As Teorias Das Guerras Preventivas e as Relacoes Internacionais-digital

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Alberto Montoya Correa Palacios Junior As teorias das guerras preventivas e as relações internacionais

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  • Alberto Montoya Correa Palacios Junior

    Alberto M

    ontoya Correa Palacios Junior

    As teorias das guerras preventivas e as relaes internacionais

    Nos dias atuais, a agresso militar vem sendo reeditada fre-quentemente em todos os continentes. Sob a mscara da defesa preventiva, so realizadas expedies punitivas, derrubadas de governos e outros tipos de ingerncia na soberania nacional dos pases. A defesa da democracia, a defesa do livre mercado, a defesa da livre manifestao da cidadania ante o Estado opressor, a defesa da segurana nacional e at a defesa de algum deus j soaram como escusa para a guerra preventiva.

    Neste livro, Alberto Montoya Correa Palacios Junior retorna aos textos clssicos da filosofia poltica para analisar as diferentes doutrinas sobre guerra preventiva. O resultado desse esforo intelectual uma anlise madura e profunda sobre um tema muito atual, cuja gnese mostrada na histria do pensamento das Relaes Internacionais sob o prisma das consideraes polticas, jurdicas e ticas que envolvem a questo.

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    ISBN 978-85-393-0196-6

    Uma unanimidade na sociedade internacional a rejeio do emprego da fora como forma de resolver controvrsias internacionais. Por isso a ini-ciativa violenta e o ataque de agresso internacional so condenados veementemente pela Organizao das Naes Unidas (ONU). A defesa a esse ataque, entretanto, considerada legal e legtima, como leg-timos so os meios empregados para isso. No obs-tante os reparos jurdicos e morais, nos dias atuais, a agresso militar vem sendo reeditada frequente-mente em todos os continentes. Sob a mscara da defesa preventiva, com a qual se intenta legitimar uma pretensa defesa, so realizadas expedies punitivas, derrubadas de governos e outros tipos de ingerncia na soberania nacional dos pases.

    A defesa da democracia, a defesa do livre mer-cado, a defesa da livre manifestao da cidadania ante o Estado opressor, a defesa da segurana nacional e at a defesa de algum deus j soaram como escusa para a guerra preventiva, tanto em contextos motivacionais quanto em contextos de justificao do que tecnicamente poder-se-ia enqua-drar na conceitualizao discutida neste livro.

    Recentemente, essa modalidade de guerra visi-tou nosso continente com o ataque da Colmbia ao territrio equatoriano para bombardear um acampamento das Foras Armadas Revolucionrias da Colmbia (Farc). De imediato o governo norte-americano tentou justificar essa ao enquadran-do-a como ataque preventivo contra o terrorismo dentro de sua doutrina de segurana nacional, enquanto pases da Amrica do Sul a condenaram energicamente como inequvoco atropelo sobera-nia nacional do Equador.

    Em que pese ser notoriamente atual o tema, ele no indito, muito embora alguns analistas ignorem sua histria conceitual. Esse no o caso de Alberto Montoya Correa Palacios Junior, que, insatisfeito com o debate contemporneo, se lana inquieto a saciar sua curiosidade sobre a discusso que os clssicos fizeram a respeito do tema nas origens da filosofia poltica. Precisamente nisso que radica a originalidade deste livro. Em uma poca em

    que o conhecimento substitudo pela informao, em que o desejo de saber transmuta-se em uma frvola avidez por novidades, Montoya Junior sur-preende o leitor com um retorno aos clssicos, nos quais descobre importantes aportes para o per-curso da histria do pensamento que fundamenta suas reflexes. Desde l, retorna por trs caminhos pelos quais pode perseguir essa histria conceitual: o jurdico, o poltico e o tico. Por essas trs sendas retoma o debate contemporneo, no sem antes visitar, em cada poca, o mais destacado da discus-so acadmica sobre o tema e analisar as diferentes doutrinas sobre guerra preventiva das principais escolas de pensamento das Relaes Internacionais. Para mostrar a fertilidade heurstica do emprego do conceito discutido, o autor analisa o caso do ataque colombiano a um acampamento das Farc em ter-ritrio equatoriano luz de suas reflexes sobre ataque preventivo.

    O resultado do esforo intelectual com que Alberto Montoya Correa Palacios Junior nos brinda uma obra imprescindvel para quem se interessa por relaes internacionais, especialmente pelo tema da segurana internacional. Trata-se de um texto bem escrito, que apresenta uma anlise madura e profunda, enriquecida pelas reflexes dos clssicos sobre um tema muito atual, cuja gnese mostrada na histria do pensamento das Relaes Internacionais sob o prisma das consideraes pol-ticas, jurdicas e ticas que envolvem a questo.

    Hctor Saint-Pierre

    Alberto Montoya Correa Palacios Junior possui graduao em Relaes Internacionais pela Universidade Tuiuti do Paran (2002), especializao em Gesto Empresarial pelo Centro Universitrio Curitiba (2005) e mestrado em Relaes Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas/Pr-Defesa (Unesp-Unicamp-PUC) (2009), pelo qual tambm cursa o doutorado. Atualmente professor do curso de Relaes Internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). Tem experincia nos temas sobre paz, segurana e defesa internacional, com nfase em teoria da guerra e estratgia.

    As teorias das guerras preventivas e as relaes internacionais

  • AS TEORIAS DAS GUERRAS PREVENTIVAS

    E AS RELAES INTERNACIONAIS

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  • FUNDAO EDITORA DA UNESP

    Presidente do Conselho CuradorHerman Jacobus Cornelis Voorwald

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    Editor-ExecutivoJzio Hernani Bomfim Gutierre

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    Editores-AssistentesAnderson NobaraHenrique Zanardi

    Jorge Pereira Filho

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  • ALBERTO MONTOYA CORREA PALACIOS JUNIOR

    AS TEORIAS DAS GUERRAS PREVENTIVAS

    E AS RELAES INTERNACIONAIS

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  • Editora afiliada:

    CIP BRASIL. Catalogao na fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

    P176t

    Palacios Junior, Alberto Montoya Correa, 1979- As teorias das guerras preventivas e as relaes interna-cionais / Alberto Montoya Correa Palacios Junior. So Paulo: Editora Unesp, 2011.

    Inclui bibliografi a ISBN 978-85-393-0196-6

    1. Ataque preventivo (Cincia militar). 2. Relaes inter-nacionais. 3. Guerra (Direito internacional pblico). I. Ttulo.

    11-7654. CDD: 355.02CDU: 355.01

    Este livro publicado pelo projeto Edio de Textos de Docentes ePs-Graduados da UNESP Pr-Reitoria de Ps-Graduao

    da UNESP (PROPG) / Fundao Editora da UNESP (FEU)

    2011 Editora UNESP

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  • memria do amigo Eduardo Ishida, aluno da primeira turma do

    Pr-Defesa do Programa San Tiago Dantas (Unesp/Unicamp/PUC-SP) em 2006

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  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo minha famlia, em especial minha me, Eli Hanne-mann, pelo apoio constante em meus empreendimentos e estmulo formao acadmica com seu exemplo, motivo de orgulho para seus filhos.

    Aos amigos que conheci durante a graduao em Relaes In-ternacionais na Universidade Tuiuti do Paran: Daniel Cavagnari, Demtrius Cesrio Pereira, Feliciano S Guimares, Janiffer Zar-pelon, Nlvia Maria Marques, Rafael Pons Reis, acadmicos de carreira a quem devo o avano em minhas pesquisas, o ingresso no mestrado e pelos quais tenho enorme admirao.

    Aos professores, funcionrios e amigos que fiz no Programa San Tiago Dantas (Unesp/Unicamp/PUC-SP), com quem pude aprender muito, especialmente professora Suzeley Kalil Mathias, a Giovana Cristina Vieira, secretria do curso, e a Filipe Mendona, Helena Margarido, Juliana Costa, Luara Lopes, Mojana Vargas, Renata Gianinni, Thalia Lacerda, Thiago Lima, Vanessa Matjascic.

