tabaqueira cheia

de macuba17 que,...”

Texto da nota: Macuba: tabaco estimado de Macuba, na Martinica.

Classificação: (IIb); (2)

Número da nota: 17

Página: 35

Texto de referência: “Embora um pouco rústico, ele andava tão bem-

posto, era tão entendido em tabaco, aspirava-o como um homem tão

certo de ter sempre sua tabaqueira cheia de macouba17 que,...”

Texto da nota: Macouba,∗ variedade de tabaco da Martinica com

perfume de rosas. (N.T.)

Classificação: (IIb); (2)

Número da nota: 18

Página: 38

Texto de referência: “A condessa dizia à sra. Vauquer, chamando-a de querida amiga, que

procuraria levar para lá a baronesa de Vaumerland e a viúva do conde Picquoiseau, duas

amigas que iam completar três meses de permanência numa pensão do Marais18 mais cara que

a Casa Vauquer.”

∗ Diferença de grafia já esclarecida no capítulo 3.

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126

Texto da nota: Marais: antigo bairro de Paris, correspondente aos atuais III e IV

arrondissements (distritos), com muitos edifícios antigos.

Classificação: (IIb); (4)

Número da nota: 19

Página: 38

Texto de referência: “Após muitos cálculos, as duas viúvas foram ao Palais-Royal19...”

Texto da nota: Palais-Royal: famosa construção de Paris, cujo pátio e galerias, cheios de

lojas, serviam e servem ainda hoje de passeio.

Classificação: (IIb); (4)

Número da nota: 20

Página: 38

Texto de referência: “...onde compraram, nas Galerias de Madeira20, um chapéu de plumas e

uma touca.”

Texto da nota: Galerias de madeira: uma das galerias do Palais-Royal, guarnecida de

barracas de madeira que serviam para lojas elegantes.

Classificação: (IIb); (4)

Número da nota: 21

Página: 39

Texto de referência: “Quando essas munições foram postas em uso e a viúva se viu de armas

na mão, ficou perfeitamente parecida com a tabuleta do Boi na Moda21.”

Texto da nota: Boi na moda: famoso restaurante da época, em cuja tabuleta o dono mandou

pintar um boi vestido dos atavios elegantes da moda: um chapéu, um xale etc.

Classificação: (IIb); (4)

Número da nota: 19

Página: 37

Texto de referência: “Quando tais munições foram empregadas e a

viúva ficou armada para a batalha, ela se parecida exatamente com o

cartaz do restaurante Boeuf à la Mode19.”

Texto da nota: O cartaz do célebre restaurante Boeuf à la Mode,

situado na Rue du Lycée, exibia um boi ornado de xale e chapéu.

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127

(N.T.)

Classificação: (IIb); (4)

Número da nota: 22

Página: 45

Texto de referência: “Tem seu grande homem, um professor do colégio de França22, pago

para manter-se à altura do auditório.”

Texto da nota: Colégio de França: universidade livre, existente até hoje, de grande prestígio.

Classificação: (IIb); (4)

Número da nota: 23

Página: 46

Texto de referência: “Após ter sacudido os ramos da árvore genealógica, a velha fidalga

concluiu que, de todas as pessoas que poderiam ser úteis ao sobrinho entre a gente egoísta que

constituía seus parentes ricos, a Viscondessa de Beauséant23 seria a mais acessível.”

Texto da nota: Viscondessa de Beauséant: uma das belas e grandes figuras femininas do

mundo balzaquiano, cuja história é narrada na novela A Mulher Abandonada.

Classificação: (IIa); (6)

Número da nota: 23

Página: 48

Texto de referência: “Depois de ter sacudido os galhos da árvore

genealógica, a velha senhora avaliou que, de todas as pessoas que

poderiam servir a seu sobrinho, entre aquela gente egoísta que eram os

parentes ricos, a sra. viscondessa de Beauséant23 seria a menos

recalcitrante.”

Texto da nota: Viscondessa de Beauséant, personagem de A comédia

humana (Gobseck, O gabinete das antigüidades, A mulher

abandonada, Albert Savarus, Os segredos da princesa de Cardignan).

(N.T.)

Classificação: (IIa); (6)

Número da nota: 24

Página: 46

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128

Texto de referência: “Os pensionistas puderam, assim, crer que ele não voltaria do baile

antes da madrugada, como acontecera outras vezes ao voltar das festas do Prado24...”

Texto da nota: Prado: salão de baile em frente ao Palácio da Justiça; existiu em 1807 a 1855.

Classificação: (IIb); (4)

Número da nota: 25

Página: 46

Texto de referência: “...ou dos bailes do Odéon25,...”

Texto da nota: Odéon: teatro fundado em Paris em 1797; funciona ainda hoje como segundo

teatro nacional, ao lado da Comédie Française.

Classificação: (IIb); (4)

Número da nota: 26

Página: 47

Texto de referência: “Imaginai grandes olhos negros, mãos magníficas, pés bem talhados,

fogo nos gestos, uma mulher que o Marquês de Ronquerolles26 denominava um cavalo puro-

sangue.”

Texto da nota: Marquês de Ronquerolles: irmão da condessa de Sérisy (Uma Estréia na

Vida) e protagonista de A História dos Treze.

Classificação: (IIa); (6)

Número da nota: 26

Página: 49

Texto de referência: “Imaginem grandes olhos negros, uma mão

magnífica, um pé bem-desenhado, fogo em seus movimentos, uma

mulher que o marquês de Ronquerolles26 chamava de um cavalo puro-

sangue.”

Texto da nota: Marquês de Ronquerolles, personagem de A comédia

humana (Ferragus, A duquesa de Langeais, O lírio do vale, Contrato

de casamento, A menina dos olhos de ouro). (N.T.)

Classificação: (IIa); (6)

Número da nota: 27

Página: 47

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Texto de referência: “Cavalo puro-sangue, mulher de raça, tais eram as locuções que

começavam a substituir os anjos do céu; as figuras ossiânicas27, toda a antiga mitologia

amorosa repelida pelo dandismo.”

Texto da nota: Ossian: herói e poeta lendário da Escócia do século III, a quem James

Macpherson (1736-1796) atribuiu uma coletânea de poemas de que era autor. Esses poemas,

com sua atmosfera sombria, seus heróis cavalheirescos e suas heroínas irreais, exerceram

grande influência sobre o Romantismo.

Classificação: (IIb); (1)

Número da nota: 27

Página: 50

Texto de referência: “Cavalo puro-sangue, mulher de raça, tais

expressões começavam a substituir os anjos do céu; as figuras

ossiânicas27, toda a antiga mitologia amorosa afastada pelo

dandismo.”

Texto da nota: Relativas a Ossian (séc. III d.C.), legendário guerreiro

e bardo gaélico, ou a suas poesias. (N.T.)

Classificação: (IIb); (1)

Número da nota: 28

Página: 47

Texto de referência: “– No bosque, nos Bouffons28, em minha casa, em toda a parte.”

Texto da nota: Bouffons: nome que se dava, na sociedade, ao Teatro dos Italianos.

Classificação: (IIb); (4)

Números das notas: 28 e 29

Página: 50

Texto de referência: “– Ora – respondeu ela –, no Bois28, no

Bouffons29, em minha casa, em todo lugar.”

Textos das notas: 28. Referência ao Bois de Boulogne, bosque

localizado no extremo oeste de Paris. (N.T.)

29. Teatro bufo italiano, apresentado na Opéra-Comique. (N.T.)

Classificação: (IIb); (4), para ambas

Número da nota: 29

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130

Página: 48

Texto de referência: “Teve a sorte de encontrar um homem que não zombava de sua

ignorância, defeito moral entre os ilustres insolentes da época, os Maulincourt, os

Ronquerolles, os Máximo de Trailles, os de Marsay, os d’Ajuda-Pinto, os Vandenesse29, que

lá estavam,...”

Texto da nota: Personagens da Comédia Humana. Maulincourt aparece na História dos

Treze, assim como os Ronquerolles; Máximo de Trailles é encontrado em Gobseck e no fim

de Beatriz; de Marsay desempenha um papel em O Contrato de Casamento; d’Ajuda-Pinto se

revelará no presente romance; quanto aos dois Vandenesse, aparecem em Uma Estréia na

Vida, e a vida familiar de um deles, Félix, é descrita em Uma Filha de Eva.

Classificação: (IIa); (6)

Números da notas: 30 a 35

Páginas: 50 e 51

Texto de referência: “Ele tivera a felicidade de encontrar um homem

que não zombara de sua ignorância, defeito mortal em meio aos

ilustres impertinentes da época, os Maulincourt30, os Ronquerolles31,

os Maxime de Trailles32, os de Marsay33, os Ajuda-Pinto34, os

Vandenesse29, que lá estavam,...”

Textos da notas: 30. A família Maulincourt, composta pela baronesa

Charbonnon de Maulincourt e por seu neto, barão Auguste

Charbonnon de Maulincourt, faz parte de A comédia humana

(Ferragus, Contrato de casamento, A duquesa de Langeais). (N.T.)

31. Além do marquês de Ronquerolles, as irmãs dele também

integram A comédia humana. (N.T.)

32. Conde Maxime de Trailles, personagem de A comédia humana

(César Birotteau, Contrato de casamento, Gobseck, O gabinete das

antigüidades, Ilusões perdidas, Ursule Mirouët, Os segredos da

princesa de Cadignan, Um homem de negócios, Um príncipe da

Boêmia). (N.T.)

33. A família de Marsay aparece em diversos títulos de A comédia

humana, sobretudo o conde Henri de Marsay, um de seus principais

personagens (A menina dos olhos de ouro, Contrato de casamento,

César Birotteau, Ilusões perdidas, O lírio do vale, O gabinete das

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antigüidades, A duquesa de Langeais, Memórias de duas jovens

esposas, Ursule Mirouët, Modeste Mignon, Esplendores e misérias

das cortesãs, Outro estudo de mulher, O deputado de Arcis, Os

segredos da princesa de Cadignan) (N.T.)

34. A família de origem nobre portuguesa, sobretudo o marquês

Miguel de Ajuda-Pinto, faz parte de A comédia humana (A duquesa de

Langeais, O lírio do vale, O gabinete das antigüidades, Os segredos

da princesa de Cadignan, Béatrix). (N.T.)

35. A família Vandenesse, sobretudo o abade, o marquês, o conde,

Emilie, Félix-Amédée, faz parte de A comédia humana (O lírio do

vale, Contrato de casamento, Uma filha de Eva, César Birotteau, O

gabinete das antigüidades, Gobseck, Memórias de duas jovens

esposas, Esplendores e misérias das cortesãs, Outro estudo de

mulher, Um caso tenebroso, A casa Nucingen). (N.T.)

Classificação: (IIa); (6), para todas

Número da nota: 30

Página: 48

Texto de referência: “...na glória de sua fatuidade e misturados às mulheres mais elegantes,

Lady Brandon, a Duquesa de Langeais, a Condessa de Kergarouët, a sra. de Sérisy, a Duquesa

de Carigliano, a Condessa Ferraud, a sra. de Lanty, a Marquesa d’Aiglemont, a sra. Firmiani,

a Marquesa de Listomère, a Marquesa d’Espard, a Duquesa de Maufrigneuse e as

Grandlieu30.”

