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1 AS RELAÇÕES SOCIAIS DO TRABALHO COM A SAÚDE E A CIDADANIA: ESTADO ATUAL DO CONHECIMENTO DAS LER E DOS TRANSTORNOS DA VOZ Herval Pina Ribeiro 1 1 Professor Doutor em Saúde Pública. Docente colaborador e pesquisador da Universidade Federal de São Paulo/Departamento de Medicina Coletiva.

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AS RELAÇÕES SOCIAIS DO TRABALHO COM A SAÚDE E A CIDADANIA:

ESTADO ATUAL DO CONHECIMENTO DAS LER E DOS TRANSTORNOS DA VOZ

Herval Pina Ribeiro1

1 Professor Doutor em Saúde Pública. Docente colaborador e pesquisador da Universidade Federal de São Paulo/Departamento de Medicina Coletiva.

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Esse ensaio, elaborado para o seminário sobre as relações do trabalho e

saúde promovido pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em

Educação, toma como principal referência quatro oficinas de trabalho sobre

transtornos da voz que foram realizadas na Faculdade de Saúde Pública da

Universidade de São Paulo em meados de 2002 sob a coordenação do autor,

uma com a participação de dirigentes dos sindicatos de trabalhadores em

educação (Apeoesp, Sinpeem e Sinpro), telemarketing e teatro de São Paulo,

uma com representantes dos empregadores, uma com profissionais de

cuidados em saúde vocal e uma com pesquisadores. Delas resultou o livro “O

Grito do Silencio. Degradação do trabalho e transtornos da voz”, em fase de

publicação.

Essa experiência deu lugar ao Projeto de Notificação dos Transtornos da

Voz em curso, objeto de convênio celebrado pelo Ministério da Saúde com a

Universidade Federal de São Paulo, instituição onde presentemente trabalha o

autor.

Um dos objetivos do projeto foi conceber um questionário breve para ser

preenchido pelos próprios trabalhadores em seus locais de trabalho, capaz de

levar ao reconhecimento oficial desses transtornos como adoecimento coletivo

do trabalho e a políticas públicas de proteção e prevenção desses agravos e ao

seu diagnóstico e tratamento precoces.

O referido questionário está em processo final de validação iniciado em

julho de 2009 com sua aplicação junto a 150 professores de seis escolas da

rede estadual de ensino fundamental situadas na Zona Norte do município de

São Paulo. Validado ele permitirá conhecer a dimensão e a dinâmica desse

adoecimento coletivo do trabalho, facilitar o reconhecimento oficial pretendido e

trazer os sindicatos das categorias de trabalhadores atingidas e suas bases

para a condição de protagonistas ativos na sua resolução.

Os transtornos vocais certamente não são os maiores problemas de

saúde ocasionados pelas relações sociais do trabalho em educação e em

outras ocupações que utilizam a voz como instrumento de trabalho; mas é fato

que têm hoje a dimensão de um problema relevante em saúde pública e do

trabalho.

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Introdução

Uma revisão bibliográfica sobre o entrelaçamento das relações

sociais do trabalho com a saúde e a cidadania mostra a pobreza

dos estudos sobre o tema, pobreza que consegue ser ainda maior

no campo da educação.

Mesmo agora, quando as teses do neoliberalismo ruem e as

relações sociais do trabalho retomam o status de categoria

sociológica central de análise de fenômenos sociais relevantes e

passam a merecer atenção de pesquisadores acadêmicos em

saúde, ainda é pequeno o número de pesquisas que as priorizam

dentro da complexa rede de causalidade das doenças coletivas do

trabalho. Isto porque a maioria dos acadêmicos que atuam na área

de saúde do trabalhador, sem ter consciência disso,

invariavelmente perfila-se e age segundo os postulados ideológicos

do positivismo em ciências. Conseqüência: os profissionais de

saúde que eles formam e especializam para a universidade e para o

mercado, principalmente nas áreas de medicina e de engenharia

de segurança do trabalho, continuam atados ou adeptos da teoria

objetiva do nexo causal direto dos acidentes e doenças do trabalho

e, consequentemente, atem-se à possibilidade de comprová-lo

objetivamente.

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Assim, a causalidade dos adoecimentos e doenças coletivas

do trabalho permanece escondida porque presa às amarras do

trabalho em si, conceitualmente reduzida ao “risco” ou dispêndio de

energia humana “in loco” durante a jornada. Isto faz com que abram

- se espaços para conceitos e expressões imprecisos, como

“estresse” e “assédio moral” no trabalho, etc. Com isso, os

adoecimentos e doenças coletivas vêem-se esvaziados do seu

conteúdo heurístico, social e cotidiano, remetidas suas soluções

remediadoras, como são a assistência médica ou o contencioso

trabalhista e civil.

A historicidade das doenças do trabalho no Brasil.

Por essas e outras razões históricas a lista oficial de doenças

originadas pelas relações e divisão do trabalho ficou por largo

tempo restrita a quatro dezenas atribuídas sempre ao trabalho em

sí, ou seja, às condições materiais de trabalho, todas

invariavelmente ligadas às atividades industriais.

Somente em 1987 uma “nova” doença do trabalho, as lesões

por esforços repetitivos (LER), sem nexo causal tão estreito, foram

acrescidas à lista. Foi a primeira vez que uma doença do trabalho,

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aliás antiga, foi reconhecida oficialmente nas atividades de serviços,

inicialmente em instituições financeiras e de crédito.

Passaram mais quatorze anos para que os Ministérios da

Previdência Social e o da Saúde publicassem uma nova lista de

Doenças Relacionadas ao Trabalho: Manual de Procedimentos para

os Serviços de Saúde, oficializando conceitos novos e um número

expressivo de doenças do trabalho passíveis de notificação.

Registre-se também que do meado dos anos 70 para cá,

enquanto os números de acidentes do trabalho típicos (ainda que

maculados por enorme não notificação) decresceram, os de

doenças do trabalho tiveram uma ascensão notável da década de

80 para cá. Os acidentes despencaram de 1, 9 milhão (1976) para

500 mil (2007). Já os de doenças do trabalho, no mesmo período,

saltaram de quatro mil para 130 mil. Com isso a relação doença /

acidente do trabalho subiu de 0,3% em 1980, para 6% em 2004 e

para 30% em 2007.

São dados que permitem algumas inferências, se não

conclusões, como a não notificação histórica das doenças do

trabalho e agora a crescente notificação de adoecimentos e

doenças do trabalho atípicas. Convidam, também, a pensar porque

da elevada incidência recente de LER e de transtornos psíquicos

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em trabalhadores das mais diversas categorias e atividades

econômicas nas duas últimas décadas.

