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AS PANDORGAS DE VALDIR AGOSTINHO: VISUALIDADE E HISTORICIDADE
EM FONTES AUDIOVISUAIS (FLORIANÓPOLIS/SC, 1980-2010)
Luciano Py de Oliveira
Professor de Educação Musical do Colégio de Aplicação (UFSC)
Doutorando em História (UDESC)
Resumo:
Esta comunicação pretende apresentar parte do universo documental utilizado no
desenvolvimento da tese sobre o artista (ou multiartista) catarinense Valdir Agostinho.
Considerando as características que distinguem sua produção, destacam-se as pandorgas.
A pesquisa está sendo realizada no acervo reunido pelo artista ao longo de sua carreira.
Suas peças alcançaram a dimensão de objetos de arte, contendo referências às tradições
locais, utilizando materiais recicláveis para a confecção de esculturas, fantasias e
adereços; paralelamente, atua como compositor e cantor. É possível perceber, por meio
da análise das fontes, seu trabalho nas áreas das artes visuais e do carnaval; a sua inserção
no meio musical local, a partir da década de 1990; sua performance enquanto cidadão
oferecendo oficinas de pandorga e reciclagem em escolas de ensino fundamental.
Palavras-chave: Valdir Agostinho; Arquivos pessoais; Pandorgas.
É inegável a importância da mídia para a carreira de artistas e músicos pois, além
de divulgar seus trabalhos, produz documentos acerca de suas trajetórias. É de se esperar,
portanto, que artistas constituam seus próprios acervos pessoais de documentação. Esse
processo de arquivamento de objetos para posteridade não é exclusivo de artistas, pois
perpassa a vida de todos os que habitam o mundo moderno. Ou seja, arquivamos nossa
vida porque a sociedade nos impõe essa prática, que se realiza de muitas maneiras: diários
pessoais, cadernos, livros, ou a conservação de papeis que julgamos importantes, como
documentos de identidade e fotografias.
Numa autobiografia, a prática mais acabada desse arquivamento, não só
escolhemos alguns acontecimentos, como os ordenamos numa narrativa; a
escolha e a classificação dos acontecimentos determinam o sentido que
desejamos dar às nossas vidas. (ARTIÈRES, 1998, p. 11).
“Ação da mão sobre papéis, sobre telas, sobre pedras e onde mais for possível
deixar traços, a escrita registra, inventa e conserva sempre mais ou menos ao contar,
muitos atos da experiência humana” (CUNHA, 2015, p. 251). Guardamos papeis que
escrevemos sobre nós mesmos, ou que outros, talvez ‘gente mais importante que a gente’,
o fizeram. No caso dos artistas, podem ser as matérias, notas e críticas publicadas em
jornais.
Com base no exposto, a presente comunicação pretende apresentar parte do
universo documental utilizado no desenvolvimento da tese sobre o artista (ou multiartista)
catarinense Valdir Agostinho. Considerando as características que distinguem sua
produção, destacam-se as pandorgas1. A pesquisa está sendo realizada no acervo reunido
pelo próprio artista ao longo de sua carreira, que ficou bastante conhecido quando passou
a confeccionar pandorgas e apresentá-las em festivais. Suas peças alcançaram a dimensão
de objetos de arte (BORTOLIN, 2010, p. 18-20; LIMA, B.; LIMA; V., 2008, p. 427),
repletas de referências às tradições de sua localidade, a Barra da Lagoa2; além disso,
utiliza materiais recicláveis para a confecção de objetos tridimensionais, como esculturas,
fantasias e adereços carnavalescos, um outro diferencial em sua produção3.
Paralelamente, desenvolve um trabalho musical como compositor e cantor.
Minha relação com Valdir Agostinho começou em 2006, como músico, quando
fui convidado para participar como tecladista de uma nova banda. Já o conhecia
anteriormente, pois, enquanto frequentava a Festa da Tainha de 1995, assisti a sua
apresentação, uma das atrações culturais da festa, cantando acompanhado de seu violão e
de um tecladista. Naquela ocasião, lembro-me de ter ficado impressionado com sua
performance, tendo como figurino calças feitas de caixas de leite longa-vida, uma camisa
de jornal e um colete feito de retalhos de embalagens de salgadinhos, com um jeito de
cantar muito peculiar, marcado pelo sotaque rápido típico da região.
A minha participação como músico duraria cerca de dois anos. Em 2010, quando
retorno a outro grupo musical liderado por ele, surge o interesse por uma pesquisa sobre
1 O mesmo que pipa ou papagaio. A palavra tem sua etimologia na língua espanhola, também grafada como
“pandorca” (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, edição em português do Brasil para Kindle, 2011).