    Sou grato aos amigos Adilson Franceschini, Adriano Tranco-so, Alex Bedenarski, Alexandre Gonalves, Alexandre e Felipe Rezende, Ana Carolina Koehler, Danielle Misura Nastari, Fran-cielle Machado, Marina e Rodrigo Cintra, Paula Ribeiro, Rodrigo Bichara, Rodrigo Braga, Rodrigo Cavalcante, Rossana Isfer, Sirley

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  • Villas Boas Sarmento e filhos, Lauro e Carlos Alberto, pessoas es-petaculares que fizeram da minha estada em So Paulo e Curitiba uma experincia maravilhosa.

    Aos meus alunos de Relaes Internacionais das instituies nas quais lecionei, cujo interesse representou estimulante desafio para prosseguir nesta jornada, agradeo e espero que suas carreiras sejam repletas de sucesso.

    Aos professores Rafael Duarte Villa (USP) e Samuel Alves Soa-res (Unesp), que compuseram a banca examinadora da dissertao e que, com sua leitura minuciosa e apontamentos judiciosos, am-pliaram os horizontes de meu entendimento sobre o tema e insti-garam ainda mais meu desejo de continuar na carreira acadmica.

    Finalmente, ao meu mestre e orientador na pesquisa, professor Hctor Luis Saint-Pierre, quem acreditou em mim desde a entre-vista do processo seletivo, minha imensurvel gratido.

    A todos, um forte abrao.

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  • Zeus ajunta-nuvens, olhando-o de soslaio, diz irado (para Ares): duas-caras, fica longe de mim com teus queixumes. Mais que nenhum deus, s para mim odioso. S de guerras cuidas. Tens o mau-gnio insofrevel de tua me, que eu repri-mo a custo com palavras. Dela, de Hera, de seus conselhos, vm teus males.

    A Ilada, Canto V, versos 885-890, Homero

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  • SUMRIO

    Introduo 13

    1 As guerras preventivas e a doutrina da guerra justa (bellum justum) 17

    2 As guerras preventivas e o direito internacional 673 As guerras preventivas e o realismo poltico 1074 Estudo de caso: o ataque colombiano no Equador

    em maro de 2008 153

    Consideraes finais 179Referncias bibliogrficas 187

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  • INTRODUO

    A incorporao do conceito da estratgia preemptiva ao docu-mento de Estratgia de Segurana Nacional dos Estados Unidos em 2002 e a suposta aplicao dessa estratgia na Guerra do Iraque em 2003 fizeram com que os debates tericos sobre guerras preven-tivas e preemptivas fossem reabertos. Em termos gerais, as guerras preventivas podem ser entendidas como o incio de uma ao mi-litar em antecipao a aes danosas que no ocorrem no presente nem so iminentes. A anlise da definio de guerras preventivas merece enfoque especial para embasar o estudo das trs correntes tericas principais sobre o tema nas relaes internacionais, quais sejam: a proibio geral das guerras justas (bellum justum); o status quo legal (direito internacional) e o realismo poltico. Esta propos-ta de sistematizao do debate parece-nos a mais apropriada, por abranger as principais linhas argumentativas tericas sobre o tema objeto da pesquisa (cf. Keohane; Buchanan, 2004, p.1).

    Apesar de a Doutrina Bush ensejar uma atualizao sobre a temtica das guerras preventivas, estas no constituem aconteci-mentos novos. Na tradio do pensamento poltico ocidental, as guerras preventivas so objeto de anlise das narrativas de Tucde-des sobre as Guerras do Peloponeso, e desde ento a preocupao sobre este tema ocupou lugar de destaque nas obras dos pensadores

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    clssicos. Por essa razo, optamos por direcionar o foco do estudo para alguns desses clssicos a fim de lograr um entendimento mais profundo sobre o desenvolvimento, anlises e discusses das guer-ras preventivas.

    As abordagens sobre a proibio geral das guerras justas, sobre o status quo legal e o realismo poltico equivalem ao que se denomi-na de abordagens moralistas, legalistas e realistas, respectivamente. Cada uma dessas trs correntes prioriza uma dimenso de anlise dentro da qual se levanta uma problemtica sobre as guerras pre-ventivas. De igual forma, constituem foco deste livro as questes levantadas sobre as guerras preventivas. Para os adeptos do bellum justum, a questo se coloca nos seguintes termos: as guerras preven-tivas so justas, isto , so legtimas? Para os adeptos do status quo legal, esta a indagao: as guerras preventivas podem ser legais? E a levantada pelos adeptos do realismo: as guerras preventivas so teis? Com essas questes em mente, apresentaremos os argumen-tos que cada corrente seleciona para respond-las, esperando que joguem luz sobre as guerras preventivas.

    O primeiro captulo traz uma contextualizao e uma anlise de como os adeptos do bellum justum interpretam o conceito de guerra preventiva. Partindo da obra de Michael Walzer, Guerras justas e injustas, que fornece didaticamente os principais elementos con-temporneos dessa argumentao, apresentamos a indagao sobre se as guerras preventivas so justas ou injustas.

    Na sequncia, abordamos a forma como esse tema foi tratado em trs momentos clssicos do pensamento poltico ocidental. Na Grcia Antiga, revisitamos o caso paradigmtico de Tucdedes em As Guerras do Peloponeso para saber se de acordo com os usos e costumes dos gregos antigos essas guerras, tradicionalmente clas-sificadas como guerras preventivas da Liga do Peloponeso contra a Confederao de Delos, foram consideradas justas e legtimas.

    No caso da Roma Antiga, abordamos, ainda que brevemente, os fundamentos formais da tradio do bellum justum e sua institu-cionalizao em termos religiosos, polticos e jurdicos, por ser um ponto importante para a pesquisa, j que o carter preventivo das

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    guerras romanas um modelo intensamente debatido pelas cor-rentes tericas do bellum justum escolstico, que acreditam que os romanos no realizavam guerras preventivas. Igualmente, esse mo-delo debatido pelos legalistas que, apesar de discordarem dos fun-damentos escolsticos, tambm concordam com estes no sentido de que os romanos no empreendiam guerras preventivas. Por ltimo, o mesmo modelo debatido pelos realistas polticos, cuja convico de que as guerras dos romanos eram sempre preventivas.

    No caso da escolstica, mostramos como a tradio romana do bellum justum foi incorporada e parcialmente alterada para ade-quar-se ao cristianismo, sobretudo catlico, resultando em uma condenao geral das guerras preventivas como injustas e ileg-timas. Entretanto, dada a natureza religiosa e dicotmica dessa argumentao, que acredita ser possvel identificar nas guerras um lado injusto (agressor) e um lado justo (defensor), muitos juristas e cientistas polticos, poca da Renascena europeia, tenderam a abandonar essa perspectiva para desenvolver teorias laicas sobre a guerra e atribuir novos significados e dimenses ao tema.

    No segundo captulo, mostramos como os juristas laicos elabo-raram suas teorias sobre as guerras preventivas em desacordo com os fundamentos escolsticos. Para tanto, dividimos o estudo dessa corrente em trs momentos: o jus naturalismo, a segurana coletiva da Liga das Naes e da ONU e o direito internacional ps-atenta-dos de 11 de setembro. Para o jus naturalismo, o tema da legalidade das guerras preventivas tratado a partir do princpio de que h uma razo universal da qual os homens so dotados. Considerando essa razo universal, analisamos se as guerras preventivas podem ser legais ou ilegais no mbito do direito internacional pblico.

    No direito positivo, notadamente aquele consolidado pelo prin-cpio da segurana coletiva da Liga das Naes e da ONU, a dis-cusso gira em torno da indagao sobre se as guerras preventivas foram abolidas legalmente das relaes internacionais como crime de agresso. Desse parecer, emergem algumas interpretaes: os que acreditam que as guerras preventivas foram totalmente banidas pelo texto da Carta da ONU, os que acreditam que a guerra preven-

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    tiva foi banida apenas como recurso unilateral, mas que ainda pode ser empreendida caso seja aprovada em votao pelo Conselho de Segurana da ONU e, ainda, os que acreditam que a Carta da ONU preservou o direito dos Estados de realizarem guerras preventivas unilaterais.