Morbidade e reestruturações produtivas e do trabalho.

O trabalho e seu valor, as condições de vida, a morbidade e

mortalidade modernas têm os pés fincados nas classes sociais que

a revolução industrial fez nascer. O espólio negativo ficou com a

classe trabalhadora, filha tão necessária quão malquista do

capitalismo industrial.

Desde essa revolução, acidentes e doenças típicas do

trabalho têm sido responsáveis por uma morbidade e mortandade

enormes. São aterradores os relatos sobre as condições de

trabalho das fábricas inglesas, francesas e americanas dos séculos

XVIII e XIX; todavia, por trás das más condições fabris sempre

estiveram relações sociais, tanto mais mórbidas quanto maior a

assimetria de poder entre as classes. No decorrer do século XX tais

relações começaram a melhorar e a violência explícita do trabalho a

diminuir; não por haver o capitalismo industrial se tornado virtuoso,

mas pela resistência organizada dos trabalhadores. Ainda assim,

milhões continuaram a adoecer e morrer do e no trabalho por todo o

século passado.

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O número de mortes por acidentes do trabalho no século XX

só foi menor ao de vítimas das duas grandes guerras e guerras

menores. Junte-se a essa tragédia a das mortes por doenças

infecto - contagiosas e parasitárias que dizimaram milhões de

pessoas no decorrer dos séculos findo e presente. Malgrado a

universalidade desses infortúnios, o maior número de vítimas em

termos absolutos e relativos sempre esteve na classe trabalhadora

e entre os mais pobres.

No entanto, não são o baixo valor monetário pago pelo

trabalho e o desemprego os responsáveis diretos pela elevada

morbidade e mortalidade dos trabalhadores; mas sabe-se serem

responsáveis pelas más condições materiais de vida e por uma

inserção social pior.

Salvo uma minoria da classe trabalhadora elevada à condição

de classe média, a maioria nada ou pouco possui além da força de

trabalho que vende; ao fazê-lo obriga-se a usar os conhecimentos e

experiências que tem em troca de salário e a consumir energia

física e intelectual no manuseio de materiais, instrumentos e

máquinas. Chama-se esse trabalho de “trabalho vivo”, em

contraposição ao “trabalho morto” das máquinas. É da junção dos

dois trabalhos que resulta a produção de bens, algo que tem valor

de uso e troca.

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Em meados do século XX, uma das grandes mudanças

ocorrida na indústria foi a introdução da microeletrônica que

possibilitou ao trabalhador operar simultaneamente várias máquinas

e momentos do processo produtivo fabril, elevando

exponencialmente a produtividade de cada trabalhador e o volume

do que é produzido. Uma das conseqüências benéficas da

automação microeletrônica foi distanciar o corpo do trabalhador das

máquinas e processos industriais com o que a exposição aos riscos

de acidentes e doenças típicas do trabalho despencou. Este ganho,

embora incidental, foi enorme em termos de preservação física do

corpo. Em contrapartida, aumentou o número de trabalhadores com

doenças não associadas materialmente com o trabalho, como a

hipertensão, infarto do miocárdio, úlceras duodenal e gástrica, LER,

transtornos psíquicos, etc. que passaram gradativamente a serem

reconhecidas como doenças do trabalho atípicas por não serem

conseqüentes aos riscos físicos, químicos e biológicos.

São formas coletivas de adoecer que têm a ver com as

relações sociais internas e externas do trabalho contemporâneo.

Internas, porque agora as relações são mais “nervosas” e tensas no

trabalho dada à preocupação em manter o emprego diante da

ameaça permanente de ser despedido, à intensificação da

produção, à pior remuneração e controle mais rígido embora mais

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impessoal do trabalho; externas, diante das incertezas do mercado

de trabalho e da crescente precariedade e informalidade das

relações contratuais, pelo desemprego, não emprego e desemprego

que tencionam a vida social e familiar.

Mostram as estatísticas vitais que os que vendem força de

trabalho adoecem mais e vivem menos; porém, como no passado, o

patronato não se preocupa com a saúde do trabalhador, com a

preservação de postos de trabalho, nem com oferta de emprego. É

da essência do capitalismo esforçar-se para reduzir o número de

empregados, o valor do trabalho para extrair mais trabalho de cada

um, diminuir encargos e negar ou sonegar direitos. Para isso aí

estão a automação e o formidável exército de reserva de mão de

obra para repor os que se rebelam, adoecem ou morrem.

A venda da força do trabalho no capitalismo define a

expropriação de tudo: do trabalho, da saúde e do tempo de vida.

Em que classe social mais ocorre doenças infecto - contagiosas e

parasitárias? Em que população acontece coletivamente LER,

transtornos psíquicos e da voz?

As inovações tecnológicas do maquinário e da

administração do trabalho sempre caminharam juntas e paralelas à

intensificação do trabalho vivo, humano. Ao reduzir o tempo morto

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do maquinário, elas induzem à redução do tempo morto do trabalho

vivo, ou seja, as pausas entre uma tarefa e outra.

Os conteúdos e exigências corporais do trabalho

contemporâneo mudaram porque a automação micro-eletrônica

reduziu muito o esforço muscular bruto, de elevado gasto calórico;

porém, a redução energética das tarefas fabris não deve ser vista

como redução de exigências do labor, na medida em que o trabalho

com esforço físico foi substituído por exigências de outro tipo a

outros órgãos e centros vitais, como o da atenção, da emoção, da

audição, da fala, da visão, etc; hoje, a morbidez do trabalho recai,

pesadamente, sobre os órgãos que comandam a vida de relação,

isto é, o psiquismo, a subjetividade, a afetividade e o

comportamento social.

O conjunto de mudanças das relações sociais que

caracterizou os ciclos anteriores de desenvolvimento do modo de

produção capitalista não parou com o taylorismo ; continua na

presente reestruturação da produção e do trabalho, caracterizada

pela automação micro-eletrônica que, como nas reestruturações

anteriores, pesa nos modos de viver, adoecer e morrer dos

trabalhadores e não trabalhadores, embora de modos quantitativa e

qualitativamente diferentes.

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Nesse espaço de menos de cem anos, a vida tornou-se quase

que totalmente urbana, embora suburbana para a classe

trabalhadora; a expropriação do tempo do trabalho foi acrescida

com a expropriação do tempo de transporte de ida e volta do

trabalho, o que fez com que diminuíssem as horas de lazer; o

próprio lazer foi transformado em tempo de trabalho; mesmo as

horas de refeições foram usurpadas, posto que realizadas dentro ou

nas redondezas do trabalho. E é o tanto que se ganha com força de

trabalho vendida que determina onde morar, o que se pode comer,

como dormir, como e quando amar e quantos filhos ter.