Segundo o Diccionario de la lengua española da Real Academia Española (edição para Kindle), “Cometa
que se sube al aire”. Por sua vez, “cometa”, em espanhol, é o mesmo que pipa ou papagaio. 2 PANDORGUEIRO amplia a sua arte. Jornal da Lagoa, p. 10, out. 1994. 3 BRILHO E CHARME NO CLUBE DOZE. Diário Catarinense, Florianópolis, p. 40. 22 fev. 1998.
CANAN, Adriane. A hora do mané. Diário Catarinense, Florianópolis, 12 jan. 1999.
sua trajetória artística, repleta de referências temporais. Inicialmente, a motivação surgiu
pela sua música, que apresenta uma mistura peculiar de tradições orais e música popular.
Logo fui descobrindo a sua importância no mundo das Artes Visuais e do Carnaval,
indissociáveis de sua produção musical. Ainda, contribuiu o fato do artista possuir um
grande acervo de jornais e audiovisuais sobre sua produção e obra, bem como de eventos
relacionados a estes. A partir de então, desde 2015 estou conduzindo uma pesquisa sobre
a trajetória artística de Valdir Agostinho, situando-a no campo da História do Tempo
Presente, no Doutorado em História do Programa de Pós-Graduação da UDESC,
orientada pela professora Dra. Márcia Ramos de Oliveira.
O universo documental do artista encontra-se em um ampliado acervo, constituído
ao longo de sua trajetória, contendo artigos de jornais recortados e organizados em pastas
tipo portfólio e, além destas matérias, muitos jornais guardados na íntegra, pois, segundo
ele, era uma forma de assegurar seu acervo (uma espécie de back-up), além de ter acesso
aos fatos do dia, contextualizando seu documento no tempo. No portfólio constam
algumas fotografias, muitas delas não identificadas. Além dos jornais, alguns livros,
revistas e muitos objetos de arte: praticamente toda sua obra que não foi comercializada,
como pandorgas, esculturas e adereços. Também pode se encontrar no seu acervo, de uma
forma menos organizada, fitas de VHS, CD’s de áudio e DVD’s com entrevistas, shows
e outros eventos.
Além do acervo físico que se encontra em propriedade do artista, muito pode se
encontrar na internet, em especial vídeos no YouTube. Um desses vídeos, por exemplo,
é o clipe do “Reggae da Tainha (Sereia Manezinha)”. Será possível contar também com
itens do acervo de Caio Cezar, fotógrafo e colaborador desta pesquisa, que vem
acompanhando a trajetória de Valdir Agostinho desde os anos 2000; seu acervo está
catalogado e indexado, facilitando a pesquisa com as fontes.
A maior parte das fotografias encontradas estão nas notícias de jornais. A utilização
dessas imagens para a pesquisa levanta uma questão delicada sobre direitos autorais, pois,
mesmo que se obtenha autorização do autor da fotografia e do sujeito fotografado, ainda
se tem o direito das empresas de comunicação que produzem os jornais. Nesse trabalho,
teve-se o cuidado de utilizar unicamente documentos que foram autorizados por seus
autores.
Desde o surgimento da fotografia, a possibilidade de retratar a si mesmo e
familiares foi cada vez mais popularizada. Esse hábito, que era um “privilégio antes
restrito à nobreza e aos comerciantes ricos, tornou-se possível com a fotografia, que
barateou os custos da sua produção” (LIMA, S; CARVALHO, 2015, p. 31). No caso da
pesquisa em questão, as fotografias não foram encontradas em álbuns, mas em meio aos
recortes de jornais, nas pastas classificatórias. Até então não se percebeu álbuns de
fotografias no acervo de Valdir Agostinho; se existem, não foram disponibilizados.
Algumas hipóteses podem ser levantadas: as fotografias de jornais e revistas geralmente
acompanham um texto escrito, em veículos de ampla circulação. Estas seriam mais
importantes do que fotografias guardadas em álbuns, pois foram utilizadas para fins de
publicação ou divulgação, como jornais, revistas e cartazes. Fora desse contexto, a
fotografa ganha uma conotação mais pessoal e, consequentemente, privada.
