As Palavras e a Criança Na Literatura Infantil (Marcelo, Marmelo, Martelo)

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A S P A L A V R A S E A C R I A N Ç A N A L I T E R A T U R A I N F A N T I L Érica Nogueira de Santana * Universidade Federal de Pernambuco Resumo: Partindo da leitura de duas obras de literatura infantil Marcelo Marmelo, Martelo, de Ruth Rocha, e Palavras, paIavrinhas & palavrões, de Ana Maria Machado e analisando certos conflitos que as criançaspersonagem tentam resolver, este artigo busca apontar algumas características da complexa relação que se estabelece entre a criança e as palavras. 1. Introdução A problemática da palavra pontua algumas obras da literatura infantil de maneira muito forte. Ora o personagem procura, através de diversas estratégias, descobrir o significado de uma palavra, ora ela apresentase inesperadamente, deixando o atordoado. Este estudo propõe analisar a noção (implícita) de palavra presente em dois livros infantis de grande relevância escolhidos por causa de suas temáticas de forte influência metalingüística e, sobretudo, pelo modo como a noção de palavra é explorada. O primeiro dos livros analisados é Marcelo, marmelo, martelo, de Ruth Rocha, cujo personagem principal, Marcelo, vêse às voltas com indagações acerca de uma realidade lingüística nova e por vezes incompreensível: “ Sabe, papai eu acho que o tal latim botou nome errado nas coisas.” O segundo livro escolhido para análise é Palavras, palavrinhas & palavrões, de Ana Maria Machado. Nessa história uma menina tenta descobrir o que é um palavrão e, com isso, aponta ao leitor a possibilidade de existência de significados diversos para uma mesma palavra, de acordo com os vários usos e os diferentes contextos nos quais é falada. Ao propor essa análise à luz dos estudos lingüísticos ao nível morfológico, este trabalho pretende problematizar a relação da criança com as palavras e, através disso, apresentar diferentes pontos de vista / noções do termo palavra, ainda que essas crianças sejam constructos da imaginação adulta. 2. Fundamentação teórica Para refletir sobre as noções de palavra presentes nesses livros, é relevante partir de conceitos de palavra apresentados por alguns estudos lingüísticos no nível morfológico. Laroca (1994) e Azuaga (1996) propuseram algumas características para as palavras e critérios para uma possível identificação, devido à impossibilidade de definição estanque. Em linhas gerais as duas autoras apresentam pontos comuns em suas idéias, mas, enquanto Laroca caracteriza a palavra de acordo com três critérios Azuaga o faz por meio de cinco, propondo dois novos pontos de vista. O primeiro critério comum às duas autoras relacionase com a enunciação sendo as palavras classificadas como unidades fonológicas ou vocábulos fonológicos (terminologias de Azuaga e Laroca, respectivamente), de acordo com processos * Trabalho realizado durante a disciplina Português IV, orientado pela professora Angela Dionisio, e reescrito com orientação também da professora Virgínia Leal, dentro do Projeto “ Atividades de reescrita em espaço escolar: um novo olhar sobre os borrões” , Iniciação à Docência/UFPE.

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As Palavras e a Criança na Literatura Infantil (Marcelo, Marmelo, Martelo)

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  • AS PALAVRAS E A CRIANA NA LITERATURA INFANTIL rica Nogueira de Santana *

    Universidade Federal de Pernambuco Resumo:

    Partindo da leitura de duas obras de literatura infantil Marcelo Marmelo, Martelo, de Ruth Rocha, e Palavras, paIavrinhas & palavres, de Ana Maria Machado e analisando certos conflitos que as crianaspersonagem tentam resolver, este artigo busca apontar algumas caractersticas da complexa relao que se estabelece entre a criana e as palavras.

    1. Introduo

    A problemtica da palavra pontua algumas obras da literatura infantil de maneira muito forte. Ora o personagem procura, atravs de diversas estratgias, descobrir o significado de uma palavra, ora ela apresentase inesperadamente, deixando o atordoado. Este estudo prope analisar a noo (implcita) de palavra presente em dois livros infantis de grande relevncia escolhidos por causa de suas temticas de forte influncia metalingstica e, sobretudo, pelo modo como a noo de palavra explorada.

    O primeiro dos livros analisados Marcelo, marmelo, martelo, de Ruth Rocha, cujo personagem principal, Marcelo, vse s voltas com indagaes acerca de uma realidade lingstica nova e por vezes incompreensvel: Sabe, papai eu acho que o tal latim botou nome errado nas coisas.