Por isso, o tamanho da família encolheu, o Estado

institucionalizou a escola e antecipou-a com a creche e a pré-escola

para que a mulher partisse para o trabalho. Os outros tempos da

vida foram tragados pelo ir e vir para o trabalho. Quando não se

está trabalhando, transportando-se ou comprando coisas para se

poder trabalhar, se está à procura de trabalho.

A despeito da produtividade ter crescido duas mil vezes em

cem anos (Landes, 1994) a jornada formal de oito horas continua

nominalmente a mesma e no Brasil só foi fixado nos anos trinta do

século passado. De lá para cá, em vez de diminuir, as horas e a

intensidade do trabalho cresceram, levando à sobra de mercadorias

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sem vida e de mercadorias vivas sob a forma de força de trabalho

excedente.

Hoje, 65% dos trabalhadores dos países industrializados

estão nas atividades econômicas de serviços em decorrência da

automação crescente da produção industrial. Invariavelmente mal

remuneradas tais atividades são realizadas em escritórios, lojas e

salas de diferentes tamanhos. A similaridade de suas tarefas é de

tal ordem que ao discorrer sobre a degradação do trabalho

contemporâneo - que ele sustenta ser generalizada e independer da

elevação da escolaridade - Braverman (1981) designa esses

trabalhadores, genericamente, de “trabalhadores de escritório”.

O trabalho industrial, que conserva 25% da força de trabalho

ativa mudou muito em conteúdo, organização e formas de controle

nos últimos 50 anos, devido à flexibilidade dos processos e relações

sociais do trabalho, à produção descentralizada, parcelada e

diversificada em empresas de diferentes tamanhos, situadas em

regiões e países estrategicamente escolhidos, em função da

disponibilidade de matéria prima e, sobretudo, de mão de obra

barata e mal organizada. A automação também chegou ao campo e

acelerou a expulsão de trabalhadores; nos países industrializados o

êxodo foi tão grande que não mais que 10 % da força de trabalho

estão na área rural.

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Acuados pela automação, desconcentração da produção e

pela terceirização e informalidade das relações de emprego - que

abriram espaço para as políticas neoliberais nas últimas décadas -

os trabalhadores estão na defensiva, razão das empresas se darem

ao luxo de exigir-lhes crescente escolaridade, pluralidade de

experiências, higidez e, sobretudo, docilidade. O resultado é a

competição desenfreada, o individualismo, a insegurança no

emprego e uma seleção na entrada do mercado de mão de obra

que beira a eugenia.

Diante dessa conjuntura desfavorável e prolongada, como

haveria de adoecer os trabalhadores, se não prematuramente, de

mal-estares e doenças que expressam as tensões e opressões no e

do trabalho que arrostam para sua vida familiar e social?

No Brasil, no curso dos anos noventa e nos primeiros anos do

milênio, aconteceram reformas conservadoras da administração do

Estado e da Previdência Social, além da privatização de empresas

estatais estratégicas no campo da comunicação e mineração,

adoção de legislação permissiva para facilitar que “organizações

sociais” obtivessem financiamento público quase sem ônus e

concessões para administrar e operar instalações, serviços e bens

públicos, entre eles, os de saúde, educação, estradas e transportes

urbanos.

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No entanto, o balanço que se faz hoje sobre as políticas

neoliberais no mundo é desfavorável. Tiveram êxito no controle da

inflação e ganharam o imaginário das populações assalariadas,

iludidas com a queda da inflação e a possibilidade de controlar os

próprios gastos na contramão da oferta abundante de mercadorias

e de crédito bancário.

Enquanto isso, a concentração de renda, as desigualdades

sociais, o desemprego, o subemprego e a informalidade do

emprego aumentaram, a degradação do trabalho cresceu, os

direitos do trabalho e previdenciários minguaram e os sindicatos e

movimentos populares enfraqueceram. Sempre foi preciso os

trabalhadores se movimentassem para que os transtornos de saúde

devidos à produção sejam levados em conta pelos médicos, órgãos

técnicos do Estado e pelo patronato e passem, nessa ordem, a

serem classificados e gerarem direitos.

A indiferença para com a saúde dos trabalhadores deve ser

objeto de uma leitura que não leve a estigmatizar patrões, gerentes

e chefes e transformar o conflito de classe em demanda judicial

individual, de caráter indenizatório, com o que ação direta da

direção sindical é repassada à sua banca de advogados. No

entanto, sem desculpá-los, é preciso ficar claro que a postura

patronal e da gerência têm a lógica sistêmica do capitalismo e da

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ideologia da classe burguesa que quer fazer com que a violência da

produção e social pareça natural.

Na visão patronal, dos materiais e equipamentos à pessoa do

trabalhador enquanto no trabalho, tudo é meio e instrumentos de

produção e propriedade sua. Os trabalhadores são tidos como parte

de uma engrenagem, presos, histórica, culturalmente e por

necessidade de sobrevivência a relações sociais de excessiva

subalternidade.

LER: uma doença emblemática.

Para resgatar os elementos dessa subalternidade histórica o

autor toma as LER como emblema das relações sociais do trabalho

contemporâneo. A inflexão do número de acidentes e doenças

típicas para o de adoecimentos e doenças atípicas do trabalho,

puxada de um lado pela automação e de outra pelas LER, originou

o deslocamento dos padrões causais objetivos clássicos; assim, as

doenças típicas do trabalho mediadas causalmente por agentes

físicos, químicos e bacteriológicos, como poeiras, gases e vapores,

calor, ruído, peso, substâncias tóxicas, parasitos, bactérias e vírus,

cederam lugar às doenças atípicas do trabalho, onde as LER se

situam como doença emblemática de transição, acompanhada por

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transtornos psíquicos e outros relacionados menos com as

condições materiais do trabalho em si e mas com as condições

imateriais por trás delas. Nem por isso, historicamente, doenças

típicas e atípicas do trabalho deixaram de ser contestadas pelo

patronato em juízo ou fora dele.