    No ltimo tpico desse captulo, discutimos se aps os aten-tados de 11 de setembro o direito internacional tornou-se mais permissivo ou se sofreu alteraes quanto s guerras preventivas, quando estas objetivam combater as novas ameaas segurana. Essas novas ameaas so entendidas como aquelas que a Doutrina Bush elencou como principais: atividades de organizaes terroris-tas, os lderes tirnicos de Estados-pria e as armas de destruio em massa ou a conjugao desses trs elementos.

    No terceiro captulo, abordamos a concepo do realismo po-ltico da guerra preventiva em sua ntima relao com estratgia, perspectiva ignorada pelas correntes do bellum justum e do direito internacional. Colocada a indagao sobre a utilidade das guerras preventivas, resgatamos quatro modelos argumentativos do rea-lismo: (a) o de autores clssicos como Maquiavel e Montesquieu, (b) o do sistema chamado de diplomtico-estratgico proposto por Raymond Aron, (c) o da Grande Estratgia de Liddell Hart e seu delineamento da estratgia indireta e, por ltimo, (d) o do realismo norte-americano de Stephen Van Evera.

    Finalmente, propomos um estudo de caso sobre um conflito armado de controvertida classificao como guerra preventiva: referimo-nos ao ataque colombiano s lideranas das Farc no ter-ritrio do Equador em maro de 2008. Tomamos como anlise este caso por ser considerado emblemtico, posto que inseriu a temtica das guerras preventivas nas relaes interamericanas contempor-neas e tambm porque, considerando os elementos tericos apre-sentados ao longo da pesquisa, instaura a indagao sobre se este episdio realmente configurou um caso de guerra preventiva.

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    A DOUTRINA DA GUERRA JUSTA (BELLUM JUSTUM)

    Iniciamos nossa anlise pela corrente do bellum justum por ser, como afirma Norberto Bobbio (2002, p.32), a cronologicamente mais antiga e a que possui elementos presentes em quase todos os discursos de chefes de Estado. De maneira geral, podemos dizer que os adeptos do bellum justum versam sobre a validade moral das justificativas que estadistas e analistas apresentam para iniciar as guerras preventivas. Para entender com mais acuidade a argu-mentao dessa corrente, abordamos primeiramente a proposta de Michael Walzer, autor basilar nesse tema. Em seguida, resgata-mos as noes de guerra preventiva no bellum justum em seus trs momentos principais: Grcia Antiga, Roma Antiga e Escolstica Medieval, contrastando-as, sempre que possvel, com o modelo de Michael Walzer.

    Bellum justum de Michael Walzer

    Certamente, uma das tentativas mais intensas de resgate e de re-novao do bellum justum para as teorias das relaes internacionais a representada por Michael Walzer em sua obra intitulada Guerras justas e injustas. Elaborada poca da Guerra do Vietn, a proposta da

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    pesquisa foi resgatar as questes morais e de justia como objeto de estudo das teorias das relaes internacionais, especialmente no que concerne aos conflitos. No resgate do tema da moral, Walzer alega que os adeptos do realismo poltico, estadistas e analistas e mesmo alguns legalistas e juristas excluram esse tema de suas aes e teorias sobre a guerra. Como resultado, diversas guerras injustas foram travadas em detrimento da autodeterminao, da soberania e do respeito aos direitos humanos de diversos povos. A soluo proposta por Walzer, para sanar o empobrecimento terico e pr-tico da discusso moral, uma releitura da argumentao moral da tradio escolstica, especialmente a que Francisco de Vitria j desenvolvia acerca das guerras.

    A premissa de Walzer que toda ao humana, assim como a guerra, passvel de julgamentos morais porque o prprio julga-mento moral uma atividade humana por excelncia. Com relao imoralidade da linguagem estratgica, esta deve ser descarta-da e condenada moralmente, no s por ser artificial, mas por ser aquiescente e/ou conivente com as injustias perpetradas inva-riavelmente pelas guerras motivo adicional de desconfiana no que tange ao discurso estratgico, advm da constatao de que os governantes e estrategistas, o mais das vezes, mentem em suas jus-tificativas para as guerras e acreditam-se superiores ou alheios aos julgamentos morais de suas aes (Walzer, 2003, p.21).

    Dada a importncia do julgamento moral, este deve1 ser feito considerando a natureza dicotmica da realidade da guerra: 1) as guerras so julgadas, moralmente, primeiro com referncia aos seus motivos e objetivos apregoados pelos chefes de Estado; 2) as guerras so julgadas conforme os meios adotados em sua realizao.

    A fonte dessa dicotomia, como indicado pelo autor e reconheci-do por diversos juristas como Norberto Bobbio (2002, p.76), Yoram Dinstein (2004, p.214) e Guido Fernando Silva Soares (2003, p.13),

    1 O uso do dever ser permeia todas as obras e pensamentos de Walzer por ser este autor extremamente prescritivo e moralista, assim como os escolsticos e outros adeptos do bellum justum.

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    atribuda aos escolsticos medievais que j se ocupavam em dis-tinguir o jus ad bellum (o direito da guerra) e o jus in bello (o direito na guerra). A semelhana entre os direitos evidente, ambos con-cernem guerra, mas so diferentes em sua competncia. No jus ad bellum, o que se julga o direto guerra, ou seja, o direito moral de iniciar uma guerra. Avalia-se moralmente se uma guerra representa uma autodefesa (legtima, justa) ou uma agresso (ileg-tima, injusta). J no jus in bello, o que se aplica o direito na guerra, julga-se o cumprimento ou a violao das normas de combate, o julgamento moral recai sobre a conduta na guerra. Mas somente a partir do final do sculo XIX que o jus in bello se destaca e toma forma do chamado Direito Humanitrio.

    Em face dessa dicotomia, Walzer alega que o julgamento moral das guerras deve ser feito em sua totalidade, julgando tanto a legiti-midade dos objetivos perseguidos quanto a dos meios empregados. Os condenados nesse duplo julgamento moral devem ser tambm punidos. As punies valer-se-o de expedientes semelhantes aos utilizados nos julgamentos de Nuremberg, mas priorizando a di-menso moral e julgando inclusive os vencedores que ultrapassem os limites morais durante a guerra. Esse o modelo basicamente proposto em Guerras justas e injustas, ao qual o autor agrega uma vasta gama de exemplos histricos, desde as Guerras do Pelopo-neso at a Guerra do Vietn. Atualmente, Walzer est empenhado no estudo do que chama jus post bellum, um direito que julga a justia ou a injustia de uma paz instaurada aps a guerra (Walzer, 2004, p.3-4).

    De tudo isso nos interessa o jus ad bellum, porque por ele que se julga se uma guerra preventiva justa ou injusta, especialmente porque a guerra preventiva a iniciao antecipada de uma guerra contra ameaas projetadas para o futuro.2 Lembramos ainda que se a causa de uma guerra preventiva for injusta no jus ad bellum, todo

    2 Utilizamos o termo ameaa projetada em dois sentidos, temporal ou espa-cial; assim, a ameaa pode ser presente ou futura, assim como interna ou externa, em relao ao poder poltico do Estado que se considere.

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    o resto (jus in bello e jus post bello) ser tangido como um crime de-corrente dessa injustia inicial, sendo objeto de condenao moral e de punio.

    No mbito do jus ad bellum, as guerras devem ser condenadas moralmente como se fossem crimes. Isto, porque para o autor a guerra quase sempre o inferno. Inferno no sentido de morti-cnio, violncia sem limites, desrespeito aos direitos humanos e polticos que todas as guerras acarretam. Em alguns casos, a guerra pode no ser concebida como um inferno; por exemplo, quando h deciso voluntria de lutar, pelo menos para aqueles que escolhe-ram uma vida guerreira, como acontecia com os exrcitos forma-dos por voluntrios, ou nas guerras da fidalguia e dos mercenrios durante o medievo e a baixa Idade Moderna europeia. No entanto, quando a deciso de lutar escapa vontade do soldado, como nos exrcitos de conscrio universal, a guerra literalmente um infer-no porque o cidado forado a combater uma guerra que no es-colheu. Diante disso, a moralidade do soldado reside na justa causa pela qual ele vai ou matar ou morrer em guerra. Resumidamente, nas palavras de Walzer (2003, p.45): Inferno palavra certa para designar os riscos que eles nunca escolheram, bem como a agonia e morte que sofrem. acertado que os responsveis por essa agonia sejam chamados de criminosos. Mais enfaticamente, a guerra o inferno sempre que os homens so forados a lutar, sempre que desrespeitado o limite do consentimento. Isso quer dizer, natural-mente, que ela o inferno quase sempre (ibidem, p.46).