Texto da nota: Personagens da Comédia Humana. Lady Brandon é mãe de Maria Gastão

(Memórias de Duas Jovens Esposas), e seu trágico definhamento é narrado em O Romeiral; a

Condessa de Kergarouët deve ser a primeira esposa do Conde Kergarouët (que em segundas

núpcias desposa Emília de Fontaine, em O Baile de Sceaux); a sra. Sérisy figura em Uma

Estréia na Vida; a Duquesa de Carigliano aparece em Ao “Chat-qui-Pelote”; a Condessa

Ferraud, em primeiras núpcias Condessa Chabert, é protagonista de O Coronel Chabert; a

sra. de Lanty figura em O Deputado de Arcis; a Marquesa d’Aiglemont é A Mulher de Trinta

Anos; a sra. Firmiani dá nome a um romance; a Marquesa de Listomère é protagonista de

Estudo de Mulher; a Marquesa d’Espard aparece em A Interdição; a Duquesa de

Maufrigneuse é heroína de Os Segredos da Princesa de Cadignan; há várias sras. Grandlieu

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na Comédia Humana, que aparecem em Gobseck e em Beatriz.

Classificação: (IIa); (6)

Número da nota: 36 a 48

Página: 51 e 52

Texto de referência: “...no auge de suas fatuidades e mesclados às

mulheres mais elegantes, Lady Brandon36, a duquesa de Langeais37, a

condessa de Kergarouët38, a sra. de Sérisy39, a duquesa de

Carigliano40, a condessa Ferraud41, a sra. de Lanty42, a marquesa de

Aiglemont43, a sra. Firmiani44, a marquesa de Listomère45 e a

marquesa de Espard46, a duquesa de Maufrigneuse47 e as Grandlieu48.”

Texto da nota: 36. Lady Brandon, personagem de A comédia humana

(Memórias de duas jovens esposas, A romeiral). (N.T.)

37. Duquesa Antoinette de Langeais, personagem de A comédia

humana (A duquesa de Langeais, O lírio do vale, Ferragus). (N.T.)

38. Condessa de Kergarouët, personagem de A comédia humana

(Béatrix, A bolsa). (N.T.)

39. Sra. Sérisy ou condessa de Sérisy, personagem de A comédia

humana (Esplendores e misérias das cortesãs, Uma estréia na vida,

Ferragus, A duquesa de Langeais, Ilusões perdidas, O gabinete das

antigüidades, Ursule Mirouët, Modeste Mignon, Outro estudo de

mulher, A falsa amante). (N.T.)

40. Duquesa de Carigliano, personagem de A comédia humana (O

deputado de Arcis, Ao “Chat-qui-pelotte”, Os camponeses, Ilusões

perdidas, O gabinete das antigüidades). (N.T.)

41. Condessa Ferraud, personagem de A comédia humana (Coronel

Chabert, Os funcionários, Contrato de casamento). (N.T.)

42. Sra. de Lanty ou condessa de Lanty, personagem de A comédia

humana (Sarrasine). (N.T.)

43. Marquesa de Aiglemont, personagem de A comédia humana (A

mulher de trinta anos). (N.T.)

44. Sra. Firmiani, personagem de A comédia humana (Madame

Firmiani, Os segredos da princesa de Cadignan, Ilusões perdidas, O

baile de Sceaux). (N.T.)

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45. Marquesa de Listomère, personagem de A comédia humana

(Memórias de duas jovens esposas, Estudo de mulher, O gabinete das

antigüidades, O contrato de casamento, Uma filha de Eva, A mulher

de trinta anos). (N.T.)

46. Marquesa de Espard, personagem de A comédia humana (A

interdição, César Birotteau, O lírio do vale, O gabinete das

antigüidades, Esplendores e misérias das cortesãs, O baile de Sceaux,

Memórias de duas jovens esposas, Contrato de casamento, Modeste

Mignon, Os segredos da princesa de Cadignan, Outro estudo de

mulher, A falsa amante). (N.T.)

47. Duquesa de Maufrigneuse, futura princesa de Cadignan,

personagem de A comédia humana (A princesa de Cadignan, Um caso

tenebroso). (N.T.)

48. Os Grandlieu, sobretudo o duque e a duquesa, são personagens de

A comédia humana (Esplendores e misérias das cortesãs, A duquesa

de Langeais, Ilusões perdidas, Os segredos da princesa de Cadignan,

O gabinete das antigüidades, Uma filha de Eva). (N.T.)

Classificação: (IIa); (6), para todas

Número da nota: 31

Página: 48

Texto de referência: “Foi, assim, uma sorte para o inexperiente estudante encontrar pela

frente o Marquês de Montriveau, amante da Duquesa de Langeais31,...”

Texto da nota: A história desse amor é contada por Balzac em A Duquesa de Langeais.

Classificação: (IIa); (6)

Número da nota: 49

Página: 52

Texto de referência: “Felizmente então, o ingênuo estudante se

deparara com o marquês de Montriveau49, amante da duquesa de

Langeais,...”

Texto da nota: Marquês de Montriveau, personagem de A comédia

humana (A duquesa de Langeais, Memórias de duas jovens esposas,

Contrato de casamento, Outro estudo de mulher, Os celibatários:

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134

Pierrette, A musa do departamento, Os segredos da princesa de

Cadignan). (N.T.)

Classificação: (IIa); (6)

Número da nota: 32

Página: 49

Texto de referência: “Sua imaginação vadia antecipava tão intensamente as futuras alegrias

que ele já se acreditava junto da sra. de Restaud, quando um suspiro semelhante a um han de

São José32 feriu o silêncio da noite...”

Texto da nota: Han de São José: parece querer dizer “um gemido do carpinteiro que

trabalha” (São José era carpinteiro).

Classificação: (I); (7)

Número da nota: 33

Página: 49

Texto de referência: “‘Parece tão forte como Augusto, rei da Polônia!’33,...”

Texto da nota: Trata-se de Augusto de Saxe (1670-1733), que Balzac provavelmente

confunde com seu filho, o marechal de Saxe, de uma força lendária.

Classificação: (IIa) e (IIb); (1)

Número da nota: 34

Página: 53

Texto de referência: “‘Por longos anos pelo mundo andei

E chamei a atenção de toda a gente’34.

(...)

‘As louras e morenas cortejei,

A amar e a suspirar...’

(...)

‘ingenuamente.’”

Texto da nota: Versos da letra de Joconda ou Os Aventureiros, ópera cômica de Nicolo

(1814). Em francês:

J’ai longtemps parcouru le monde

Et l’on m’a vu de toute part...

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Courtiser la brunse ou la blonde,

Aimer, soupiser du hasard.

Classificação: (IIb); (1)

Número da nota: 35

Página: 53

Texto de referência: “– Palavra! Eu voltava para cá, após ter acompanhado um amigo que

vai ao estrangeiro pelas Messageries Royales35.”

Texto da nota: Messageries Royales: companhia oficial que até certo momento

monopolizava os transportes. É porém possível, como observa Jean Boudout, que Vautrin,

segundo seu costume, esteja brincando; esse amigo que viaja “pela companhia real de

transportes” poderia muito bem ser um condenado a galés.

Classificação: (IIa) e (IIb); (4)

Número da nota: 36

Página: 53

Texto de referência: “De lá, ele voltou a este bairro, à rua do Grês, e entrou na casa de um

conhecido usurário, chamado papá Gobseck36, um grandíssimo patife,...”

Texto da nota: Gobseck: essa personagem de Balzac é encontrada em Gobseck, novela

cronologicamente posterior a O Pai Goriot, mas que no plano da Comédia Humana o

precede.

Classificação: (IIa); (6)

Número da nota: 50

Página: 58

Texto de referência: “Ele voltou para este bairro, pela Rue des Grès,

onde entrou na casa de um agiota conhecido, chamado Gobseck50, um

tipo estranho,...”

Texto da nota: Jean-Esther van Gobseck, personagem de A comédia

humana (Gobseck, César Birotteau, Contrato de casamento, Os

camponeses). (N.T.)

Classificação: (IIa); (6)

Número da nota: 37

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Página: 60

Texto de referência: “– Eu, que estudo o sistema de Gall37,...”

Texto da nota: O sistema de Gall: Balzac também estudava, e com entusiasmo, as obras de

Franz Joseph Gall (1758-1828), fundador da Frenologia, teoria das localizações cerebrais, e

aplicou-lhe o sistema de interpretar as protuberâncias do crânio nos retratos de suas

personagens.

Classificação: (IIa) e (IIb); (1) e (8)

Número da nota: 54

Página: 68

Texto de referência: “Eu que estou estudando o sistema de Gall54,...”

Texto da nota: Franz Joseph Gall (1758-1828), médico alemão,

inventor da frenologia, ciência que estudava, de acordo com a

conformação da caixa craniana, a constituição do cérebro e as

faculdades dos indivíduos. (N.T.)

Classificação: (IIb); (1)

Número da nota: 38

Página: 61

Texto de referência: “E, rosa, ela viveu como vivem as rosas,

Somente uma manhã38.”

Texto da nota: Tradução dos famosos versos de Malherbe na Consolação de Du Périer:

Et rose elle a vécu ce que vivent les roses,

L’espace d’un martin.

Classificação: (IIb); (7)

Número da nota: 39

Página: 69

Texto de referência: “– É uma pena. Priva-se, assim, de um grande meio de triunfo. Ca-a-ro,

ca-a-a-ro, ca-a-a-a-ro, non du-bi-ta-re39, cantou a condessa.”

Texto da nota: Primeiras palavras levemente deformadas de uma ária do Matrimonio

Secreto, de Cimarosa, em italiano: “Querido, querido, não duvides”.

Classificação: (IIb); (3)

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Número da nota: 40

Página: 72

Texto de referência: “A viscondessa estava ligada há três anos com um dos mais famosos e

mais ricos senhores portugueses, o Marquês d’Ajuda-Pinto40.”

Texto da nota: Marquês d’Ajuda-Pinto: personagem da Comédia Humana, jovem aristocrata

português, freqüentador dos salões mais brilhantes de Paris.

Classificação: (IIa); (6)

Número da nota: 41

Página: 72

Texto de referência: “O sr. d’Ajuda ia casar-se com uma srta. de Rochefide41.”

Texto da nota: Srta. de Rochefide: provavelmente uma parente do Marquês Artur de

Rochefide, marido de Beatriz, no romance de mesmo nome.

Classificação: (IIa); (6)

Número da nota: 58

Página: 84

Texto de referência: “O sr. d’Ajuda deveria se casar. Desposaria uma

senhorita de Rochefide58.”

Texto da nota: Berthe de Rochefide, futura marquesa d’Ajuda-Pinto,

personagem de A comédia humana (A duquesa de Langeais). (N.T.)

Classificação: (IIa); (6)

Número da nota: 42

Página: 73

Texto de referência: “...e, quando está prestes a ser abandonada, descobre o significado de

um gesto mais rapidamente do que o corcel de Virgílio42 farejava os corpúsculos distantes que

lhe anunciavam o amor.”

Texto da nota: Corcel de Virgílio: alusão a estes dois versos de Virgílio (Geórgicas, III, 250-

251): “Não vês como os cavalos fremem em todo o corpo, / contanto que a brisa lhes traga

uns eflúvios conhecidos?”