As fontes audiovisuais estão divididas entre DVD’s do acervo de Valdir Agostinho
e vídeos postados na internet, especialmente na rede do YouTube. Um dos DVDs é uma
compilação de 12 vídeos, feitos por um de seus produtores, com vídeos que não possuem
informações sobre datas, dificultando o trabalho de análise. É possível supor que a
maioria dos vídeos se concentra nos anos 1990, período em que o artista obteve maior
espaço na mídia, com premiações em desfiles de carnaval e para a produção de seu CD,
intitulado “A Hora do Mané”, finalizado em 1999. Alguns dos vídeos contidos nessa
compilação são entrevistas concedidas a programas locais de TV; um deles é a
documentação de um evento do qual participou com frequência, a Festa da Tainha; outro
é um vídeo pessoal feito durante uma estadia em Nova Iorque. Destacam-se a entrevista
concedida a Marília Gabriela, programa produzido pela TV Bandeirantes; e o quadro do
Vídeo Show, programa da TV Globo, sobre a diversidade da cultura popular brasileira.
Outro DVD que se teve acesso contém o show de sua banda em 2003 durante a Festa
Nacional da Ostra, a Fenaostra.
O músico Luiz Maia, baixista, produtor musical e proprietário de um estúdio de
gravação em Florianópolis, o Jardim Elétriko, acompanha o artista desde 2006. Com ele,
obteve-se alguns registros de apresentações de Valdir Agostinho e sua Banda: um show
na Casa das Máquinas, um espaço cultural que no passado foi um posto dos Correios,
localizado na Lagoa da Conceição, bairro de Florianópolis, em 2011; show no Auditório
Garapuvu, no Centro de Eventos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),
também em 2011; outro show realizado no Teatro Álvaro de Carvalho, no centro da
capital catarinense, ocorrido em 2012. Também no acervo da banda encontra-se uma
matéria de um telejornal local que apresenta canções compostas especialmente para
incentivar a Seleção Brasileira de Futebol durante a Copa do Mundo de 2006; a canção
foi gravada previamente em estúdio e editada junto com as imagens realizadas durante a
matéria.
Do material obtido na internet, destacam-se o videoclipe da música Reggae da
Tainha, produzido pelo cineasta catarinense Zeca Pires e o making-off do mesmo. De
acordo com as informações que constam no YouTube, o vídeo foi postado em 27 de
agosto de 2010, contando com a atriz Simone Moraes. A música foi produzida por Gazu
e gravada por Luiz Maia.
A primeira imagem que selecionei para apresentar aqui faz parte da matéria mais
antiga encontrada no acervo. Interessante observar a forma de arquivamento, com a
matéria recortada e colada em uma folha de papel cartão tamanho A4, para facilitar seu
arquivamento em pastas classificatórias, demonstrando também a intervenção do sujeito
em torno da reconstrução do documento. Trata-se de um informativo de uma emissora de
televisão local, a TV Barriga Verde. A matéria divulga o 9º Festival da Pandorga, que
aconteceu nos dias 24 e 25 de setembro de 1983 (figura 1).
As próximas imagens são duas fotografias do acervo pessoal de Valdir: sem a
indicação da autoria, apresentam o artista caracterizado e sua pandorga. Na primeira
fotografia (figura 2) é possível perceber seu figurino, próprio da performance de seu
personagem pandorgueiro, não datada. A foto seguinte apresenta outra edição do festival,
dessa vez do ano de 1988. A foto também não está datada, mas é possível perceber o ano,
pelo menos, por conta do cartaz ao fundo, com o texto “Festival [da Pan]dorga 88” (figura
3). Desta vez, uma outra televisão local, a RCE TV, é a promotora do evento, juntamente
com a Secretaria Municipal de Cultura, a Fundação Franklin Cascaes, também municipal
e a Prefeitura de Florianópolis.
Valdir Agostinho participou de outros festivais de pandorga nos anos seguintes,
intensificando sua atuação profissional no campo das artes visuais, mas, na década de
1990, o artista partiu para o trabalho musical de uma forma mais profissional.
Simultaneamente passa a aprimorar seu trabalho de confecção de roupas feitas de material
reciclado. A técnica de costura é aplicada a materiais como jornal, embalagens de
salgadinhos, canudinhos e outros materiais de plástico. Aqui, uma particularidade: todos
esses materiais são recolhidos dos lixos, das ruas e das praias de Florianópolis.