    A partir dessa perspectiva, o mesmo Walzer no admite que as guerras injustas simplesmente eclodam, porque estas so aes realizadas com agentes e vtimas humanas para cumprir algum objetivo. Significa que o inferno da guerra no um mero acidente, mas um ato criminoso, quase sempre doloso, planejado durante dias ou meses antes de ser executado. A guerra tampouco tratada como uma atividade entre indivduos, mas como uma atividade entre coletividades, ou melhor, entidades polticas. Essa concepo inicial de guerra importada de Quincy Wright (1988, p.3), para quem a guerra um tipo de condio legal que acaba por conferir

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    uma permisso igual a dois ou mais grupos para realizar um con-flito, por meio de suas foras armadas. Logo, Walzer (2003, p.70) afirma que a guerra no bellum justum principalmente uma condi-o moral que envolve a mesma permisso, no no nvel apenas dos Estados soberanos, mas no nvel de exrcitos e de cada soldado pes-soalmente, que so os vetores de propagao do inferno da guerra.

    A guerra como inferno pode ser entendida tambm sob a classi-ficao no direito internacional como crime de agresso. Dado que o crime de agresso pressupe a existncia de um agressor, este deve ser identificado como o lado que atacou primeiro, visto que ele o propagador do inferno, pelo simples fato de que ningum compe-lido a usar a fora at que seja agredido.

    Em contrapartida, a resistncia agresso a guerra defensiva e sua causa justa no jus ad bellum, como se pode ver a partir dos dois argumentos apresentados:

    (a) A guerra defensiva traz a possibilidade de derrotar o ini-migo agressor e castig-lo para acabar com a tirania da guerra;

    (b) Diminuir as probabilidades de sofrer agresses futuras.

    O limite moral dessa argumentao que a vtima de agresso no pode imitar e/ou ultrapassar a brutalidade empreendida pelo agressor porque, mesmo a causa de defesa sendo justa no jus ad bellum, isso no autoriza a vtima a desrespeitar os limites morais do jus in bello, lembrando que as fontes do jus in bello so consideradas como o conjunto de normas, costumes, cdigos profissionais, preceitos legais, princpios religiosos e filosficos, e pactos mtuos que moldam nossos julgamentos da conduta militar de convenes de guerra (ibidem, p.74-5). Walzer ilustra essa interpretao na Guerra Civil Americana, em especial o episdio do incndio de Atlanta ordenado pelo General Sherman, quem acreditava que, sendo sua causa justa contra os confederados, no deveria ser res-ponsabilizado pelas atrocidades cometidas.

    Isto posto, concebem-se dois tipos de guerra: as ofensivas, que so agresses, e portanto crimes, e as defensivas, que so justas por

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    preservar os direitos das entidades polticas e dos indivduos que delas fazem parte, desde que respeitem o jus in bello. Para auxiliar nesse procedimento de diferenciao, se faz mister uma teoria da agresso para fornecer os critrios necessrios para um julgamento moral das guerras.

    Basicamente, a agresso um crime contra uma paz que foi in-terrompida. Por paz no se entende apenas a ausncia de conflitos armados, mas uma condio na qual as entidades polticas possam gozar de seus direitos com liberdade e segurana em termos tais que isso s mesmo possvel pela ausncia dos conflitos armados. A agresso tambm deve ser condenada moralmente porque se trata do nico crime que cometido entre Estados, sendo o resto con-siderado apenas contravenes. A linguagem jurdica ainda carece de critrios claros para definir com preciso o que uma agresso e quais so as punies cabveis para esse crime. Contudo, no obs-tante essa pobreza conceitual, os adeptos do bellum justum devem se esforar para condenar e punir os promovedores das guerras injustas, mormente os agressores, pelo que a agresso entendida como um crime nico e no diferenciado porque, em todas as suas formas, ela desafia direitos pelos quais vale a pena morrer (ibidem, p.89).

    A base desses direitos, que s existem na paz e que o crime de agresso desafia, expressa em uma linguagem comum chama-da de paradigma legalista. O paradigma mostra que possvel, apesar das dificuldades, julgar moralmente e legalmente as guerras recorrendo-se a uma analogia da situao interna. Isso significa que mesmo sendo a guerra uma atividade coletiva, ela acaba por desafiar os direitos individuais de duas formas: a primeira, porque o direito do Estado baseado em direitos individuais que lhe foram transferidos contratualmente pelos indivduos; a segunda, porque o inferno da guerra afeta os homens individualmente, ao cobrar-lhes suas vidas. Sobre a natureza desses direitos individuais, Walzer (ibidem, p.89) afirma: como esses direitos se fundam, no tenho como explicar aqui... basta dizer que de algum modo eles esto implcitos em nosso sentido do que significa ser um ser humano.

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    Admitindo essa perspectiva, o direito de soberania nas relaes internacionais seria o equivalente ao consentimento soberano na situao interna, e o direito de integridade territorial, o equivalente ao direito de propriedade na situao interna. Entendidos nesses termos, a soberania poltica e a integridade territorial podem ser defendidos exatamente da mesma forma que a vida e a liberdade individual (ibidem, p.91).

    Em sntese, o paradigma legalista segue seis princpios de julgamento sobre as guerras justas e injustas:

    1. Existe uma sociedade internacional de Estados soberanos fundada na premissa da no interveno.

    2. Essa sociedade internacional possui uma lei que estabelece os direitos de seus membros acima de tudo; os direitos de integridade territorial e de soberania poltica. Ademais, como os Estados so portadores de direitos, tambm so objeto de punio quando violam esses direitos.

    3. Qualquer ameaa ou uso da fora por parte de um Estado contra a soberania poltica de outro constitui uma agresso e um ato criminoso.

    4. Uma agresso justifica apenas dois tipos de resposta vio-lenta: uma guerra de autodefesa e uma guerra de reforo da lei feita pela vtima e qualquer outro membro da sociedade internacional.

    5. Nada alm da agresso pode justificar uma guerra.6. Assim que o Estado agressor seja militarmente repelido

    dever ser punido.

    Diferente da situao interna, o bellum justum reconhece que no h poder de polcia internacional para evitar e punir os crimes de agresso. Esse poder nas relaes internacionais distribudo entre os membros da sociedade, de sorte que possuir o poder de polcia no autoriza os Estados apenas a conter ou impedir uma agresso, mas tambm a puni-la, do que podemos depreender duas conjecturas fundamentais sobre a teoria da agresso no paradigma legalista do bellum justum:

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    I a) um Estado que a vtima de agresso luta em legtima defesa, porque a agresso um crime contra a sociedade internacional, pois fere o princpio de no interveno;

    b) toda resistncia considerada execuo da lei contra a agresso.

    II a) sempre deve haver um Estado a quem a lei deve ser imposta, algum deve ser responsabilizado por interrom-per a paz;

    b) nenhuma guerra pode ser, nesses termos, justa dos dois lados;

    c) nas guerras em que h dvida sobre qual causa justa ou sobre quem o agressor, assume-se que a guerra injusta por ambas as partes, como acontece nas guerras aristocrticas e imperialistas, nas quais a noo de justia nitidamente no se aplica (ibidem, p.100).

    Abordados esses elementos, podemos tentar responder ques-to: as guerras preventivas so legtimas, isto , podem ser iniciadas por uma causa justa? A reposta de Walzer e seus adeptos negativa, as guerras preventivas no so legtimas, elas so injustas. Natu-ralmente, a questo agora : por que as guerras preventivas so injustas? So injustas porque as guerras preventivas, na definio que invocamos antes, so proibidas pelos 3o e 5o princpios e geram efeitos funestos tambm em relao aos outros quatro princpios legalistas.

    O Estado que promove uma guerra preventiva, entendida pelo bellum justum como uma guerra ofensiva, assume imediatamente o papel de agressor, de criminoso a ser punido por promover o infer-no da guerra. Portanto, somente a guerra defensiva moralmente justificvel e legtima perante o paradigma legalista. Como afirma Walzer (ibidem, p.122),

    Guerras preventivas, guerras comerciais, guerras de expanso e de conquista, cruzadas religiosas, guerras revolucionrias, inter-venes militares todas esto proibidas e proibidas em termos

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    absolutos, praticamente da mesma forma que seus equivalentes na rea nacional so considerados ilcitos pela lei de cada pas.