Classificação: (IIb); (1)

Número da nota: 43

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138

Página: 73

Texto de referência: “a fim de não cometer nenhuma dessas asneiras, em face das quais se

diz pitorescamente na Polônia: Atrele cinco bois a seu carro!43, certamente para tirar a vítima

do atoleiro em que se meteu.”

Texto da nota: Atrele cinco bois a seu carro!: reminiscência do encontro de Balzac com a

Condessa Hanska em 1833. Alusões como esta, disseminadas nos romances de Balzac,

constituíam uma espécie de correspondência disfarçada para a amante distante.

Classificação: (IIa); (8)

Número da nota: 44

Página: 74

Texto de referência: “– Por que não pode ir aos Italianos44? – perguntou a viscondessa,

sorrindo, ao português.”

Texto da nota: Théâtre Italien ou Théâtre des Italiens: instalado em 1801 sob a direção de

Montausier para representar óperas italianas; funcionou em várias salas até seu

desaparecimento, em 1878.

Classificação: (IIb); (4)

Número da nota: 45

Página: 77

Texto de referência: “– Sérisy45 me disse, ontem, que ele não tem aparecido. Não esteve em

Sua casa, hoje?”

Texto da nota: Sérisy: filho do conde e da condessa de Sérisy, encontrados em Uma Estréia

na Vida.

Classificação: (IIa); (6)

Número da nota: 46

Página: 77

Texto de referência: “– Ontem ele estava no Élysée46.”

Texto da nota: Élysée: o palácio deste nome, hoje residência do presidente da República,

pertencia no começo da Restauração ao Duque de Berny.

Classificação: (IIb); (4)

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139

Número da nota: 47

Página: 77

Texto de referência: “Sim, amanhã tudo estará oficializado e então poderás ser oficiosa47

com toda a segurança.”

Texto da nota: Oficiosa: aqui, “mentirosa”.

Classificação: (I); (7)

Número da nota: 48

Página: 79

Texto de referência: “– Eiusdem farinae48 – disse Eugênio.”

Texto da nota: Eiusdem farinae: expressão latina que, no sentido próprio, significa “da

mesma farinha”, mas geralmente é usada no sentido figurado: “da mesma laia”. Aqui é

empregado ao mesmo tempo nas duas acepções.

Classificação: (I); (3)

Número da nota: 49

Página: 80

Texto de referência: “Vocês compreendem que, no Império, os dois genros não se

incomodaram muito de ter esse velho noventa-e-três49 em casa.”

Texto da nota: Ter esse velho noventa-e-três: quer dizer “esse velho revolucionário”. O ano

de 1793 foi o dos excessos mais sangrentos da Revolução Francesa, em particular da

execução dos girondinos.

Classificação: (IIb); (1) e (7)

Número da nota: 61

Página: 94

Texto de referência: “Vocês compreendem que, no Império, os dois

genros não se importaram muito de ter em casa aquele velho Noventa-

e-três61;...”

Texto da nota: O insulto faz alusão ao ano de 1793, quando os

revolucionários assassinaram os girondinos. (N.T.)

Classificação: (IIb); (1)

Número da nota: 50

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140

Página: 83

Texto de referência: “Dou-lhe meu nome como um fio de Ariana50 para entrar nesse

labirinto.”

Texto da nota: Ariana: filha de Minos, deu a Teseu, seu namorado, um fio, graças ao qual o

herói, depois de matar o Minotauro, conseguiu sair do labirinto onde o rei guardava esse

monstro.

Classificação: (IIb); (5)

Número da nota: 51

Página: 84

Texto de referência: “Viu a sociedade tal qual é: as leis e a moral impotentes para com os

ricos e viu na fortuna a ultima ratio mundi51.”

Texto da nota: Ultima ratio mundi: em latim no original “o supremo argumento do mundo”.

Classificação: (I); (3)

Número da nota: 62

Página: 98

Texto de referência: “Ele viu o mundo como é: as leis e a moral

impotentes entre os ricos, e viu na fortuna a ultima ratio mundi62.”

Texto da nota: O argumento definitivo. Em latim no original. (N.T.)

Classificação: (I); (3)

Número da nota: 52

Página: 84

Texto de referência: “Essas duas linhas são assíntotas52 que nunca se podem encontrar.”

Texto da nota: Linha assíntota: linha reta da qual os diferentes pontos de uma curva se

aproximam cada vez mais sem alcançá-la nunca. O termo “paralelas” seria mais exato.

Classificação: (I); (7)

Número da nota: 53

Página: 85

Texto de referência: “Ele tem apenas uma bossa, a da paternidade. Será um padre eterno53.”

Texto da nota: Padre eterno: em francês “pai” e “padre” se exprimem pela mesma palavra,

père.

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141

Classificação: (I); (7)

Número da nota: 54

Página: 89

Texto de referência: “Fora de sua especialidade, de seu singelo e obscuro armazém, à porta

do qual permanecia nas horas de folga com o ombro apoiado ao batente, voltava a ser o

operário estúpido e vulgar, incapaz de compreender um raciocínio, insensível a todos os

prazeres do espírito, o homem que dorme no teatro, um desses Dolibans54 parisienses que só

são fortes em estupidez.”

Texto da nota: Dolibans: nome do pai rico que por pouco não casa a filha com um intrigante,

numa peça da moda, O Surdo ou a Hospedaria, de Choudart des Forges.

Classificação: (IIb); (5)

Número da nota: 63

Página: 105

Texto de referência: “Fora de sua especialidade, de sua simples e

obscura loja em cuja soleira permanecia durante suas horas de lazer, o

ombro apoiado no batente da porta, voltava a ser o operário estúpido e

grosseiro, o homem incapaz de compreender um raciocínio, insensível

a todos os prazeres do espírito, o homem que adormecia nos

espetáculos, um desses Dolibans63 parisienses, versados somente em

asneiras.”

Texto da nota: O sr. Oliban (e não Doliban) é o protagonista da

comédia O surdo, de Choudart-Desforges, de 1790. Trata-se de um

pai estúpido que está prestes a fazer a infelicidade de sua filha. (N.T.)

Classificação: (I) e (IIb); (5)

Número da nota: 55

Página: 93

Texto de referência: “Ela tinha duzentos francos e eu, meu pobre amigo, tenho apenas

cinqüenta escudos55.”

Texto da nota: Um escudo valia três francos.

Classificação: (IIb); (7)

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142

Número da nota: 56

Página: 93

Texto de referência: “Quando chegamos à estrada real, corremos a Ruffec56 e entregamos

sem cerimônia aquela quantia ao sr. Grimbert, que dirige o escritório das Messageries

Royales.”

Texto da nota: Ruffec: localidade da Charente.

Classificação: (IIb); (4)

Número da nota: 57

Página: 94

Texto de referência: “Falam numa mulher e calam quanto a resto57...”

Texto da nota: Em francês: L’on parle d’une dame et l’on se tait du reste; imitação de um

verso de Corneille: On parle d’eaux, du Tibre, et l’on se tait du reste (“Falam de águas, do

Tibre, e calam quanto ao resto”).

Classificação: (IIb); (7)

Número da nota: 58

Página: 97

Texto de referência: “Qualidade que as pessoas do norte chamam de defeito: para elas, se

isso foi a origem da ventura de Murat58, foi também a causa de sua morte.”

Texto da nota: Joachim Murat (1767-1815): cunhado de Napoleão; rei de Nápoles de 1808 a

1815, assinou a paz em separado com a Áustria, mas, como instigasse os italianos a uma

guerra de independência, foi preso e fuzilado.

Classificação: (IIb); (1)

Número da nota: 65

Página: 115

Texto de referência: “...qualidade que os filhos do norte consideram

um defeito: para eles, se foi essa a origem da fortuna de Murat65, foi

também a causa de sua morte.”

Texto da nota: Joachim Murat (1767-1815), cunhado de Napoleão,

foi marechal do Império e rei de Nápoles de 1808 a 1815. Fuzilado na

Itália ao apoiar os independentistas. Sua intrepidez fez com que

ganhasse fortuna, mas também a perdesse. (N.T.)

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143

Classificação: (IIb); (1)

Número da nota: 59

Página: 97

Texto de referência: “Deve-se concluir daí que quando um meridional sabe unir o embuste

do norte à audácia do além-Loire, fica completo e torna-se rei da Suécia59.”

Texto da nota: Alusão a Charles Bernadotte (1763-1844), marechal da França, o qual,

adotado por Carlos XIII, se tornou rei da Suécia em 1818, sob o nome de Carlos XIV.

Classificação: (IIb); (1)

Número da nota: 60

Página: 97

Texto de referência: “– Parece que você tem medo de ficar me devendo alguma coisa –

observou Vautrin, cravando um olhar adivinhador na alma do rapaz, e dirigindo-lhe um desses

sorrisos folgazões e diogênicos60, com os quais Rastignac já estivera cem vezes a ponto de se

zangar.”

Texto da nota: Sorriso cínico: Diógenes, filósofo grego, era o principal representante da

escola cínica.

Classificação: (IIb); (7)

Número da nota: 61

Página: 99

Texto de referência: “Sou o que vocês chamam um artista. Li as Memórias de Benvenuto

Cellini61, tal como você me vê, e em italiano!”

Texto da nota: Benvenuto Cellini (1500-1571): famoso ourives gravador e escultor italiano

que teve uma existência cheia de aventuras, relatada em sua autobiografia.

Classificação: (IIb); (1)

Número da nota: 66

Página: 119

Texto de referência: “Sou o que se chama de um artista. Li as

Memórias de Benvenuto Cellini66, assim como está me vendo, e em

italiano ainda por cima!”

Texto da nota: Benvenuto Cellini (1500-1571), escultor e italiano.

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144

(N.T.)

Classificação: (IIb); (1)

Número da nota: 62

Página: 100

Texto de referência: “Um milhão, e imediatamente. Sem isso, com a pequena cabeça que

tem, poderia ir passear nas redes de Saint-Cloud62 para ver se existe um Ser Supremo. Vou

dar-lhe esse milhão.”

Texto da nota: Jogar-se no Sena e ser apanhado, morto, à altura de Saint-Cloud.

Classificação: (IIb); (7)

Número da nota: 67

Página: 120

Texto de referência: “Um milhão, e depressa; sem o que, com nossa

cabecinha, poderíamos ir flanar pelas redes de Saint-Cloud67, a ver se

existe um Ser Supremo. Esse milhão, vou lhe dar.”

Texto da nota: As redes estendidas de uma margem a outra do Sena

na altura de St. Cloud retinham os cadáveres que desciam o rio. (N.T.)

Classificação: (IIb); (7)

Número da nota: 63

Página: 101

Texto de referência: “Fazemo-nos advogado para nos tornarmos presidente de um tribunal,

enviar às galés pobres-diabos melhores do que nós, com um T.F.63 nas costas, a fim de provar

aos ricos que eles podem dormir tranqüilamente.”

Texto da nota: T.F.: iniciais de Travaux Forcés (“trabalhos forçados”), as quais eram

gravadas com ferro quente nas costas dos condenados às galés.

Classificação: (IIb); (7)

Número da nota: 68

Página: 121

Texto de referência: “Tornamo-nos advogados para virmos a ser

presidentes de um tribunal, condenarmos aos trabalhos forçados uns

pobres-diabos que valem mais do que nós com T.F. tatuado sobre os

ombros68, para provar aos ricos que eles podem dormir em paz.”

