As sete palavras de cristo na cruz

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Meditação sobre as sete palavras de Cristo na Cruz São Roberto Bellarmino Tradução: Permanência Correção e Formatação: Apostolado Caritas in Veritate Figuras : Apostolado Caritas in Veritate Prefácio Observai-me, agora, pelo quarto ano, a preparar-me para a morte. Tendo-me retirado dos negócios do mundo a um lugar de repouso, entrego-me à meditação das Sagradas Escrituras, e a escrever os pensamentos que me ocorrem nas meditações, para que, se já não posso ser de utilidade pela palavra de boca, ou pela composição de volumosas obras, possa ao menos ser útil a meus irmãos por meio destes piedosos livrinhos. Enquanto refletia, então, em qual seria o tema preferível tanto para me preparar para a morte como para ajudar os outros a viver bem, ocorreu-me a Morte de Nosso Senhor, junto com o último sermão que o Redentor do mundo pregou da Cruz, como dum elevado púlpito, à raça humana. Este sermão consiste em sete curtas mas profundas sentenças, e nestas sete palavras está contido tudo o que Nosso Senhor manifestou quando disse: “Eis que vamos para Jerusalém, e será cumprido tudo o que está escrito pelos Profetas relativo ao Filho do homem” 1 . Tudo o que os Profetas predisseram acerca de Cristo pode ser reduzido a quatro títulos: seus sermões à gente; sua oração ao Pai; os grandes tormentos que suportou; e as sublimes e admiráveis obras que realizou. Tudo isto se verificou de modo admirável na Vida de Cristo, pois Nosso Senhor não podia ser mais diligente ao pregar ao povo. Pregava no templo, nas sinagogas, nos campos, nos desertos, nas casas, e, mais ainda, pregava até dum

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Meditação sobre as sete palavras de Cristo na Cruz

São Roberto Bellarmino

Tradução: Permanência

Correção e Formatação: Apostolado Caritas in Veritate

Figuras: Apostolado Caritas in Veritate

Prefácio

Observai-me, agora, pelo quarto ano, a preparar-me para a morte.

Tendo-me retirado dos negócios do mundo a um lugar de repouso, entrego-me à

meditação das Sagradas Escrituras, e a escrever os pensamentos que me ocorrem

nas meditações, para que, se já não posso ser de utilidade pela palavra de boca,

ou pela composição de volumosas obras, possa ao menos ser útil a meus irmãos

por meio destes piedosos livrinhos. Enquanto refletia, então, em qual seria o tema

preferível tanto para me preparar para a morte como para ajudar os outros a viver

bem, ocorreu-me a Morte de Nosso Senhor, junto com o último sermão que o

Redentor do mundo pregou da Cruz, como dum elevado púlpito, à raça humana.

Este sermão consiste em sete curtas mas profundas sentenças, e nestas sete

palavras está contido tudo o que Nosso Senhor manifestou quando disse: “Eis que

vamos para Jerusalém, e será cumprido tudo o que está escrito pelos Profetas

relativo ao Filho do homem” 1. Tudo o que os Profetas predisseram acerca de

Cristo pode ser reduzido a quatro títulos: seus sermões à gente; sua oração ao Pai;

os grandes tormentos que suportou; e as sublimes e admiráveis obras que

realizou. Tudo isto se verificou de modo admirável na Vida de Cristo, pois Nosso

Senhor não podia ser mais diligente ao pregar ao povo. Pregava no templo, nas

sinagogas, nos campos, nos desertos, nas casas, e, mais ainda, pregava até dum

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barco à gente que estava na margem. Era costume seu passar noites em oração a

Deus, pois assim diz o Evangelista: “e estava passando toda a noite em oração a

Deus” 2. Suas admiráveis obras, ao expulsar demônios, curar doentes, multiplicar

pães, aplacar as tormentas, ler-se-ão em cada página dos Evangelhos3. Ainda

assim, foram muitas as injúrias que se acumularam sobre Ele, como resposta ao

bem que fizera. Consistiam tais injúrias não só em palavras insolentes mas também

em lapidá-lo4 e despenhá-lo5. Em uma palavra, todas estas coisas

verdadeiramente se consumaram na Cruz. Sua pregação da Cruz foi tão poderosa,

que “toda a multidão [...] retirava-se, batendo no peito” 6, e não só os corações

humanos mas até as rochas se fizeram em pedaços. Ele orou na Cruz, como diz o

Apóstolo, “com grandes brados e com lágrimas, preces e súplicas”, sendo, assim,

“atendido pela sua reverência” 7. Sofreu tanto na Cruz, em comparação com o que

sofrera no restante de sua vida, que o sofrimento parece pertencer somente à sua

Paixão. Finalmente, nunca operou maiores sinais e prodígios do que quando, na

Cruz, parecia reduzido à maior fragilidade e fraqueza. Então não só manifestou

sinais do céu, que os judeus tinham pedido até ao fastio, senão que, um pouco

depois, manifestou o maior de todos os sinais.

Pois que, depois de estar morto e enterrado, se levantou dentre os

mortos por sua própria força, chamando seu Corpo à vida, e a uma vida imortal.

Verdadeiramente então poderemos dizer que na Cruz se consumou tudo quanto

estava escrito pelos Profetas com relação ao Filho do homem.

Mas, antes de começar a escrever acerca das palavras que Nosso

Senhor pronunciou da Cruz, parece apropriado dizer algo da Cruz mesma, que foi o

púlpito do Pregador, o altar do Sacerdote Vítima, o campo do Combatente, ou a

oficina d’O que opera maravilhas. Os antigos estavam de acordo em dizer que a

Cruz era feita de três pedaços de madeira: um vertical, ao longo do qual se punha o

corpo do crucificado; um horizontal, a que se prendiam as mãos; e o terceiro, que

se unia à parte baixa da cruz, e sobre o qual descansavam os pés do acusado, mas

presos por meio de cravos para lhes impedir o movimento. Concordam com esta

opinião os antigos Padres da Igreja, como São Justino8 e Santo Irineu9. Mais ainda,

estes autores indicam claramente que ambos os pés descansavam na tábua, e não

que um pé estava colocado em cima do outro. Segue-se, portanto, que Cristo foi

pregado à Cruz com quatro cravos, e não com três, como muitos imaginam, os

quais nas pinturas representam Cristo, Nosso Senhor, pregado à Cruz com um pé

sobre o outro. Gregório de Túrones10 diz claramente o contrário, e confirma sua

opinião apelando para antigas gravuras. Eu, de minha parte, vi na Livraria Real, em

Paris, alguns manuscritos muito antigos dos Evangelhos, os quais continham muitas

gravuras de Cristo Crucificado e o representavam, todos, com quatro cravos.

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Santo Agostinho11 e São Gregório de Nissa12 dizem que o madeiro

vertical da Cruz se projetava um pouco do madeiro horizontal. Parece que o

Apóstolo insinua o mesmo, já que na Carta aos Efésios escreve São Paulo: “[para

que] possais compreender, com todos os santos, qual seja a largura, e o

comprimento, e a altura, e a profundidade” 13. Isto é claramente uma descrição da

figura da Cruz, que tinha quatro dimensões: largura na parte horizontal,

comprimento na parte vertical, altura na parte que sobressaía e se projetava da

parte horizontal, e profundidade na parte que estava fincada na terra. Nosso

Senhor não padeceu os tormentos da Cruz por casualidade, ou contra a sua

vontade, pois Ele escolhera este tipo de morte desde toda a eternidade, como

ensina Santo Agostinho14 pelo testemunho do Apóstolo: “[A Jesus Nazareno,

depois de Ele,] por determinado conselho e presciência de Deus, vos ser entregue,

crucificando-o por mãos de iníquos, vós o matastes” 15. E assim Cristo, já no

princípio de sua pregação, disse a Nicodemo: “E como Moisés levantou no deserto

a serpente, assim também importa que seja levantado o Filho do homem, a fim de

que todo o que crê n’Ele não pereça, mas tenha a vida eterna” 16. Muitas vezes

falou aos Apóstolos acerca de sua Cruz, estimulando-os a imitar a Ele: “Se algum

quer vir após de mim, negue-se a si mesmo, e tome a sua cruz, e siga-me” 17.

Só Nosso Senhor sabe a razão que o levou a escolher este tipo de

morte. Os santos Padres, todavia, pensaram em algumas razões místicas, e

deixaram-nas para nós em seus escritos. Santo Irineu, no trabalho a que já nos

referimos, diz que as palavras “Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus” foram escritas

naquela parte da Cruz onde ambos os braços se encontram para nos dar a

entender que as duas nações, Judeus e Gentios, que até então se tinham

rechaçado mutuamente, depois foram unidas em um só corpo sob uma só Cabeça:

Cristo. São Gregório de Nissa, em seu sermão acerca da Ressurreição, diz que a

parte da Cruz que olhava para o céu manifesta que o céu se há de abrir pela Cruz

como por uma chave; que a parte que estava fincada na terra manifesta que o

inferno foi despojado por Cristo quando Nosso Senhor desceu até ele; e que os dois

braços da Cruz que se estendiam para o leste e o oeste manifestam a regeneração

do mundo inteiro pelo Sangue de Cristo. São Jerônimo, na Epístola aos Efésios,

Santo Agostinho18, na Epístola a Honorato, São Bernardo, no quinto livro da obra

Acerca da Consideração, ensinam que o mistério principal da Cruz foi levemente

tocado pelo Apóstolo nas palavras “qual seja a largura, e o comprimento, e a

altura, e a profundidade” 19. O significado primário destas palavras aponta para os

atributos de Deus: a altura significa seu poder, a profundidade sua sabedoria, a

largura sua bondade, o comprimento sua eternidade. Fazem referência também às

virtudes de Cristo em sua Paixão: a largura sua caridade, o comprimento sua

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paciência, a altura sua obediência, a profundidade sua humildade. Significam, mais

ainda, as virtudes necessárias àqueles que são salvos por meio de Cristo. A

profundidade da Cruz significa a fé, a altura a esperança, a largura a caridade, o

comprimento a perseverança. Disto deduzimos que só a caridade, a rainha das

virtudes, encontra espaço em qualquer lugar, em Deus, em Cristo, e em nós. Das

outras virtudes, algumas são próprias de Deus, outras de Cristo, e outras de nós.

Em conseqüência, não é de maravilhar que em suas últimas palavras da Cruz, que

agora vamos explicar, Cristo tenha dado o primeiro lugar a palavras de caridade.

Começaremos, portanto, por explicar as primeiras três palavras, ditas

por Cristo à hora sexta, antes que o sol se escurecesse e as trevas cobrissem a

terra. Consideraremos depois este eclipse do sol, e por fim chegaremos à

explicação de todas as demais palavras de Nosso Senhor, que foram ditas por volta

da hora nona20, quando a escuridão estava desaparecendo e a Morte de Cristo

estava próxima.

1. 1. Lc 18,31

2. 2. Lc 6,12.

3. 3. Mt 8; Mc 4; Lc 6; Jn 6.

4. 4. Jo 8.

5. 5. Lc 4.

6. 6. Lc 23,48.

7. 7. Hb 5,7.

8. 8. Em Dial. cum Thyphon, liv. v.

9. 9. Advers. haeres. Valent.

10.10. Lib. de Gloria Martyr., c. vi.

11.11. Epist i.

12.12. Serm. i “De Ressur.”

13.13. Ef 3,18.

14.14. Epist. 120.

15.15. Atos 2,23.

16.16. Jo 3,14-15.

17.17. Mt 16,24.

18.18. Epist. 120.

19.19. Ef 3,18.

20.20. Mt 27.

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Capítulo 1: Explicação literal da primeira palavra: "Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem"

Cristo Jesus, o Verbo do Pai Eterno, de quem o mesmo Pai dissera:

“Ouvi-o” 1, e que dissera de si mesmo: “Porque um só é o vosso Mestre” 2, para

realizar a tarefa que assumira, nunca deixou de nos instruir. Não somente durante

sua vida, mas até nos braços da morte, do púlpito da Cruz, pregou-nos poucas

palavras, mas ardentes de amor, de suma utilidade e eficácia, e em todo o sentido

dignas de ser gravadas no coração de qualquer cristão, para ser aí preservadas,

meditadas, e realizadas literalmente e em obra. Sua primeira palavra é esta: “E

Jesus dizia: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” 3. Prece que,

conquanto nova e nunca antes ouvida, quis o Espírito Santo fosse predita pelo

Profeta Isaías nestas palavras: “e pelos transgressores fez intercessão” 4. E as

petições de Nosso Senhor na Cruz provam quão verdadeiramente falou o Apóstolo

São Paulo quando disse: “a caridade [...] não busca os seus próprios interesses” 5,

pois, das sete palavras que pronunciou nosso Redentor, três foram pelo bem dos

demais, três por seu próprio bem, e uma foi comum tanto para Ele como para nós.