    Essa postura frente guerra preventiva rejeita a argumentao clssica que os realistas polticos apresentam, qual seja, que a guer-ra preventiva um meio para manter o equilbrio de poderes entre os Estados, sobretudo na Europa:

    1. Um sistema de equilbrio de poderes preserva as liberdades polticas e por isso deve ser defendido.

    2. Lutar no incio, antes que o equilbrio pese de modo decisivo para um lado, reduz o custo da defesa; ademais, aguardar no significa evitar a guerra, mas talvez lutar em piores condi-es (ibidem, p.129).

    Esses dois argumentos favorveis para a guerra preventiva so condenados porque a noo de equilbrio de poderes, como critrio principal da poltica internacional desde pelo menos o sculo XVII, para Walzer absolutamente irreal, j que o equilbrio de poderes no pode ser realmente mensurado. No caso dos realistas, em es-pecial de Maquiavel, Walzer ainda afirma que a justificativa para a guerra preventiva advm sempre de um medo que os estadistas devem possuir sobre as intenes malevolentes de seus vizinhos, o que no passa de uma opinio de cinismo e no de realismo. Visto que o equilbrio de poderes nada mais do que uma srie de esti-pulaes sobre a segurana internacional, podemos assumir que a busca pelo equilbrio acarretou, historicamente, a deflagrao de inmeras guerras injustas, porquanto o equilbrio de poderes serve apenas como argumento de razo de Estado para mascarar os verdadeiros interesses dos lideres polticos, que com frequncia mentem aos povos para iniciar suas guerras.

    Mesmo que o equilbrio de poderes no representasse uma men-tira, os adeptos do bellum justum rejeitam essa noo porque, em seu entendimento, a implantao de equilbrio perfeito impossvel, pela constatao de que a capacidade de poder entre os Estados est em constante mudana, e cada mudana acabaria por justificar uma

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    nova guerra, formando um crculo vicioso de propagao do infer-no por razes corriqueiras.

    Alternativa proposta para a guerra preventiva que o medo sobre as intenes malevolentes dos vizinhos seja julgado por um conjunto de aes que materializem e manifestem o que se chama de ameaa: afinal, contra uma ameaa que o Estado argumenta em favor de iniciar uma guerra preventiva. Mas como nas guerras preventivas as ameaas no foram ainda concretizadas, assume-se que a preveno seja causa injusta para a guerra:

    A questo importante de qualquer maneira, pois sugere por que motivo as pessoas comearam a sentir certo constrangimento quanto guerra preventiva. No queremos lutar enquanto no for-mos ameaados porque somente nessa hora poderemos lutar justi-ficadamente. uma questo de segurana moral. (ibidem, p.134)

    Isto posto, fica claro o que Keohane e Buchanan (2004, p.8) chamaram de princpio de proibio geral (blanket prohibition) na postura de condenao moral das guerras preventivas no bellum justum: da a necessidade moral de rejeitar qualquer ataque que seja de carter meramente preventivo, que no dependa dos atos voluntrios de um adversrio e reaja a eles (Walzer, 2003, p.135).

    No entanto, mesmo o paradigma legalista sendo claro ao con-denar absolutamente as guerras preventivas, Walzer afirma que a analogia da situao interna uma ferramenta analtica eficiente, mas que possui limitaes quando aplicada diretamente realida-de moral da guerra. Para superar essas limitaes, o autor prope algumas revises do paradigma legalista pelas quais o uso da fora seja considerado justo em casos que no sejam de uma guer-ra defensiva; as principais revises so: 1) autodefesa preempti-va; 2) apoio a movimentos secessionistas que lutam em guerra de libertao nacional; 3) equilibrar a interveno em outros Estados que esto em guerra civil com uma contrainterveno; 4) resgatar populaes que estejam sob ameaa de escravido ou massacre.

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    O fundamento da autodefesa preemptiva que na realidade moral da guerra existem casos em que se reconhece que a agresso no foi iniciada por meio de disparos ou de invaso lindeira. O pro-blema em reconhecer esses casos que os governos sempre tendem a mentir a respeito de quem atacou antes, para evitar a acusao de agresso. De qualquer forma, o bellum justum admite uma margem de ao para a autodefesa, que reconhecida tambm pelo paradig-ma legalista, como a frmula da preempo, que Walzer importa do secretrio de Estado americano Daniel Webster.

    Em 1842, Webster, atuando no caso Caroline, discernia que o uso preemptivo da fora nas relaes internacionais no podia ser condenado moralmente ou legalmente, pois a preempo advinha da necessidade instantnea do Estado de se defender perante um ataque iminente, momentos em que as decises polticas esto re-duzidas a atacar ou a sofrer um ataque. Nessas circunstncias, uma entidade poltica pode iniciar o uso da fora sem que isso represente uma violao do 3o e 5o princpios do paradigma legalista.

    O critrio de distino entre a preempo, considerada legtima, e a preveno, ilegtima, temporal, isto , baseia-se na iminn-cia de a vtima sofrer o ataque. Na preempo existe um perigo real e imediato, enquanto na preveno o perigo supostamente se manifestar numa situao futura indesejvel. Como na analogia interna, uma vtima em potencial no precisa ser atacada para poder se defender; o mesmo ocorre entre os Estados, que percebendo as ameaas se concretizarem, podem optar por atacar antes de serem atacados, sem que isso seja julgado como injusto. Propomos a se-guinte figura para sintetizar a frmula de preempo de Webster:

    (imediata) Iminncia do ataque (futura) Preempo Preveno (legtima e legal) Julgamento moral (blanket prohibition)

    Figura 1 Modelo bsico da frmula da preempo de Webster

    Adicionalmente frmula da preempo de Webster, Walzer alega que no bellum justum a frmula precisa ser um pouco mais

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    permissiva no uso preventivo da fora: deve-se levar em conta no apenas a iminncia do ataque, mas inclusive sua magnitude e a probabilidade de se materializar, bem como os efeitos psicolgicos que a ameaa gera na vtima em potencial. A alternativa proposta como uma condio intermediria entre a preempo e a preveno (ambos os conceitos retm os significados atribudos por Webster), que chamada de precauo. De acordo com o autor, a linha entre a iniciativa de ataque legtima e ilegtima no ser traada no ponto da ameaa iminente, mas no ponto da ameaa suficiente (Walzer, 2003, p.136).

    A ideia geral que a precauo seja julgada em funo de trs pontos principais: uma inteno manifesta de ferir, um grau de preparao ativa que torne essa inteno um perigo positivo e uma situao geral em que esperar, ou tomar qualquer outra atitude que no seja a de lutar, aumentar enormemente os riscos (ibidem, p.136). Ainda de acordo com o autor, a diferena entre preveno, preempo e precauo a seguinte:

    A guerra preventiva contempla o passado e o futuro, o ato reflexo de Webster, o momento imediato, ao passo que a ideia de estar sob a ameaa concentra a ateno no que seria melhor chamar simplesmente de presente. No tenho como estipular uma faixa de tempo; trata-se de um perodo em que ainda se pode fazer escolhas e no qual possvel sentir a coao. (ibidem, p.137)

    Para tentar ilustrar a precauo, Walzer recorre ao caso da Guer-ra dos Seis Dias. Em seu entendimento moral, as circunstncias que agravaram a crise entre Israel e Egito e culminaram no ataque israe-lense em 5 de junho de 1967 no configuravam um perigo to real e imediato para Israel, ao ponto deste ataque inicial ser julgado como um caso de preempo. Entretanto, como Israel estava realmente sendo ameaado pela mobilizao das tropas de seus vizinhos ao redor do seu exterior prximo, em especial com a ameaa de blo-queio do Canal de Suez, e porque Nasser j havia manifestado em seus discursos a inteno de colocar Israel em perigo, pde Israel

