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As relações entre Defesa e Soberania no Espaço Cibernético João Marinonio Enke Carneiro Doutor em Ciências Militares pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8763947348312397 Resumo Com o advento da conexão em rede dos sistemas computacionais, surge o espaço virtual criado pela interação da tecnologia com o homem. Nele, uma nova realidade toma forma, trazendo modificações profundas nas interações humanas. Por extensão, as relações entre Estados e organizações também sofreram grandes adaptações, na medida em que muitas atividades paulatinamente migraram para esse lugar, denominado Espaço Cibernético ou Ciberespaço. Esse espaço, segundo uma visão de Defesa, constituiu-se em um novo domínio operacional, juntamente com os domínios terrestre, marítimo, aéreo e espacial. O Espaço Cibernético apresenta uma singularidade: como não é um espaço físico, ele permeia todos os demais domínios, exercendo uma inequívoca influência. São conduzidas no Espaço Cibernético, todos os dias, ações pelos mais diversos atores (Estados, organizações empresariais, organizações terroristas, grupos de pressão, acadêmicos, curiosos e criminosos, para citar alguns) que, dependendo dos seus objetivos, podem se aproximar de uma verdadeira “guerra nas sombras”. Quem sabe o que está fazendo, procura cobrir as suas ações, dificultando a atribuição de responsabilidades e o rastreamento, evitando a responsabilização pelas ações perpetradas. Dessa forma, torna-se relevante procurar definir o conceito de soberania aplicada ao Ciberespaço para possibilitar a legitimação das ações de Defesa Cibernética a serem conduzidas pelo Estado. Surgem então algumas questões: Como assegurar a soberania no Espaço Cibernético? Como seria caracterizada uma eventual violação dessa soberania? Como não existem fronteiras bem definidas no Ciberespaço, serviços essenciais de um Estado, mesmo que eventualmente fora do território nacional, seriam alcançados pelo princípio da extensão territorial do Estado, tal qual ocorre com as embaixadas? Pela análise de políticas e estratégias de defesa cibernética, de relatórios governamentais e de empresas, de artigos acadêmicos e da mídia especializada, pretendemos apresentar uma visão de como se relacionam a Defesa Cibernética e a Soberania Nacional no Espaço Cibernético. Palavras chave: Defesa Cibernética, Soberania, Espaço Cibernético, Ciberespaço

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As relações entre Defesa e Soberania no Espaço Cibernético

João Marinonio Enke Carneiro Doutor em Ciências Militares pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército

Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8763947348312397

Resumo

Com o advento da conexão em rede dos sistemas computacionais, surge o

espaço virtual criado pela interação da tecnologia com o homem. Nele, uma nova

realidade toma forma, trazendo modificações profundas nas interações humanas. Por

extensão, as relações entre Estados e organizações também sofreram grandes

adaptações, na medida em que muitas atividades paulatinamente migraram para esse

lugar, denominado Espaço Cibernético ou Ciberespaço.

Esse espaço, segundo uma visão de Defesa, constituiu-se em um novo domínio

operacional, juntamente com os domínios terrestre, marítimo, aéreo e espacial. O

Espaço Cibernético apresenta uma singularidade: como não é um espaço físico, ele

permeia todos os demais domínios, exercendo uma inequívoca influência.

São conduzidas no Espaço Cibernético, todos os dias, ações pelos mais

diversos atores (Estados, organizações empresariais, organizações terroristas,

grupos de pressão, acadêmicos, curiosos e criminosos, para citar alguns) que,

dependendo dos seus objetivos, podem se aproximar de uma verdadeira “guerra nas

sombras”. Quem sabe o que está fazendo, procura cobrir as suas ações, dificultando

a atribuição de responsabilidades e o rastreamento, evitando a responsabilização

pelas ações perpetradas. Dessa forma, torna-se relevante procurar definir o conceito

de soberania aplicada ao Ciberespaço para possibilitar a legitimação das ações de

Defesa Cibernética a serem conduzidas pelo Estado.

Surgem então algumas questões: Como assegurar a soberania no Espaço

Cibernético? Como seria caracterizada uma eventual violação dessa soberania?