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145

Texto da nota: T.F. é a abreviação de “travaux forcés”, trabalhos

forçados, que era inscrita no ombro dos prisioneiros das galés. (N.T.)

Classificação: (IIb); (7)

Número da nota: 64

Página: 102

Texto de referência: “Se cometer alguma dessas pequenas baixezas políticas, como ler numa

lista de eleições Villèle em vez de Manuel64 (isso rima, de modo que deixa a consciência em

paz) será, aos quarenta anos, procurador-geral e poderá chegar a deputado.”

Texto da nota: Villèle e Manuel eram dois políticos franceses da época, o primeiro Presidente

do Conselho, o segundo deputado em 1823, quando se discutia a intervenção francesa na

Espanha, proposta por Villèle e combatida por Manuel.

Classificação: (IIb); (1)

Números da notas: 69 e 70

Página: 122

Texto de referência: “Se fizer algumas pequenas baixezas políticas,

como ler num boletim Vitel69 em vez de Manuel (dá rima, deixa a

consciência tranqüila70), será, aos quarenta anos, procurador geral e

poderá se tornar deputado.”

Textos da notas: 69. No original, Villèle. Optamos pela mudança de

grafia para que o texto (a rima logo a seguir mencionada) faça sentido

para o leitor brasileiro. (N.T.)

70. Ou seja, substituir nas cédulas de voto o nome de um candidato

liberal pelo de um candidato legitimista. O ano de 1919∗, em que se

passa essa história, foi de eleições gerais. (N.T.)

Classificação: 69. (I); (7)

70. (IIb); (1)

Número da nota: 65

Página: 102

∗ Deslize da tradução, ou da revisão; logicamente, o ano é 1819.

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146

Texto de referência: “Note, meu caro menino, que teremos feito alguns rasgões em nossa

conscienciazinha, teremos passado vinte anos de aborrecimentos e misérias secretas, e nossas

irmãs terão ficado para pentear Santa Catarina65.”

Texto da nota: Pentear Santa Catarina: expressão francesa que significa “ter passado a idade

de vinte e cinco anos sem ter casado”.

Classificação: (I); (7)

Número da nota: 66

Página: 104

Texto de referência: “Napoleão encontrou um ministro da Guerra que se chamava Aubry e

que por pouco não o mandou para as colônias66.”

Texto da nota: François Aubry (1749-1802): membro do Comitê de Salvação Pública,

encarregado dos negócios militares; destituiu vários oficiais, entre os quais Bonaparte,

comandante da artilharia na Itália (por considerá-lo, segundo uns, moço demais, e, segundo

outros, com tendências terroristas). Bonaparte teria pedido então que o mandassem à Turquia

(não às colônias), pedido que não foi satisfeito.

Classificação: (IIb); (1)

Número da nota: 72

Página: 125

Texto de referência: “Napoleão encontrou um ministro da guerra que

se chamava Aubry72 e que quase o mandou para as colônias.”

Texto da nota: François Aubry (1747-1798), membro do Comitê de

Salvação pública depois do Nove Terminador e sucessor de Lazare

Carrot na Direção da guerra, promoveu Napoleão Bonaparte do

comando da artilharia para as forças armadas da Itália. No entanto,

Aubry nunca foi ministro como menciona Balzac. (N.T.)

Classificação: (IIb); (1)

Número da nota: 67

Página: 105

Texto de referência: “Ergo67, você terá realizado, num prazo de seis meses, sua felicidade, a

de uma mulher amável e a de seu papai Vautrin, sem contar a de sua família, que vive

assoprando nos dedos, no inverno, por falta de lenha.”

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147

Texto da nota: Ergo: em latim no original, “portanto”.

Classificação: (I); (3)

Número da nota: 68

Página: 105

Texto de referência: “O que entendo por sacrifício é vender um traje velho para ir ao Cadran

Bleu68 comer com ela empadas de cogumelo;...”

Texto da nota: Cadran Bleu: restaurante à esquina do bulevar do Templo e da rua Charlot.

Classificação: (IIb); (4)

Número da nota: 69

Página: 105

Texto de referência: “...de lá, ir à noite, ao Ambigu-Comique69; é empenhar o relógio na

Casa de Penhor para dar-lhe um xale.”

Texto da nota: Ambigu-Comique: teatro de melodrama.

Classificação: (IIb); (7)

Número da nota: 70

Página: 106

Texto de referência: “Taillefer é um velho patife que dizem ter assassinado um amigo

durante a Revolução70.”

Texto da nota: Este assassínio é contado na novela A Estalagem Vermelha.

Classificação: (IIa); (7)

Número da nota: 71

Página: 106

Texto de referência: “Tenho um amigo por quem me devotei, um coronel do exército do

Loire71, que acaba de ser incluído na guarda real.”

Texto da nota: Exército do Loire: formado em 1815 por oficiais fanáticos e fiéis a Napoleão

e que quiseram tentar desesperada resistência aos aliados.

Classificação: (IIb); (7)

Número da nota: 72

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148

Página: 107

Texto de referência: “O homem que prestou menos serviços à França é um ídolo venerado,

por ter sido sempre visto vestido de encarnado, e que quando muito poderia servir para ser

exposto no Conservatório, entre os instrumentos, com um letreiro: La Fayette72.”

Texto da nota: Quem fala aqui é o Balzac partidário, cujas opiniões legitimistas eram opostas

ao liberalismo de La Fayette. Balzac trata este último em termos não menos severos nas

Memórias de Duas Jovens Esposas.

Classificação: (IIa); (8)

Números das notas: 73 e 74

Página: 129

Texto de referência: “O homem que menos serviu à França é um

fetiche venerado por ter sempre visto tudo vermelho, ele é no máximo

bom para ser posto no Conservatório73, entre as máquinas, etiquetando

La Fayette74,...”

Textos da notas: 73. Referência ao Conservatoire des Arts et Métiers,

criado em 1794 e que possui coleções de autômatos, de relojoaria e de

máquinas de todo tipo. (N.T.)

74. Marquês Marie-Paul-Yves-Roch-Gilbert du Motier La Fayette

(1757-1834), general e político da Restauração. Participou da

independência americana. (N.T.)

Classificação: (IIb); (4) e (1)

Número da nota: 73

Página: 107

Texto de referência: “Enquanto isso, o príncipe a quem todos atiram pedras e que despreza

suficientemente a humanidade para cuspir-lhe na cara tantos juramentos quantos ela lhe pede,

impediu a partilha da França no Congresso de Viena: devem-lhe coroas e atiram-lhe lama73.”

Texto da nota: Alusão a Talleyrand.

Classificação: (IIb); (1)

Número da nota: 74

Página: 110

Texto de referência: “Os átomos ganchosos74, expressão proverbial de que todos se servem,

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149

constituem um desses fatos que permanecem na linguagem para desmentir as tolices

filosóficas de que se ocupam aqueles que gostam de joeirar o lixo das expressões primitivas.”

Texto da nota: Os átomos ganchosos: expressão da filosofia grega, em particular de

Demócrito e Epicuro, os quais afirmavam que os átomos, partículas que constituem todos os

corpos existentes, eram ganchosos a fim de poderem interceptar-se no espaço e aglomerar-se.

Classificação: (IIb); (7)

Número da nota: 75

Página: 113

Texto de referência: “...onde devia deixar de lado, à entrada, a consciência e o coração,

enfiar uma máscara, zombar impiedosamente dos homens e, como na Lacedemônia75, apanhar

a fortuna sem ser visto para merecer a coroa.”

Texto da nota: Os espartanos ensinavam a seus filhos a arte do roubo; eles consideravam

crime não o roubo, mas sim a inabilidade do ladrão que se deixava apanhar.

Classificação: (IIb); (7)

Número da nota: 75

Página: 136

Texto de referência: “...em cuja entrada deveria deixar sua

consciência, seu coração, colocar uma máscara, dispor dos homens

sem piedade e, como em Lacedemônia75, agarrar sua sorte sem ser

visto, para merecer a coroa.”

Texto da nota: Também conhecida como Lacônia: região do

Peloponeso (porção sul da Grécia no continente europeu) na qual se

situa a histórica cidade de Esparta. (N.T.)

Classificação: (IIb); (1)

Número da nota: 76

Página: 113

Texto de referência: “O sr. de Beauséant, como muitas pessoas entendidas da vida, quase

não tinha outros prazeres além do dos bons pratos; era, em matéria de glutonaria, da escola de

Luís XVIII e do Duque d’Escars76.”

Texto da nota: Jean François d’Escars: mordomo de Luís XVIII, glutão famoso, que teria

morrido de indigestão após haver comido de um prato preparado exclusivamente para o rei e

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150

ele mesmo.

Classificação: (IIb); (1)

Números da notas: 76 e 77

Página: 136 e 137

Texto de referência: “O sr. de Beauséant, como tanta gente blasé,

não tinha outros prazeres além daqueles da boa mesa; em termos de

gastronomia, aliás, ele pertencia à escola de Louis XVIII76 e do duque

de Escars77.”

Textos da notas: 76. Louis XVIII (1755-1824), regente do trono de

1793 a 1795, proclama-se rei da França em 1814 e reina até 20 de

março de 1815. Com a derrota de Napoleão, volta a governar a França

em 8 de julho até a sua morte, em 1824. (N.T.)

77. Duque de Escars (1747-1822), primeiro maître de Louis XVIII.

Morreu de indigestão e obteve de seu patrão real a seguinte oração

fúnebre: “Esse pobre Escars! Possuo no entanto um estômago melhor

do que o dele!” (N.T.)

Classificação: (IIb); (1), para ambas

Número da nota: 77

Página: 114

Texto de referência: “Mas se pensamos como são raros os exemplos de crimes, mesmo de

delitos cometidos por jovens, como nos parecem dignos de respeito esses pacientes Tântalos77

que se combatem a si mesmos e quase sempre vencem!”

Texto da nota: Tântalo: personagem da Mitologia antiga, a quem os deuses, como castigo de

um crime terrível, condenaram a fome e sede devoradoras, fazendo-a ficar, no inferno, no

meio de um rio cuja água lhe foge aos lábios e debaixo de árvores cujos ramos se levantam

quando lhes quer arrancar o fruto.

Classificação: (IIb); (5)

Número da nota: 78

Página: 114

Texto de referência: “– Mas preciso encontrar-me com alguém nas Variedades78.”

Texto da nota: Théâtre des Variétés: inaugurado em 1807, no bulevar Montmartre, para a

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representação de vaudevilles (comédias leves entremeadas de canções).

Classificação: (IIb); (4)

Número da nota: 78

Página: 138

Texto de referência: “...–, mas devo me encontrar com alguém no

Variétés78.”

Texto da nota: O Théâtre des Variétés apresentava na época

sobretudo vaudevilles, comédia que combina pantomima, dança e

canções. (N.T.)

Classificação: (IIb); (4)

Número da nota: 79

Página: 115

Texto de referência: “A sra. Duquesa de Carigliano dá-se muito bem com a sra. Duquesa de

Berry79 – acrescentou, após uma pausa.”

Texto da nota: A sra. Duquesa de Berry (1798-1870): personagem real, nora de Carlos X,

mulher romanesca e resoluta que durante o reinado de Luís Filipe procurou sublevar a

Vendéia contra este, organizando uma revolução legitimista. Sua tentativa malogrou-se e ela

foi aprisionada.