Embora a causa imediata das LER seja atribuída, com boa

dose de razão, aos esforços repetitivos, de fato, não são causas,

mas mediadores causais; ou seja, a causalidade das LER e de

qualquer doença do trabalho típica ou atípica não se resume a

mediadores causais. O que diferencia um grupo do outro é a

materialidade, proximidade e efeitos qualitativamente diferentes dos

mediadores. No caso das doenças típicas do trabalho essa

presença no ambiente de trabalho é ostensiva, a exemplo da

intoxicação por vapores ou ingestão de chumbo (saturnismo) ou da

perda da elasticidade do tecido pulmonar pela inalação de poeira de

sílica (silicose),

Falta às LER e às outras doenças atípicas do trabalho

materialidade objetiva, vale dizer, passível de demonstração

experimental. É essa não materialidade que impede o diagnóstico

médico categórico das doenças atípicas do trabalho; isto é, o

médico, em sua prática clínica prenha de positivismo, não tem como

estabelecer relação linear de causa e efeito. Os que conseguem

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escapar desse pragmatismo presumem estar diante de uma doença

do trabalho com base na história do trabalho do adoecido e em

inferências epidemiológicas; ou seja, no conhecimento sobre as

doenças coletivas do trabalho nas várias categorias de

trabalhadores.

A globalização das LER e o fato inusitado de ser a primeira

vez que se reconhece a atipicidade de uma doença do trabalho e

suas implicações no campo dos direitos trabalhistas e

previdenciários são elementos que reforçam a tese de que a

inflexão da morbidade na classe trabalhadora - onde as LER

funcionam como emblema ou signo das relações sociais do trabalho

contemporâneo – têm a ver com as profundas mudanças dessas

relações sociais no mundo do trabalho de hoje.

Ou seja, as LER sinalizam um modo paradigmático coletivo de

adoecer da classe trabalhadora que exige um olhar mais agudo

sobre as relações sociais do trabalho e de sua importância na perda

da saúde; paradigma e olhar que permitem entender as demais

doenças coletivas e atípicas do trabalho contemporâneo, como são

os transtornos psíquicos, da voz e das demais funções orgânicas. A

violência explícita anterior deu lugar a uma violência mais sutil,

porém mais alargada das relações sociais do trabalho; essas, sem

serem visíveis consomem o corpo por dentro; isto é, comprometem

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antes a função psíquica, a afetividade e a subjetividade até chegar,

quando chegam, às funções orgânicas mais à vista.

No Brasil, certamente, já na década de setenta ocorriam LER

na indústria, ainda de base eletromecânica e que acelerara o ritmo

e estendera a jornada de trabalho muito além das oito horas nos

anos conhecidos como do “milagre econômico brasileiro”. Vale

lembrar que a intensificação da produção e a extensão da jornada

na época engrossaram a insatisfação dos trabalhadores e serviram

de estopim para as greves dos metalúrgicos do ABC em 1978.

Observe-se o entrelaçamento histórico, econômico, político e

social na trajetória das LER enquanto doença coletiva do trabalho:

misturam-se: o “desconhecimento” da patologia apesar de sua

antiguidade e de haver aumentado extraordinariamente o número

de casos nos países que fizeram reestruturações produtivas e do

trabalho; políticas de pessoal das empresas que demitiam por

improdutividade sem levar em conta se o trabalhador está doente e

por que; eliminação de postos de trabalho em função da

automação; ocultação patronal da doença; enquadramento

insuficiente das doenças do trabalho pelo Estado; resistência por

parte da Previdência Social em conceder os “benefícios” devidos;

repressão no trabalho; sensação de impotência política e medo dos

trabalhadores.

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A constatação de um número expressivo de eventos mórbidos

coletivos em categorias de trabalhadores de diversas atividades é o

resultado de um olhar novo, epidemiológico, mas, também, de uma

inferência cognitiva. Não obstante esse olhar e essa inferência não

esgotam a questão da causalidade das doenças na classe

trabalhadora.

Com isso se quer dizer que a causalidade das LER e, por

extensão, dos demais transtornos coletivos da saúde nos

trabalhadores contemporâneos vai além da dedução lógica e óbvia

sobre a existência da relação entre o trabalho e alterações

biológicas e funcionais; também implica na negação da teoria

causal objetiva, escopo teórico da medicina positivista que sustenta

que a causalidade das doenças se esgota na identificação material

de causas passíveis de comprovação objetiva.

Toda doença, as do trabalho entre elas, têm causas. A

rejeição não é ao princípio da causalidade, mas à exigência formal

do empregador privado e do Estado fazem ao trabalhador ara que

comprove uma materialidade que pode não existir.

Não é fácil discutir uma questão como essa numa sociedade

saturada pelo positivismo das ciências naturais e pela lógica

matemática que os quer ver em tudo que é fenômeno social e quer

fazer valer, a ferro e fogo, as leis e regras estribadas nos princípios

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positivistas da Infortunística. Proceder desse modo é negar o que

os sentidos do observador não captam; isto é ignorar a história, a

ciência, a história da ciência e a história da razão.

Nos últimos cinco anos observam-se mudanças de postura,

de regulamentação e obrigações quanto às notificações de

acidentes e doenças do trabalho, como a instituição pela

Previdência Social Pública do Nexo Técnico Epidemiológico

Previdenciário (NTEP). Em que pese a impropriedade da

expressão, o INSS passou a conceder o benefício acidentário sem

a necessidade da Comunicação de Acidentes do Trabalho (CAT).

Com isso, 136 mil benefícios dessa espécie foram concedidos em

2007. Ressalte-se que em apenas um ano, o número de doenças e

acidentes do trabalho cresceu em 27,5%, passando de 512 mil

(2006) para 653 mil (2007). Esse aumento se deveu aos 136 mil

casos de doenças, 92 mil referidas ao sistema osteo-muscular e

tendinoso e aos nove mil por transtornos psíquicos.

Os transtornos da voz: teoria e práticas

A fala não é genética; aprende-se a falar com os outros. É

uma invenção humana sem par; fruto de uma aprendizagem

coletiva é, provavelmente, o atributo sócio-cultural histórico que

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mais intimamente está ligada à evolução humana e que mais

distingue a espécie. Com a fala o homem ampliou seu espaço físico

e cognitivo e elevou-se à condição de humanidade. Expressão

racional da voz, a fala é a maneira mais direta, embora imaterial, do

homem melhor exteriorizar suas necessidades, idéias e

sentimentos, resultados da interação do corpo com a natureza e o

meio social que ela ajudou a construir.

Os órgãos envolvidos na produção da fala e linguagem não

têm como função precípua produzir a voz; todos se incumbem de

funções mais essenciais à sobrevivência, como a respiração, a

mastigação e a deglutição; nem mesmo a laringe, trecho pequeno

do tubo de passagem do ar inspirado e expirado, tem a função

exclusiva de produzir a voz.