    O segundo livro escolhido para anlise Palavras, palavrinhas & palavres, de Ana Maria Machado. Nessa histria uma menina tenta descobrir o que um palavro e, com isso, aponta ao leitor a possibilidade de existncia de significados diversos para uma mesma palavra, de acordo com os vrios usos e os diferentes contextos nos quais falada.

    Ao propor essa anlise luz dos estudos lingsticos ao nvel morfolgico, este trabalho pretende problematizar a relao da criana com as palavras e, atravs disso, apresentar diferentes pontos de vista / noes do termo palavra, ainda que essas crianas sejam constructos da imaginao adulta. 2. Fundamentao terica

    Para refletir sobre as noes de palavra presentes nesses livros, relevante partir de conceitos de palavra apresentados por alguns estudos lingsticos no nvel morfolgico. Laroca (1994) e Azuaga (1996) propuseram algumas caractersticas para as palavras e critrios para uma possvel identificao, devido impossibilidade de definio estanque. Em linhas gerais as duas autoras apresentam pontos comuns em suas idias, mas, enquanto Laroca caracteriza a palavra de acordo com trs critrios Azuaga o faz por meio de cinco, propondo dois novos pontos de vista.

    O primeiro critrio comum s duas autoras relacionase com a enunciao sendo as palavras classificadas como unidades fonolgicas ou vocbulos fonolgicos (terminologias de Azuaga e Laroca, respectivamente), de acordo com processos * Trabalho realizado durante a disciplina Portugus IV, orientado pela professora Angela Dionisio, e reescrito com orientao tambm da professora Virgnia Leal, dentro do Projeto Atividades de reescrita em espao escolar: um novo olhar sobre os borres , Iniciao Docncia/UFPE.

  • fonolgicos que fazem com que slabas tonas agrupemse em torno de uma slaba tnica. Desse modo, so formados grupos de fora ou seja, palavras , identificados pelas pausas no ato da enunciao. Sob esse ponto de vista, no so considerados palavras os pronomes tonos, os artigos e alguns conectivos. A orao [O cavalo] [se machucou.] , por exemplo, possuiria duas palavras fonolgicas, pois as slabas tonas agrupamse em torno de apenas duas slabas tnicas (sublinhadas).

    O segundo critrio adotado referese modalidade escrita da lngua, considerando palavras as unidades lingsticas delimitadas por espaos em branco ou pontuao. A orao O cavalo se machucou. , sob esse ponto de vista, seria composta por quatro palavras ortogrficas (nomenclatura de Azuaga).

    O terceiro critrio adotado tanto por Laroca quanto por Azuaga referese aos lexemas, unidades abstratas que convergem significado. A partir dessa unidade lexical abstrata, e que segue um paradigma, so originados os itens lexicais concretos. Sob essa perspectiva, as palavras , sou, foram seriam representaes do lexema SER. Segundo Azuaga, lexema o que todas as formas de palavras associadas a ele possuem em comum (...). As diferentes flexes de um lexema seriam consideradas formas de palavras (nomenclatura de Azuaga) ou lexias, vocbulos formais, itens lexicais ou simplesmente palavras (nomenclaturas de Laroca). As autoras divergem, entretanto, no seguinte aspecto: enquanto Laroca considera que diferentes representaes de um lexema sejam palavras distintas, Azuaga possui uma viso dialtica sobre o assunto: defende que as representaes de um lexema poderiam ser consideradas palavras distintas porque so grfica e fonologicamente diferentes, porm apresenta tambm a possibilidade de as representaes dos lexemas serem consideradas a mesma palavra, pois realizam o mesmo item vocabular abstrato, o mesmo lexema, e, portanto, encerram significao semelhante.

    Outro critrio proposto por Azuaga para caracterizar as palavras referese a estrutura frstica em que ocorrem; define as palavras morfossinlticas, ou seja, vocbulos dependentes do contexto sinttico em que esto inseridos para que seja especificada qual a realizao do lexema empregada. Ex.: O lpis quebrou. (forma singular)

    Os lpis quebraram. (forma plural) 3. Anlise de Marcelo, marmelo, martelo

    O conceito de palavra observado nos livros infantis analisados bem diferente dos apresentados acima. Para a criana, a idia de palavra algo claro; o que a perturba o significado, o processo de nomeao e formao das palavras, bem como o uso delas num determinado contexto. O livro Marcelo, marmelo, martelo possui vrios exemplos que refletem a aguada percepo morfolgica da criana. Marcelo caracterizase como sendo questionador e bastante reflexivo sobre as relaes morfolgicas existentes entre as palavras. Quando ele pergunta E por que esse tal de latim no botou na mesa o nome de bacalhau? ele inicia sua atuao na narrativa apontando para a arbitrariedade na nomeao das coisas, deixando seu pai atordoado.