Sua atenção, porém, foi primeiro para os demais. Pensou em si mesmo ao final.

Das três primeiras palavras que Ele disse, a primeira foi para seus

inimigos, a segunda para seus amigos, e a terceira para seus parentes. Pois bem, a

razão por que orou, então, é que a primeira demanda da caridade é socorrer

aqueles que estão necessitados, e aqueles que estavam mais necessitados de

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socorro espiritual eram seus inimigos, e o de que nós, discípulos de tão grande

Mestre, mais necessitamos é amar nossos inimigos, virtude que sabemos muito

difícil de obter e que raramente encontramos, ao passo que o amor a nossos

amigos e parentes é fácil e natural, cresce com os anos e muitas vezes predomina

mais do que deveria. Razão por que escreveu o Evangelista: “E Jesus dizia” 6, onde

a palavra “e” manifesta o tempo e a ocasião desta oração por seus inimigos, e põe

em contraste as palavras do Sofrente e as palavras dos verdugos, Suas obras e as

obras deles, como se o Evangelista quisesse explicar-se melhor desta maneira:

estavam crucificando o Senhor, e em sua mesma presença estavam repartindo sua

túnica entre si, zombavam-no e difamavam como embusteiro e mentiroso, ao passo

que Ele, vendo o que estavam fazendo, escutando o que estavam dizendo, e

sofrendo as mais agudas dores nas mãos e nos pés, pagou com bem o mal, e orou:

“Pai, perdoa-lhes”.

Chama-Lhe “Pai”, não Deus ou Senhor, porque quis que Ele exercesse a

benignidade do Pai e não a severidade de um Juiz, e, como quis Ele evitar a cólera

de Deus, que sabia provocada pelos enormes crimes, usa o terno nome de Pai. A

palavra Pai parece conter em si mesma este pedido: Eu, Teu Filho, em meio de

todos os meus tormentos, os perdoei. Faz Tu o mesmo, Pai Meu, estende Teu perdão

a eles. Conquanto não o mereçam, perdoa-lhes por Mim, Teu Filho. Lembra-te

também de que és seu Pai, pois os criaste, fazendo-os à Tua imagem e semelhança.

Mostra-lhes, portanto, um amor de Pai, pois, conquanto sejam maus, são porém

filhos Teus.

“Perdoa”. Esta palavra contém a petição principal que o Filho de Deus,

como advogado de seus inimigos, faz a Seu Pai. A palavra “perdoa” pode referir-se

tanto ao castigo devido ao crime como ao crime mesmo. Se está referida ao castigo

devido ao crime, foi então a oração escutada: pois, já que este pecado dos judeus

demandava que seus perpetradores sentissem instantânea e merecidamente a ira

de Deus, sendo consumidos por fogo do céu ou afogados num segundo dilúvio, ou

exterminados pela fome e pela espada, ainda assim a aplicação deste castigo foi

posposta por quarenta anos, período durante o qual, se o povo judeu tivesse feito

penitência, teria sido salvo e sua cidade, preservada, mas, dado que não fizeram

penitência, Deus mandou contra eles o exército romano, que, durante o reino de

Vespasiano, destruiu suas metrópoles e, parte de fome durante o sítio, parte pela

espada durante o saque da cidade, matou grande multidão de seus habitantes,

enquanto os sobreviventes eram vendidos como escravos e dispersos pelo mundo.

Todas estas desgraças foram preditas por Nosso Senhor nas parábolas

do vinhateiro que contratou obreiros para sua vinha, do rei que fez uma boda para

seu filho, da figueira estéril, e, mais claramente, quando chorou pela cidade no

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Domingo de Ramos. A oração de Nosso Senhor foi também escutada se é que fazia

referência ao crime dos judeus, pois obteve para muitos a graça da compunção e

da reforma da vida. Houve alguns que “retiravam-se, batendo no peito” 7. Houve o

centurião que disse “Na verdade este era filho de Deus” 8. E houve muitos que

algumas semanas depois se converteram pela pregação dos Apóstolos, e

confessaram Aquele que tinham negado, adoraram Aquele que tinham desprezado.

Mas a razão por que a graça da conversão não foi outorgada a todos é que a

vontade de Cristo se conforma à sabedoria e à vontade de Deus, que São Lucas

manifesta quando nos diz nos Atos dos Apóstolos: “E creram todos os que eram

predestinados para a vida eterna” 9.

“Perdoai-Lhes”. Esta palavra é aplicada a todos por cujo perdão Cristo

orou. Em primeiro lugar é aplicada àqueles que realmente pregaram Cristo na Cruz,

e repartiram seus vestidos lançando sortes. Pode ser também estendida a todos os

que foram causa da Paixão de Nosso Senhor: a Pilatos, que pronunciou a sentença;

às pessoas que gritaram: “Seja crucificado. [...] Seja crucificado” 10; aos sumos

sacerdotes e escribas que falsamente o acusaram, e, para ir mais longe, ao

primeiro homem e a toda a sua descendência, que por seus pecados ocasionaram

a morte de Cristo. E assim, de sua Cruz, Nosso Senhor orou pelo perdão de todos

os seus inimigos. Cada um, porém, se reconhecerá a si mesmo entre os inimigos de

Cristo, de acordo com as palavras do Apóstolo: “sendo nós inimigos, fomos

reconciliados com Deus pela morte de seu Filho” 11. Portanto, nosso Sumo

Sacerdote, Cristo, fez uma comemoração para todos nós, até antes de nosso

nascimento, naquele sacratíssimo “Memento”, se assim o posso dizer, que Ele fez

no primeiro Sacrifício da Missa que celebrou no altar da Cruz. Que retribuição, ó

alma minha, farás ao Senhor por tudo o que fez por ti, ainda antes de que fosses?

Nosso amado Senhor viu que tu também algum dia estarias nas fileiras de Seus

inimigos, e, conquanto não o tivesses pedido, nem o tivesses buscado, Ele orou por

ti a Seu Pai, para que não carregasse sobre ti a falta cometida por ignorância. Não

te importa, portanto, ter em conta tão doce Protetor, e fazer todo o esforço por

servi-Lo fielmente em tudo? Não é justo que com tal exemplo diante de ti aprendas

não só a perdoar a teus inimigos com facilidade, e a orar por eles, mas até a atrair

quantos possas a fazer o mesmo? É justo, e isto desejo e tenho o propósito de

fazer, com a condição de que Aquele que me deu tão brilhante exemplo me dê

também em sua bondade a ajuda suficiente para realizar tão grande obra.

Pois não sabem o que fazem. Para que sua oração seja razoável, Cristo

diminui-se, ou, mais ainda, dá a desculpa que possa pelos pecados de seus

inimigos. Ele certamente não podia desculpar a injustiça de Pilatos, ou a crueldade

dos soldados, ou a ingratidão da gente, ou o falso testemunho daqueles que

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perjuraram. Então, não restou a Ele mais que desculpar-lhes a falta alegando

ignorância. Pois com verdade o Apóstolo observa: “porque, se a tivessem

conhecido, nunca teriam crucificado o Senhor da glória” 12. Nem Pilatos, nem os

sumos sacerdotes, nem o povo sabiam que Cristo era o Senhor da Glória. Ainda

assim, Pilatos o sabia um homem justo e santo, que fora entregue pela inveja dos

sumos sacerdotes, e os sumos sacerdotes sabiam que Ele era o Cristo prometido,

como ensina Santo Tomás, porque não podiam — nem o fizeram — negar que tinha

operado muitos dos milagres que os profetas tinham predito que o Messias

operaria. Enfim, a gente sabia que Cristo tinha sido condenado injustamente, pois

Pilatos publicamente lhe dissera: “não encontrei nele culpa alguma” 13, e “Eu sou

inocente do sangue deste justo” 14.

Mas, conquanto os judeus, tanto o povo como os sacerdotes, não

soubessem o fato de que Cristo era Senhor da Glória, ainda assim não teriam

permanecido neste estado de ignorância se sua malícia não os tivesse cegado. De

acordo com as palavras de São João: “E, tendo ele feito tantos milagres em sua

presença, não criam nele, para se cumprir a palavra do profeta Isaías, quando

disse: [...] Obcecou-lhes os olhos e endureceu-lhes o coração para que não vejam

com os olhos e não entendam com o coração, e não se convertam, e eu não os

sare” 15. A cegueira não é desculpa para um homem cego, porque é voluntária,

acompanhando, não precedendo, o mal que faz. Da mesma maneira, aqueles que

pecam na malícia de seus corações sempre podem alegar ignorância, o que não é

porém desculpa para seu pecado, pois não o precede, senão que o acompanha.

Razão por que o Homem Sábio diz: “Os que praticam o mal erram” 16. O filósofo,

de igual modo, proclama com verdade que todo o que faz mal é ignorante do que

faz, e por conseguinte se pode dizer dos pecadores em geral: “Não sabem o que

fazem”. Pois ninguém pode desejar aquilo que é mau com base em sua maldade,

porque a vontade do homem não tende para o mal tanto como para o bem, mas

sim só ao que é bom, e por esta razão aqueles que escolhem o que é mau o fazem

porque o objeto lhes é apresentado sob aparência de bem, e assim pode então ser

escolhido. Isto é resultado do desassossego da parte inferior da alma, que cega a

razão e a torna incapaz de distinguir nada que não seja bom no objeto que busca.

Assim, o homem que comete adultério ou é culpado de roubo realiza estes crimes

porque olha só o prazer ou o ganho que pode obter, e não o faria se suas paixões

não o cegassem até ou à vergonhosa infâmia do primeiro e à injustiça do segundo.

Um pecador, portanto, é similar a um homem que deseja lançar-se a um rio de um

lugar elevado. Primeiro fecha os olhos e depois se lança de cabeça; assim, aquele

que faz um ato de maldade odeia a luz, e atua sob uma voluntária ignorância que

não o desculpa, porque é voluntária. Mas, se uma voluntária ignorância não

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desculpa o pecador, por que então Nosso Senhor orou: “Perdoa-lhes, porque não

sabem o que fazem”? A isto respondo que a interpretação mais direta por fazer das

palavras de Nosso Senhor é que foram ditas para seus verdugos, que

provavelmente ignoravam de todo não só a Divindade do Senhor mas até sua

inocência, e simplesmente realizaram o labor do verdugo. Para eles, portanto, disse

em verdade o Senhor: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”.

Uma vez mais, se a oração de Nosso Senhor há de ser interpretada

como aplicável a nós mesmos, que ainda não tínhamos nascido, ou àquela

multidão de pecadores que eram seus contemporâneos mas que não tinham

conhecimento do que estava sucedendo em Jerusalém, então disse com muita

verdade o Senhor: “não sabem o que fazem”. Finalmente, se Ele se dirigiu ao Pai

em nome de todos os que estavam presentes e sabiam que Cristo era o Messias e

um homem inocente, então devemos confessar a caridade de Cristo, que é tal, que

deseja atenuar o mais possível o pecado de seus inimigos. Se a ignorância não

pode justificar uma falta, pode porém servir como desculpa parcial, e o deicídio dos

judeus teria tido caráter mais atroz se conhecessem a natureza de sua Vítima.

Conquanto Nosso Senhor fosse consciente de que tal não era uma desculpa, mas

antes uma sombra de desculpa, apresentou-a com insistência, em verdade, para

mostrar-nos quanta bondade sente com relação ao pecador, e com quanto desejo

teria Ele usado uma melhor defesa, até para Caifás e Pilatos, se uma melhor e mais

razoável apologia se tivesse apresentado.

1. 1. Mt 17,5.

2. 2. Mt 23,10.