Como não existem fronteiras bem definidas no Ciberespaço, serviços essenciais de

um Estado, mesmo que eventualmente fora do território nacional, seriam alcançados

pelo princípio da extensão territorial do Estado, tal qual ocorre com as embaixadas?

Pela análise de políticas e estratégias de defesa cibernética, de relatórios

governamentais e de empresas, de artigos acadêmicos e da mídia especializada,

pretendemos apresentar uma visão de como se relacionam a Defesa Cibernética e a

Soberania Nacional no Espaço Cibernético.

Palavras chave: Defesa Cibernética, Soberania, Espaço Cibernético, Ciberespaço

Introdução

Com o advento da conexão em rede dos sistemas computacionais, surge o

espaço virtual criado pela interação da tecnologia com o homem. Nele, uma nova

realidade toma forma, trazendo modificações profundas nas interações humanas. Por

extensão, as relações entre Estados e organizações também sofreram grandes

adaptações, na medida em que muitas atividades paulatinamente migraram para esse

lugar, denominado Espaço Cibernético ou Ciberespaço.

Esse espaço, segundo uma visão de Defesa, constituiu-se em um novo domínio

operacional, juntamente com os domínios terrestre, marítimo, aéreo e espacial

(BRASIL, 2017). O Espaço Cibernético apresenta uma singularidade: como não é um

espaço físico, ele permeia todos os demais domínios, exercendo uma inequívoca

influência.

Estes cinco domínios são interdependentes. Atividades no ciberespaço podem

criar liberdade de ação para atividades em outros domínios assim como atividades em

outros domínios também criam efeitos dentro e através do ciberespaço. O objetivo

central da integração entre os domínios é a habilidade de se alavancar capacidades

de vários domínios para sejam criados efeitos únicos e, frequentemente, decisivos. A

representação deste conceito pode ser vista na figura a seguir:

Figura 1: Relacionamento entre os Domínios Operacionais (adaptado) Fonte: ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA, 2010

São conduzidas no Espaço Cibernético, todos os dias, ações pelos mais

diversos atores (Estados, organizações empresariais, organizações terroristas,

grupos de pressão, acadêmicos, curiosos e criminosos, para citar alguns) que,

dependendo dos seus objetivos, podem se aproximar de uma verdadeira “guerra nas

sombras”. Quem sabe o que está fazendo, procura cobrir as suas ações, dificultando

a atribuição de responsabilidades e o rastreamento, evitando a responsabilização

pelas ações perpetradas. Dessa forma, torna-se relevante procurar definir o conceito

de soberania aplicada ao Ciberespaço para possibilitar a legitimação das ações de

Defesa Cibernética a serem conduzidas pelo Estado.

Conceitos de Soberania

A centralidade da soberania na geopolítica e relações internacionais é

primorosamente demonstrada pelo cientista político Stephen Krasner, que a descreve

como “a variável mestra do sistema internacional” (KRASNER, 2009, p. xiii.). O

framework para o entendimento de soberania proposto pelo mesmo descreve quatro

tipos de soberania inter-relacionados, cada qual representando uma área onde o

Estado exerce algum poder legítimo, mas também encontra limites a esse poder.

O primeiro tipo é a soberania doméstica, também chamada de soberania

interna. Este termo se refere ao controle do Estado sobre os assuntos internos e

sugere que o relacionamento entre o Estado e seus cidadãos é um problema de

caráter nacional e não de caráter internacional. A implementação do contrato social,

o uso da força, as demandas do Estado aos cidadãos e os benefícios oferecidos em

retorno são todos assuntos de soberania doméstica. Governos nacionais tipicamente

possuem autoridade robusta nestas áreas, sujeita às limitações impostas pelos seus

sistemas políticos e a definição do relacionamento desses sistemas entre os cidadãos

e o Estado.

O segundo tipo de soberania é a chamada “Soberania Westfaliana”, derivada

dos tratados de Paz de Westfália de 1648, que marcaram o início do sistema

internacional moderno ao acatar consensualmente noções e princípios como o de

soberania estatal e o de Estado-nação, resultando em uma paz mais duradoura

derivada de um equilíbrio de poder e pela não intervenção nos assuntos internos de

outros Estados em respeito à soberania destes.