Classificação: (IIb); (1)

Número da nota: 79

Página: 139

Texto de referência: “A sra. duquesa de Carigliano está ligada à

duquesa de Berry79 – continuou depois de uma pausa...”

Texto da nota: Duquesa de Berry (1798-1870), casa-se com Charles-

Ferdinand d’Artois, duque de Berry, filho de Charles X. Menos de

dois anos depois da queda de seu sogro, lidera um grupo de ativistas

legitimistas que sonham em repor no trono seu jovem filho, o duque

de Chambord. Sua operação fracassa, e a duquesa é presa na fortaleza

de Blaye, onde dá à luz uma menina. Vê-se assim obrigada a tornar

público seu segundo casamento, que ocorrera em 1831 com Hector

Lucchesi Palli. (N.T.).

Classificação: (IIb); (1)

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152

Número da nota: 80

Página: 115

Texto de referência: “Lá está de Marsay no camarote da princesa Galathionne80.”

Texto da nota: Princesa Galathionne: personagem balzaquiana cujos bailes freqüentava a

Condessa Félix de Vandenesse (Uma Filha de Eva) e cujo marido quis seduzir a sra. Schontz,

amante do Marquês de Rochefide (Beatriz).

Classificação: (IIa); (6)

Número da nota: 80

Página: 140

Texto de referência: “Eis ali de Marsay no camarote da princesa

Galathionne80.”

Texto da nota: Princesa Galathionne, personagem de A comédia

humana (Uma filha de Eva). (N.T.)

Classificação: (IIa); (6)

Número da nota: 81

Página: 118

Texto de referência: “Sou, como Querubim81, o apaixonado de todas as mulheres, à espera

de poder devotar-me a alguma delas.”

Texto da nota: Querubim: personagem de O Casamento de Fígaro, de Beuamarchais; tipo de

adolescente que desperta para o amor e se apaixona por todas as mulheres.

Classificação: (IIb); (5)

Número da nota: 82

Página: 118

Texto de referência: “– Chá que a zenhorra o convita – disse o barão, espesso alsaciano,

cujo rosto redondo denunciava uma astúcia perigosa –, pode estar zecurro de zer pem

recepido82.”

Texto da nota: Balzac gosta muito de transcrever o sotaque de suas personagens estrangeiras.

O tradutor procurou imitá-lo, fazendo o Barão de Nucingen pronunciar o português à maneira

alemã.

Classificação: (I) e (IIa); (8)

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153

Número da nota: 83

Página: 119

Texto de referência: “...magníficas imagens da probidade, que nos deram duas obras-primas:

Alceste83 de Molière...”

Texto da nota: Alceste: personagem principal de O Misantropo, de Molière.

Classificação: (IIb); (5)

Número da nota: 81

Página: 145

Texto de referência: “...magníficas imagens da probidade que nos

valeram duas obras-primas, Alceste de Molière81...”

Texto da nota: Alceste é personagem da peça O misantropo (1666),

do dramaturgo francês Molière (1522-1673). (N.T.)

Classificação: (IIb); (5)

Número da nota: 84

Página: 119

Texto de referência: “...e, mais recentemente, Jenny Deans e o pai84, na obra de Walter

Scott.”

Texto da nota: Jenny Deans e o pai: protagonistas de A Prisão de Edinburgo, de Walter

Scott.

Classificação: (IIb); (5)

Número da nota: 82

Página: 145

Texto de referência: “...e, mais recentemente, Jenny Deans82 e seu

pai, na obra de Walter Scott.”

Texto da nota: Jeanie Deans é personagem do romance The heart of

Midlothian (O coração de Midlothian) (1818) de Walter Scott (1771-

1832). (N.T.)

Classificação: (IIb); (5)

Número da nota: 85

Página: 124

Texto de referência: “– Estás rindo sem saber de que se trata. Leste Rousseau?

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154

– Li.

– Lembras-te daquela passagem em que ele pergunta ao leitor que faria se pudesse enriquecer

matando, apenas pela vontade, um velho mandarim da China, sem sair de Paris?85”

Texto da nota: Balzaquianos e rousseauístas procuraram em vão essa pergunta em toda a

obra de Rousseau. O que se encontrou de mais semelhante foi um trecho de O Gênio do

Cristianismo, de Chateaubriand (o que não deve surpreender, pois a Balzac lhe acontece mais

de uma vez fazer uma citação errada): “Ó Consciência! Serás tu apenas fantasma da

imaginação ou o medo do castigo dos homens? Interrogo a mim mesmo: pergunto-me: se tu

pudesses, por um desejo apenas, matar um homem na China e herdar sua fortuna na Europa,

tendo a certeza de que nada jamais seria conhecido, consentirias em executar esse desejo?” A

resposta, dada pelo autor, em seu próprio nome, assemelha-se muito à de Bianchon, como se

verificará facilmente: “Por mais que eu exagere minha pobreza, por mais que atenue este

homicídio, supondo que, por meu voto, o chinês morra instantaneamente e sem dor, que não

tenha herdeiros, que por sua morte natural iriam seus bens para o Estado; por mais que eu lhe

atribua idade avançada, acrescida das torturas, dos achaques e dos desgostos; por mais que eu

me diga que a morte é assim uma libertação, que ele mesmo implora e que não esperará

muito; apesar de tais subterfúgios, ouço no fundo do meu coração uma voz que tão fortemente

grita contra o pensamento de tal desejo, que não posso duvidar, um instante, da realidade da

consciência.” Trata-se aqui do resumo pitoresco de um problema moral que vem preocupando

os moralistas desde muito antes de Chateaubriand, desde a Antigüidade, e que, depois da

fórmula pitoresca que lhe deu Balzac, exerceu influência extraordinária sobre vários escritores

da literatura mundial, em particular Dostoiévski, Eça de Queiroz, Arnold Bennet etc.

Classificação: (IIa) e (IIb); (7) e (8)

Número da nota: 86

Página: 125

Texto de referência: “– Ora, estás formulando a questão que preocupa a toda gente no

começo da vida e queres cortar o nó górdio86 com a espada.”

Texto da nota: Nó górdio: segundo a tradição, havia na antiga Frígia, guardado como relíquia, o

carro do rei Górdio; nele, o nó que atava a lança e a canga era feito tão habilmente que não se lhe

podiam descobrir as extremidades. Um oráculo prometia o império da Ásia a quem o desatasse.

Depois de inúmeras tentativas infrutíferas, o jovem Alexandre cortou o nó com a espada,

contornando o caso em vez de resolvê-lo: o que não o impediu de se tornar dono da Ásia.

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155

Classificação: (IIb); (7)

Número da nota: 87

Página: 125

Texto de referência: “– Olhe aqui – replicou o estudante de Medicina –, ao sair da aula de

Cuvier87,...”

Texto da nota: Georges de Cuvier (1769-1832): fundador da Anatomia Comparada e da

Paleontologia, citado no Prefácio de A Comédia Humana; o próprio Balzac assistiu a suas

aulas e procurou aplicar-lhe as teorias à sociedade humana.

Classificação: (IIa) e (IIb); (1) e (8)

Número da nota: 83

Página: 152

Texto de referência: “– Então me conte – continuou o estudante de

Medicina saindo do curso de Cuvier83...”

Texto da nota: Barão Cuvier (1769-1832), naturalista francês,

conselheiro de Estado, professor de História Natural no prestigioso

Collège de France. (N.T.)

Classificação: (IIb); (1)

Número da nota: 88

Página: 126

Texto de referência: “Sábado teremos Fodor88...”

Texto da nota: Giuseppina Mainville-Fodor (1793-1830): famosa cantora italiana.

Classificação: (IIb); (1)

Número da nota: 89

Página: 126

Texto de referência: “...e Pellegrini89.”

Texto da nota: Felice Pellegrini (1774-1832): cantor italiano, no fim de sua vida foi

professor do Conservatório de Paris.

Classificação: (IIb); (1)

Número da nota: 90

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156

Página: 130

Texto de referência: “– Ao Palais-Royal90 – disse ela ao cocheiro. – Ao lado do Teatro

Francês.”

Texto da nota: O Palais-Royal foi, durante a Revolução Francesa, o Império e o início da

Restauração, o lugar preferido da prostituição, dos basfonds e do jogo em Paris. Há uma

alucinante descrição de uma das salas de jogo que ali existiam, no começo de A Pele de

Onagro.

Classificação: (IIa) e (IIb); (4) e (6)

Número da nota: 91

Página: 135

Texto de referência: “Vou procurar Derville91, um advogado, amanhã mesmo.”

Texto da nota: Derville: personagem de A Comédia Humana, cuja estréia é contada em

Gobseck.

Classificação: (IIa); (6)

Número da nota: 84

Página: 165

Texto de referência: “Ah! Amanhã vou logo procurar Derville84, um

advogado.”

Texto da nota: Sr. Derville, personagem de A comédia humana,

(Gobseck, Coronel Chabert, Um caso tenebroso, César Birotteau,

Esplendores e misérias das cortesãs, Uma estréia na vida, A casa

Nucingen). (N.T.)

Classificação: (IIa); (6)

Número da nota: 92

Página: 137

Texto de referência: “Acredite num velho cheio de experiência – acrescentou, fazendo um

rinforzando92 em sua voz de baixo.”

Texto da nota: Rinforzando: termo italiano usado na música, e que significa “reforçando”.

Classificação: (I); (3)

Número da nota: 93

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157

Página: 137

Texto de referência: “Voltava para casa às três ou quatro da madrugada, levantava-se ao

meio-dia para vestir-se, ia passear no Bosque93...”

Texto da nota: Bosque de Bolonha (Bois de Boulogne): passeio preferido dos parisienses, na

periferia da capital.

Classificação: (IIb); (4)

Número da nota: 94

Página: 138

Texto de referência: “Como a maioria dos que conheceram essa vida aventurosa, esperava

sempre o último momento para saldar débitos sagrados aos olhos dos burgueses, tal como

Mirabeau94, que só pagava a conta do padeiro quando ela se apresentava sob a forma brutal de

uma letra de câmbio.”

Texto da nota: Honoré Gabriel Mirabeau (1749-1791): antes de se tornar o grande orador da

Revolução Francesa, teve uma mocidade tempestuosa e várias vezes foi preso por dívidas a

pedido do próprio pai.

Classificação: (IIb); (1)

Número da nota: 85

Página: 169

Texto de referência: “Como a maioria daqueles que conheceram essa

vida por acaso, esperava o último momento para saldar suas dívidas,

sagradas aos olhos dos burgueses, como fazia Mirabeau85, que apenas

pagava seu pão quando se apresentava sob a forma ameaçadora de

uma letra de câmbio.”

Texto da nota: Marquês Honoré-Gabriel Riqueti de Mirabeau (1749-

1791), deputado, escritor e grande orador da Revolução Francesa. Foi

preso por dívidas, a pedido de seu pai. (N.T.)

Classificação: (IIb); (1)

Número da nota: 95

Página: 139

Texto de referência: “Tal era a vida, aparentemente esplêndida, mas roída por todos os

vermes do remorso e cujos prazeres fugazes eram espiados por demoradas angústias, que ele

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158

adotara, e na qual rolava, como o Distraído95 de la Bruyère, fazendo do lodo da fossa seu leito

e, como o Distraído, também enlameava apenas as vestes.”