O fato é que mais recentemente a voz, de meio de

comunicação e defesa, foi transformada em instrumento de trabalho

degradado e a fala passou a ser vendida como mercadoria. Mais do

que um problema individual e localizado de saúde, os transtornos

coletivos da voz são manifestação emblemática de um adoecimento

social preocupante que precisa de acuidade indiciária para melhor

levar à sua causalidade.

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Sem refletir e teorizar sobre a experiência cotidiana do

trabalho é impossível compreender fenômenos sociais, como os

adoecimentos e doenças coletivos como esse.

Na 10ª versão de sua Classificação Internacional de Doenças,

a Organização Mundial de Saúde (OMS/CID-10, 1993) acrescentou

ao titulo antigo o adendo “.e problemas relacionados com a saúde”,

ou seja, passou a reconhecer oficialmente transtornos da saúde ou

adoecimentos que não configuram o estado de doença. Portanto,

tê-los não é estar doente.

Adoecimento é uma alteração da saúde sem perturbações

morfológicas e funcionais importantes. Costuma ser um estado mais

subjetivo que objetivo, isto é, há mais sintomas que sinais exteriores

de sofrimento. Às vezes até para seu portador é um evento

impreciso, Falta-lhe causas e nexos causais explícitos e uma

história orgânica preconizada pelo modelo biológico hegemônico de

doença. É mais fugaz, repetitivo, tem baixa densidade orgânica e

insignificante repercussão morfofisiológica e guarda distância da

morte; mas tem proximidade com a doença, vez que tem

causalidade e conseqüências, como sensações orgânicas

desagradáveis, o desânimo e alterações do humor e do psiquismo e

dor física de baixa intensidade. Como se lê, caracteriza-se mais por

sensações subjetivas que objetivas e que não obrigatoriamente

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evoluem para alterações morfológicas e funcionais, as quais

configuram o estado de doença explícita.

É a coletivização, isto é, a passagem dessas sensações

desagradáveis do indivíduo para o coletivo que dá ao adoecimento

e à doença o caráter de fenômeno social relevante que requer ser

interpretado histórica e sociologicamente por conter significados

que extrapolam o sofrimento pessoal.

Os adoecimentos e doenças coletivas são metáforas da

sociedade na qual se vive, como já dizia Virchow (apud Rosen,

1994) e dizem Sontag (1964), Berlinguer, (1985) e Tronca (2000);

ou signos como prefere Bakthin (2004). Metáforas e signos

expressam fenômenos sociais que para serem corretamente

interpretados, precisam reflexão para serem socialmente

valorizados e enfrentados.

No caso dos transtornos da voz a primeira indagação que vem

à mente é o porquê da reação funcional exacerbada, às vezes,

catastrófica, de órgãos humanos na presença de estímulos de baixo

poder de provocação, como a fala; reação que a partir de dado

momento percebe-se ocorrer maciçamente em categorias de

trabalhadores, emprestando-lhe caráter de problema social objetivo.

O intrigante não é a reação orgânica que é sempre individual,

mas a mesma reação com sintomas e sinais referidos aos mesmos

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órgãos, quase que simultânea no tempo e lugar em muitos

trabalhadores, simulando uma epidemia e endemia, embora sem

transmissibilidade objetiva. Pior é que podem mudar para o estado

de doença com lesões anatômicas e alterações fisiopatológicas

objetivas. Se não há infecciosidade como e porque de sua

coletivização?

Sem desmerecer os possíveis méritos das investigações para

compreender as respostas do organismo humano às exigências do

trabalho, a busca de causas das doenças que essas provocam tem

se prestado incontáveis vezes a outros fins que não os da proteção

ou preservação da saúde dos trabalhadores, pois nesses tempos de

exclusão a fixação de embargos para o trabalho está na ordem do

dia. São exigências velhas e novas com vistas à produtividade e ao

rebaixamento do custo da força de trabalho.

A detecção antecipada de alterações morfológicas ou

funcionais e sua interpretação positiva dependem de sensores e

censores que, invariavelmente, são profissionais de saúde. No

entanto, o desiderato desses profissionais ao antecipar diagnósticos

das fragilidades orgânicas e da mente em trabalhadores, pouco

importa se verdadeiras ou falsas, necessariamente não vai ao

encontro da proteção da saúde dos que trabalham, mas da garantia

da produtividade de cada um e da produção das empresas e

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organizações. Conforme a orientação patronal que recebem,

discriminam asmáticos, homossexuais, hemofílicos, deficientes

físicos, mulheres, idosos, disfônicos, etc., havidos como

insuficientemente saudáveis e presumidos como pouco produtivos.

Ao fazê-lo, recusam a diversidade humana e descartam as pessoas

mais sensíveis que ao adoecer precocemente revelam a morbidez

do trabalho. Resultado: ao invés da valoração social dos

adoecimentos e doenças coletivas, nega-se o direito ao trabalho.

São comportamentos universais das empresas que desnudam

preconceitos e se aproximam de uma política de expurgo. È uma

política eficaz, socialmente aceita ou tolerada, cujos substratos são

a insensibilidade patronal e a sujeição da classe trabalhadora,

comuns às sociedades de classe, desde as que se assentavam na

exploração do trabalho escravo e servil à que modernamente se

assenta no trabalho assalariado e subalterno.

Por vezes, o expurgo é acobertado por um discurso sanitário:

o de que as empresas excluem e selecionam para proteger o

trabalhador pouco saudável; uma falsidade ideológica, com o que

asmáticos e disfônicos são impedidos de trabalhar onde haja

poeira; mulher e idoso não podem carregar peso; hemofílicos não

podem se empregar em laboratórios e serviços de radiologia, etc.

Subtraem-se os motivos da presença desses e de outros agentes

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nocivos do trabalho e se empresta caráter de patologias às

diversidades biológicas humanas em populações; ou seja, os

termos da equação são invertidos: naturalizam-se as más

condições e a nocividade da produção e do trabalho e socializam-se

as perdas advindas do adoecimento e da exclusão. Isto fica mais

claro nos países da periferia do sistema capitalista onde as

condições de trabalho são mais predatórias.

Assim, quem não é acaba rotulado de susceptível,

predisposto ou inadaptável porque cedo ou tarde o corpo reage de

algum modo ante uma condição que reconhece como nociva.

Adoecido, o trabalhador nega o adoecimento a si e aos que lhe são

próximos por temor de ser mandado embora. Contudo, a

persistência, repetição e exacerbação de sintomas e sinais de

sofrimento terminam em ausências ao trabalho e em queda da

produtividade. Então o adoecimento faz-se socialmente visível.