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    atacar antecipada e justamente o Egito, sem que se tratasse de caso de preempo ou de preveno. O medo e a insegurana de Is-rael, por serem oriundos das aes de seus vizinhos, so entendidos como um medo justificado moralmente, ou seja, a ameaa que o Egito representava para Israel, mesmo no configurando um caso de preempo, cumpria os trs critrios morais da precauo de Walzer, seno vejamos:

    A iniciativa israelense , a meu ver, um ntido caso de precau-o legtima. Dizer isso , porm, sugerir uma grande reformula-o do paradigma legalista. Pois significa que a agresso pode ser detectada no s na ausncia de um ataque ou invaso militar, mas tambm na (provvel) ausncia de qualquer inteno imediata de lanar um ataque ou invaso desse tipo. (ibidem, p.143)

    Finalmente, Walzer afirma que a guerra preventiva completa-mente injusta, mas salienta que os adeptos do bellum justum devem se esforar em reconhecer os casos em que existam ameaas com as quais nenhuma nao pode conviver. Tais casos justificam as medidas de precauo como no caso israelense. Em sendo essa frmula mais permissiva que o paradigma legalista, o julgamento moral deve ter suas restries baseadas na especificidade das dife-rentes ameaas e conflitos (ibidem, p.144). Para sintetizar o modelo de Walzer, propomos a seguinte figura:

    Preempo Precauo ameaas Preveno (iminente) (suficiente) (futura)

    Julgamento moral (legtima e legal) (legtima e legal) (blanket prohibition)

    Figura 2 Modelo bsico da frmula da precauo de Walzer

    At esse ponto, explicamos o cabedal de condenaes morais de Walzer sobre as guerras preventivas sem nos atermos a um exame minucioso das suas fontes. Com efeito, alegamos que o autor no

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    se esfora para esclarecer aos seus leitores quais as origens da sua tradio de pensamento, o que acarreta diversas dificuldades para contextualizar e avaliar o desenvolvimento do tema das guerras pre-ventivas nessa antiga tradio. Adicionalmente, Walzer negligencia em sua obra os elementos que levaram os juristas e os realistas pol-ticos a se apartar do bellum justum, por considerarem essa argumen-tao sobre a guerra esgotada. Com o objetivo de sanar parte dessas dificuldades analticas sobre as guerras preventivas, abordamos os principais elementos do bellum justum em trs momentos clssicos: Grcia Antiga, Roma Antiga e Catolicismo Medieval.

    Grcia Antiga

    As origens diretas do bellum justum so atribudas aos costumes religiosos das primeiras sociedades gentlicas romanas, por volta do sculo VIII a. C., isso porque foram os romanos que mais perfeita-mente institucionalizaram esse princpio na sua organizao pol-tica, militar e religiosa. Todavia, seus elementos fundamentais so identificveis na tradio grega pr-arcaica, por meio das rapsdias homricas (cf. Giordani, 1992, p.108), e na tradio grega clssica, nos textos de Tucdedes e de Aristteles. O ponto fundamental para entendermos o que os antigos gregos chamavam de guerras justas e injustas resgatar o que significava para esses povos a noo de justia em suas relaes internacionais.

    Segundo a narrativa metafrica de Homero, envolvendo ele-mentos culturais ancestrais dos gregos (cf. Correa, 1998, p.20-1), nota-se uma preocupao por parte dos reis em saber se os povos com quem travavam relaes eram justos ou injustos. Basicamente, o estrangeiro justo era algum que fora considerado um igual ao grego por um pacto de reciprocidade (ksena), consagrado em con-formidade com a lei da hospitalidade. Os pactuantes trocavam presentes como smbolon de sua igualdade que sustentaria sua ami-zade, porque esse pacto era chamado de philtes (amizade), e os con-tratantes se designavam phili (amigos) (cf. Campos, 2003, p.17).

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    Homero oferece trs grandes ilustraes dessas relaes na Ila-da e na Odissia. As duas primeiras constam nos cantos VI e VII da Ilada, nas batalhas entre Diomedes e Glauco (Homero, 2003, p.245) e entre Hctor e jax (ibidem, p.283), respectivamente. Nas duas, mesmo os heris sendo adversrios combatentes em uma guerra cruenta, acabam por reconhecer sua igualdade pela lei da hospitalidade e declaram-se amigos. A amizade no forte o sufi-ciente para cessar a guerra em andamento, mas referido que ser a amizade que reger as relaes das partes desde o momento da cele-brao do pacto at o ps-guerra. O terceiro exemplo, da Odissia, o encontro entre Ulisses e o Ciclope, no qual o heri grego e seus companheiros resolvem testar a lei da hospitalidade com o monstro; so malsucedidos e muitos so devorados antes que consigam es-capar (Homero, 2007, p.97).

    Essa lei da hospitalidade regulava as relaes do estrangeiro justo, igual, amigo do grego e era assentada em antigos costumes religiosos, especificamente na crena de que no seria sensato fus-tigar aos estrangeiros suplicantes porque s vezes, os deuses se fazem passar por forasteiros de outras terras, por toda condio de homens, e visitam as cidades para olhar as aes dos homens e ver se elas so boas ou ms (ibidem, p.187). Em verdade, essa herana religiosa nas doutrinas do bellum justum caracterstica marcante tambm na tradio romana e na escolstica. Entretanto, a Religio e a Poesia no esgotam o bellum justum grego, que pode ser identifi-cado ainda na Histria e na Poltica, cincias nas quais a contribui-o grega foi bastante marcante para o pensamento ocidental.

    Tomando a obra de Tucdedes sobre as Guerras do Peloponeso, j em seu incio avaliado que as preocupaes dos gregos em saber se os povos eram justos ou injustos no foram sempre observadas, porque era costume dos antigos gregos praticarem a pirataria e a pilhagem contra cidades desprotegidas, sem que essas ativida-des fossem consideradas moralmente desabonadoras ou injustas. Assim, a prpria obra de Homero, na qual o Ciclope desconfia que Ulisses seja um pirata injusto, aparece como de juzo moral tardio dos gregos, ainda que pr-arcaico. Isto significa que, para Tucde-

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    des, o padro de julgamento sobre quem e o que justo no uniforme no tempo e no espao e se modifica de acordo com os va-lores e prticas culturais dos povos no devir histrico. Pela mesma razo, Aristteles (2000, p.193) dizia que ao considerar a cincia poltica em relao aos fatos histricos, especificamente a histria das constituies, observa-se como os velhos costumes e leis eram incivilizados e toscos. Essa alegao pareceria banal, mas, como se ver adiante, com referncia a interpretao dos escolsticos sobre as guerras justas dos romanos, sua no observncia acarreta diversas dificuldades e incompreenses analticas.

    Quanto opinio de Tucdedes, este possua um juzo quase preestabelecido sobre quem era justo e injusto em seu sistema in-ternacional. A dicotomia era representada entre os helenos (justos) e imprio Aquemnida (injusto). Nesse ponto, Tucdedes, diferen-temente de Homero, ope a noo de brbaro de heleno. Lembre-mos que, para Homero, os prprios troianos eram tambm homens justos, e que poderiam ser tratados com reciprocidade. J para Tuc-dedes (2001, p.12), a noo de brbaro usada em referncia coleti-va para os povos do imprio Aquemnida. Repare-se que no ttulo que conferiu a Xerxes, simplesmente o chamava de O Brbaro.

    Esse relativo desprezo de Tucdedes em relao aos aquemni-das certamente advm de sua interpretao sobre a ocasio em que as pleis da Inia, de colonizao ateniense em ps-guerra de Tria, tornaram-se ricas e passaram a ser fruto de cobia daqueles. A crise principal entre as partes ocorre quando Dario sucedido por seu filho Xerxes. frente do poder, Xerxes exige da Hlade a entrega de gua e terra como smbolo de submisso poltica. interes-sante notar o valor que esse ato teve para os gregos: como as con-dies propostas por Xerxes implicavam na submisso poltica da Hlade e, por definio, eram incompatveis com a reciprocidade entre as partes, ficava patente para os gregos que no havia desejo de hospitalidade dos aquemnidas. Precisamente, como smbolon de uma condio de submisso poltica, gua e terra no ligariam as partes pela amizade (philtes), fazendo-os amigos (phloi). essa amizade que ocorre entre Diomedes e Glauco, jax e Hctor, e

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    inimizade na relao entre Ulisses e o Ciclope. Analogamente, no caso das Guerras Mdicas, Xerxes teria exigido um smbolon de submisso, de desigualdade, enfim, de inimizade, para representar suas relaes com os helenos; mostrava-se destarte injusto, inexo-ravelmente Brbaro.