3. 3. Lc 23,34.

4. 4. Is 53,12.

5. 5. 1Cor 13,5.

6. 6. Lc 23,34.

7. 7. Lc 23,48.

8. 8. Mt 27,54.

9. 9. Atos 13,48.

10.10. Mt 27,23.

11.11. Rom 5,10.

12.12. 1Cor 2,8.

13.13. Lc 23,14.

14.14. Mt 27,24.

15.15. Jo 12,37-

40.16

16.Prov 13,22.

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Capítulo 2: O primeiro fruto que se

há de colher da consideração da

primeira Palavra dita por Cristo na

Cruz

Tendo dado

o significado literal da

primeira palavra dita

por Nosso Senhor na

Cruz, nossa próxima

tarefa será esforçarmo-

nos para recolher

alguns de seus frutos

mais preferíveis e

vantajosos. O que mais

nos impressiona na

primeira parte do

sermão de Cristo na

Cruz é sua ardente

caridade, que arde com fulgor mais brilhante que o que possamos conhecer ou

imaginar, de acordo com o que escreveu São Paulo aos Efésios: “e conhecer

também aquele amor de Cristo, que excede toda a ciência” 1. Pois nesta passagem

o Apóstolo nos informa, pelo mistério da Cruz, como a caridade de Cristo ultrapassa

nosso entendimento, já que se estende para além da capacidade de nosso limitado

intelecto. Pois quando sofremos qualquer dor forte, como uma dor de dente, ou

uma dor de cabeça, ou uma dor nos olhos, ou em qualquer outro membro do corpo,

nossa mente está tão atada a isto, que se torna incapaz de qualquer esforço. Então

não estamos com humor para receber os amigos nem para continuar com o

trabalho. Mas, quando Cristo foi pregado na Cruz, usou seu diadema de espinhos,

como está claramente expresso nos escritos dos antigos Padres; por Tertuliano,

entre os Padres latinos, em seu livro contra os judeus, e por Orígenes, entre os

Padres gregos, em sua obra acerca de São Mateus; e portanto se segue que Ele não

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podia mover a cabeça para trás nem movê-la de um lado para o outro sem dor

adicional. Toscos cravos lhe sujeitavam as mãos e pés, e, pela maneira como lhe

dilaceravam a carne, ocasionavam doloroso e longo tormento. Seu corpo estava

desnudo, desgastado pelo cruel flagelo e pelo intenso ir-e-vir, exposto

ignominiosamente à vista do vulgo, aumentando por seu peso as feridas nos pés e

mãos, numa bárbara e contínua agonia. Todas estas coisas combinadas foram

origem de muito sofrimento, como se fossem outras tantas cruzes. Não obstante, ó

caridade, verdadeiramente a ultrapassar nosso entendimento, Ele não pensou em

seus tormentos, como se não sofresse, não estando solícito senão à salvação de

seus inimigos, e, desejando cobrir-lhes a pena dos crimes, clamou fortemente a seu

Pai: “Pai, perdoa-lhes”. Que teria feito Ele se esses infelizes fossem as vítimas de

uma perseguição injusta, ou se tivessem sido seus amigos, seus parentes, ou seus

filhos, e não seus inimigos, seus traidores e parricidas? Verdadeiramente, ó

benigníssimo Jesus! vossa caridade ultrapassa nosso entendimento. Observo vosso

coração no meio de tal tormento de injúrias e sofrimentos, como uma rocha no

meio do oceano que permanece imutável e pacífica, ainda que as ondas choquem

furiosamente contra ela. Pois vedes que vossos inimigos não estão satisfeitos com

infligir ferimentos mortais a Vosso Corpo, senão que têm de escarnecer-vos a

paciência, e uivar triunfalmente com os maus tratos. E os olhais, digo eu, não como

um inimigo que mede o adversário, mas como um Pai que trata com os extraviados

filhos, como um médico que escuta os desvarios de um paciente que delira. Vós

não estais aborrecido com eles, mas os compadeceis, e os confiais ao cuidado de

Vosso Pai Todo-poderoso, para que Ele os cure e os deixe inteiros. Este é o efeito da

verdadeira caridade, estar de bem com todos os homens, não considerando

nenhum como inimigo, e vivendo pacificamente com aqueles que odeiam a paz.

Isto é o que é cantado no Cântico do amor acerca da virtude da perfeita

caridade: “As muitas águas não puderam extinguir o amor, nem os rios terão força

para o submergir” 2. As muitas águas são os muitos sofrimentos que nossas

misérias espirituais, como tormentas do inferno, infligem a Cristo através dos

judeus e dos gentios, os quais representavam as paixões obscuras de nosso

coração. Ainda assim, esta inundação de águas, quer dizer, de dores, não pode

extinguir o fogo da caridade que ardeu no peito de Cristo. Por isso a caridade de

Cristo foi maior que tal transbordamento de muitas águas, e resplandeceu

brilhantemente em sua oração: “Pai, perdoa-lhes”. E não só foram estas muitas

águas incapazes de extinguir a caridade de Cristo; também nem sequer depois de

anos puderam as tormentas da perseguição sobrepujar a caridade dos membros de

Cristo. Assim, a caridade de Cristo, que possuiu o coração de Santo Estêvão, não

podia ser esmagada pelas pedras com que foi martirizado. Estava viva então, e ele

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orou: “Senhor, não lhes imputes este pecado” 3. Enfim, a perfeita e invencível

caridade de Cristo, que foi propagada nos corações de mártires e confessores,

combateu tão tenazmente os ataques de perseguidores, visíveis e invisíveis, que se

pode dizer com verdade, até o fim do mundo, que um mar de sofrimento não

poderá apagar a chama da caridade.

Mas da consideração da Humanidade de Cristo ascendamos à

consideração de Sua Divindade. Grande foi a caridade de Cristo como homem para

com seus verdugos, mas maior foi a caridade de Cristo como Deus, e do Pai, e do

Espírito Santo, no dia último, para com toda a humanidade, que fora culpada de

atos de inimizade para com seu Criador, e que, se tivesse sido capaz, o teria

expulsado do céu, pregado a uma cruz, e assassinado. Quem pode conceber a

caridade que Deus tem para com tão ingratas e malvadas criaturas? Deus não

poupou os anjos quando pecaram, nem lhes deu tempo para arrepender-se; com

freqüência, todavia, suporta pacientemente o homem pecador, blasfemos, e

aqueles que se enrolam no estandarte do demônio, Seu inimigo, e não só os

suporta mas também os alimenta e cria, e até os alenta e sustém, porque “n’Ele

vivemos, e nos movemos, e existimos” 4, como diz o Apóstolo. Tampouco preserva

somente o justo e bom, mas igualmente o homem ingrato e malvado, como Nosso

Senhor nos diz no Evangelho segundo São Lucas. Tampouco nosso Bom Senhor

meramente alimenta e cria, alenta e sustém seus inimigos, senão que amiúde

acumula seus favores sobre eles, dando-lhes talentos, tornando-os honrosos, e os

eleva a tronos temporais, enquanto lhes aguarda pacientemente o regresso da

senda da iniqüidade e perdição.

E, não nos ocupando aqui de várias características da caridade que

Deus sente pelos homens malvados, os inimigos de sua Divina Majestade, cada

uma das quais requereria um volume se as tratássemos singularmente, limitar-nos-

emos agora àquela singular bondade de Cristo que estamos tratando. Pois “Deus

amou de tal modo o mundo, que lhe deu seu Filho Unigênito”? 5. O mundo é o

inimigo de Deus, porque “todo o mundo está sob o [jugo do espírito] maligno” 6,

como nos diz São João. E, “se alguém ama o mundo, não há nele o amor do Pai” 7,

como torna a dizer adiante. São Tiago escreve: “Portanto, todo aquele que quiser

ser amigo deste século constitui-se inimigo de Deus” e “a amizade deste mundo é

inimiga de Deus” 8. Deus, portanto, ao amar este mundo, mostra seu amor a seu

inimigo com a intenção de fazê-lo amigo seu. Com este propósito enviou seu Filho,

“Príncipe da Paz’9, para que por seu intermédio o mundo possa ser reconciliado

com Deus. Por isso, ao nascer Cristo, os anjos cantaram: “Glória a Deus nas alturas,

e paz na terra” 10. Assim, Deus amou o mundo, seu inimigo, e deu o primeiro

passo para a paz, dando seu Filho, que pode trazer a reconciliação sofrendo a pena

Page 13: As sete palavras de cristo na cruz

devida a seu inimigo. O mundo não recebeu Cristo, acresceu sua culpa, rebelou-se

diante do único Mediador, e Deus inspirou a este Mediador pagar o mal com o bem

orando por seus perseguidores. Orou e “foi atendido pela sua reverência” 11. Deus

esperou pacientemente o progresso que teriam os Apóstolos por sua pregação na

conversão do mundo. Aqueles que tiverem feito penitência têm o perdão. Àqueles

que não se tiverem arrependido após tão paciente tolerância, extermina-os o juízo

final de Deus. Portanto, desta primeira palavra de Cristo aprendemos, em verdade,

que a caridade de Deus Pai — que “amou de tal modo o mundo, que lhe deu seu

Filho Unigênito, para que todo o que crê n’Ele não pereça, mas tenha vida eterna”

12 — ultrapassa todo e qualquer conhecimento.

1. 1. Ef 3,19.

2. 2. Cant 8,7.

3. 3. Atos 7,59.

4. 4. Atos 17,28.

5. 5. Jo 3,16.

6. 6. 1Jo 5,19.

7. 7. 1Jo 2,15.

8. 8. Tg 4,4.

9. 9. Is 2,6.

10.10. Lc 2,14.

11.11. Hb 5,7.

12. Jo 3,16.

Page 14: As sete palavras de cristo na cruz

Capítulo 3: O segundo fruto que se

há de colher da consideração da

primeira Palavra dita por Cristo na

Cruz

Se os homens aprendessem a

perdoar sem murmurações as injúrias que

recebem, e assim forçassem seus inimigos

a converterem-se em amigos, tiraríamos

uma segunda e muito salutar lição da

meditação da primeira palavra. O exemplo

de Cristo e da Santíssima Trindade há de

ser um poderoso argumento para nisto nos

persuadirmos. Pois se Cristo perdoou e

rezou por seus verdugos, que razão pode

ser alegada para que um cristão não atue

de modo semelhante com seus inimigos?

Se Deus, nosso Criador, o Senhor e Juiz de

todos os homens, o qual tem o poder de

vingar-se imediatamente do pecador,

espera seu arrependimento, e o convida à

paz e à reconciliação com a promessa de

perdoar as traições feitas à Divina

Majestade, por que uma criatura não poderia imitar esta conduta, especialmente se

recordamos que o perdão de uma ofensa obtém grande recompensa? Lemos na

história de São Egelberto, Arcebispo de Colônia, assassinado por alguns inimigos

que o estavam esperando, que, na hora de sua morte, rezou por eles com as

palavras de Nosso Senhor: "Pai, Perdoa-lhes", e foi revelado que este gesto foi tão

agradável a Deus, que sua alma foi levada ao céu pelas mãos dos anjos, e posta no

meio do coro dos mártires, onde recebeu a coroa e a palma do martírio, e sua

sepultura tornou-se famosa por realizar muitos milagres.

Ó, se os cristão aprendessem quão facilmente poderiam obter tesouros

Page 15: As sete palavras de cristo na cruz

inesgotáveis, se apenas o quisessem; e quão facilmente alcançariam graus

notáveis de honra e glória pelo domínio das várias agitações de suas almas e

desprezo magnânimo dos pequenos e triviais insultos, certamente não seriam tão

duros de coração e tão obstinados contra o indulto e o perdão.

Objeta-se que agiriam contrariamente à natureza caso se permitissem

ser injustamente rechaçados com desprezo ou ultrajados por obra ou palavra: se os

animais selvagens, que apenas seguem o instinto natural, atacam de forma

selvagem seus inimigos quando os vêem, e os subjugam com garras e dentes,

também nós, à vista de nosso inimigo, sentimos o sangue a ferver e o desejo de

vingança aflorar. Tal argumento é falso. Não faz distinção entre a defesa própria,

que é válida, e o espírito de vingança, que é inválido. Ninguém pode achar falta em

um homem que se defende por uma causa justa, e a natureza nos ensina a

rechaçar a força com a força — mas não nos ensina a vingar-nos nós mesmos uma

injúria que tivermos recebido.