Texto da nota: No famoso retrato de Menalcas, o Distraído, incluído no capítulo X dos

Caracteres de la Bruyère, não há trecho parecido com este. Balzac, que cita de memória,

parece ter se enganado.

Classificação: (IIa) e (IIb); (5) e (8)

Número da nota: 86

Página: 169

Texto de referência: “Havia desposado essa vida exteriormente

esplêndida corroída por todas as tênias do remorso e cujos prazeres

fugitivos eram duramente expiados por angústias persistentes, como o

Distraído de La Bruyère86, desposara uma cama no lodo da fossa; mas,

como o Distraído, não sujava senão suas roupas.”

Texto da nota: La Bruyère (1645-1696), moralista francês.

Ménalque, o distraído, é personagem de Caracteres ou les moeurs de

ce siècle (Os caracteres ou os costumes desse século). (N.T.)

Classificação: (IIb); (1) e (5)

Número da nota: 96

Página: 141

Texto de referência: “Por respeito próprio, Eugênio não queria que se primeiro embate

amoroso terminasse por um fracasso e persistia em sua perseguição, como um caçador que faz

questão de matar uma perdiz em sua primeira festa de Santo-Huberto96.”

Texto da nota: Santo-Huberto: este santo, bispo de Maestricht e de Liège, no século VII, é o

padroeiro dos caçadores; sua festa se celebra no dia 3 de novembro.

Classificação: (IIb); (1)

Número da nota: 97

Página: 143

Texto de referência: “Pois bem, um homem tão probo quanto você pensa ser ainda, o sr. de

Turenne97, fazia, sem se considerar comprometido, pequenos negócios com salteadores.”

Texto da nota: Visconde Henri de la Tour d’Auvergne (1611-1675): marechal da França, que

comandou o Exército francês durante a guerra da Devolução e a da Holanda, e conquistou a

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Alsácia em 1675; a tradição o representa como homem de uma simplicidade e modéstia

notáveis, e que não ligava importância ao dinheiro. Talvez Vautrin haja encontrado esta

informação em algum libelo dos protestantes que passaram a atacar Turenne depois de sua

conversão ao catolicismo.

Classificação: (IIa) e (IIb); (1) e (6)

Número da nota: 87

Página: 174

Texto de referência: “Pois bem, um homem que tinha tanta

probidade quanto o senhor acredita ter ainda, o sr. de la Turenne87,

sem acreditar-se comprometido, pequenos negócios com bandidos.”

Texto da nota: Visconde de la Turenne ou Henri de la Tour-

d’Auvergne (1611-1675), marechal e general francês. (N.T.)

Classificação: (IIb); (1)

Número da nota: 98

Página: 143

Texto de referência: “Não sou um pião nem um bispo, e sim uma torre98, meu caro.”

Texto da nota: Alusão a três pedras do jogo de xadrez. O peão, pedra de valor menor, só

avança um quadrado ou, excepcionalmente, dois. O bispo avança e recua sempre de viés. A

torre, que pode dar avanços e recuos tão grandes como o bispo, vai sempre me linha reta.

Classificação: (IIb); (7)

Número da nota: 99

Página: 144

Texto de referência: “Para mim, que tenho sondado muito a vida, só existe um sentimento

real, que é a amizade de homem para homem. Pierre e Jaffier, eis a minha paixão. Sei Veneza

Salva99 de cor.”

Texto da nota: Veneza Salva: famosa tragédia inglesa (Venice Preserved), de autoria de

Thomas Otaway, na qual a amizade de dois dos protagonistas, Pierre e Jaffier, desempenha

papel importante.

Classificação: (IIb); (5)

Número da nota: 88

Página: 176

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Texto de referência: “Para mim, que muito ralei na vida, existe

apenas um sentimento real, uma amizade de homem a homem. Pierre

e Jaffier88, eis uma paixão. Sei de cor A salvação de Veneza.”

Texto da nota: Pierre e Jaffier são personagens de A salvação de

Veneza (1682), tragédia de Thomas d’Otway (1652-1685). (N.T.)

Classificação: (IIb); (5)

Número da nota: 100

Página: 145

Texto de referência: “A quem não parecerá inverossímil que o sr. Poiret, antigo funcionário,

homem de virtudes burguesas, sem dúvida, embora destituído de idéias, continuasse a escutar

o pretenso capitalista da rua Buffon, no momento em que ele pronunciou a palavra ‘polícia’,

revelando, assim, a fisionomia de um agente da rua de Jerusalém100 através da máscara de

homem de bem?”

Texto da nota: Rua de Jerusalém: pequena rua, hoje desaparecida, entre o cais dos Ourives e

a rua de Nazaré, por onde se tinha acesso à polícia.

Classificação: (IIb); (4)

Número da nota: 90

Página: 178

Texto de referência: “A quem não pareceria inverossímil que Poiret,

antigo funcionário, sem dúvida com virtudes burguesas, embora

desprovido de idéias, continuasse a ouvir o pretenso homem de rendas

da Rue de Buffon, no momento em que pronunciava a palavra

‘polícia’, deixando assim antever a fisionomia de um agente da Rue de

Jerusalém90 através sua máscara de homem honesto?”

Texto da nota: A Rue de Jerusalém desembocava no Quais des

Orfèvres, na altura de onde se encontrava o Palácio da Polícia. (N.T.)

Classificação: (IIb); (4)

Número da nota: 101

Página: 146

Texto de referência: “Um dos traços característicos que melhor denuncia a estreiteza

mórbida dessa gente subalterna é uma espécie de respeito involuntário, maquinal, instintivo

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por esse grão-lama de todos os ministérios, conhecido dos empregados por uma assinatura

ilegível e sob o nome de Sua Excelência o sr. Ministro, cinco palavras que equivalem a Il

bondo cani do Califa de Bagdad101 e que, aos olhos dessa gente achatada, representa um

poder sagrado, inapelável.”

Texto da nota: Califa de Bagdad: ópera cômica em um ato, com música de Boildieu e letra

de Saint-Juste-Dancourt (1800), na qual as palavras Il bondo cani, sem sentido aparente,

parecem ter um valor talismânico.

Classificação: (IIb); (5)

Número da nota: 91

Página: 178

Texto de referência: “Um dos traços característicos que melhor trai a

estreiteza doente dessa gente subalterna é uma espécie de respeito

involuntário, maquinal, instintivo, por aquele grande Dalai Lama de

qualquer ministério, reconhecido por seu empregado por meio de uma

assinatura ilegível e sob o nome de SUA EXCELÊNCIA, O SENHOR

MINISTRO, cinco palavras que equivalem a Il Bondo Cani do Calife de

Bagdad91 e que, aos olhos desse povo achatado, representa um poder

secreto irremediável.”

Texto da nota: Calife de Bagdad é uma ópera de Boieldieu, livreto de

Godard d’Aucourt de Saint-Juste, de 1800. Il Bondo Cani é a alcunha

usada pelo califa Isauun ao percorrer fantasiado, à noite, as ruas de

Bagdá. (N.T.)

Classificação: (IIb); (5)

Número da nota: 102

Página: 146

Texto de referência: “Assim, o sr. Goudureau, que parecia conhecedor dos homens,

distinguiu imediatamente em Poiret um desses tolos burocráticos e fez sair o deus ex

machina102, a expressão talismânica de Sua Excelência,...”

Texto da nota: Deus ex machina: “um deus (descido por intermédio) de uma máquina”;

expressão latina que significa o aparecimento inesperado, numa cena de teatro, de um ser

sobrenatural descido por meio de um maquinismo; no sentido figurado, designa o desfecho

inesperado e feliz e uma situação trágica.

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162

Classificação: (IIb); (3)

Número da nota: 103

Página: 149

Texto de referência: “Precisamos proceder como na questão de Cogniard, o falso conde de

Santa-Helena103.”

Texto da nota: Cogniard: Pierre Cogniard, famoso aventureiro condenado a catorze anos de

galés em 1802, evadido em 1805. Com o auxílio de documentos falsos, alistou-se no Exército

de Napoleão, chegando a chefe de batalhão. Várias vezes condecorado, foi nomeado durante a

segunda Restauração coronel de gendarmaria. Ao mesmo tempo, continuava mantendo

ligações com seus antigos companheiros e chefiando um bando de ladrões. Reconhecido por

um ex-galeriano numa parada militar, foi condenado a trabalhos forçados por toda a vida.

Casos como este inspiraram Os Miseráveis, de Victor Hugo.

Classificação: (IIb); (1)

Número da nota: 92

Página: 182

Texto de referência: “Trata-se de proceder como no caso de

Cogniard92, o falso conde de Sainte-Hélène;...”

Texto da nota: Pierre Coignard (e não Cogniard) é um forçado

evadido que se tornou tenente sob a identidade usurpada do conde de

Sainte-Hélène. Foi reconhecido por um ex-companheiro de prisão e

preso por Vidocq. (N.T.)

Classificação: (IIb); (1)

Número da nota: 104

Página: 149

Texto de referência: “Se ele fosse um verdadeiro Conde de Santa Helena, ficaríamos mal

colocados. Por isso, é preciso verificar!104”

Texto da nota: Nas edições anteriores à definitiva, lia-se depois desta palavra: “Fizemos

verificar Cogniard por uma mulher”, frase que faz compreender melhor a réplica de

Michonneau.

Classificação: (IIa); (7) e (8)

Número da nota: 105

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163

Página: 150

Texto de referência: “Biachon, que voltava da aula do sr. Cuvier105,...”

Texto da nota: O Museu onde Cuvier dava suas aulas fica no Jardim das Plantas.

Classificação: (IIb); (1)

Número da nota: 106

Página: 151

Texto de referência: “Ao chegarem à Casa Vauquer, ele se havia metido numa infinidade de

passagens e citações transitórias, que o haviam conduzido a narrar seu depoimento no caso do

sr. Ragoulleau e da sra. Morin106, do qual participara como testemunha de defesa.”

Texto da nota: Trata-se de um caso realmente acontecido em 1812 – uma tentativa de

extorsão e assassínio por parte de certa viúva Morin contra certo sr. Ragoulleau –,

amplamente comentado nos jornais da época. Balzac, para intensificar a credibilidade da

história, liga suas personagens a acontecimentos reais de época.

Classificação: (IIa) e (IIb); (1) e (8)

Número da nota: 93

Página: 185

Texto de referência: “Ao chegar à Casa Vauquer, insinuara-se em

uma série de passagens e de citações transitórias que o levaram a

contar sua deposição do julgamento do sr. Ragoulleau e da dama

Morin93, ao qual havia comparecido na qualidade de testemunha de

defesa.”

Texto da nota: A viúva Morin foi condenada a vinte anos de

trabalhos forçados em 1812 por tentativa de extorsão de assinatura e

tentativa de assassinato de Ragoulleau. (N.T.)

Classificação: (IIb); (1)

Número da nota: 107

Página: 151

Texto de referência: “– É culpada de amar o sr. Eugênio de Rastignac, e segue adiante sem

saber onde isso a levará, a pobre inocente! Todas as louras são assim. A menor aparência as

lança de joelhos aos pés de um homem107.”

Texto da nota: Em Lettres de Femmes Adressées à M. Honoré de Balzac, ed. de Marcel

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Bouteron, Cahiers Balzaciens, III (citado apud H. de Balzac, Le Père Goriot, introdução e

notas de M. Allem. Garnier, Paris, s.d.), lê-se curiosa carta de uma leitora loura de Balzac,

que protesta indignada contra essa afirmação.