Ao se manifestar da mesma forma em categorias de

trabalhadores que têm em comum fazer uso de órgãos e funções do

corpo como instrumento direto de trabalho, o adoecimento adquire

novo significado. O sofrimento individual e disperso faz-se público,

como os transtornos da voz em professores, operadores de

telemarketing, cantores comunicadores e atores; como as LER em

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bancários e categorias afins e como os transtornos psíquicos em

todos.

Ao socializar-se, o adoecimento transcende o registro formal;

os dados estatísticos, frios e manipuláveis de organizações,

empresas e institutos de previdência terminam por abrir espaço à

inquietude social, ganham outro sentido e destino. Despertos pela

coletivização do adoecimento percebida nas ante-salas dos

serviços médicos periciais e consultórios, os adoecidos, aos pouco,

tomam consciência da violência do trabalho da qual são vítimas,

juntam-se e procuram construir perspectivas para além do cuidado

individual.

A reação orgânica inicial e a perplexidade são substituídas por

uma postura de inconformismo coletivo que ajuda promover

identidade entre os sujeitos em busca da resolução comum dos

seus problemas. Foi o que gerou o projeto de notificação

compulsória dos transtornos da voz em curso.

O conhecimento que o uso excessivo ou imoderado do corpo

ou de parte dele faz adoecer é ancestral e incorporou-se ao senso

comum. É sabido que esse tipo de uso provoca mal-estar e chega a

causar alterações morfológicas e a prejudicar as funções de

qualquer órgão, como no caso dos envolvidos na produção da voz.

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Porém, os aspectos clínicos individuais dos transtornos da voz

não são os objetivos do projeto; seus objetivos são a busca da

causalidade de sua coletivização e significados sociais, simbólicos

ou não, porque o imoderado uso da fala ainda que seja importante

não é fator mórbido determinante, mas subseqüente.

No Brasil, até a segunda metade do século XX, os transtornos

da voz eram tidos como fortuitos e vistos individualmente;

começaram a merecer alguma atenção de administradores públicos

do ensino com o crescimento do número de professores afastados

de salas de aula. Desde então esses transtornos vêem se

constituindo em crescente problema coletivo de saúde dos

professores, mas também social: Como substituir o professor? o

que fazer com o aluno menor da escola pública sem aula?

Na última década o problema ganhou corpo e atingiu uma

categoria nova, a de operadores de Telemarketing. Como sempre

as acusações caíram sobre os adoecidos, suspeitos de não querer

trabalhar, uma acusação habitualmente estendida ao conjunto dos

trabalhadores.

De hábito, na condição de empregadores, o Estado e as

empresas se escusam da responsabilidade pelo adoecimento dos

seus empregados. A relevância vai para a ausência ao trabalho e a

preocupação gerencial volta-se para a demora do retorno, para as

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despesas com as horas não trabalhadas e para a queda da

produtividade; segue-se a elaboração de normas de controle mais

rígido da evasão de trabalho. É a lógica histórica das sociedades de

classe e do trabalho transformado em mercadoria.

Apesar de quatro décadas de registro aleatório dos

transtornos coletivos da voz no professorado público, o numero de

pesquisas centradas no fenômeno de sua coletivização não chega a

três dezenas. Recentemente têm dado lugar a dissertações de

mestrado e teses de doutorado na categoria dos professores e em

algumas outras, como a de operadores de telemarketing, atores e

locutores.

Com poucas exceções, as abordagens têm seguido o escopo

da medicina ocupacional, com preocupações em identificar “fatores

de risco“ e nexos causais mais ou menos diretos, mensurar o

ausentismo e operacionalizar intervenções tópicas. É

compreensível que seja assim, numa sociedade ideologicamente

comprometida com a religiosidade do trabalho.

Transformados em problema de saúde coletiva, do trabalho e

social, os transtornos da voz começaram a ser objeto de relatos em

congressos e seminários de especialistas como “doença

ocupacional”. Classificá-los dessa maneira equivale considerá-los

inerentes ao exercício de ocupações, com o que se escamoteia a

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existência e determinação das relações sociais que obrigam que as

tarefas sejam realizadas como são. Assim naturalizados, os

transtornos da voz passam a ser de responsabilidade do

trabalhador por ter escolhido a ocupação, não se cuidar, utilizar a

voz inadequadamente, ser “susceptível” ou “predisposto”.

Não obstante, não há nada de novo ou estranho no fato de

órgãos, tecidos e células reagirem aos estímulos internos e

externos. Esteja-se ou não no trabalho, eles se comportam

conforme suas características morfológicas, fisiológicas e as

exigências do trabalho cotidiano. Fazem-no por conta da economia

orgânica, de especificidades funcionais e, por certo, em defesa do

indivíduo, da espécie e contra o que o homem é hoje: o homem do

trabalho assalariado; não por querer, mas por precisar trabalhar.

O mito da falsidade de caráter do trabalhador está muito

presente, particularmente agora quando adoecimentos coletivos

ganham dimensões que os fazem parecer epidemias e endemias

comportamentais. O aparato administrativo e técnico do sistema é

parte interessada na permanência desse mito; mas quem faz da

medicina uma prática é o doente com sua dor e não quem vive dela.

O fato de trabalhadores de várias categorias adoecerem

coletivamente de um aparelho orgânico usado como ferramenta de

trabalho sugere pertencimento de classe, pois somente os que

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vivem do trabalho adoecem coletivamente do trabalho; já o uso do

corpo como força de trabalho e mercadoria afirma a condição de

pertencimento de classe submetida. A diferença de concepção

entre doença natural e doença social não é pequena nem

meramente semântica; enxergar naturalidade em doenças do

trabalho é negar sua causalidade social.

Em uma sociedade onde ecoa a plenos pulmões a voz do

capital, ninguém imagina extinguir as “ocupações periféricas” (para

não chamá-las marginais) surgidas uma atrás das outras. Depois, o

Estado brasileiro acostumou-se a reforçar a violência do trabalho:

não busca soluções duradouras para os problemas sociais e do

trabalho; atenua-os com programas assistenciais e com a aplicação

de leis e normas que por vezes torna moralmente aceitável o que

não é. Veja-se a regulamentação de ocupações transitórias, como a

de moto-frete, telemarketing e do comércio ambulante que se

alargam e perenizam.