A capa e contracapa do CD A Hora do Mané (1999)4 demonstram com bastante
expressividade o trabalho de costura e confecção de adereços, como a máscara da
contracapa ou o chapéu estilo kufi5 com a mini pandorga que se tornaria uma marca
característica do visual do artista, como se pode perceber em outros registros fotográficos
(figura 4). O CD foi produzido por Nani Lobo, também responsável pelo baixo elétrico
da banda; o álbum obteve financiamento por meio de um edital da Fundação Catarinense
de Cultura6. A banda que gravou com Agostinho chegou a realizar algumas
apresentações, mas não houve continuidade desse trabalho.
Foi também nesse período que o artista passa a realizar oficinas de arte envolvendo
pandorgas e reciclagem, para alunos da educação básica de escolas públicas e
particulares. Em 15 de fevereiro de 1998, o jornal Diário Catarinense publicou uma
matéria dando destaque às suas pandorgas. Já nessa época Valdir estaria produzindo
oficinas de arte envolvendo crianças em idade escolar. A matéria foi capa do suplemento
Revista, com foto que ocupa praticamente toda a página, na qual ele aparece numa praia
empinando uma pandorga, com a manchete “Eternamente Criança”. Segundo a autora,
Valdir “fez da pandorga uma história de vida”7.
4 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=hlDtf7xB2EQ . 5 Um kufi ou kufi cap é um boné sem aba, curto e arredondado usado por homens em muitas populações no
Norte da África, África Oriental, África Ocidental e Sul da Ásia. Fora do continente africano, é utilizado
por homens nos países da diáspora africana (cf. https://en.wikipedia.org/wiki/Hat#Styles;
https://en.wikipedia.org/wiki/Kufi). 6 DEFINIDOS VENCEDORES DO EDITAL DE INCENTIVO ÀS ARTES. O Estado, 16 jul. 1997. 7 BALDISSARELLI, Adriana. Rumo ao infinito. Diário Catarinense, Florianópolis, 15 fev. 1998. Revista
DC, p. 8-9.
Quase mais uma década havia se passado, e o trabalho musical, que havia entrado
num certo ostracismo logo após o afã causado pelo CD, emerge novamente, desta vez
com uma renovação na banda. Em 2006, em uma entrevista concedida ao Jornal do
Almoço, da RBS TV de Santa Catarina, Valdir se apresenta com os músicos numa forma
de videoclipe8. A entrevista é parte de uma série de matérias que apresentam canções de
compositores catarinenses com a temática da Copa do Mundo de 2006. A canção teria
sido inspirada pela seleção brasileira de futebol, que havia obtido o pentacampeonato em
2002. Os músicos também utilizam acessórios produzidos por Valdir, como os coletes
que, segundo ele, foram produzidos para as suas primeiras performances musicais em
grupo, em fins da década de 1980. À performance dos músicos é acrescentada a trilha
sonora que foi gravada no estúdio Jardim Elétriko, produzida por Ulysses Dutra,
guitarrista da banda naquela ocasião.
Dois documentos encontrados no YouTube apresentam o clipe9 e o making off10 da
canção “Reggae da Tainha”, produzindo em 2010 com direção do cineasta Zeca Pires. A
música, composta por Júlio Cruz, contém uma letra construída por trocadilhos feitos com
os nomes de peixes ou de outros tipos de frutos do mar – uma marca da culinária e,
consequentemente, da identidade local. Valdir foi chamado pelo compositor para ser o
intérprete, juntamente com suas produções visuais tão características de seu trabalho. Em
depoimento durante um de seus ensaios, Valdir conta que a música inicialmente chamava-
se “Rock da Tainha”, e o arranjo que foi lhe apresentado, na época, não o agradou, pois
achava que tinha muito mais a ver com um Reggae. Logo, o compositor aceitaria a
sugestão e a música seria definitivamente intitulada como “Reggae da Tainha”. Essa fala
é reafirmada por Sandro Costa, o Gazu, produtor musical da canção11.
8 Documento obtido no acervo da banda. 9 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=OTQZziwE0Cg . 10 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=yVDjd9YdWvQ . 11 Ex-vocalista Dazaranha, uma das bandas de Florianópolis mais conhecidas no cenário regional/nacional,
em entrevista cedida para a pesquisa de doutorado.
Figura 1: Documento mais antigo encontrado no acervo com uma fotografia de Valdir (1983).
Figura 2.
Figura 3: Valdir Agostinho, caracterizado com a mesma temática de sua pandorga no Festival de 1988.