Classificação: (IIa); (8)

Número da nota: 108

Página: 152

Texto de referência: “E que mulher não teria pensado o mesmo, vendo Rastignac e

escutando-o durante aquela hora furtada a todos os Argos108 da casa?”

Texto da nota: Argos: personagem mitológica de cem olhos; no sentido figurado, pessoa

perspicaz.

Classificação: (I) e (IIb); (5)

Número da nota: 109

Página: 152

Texto de referência: “Minha Fanchette é formosa

Em sua simplicidade...”109

Texto da nota: Arieta da comédia Os Dois Ciumentos, de Charles Vial, música da sra. Gail,

representada pela primeira vez em 1813. Em francês:

Ma Fanchette est charmante

Dans sa simplicité...

Classificação: (IIb); (5)

Número da nota: 110

Página: 156

Texto de referência: “Oh! Ricardo. Oh! meu rei.

O mundo te abandona...”110

Texto da nota: Arieta da comédia Ricardo Coração de Leão, de Sedaine. Em francês:

Ô Richard, ô mon roi!

L’univers t’abandonne...

Classificação: (IIb); (5)

Número da nota: 111

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165

Página: 157

Texto de referência: “– Caramba! Você devia servir de modelo para um Hércules Farsante111

– disse o jovem pintor a Vautrin.”

Texto da nota: Hércules Farsante: trocadilho como o nome de Hércules Farnese, famosa

estátua antiga.

Classificação: (IIb); (7)

Número da nota: 112

Página: 157

Texto de referência: “– Poiret servirá de modelo para Poiret. Será o deus dos jardins. Poiret

vem de poire112...”

Texto da nota: Poire: “pêra” e, na gíria, “trouxa”, “tolo”.

Classificação: (I); (7)

Número da nota: 113

Página: 157

Texto de referência: “– Mole – lançou Bianchon. – Então você ficaria entre a pêra e o

queijo113.”

Texto da nota: Expressão que significa “no fim da refeição, quando a alegria está no auge”.

Classificação: (I); (7)

Número da nota: 114

Página: 157

Texto de referência: “Proponho-lhes uma pequena garrafarama de vinho de Bordéus, que o

nome de Laffitte114 torna duplamente ilustre, seja dito sem alusão política.”

Texto da nota: Nome de um famoso vinho de Bordéus (Château-Lafite) e de um famoso

homem de Estado, Jacques Laffitte (1767-1844), governador do Banco da França de 1814 a

1819.

Classificação: (IIb); (1)

Número da nota: 94

Página: 192

Texto de referência: “Proponho-lhes uma pequena garraforama de

vinho de Bordeaux, que o nome de Laffitte94 torna duplamente ilustre,

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sem alusões políticas, diga-se de passagem.”

Texto da nota: O banqueiro liberal Jacques Laffitte (1764-1844) terá

seu momento de glória mais tarde. O célebre domínio vinícola, na

realidade, não tem relação alguma com o banqueiro. (N.T.)

Classificação: (IIb); (1)

Número da nota: 115

Página: 159

Texto de referência: “– Adeus, mamãe – disse Vautrin. – Vou ao teatro ver o sr. Marey no

Monte Selvagem, uma grande peça tirada de O Solitário115...”

Texto da nota: O Solitário: famoso romance pseudo-histórico do Visconde d’Arlincourt, de

onde Guilbert de Pixérécourt tirou seu melodrama, O Monte Selvagem.

Classificação: (IIb); (5)

Números da notas: 96 e 97

Página: 195

Texto de referência: “– Adeus, mamãe – disse Vautrin. – Vou ao

bulevar admirar o sr. Marty96 em Le mont sauvage, uma grande peça

inspirada em O solitário97.”

Textos da notas: 96. Jean-Baptiste Marty (1779-1863), ator e diretor

do Théâtre de la Gaité. (N.T.)

97. O solitário, melodrama inspirado no romance do visconde

d’Arlincourt, produzido somente em 1821. O sucesso da peça foi

grande, embora muitos críticos a tenham considerado de mau gosto.

(N.T.)

Classificação: 96. (IIb); (1)

97. (IIb); (5)

Número da nota: 116

Página: 160

Texto de referência: “– Como, vizinha? – exclamou a sra. Vauquer. – Então não quer assistir

a uma peça tirada de O Solitário, uma obra escrita por Atala de Chateaubriand e que tanto

gostamos de ler116, que é tão bela que nos fez chorar como Madalena d’Elodia sob as tíias no

verão passado, enfim, uma obra moral capaz de instruir sua menina?”

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167

Texto da nota: A sra. Vauquer pensa que Atala é o prenome de Chateaubriand e não o título

de uma obra sua; ignora que O Solitário – cuja heroína se chama Elodia – é do Visconde

d’Arlincourt.

Classificação: (IIa) e (IIb); (7)

Número da nota: 117

Página: 160

Texto de referência: “Amores, adormecei,

Que por vós eu velarei!”117

Texto da nota: Estribilho de uma romança popular de d’Amédée de Beauplan. Em francês:

Dormez, mes chers amours!

Pour vous je veillerai toujours.

Classificação: (IIb); (5)

Número da nota: 118

Página: 160

Texto de referência: “Sol, oh! Sol, divino Sol

Que as abóboras amadureces...”118

Texto da nota: Estribilho cantado nos ateliers de pintores, na época. Em francês:

Soleil, soleil, divin soleil,

Toi qui fais mûrir les citrouilles...

Classificação: (IIb); (5)

Número da nota: 119

Página: 164

Texto de referência: “Esse patife nunca deixará o quengo na praça de Grève119.”

Texto da nota: Praça de Grève: lugar das execuções.

Classificação: (IIb); (4)

Número da nota: 120

Página: 169

Texto de referência: “– Que tal? – gritou-lhe Bianchon. – Leste o Piloto120?”

Texto da nota: Le Pilote: jornal realmente existente, em que colaboravam vários amigos de

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168

Balzac.

Classificação: (IIa) e (IIb); (1) e (8)

Número da nota: 121

Página: 174

Texto de referência: “– Agora sei quem me traiu. Só pode ter sido aquele velhaco do Fio-de-

Seda!121”

Texto da nota: Personagem da Comédia Humana: galeriano da turma de Engana-a-Morte;

aparece também em Esplendores e Misérias das Cortesãs.

Classificação: (IIa); (6)

Número da nota: 122

Página: 174

Texto de referência: “– Mil escudos! Eu valia mais do que isso, Ninon cariada!

Pompadour122 de trapos!”

Texto da nota: Duas famosas cortesãs, Ninon de Lenclos (1620-1705) e a Marquesa de

Pompadour (1721-1764), favorita de Luís XV.

Classificação: (IIb); (1)

Número da nota: 99

Página: 214

Texto de referência: “– Alguns milhares de escudos? Eu valia mais

do que isso, Ninon cariada, Pompadour esfarrapada99,...”

Texto da nota: Ninon Lenclos (1620-1705) e marquesa de

Pompadour (1721-1764) foram duas célebres cortesãs francesas.

(N.T.)

Classificação: (IIb); (1)

Número da nota: 123

Página: 174

Texto de referência: “Um condenado da têmpera de Collin, aqui presente, é um homem

menos covarde que os outros e que protesta contra as profundas decepções do contrato social,

como disse Jean-Jacques123, de quem me orgulho de ser discípulo.”

Texto da nota: Jean-Jacques: alusão a Rousseau e a sua obra, Do Contrato Social.

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169

Classificação: (IIb); (7)

Número da nota: 124

Página: 175

Texto de referência: “E permitam-me que lhes mande figos de Provença124.”

Texto da nota: Alusão ao famoso bagne (prisão) de Toulon, na Provença.

Classificação: (IIb); (7)

Número da nota: 125

Página: 176

Texto de referência: “– Meus senhores, tomemos os chapéus e vamos jantar na praça

Sorbonne, no Flicoteuax125 – disse Bianchon.”

Texto da nota: Flicoteuax: restaurante que existia realmente na praça Sorbonne e que Balzac

descreve em Ilusões Perdidas.

Classificação: (IIa) e (IIb); (4) e (6)

Número da nota: 126

Página: 178

Texto de referência: “Partindo para a Síria,

O belo e jovem Dunois...”126

Texto da nota: Primeiras palavras de uma romança cuja música, composta pela rainha

Hortênsia, se tornou um canto dos bonapartistas. Em francês:

Partant pour la Syrie

Le jeune et beau Dunois...

Classificação: (IIb); (5)

Número da nota: 127

Página: 178

Texto de referência: “– Pode ir, você está doido por isso. Trahit sua quemque que

voluptas!127 – disse Bianchon.”

Texto da nota: “Cada é um arrastado pela sua volúpia” Verso 65 da II Bucólica de Virgílio.

Classificação: (IIb); (5)

Número da nota: 128

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170

Página: 182

Texto de referência: “O pai Goriot conservava um sorriso fixo de teriaki128, enquanto

assistia àquela encantadora discussão.”

Texto da nota: Teriaki: comedor e fumador de ópio, no Oriente.

Classificação: (IIb); (7)

Número da nota: 100

Página: 225

Texto de referência: “O pai Goriot tinha o sorriso fixo de um

teriaki100 ao ver e ouvir essa bela querela.”

Texto da nota: Nome dado no Oriente aos comedores e fumadores de

ópio. (N.T.)

Classificação: (IIb); (7)

Número da nota: 129

Página: 184

Texto de referência: “– Sim, a pequena o amava. E, tendo morrido o irmão, ficou rica como

Creso129.”

Texto da nota: Creso: último rei da Lídia (séc. VI a.C.) famoso pelas suas riquezas.

Classificação: (IIb); (1)

Número da nota: 101

Página: 228

Texto de referência: “– Sim, ela gostava do senhor, a pequena; e,

com a morte de seu irmão, ela ficou rica como Creso101.”

Texto da nota: Creso, lendário rei da Lídia no século VI a.C., que

acumulou uma imensa fortuna com incêndios e guerras. (N.T.)

Classificação: (IIb); (1)

Número da nota: 130

Página: 185

Texto de referência: “A velha dona da pensão estava lá como Mário130 sobre as ruínas de

Cartago.”

Texto da nota: Caio Mário (156-86 a.C.): general romano, chefe do partido popular.

Condenado à morte por seu rival vitorioso Sila, conseguiu evadir-se, chegando ao lugar onde

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outrora se erguia Cartago. Convidado pouco depois, pelo pretor da província, a abandoná-la,

disse ao mensageiro que o magistrado lhe mandara: “Dize ao pretor que viste Mário fugitivo

sentado sobre as ruínas de Cartago.”

Classificação: (IIb); (1)

Número da nota: 102

Página: 229

Texto de referência: “A velha anfitriã estava ali como Marius sobre

as ruínas de Cartago102.”

Texto da nota: Marius (157-86 a.C.), general e cônsul romano.

Depois de ser proscrito por Sila, ganha a África e desembarca em

Cártago. Quando tentam expulsá-lo, pronuncia a célebre frase ao

mensageiro do pretor: “Diz ao pretor que viste Marius fugitivo

sentado nas ruínas de Cartago”. (N.T.)

Classificação: (IIb); (1)

Número da nota: 131

Página: 185

Texto de referência: “Embora lord Byron tenha atribuído belíssimas lamentações a Tasso131,

estas estão longe da profunda sinceridade das que escapavam à sra. Vauquer.”