O terceiro tipo ficou conhecido como a “Soberania Legal Internacional”, que

estende a ideia Westfaliana. Este tipo ocorre quando um Estado reconhece

explicitamente o direito de outro Estado. Frequentemente este reconhecimento está

associado a assuntos como território e fronteiras, quando dois Estados reconhecem

os seus limites fronteiriços, marcando o início da soberania de um e o término da

soberania do outro. Quando disputas ocorrem, este sistema de reconhecimento provê

uma base para que as questões sejam resolvidas. Em verdade, um reconhecimento

mútuo de limites claros a serem respeitados minimiza as disputas. Este tipo de

soberania tende a ser problemático no caso do espaço cibernético.

O tipo final de soberania de Krasner é o que ele chama de “Soberania

Interdependente”. Esse assunto refere-se a maneira que os Estados buscam para

regular o cruzamento das suas fronteiras. O movimento de capital, pessoas e

informações através das fronteiras nacionais apresenta oportunidades positivas para

os Estados, na forma de comércio, crescimento e imigração e também um potencial

desafio, uma vez que os cidadãos podem ser influenciados por forças externas de

uma grande variedade de formas. Como resultado, fluxos de capital (entrando e

saindo), pessoas e informações afetam a soberania doméstica, incluindo a relação

entre os Estados e seus cidadãos. Dessa forma, a soberania interdependente refere-

se ao poder (ou a falta dele) de um Estado de gerenciar fluxos de cruzamento de

fronteiras por intermédio de regras de imigração, restrições à importações e

exportações e regulamentação financeira. Uma vez que este tipo de soberania é

frequentemente exercida em fronteiras internacionais, ela está normalmente ligada ao

relacionamento entre Estados.

Na maioria das vezes, o sistema de soberania funciona. Nenhum Estado pode,

dentro de uma credibilidade aceitável, reclamar poder e influência ilimitados. Apesar

disso, Krasner identifica também quatro áreas nas quais a comunidade internacional

reconhece a limitação de soberania, aceitando a interferência em assuntos internos

de outros Estados: a preservação de tolerância religiosa, a proteção de direitos das

minorias, a defesa dos direitos humanos e a manutenção da estabilidade

internacional. Quando uma dessas quatro áreas se vê seriamente ameaçada, o que é

uma condição bastante subjetiva e sujeita a interesses por vezes escusos, países

podem considerar interferir na soberania do Estado transgressor.

Já no Brasil, segundo BONAVIDES (2000) e ALVES (2010) a soberania é una,

uma vez que é inadmissível dentro de um mesmo Estado, a convivência de duas

soberanias. É indivisível, pois os fatos ocorridos no Estado são universais, sendo

inadmissível, por isso mesmo, a existência de várias partes separadas da mesma

soberania. É inalienável, já que se não houver soberania, aquele que a detém

desaparece, seja o povo, a nação ou o Estado. É imprescritível, principalmente,

justificando-se pelo fato de que jamais haveria supremacia em um Estado, se

houvesse prazo de validade. A soberania é permanente e só desaparece quando

forçado por algo superior.

A soberania no prisma do Estado contemporâneo brasileiro é garantida no

trecho que segue abaixo, retirado da Constituição Federal de 1988:

“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania;”

Segurança e Defesa Cibernética

Para que possamos prosseguir no estudo das relações da Defesa e Soberania

no espaço cibernético, é necessário que se entenda a diferença conceitual entre

Segurança Cibernética, Defesa Cibernética e Guerra Cibernética.

Segundo a Doutrina Militar de Defesa Cibernética (Brasil, 2014b), no contexto

do Ministério da Defesa, as ações no Espaço Cibernético deverão ter as seguintes

denominações, de acordo com o nível de decisão (conforme apresentado na figura 2):

Nível político: denominada Segurança da Informação e Comunicações (SIC)

e Segurança Cibernética. São coordenadas pela Presidência da República,

abrangendo a Administração Pública Federal direta e indireta, bem como as

infraestruturas críticas da Informação Nacionais;

Nível estratégico: denominada Defesa Cibernética, fica a cargo do Ministério

da Defesa, Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas e Comandos das Forças

Armadas, interagindo com a Presidência da República e a Administração Pública

Federal; e

Níveis operacional e tático: chamada de Guerra Cibernética, com

denominação restrita ao âmbito interno das Forças Armadas.