O cenário escolhido para a filmagem foi a Costa da Lagoa, uma comunidade que
tem o seu acesso feito somente a pé ou de barco. A comunidade dispõe de um serviço de
transporte hidroviário público, com a possibilidade de se deslocar em dois sentidos: até a
Freguesia da Lagoa (o centro do bairro, no caso), ao sul, ou até o Rio Vermelho, bairro
localizado no outro extremo, ao norte. Fora o transporte hidroviário, a outra forma de
acesso à Costa é por meio de trilhas, a pé, em meio à natureza, morros e cachoeiras. Uma
locação emblemática para a gravação do videoclipe, uma vez que é a comunidade que
recebe a imagem de Nossa Senhora dos Navegantes, durante a procissão em fevereiro,
por exemplo. É referenciado em numa estrofe da composição de Valdir Agostinho
intitulada Martim Balaieiro, registrada no álbum A Hora do Mané:
É só chegar na Freguesia [da Lagoa]
Pronto para embarcar
Tira o jet-ski daí
Deixa a santa no altar
Que hoje vai ter a procissão
E salve a nossa tradição
Caio Cezar é fotógrafo profissional e começou cedo na profissão, aos 16 anos de
idade, como assistente de seu pai, Marco Cezar, que já havia fotografado a banda Fênix
com Valdir Agostinho no final dos anos 1980.
Figura 4: Valdir Agostinho em 2012, retratado por Caio Cezar.
Figura 5: Anjo feito de cacos em mosaicos. Foto de Caio Cezar.
Caio Cezar fotografou o artista em diversos momentos, e ao concordar em colaborar
com a pesquisa, selecionou alguns arquivos para nos ceder. Mais uma intervenção do
indivíduo no ato de arquivar o passado: o artista agora deixa de ser Valdir para ser Caio,
que vai optar por um determinado grupo de imagens em detrimento de outro. A figura 4
é um retrato de Valdir durante um show realizado no Teatro Álvaro de Carvalho (TAC),
em 2012. O evento estava inserido na programação do “TAC pm 7:30:
música/teatro/dança”, promovido pela Fundação Catarinense de Cultura. É possível
perceber o chapéu kufi com a mini pandorga. O show contou com uma rica ornamentação,
todos materiais produzidos por Agostinho, desde flores de garrafas PET, estandartes
pintados, pandorgas, máscaras, redes de pesca...
Agostinho, cuja preferência pelos materiais mais orgânicos, como bambu, papel, ou
sintéticos, como o plástico reciclado, possui ainda uma outra matéria prima para suas
obras: os cacos que vem recolhendo, ao longo de sua vida, nas praias de Florianópolis.
São cacos de louças de todo o tipo, que o mar vem a depositar nas areias. Esses fragmentos
do passado são recolhidos e ressignificados em mosaicos, como se observa no registro
fotográfico realizado por Caio Cezar, durante a realização do presépio construído na
Lagoa da Conceição, em 2014. O fotógrafo foi o responsável pela documentação de
algumas etapas da produção das obras, que foram financiadas por meio de captação de
verbas com auxílio da Lei Municipal de Incentivo à Cultura.
Na obra visual de Valdir Agostinho entrecruzam-se narrativas sobre tempos
passados, como mitos e lendas locais, fragmentos de um passado lúdico – os cacos das
louças dos navios – com narrativas sobre tempos futuros, como a modernidade e a
tecnologia, desde que em consonância com a ecologia e a natureza, tendo a reciclagem
como pensamento central. Um trabalho análogo pode ser visto na obra da artista visual
Rosângela Rennó, que faz a reciclagem de uma outra forma, utilizando fotos e imagens
antigas, descartadas ou comercializadas em feiras de antiguidades. No seu trabalho, a
relação entre memória e imagem constitui um percurso “de uma trama temporal
complexa” (MAUAD, 2016, p. 88).
Se a imagem vem sendo utilizada ao longo dos anos como uma forma de
visualização do passado, ela é também um objeto de discussão da história. Ao buscar um
posicionamento e um conceito-chave para aproximar artes visuais e história, Ana Maria
Mauad argumenta que
a posição de que toda a arte é histórica e, portanto, toda imagem possui uma
historicidade fundamentada numa prática cultural e social; e é o conceito de
cultura visual que viabiliza a centralidade da noção de visualidade como
fenômeno social. A visualidade se fundamenta em imagens, é claro, mas
também em um conjunto de textos não visuais que apoiam a criação de
imagens por sujeitos históricos num circuito social ampliado. (MAUAD, 2016,
p. 91).