    Aparentemente, a lei da hospitalidade representava no mundo grego antigo, no limite, as relaes entre o justo e o injusto em uma perspectiva moral, visto que a hospitalidade regia um sistema de troca no qual a expectativa de benefcios ou danos no era com-pelida nem pela lei, nem pela fora (Campos, 2003, p.17). Mas, como verificamos em Aristteles (1987, p.126), existia uma ntima relao entre a justia e a amizade que, enquanto objetos da moral, s podiam ser realizadas por meio da prtica, porque

    Se assim no fosse, no haveria nenhuma necessidade do mes-tre, porm todos nasceriam bons ou maus. O mesmo vale, justa-mente, tambm para as virtudes: pois que no modo de agir nas relaes com os homens nos fazemos uns justos, outros injustos; e no modo de agir nos perigos, habituando-nos a temer ou a ousar, tornando-nos alguns fortes e outros vis. (ibidem, p.63, grifo nosso)

    A partir dos elementos morais de reciprocidade, hospitalidade, amizade, igualdade e justia no mundo grego indagamos: a Guerra do Peloponeso, tradicionalmente interpretada como guerra preven-tiva, foi uma guerra justa? A resposta apropriada para essa questo depender da noo de justia que se considere.

    Se admitirmos a verso de Walzer (2003, p.10) para o bellum jus-tum, partindo da sua teoria da agresso e do paradigma legalista, concordaremos com ele que em Tucdedes os princpios de poder e fora acabam formando um mundo prprio, completamente dis-sociado e diferente das leis que regem a moral e a justia. Mas a interpretao de Walzer um tanto equivocada, pois os princpios morais de justia e de amizade grega estavam relacionados com as capacidades de poder e virtude das partes. O poder e a virtude, assim como poltica e tica, no eram conceitos separados e antag-

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    nicos, eram antes elementos complementares.3 Nesse ponto, Aris-tteles esclarecia que parece que o justo igual, e , mas no para todas as pessoas; apenas para as que so iguais. O desigual tambm parece justo, e , mas no para todos; apenas para os desiguais. Cometemos erros terrveis ao negligenciar esse para quem quando decidimos o que justo (Aristteles, 2000, p.226).

    Decorre desse embarao e erro que, para Walzer, a teoria da agresso tenha primazia em seu julgamento moral do caso do cerco ateniense a Melos, no qual o autor condena os generais atenienses por um ato de agresso de uma potncia imperial. Mas precisa-mente por isso que necessrio levar em conta que para Tucdedes, a prpria condio de poder de Atenas poca do incio da rivalida-de com Esparta j era a causa justa para a Liga iniciar uma guerra, pois Atenas estava transformando sua hegemonia em um imprio. As aes atenienses de cobrana de altos tributos e confisco das esquadras de seus aliados, exceto de Lesbos e Quios, para conso-lidar sua talassocracia, categorizavam-na, cada vez mais, como um imprio. Foi assim que os recursos prprios dos atenienses dispo-nveis para a guerra tornaram-se maiores que os dos lacedemnios e seus aliados ao tempo que a aliana anterior estava intacta e forte (Tucdedes, 2001, p.13).

    Tambm Arnold Toynbee (1963, p.67-8) acredita que as Guer-ras do Peloponeso tiveram como causa fundamental um sentimento de medo por parte dos lacedemnios em relao ao poder crescen-te dos atenienses, medo de que esse poder emergente de Atenas pudesse dissolver no futuro o cordo sanitrio de alianas que envolviam Atenas, e foi por esse sentimento de medo que os lacede-mnios pegaram em armas contra os atenienses. Alis, o pesadelo dos lacedemnios de que Atenas fizesse uma aliana com os hilotas jamais se concretizou, nem quando Demstenes teve essa oportuni-

    3 Fonseca (1987, p.25) salienta que todos sabem quanto embarao para ns modernos apresentam os juzos de avaliao dos gregos: o lado esttico e o lado utilitrio (belo e til) no so geralmente distintos do lado propriamente da moral na ao (bom).

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    dade em 425 a. C. Com efeito, Tucdedes (2001, p.15) acredita que a explicao mais verdica, apesar de menos frequentemente ale-gada, , em minha opinio, que os atenienses estavam tornando-se muito poderosos, e isto inquietava os lacedemnios, compelindo-os a recorrerem guerra.

    Dito isso, podemos resgatar o clssico discurso da delegao de Corinto, a que mais desejava a guerra contra Atenas, conclamando uma votao da Liga do Peloponeso para empreender uma guerra preventiva contra a Confederao de Delos:

    Ao contrrio, aliados, reconhecei que estamos enfrentando o inevitvel e, ao mesmo tempo, que esta soluo a melhor, votai pela guerra, no por temor de um perigo imediato, mas aspirando paz mais duradoura que advir, pois a paz mais firme quando se segue guerra; recusar-se a fazer a guerra por apego tranqui-lidade no sequer menos perigoso. Assim falaram os corntios. (ibidem, p.73, grifos nossos)

    Novamente, se tentarmos entender esse discurso valendo-nos do bellum justum walzeriano, nosso esprito escandalizar-se- com a imoralidade da proposta poltica dos corntios e estaremos in-correndo no grave erro de acreditar que tais conceitos estejam identificados, e que falte a conscincia dos valores espirituais nos discursos dos gregos (Fonseca, 1987, p.25). Mas, se levarmos em conta a ntima relao que o poder e a moral tinham para esse povo, ver-se- que o discurso era plenamente moral de acordo com seus prprios padres. Portanto, o que os corntios querem dizer com enfrentar o inevitvel no o que Walzer acredita ser a inevita-bilidade da guerra, mas que Atenas, ao transformar sua hegemonia em imprio, forar, inevitavelmente, a submisso das outras pleis. Ou seja, no a guerra a situao inevitvel, mas a consolidao do poder imperial de Atenas ao qual a guerra ou a submisso seriam as nicas alternativas. Assim, entendemos que os corntios alegavam que Atenas representava um perigo imediato, porque pelo menos para a esquadra corntia a talassocracia ateniense j representava

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    uma ameaa concreta. Entretanto, acreditavam que a principal causa justa da Liga para realizar a guerra preventiva seria o obje-tivo poltico de conquistar uma paz mais duradoura, isto , uma paz na qual a distribuio de poderes fosse mais simtrica e que por isso duraria mais do que a expectativa de prorrogao da paz vigente. Finalmente, instigavam a refrega no s porque recusar-se a fazer a guerra por apego tranquilidade no sequer menos perigoso, mas tambm porque na moral grega, como dizia Aristteles, no modo de agir nos perigos, habituando-nos a temer ou a ousar que os homens acabam tornando-se alguns fortes e outros vis.

    Com isso em mente, entendemos porque a opinio de Tucdedes no imoral ou injusta por justificar uma guerra preventiva pelo equilbrio de poderes na Hlade. Em primeiro lugar, os gregos no tinham uma moral universal a ser seguida, mas existiam vrias morais e cada escola filosfica tinha a sua moral (Bobbio, 1999, p.182). Segundo, a moral grega envolvia as relaes de poder entre as partes. Essa interpretao reforada no fato de que foi o pr-prio Tucdedes quem elaborou grande parte dos discursos polticos sobre as Guerras do Peloponeso, e no de se supor que o historia-dor tenha optado deliberadamente por discursos imorais e injustos para seus generais e polticos, como sugere Walzer (2003, p.9-10), mas que havia nos discursos polticos dos gregos antigos uma har-monia da moral (tica) e da poltica (poder). Como salienta Cssio Fonseca (1987, p.25), aqueles conceitos eles os achavam harm-nicos, mesmo que no idnticos; tampouco entre os valores do su-jeito e as coisas sentiam discrdias. Esse tambm o parecer de Raymond Aron (2002, p.212) sobre o historiador grego: cidado de Atenas, Tucdedes no condena a aspirao imperial da sua p-tria, que natural, mas tambm no nega que a aliana espartana defenda as liberdades tradicionais.