Figura 2: Níveis de Decisão Fonte: Doutrina Militar de Defesa Cibernética (BRASIL, 2014b)

A Soberania e o Espaço Cibernético

LEWIS (2010) afirma que o conceito de ciberespaço como um lugar global

comum devido à sua suposta ausência de fronteiras é melhor visto como um desejo

do que como uma descrição. Este conceito prejudica a segurança nacional e

internacional e é cada vez mais insustentável, já que outros governos buscam

soluções tecnológicas e políticas para ampliar seu controle no ciberespaço. A cultura

dos pioneiros da rede, combinada com uma maior preferência dos Estados Unidos

por um governo limitado e uma dependência dos mercados, ajuda a explicar a rejeição

da soberania e a abordagem adotada pelo governo dos Estados Unidos para a

segurança cibernética. Mas as políticas que cresceram a partir desse desejo agora

enfrentam desafios nas novas condições do século XXI, nas quais a internet não é

mais um artefato dos EUA, mas sim uma arena em que os estados se confrontam.

LEWIS (2015) também ressalta que um grupo de especialistas de governo

(GGE – Group of Government Experts) das Nações Unidas produziu um GGE Report

em 2013 que mudou o cenário político da Internet, concordando que a soberania

nacional, a Carta das Nações Unidas e o direito internacional aplicados no

ciberespaço devem ser aplicados da mesma forma que se aplicam no mundo físico.

Este acordo eliminou as ideias dos anos 90 que prejudicaram negociações, como a

ideia de que o ciberespaço era um bem comum global sem fronteiras e a aplicação da

soberania e do direito internacional incorpora o ciberespaço e a segurança cibernética

no quadro existente de relações internacionais que o governo conduz entre os

Estados.

Mandarino (2009) menciona três características que são centrais na medida em

que a sociedade da informação se estabelece e desenvolve em um determinado país,

as quais são elementos importantes na formação de um Estado, e atribuem ao espaço

cibernético as mesmas características de um Estado do mundo real, a saber: povo,

território e a soberania. O povo é a representatividade dos usuários das ferramentas

da sociedade da informação, ou seja, os “internautas”. O território pode ser definido

pelo próprio espaço cibernético que se criou, ou seja, o ambiente virtual onde os povos

convergem e interagem dinamicamente. Por fim, a soberania desse “lugar” é retratada

pela capacidade de controlar, de ter poder de decisão sobre este espaço.

(MANDARINO, 2009, p.22)

Em 2009, o Centro Cooperativo de Excelência em Defesa Cibernética da OTAN

(NATO CCD COE), uma instituição de pesquisa e treinamento de renome baseada

em Tallinn, na Estônia, convidou um grupo independente de especialistas para

elaborar um manual sobre o direito internacional que governa a defesa e a guerra

cibernética. O projeto reuniu profissionais e estudiosos do direito internacional, o

chamado "International Group of Experts”, em um esforço para examinar quais normas

legais existentes aplicam-se a esta nova forma de confronto. Em 2013, o esforço

resultou na publicação do Tallinn Manual on the International Law Applicable to Cyber

Warfare. Esse produto serviu como um recurso inestimável para assessores jurídicos

e acadêmicos do governo desde sua publicação.

O foco do Manual de Tallinn foi sobre operações cibernéticas envolvendo o uso

da força e as que ocorrem no contexto do conflito armado. Embora tais operações

cibernéticas geralmente sejam mais preocupantes de uma perspectiva de segurança

nacional do que as que ocorrem em tempo de paz, os Estados têm que lidar

diariamente com problemas cibernéticos de baixa intensidade, que estão abaixo do

limite do uso da força. Dessa forma, em 2013, o NATO CCD COE lançou uma iniciativa

subsequente para expandir o escopo do Manual para incluir o direito internacional

público que governa as operações cibernéticas em tempo de paz. Para isso, convocou

um novo Grupo Internacional de Peritos composto por estudiosos e profissionais com

experiência nos regimes jurídicos envolvidos pelas atividades cibernéticas em tempo

de paz.