Ninguém nos impede tomar as precauções necessárias para nos

preparamos contra um ataque, mas a lei de Deus nos proíbe que sejamos

vingativos. O castigo de uma injustiça pertence não ao indivíduo privado, mas ao

magistrado público, e, por isso que Deus é o Rei dos reis, Ele clama e diz: "A mim

me pertence a vingança, eu retribuirei" 1.

Quanto ao argumento de que um animal é levado por sua própria

natureza a atacar o animal inimigo de sua espécie, respondo que isto é o resultado

de serem animais irracionais, que não podem distinguir entre a natureza e o que é

vicioso na natureza. Mas os homens, que são dotados de razão, hão de traçar uma

linha entre a natureza ou a pessoa, que, criadas por Deus, são boas, e o vício ou o

pecado que é mau e não procede de Deus. Da mesma maneira, quando um

homem for insultado, deve amar a pessoa de seu inimigo e odiar o insulto, e deve

antes se compadecer dele que se perturbar com ele, assim como um médico que

ama seus pacientes e lhes prescreve com o devido cuidado, mas que odeia a

enfermidade e luta com todos os recursos a sua disposição para afugentá-la,

destruí-la, torná-la inofensiva. E isto é o que o Mestre e Doutor de nossas almas,

Cristo Nosso Senhor, ensina quando diz: "Amai os vossos inimigos, fazei bem aos

que vos odeiam, e orai pelos que vos perseguem e caluniam"2. Cristo, nosso

Mestre, não é como os Escribas e Fariseus que se sentavam na cátedra de Moisés e

ensinavam, mas não praticavam o que ensinavam. Quando subiu ao púlpito da

Cruz, Ele praticou o que ensinou ao rezar por seus inimigos, que amava: "Pai,

Perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem". Porém, a razão pela qual a visão de

um inimigo faz que em algumas pessoas o sangue ferva em suas veias, é esta: são

animais que não aprenderam a trazer as moções da parte inferior da alma, comum

Page 16: As sete palavras de cristo na cruz

tanto à raça humana como à criação selvagem, sob o domínio da razão, ao passo

que os homens espirituais não estão sujeitos a estes movimentos da carne, pois

sabem como mantê-los controlados, e não se turbam com aqueles que os

injuriaram, senão que, ao contrário, se compadecem, e, estendendo a eles atos de

bondade, se esforçam por levar-lhes a paz e a unidade.

Objeta-se que isto é uma prova demasiado difícil e severa para homens

de nascimento nobre, os quais devem ser zelosos de sua honra. No entanto, não é

assim. A tarefa é fácil, pois, como testemunha o Evangelista, "o jugo" de Cristo, que

deu esta lei para guia de seus seguidores, "é suave, e sua carga ligeira"3; e seus

“mandamentos não são custosos”4, como afirma São João. E assim, se parecem

difíceis e severos, parecem também pelo pouco ou nenhum amor que temos por

Deus, pois nada é difícil para aquele que ama, como disse o Apóstolo: "A caridade é

paciente, é benigna; tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo sofre"5. Nem foi

Cristo o único que amou a seus inimigos — ainda que, na perfeição com a qual

praticou a virtude, a todos superou — pois o Santo Patriarca José amou com amor

especial a seus irmãos que o haviam vendido à escravidão. E na Sagrada Escritura

lemos como Davi, com muita paciência, resignou-se com as perseguições de seu

inimigo Saul, que por muito tempo procurou matá-lo; e que, quando pôde Davi tirar

a vida de Saul, não o matou. E sob a lei da graça, o proto-mártir Santo Estevão

imitou o exemplo de Cristo ao fazer esta oração enquanto o apedrejavam à morte:

"Senhor, não lhes impute este pecado"6. E Santiago Apóstolo, Bispo de Jerusalém,

que foi lançado de cabeça desde o cume do templo, clamou no céu no momento de

sua morte: "Senhor, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem". E São Paulo

escreve de si mesmo e de seus companheiros apóstolos: "amaldiçoam-nos e

bendizemos; perseguem-nos e o sofremos; somos difamados e rogamos"7 . Enfim,

muitos mártires e inumeráveis outros, logo após o exemplo de Cristo, não

encontraram nenhuma dificuldade em cumprir este mandamento. Mas pode haver

alguns que continuem argumentando: não nego que devemos perdoar nossos

inimigos, mas escolherei o tempo que me apraze fazê-lo, quando, em verdade,

tenha quase esquecida a injustiça que me foi feita, e tenha me acalmado após o

primeiro arrebatamento de indignação. Mas, quais seriam os pensamentos destes

se fossem então chamados a prestar as contas finais, e fossem encontrados sem o

traje da caridade, e fossem perguntados: "como entraste aqui, não tendo a veste

nupcial?"8. Por acaso não se assombrariam enquanto Nosso Senhor pronuncia sua

sentença: "Atai-o de pés e mãos, e lançai-o nas trevas exteriores; aí haverá pranto

e ranger de dentes."9. Age melhor e com prudência agora, e imita a conduta de

Cristo, que rezou a seu Pai, "Pai, perdoa-lhes", no momento em que era objeto de

escárnios, quando o sangue caía gota a gota de seus pés e mãos, e seu corpo

Page 17: As sete palavras de cristo na cruz

inteiro era presa de torturas dolorosas. Ele é o verdadeiro e único Mestre, cuja voz

a devem escutar todos que não serão guiados ao erro: a Ele se referiu o Pai Eterno

quando uma voz se ouviu do céu dizendo: "Ouviu-o". Nele estão "todos os tesouros

da sabedoria e da ciência" de Deus10. Se pudesses perguntar a opinião de

Salomão sobre qualquer assunto, poderias com segurança ter seguido seu

conselho, mas "aqui está quem é mais que Salomão"11.

Continuo ainda a ouvir objeções. Se decidimos retribuir o mal com o

bem, o insulto com a bondade, a maldição com a benção, os maus se tornarão

insolentes, os infames se tornarão aprumados, os justos serão oprimidos, e a

virtude calcada sob seus pés. Este resultado não se dará, pois de ordinário, no

dizer do Homem Sábio, "a resposta branda aquieta a ira"12. Ademais, a paciência

de um homem justo não poucas vezes enche de admiração seu opressor, e o

persuade a estender a mão da amizade. Por outra, esquecemos que o Estado

nomeia magistrados, reis e príncipes, cujo dever é fazer que os malvados sintam a

severidade da lei, e prover meios para que os homens honestos vivam uma vida

tranqüila e pacífica? E se em alguns casos a justiça humana é tardia, a Providência

de Deus, que nunca permite que um ato malévolo passe sem castigo ou um ato

bom sem recompensa, está continuamente nos observando e, de um modo

imprevisível, cuidando para que as ocasiões em que os malvados crêem que

humilharão os virtuosos, conduzam estes à exaltação e honra. Pelo menos assim o

diz São Leão: "Estiveste furioso, ó perseguidor da Igreja de Deus, estiveste furioso

com o mártir, e aumentaste sua glória aumentando sua dor. Pois que inventaste

em tua ingenuidade que se voltasse em tua honra, se até seus instrumentos de

tortura foram tomados em triunfo?". O mesmo deve ser dito de todos os mártires e

santos da antiga lei, pois que trouxe mais reputação e glória ao patriarca José que

a perseguição de seus irmãos? O ter sido vendido por inveja aos ismaelitas foi

ocasião para que se convertesse em senhor de todo Egito e príncipe de todos seus

irmãos.

Mas, omitindo estas considerações, passemos revista aos muitos e

grandes inconvenientes que sofrem aqueles homens que, apenas para escapar de

uma sombra de desonra diante dos homens, estão obstinados a se vingar daqueles

que lhes fizeram qualquer mal. Em primeiro lugar, agem como estultos ao preferir

um mal maior a um menor. Pois é um princípio considerado certo em toda parte, e

que nos foi declarado pelo Apóstolo nestas palavras: "Não façamos o mal para que

venha o bem"13. Segue-se que, por conseqüência, um mal maior não há de ser

cometido para que se possa obter alguma compensação por um menor. Aquele que

recebe a injúria, recebe o que é chamado de mal da injúria: aquele que se vinga de

uma injúria, é culpável do que se chama de mal do crime. Ora, sem dúvida, a

Page 18: As sete palavras de cristo na cruz

desgraça de cometer um crime é maior que a desgraça de ter de suportar a injúria,

pois, ainda que a ofensa possa tornar um homem miserável, não necessariamente

o torna mau. Um crime, no entanto, o faz, a um tempo, miserável e malvado. A

injúria priva o homem do bem temporal, o crime o priva tanto do bem temporal

como do eterno. Assim, um homem que remedia o mal de uma injúria cometendo

um crime, é como um homem que corta uma parte dos seus pés para calçar

sapatos menores, o que é um ato de total loucura. Ninguém comete tal insensatez

em suas preocupações temporais, mas, no entanto, há alguns homens tão cegos a

seus interesses reais, que não temem ofender mortalmente a Deus para escapar

daquilo que tem aparência de desgraça, e para manter um semblante de honra aos

olhos dos homens. Caem, pois, sob o desagrado e a ira de Deus, e, a menos que se

corrijam a tempo e façam penitência, terão que suportar a desgraça e o tormento

eterno, e perderão a honra sem fim de habitarem no céu. Acrescente-se a isto que

realizam um ato dos mais agradáveis ao diabo e seus anjos, que urgem a este

homem fazer algo de injusto a aquele outro, com o propósito de semear a discórdia

e a inimizade no mundo. E cada um deve refletir com calma quão desgraçado não é

quem agrada o inimigo mais feroz da raça humana e desagrada o Cristo. Ademais,

se sucede que o homem injuriado que ambiciona vingança fira mortalmente a seu

inimigo, e o mate, é ele ignominiosamente executado por assassinato, e toda a sua

propriedade é confiscada pelo Estado, ou, ao menos, é forçado ao exílio, e tanto ele

como sua família viverão uma existência miserável. Assim é como o diabo joga e

como se ri daqueles que escolhem antes se aprisionar com as ataduras da falsa

honra, que se fazerem servos e amigos de Cristo, o melhor dos Reis, e serem

reconhecidos como herdeiros de reino mais vasto e mais durável. Por isso, posto

que o homem insensato, apesar do mandamento de Cristo, se nega a reconciliar-se

com seus inimigos, e se expõe ao desastre total, todos os que são sábios escutarão

a doutrina que Cristo, o Senhor de tudo, nos ensinou no Evangelho com suas

palavras, e na Cruz com suas obras.

1. 1. Rm 12,19.

2. 2. Mt 5,44.

3. 3. Mt 11,30.

4. 4. 1 Jn 5,3.

5. 5. 1 Cor 13,4-7.

6. 6. At 7,59.

7. 7. 1 Cor 4, 12-13.

8. 8. Mt 22,12.

9. 9. Mt 21,13.

10.10. Cl 2,3.

11.11. Mt 12,42.

12.12. Pr 15,1.

13.13. Rm 3,8.

Page 19: As sete palavras de cristo na cruz

Capítulo 4: Explicação textual da

segunda palavra: “Amém, Eu te digo:

Hoje estarás comigo no paraíso.”