A degradação do trabalho contemporâneo é tanto maior

quanto mais baixa a importância social do trabalho e sua posição na

hierarquia das ocupações. A degradação do trabalho e do seu valor

é óbvia, mas permanece escondida sob o discurso enganoso da

baixa qualificação dos que as ocupam. Acoberta-se a amoralidade

do subemprego e das ocupações anômicas, como as de catadores

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de lixões, ambulantes, motofrete e empregados em segurança

privada sob o discurso enganoso de que todo e qualquer trabalho

dignifica. Sabe-se que as condições de trabalho nessas ocupações

são deploráveis. As estatísticas mostram que uns são vítimas

contumazes de acidentes, outros de transtornos psíquicos, da voz e

LER e outros de lesões dolosas. E assim se estabelece hierarquias

mórbidas do trabalho e modos diferentes de adoecer e morrer.

Sem negar os avanços do conhecimento nas áreas da

otorrinolaringologia, fonoaudiologia e fisioterapia, o inusitado não

está no campo biológico e nas modificações fisiopatológicas

responsáveis pelas alterações da voz; nem nos meios diagnósticos

e terapêuticos. Os profissionais de saúde os conhecem bem e usam

tais conhecimentos em suas práticas ao tratar individualmente os

adoecidos. O inusitado está na expansão desses transtornos e em

sua causalidade, afirmada aqui como complexa por envolver

transformações do mundo da produção e do trabalho que o

exercício clínico não alcança. São mudanças que atuam nas inter-

relações sociais e pessoais, com interferência dos centros

neuropsíquicos, envolvendo as áreas de cognição, emoção e

linguagem. Agem mais insidiosamente sobre a mente do que sobre

os órgãos diretamente envolvidos na emissão de sons e da fala.

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No entanto, em geral, os transtornos da voz são discutidos tão

somente como alterações da laringe ou, se muito, de órgãos

diretamente envolvidos na sua emissão, o que faz com que sejam

vistas, apenas, sob o ângulo das disciplinas médicas e como

patologias individuais. São raras as produções científicas nessas

áreas que colocam a preocupação com a rede de causalidade dos

transtornos coletivos da voz. As causas das alterações são inferidas

e o trabalho só é lembrado quando o adoecido se refere ao uso da

voz como instrumento de trabalho. Trata-se,porém, de hipótese não

passível de comprovação objetiva, embora, com base em estudos

epidemiológicos quantitativos haja se chegado à conclusão óbvia

que o uso excessivo ou inadequado da voz, a inalação de

microorganismos (ácaros, bactérias e vírus), de poeiras, o ar

confinado e a permanência em temperaturas desconfortáveis e

ambientes barulhentos atuem como agentes provocadores,

precipitantes ou associados.

Não escaparia aos professores de sala de aula que seus

transtornos de

voz tem relação com o trabalho, um conhecimento empírico secular

e universal que faz parte do senso comum. Por certo melhoraram o

acesso aos serviços médicos, a qualidade do diagnóstico, o

tratamento e o prognóstico dos transtornos da voz, ao menos para

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os professores dos estados da federação mais desenvolvidos e das

cidades maiores onde existem tais serviços. As lesões mais graves,

como laringite crônica, pólipos, nódulos e câncer parecem que

estão sendo mais prontamente atendidas. Contudo, em termos de

proteção da voz e da prevenção coletiva, nada ou pouco se fez ou

faz; isto apesar desses transtornos ter aflorado faz quase meio

século entre professores das escolas públicas brasileiras.

As razões da omissão são conhecidas: o empregador público

ou privado sempre está mais preocupado com a presença do

trabalhador no trabalho do que com sua saúde. E sobram

professores, como sobram candidatos a operadores em

telemarketing, que são as categorias com maior número de

trabalhadores que referem transtornos da voz os quais passaram a

constar da pauta administrativa das organizações estatais e

privadas quando as ausências e afastamentos do trabalho

apontaram nas estatísticas.

É de se Imaginar os contratempos de um professor disfônico

em sala de aula. Para ele, um sofrimento; para os alunos, um

incômodo; para o empregador, um problema. Por parte deste a

intervenção, de hábito, se dá no campo normativo visando controlar,

ao máximo, as ausências ao trabalho. Esta é, de resto, a forma de

atuação dos serviços médicos periciais, estatais ou não.

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Conclusões possíveis

Sustenta-se nesse ensaio que os transtornos coletivos da voz

têm sua causalidade nas relações sociais do trabalho determinadas

pelo modo de produção; ou seja, não ocorrem tão somente devido

às exigências do trabalho em si, mas, ao trabalho tomado como

categoria sociológica de análise do modo capitalista de produção

sob o qual se vive desde a revolução industrial e burguesa.

Como tal, o trabalho é mais do que o trabalho abstrato,

trabalho em si; envolve relações sociais dentro e fora da produção

que são históricas, contraditórias, dialéticas e, por conseguinte,

mutáveis; ou seja, abarca o espaço temporal, social, orgânico,

mental, cognitivo, afetivo e material dos que trabalham.

A mutabilidade das relações sociais decorre do antagonismo

entre empregadores e empregados em um entrechoque sem

resultado linear previsível e sem tempo e ritmo certo. Só o

distanciamento no tempo permite perceber tendências e rumos

sugestivos da decomposição e recomposição das classes sociais

polares e satélites.

Na fase atual do capitalismo, a bipolaridade de classes teve

nos últimos cinqüenta anos seus limites borrados pela tendência

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mais forte do Estado favorecer o capital com políticas e ações que

oscilam entre as de inclusão social real ou aparente de estamentos

e segmentos de classe e as de exclusão que atingem a classe

trabalhadora de todo mundo, sobremaneira a dos países situados

nas bordas do sistema capitalista globalizado.

Não são políticas e ações improvisadas; tem bases e corpo

doutrinário e ganharam consistência e fôlego com a derrocada do

“socialismo de Estado” que vigorou no bloco de países da Europa

Oriental, após a qual o capitalismo e a burguesia se universalizaram

aparentemente de vez e o dinheiro, o poder e a propriedade,

inclusive da ciência e da tecnologia aplicadas, concentraram-se nas

mãos de algumas “famílias” envolvidas em toda espécie de

negócios lícitos e ilícitos.

Quando trabalhadores de várias categorias adoecem

coletivamente e guardam entre si atributos comuns de trabalho,

como o uso de instrumentos materiais e do próprio corpo, fazendo-o

objeto de exigências físicas e psíquicas desproporcionais às suas

capacidades por força de relações de subalternidade na produção e

de classe na sociedade, a hipótese é que tais relações estejam

envolvidas na causalidade desse adoecimento; uma causalidade

que transcende as características e peculiaridades orgânicas e

mentais individuais e as exigências materiais e organizacionais da

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produção e do trabalho em si. É a similaridade, proximidade e,

paradoxalmente, a diversidade de tantos elementos que explicam

porque numa mesma categoria muitos trabalhadores ressentem-se

e vão embora, outros ficam e adoecem lentamente, outros

tardiamente e outros não adoecem.