Seguindo o formato do Manual de Tallinn original, esses especialistas adotaram

regras adicionais que foram adicionadas aos originais para produzir o Tallinn Manual

2.0 on the International Law Applicable to Cyber Operations. Consequentemente, o

Manual de Tallinn 2.0, lançado em 2016 e publicado em 2017 (SCHMITT, 2017)

substitui o anterior. Como foi o caso do Manual de Tallinn original, a audiência primária

do Tallinn Manual 2.0 consiste em assessores jurídicos de Estado encarregados de

fornecer assessoria de direito internacional a tomadores de decisão governamentais,

civis e militares. No entanto, espera-se que o Tallinn Manual 2.0 também venha a ser

valioso em empreendimentos acadêmicos e outros.

Apesar do organizador do manual fazer a ressalva de que o mesmo expressa

somente a opinião dos Grupos de Peritos que realizaram a sua elaboração e que não

deve ser observado como um conjunto de melhores práticas, o seu texto foi elaborado

com o rigor das normas para formulação de tratados internacionais e por um grupo

bastante diverso de especialistas. Atualmente, é o estado da arte em termos de

arcabouço legal sugerido que trata do direito internacional aplicado às operações

cibernéticas.

O Estado brasileiro tem avançado na discussão acerca do uso do espaço

cibernético e na garantia aos seus cidadãos, mas a legislação, até o presente

momento, abrange principalmente princípios de soberania interna, como é o caso do

Marco Civil da Internet (Brasil, 2014), que estabelece princípios, garantias, direitos e

deveres para o uso da Internet no Brasil. Apesar disso, a preocupação com a

preservação da soberania já aparece no recente manual de Guerra Cibernética

(Brasil, 2017) que traz:

Cada país tem soberania sobre o espaço cibernético em sua delimitação geográfica. Portanto, o uso do ciberespaço de uma nação requer coordenação e negociação formais. Essa coordenação busca desenvolver a capacidade de interoperabilidade no ciberespaço. (BRASIL, 2017, p. 5-2)

Dessa forma, na falta de um arcabouço legal nacional específico, podemos

utilizar o Tallinn Manual 2.0 para indicar princípios legais que possuem grande

possibilidade de aceitação no âmbito internacional.

Assim, vamos abordar as regras relacionadas à soberania aplicadas ao espaço

cibernético, assim como alguns dos comentários, para orientar as relações entre a

Defesa Cibernética e a Soberania Nacional no Espaço Cibernético.

Regra 1 – Soberania (princípio geral)

O princípio da soberania do Estado se aplica ao espaço cibernético.

Esta Regra reconhece que vários aspectos do ciberespaço e das operações

cibernéticas do Estado não estão fora do alcance do princípio da soberania. Em

particular, os Estados gozam de soberania sobre qualquer infraestrutura cibernética

localizada em seu território bem como sobre atividades associadas a essa

infraestrutura cibernética.

Embora a territorialidade seja o cerne do princípio da soberania, em

determinadas circunstâncias, os Estados também podem exercer prerrogativas

soberanas, como a jurisdição sobre a infraestrutura cibernética e as atividades no

exterior, bem como sobre certas pessoas envolvidas nessas atividades.

Finalmente, a natureza territorial da soberania também impõe restrições às

operações cibernéticas de outros Estados voltadas para a infraestrutura cibernética

localizada em território soberano.

Para os propósitos deste Manual, as camadas físicas, lógicas e sociais do

ciberespaço são abrangidas pelo princípio da soberania. A camada física compreende

os componentes físicos da rede (isto é, hardware e outras infraestruturas, tais como

cabos, roteadores, servidores e computadores). A camada lógica consiste nas

conexões que existem entre dispositivos de rede. Inclui aplicativos, dados e protocolos

que permitem a troca de dados através da camada física. A camada social engloba

indivíduos e grupos envolvidos em atividades cibernéticas.

Regra 2 – Soberania interna

Um Estado goza de autoridade soberana em relação à infraestrutura

cibernética, pessoas e atividades cibernéticas localizadas em seu território, sujeito às

suas obrigações jurídicas internacionais.

Em princípio, um Estado é livre para adotar qualquer medida que considere

necessária ou apropriada no que diz respeito à infraestrutura cibernética, pessoas

envolvidas em atividades cibernéticas ou atividades cibernéticas em seu território, a

menos que seja impedido por uma regra de direito internacional vinculativa para o

Estado, como as que residem no direito internacional dos direitos humanos.