A segunda

palavra, ou a segunda

frase, pronunciada por

Cristo na Cruz foi,

segundo o testemunho

de São Lucas, a

magnífica promessa

feita ao ladrão, que

pendia em uma cruz a

seu lado. A promessa

foi feita nas seguintes

circunstâncias: dois

ladrões foram

crucificados juntos ao Senhor, um a sua mão direita, outro a sua esquerda; um

desses acrescentou a seus crimes do passado o pecado de blasfemar de Cristo,

zombando de sua falta de poder para salvá-los, dizendo: “se és o Cristo, salva-te a

ti mesmo e salva-nos a nós!” 1. De fato, São Mateus e São Marcos acusam ambos

os ladrões desse pecado, mas é mais provável que os dois evangelistas usem o

plural para se referirem ao número singular, como freqüentemente se faz nas

Sagradas Escrituras, conforme observa Santo Agostinho no trabalho “Sobre a

Harmonia dos Evangelhos”. Assim São Paulo, em sua Epístola aos Hebreus, diz dos

profetas: “taparam bocas de leões ... apedrejados ..., serrados ao meio ...; andaram

errantes, vestidos de pele de ovelha e de cabra” 2. Sem embargo, um só profeta

houve — Daniel — que fechou a boca dos leões; um só profeta — Jeremias — que

foi apedrejado; um só profeta — Isaías — que foi serrado. Mais ainda, nem São

Mateus nem São Marcos são tão explícitos a respeito desse ponto como São Lucas,

que disse de maneira mui clara: “um dos malfeitores, ali crucificados, blasfemava

contra Ele” 3. Pois bem, mesmo se considerarmos que ambos vituperavam o

Page 20: As sete palavras de cristo na cruz

Senhor, não existe razão para que um mesmo homem não haja amaldiçoado em

um momento e, já em outro, proclamado seus louvores.

Não obstante, a opinião dos que sustentam que um dos ladrões

blasfemadores se converteu pela oração do Senhor — “Pai, Perdoa-lhes, porque não

sabem o que fazem” — contradiz manifestamente a narração evangélica, uma vez

que São Lucas diz que o ladrão começou a blasfemar contra o Cristo tão logo Ele

fizesse essa oração; daí estarmos inclinados a adotar a opinião de Santo Agostinho

e de Santo Ambrósio, que dizem que um só dos ladrões o vituperou, enquanto o

outro o glorificou e defendeu. Conforme essa narração, o bom ladrão exprobrou o

blasfemador: “nem sequer temes a Deus, tu que sofres no mesmo suplício?” 4. O

ladrão fora feliz por sua solidariedade ao Cristo na Cruz. Os raios da Luz Divina que

logravam penetrar na obscuridade da alma o levaram a exprobrar no companheiro

a maldade e a convertê-lo a uma vida melhor; este é o sentido pleno de sua

exprobação: “tu, pois, queres imitar a blasfêmia dos judeus, que ainda não

aprenderam a temer os juízos de Deus, porquanto se ufanam da vitória que crêem

ter alcançado ao pregar o Cristo numa cruz. Reputam-se por livres e seguros, e não

receiam castigo. Mas acaso tu, que fostes crucificado por tuas enormidades, não

temes a justiça vingadora de Deus? Por que cumulas pecado sobre pecado?”. Logo,

galgando de virtude em virtude, auxiliado pela crescente graça de Deus, confessa

seus pecados e proclama que Cristo é inocente. “Nós”, diz, fomos condenados

“com razão” à morte de cruz, “porque a merecemos por nossos feitos; mas este

não fez mal nenhum” 5 . Finalmente, à luz crescente da graça em sua alma,

acrescenta: “Jesus, lembrai-vos de mim quando retornardes com vosso reino” 6.

Admirável a graça do Espírito Santo que se derramou no coração do bom ladrão! O

apóstolo Pedro negou seu Mestre, o ladrão o confessou quando Ele estava

pendurado na Cruz. Os discípulos que iam a Emaús disseram: “esperávamos que

seria Ele a libertar Israel” 7. O ladrão pede com confiança: “lembrai-vos de mim

quando retornardes com vosso reino”. O apóstolo São Tomé declara que não creria

na Ressurreição até que visse ao Cristo; o ladrão, contemplando o Cristo — Que

vira subjugado no patíbulo — não duvida de que Ele será Rei após sua morte.

Quem instruiu o ladrão em mistérios tão profundos? Chama de Senhor

esse homem que vê desnudo, ferido, desgraçado, insultado, rebaixado, pendido a

uma cruz a seu lado; diz que após sua morte, Ele há de vir com seu reino. Do que

podemos inferir que o ladrão não figurou o reino de Cristo como temporal — como

o imaginavam os judeus — mas que após sua morte Ele seria Rei para sempre, no

Céu. Quem foi o instrutor de segredos tão sagrados e sublimes? Ninguém, decerto,

senão o Espírito de Verdade, que o aguardava com suas mais doces bênçãos.

Cristo, quando de sua Ressurreição, disse aos apóstolos: “Não era necessário que o

Page 21: As sete palavras de cristo na cruz

Cristo padecesse e entrasse deste modo em Sua Glória?” 8. Entretanto, o ladrão

milagrosamente o previu, confessando que o Cristo era Rei no momento mesmo

em que o não cercava nenhuma aparência de realeza. Os reis reinam durante a

vida e, quando param de viver, param de reinar; o ladrão, sem embargo, proclama

em alta voz que o Cristo — por intermédio de Sua morte — herdaria um reino, que

é aquele que o Senhor refere nesta parábola: “um homem ilustre foi para um país

distante, a fim de ser investido da realeza e depois regressar” 9. Nosso Senhor

disse tais palavras pouco tempo antes de sua Paixão, para nos mostrar que,

mediante sua morte, iria a um país distante, i. é, para outra vida; ou, em outras

palavras, que iria ao Céu, que está mui distante da terra, para receber um reino

grande e eterno, mas que voltaria no último dia, recompensando cada homem de

acordo com sua conduta na vida, seja com prêmio, seja com castigo. Com respeito

a esse reino, desta feita, que o Cristo receberia imediatamente após sua morte, o

ladrão disse sabiamente: “lembrai-vos de mim quando retornardes com vosso

reino”. Mas, pode-se objetar, não era Cristo Nosso Senhor Rei antes de sua morte?

Sem dúvida o era, e por isso os Reis Magos inquiriam insistentemente: “Onde está

o Rei dos Judeus, que nasceu?” 10 E o mesmo Cristo disse a Pilatos: “Sim, tu o

dizes, sou Rei. Para isso nasci e vim ao mundo: para dar testemunho da verdade”

11 . Mas Ele era Rei neste mundo tal como um viajante entre estranhos, daí não ser

reconhecido como tal senão por uns tantos, sendo humilhado e mal recebido pela

maioria. Assim, na parábola que vimos de citar, diz-se que iria “a um país distante,

a fim de ser investido da realeza”. Não digo que Ele a adquiriria da parte de outro,

mas que a receberia como sua própria, e retornaria. E o ladrão observou

sabiamente: “quando retornardes com vosso reino”. Nessa passagem, o reino do

Cristo não é sinônimo de poder ou soberania régia, porque o exercera desde o

princípio, conforme estes versículos dos Salmos: “Em Sião, já tenho eu consagrado

a meu rei meu monte santo” 12. “Dominará de mar a mar, desde o Rio até aos

confins da terra” 13. E conforme Isaías: “Porque uma criatura nos nasceu, um filho

nos foi dado. O senhorio habitará por sobre seu ombro” 14. E conforme Jeremias:

“Suscitarei a Davi um Rebento justo: reinará um rei prudente, praticará o direito e a

justiça, na terra” 15. E conforme Zacarias: “Exulta à larga, filha de Sião; grita de

júbilo, filha de Jerusalém! Eis que aqui vem a ti teu rei: justo ele e vitorioso,

humilde e montado em um asno, um burrico, cria de jumenta” 16. Por isso, na

parábola do advento do Reino, Cristo não se referia a um poder soberano, e

tampouco, em sua petição, o bom ladrão: “lembrai-vos de mim quando retornardes

com vosso reino”, mas ambos falavam dessa perfeita dita, que liberta o homem da

servidão e da angústia dos assuntos temporais, submetendo-os tão-somente a

Deus, para quem servir é reinar, e pelo qual fora posto acima de todas as suas

Page 22: As sete palavras de cristo na cruz

obras. Deste reino, de inefável dita à alma, Cristo gozou desde o momento de sua

concepção, mas a dita do corpo — que era sua por direito — não a gozou

efetivamente até sua Ressurreição. Uma vez que fora um forasteiro neste vale de

lágrimas, estava submetido a fadigas, fome e sede; a lesões, feridas, e à morte.

Entrementes — como seu Corpo sempre fora glorioso — imediatamente após a

morte, entrou no gozo da Glória que lhe pertencia. A isso se referiu — após a

Ressurreição — nestes termos: “não era necessário que o Cristo padecesse e

entrasse deste modo em sua Glória?” Essa glória Ele chama sua própria — pois está

em seu poder fazer outros partícipes dela, e por essa razão Ele é chamado “Rei da

Glória” 17 e “Senhor da Glória” 18 e “Rei dos Reis” 19, dizendo Ele mesmo a seus

apóstolos: “Eu, do que é meu, disponho um Reino para vós” 20. Ele, em verdade,

pode receber glória e reino, mas nós não podemos alcançar nem um nem outro;

fomos pois convidados a entrar “no gozo do teu Senhor” 21, e não no nosso

próprio. Este é então o reino de que falou o bom ladrão quando disse: “quando

retornardes com vosso Reino”.

Entrementes, não devemos pôr de lado as muitas excelentes virtudes

que se manifestam na oração do santo ladrão. Um breve bosquejo delas nos

preparará para a resposta do Cristo à petição: “senhor, lembrai-vos de mim quando

retornardes com vosso reino”. Em primeiro lugar, chama-o Senhor, para mostrar

que se considera a si como servo, ou melhor, como um escravo redimido,

reconhecendo que o Cristo é seu Redentor. Logo acrescenta um pedido simples,

mas cheio de fé, esperança, amor, devoção e humildade: “lembrai-vos de mim”.

Não disse: “se puderes, lembrai-vos de mim”, pois acredita firmemente que o Cristo

pode de fato fazê-lo. Não disse: “por favor, Senhor, lembrai-vos de mim”, pois tem

inteira confiança em sua caridade e compaixão. Não disse: “desejo, Senhor, reinar

convosco em vosso Reino”, pois a humildade o proibia. Enfim, não pede nenhum

favor especial, mas tão simplesmente reza: “lembrai-vos de mim”, como se

dissesse: “tudo que desejo, Senhor, é que vos dignais recordar-me, inclinando

vossos benignos olhos sobre mim, pois sei que sois Todo-Poderoso e tudo sabeis;

por isso, ponho minha confiança em vossa bondade e vosso amor”. Isso fica claro

com as palavras conclusivas de sua oração: “quando retornardes com vosso reino”,

que não buscam nada perecível e vão, senão que aspiram a algo eterno e sublime.

Atentemos agora à resposta do Cristo: “amém, Eu te digo: hoje estarás

comigo no Paraíso.” A palavra “amém” era usada pelo Cristo cada vez que queria

fazer uma declaração solene e grave a seus seguidores. Santo Agostinho não

duvidara em afirmar que essa palavra era, na boca do Senhor, uma sorte de

juramento. Por certo, não podia ser um juramento, de acordo com as palavras do

Cristo: “Pois vos digo que não jureis de modo algum... Seja vossa linguagem: sim,

Page 23: As sete palavras de cristo na cruz

sim; não, não; o que passa além disso vem do Maligno” 22. Não podemos, por

conseguinte, concluir que Nosso Senhor realizava um juramento cada vez que

usava a palavra “amém”. “Amém” era um termo habitual em seus lábios, e em

algumas oportunidades não apenas precedia suas afirmações com “amém”, mas

com “amém, amém”. Assim, pois, a observação de Santo Agostinho — de que a

palavra “amém” não é um juramento, mas uma espécie de juramento — é

perfeitamente justa, porque o sentido da palavra é “verdadeiramente”: em

verdade; e quando o Cristo diz: verdadeiramente vos digo, Ele afiança gravemente

o que diz, e, por conseguinte, a expressão tem quase a mesma força de um

juramento. Com grande razão, dirigiu-se assim ao ladrão, dizendo: “amém, Eu te

asseguro”, i. é, Eu te asseguro do modo mais solene que posso sem prestar

juramento: uma vez que o ladrão poderia negar — por três razões — dar crédito à

promessa do Cristo, se Ele não a asseverasse solenemente. Em primeiro lugar,

poderia se negar a crer por razão de sua indignidade ao ser o receptor de um

prêmio tão grande, de um favor tão elevado. Pois quem imaginaria que o ladrão

seria de pronto trasladado de uma cruz para um reino? Em segundo lugar, poderia

se negar a crer por razão da pessoa que fez a promessa, ao ver que Ele estava,

nesse momento, reduzido ao extremo da pobreza, da debilidade e do infortúnio,

podendo o ladrão por isso ter argumentado: “se este homem não pôde, durante

sua vida, fazer um favor a seus amigos, como vai ser capaz de assisti-los depois da

morte?” Por último, poderia se negar a crer por razão da mesma promessa. Cristo

prometeu o Paraíso. Pois bem, os judeus interpretavam a palavra “Paraíso” em

referência ao corpo e à alma — pois sempre a usavam no sentido de um Paraíso

terrestre. Se Nosso Senhor quisesse dizer: “hoje mesmo tu estarás comigo em um

lugar de repouso, junto a Abraão, Isaque e Jacó”, o ladrão o creria facilmente; mas

como não quis dizer isso, firmara Sua promessa com esta garantia: “amém, Eu te

asseguro”.