    O seguinte trecho E porque bola no mulher do bolo? E bule? E belo? E bala? revela o conhecimento internalizado da criana sobre a noo de pares ordenados. Ela acredita que os nomes passem para o feminino trocando o O por A, como em belo/bela, e depararse com bolo/bola faz com que esse conhecimento do mecanismo de flexo de gnero tornese confuso. Ainda de acordo com os pares ordenados, Marcelo tenta buscar uma relao entre belo/bule/bolo/bola, que, apesar de

  • possurem letras em comum e seqncias silbicas anlogas, no encerram cargas semnticas semelhantes: (...) Eu acho que as coisas deviam ter nome mais apropriado. Cadeira, por exemplo. Devia chamar sentador, no cadeira, que no quer dizer nada. E travessero?Devia se chamar cabeceiro, lgico! Tambm, agora, eu s vou falar assim.

    Nesse trecho a criana exprime opinies que refletem o seu conhecimento lingstico e a sua percepo do mundo. Marcelo prefere utilizarse do verbo sentar para a ele acrescentar o sufixo dor, que significa agente instrumento de ao (Cunha:l 1986,115), por comutao com abridor, regador, transformando o verbo em substantivo, para o qual transferiu o sentido da palavra cadeira. Marcelo cria tambm a palavra cabeceiro, unindo o radical cabec ao sufixo eiro, sufixo formador de substantivo que caracteriza objetos (Cunha:1986,115), por analogia com paliteiro, joalheiro etc. Nas duas criaes, houve a tentativa de uma maior proximidade entre o sentido da palavra e o seu radical, ou seja, vocbulos morfologicamente mais ligados ao significado que possuem. Mas a tica de reflexo do Marcelo no pe em xeque a arbitrariedade do signo, como pode parecer em um primeiro momento, j que no resolve a questo da relao entre sentar e colocar uma determinada parte do corpo em um certa superfcie, em ngulo de inclinao especfico . A busca do Marcelo, portanto, a busca da manuteno de um mesmo radical para todas as palavras irmanadas em um grupo semntico especfico.

    Outros exemplos extrados do livro mostram a constante necessidade de Marcelo de associar morfolgica e semanticamente as palavras. interessante notar que, apesar de os termos criados por Marcelo no fazerem parte do lxico portugus e soarem estranhos primeira audio, eles esto de acordo com o princpio da gramtica internalizada.

    seguindo os critrios de gramaticalidade que ele inventa, pelo processo de composio, o substantivo suco de vaca em oposio a leite. A partir dessa palavra composta, ele cria pelo processo de derivao outra palavra, sucodavaqueira, por comutao com chaleira, manteigueira, e em substituio a leiteira. O mesmo ocorre com mexedor/mexedorzinho, em que o verbo mexer serve aos propsitos de Marcelo, ao receber o sufixo dor, de criar um substantivo que designasse algo que mexe, em oposio a colher/colherinha, cujas estruturas morfolgicas, para ele, no explicitariam seus significados: Mame, quer me passar o mexedor? Mexedor? Que isso? Mexerdozinho, de mexer caf. Ah... colherinha, voc quer dizer. Papai, me d o suco de vaca? Que isso, menino! Suco de vaca, ora! Que est no sucodavaqueira. isso leite, Marcelo. Quem que entende este menino?

    Em um outro trecho, Marcelo cria solrio e lunrio, numa tentativa de ligar morfologicamente (com o acrscimo do mesmo sufixo, que traria a mesma relao com o radical) duas palavras pertencentes ao mesmo campo semntico, o que no ocorre com dia e noite: Quando vinham visitas, era um caso srio.

  • Marcelo s cumprimentava dizendo: Bom solrio, bom lunrio... que era como ele chamava dia e noite. E os pais de Marcelo morriam de vergonha das visitas.

    H vrios outros exemplos que comprovam a existncia de critrios gramaticais seguidos por Marcelo nas suas invenes . Todas as palavras criadas por ele atravs do processo de derivao obedecem estrutura radical + afixo(s); os termos criados pelo processo de composio tambm seguem as regras gramaticais, sendo formados por palavras j existentes no lxico e unidas de modo a criar um novo significado para a palavra composta. Marcelo no utiliza a gramtica da lngua em prol de invenes absurdas, e sim d origem a palavras que poderiam de fato fazer parte do lxico, pois so formadas por sufixos e radicais existentes no portugus bem como seguem as normas gramaticais da lngua. 4. Anlise de Palavras, pala vrinhas & palavres