A soberania de um Estado sobre a infraestrutura cibernética e atividades dentro

de seu território têm duas consequências jurídicas internacionais. Primeiro, a

infraestrutura cibernética e as atividades estão sujeitas ao controle legal e regulatório

doméstico pelo Estado. Em particular, o Estado pode promulgar e fazer cumprir leis e

regulamentos nacionais em relação a eles. Em segundo lugar, a soberania do Estado

sobre o seu território proporciona o direito, de acordo com o direito internacional, de

proteger a infraestrutura cibernética e salvaguardar a atividade cibernética que está

localizada em seu território ou que ocorra em seu território.

Regra 3 – Soberania externa

Um Estado é livre para conduzir atividades cibernéticas nas suas relações

internacionais, sujeito a qualquer regra contrária do direito internacional vinculativo.

A soberania externa deriva da igualdade soberana dos Estados. Como

reconhecido no Artigo 2 (1) da Carta das Nações Unidas (BRASIL, 1945), os Estados

são juridicamente iguais. Cada Estado é obrigado a respeitar a personalidade, a

integridade territorial e a independência política de outros Estados e deve cumprir

fielmente as suas obrigações internacionais. Em uma comunidade de Estados

soberanos e iguais, não há supremacia legal de um Estado em relação a outro.

A soberania externa significa que um Estado é independente em suas relações

externas de outros Estados e é livre para se envolver em atividades cibernéticas além

de seu território, sujeito apenas ao direito internacional. Essa soberania engloba a

liberdade de formular sua política externa, incluindo a celebração de acordos

internacionais. Portanto, no que diz respeito às atividades cibernéticas, os Estados

são livres para decidir se optarem por regimes específicos de ciber-tratados ou emitir

expressões de opinio juris quanto ao caráter de direito consuetudinário de qualquer

prática cibernética particular do Estado.

Esta Regra reconhece expressamente que o envolvimento de um Estado em

operações cibernéticas, em virtude de sua soberania externa, não prejudica

disposições contrárias ou convencionais de direito internacional.

A soberania externa é a fonte da imunidade do Estado.

Regra 4 – Violação da soberania

Um Estado não deve conduzir operações cibernéticas que violem a soberania

de outro Estado.

Conforme observado nas Regras 2 e 3, os Estados gozam de soberania interna

e externa, respectivamente. As operações cibernéticas que impedem ou

desconsideram o exercício de outras prerrogativas soberanas de outro Estado

constituem uma violação de tal soberania e são proibidas pelo direito internacional. É

claro, em determinadas situações, que o direito internacional permite ou prevê

exceções à obrigação de respeitar a soberania de outro Estado.

Os exemplos paradigmáticos são quando uma ação que de outra forma violaria

a soberania deste último é autorizada pelo Conselho de Segurança da ONU ou está

envolvida de acordo com o exercício do direito de autodefesa.

Esta Regra aplica-se às relações entre Estados, isto é, a ações empreendidas

por Estados ou atribuíveis a esses. O Grupo Internacional de Peritos concordou que

não se estende às ações de atores não estatais, a menos que tais ações sejam

imputáveis a um Estado. Em outras palavras, apenas os Estados têm a obrigação de

respeitar a soberania de outros Estados como uma questão de direito internacional e,

portanto, apenas os Estados podem violar essa obrigação. Por exemplo, considere

um caso em que uma corporação é alvo de uma operação cibernética maliciosa por

um Estado. A corporação não viola a soberania desse Estado se retaliar. Da mesma

forma, as operações cibernéticas realizadas por um grupo terrorista cuja conduta não

é atribuível a um Estado não constituem uma violação da soberania do Estado da

vítima. Nestes exemplos, deve ser advertido que o fato de que os atores não estatais

não estão obrigados a respeitar a soberania do Estado alvo não significa que suas

ações são legais. Pelo contrário, é provável que tais operações violem a lei interna

dos Estados com jurisdição sobre, entre outras, as pessoas ou atividades envolvidas.