“Hoje”. Não disse: “por-te-ei à Minha mão direita, em meio aos justos,

no Dia do Juízo”. Nem disse: “levar-te-ei a um lugar de descanso, logo após sofreres

alguns anos no Purgatório”. Nem tampouco: “consolar-te-ei dentro de alguns

meses ou dias”, mas “hoje mesmo, antes que o sol se ponha, passarás comigo do

patíbulo da cruz às delícias do Paraíso”. Maravilhosa é a liberalidade do Cristo;

maravilhosa também é a boa fortuna do pecador. Santo Agostinho, em seu

trabalho “Sobre a Origem da Alma”, considera, com São Cipriano, que o ladrão

pode ser considerado um mártir, e que sua alma foi diretamente ao Céu, sem

passar pelo Purgatório. O bom ladrão pode ser chamado mártir pois que confessou

Cristo publicamente, quando nem sequer os apóstolos se atreveram a pronunciar

palavra a Seu favor; e por causa dessa confissão espontânea, a morte que sofreu

Page 24: As sete palavras de cristo na cruz

em companhia do Cristo merecera um prêmio tão grande diante de Deus, como se

houvesse sofrido por nome de Cristo. Se Nosso Senhor não fizesse outra promessa

senão: “hoje estarás comigo”, só essa benção seria inefável ao ladrão, conforme

escreve Santo Agostinho: “Onde pode haver nele algum mal; e sem Ele, algum

bem?”. Em verdade, Cristo não fizera uma promessa trivial aos que o seguem

quando disse: “se alguém me serve, que me siga; e onde eu estiver, ali também

estará meu servo” 23. Sem embargo, ao ladrão prometeu não apenas sua

companhia, mas também o Paraíso.

Ainda que algumas pessoas tenham discutido acerca do sentido da

palavra “Paraíso” neste texto, não parece haver fundamento para a discussão. Pois

é seguro — porque é artigo de fé — que no mesmo dia de Sua morte, o Corpo do

Cristo foi colocado no sepulcro, e Sua Alma desceu ao Limbo; é igualmente certo

que a palavra “Paraíso” — falemos do Paraíso celeste, ou do terrestre — não se

pode aplicar nem ao sepulcro, nem ao Limbo. Não se pode aplicar ao sepulcro, pois

era um lugar mui triste — a primeira morada dos cadáveres — e o Cristo foi o único

enterrado nele: o ladrão o foi em outro lugar. Mais ainda, as palavras “estarás

comigo” não se cumpririam, se o Cristo falasse meramente do sepulcro. Tampouco

se pode aplicar a palavra “Paraíso” ao Limbo. Pois “Paraíso” é um jardim de delícias

— inclusive, no Paraíso terrestre haviam flores e frutas, águas límpidas e uma

deliciosa suavidade no ar. No Paraíso celestial, delícias sem fim, glória interminável,

além dos lugares dos Bem-aventurados. Mas no Limbo, onde as almas dos justos

estavam detidas, não havia luz, nem alegria, nem prazer; certo, essas almas não

estavam sofrendo, já que a esperança da redenção e a perspectiva de ver a Cristo

era motivo de consolo e gozo para eles; contudo, se conservavam como cativos na

prisão. Sobre isso, conforme o Apóstolo, ao explicar os profetas: “subindo às

alturas, levou os cativos” 24; e conforme Zacarias: “quanto a ti, por causa de tua

aliança de sangue, libertarei os teus cativos da fossa sem água” 25, onde as

palavras “teus cativos” e “a fossa sem água” apontam evidentemente não às

delicias do Paraíso, mas à obscuridade de uma prisão. Por isso, na promessa do

Cristo, a palavra “Paraíso” só poderia significar a Bem-aventurança da alma, que

consiste na visão de Deus – este é realmente um Paraíso de delícias, não um

Paraíso corpóreo ou extenso, mas um espiritual e celestial.

Por essa razão, ao pedido do ladrão — “Lembrai-vos de mim quando

retornardes com vosso reino” — o Senhor não respondeu “hoje estarás comigo” em

meu reino, mas “estarás comigo no Paraíso”, porque nesse dia o Cristo não entrou

em Seu reino — não entrou até ao dia da Ressurreição, quando Seu Corpo tornou-se

imortal, impassível, glorioso, já não sendo passível de servidão ou sujeição

nenhuma. Não terá o bom ladrão por companheiro seu, em seu reino, até a

Page 25: As sete palavras de cristo na cruz

ressurreição de todos os homens, no último dia. Sem embargo, com grande

verdade e propriedade, lhe disse: “hoje estarás comigo no Paraíso”, pois naquele

mesmo dia comunicaria, tanto à alma do bom ladrão como às dos santos no Limbo,

essa glória da visão de Deus que Ele recebera em Sua concepção; está é pois a

verdadeira Glória e felicidade essencial; este é o gozo supremo do Paraíso Celeste.

É de se admirar mormente a escolha das palavras utilizadas pelo Cristo, a essa

ocasião. Não disse: “hoje estareis no Paraíso”, mas “hoje estarás comigo no

Paraíso”, como se quisesse se explicar mais amiúde, da seguinte maneira: “hoje,

estás tu comigo na Cruz, mas tu não estás comigo no Paraíso — Paraíso este

atinente à parte superior de minha alma. Mas, em pouco tempo — hoje mesmo —

tu estarás comigo, não tão-só liberto da Cruz, mas aconchegado no seio do

Paraíso”.

1. 1. Lc 23,39.

2. 2. Hb 11,33-37

3. 3. Lc 23,39.

4. 4. Lc 23,40.

5. 5. Lc 23,41.

6. 6. Lc 23,42.

7. 7. Lc 24,21.

8. 8. Lc 24,26.

9. 9. Lc 19,12.

10.10. Mt 2,2.

11.11. Jo 18,37.

12.12. Sl 2,6.

13.13. Sl 72,8.

14.14. Is 9,5.

15.15. Jr 23,5.

16.16. Zc 9,9.

17.17. Sl 24,8.

18.18. 1 Cor 2,8.

19.19. Ap 19,16.

20.20. Lc 22,29.

21.21. Mt 25,21.

22.22. Mt 5,34.37.

23.23. Jo 12,26.

24.24. Ef 4,8.

25.25. Zc 9,11.

Page 26: As sete palavras de cristo na cruz

Capítulo 5: O primeiro fruto que se

há de colher da consideração da segunda

Palavra dita por Cristo na Cruz.

Podemos colher alguns frutos, tirados da segunda palavra dita na Cruz.

O primeiro fruto é a consideração da imensa misericórdia e liberalidade do Cristo, e

de como é bom e útil servi-lo. As muitas dores que Ele, Nosso Senhor, sofria,

poderiam ser alegadas como escusa para não escutar a petição do ladrão; mas, em

Sua caridade divina, preferiu olvidar Suas próprias dores atrozes a não escutar a

oração de um pobre pecador penitente. Esse mesmo Senhor não respondeu nada

às maldições e imprecações dos sacerdotes e soldados, mas ante o clamor de um

pecador a se confessar, Sua caridade proibira-lhe permanecer em silêncio. Quando

é ultrajado não abre a boca, porque é paciente; quando um pecador confessa sua

culpa, fala, porque é bondoso. Que dizer, pois, de Sua liberalidade? Os que servem

a um chefe temporal com freqüência obtêm uma magra recompensa por muitos

labores. Entre esses não raro vemos os que terão gasto os melhores anos de sua

vida ao serviço de príncipes, e se retiram em idade avançada com mirrado salário.

Mas o Cristo é um Príncipe verdadeiramente liberal, um Amo verdadeiramente

magnânimo. Das mãos do bom ladrão não recebe nenhum serviço, exceto algumas

palavras bondosas e o desejo cordial de o assistir, e, como galardão, com que

grande prêmio o retribui! Nesse mesmo dia, todos os pecados que cometera

durante sua vida são perdoados; é igualado aos principais de seu povo, a saber, os

patriarcas e os profetas; e, finalmente, o Cristo o eleva para partilhar de sua mesa,

de sua dignidade, de sua glória e de todos os seus bens. “Hoje”, disse, “estarás

comigo no Paraíso”. O que Deus diz, faz. Tampouco difere essa recompensa para

algum dia longínquo, mas, àquele mesmo dia, derrama em seu seio “uma medida

boa, cheia, recalcada, transbordante"1.

O ladrão não é o único que experimentara a liberalidade do Cristo. Os

apóstolos, que tudo abandonaram — seja um barco, um ofício de coletor de

impostos ou um lar — para servir ao Cristo, foram feitos por Ele “príncipes de toda

a terra"2, submetendo-lhes demônios, serpes e toda casta de enfermidades. Se

algum homem deu por esmola alimento ou vestimenta aos pobres em nome de

Cristo, escutará estas palavras consoladoras no Dia do Juízo: “Tive fome, e me

deste de comer... estava desnudo, e me vestiste"3, receba tua recompensa, e entra

Page 27: As sete palavras de cristo na cruz

na posse do meu Reino Eterno. Enfim, para não nos demorarmos em muitas outras

promessas de recompensa, poderia o homem crer na quase inacreditável

liberalidade do Cristo, se não fosse o mesmo Deus quem prometesse que “todo o

que deixar a casa, ou os irmãos ou irmãs, ou o pai ou a mãe, ou os filhos, ou os

campos, por causa do meu nome, receberá o cêntuplo e possuirá a vida eterna"4?

São Jerônimo e os outros santos doutores interpretam o texto acima

citado desta maneira: se um homem, pelo amor do Cristo, abandona tudo nesta

vida presente, receberá uma dupla recompensa em adição à vida de valor

incomparavelmente maior que a pequenez da que se deixara. Em primeiro lugar,

receberá um gozo ou dom espiritual nessa vida, cem vezes mais precioso que o

objeto temporal que pelo Cristo desprezara; um homem espiritual escolheria antes

conservar esse dom à substituí-lo por cem casas ou campos, ou outras coisas

semelhantes. Em segundo lugar — como se Deus Todo-poderoso considerasse tal

recompensa como de pequeno ou nenhum valor — o feliz comerciante que troca

bens terrenos por celestiais receberá no outro mundo a vida eterna, palavra esta

que contém um oceano de todo o bem.

Essa é, pois, a maneira por que o Cristo, o grande Rei, mostra sua

liberalidade aos que se entregam sem reservas aos seus serviços. Não são estultos

os homens que, abandonando as bandeiras de tal monarca, desejam fazer-se

escravos de Mamón, da gula, da luxúria? Mas os que ignoram aquilo que Cristo

considera como verdadeira riqueza poderiam obstar que estas promessas não

passam de palavras, pois muitas vezes verificamos que os amigos diletos do

Senhor são pobres, esquálidos, abjetos e sofridos e, por outro lado, nunca

enxergamos a tal recompensa centuplicada, que se diz tão magnífica. Assim é

porque o homem carnal não pode ver o cêntuplo que Cristo prometeu, pois não

tem olhos com que possa vê-los; não participará jamais desse gozo durável, que

engendra uma consciência pura e um verdadeiro amor de Deus. Contudo, darei um

exemplo para mostrar que até um homem carnal pode apreciar os deleites e as

riquezas espirituais. Lemos, num livro de exemplos sobre os varões ilustres da

ordem Cisterciense, que um certo homem, nobre e rico, chamado Arnulfo,

abandonou toda sua fortuna e fez-se monge cisterciense, vivendo sob a autoridade

de São Bernardo. Deus testou a virtude desse homem mediante dores amargas e

muitos tipos de sofrimentos, em particular no final de sua vida; numa certa

ocasião, quando sofria mais agudamente que de costume, clamou com voz forte:

“Tudo o que dissestes, oh! Senhor Jesus, é verdade”. Ao perguntar-lhe, os que

estavam presentes, qual a razão de sua exclamação, respondeu-lhes:

”O Senhor, em Seu Evangelho, diz que os que abandonam suas

riquezas e todas as coisas por Ele receberiam o cêntuplo nesta vida e, após, a vida

Page 28: As sete palavras de cristo na cruz

eterna. Compreendo largamente a força e a gravidade desta promessa, e

reconheço que estou agora a receber o cêntuplo por tudo que abandonei. Em

verdade, a grande amargura desta dor me é tão agradável por causa da esperança

[que tenho] na Divina Misericórdia, que me estenderão os sofrimentos, dos quais

não consentiria libertar-me, ainda que a cem vezes o valor da matéria mundana

que abandonei. Porque, em verdade, a alegria espiritual que se concentra na

esperança do que há de vir ultrapassa cem vezes toda alegria mundana, que brota

do presente”.