    Era uma vez uma menina que gostava muito de palavras. (...) Para ela todas eram interessantes: s pequenas, as mdias e as grandes. As palavrinhas, as palavras e os palavres. A partir dessa apresentao, que j mostra o interesse da personagem principal pela linguagem, observase o carter questionador da menina em relao ao uso da lngua e a sua tentativa de descobrir na verdade o que so palavres, partindo do pressuposto que toda criana de certa faixa etria tem de que palavres so palavras imensas: Paralelepedo?Mesmo com todo cuidado, falando bem devagar, era difcil repetir. A lngua dela se enrolava toda com um palavro desse tamanho. Mas outras vezes tinha umas palavras que ela ouvia sem dificuldade. Nem eram assim to grandes. Algumas eram at bem pequenas. Mas as pessoas reclamavam.

    Essa espcie de equvoco na interpretao da menina do que seria um palavro faz lembrar a noo desenvolvida por Piaget de Realismo Nominal, retomada por Rego (1983) ao abordar a relao entre o processo de alfabetizao e o desenvolvimento cognitivo, em que apresenta uma srie de exemplos de crianas em diferentes estgios de reflexo sobre a palavra. Na fase do realismo nominal, no percebendo a arbitrariedade inerente relao entre significado e significante, as crianas tentam estabelecer uma relao motivada entre eles. Assim, nesse estgio do desenvolvimento cognitivo, em que a criana ainda no atingiu uma anlise alfabtica das palavras, ela facilmente afirmaria que a palavra mar maior que a palavra formiga, levada pela associao que faz entre a coisa e a sua representao lingstica: se o mar grande, a palavra deve ser grande tambm. Se a formiga pequena, a palavra formiga deve ser pequena tambm (apenas para dar um exemplo de como opera a criana ao se deparar com as relaes formasentido na linguagem). A menina de Palavras, palavrinhas &, palavres aparentemente j superou o realismo nominal, uma vez que analisa a palavra em seus aspectos morfolgicos. A origem do problema est em ela intuir o que so palavras e, a partir desse conhecimento, deduzir o que seja palavro. Com a adio do sufixo o, notrio formador de aumentativo, ela conclui, diferentemente dos adultos, que palavro uma palavra grande, com muitas slabas, levandoa a pensar que providncias e paraleleppedo so palavres.

  • interessante lembrar a idia de Piaget de que a criana no um adulto imperfeito em miniatura, mas sim que tem uma lgica prpria, qualitativamente diferente. O que freqentemente ocorre nessa histria analisada so diferentes leituras para um mesmo texto; a percepo da menina em relao s palavras diferente da iso de quem interage com ela.

    Martins (1982:3233) afirma que: A leitura vai, portanto, alm do texto (seja ele qual for) e comea antes do contato com ele. O leitor assume um papel atuante, deixa de ser mero decodificador ou receptor passivo. E o contexto geral em que ele atua, as pessoas com quem convive passam a ter influncia aprecivel em seu desempenho na leitura. Isso porque o dar sentido a um texto implica sempre levar em conta a situao desse texto e de seu leitor. Essa noo de leitura bastante vlida para compreender a freqente divergncia de interpretaes (criana X adultos) para um texto, nesse livro: Todos falavam tanto dos palavres que ela dizia, mas tanto mesmo, que ela resolveu descobrir de uma vez por todas o que era afinal essa histria de palavro. O av um dia explicou que eram palavras impublicveis. O que isso? Isso o qu? Esse palavro que voc acaba de dizer e eu no consigo... Impublicvel? ... Isso no palavro. Essa no. Se uma palavra desse tamanho todo no palavro, como que outras to menores podiam ser?

    Enquanto para a menina impublicveis um palavro, para o av uma palavra que vai estar fazendo referncia s palavras chamadas de baixocalo. O conflito acerca do que seriam os palavres desencadeia uma srie de questionamentos sobre a lngua e sua estrutura. H outro exemplo que mostra o carter questionador da criana frente certas formas de uso da lngua, como as grias e as expresses idiomticas: Por exemplo, minha filha, quando voc andava com a mania de chamar todo mundo de bunda mole... Mesmo que eu estivesse pensando numa bunda bem pequenininha?(...) De qualquer jeito, xingamento, palavro. E gelatina palavro? No, que idia... Treme toa, que nem bunda mole. Mas gelatina comida, no xingamento. Peru tambm . Ai meu Deus! suspirou a me. Tem horas que voc me faz perder a pacincia...