O fato de que, na opinião dos especialistas, os atores não estatais não violam

a soberania de um Estado quando conduzem operações cibernéticas prejudiciais

contra ou nele não impedem necessariamente que o Estado alvo responda às

mesmas de acordo com o direito internacional. Nos casos apropriados, um Estado

pode responder com base no fundamento de necessidade ou em defesa própria, pelo

menos pela opinião da maioria em relação a este último. O Grupo Internacional de

Peritos concordou que as contramedidas também podem estar disponíveis contra

outro Estado na medida em que o mesmo não cumpriu sua obrigação de diligência

devida quanto às ações de atores não estatais que operam a partir do seu território.

Regra 5 - Imunidade soberana e inviolabilidade

Qualquer interferência de um Estado com infraestrutura cibernética a bordo de

uma plataforma, onde quer que esteja localizada, que goza de imunidade soberana

constitui uma violação da soberania.

O direito internacional claramente concede imunidade soberana a certos

objetos usados para fins governamentais não comerciais, independentemente da sua

localização. Geralmente, aceita-se que navios de guerra e navios de propriedade ou

operados por um Estado e utilizados apenas para o serviço não comercial do governo

gozam de imunidade da jurisdição de qualquer Estado que não seja o Estado “de

bandeira”. Além disso, as aeronaves estatais gozam de imunidade soberana. Pessoas

ou objetos, incluindo aqueles envolvidos em atividades cibernéticas, em tais

embarcações ou aeronaves são imunes ao exercício de jurisdição de execução de

outro Estado, a bordo dessas plataformas à luz da inviolabilidade das mesmas. Para

se beneficiar da imunidade e inviolabilidade soberanas, a infraestrutura cibernética a

bordo da plataforma em questão deve ser dedicada exclusivamente a fins

governamentais.

Conclusão

Embora estejam sendo realizados progressos em âmbito internacional, como o

Tallinn Manual 2.0, o relacionamento entre a Defesa Cibernética e a soberania

nacional é um assunto de relativa complexidade, com muitas nuances e linhas tênues,

conforme a abordagem de cada país, frente a cada caso concreto.

O Brasil avançou em relação a sua soberania interna, com a promulgação do

Marco Civil da Internet, mas ainda precisa avançar mais na área do direito

internacional em relação ao ciberespaço. Essa situação é vivenciada também pela

maioria dos países do mundo, o que motivou iniciativas como os trabalhos

desenvolvidos para a confecção da segunda versão do Manual de Tallinn.

Os aspectos abordados neste artigo apenas arranham a superfície do tema.

Sugere-se que, em necessidade de um estudo mais aprofundado, o manual

supracitado seja extensivamente estudado.

O conceito de que o espaço cibernético é um lugar global comum, com uma

suposta ausência de fronteiras, vem sendo superado pela comunidade internacional,

que tende a aplicar ao ciberespaço os mesmos princípios de soberania do Estado,

evitando gerar instabilidades e um decorrente aproveitamento oportunista de um

eventual vácuo de regulamentações internacionais.

O fato é que um dos princípios descritos na Doutrina Militar de Defesa

Cibernética, o Princípio da Dissimulação (ou, conforme a doutrina de outros países, o

princípio da não atribuição) é continuamente observado, evitando a atribuição de

ações cibernéticas por Estados, o que aumenta a liberdade de ação para a utilização

do ciberespaço, mesmo em operações conduzidas em tempo de paz. Essa prática

não é uma inovação; nos dias atuais, dificilmente um Estado irá declarar guerra

abertamente contra outro. Se fizer isso, enfrentará uma série de limitações que irão

tolher a sua liberdade de ação, fruto de convenções internacionais que regulam os

conflitos armados.

Cabe ao Estado, então, balancear a liberdade de ação que se pretende ter no

espaço cibernético com as restrições impostas com a eventual adoção de normas

aderentes ao direito internacional que regulem as atividades nesse espaço.

A soberania desse “lugar” é retratada, então, pela capacidade de atuar,

modificar e decidir dentro do ambiente cibernético. Assim, a proteção da soberania no

espaço cibernético depende da soma vetorial dessas duas componentes: de um lado,

o arcabouço jurídico adotado pelo Estado, com aderência a normas aceitas pela

comunidade internacional, e de outro as estruturas de que o Estado dispõe para

realizar as ações cibernéticas (proteção, exploração e ataque) necessárias à proteção

da sua sociedade e dos interesses nacionais.

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