Se a visualidade é uma característica própria de Valdir Agostinho enquanto
indivíduo, uma vez que ninguém na sua família havia demonstrado uma inclinação para
as artes visuais, a música participou de sua vida desde os anos da primeira infância, a
começar pelo seu pai, que cantava e tocava cavaquinho em festas na sua comunidade. A
música, naquele tempo, estava entranhada na esfera social e cotidiana. A musicalidade
dos habitantes da Ilha de Santa Catarina se fazia presente nos hábitos cotidianos das
pessoas; nas manifestações religiosas, como o Terno de Reis, o Divino Espírito Santo, a
Procissão dos Navegantes; na Ratoeira, uma brincadeira cantada e improvisada feita por
moças e rapazes, num ritual de socialização e iniciação ao namoro; o Boi-de-Mamão,
folguedo que representa a morte e o renascimento; por fim, Valdir conta que antigamente
era normal as pessoas conversarem e brincarem uns com os outros por meio de trovas
rimadas e improvisadas. De todas essas manifestações, uma das poucas que ainda
persistem nas comunidades da capital catarinense é o Boi-de-Mamão.
Sua arte visual, entretanto, emerge a partir do encontro com outras redes de
sociabilidade, pois seus desenhos, pandorgas e figurinos começaram a tomar forma
depois de sua mudança para o centro da cidade, quando deixa de trabalhar na pesca, como
seu pai e seus irmãos, para ser o office-boy do Studio A2, uma galeria de arte dirigida por
Beto Stodieck (1946-1990), ao qual Valdir ainda se refere carinhosamente como “o meu
patrão”. A galeria reunia artistas que buscavam produzir uma arte inovadora e, ao mesmo
tempo, identitária, que logo reconheceram a originalidade de seu trabalho, incentivando-
o a desenvolver sua arte.
É possível perceber também que a necessidade de patrocínio para seus trabalhos
quase sempre foi suprida por meio de ações públicas, sejam elas editais com premiações,
leis de incentivo ou eventos promovidos pelo município de Florianópolis ou pelo estado
de Santa Catarina. Sua obra não deixa de ser interessante para o poder público,
especialmente no que diz respeito ao turismo, enquanto fonte de renda, e, no final das
contas, uma cidade sem memória, sem figuras típicas, sem ‘uma história para contar’, fica
para trás nessa corrida para conquistar o turista. Se não houvesse essa temática histórica
e identitária presente em sua obra, provavelmente não obteria tal prestígio com o
financiamento público de arte e cultura – que já não é mais o mesmo, dadas as críticas
recentes feitas pelo artista12. Até mesmo porque falar ‘somente’ de ecologia, de
reciclagem e de especulação imobiliária pode não ser tão interessante para o tipo de
projeto de cidade que as elites econômicas e o poder público têm em mente para
Florianópolis.
Referências bibliográficas:
ARTIÈRES, Philippe. Arquivar a própria vida. Revista Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, v. 11, n. 21, p. 9-34, jul. 1998. ISSN 2178-1494. Disponível em:
<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2061>. Acesso em: 04 jul.
2018.
BORTOLIN, Nancy Therezinha. Indicador Catarinense das Artes Plásticas: Verbetes
de referência curricular. Florianópolis: Museu de Arte de Santa Catarina, 2010, p. 18-20.
CUNHA, Maria Teresa. Diários pessoais: Territórios abertos para a História. In: LUCA,
Tânica Regina; PINSKY, Carla Bassanezi. O historiador e suas fontes. São Paulo:
Contexto, 2015, p. 251-280.
LIMA, Beth; LIMA; Valfredo. Em nome do autor: Artistas artesãos do Brasil. São
Paulo: Proposta Editorial, 2008, p. 427.
LIMA, Solange Ferras de; CARVALHO, Vânia Carneiro de. Fotografias: Usos sociais e
historiográficos. In: LUCA, Tânica Regina; PINSKY, Carla Bassanezi. O historiador e
suas fontes. São Paulo: Contexto, 2015, p. 29-60.
MAUAD, Ana Maria. O passado em imagens: Artes visuais e história pública. In:
MAUAD, Ana Maria; ALMEIDA, Juniele Rabêlo de; Santhiago, Ricardo (orgs.).
História pública no Brasil: Sentidos e itinerários, 87-96.
12 VOZ CONTRA A SUBMISSÃO. Notícias do Dia, Florianópolis, 31 mai. – 01 jun. 2014. Plural, capa;
ROSA, Edson. A vida colorida de Valdir Agostinho: Voz mané. Multiartista prega mais apoio
à cultura local e condena o consumismo. Notícias do Dia, Florianópolis, 31 mai. – 01 jun. 2014. Plural, p.
4-5.