O leitor, ao ponderar estas palavras, poderá julgar em quão grande

estima se há de ter a virtude vinda do céu da esperança infalível, da felicidade

eterna.

1. 1. Lc 6,38.

2. 2. Sal 45,17.

3. 3. Mt 25,35.36.

4. 4. Mt 19, 29.

Page 29: As sete palavras de cristo na cruz

Capítulo 6: O segundo fruto que se

há de colher da consideração da segunda

Palavra dita por Cristo na Cruz.

O segundo fruto que se há de

colher da consideração da segunda

palavra é o conhecimento do poder da

divina graça e da debilidade da vontade

humana; tal conhecimento é o de que a

melhor política consiste em depositar toda

a confiança na graça de Deus, e em

desconfiar inteiramente da própria força.

Se algum homem quer conhecer o poder

da graça de Deus, volte os olhos ao bom

ladrão. Era notório pecador, pecara

durante o perverso curso de sua vida até

ao momento em que fora subjugado à

cruz, i. é, ao momento quase derradeiro de sua vida; nesse momento crítico, com a

salvação em jogo, nada havia que pudesse aconselhá-lo ou assisti-lo. Embora

estivesse bem próximo a seu Salvador, ouvia tão-somente os sumos sacerdotes e

fariseus a declará-Lo sedutor e homem ambicioso que buscava alcançar poder

soberano. Ouvia também seu companheiro exprimindo-se perversamente em

termos similares. Não havia boa palavra em favor de Cristo, e até o Mesmo Cristo

não refutava as blasfêmias e maldições. Contudo, com a assistência da graça de

Deus, quando as portas do céu lhe pareciam cerradas, e os adros infernais abertos

a recebê-lo, e o pecador tão afastado da vida eterna quanto possível – fora de

súbito iluminado desde o alto: seus pensamentos dirigiram-se ao canal apropriado

e confessou Cristo por inocente e Rei do Mundo que há de vir e, como ministro de

Deus, censurou o ladrão que o acompanhava, persuadindo-o de seu

arrependimento, e encomendou-se humilde e devotamente a Cristo. Em suma,

foram tão perfeitas suas disposições que as dores da crucificação compensaram

todo sofrimento que pudesse guardar para o purgatório, de tal modo que, tão logo

morrera, ingressou no gozo do Senhor. Por tal circunstância, fica evidente que se

não deve desesperar da salvação, pois o ladrão que entrou na vinha do Senhor à

Page 30: As sete palavras de cristo na cruz

hora duodécima, recebeu o prêmio com os que vieram à hora primeira. Por outro

lado, para nos permitir ver a magnitude da debilidade humana, o mau ladrão se

não converte nem pela imensa caridade de Cristo — o Qual orou com amor

profundo por Seus executores — nem pela grandeza dos próprios sofrimentos, nem

pela admoestação e exemplo do companheiro, nem pela escuridão temporã, pelas

rochas fendidas ou pela conduta dos que, após a morte de Cristo, retornaram à

cidade golpeando o peito. Tudo isso se sucedeu depois da conversão do bom

ladrão, para nos mostrar que, se por um lado, um pode se converter sem auxílios,

outro, com todos os auxílios, não pôde, ou, em realidade, não quis ser convertido.

Poder-se-ia argumentar: por que Deus dera a graça da conversão a um e

negou-lha a outro? Contestar-se-ia que a ambos se deram a graça suficiente para a

conversão, e que se um pereceu, pereceu por culpa própria e, se o outro se

converteu, foi convertido por graça de Deus, não sem a cooperação de sua própria

vontade livre. Todavia, poder-se-ia perguntar: por que Deus não dera a ambos a

graça eficaz, capaz de sobrepujar o mais endurecido dos corações? A razão de que

assim não sucedera é um desses segredos que podemos admirar, mas não

penetrar; devemos repousar no pensamento que não há injustiça em Deus, como

disse o Apóstolo [Rm 9, 14], pois, como aquilo de Agostinho, os juízos de Deus

podem ser secretos, mas não podem ser injustos. Aprender com esse exemplo a

não adiar a conversão até à proximidade da morte, eis a lição que nos respeita de

forma imediata. Ainda que um dos ladrões cooperasse com a graça de Deus no

último momento, o outro a rechaçou, caindo em perdição para sempre. Quem

estuda história, ou observa o que se lhe sucede ao redor, sabe que a regra é os

homens terminarem uma vida perversa com uma morte miserável, de sorte que é

exceção o pecador morrer feliz; por outro lado, não é comum que os que vivem

bem e santamente tenham um fim triste e miserável, mas sim que muitas pessoas

boas e piedosas entrem, depois da morte, na posse dos gozos eternos. As que, em

assunto de tal monta como a felicidade ou tormento eternos, ousam permanecer

em estado de pecado mortal, ainda que por um só dia, são por demais néscias e

presunçosas, porquanto após a morte não há lugar para arrependimento e, uma

vez no inferno, já não há redenção.

Page 31: As sete palavras de cristo na cruz

Sobre a Sexta Palavra de Cristo na

Cruz

Introdução

Explicação Literal da Sexta Palavra: “Está tudo consumado”.

A sexta palavra que disse

Nosso Senhor na Cruz está como que

unida à quinta palavra mencionada por S.

João. Pois entre o Senhor dizer “Tenho

sede”, e tomar o vinagre oferecido, não

houve tardança. Acrescenta S. João:

“Havendo Jesus tomado do vinagre, disse:

Tudo está consumado” (Jo 19, 30). Em

verdade, nada se pode acrescentar a tais

palavras: “Está tudo consumado”, senão

que estava a obra da Paixão aperfeiçoada

e completa. Impusera Deus Pai duas

missões a seu Filho: a primeira, pregar o

Evangelho; a segunda, sofrer pela

humanidade. Quanto à primeira, já dissera o Cristo: “Eu te glorifiquei na terra.

Terminei a obra que me deste para fazer” (Jo 17, 4). Proferira tais palavras por

ocasião do discurso de despedida aos discípulos, na Última Ceia. Já ali cumprira a

primeira obra que lhe impusera o Pai Celestial. Quanto à segunda missão, tomar o

cálice amargo, estava por se cumprir. Aludira a isso, quando perguntou aos dois

filhos de Zebedeu: “Podeis vós beber o cálice que eu devo beber?” (Mt 20, 22); e

ainda: “Pai, se é de teu agrado, afasta de mim este cálice!” (Lc 22, 42); e em outro

passo: “Não hei de beber eu o cálice que o Pai me deu? (Jo 18, 11). Cristo pudera

então exclamar ao momento da morte, como remate da missão: Está tudo

consumado, pois o cálice do sofrimento foi tomado até às fezes, nada mais me

resta senão morrer. E inclinando a cabeça, expirou (Jo 19, 30).

Entretanto, como nem Nosso Senhor, nem São João, mui concisos no

que disseram, explicaram o que se cumpriu, temos oportunidade de aplicar a

palavra com grande razão e vantagem a diversos mistérios. Santo Agostinho,

comentando este passo, refere a palavra ao cumprimento de todas as profecias do

Page 32: As sete palavras de cristo na cruz

Testamento Velho. “No instante que soubera Jesus do cumprimento de todas as

coisas, para se cumprirem as Escrituras, disse: “Tenho sede”, e “Havendo Jesus

tomado do vinagre, disse: Está tudo consumado” (Jo 19, 28, 30), i. é, o que havia

por cumprir estava cumprido. Por isso, conclui-se que Nosso Senhor queria

manifestar que o que se predissera por boca dos profetas sobre sua Vida e Morte já

estava feito e acabado. Em verdade, todas as predições se comprovaram. Sua

concepção: “Uma virgem conceberá e dará à luz um filho” (Is 7, 14). Seu

nascimento em Belém: “Mas de ti, Belém Efratá, apesar de seres a menor do clã da

família de Judá, de ti sairá aquele que há de governar Israel” (Mq 5, 2). A aparição

de uma nova estrela: “De Jacó nascerá uma estrela” (Nm 24, 17). A adoração dos

Reis: “Oferecer-te-ão dádivas os reis de Tarsis e das ilhas, e os reis da Arábia e de

Sabá trarão presentes” (Sl 71, 10). A pregação do Evangelho: “O espírito do Senhor

repousa sobre mim, porque o Senhor me ungiu, e me enviou para evangelizar os

pobres, aliviar os aflitos de coração, anunciar a remissão dos cativos e a liberdade

aos encarcerados” (Is 61, 1). Seus milagres: “O próprio Deus há de vir e os salvará.

Então abrir-se-ão os olhos do cego, e os ouvidos dos surdos. E saltará o coxo como

o cervo e desatar-se-á a língua dos mudos” (Is 35, 4-6). O cavalgar sobre o

burrinho: “Eis que vem a ti o teu rei, justo e vitorioso; ele é simples e vem montado

num jumento, no potro de uma jumenta” (Zc 9, 9). Davi no Salmos, Isaias,

Jeremias, Zacarias e outros mais predisseram a Paixão como se a testemunhassem.

É o significado das palavras de Nosso Senhor, quando dizia estar próxima sua

Paixão: “Vede, subamos a Jerusalém, pois lá se há de cumprir o que escreveram os

profetas sobre o Filho do Homem” (Lc 18, 31). Do que se havia de cumprir, disse:

“Está tudo consumado”, tudo terminado, para que na predição dos profetas

encontre-se, a partir de agora, a verdade.

Em segundo lugar, São João Crisóstomo diz que a palavra “Está tudo

consumado” manifesta que o poder dado a homens e demônios sobre a pessoa do

Cristo acabara-se com sua morte. Quando disse Nosso Senhor aos Sumos

Sacerdotes e doutores do Templo “esta é a vossa hora e do poder das trevas” (Lc

22, 53), aludia ele a esse poder. O período durante o qual, com a permissão de

Deus, os iníquos se apoderaram do Cristo terminou com a exclamação “Está tudo

consumado”, pois a peregrinação do Filho de Deus entre os homens, conforme

predissera Baruque, findara: “É ele o nosso Deus, com ele nenhum outro se

compara. Conhece a fundo os caminhos que conduzem à sabedoria, galardoando

com ela Jacó, seu servo, e Israel, seu favorecido. Foi então que ela apareceu sobre

a terra, onde permanece entre os homens.” (Br 3, 36-38). E juntamente com a

peregrinação, terminou sua condição de vivente e mortal, por que sentia fome e

sede, e dormia, e se fatigava, e sujeitava-se a atritos e flagelos, e a feridas e a

Page 33: As sete palavras de cristo na cruz

morte. Deste modo, quando o Cristo na Cruz exclamou “Está tudo consumado, e

inclinando a cabeça expirou”, concluiu-se o caminho daquele que dissera “Saí do

Pai e vim ao mundo. Agora deixo o mundo e volto para junto do Pai.” (Jo 16, 28). O

termo da peregrinação foi como aquilo do profeta Jeremias: “Senhor, esperança de

Israel, vós que sois o seu salvador no tempo da desgraça, por que sois qual

estrangeiro nessa terra, viajante de uma noite apenas?” (Jr 14, 8). Acabava a

sujeição de sua natureza à morte, findara o poder de seus inimigos sobre Ele.