Texto da nota: No canto IV das Peregrinações de Childe Harold, em que representa o infeliz

poeta italiano na prisão.

Classificação: (IIb); (5)

Número da nota: 103

Página: 230

Texto de referência: “Embora Lord Byron tenha emprestado

lamentações bastante belas ao Tasso103, elas estão bem longe da

verdade profunda daquelas que escapavam da sra. Vauquer.”

Texto da nota: Referência ao poema “Lamentações do Tasso”, do

poeta inglês Lord Byron (1788-1824). (N.T.)

Classificação: (IIb); (5)

Número da nota: 132

Página: 186

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Texto de referência: “Repara, vimos Luís XVI sofrer seu acidente132,...”

Texto da nota: Assim é que a sra. Vauquer chama, com belo eufemismo, a execução do rei

no dia 21 de janeiro de 1793.

Classificação: (IIa); (6)

Número da nota: 133

Página: 186

Texto de referência: “...vimos cair o imperador, vimo-lo voltar e tornar a cair133, tudo isso

estava na ordem das coisas possíveis.”

Texto da nota: Napoleão abdicou em 20 de abril de 1814, retirando-se à ilha de Elba. De lá

voltou no ano seguinte, entrando em Paris em 20 de março. Este segundo reinado, porém,

durou apenas cem dias.

Classificação: (IIb); (1)

Número da nota: 134

Página: 188

Texto de referência: “Se todas as mulheres da corte de Luís XVI∗ invejaram à srta. de La

Vallière o impulso de paixão que fez esse grande príncipe esquecer que seus punhos custavam

mil escudos cada um, quando os rasgou para felicitar ao Duque de Vermandois134 sua entrada

no palco do mundo, que se pode exigir do resto da humanidade?”

Texto da nota: Luís de Bourbon (1667-1683): filho bastardo de Luís XIV e sua amante, a

srta. La Vallière.

Classificação: (IIb); (1)

Número da nota: 104

Página: 234

Texto de referência: “Se todas as mulheres da corte de Louis XIV

invejaram a srta. de La Vallière pela paixão que fez com que aquele

grande príncipe esquecesse que seus punhos custavam um mil escudos

quando ele os rasgou para facilitar a chegada do duque de Vermandois

ao palco da sociedade104, o que se pode esperar do resto da

humanidade?”

∗ Louis XIV no original francês da Le Livre de Poche, p. 289. Deslize da edição da Globo.

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173

Texto da nota: Referência ao parto do conde (e não duque, como

afirma Balzac) de Vermandois, no qual o rei esteve presente dando

seu apoio à sra. de la Vallière. (N.T.)

Classificação: (I) e (IIb); (1)

Número da nota: 135

Página: 189

Texto de referência: “Hesitara continuamente em transpor o Rubicon135 parisiense.”

Texto da nota: Rubicon: pequeno rio que separa a Itália da Gália Cisalpina e que César,

apesar da proibição, atravessou com seu exército, voltando à Itália para se apoderar do

governo. Desde então emprega-se a expressão “atravessar o Rubicon” no sentido de “tomar

uma decisão perigosa”.

Classificação: (I) e (IIb); (7)

Número da nota: 136

Página: 197

Texto de referência: “– Para salvar a vida de Máximo, isto é, para salvar toda a minha

felicidade – acrescentou a condessa, encorajada por esses testemunhos de uma ternura

calorosa e palpitante –, levei à casa daquele agiota que vocês conhecem, um homem fabricado

pelo inferno, a quem nada pode comover, aquele sr. Gobseck, os diamantes de família de que

Restaud tanto gostava, os seus, os meus, tudo, eu os vendi. Vendi! Compreendem? Ele está

salvo, mas estou morta. O sr. de Restaud soube de tudo136.”

Texto da nota: Esse episódio é contado em Gobseck.

Classificação: (IIa); (6)

Número da nota: 105

Página: 245

Texto de referência: “– Para salvar a vida de Maxime, enfim, para

salvar toda minha felicidade – prosseguiu a condessa encorajada por

esses testemunhos de um carinho terno e palpitante –, levei a esse

usurário que vocês conhecem, o sr. Gobseck, um homem fabricado

pelo inferno que não se amolece com nada, os diamantes de família

tão cara ao sr. de Restaud105, os seus, os meus, eu vendi tudo.

Vendidos! Vocês entendem? Ele foi salvo! Mas eu estou morta.

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174

Restaud descobriu tudo.”

Texto da nota: Conde de Restaud: personagem que aparece em

Gobseck. (N.E.)

Classificação: (IIa); (6)

Número da nota: 137

Página: 200

Texto de referência: “– Ah! Vós me acalmais o coração! – exclamou o pai Goriot. – Mas

onde encontraremos doze mil francos? Se eu me oferecesse como substituto?137”

Texto da nota: A lei permitia aos rapazes sorteados para o serviço militar que se fizessem

substituir. Os substitutos, naturalmente, vendiam caro a sua pessoa. Mas é evidente que

ninguém se poderia fazer substituir pelo pai Goriot; a idéia demonstra a que ponto chegou o

desespero deste.

Classificação: (IIa) e (IIb); (7)

Número da nota: 138

Página: 209

Texto de referência: “É como você disse ao ouvir a oração de Moisés: Para uns, é uma nota

só; para outros, é o infinito da música!138”

Texto da nota: Trata-se de um trecho de Mosé in Egitto, ópera de Rossini.

Classificação: (IIb); (5)

Número da nota: 107

Página: 262

Texto de referência: “Como o senhor disse ao ouvir a prece de

Moisés107: ‘Para uns é uma mesma nota, para outros é o infinito da

música!’”∗

Texto da nota: Trata-se de Mose in Egitto, de Rossini. Essa ópera de

1818 foi encenada em Paris pelo grupo do Théâtre Italien no Louvois

em 20 de outubro de 1822. (N.T.)

Classificação: (IIb); (5)

Número da nota: 139

∗ Grifo do original.

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175

Página: 212

Texto de referência: “Desde o momento em que toda a corte se precipitou para a casa da

grande Senhorita139, a quem Luís XIV arrancou o amante, não ocorrera ainda um desastre

sentimental tão ruidoso como o da sra. de Beauséant.”

Texto da nota: Da grande Senhorita: srta. de Montpensier, sobrinha de Luís XIII.

Apaixonou-se pelo Conde de Lauzun. O rei Luís XIV, que primeiro consentiu no casamento,

acabou proibindo-o, mandou prender Lauzun e o fez aprisionar durante dez anos. Liberado

após tão longo cativeiro, Lauzun casou-se, finalmente, com a srta. de Montpensier.

Classificação: (IIb); (1)

Número da nota: 108

Página: 265

Texto de referência: “Desde que toda corte se precipitou à casa da

Grande Mademoiselle cujo amante Louis XIV arrancara-lhe108, nenhum

desastre amoroso foi mais explosivo que o da sra. de Beauséant.”

Texto da nota: Louis XIV, em 1670, após ter consentido no

casamento da “Grande Mademoiselle”, sua prima, com o duque de

Lauzu, voltou atrás três dias depois. (N.T.)

Classificação: (IIb); (1)

Número da nota: 140

Página: 212

Texto de referência: “Ninguém podia ler em sua alma. Era uma Níobe140 de mármore.”

Texto da nota: Níobe: personagem da mitologia grega. Orgulhosa com seus quatorze filhos,

ousou troçar de Latona, que só tinha dois, Apolo e Diana. Estes, por vingança, mataram com

suas setas todos os filhos de Níobe, a qual, em sua dor, se metamorfoseou em rochedo.

Classificação: (IIb); (5)

Número da nota: 141

Página: 214

Texto de referência: “Voltando para o baile, Eugênio deu uma volta pelos salões com a sra.

de Beauséant, derradeira e delicada atenção daquela amável mulher141.”

Texto da nota: Depois desta frase há o seguinte trecho, que consta de todas as edições até

1843:

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“Entrando na galeria onde dançavam, Rastignac surpreendeu-se ao deparar com um

desses pares que a reunião de todas as belezas humanas torna sublimes à vista. Nunca tivera

ocasião de admirar perfeições iguais. Para tudo exprimir numa palavra, o homem era um

Antínoo vivo e suas maneiras não destruíam o encanto que sentia ao contemplá-lo. A mulher,

uma fada; fascinava o olhar, sacudia os sentidos mais frios. Num e noutro, o vestuário

harmonizava-se com a beleza. Todos os contemplavam com prazer e invejavam a ventura que

resplandecia na harmonia de seus olhos e de seus gestos.

– Meu Deus! Quem é essa mulher? – perguntou Rastignac.

– Oh! É incontestavelmente a mais bela – respondeu a viscondessa. – É lady Brandon,

tão famosa pela felicidade como pela beleza. Sacrificou tudo por aquele rapaz. Dizem que têm

filhos. A desgraça, porém, paira sobre eles. Dizem que lord Brandon jurou tirar uma pavorosa

vingança da mulher e do amante. São felizes, mas vivem num constante temor.

– E ele?

– Como? Não conhece o belo coronel Franchessini?

– Aquele que se bateu em duelo...

– Há três dias. Esse mesmo. Foi provocado pelo filho de um banqueiro: queria feri-lo,

apenas, mas por desgraça o matou.

– Oh!

– Que tem? Está tremendo – disse a viscondessa.

– Nada – respondeu Rastignac.

Um suor frio escorria-lhe pelas costas. Vautrin aparecia-lhe com sua fisionomia de

bronze. O herói das prisões dando a mão ao herói do baile mudava, para ele, o aspecto da

sociedade.”

Na edição de 1834, Balzac suprimiu esse trecho, provavelmente para não distrair a

atenção da ação central quando esta chega precisamente ao auge. Sem dúvida, quis inseri-lo

em outro lugar da Comédia Humana, pois é indispensável à compreensão de uma das novelas

da mesma, O Romeiral, de que forma o prelúdio; mas a morte, que o impediu de acabar sua

grandiosa obra, não lhe deixou tempo para fazê-lo.

Classificação: (IIa); (8)

Número da nota: 109

Página: 269

Texto de referência: “Ao voltar ao baile, Eugène deu uma volta com a

sra. de Beauséant, última e delicada atenção daquela mulher graciosa.

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177

Logo viu as duas irmãs, a sra. de Restaud e a sra. de Nucingen. (...)

Esse espetáculo não era de tornar os pensamentos de Rastignac menos

tristes. Se havia visto Vautrin no coronel italiano109, reviu então, sob

os diamantes das duas irmãs, o catre sobre o qual jazia o pai Goriot.”

Texto da nota: Em edições anteriores, Balzac incluíra uma cena em

que Eugene de Rastignac encontra, no baile da sra. de Beauséant, o

coronel Franchessini. Ao suprimir essa passagem na edição definitiva

de suas obras completas, o autor esqueceu de retirar também essa

menção ao personagem assassino de Taillefer. (N.T.)

Classificação: (IIa); (8)

Número da nota: 142

Página: 217

Texto de referência: “Fizemos esta manhã, enquanto dormias, uma grande conferência com

um discípulo do sr. Gall, um chefe de serviço no Hôtel-Dieu142 e o nosso.”

Texto da nota: Hôtel-Dieu: grande hospital de Paris.

Classificação: (IIb); (4)