    No exemplo acima, percebese a dificuldade de a criana entender o sentido no dicionarizado das palavras, de perceber as diversas possibilidades de significao de um termo (polissemia), que mesmo sendo pequeno pode ser um palavro , dependendo do contexto. A definio de polissemia de Mattoso Cmara (1999:194) a seguinte: Propriedade da significao lingstica de abarcar toda uma gama de significaes, que se definem e precisam dentro de um contexto. Em Palavras, palavrinhas & palavres, a linguagem vista como forma de interao, pois est inserida em um contexto social, histrico e ideolgico. Um dos exemplos mais claros disso e o fato de a palavra pinto

  • quando falada na feira (onde pintinhos so vendidos) no ser considerada um palavro, porque o meio em que a lngua realizase e a cultura que ela reflete assim o concebem: Olha que amor, minha filha... O qu? Ali; olha, um monte de pintos. Pinto no palavro? Na feira, no. Francamente, no dava para entender. Como que as palavras podem ser iguazinhas e ficarem maiores ou menores dependendo do lugar onde a gente est?

    Para ela a palavra pinto uma s; ela no entende as nuances de significado, habilidade que s tm aqueles que dispem de uma maior experincia com o uso da lngua. A criana ainda no percebe que o sentido depende muito da situao em que o texto produzido e acha que as palavras possuem uma nica significao. Ao se deparar com novos significados infere atravs de seu conhecimento de mundo e tenta decifrar o sentido, podendo originar alguns malentendidos.

    Pelo fato de falar tantos palavres a menina levada ao mdico e estranha que a estejam levando para um local onde, em seu entendimento, h justamente as palavras que ela no deveria falar, palavres como fonoaudiologia e otorrinolaringologista.

    Desde o instante em que entrou na clnica, ela foi ficando multo preocupada. Nunca tinha visto tanto palavro enorme junto na vida dela. Tinha uma placa com um nome de mdico e embaixo estava escrito otorrinolarinologisia. Na sala onde os pais entraram com ela estava assim: orientao psicopedaggica. E mais fonoaudiologia. Ela foi ficando assustada. No dava nem para ler direito essas palavronas.

    Depois de ir ao mdico ela pensa que esses palavres que ela viu no hospital eram palavras para assustar as crianas e ento decide fazer voto de silncio. Esse fato explicita a diferena existente entre o mundo lingstico dos adultos e o das crianas , que faz com que elas se sintam, por vezes, inadequadas; a adaptao delas realidade lingstica dos adultos talvez intensifique a arbitrariedade da lngua, dado que as crianas tm de se adaptar a algo que lhes duplamente estranho: arbitrariedade inerente lngua e a uma espcie de variante lingstica que diferente da sua: a dos adultos. 5. Concluso

    Percebese que a concepo de palavra das crianas, refletida nos livros observados, vai muito alm dos critrios utilizados pelos estudiosos da Morfologia; a criana tem uma percepo lingstica muito aguada e, no estando to limitada pelas normas gramaticais, que posteriormente sero internalizadas atravs de processos interacionais diversos, sentese vontade para questionar a estrutura da lngua. Em Marcelo, marmelo, martelo, h a tentativa do personagem de tornar as palavras mais lgicas , de criar vocbulos morfologicamente mais relacionados ao significado que expressam. Isso revela dois fatos: o primeiro deles a existncia de um conhecimento morfolgico internalizado nas crianas. O segundo fato o carter crtico e transformador das crianas, que percebem a lngua como algo inserido numa realidade, algo com uma funo social, a interao comunicativa. Ao contrrio de muitos adultos, a criana v a lngua a servio dos seus falantes; por isso, sentese livre para criar e, com isso, atender s suas necessidades lingusticas.

  • Palavras, palavrinhas & palavres revela a dificuldade da criana em entender os critrios lingsticos adotados pelos adultos, que s vezes lhe parecem incompreensveis. Como a criana est no processo de construo da linguagem a partir das muitas influncias que recebe, ela possui um comportamento crtico e procura descobrir o porqu dos dogmas em relao linguagem que lhe so apresentados.

    Entendese, pois, que a relao existente entre as crianaspersonagem dos livros analisados e as palavras com que se deparam muito criativa e produtiva, no se restringindo s concepes comuns aos adultos e aos estudos morfolgicos. Referncias bibliogrficas: AZUAGA, Luza (1996). Morfologia. In I. H. Faria, E. R. Pedro, I. Duarte e C. A. M.

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    CARONE, Flvia de Barros (1998). Morfossintaxe. So Paulo, tica. CUNHA, Celso (1986). Gramtica da lngua portuguesa. Rio de janeiro, FAE. LAROCA, Maria Nazar de Carvalho (1994). Manual de morfologia do portugus.

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