Em terceiro lugar, ultimou o sacrifício dos sacrifícios. Ante o real e

verdadeiro Sacrifício, os da Lei Antiga consideram-se como meras sombras e

figuras. Disse São Leão: “Atraiste tudo para ti, Senhor, pois quando se rasgou o Véu

do Templo, o Santo dos Santos apartou-se dos sacerdotes indignos; as figuras se

converteram em verdade, manifestaram-se as profecias, converteu-se a Lei nos

Evangelhos”. Mais adiante, continua: “A oblação única de teu Corpo e Sangue é

superior à variedade dos antigos holocaustos” (Serm. 8. De Pass. Dom.). Neste

único Sacrifício do Cristo, o sacerdote é Homem-Deus, o altar a Cruz, a vítima o

Cordeiro de Deus, o fogo para o holocausto a caridade, o fruto do sacrifício a

redenção do mundo. O sacerdote, digo, era o Homem-Deus, e nada há de maior:

“Tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque” (Sl 109, 4), e

com justiça, de acordo com a ordem de Melquisedeque, porque lemos na Escritura

que Melquisedeque não tinha pai, nem mãe, nem genealogia, e o Cristo não tinha

Pai na terra, nem mãe no Céu, nem genealogia, pois “Quem contará sua geração?”

(Is 53, 8). “Eu te gerei antes da aurora” (Sl 109, 3); “saíste desde o princípio, desde

os dias da eternidade” (Mq 5, 2). O altar foi a Cruz. Assim como o tempo que o

Cristo sofreu sobre o madeiro era sinal de grande ignomínia, assim agora está

dignificada e enobrecida, e no último dia aparecerá no céu mais resplandecente

que o sol. A Igreja aplica à Cruz as palavras do Evangelista: “Então aparecerá no

céu o sinal do Filho do Homem.” (Mt 24, 30), já que canta “O sinal da cruz no céu

aparecerá, quando vier o Senhor para julgar”. São João Crisóstomo confirma essa

opinião, e observa que quando “o sol se escurecer, e a lua não tiver claridade” (Mt

24, 29), a Cruz há de ser vista mais brilhante que o sol no esplendor do meio-dia. A

vítima foi o Cordeiro de Deus, totalmente inocente e imaculado, de quem fala

Isaías: “Foi maltratado e resignou-se; não abriu a boca, como um cordeiro que se

conduz ao matadouro, e uma ovelha muda nas mãos do tosquiador. (Ele não abriu

a boca.)” (Is 53, 7), e também o Precursor: “Eis aqui o Cordeiro de Deus, eis o que

tira o pecado do mundo” (Jo 1, 29), e por último São Pedro: “Porque vós sabeis que

não é por bens perecíveis, como a prata e o ouro, que tendes sido resgatados da

vossa vã maneira de viver, recebida por tradição de vossos pais, mas pelo precioso

sangue de Cristo, o Cordeiro imaculado e sem defeito algum” (1Pd 1, 18-19). No

Page 34: As sete palavras de cristo na cruz

Apocalipse, chamam-no também de “o cordeiro imolado desde o princípio do

mundo” (Ap 13, 8), porque o mérito do sacrifício já o previra Deus, em benefício

daqueles que viveram antes da vinda do Cristo. O fogo do holocausto, que o

consome e perfaz, é o imenso amor que ardeu no Coração do Filho de Deus, qual

ardente fogueira que as muitas águas da Paixão não extinguiram. Finalmente, o

fruto do Sacrifício foi a expiação dos pecados de todos os filhos de Adão, i. é, a

reconciliação do mundo com Deus. Na sua primeira epístola, disse São João: “Ele é

a expiação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas também pelos

de todo o mundo.” (1Jo 2, 2), o que é dizer, com outras palavras, a ideia de São

João Batista: “Eis aqui o Cordeiro de Deis, eis o que tira o pecado do mundo” (Jo 1 ,

29). Aparece aqui um embaraço: como é possível o Cristo ser ao mesmo tempo

sacerdote e vítima, posto que fosse dever do sacerdote matar a vítima?

Certamente o Cristo não se matou a si, nem havia de fazê-lo, pois se o fizesse,

cometeria um sacrilégio e não ofereceria um sacrifício. É verdade que o Cristo não

se matou a si, mas ainda assim ofereceu um sacrifício real, porque pronta e

alegremente se ofereceu a si à morte por glória de Deus e salvação dos homens.

Nem soldados o prenderiam, nem cravos trapassariam suas mãos e pés, nem a

morte – não obstante tivesse pregado à Cruz – se apoderaria dele se ele assim não

o quisesse. Em consequência, com muita propriedade disse Isaías: “Ofereceu-se

porque o quis” (Is 53, 7); e disse Nosso Senhor: “O Pai me ama, porque dou a

minha vida para a retomar. Ninguém a tira de mim, mas eu a dou de mim mesmo.”

(Jo 10, 17-18). Com mais claridade, afirma São Paulo: “Progredi na caridade,

segundo o exemplo de Cristo, que nos amou e por nós se entregou a Deus como

oferenda e sacrifício de agradável odor” (Ef 5, 2). Portanto, de modo maravilhoso

dispôs-se que todo o mal, e todo o pecado, e todo o crime da condenação à morte

do Cristo recaíssem sobre Judas e os judeus, sobre Pilatos e os soldados. Eles não

ofereciam sacrifício, senão que foram culpados de sacrilégio, e não mereciam o

título de sacerdotes, senão que de sacrílegos. Toda a virtude, e toda a santidade, e

toda a obediência pertencem ao Cristo, que se ofereceu a si como vítima a Deus,

sofrendo pacientemente a morte, e morte de Cruz, para apaziguar a ira do Pai,

reconciliar a humanidade com Deus, saciar a justiça divina, e salvar a raça decaída

de Adão. São Leão expressa com elegância e economia este pensamento: “Ele

permitiu as mãos impuras se voltassem contra si, e já então se convertiam em

colaboradores da Redenção no momento em que cometiam um abominável

pecado”.

Em quarto lugar, por morte do Cristo findou-se a batalha entre o

Salvador e o príncipe deste mundo. Na alusão desta luta, valeu-se o Senhor destas

palavras: “Agora é o juízo deste mundo; agora será lançado fora o príncipe deste

Page 35: As sete palavras de cristo na cruz

mundo. E quando eu for levantado da terra, atrairei todos os homens a mim” (Jo

12, 31-32). Foi batalha de foro, e não de milícia. Foi batalha entre dois

demandantes, e não de dois exércitos rivais. Satanás disputou com o Cristo a

possessão do mundo, e o domínio sobre a humanidade. Por muito tempo, o

demônio lançara a mão com dolo para possui-lo, porque vencera o primeiro

homem, e dele e seus descendentes fizera-os escravos. Por essa razão, chama S.

Paulo aos demônios de “principados e potestades, príncipes deste mundo

tenebroso” (Ef 6, 12). Como disséramos, até o mesmo Cristo chama ao demônio

“príncipe deste mundo”. Eis que o demônio não quisera apenas ser príncipe, mas

arvorar-se em deus deste mundo, como na exclamação do Salmo: “Porque os

deuses dos pagãos, sejam quais forem, não passam de ídolos. Mas foi o Senhor

quem criou os céus” (Sl 95, 5). Nos ídolos dos gentios, adorava-se Satanás, e lhe

rendiam culto de sacrifício de cordeiros e vitelos. Por outro lado, o Filho de Deus,

verdadeiro e legítimo herdeiro do universo, demandou para si o principado deste

mundo. A sentença da lide deu-se na Cruz, e o juízo se pronunciou em favor de

Jesus Cristo, porque na Cruz expiou à saciedade os pecados do primeiro homem e

seus filhos. A obediência do Filho ao Pai Eterno superou a desobediência do servo

ao Senhor, e a humildade da morte do Filho de Deus na Cruz redundou em maior

honra do Pai, que o orgulho do servo em sua desonra. Assim Deus, nos méritos de

seu Filho, se reconciliou com a humanidade, arrancando-se ao poder do demônio a

mesma humanidade, e “nos introduziu no Reino de seu Filho muito amado” (Cl 1,

13).

Há outra razão, a que aduz São Leão, conforme dá-la-emos com suas

próprias palavras: “Se o orgulhoso e cruel inimigo conhecesse o plano da

misericórdia de Deus, reprimira as paixões dos judeus, e lhes não inculcara o ódio

injusto por que perderia o domínio sobre os cativos, ao atacar em falso a liberdade

daquele que nada devia”. Esta consideração é de muitíssimo peso. Era justíssimo

que o demônio perdesse toda a autoridade sobre os escravos do pecado, porque se

atrevera a pôr as mãos sobre o Cristo, que não era escravo seu, nem havia pecado,

e todavia perseguira até à morte. Ora se este é o caso, se é terminada a batalha,

se é vitorioso o Filho de Deus, e se “quer que todos os homens se salvem” (1Tm 2,

4), como é possível tantos estarem submissos ao poder do demônio nesta vida, e

atormentados no inferno, na que há de vir? Respondo-o com uma palavra: querem-

no. Cristo saiu vitorioso da disputa, outorgando à raça humana dois favores

inefáveis. Primeiro, abriu aos justos a porta dos céus, que estavam cerradas desde

a queda de Adão até aquele dia, em que pronunciou a justificação do ladrão,

alcançada por meio da fé, da esperança e da caridade, pelos méritos de seu

sangue: “Em verdade te digo: hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23, 43).

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Exultante, clama a Igreja: “Tu, vitorioso sobre o aguilhão da morte, abriste aos

crentes o Reino dos Céus”. Segundo, instituiu os Sacramentos, que têm poder de

perdoar pecados e conferir a graça. Envia os pregadores da Palavra a toda parte do

mundo, a proclamar: “Quem crer e for batizado será salvo” (Mc 16, 16). Assim

Nosso Senhor franqueou o caminho para todos adquirirem a gloriosa liberdade dos

filhos de Deus, e se há quem se recuse a nele entrar, morrem pela própria culpa, e

não pela míngua do poder ou da vontade do Redentor.

Em quinto lugar, a palavra “Está tudo consumado” é possível aplicá-la

ao término do edifício, i. é, a Igreja. Cristo Nosso Senhor usa dela, ao se referir a

um edifício: “Hic homo coepit aedificare et non potuit consummare, Este homem

principiou a edificar, mas não pode terminar” (Lc 14, 30). Ensinam os Padres que o

estabelecimento das fundações da Igreja deu-se no batismo do Cristo, e o término

da construção na sua morte. Epifânio, no terceiro livro contra os hereges, e Santo

Agostinho, no último da Cidade de Deus, mostram que Eva, feita da costela do

Adão adormecido, faz figura da Igreja, feita da costela do Cristo adormecido na

morte, advertindo que, não sem razão, o livro do Gênesis usa o termo “construiu”,

e não “formou”. Santo Agostinho (“De Civit.”, I. 27, c. 8), com as palavras do

Salmista, prova que o edifício da Igreja começa no batismo do Cristo: “Ele dominará

de um ao outro mar, desde o grande rio até os confins da terra.” (Sl 71, 8). O reino

do Cristo, a Igreja, se iniciou no batismo recebido das mãos de São João, consagrou

as águas e instituiu o sacramento que é a sua porta de entrada; foi nesse momento

que se escutou claramente a voz do Pai nos céus: “Eis meu Filho muito amado em

quem me comprazo” (Mt 3, 17). Desde então Nosso Senhor começou a pregar e

reunir discípulos, que foram os primeiros filhos da Igreja. Todos os sacramentos

tiram sua eficácia da Paixão do Cristo, apesar de terem aberto o costado de Nosso

Senhor quando já estava morto, fluindo daquela chaga sangue e água, os tipos dos

dois principais sacramentos da Igreja. Fluírem sangue e água das costelas do

Cristo, estando já morto, era sinal dos sacramentos, e não sua instituição. Podemos

concluir que se consumou a edificação da Igreja quando Cristo disse: “Está tudo

consumado”, porque só lhe restava morrer, o que logo aconteceu, já que pagara o

preço de nossa redenção.

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