A intenção desse ensaio é expor a morbidez processual das

relações sociais em algumas ocupações que tem na voz um dos

instrumentos imprescindíveis de trabalho. Esta é a razão principal,

não única, de recorrer à categoria sociológica trabalho, ou melhor, a

categoria relações sociais do trabalho por ser a que tem capacidade

explicativa suficiente para desvendar a causalidade dos

adoecimentos do trabalho contemporâneo.

Portanto, esse ensaio não cogita comprovar nexos causais

diretos e indiretos do trabalho com o adoecimento, objetivos

precípuos de métodos experimentais ou epidemiológicos clássicos,

invariavelmente voltados para identificar e mensurar fatores ou

variáveis de risco, suspeitos de relação mais ou menos linear de

causa e efeito, segundo o paradigma positivo da ciência moderna.

Sustentar que a causalidade dos adoecimentos coletivos do

trabalho contemporâneo - e não só os da voz - padecem de

materialidade não significa que inexistam mediações causais

materiais e imateriais como podem ser o pó de giz, o ruído em sala

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de aula, o duplo emprego e jornadas excessivas de trabalho. Não é

de agora que se sabe que pó de giz, condições materiais ruins de

trabalho e trabalhar demais não fazem bem à saúde; muito menos a

quem, por obrigação usa a voz como ferramenta de trabalho, fala e

trabalha muito falando por necessidade de subsistência. Em termos

de uma epistemologia indiciária, o que se especula é a razão da

presença do pó de giz, do ruído em sala de aula, do duplo emprego

e jornada de trabalho prolongada; então, a análise não pode ficar na

ambiência do trabalho abstrato, trabalho em si, em determinada

organização ou empresa, posto que, apesar de suas peculiaridades

e importância, elas são conseqüências de relações sociais de

subordinação, de regra históricas, econômicas, sociais, culturais e

dialéticas.

A coletivização dos transtornos da voz parece revelar o

caráter mórbido das relações sociais do trabalho contemporâneo

que transcende a clínica. Mal-estar ao falar, disfonias e afonias

coletivas, mais do que sintomas e sinais de adoecimento individual,

alçaram-se à condição de signo. Ao silêncio imposto à consciência,

a resposta fez-se de modo enviesado e involuntário sob a forma de

manifestação orgânica localizada e socializada contra o desfavor

das relações sociais subalternas da produção e do trabalho.

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Todo indivíduo tem necessidades instintivas intransferíveis;

outras, ainda quando particulares são satisfeitas socialmente. Essa

dualidade para a satisfação de necessidades do ser enquanto

indivíduo e do ser enquanto coletividade faz parte da história

constitutiva da humanidade e das várias sociedades que esta

produziu, irrecorrível e coletivamente pelo trabalho que transforma

homens em humanidade.

A expansão da espécie humana explica-se pela junção da

racionalidade com a sociabilidade inspirada na experiência; com o

que o homem desprendeu-se da condição animal e da

subordinação aleatória, absoluta e imediata à natureza. O

desvendar contínuo da natureza tem sido indispensável para a

gestão possível dos seus fenômenos, mas falta desvendar

continuamente as relações sociais do trabalho que estão nas raízes

dos fenômenos sociais..

Quatro séculos separam as sociedades pré-capitalistas da

sociedade capitalista atual. Todavia, em essência, esta, como as

que a precederam, é uma sociedade de classes fundada na

privatização dos meios de produção e de seus produtos. Em termos

de exercício do poder, a diferença das sociedades de classe

anteriores para a sociedade capitalista atual está na ascensão da

burguesia como classe hegemônica; ou seja, sociologicamente, o

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marco diferencial político da revolução industrial é a hegemonia da

burguesia no poder que se fez empresariado industrial e, mais

recentemente, financeiro.

É na fábrica, como operário, que o trabalhador,

aparentemente livre despediu-se da liberdade e do controle do seu

tempo e trabalho, forçado a trocá-los por um salário. A mercadoria

deixou de ser apenas o que ele faz para ser sua própria força de

trabalho. Antes de ser de meios e instrumentos de produção, a

revolução industrial foi uma revolução voltada para os interesses da

classe burguesa.

No bojo dos acontecimentos e com o tempo, as formações

sociais em turbulência carregaram as questões políticas e sociais

da classe trabalhadora em formação, alimentada por suas dores,

necessidades e reivindicações. Além do crescimento exponencial

do número de trabalhadores urbanos, a diversidade e ampliação da

produção industrial redefiniram o perfil da classe trabalhadora em

termos de gênero e idade e do seu modo catastrófico de adoecer e

morrer.

Como exigência do trabalho, a escolaridade chegou por

último; porém, agora como antes, o processo seletivo da força de

trabalho faz-se seguindo critérios estritos dos custos da produção e

da busca de produtividade de cada trabalhador. Portanto, a

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existência de uma mediação nítida entre trabalho e doença do

trabalho, tal qual na metáfora da chama com a queimadura, não

esgota a questão da causalidade das doenças do trabalho, melhor,

das doenças da produção, nem mesmo a causalidade dos

acidentes de trabalho típicos.

Em suma: teoria, método e categoria de análise de processos

e fenômenos sociais complexos devem reunir força explicativa

suficiente que contemple, ao mesmo tempo, a heterogeneidade, a

totalidade, a historicidade, a dinâmica e a unidade da vida social.

Parte-se da noção que se está numa sociedade de classes, cujos

conflitos emanam e se expressam no cotidiano do trabalho, em sua

história e relações e na história das profissões e ocupações,

sempre carregadas de contradições, ideologias, arranjos e valores

mutáveis.

É bom salientar que independentemente do método e

instrumentos metodológicos, nenhuma pesquisa social, ainda que

realizada com todo rigor científico, permite a transposição

automática dos seus resultados empíricos para o campo individual.

Por exemplo, não há como afirmar categoricamente que o exercício

de determinada ocupação causará ou causou transtornos da voz

em determinada pessoa. O que as pesquisas sociais autorizam são

inferências causais entre produção, trabalho vivo e adoecimento e

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doença coletiva; resumindo: não há como provar material e

individualmente a relação positiva, linear entre exercício

ocupacional e transtornos da voz.

BIBLIOGRAFIA

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