As Tentações Da “Hybris”

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As tentações da “hybris” A ideia de “hybris”, palavra que podemos traduzir como “desmedida”, ocupa um lugar fundamental na mitologia e na filosofia gregas. De acordo com Werner Jaeger, no seu clássico Paideia – A Formação do Homem Grego, a hybris, num sentido religioso, pode ser entendida como uma espécie de “inveja dos deuses”. São muitos os mitos construídos em torno dessa noção, do herói que é castigado por sua hybris, por ter passado da medida, na ânsia de se equiparar à divindade. O mito de Ícaro, por exemplo, como ressalta Junito de Souza Brandão, um dos maiores estudiosos do tema no Brasil, é o próprio símbolo da hybris. É bem conhecida sua história: Ícaro é o jovem e impetuoso filho de Dédalo, um habilidoso artesão, que ganha de presente do pai um par de asas feitas de plumas e cera. Ignorando os conselhos paternos, Ícaro voa alto demais, a ponto de se aproximar do Sol. A cera de suas asas derrete por causa do calor e Ícaro é precipitado no mar, afogando-se. No campo político, as tentações da hybris também eram vistas como fator de desequilíbrio, uma ameaça à ordem harmônica da antiga pólis grega. Não é à toa que Sólon, o grande legislador de Atenas, condenava a busca pela riqueza, porque na sua opinião ela engendrava “hybris”. A hybris dos ricos, sua desmedida, residia no fato de eles serem movidos por uma sede insaciável e ilimitada de acumular mais e mais, às expensas dos outros. Esse temor da hybris não era um esforço de apequenar o ser humano, de mantê-lo confinado dentro de certos limites. Criadores de uma civilização que até hoje nos fascina, os gregos antigos não só tinham plena consciência delas, como souberam explorar as amplas potencialidades das capacidades humanas. Sófocles, na tragédia Antígona, resume esse “humanismo” grego ao escrever que “de tantas maravilhas” existentes “mais maravilhoso de todas é o homem”.

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As tentações da “hybris”

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As tentações da “hybris”

A ideia de “hybris”, palavra que podemos traduzir como “desmedida”, ocupa um lugar fundamental na mitologia e na filosofia gregas. De acordo com Werner Jaeger, no seu clássico Paideia – A Formação do Homem Grego, a hybris, num sentido religioso, pode ser entendida como uma espécie de “inveja dos deuses”. São muitos os mitos construídos em torno dessa noção, do herói que é castigado por sua hybris, por ter passado da medida, na ânsia de se equiparar à divindade.

O mito de Ícaro, por exemplo, como ressalta Junito de Souza Brandão, um dos maiores estudiosos do tema no Brasil, é o próprio símbolo da hybris. É bem conhecida sua história: Ícaro é o jovem e impetuoso filho de Dédalo, um habilidoso artesão, que ganha de presente do pai um par de asas feitas de plumas e cera. Ignorando os conselhos paternos, Ícaro voa alto demais, a ponto de se aproximar do Sol. A cera de suas asas derrete por causa do calor e Ícaro é precipitado no mar, afogando-se.

No campo político, as tentações da hybris também eram vistas como fator de desequilíbrio, uma ameaça à ordem harmônica da antiga pólis grega. Não é à toa que Sólon, o grande legislador de Atenas, condenava a busca pela riqueza, porque na sua opinião ela engendrava “hybris”. A hybris dos ricos, sua desmedida, residia no fato de eles serem movidos por uma sede insaciável e ilimitada de acumular mais e mais, às expensas dos outros.

Esse temor da hybris não era um esforço de apequenar o ser humano, de mantê-lo confinado dentro de certos limites. Criadores de uma civilização que até hoje nos fascina, os gregos antigos não só tinham plena consciência delas, como souberam explorar as amplas potencialidades das capacidades humanas. Sófocles, na tragédia Antígona, resume esse “humanismo” grego ao escrever que “de tantas maravilhas” existentes “mais maravilhoso de todas é o homem”.

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Justamente por levar em conta o extraordinário poder da ação humana que o ideal ético do cidadão da pólis contrapunha à hybris a ideia de “sophrosyne”. Sophrosyne corresponde à noção de temperança, de proporção, de justa medida. “Nada em excesso”, como explica Jean-Pierre Vernant em As Origens do Pensamento Grego, porque o excesso é sinônimo de desordem, de desequilíbrio, cujas consequências são quase sempre impossíveis de controlar.

A verdade é que o mundo moderno, seguindo um caminho bem diverso dessa harmonia aspirada pelos gregos, deixou-se seduzir pela hybris – e é também verdade que o enorme desenvolvimento tecnológico e econômico que experimentamos se deu porque a humanidade, como um deus, dominou a natureza e transformou a face da Terra. Mas, em face das terríveis consequências dessa mesma ação humana incontrolada sobre o planeta, já está passando da hora de colocarmos um freio em nossa hybris e, mais modestos e humildes, adotarmos os ideais da sophrosyne.