    Por essa perspectiva filosfica, o grego entendia antecipada e claramente que ao falarmos das coisas honestas e justas, em espe-cial nas guerras, que so os objetos de estudo da cincia poltica, encontra-se tanta disparidade de opinies, que parecem no serem tais por natureza, mas somente por lei. Acerca das coisas conside-

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    radas boas, depara-se tambm com certa instabilidade de juzos (Aristteles, 1987, p.25). Por consequncia, no acreditavam que se pudesse ou devesse deliberar minuciosamente sobre o que justo e honesto, mas apenas indicar uma verdade geral e esboada sobre o tema, visto que a prtica do que justo o que de fato interessa.

    Por considerarem a justia uma virtude prtica, os gregos a ma-nifestavam no exerccio das coisas polticas e das blicas. A relao entre as duas atividades tambm harmnica, porquanto a poltica e a guerra so plenas de canseiras, e especialmente as blicas; que ningum deseja a guerra, nem para a guerra se prepara, pela guerra: pareceria verdadeiramente sanguinrio aquele que tornasse inimi-gos os amigos para fazer nascerem batalhas e morticnios (ibidem, p.156). Depreende-se disso que as virtudes polticas e blicas eram consideradas as mais justas, porque visam a um outro fim e no so desejadas por si mesmas (ibidem, p.157).

    Em contrapartida, os adeptos do bellum justum de Walzer (2003, p.33) sustentam que nosso entendimento do vocabulrio moral suficientemente comum e estvel para possibilitar julgamentos compartilhados sobre o que justo ou injusto nas guerras. Mas necessrio relembrar que, para Aristteles, antes de agir com justi-a, o principal entender que o ser justo significa algo:

    Apenas para certas pessoas e em relao a certas coisas, esses homens, embora concordando quanto igualdade da coisa (uma distino apontada em minha tica), discordam quanto ao para quem; e isso, em especial, pelo motivo j mencionado, de julgar a partir de seus prprios casos, e portanto julgar mal. E creem falar em justia absoluta simplesmente porque veem, todos eles, a justia num sentido limitado. (Aristteles, p.226, grifo nosso)

    Assim, a anlise da guerra justa dos gregos quase inversa que prope Walzer, por ao menos duas razes. Primeiro pela harmo-nia entre as relaes de poder e moral para os gregos, diferente do bellum justum de Walzer, para quem a moral deve ter primazia sobre as relaes de poder. Depois, porque a agresso no era a questo

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    poltica fundamental a ser avaliada como uma causa justa para uma guerra: o que consideravam eram as relaes de poder entre as partes e o objetivo poltico de conseguir uma paz mais duradoura. Destarte, entendemos que as guerras preventivas no eram toma-das como inexoravelmente injustas ou imorais pelos gregos; ao con-trrio, no havendo o sentido de blanket prohibition para eles, no seria estranho que empreendessem guerras preventivas a partir de causas consideradas plenamente justas para ambos os beligerantes.

    Roma Antiga

    Como mencionamos antes, diversos elementos religiosos e fi-losficos do bellum justum so identificveis na tradio grega, mas foram os antigos romanos que mais perfeitamente institucionaliza-ram o bellum justum em sua religio, no direito e na poltica. Para entendermos o que eram as guerras justas dos romanos e avaliarmos se uma guerra preventiva poderia ser considerada uma guerra justa, preciso examinar brevemente a religio romana, pois nela que se assenta a noo de bellum justum.

    Parte das tradies religiosas dos antigos romanos foi herdada dos etruscos, um povo bastante religioso que valorizava os jura-mentos, habitava na regio entre o Rio Arno e o Tibre e possua reis que unificavam funes polticas e religiosas (cf. Giordani, 1998, p.20). Na religio etrusca, era costume interpretar a vontade dos deuses por meio do exame dos corpos celestes (auspicia caelestia) e pelo exame do voo e pio das aves (auspicia ex avibus) (ibidem, p.26).

    Em analogia aos etruscos, durante a monarquia romana, do governo de Rmulo, entre 753 a. C. a 715 a. C., at a expulso de Tarqunio, o Soberbo, em 510 a. C. (cf. Montesquieu, 1997, p.109), os reis romanos possuam semelhante prerrogativa sobre a poltica e a religio. Com efeito, nos primrdios romanos, a principal noo poltica sobre o direito distinguia o fas, matria do direito emanado dos deuses (Lex divina) e o jus, matria emanada da lei dos homens (Lex humana).

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    Com o passar do tempo, essa distino entre o fas e jus desapare-ceu e se utiliza o jus para referncia ao conjunto do direito romano. Na sua origem etimolgica, o jus representava um agrupamento de regras fixadas pela autoridade, s quais os cidados eram obrigados a obedecer (cf. Petit, 1968, p.18). Do que os romanos entendiam como jus derivava a justitia, a qualidade do homem justo, aquele que condiciona sua vontade ao direito sem rebeldia, e a jurisprudentia, entendida como o conhecimento do que matria do direito divino e humano, a prpria cincia do que justo ou injusto. Assim, numa concepo mais abrangente, diz-se que o direito romano di-vidia-se entre direito pblico (jus publicum), mais relacionado com o direito divino, e direito privado (jus privatum), mais relacionado com as leis dos homens. O direito pblico compreendia o direito do Estado, como a organizao e nomeao das magistraturas e atividades sacerdotais (jus sacrum). O direito privado era referente aos particulares e compreendia o direito natural, o direito das gentes e o direito civil (jus naturale, jus gentium, jus civile) (ibidem, p.19).

    Do exposto, depreende-se o entendimento de Giordani sobre a ntima relao entre a religio e o direito dos romanos:

    Observe-se que o xito do ritual independe da atitude moral do suplicante: o culto romano carece de sentido moral, essen-cialmente formalista. Igualmente a divindade no forada, pelo ritual, a atender a prece: seria errneo atribuir s cerimnias do culto romano um poder mgico de dobrar os seres superiores. Estes ouvem as oraes porque so justas, no no sentido moral mas no sentido jurdico, isto , cumprem sua parte no contrato.

    De tudo isso fcil compreender por que os autores falam em carter jurdico dos cultos romanos... Como as frmulas jurdicas, as preces deviam ser claras, ntidas, sem omisso ou troca de qualquer palavra e acompanhada de gestos indispensveis. (Giordani, 1998, p.297, grifos nossos)

    Sobre isso, cabe a ressalva de que mesmo havendo algumas confuses entre o direito, a religio e a moral romana para alguns

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    jurisconsultos, na realidade, os romanos sempre distinguiram cui-dadosamente esses domnios e, provvel, que nenhuma outra legislao tenha melhor observado essa separao, abstendo-se de regulamentar tudo o que assunto da conscincia, assegurando assim a liberdade individual (Petit, 1968, p.18). Esses argumentos comprovam-se nessa passagem das Catilinrias de Marco Tlio Ccero (2005, p.71): pois sendo certo que muitas vezes se tm dado aos deuses imortais os justos e devidos cultos, tambm certo que mais justos nunca se deram.

    No que concernia ao governo do Estado, as instituies religio-sas dos auspcios e dos augrios, em parte herdadas da religio etrus-ca, funcionavam como mecanismos polticos bastante sofisticados, conforme resgata Pedro Mota (1997, p.207-8):

    Auspcio e augrio eram, percebe-se, peas de um meca-nismo poltico para dividir o Poder, meta que presidia em Roma. Por isso mesmo, Roma precisava de auspcio e augrio para tudo que era importante (inclusive para a guerra)... Modernamente, as duas instituies desapareceram e olvidou-se a significao prpria de cada vocbulo.

    A distribuio da competncia dos augrios e dos auspcios era, parte do rei, realizada dentre diferentes grupos. No havendo no politesmo romano uma classe sacerdotal, qualquer cidado ro-mano podia ingressar nas atividades sacerdotais, mas a faculdade de rex sacronum garantia aos reis certa primazia sobre os demais sacerdotes. A estrutura sacerdotal era composta pelos flmines, originalmente 15 sacerdotes do povo. Os trs primeiros veneravam as deidades superiores: flamen Dialis (Jpiter), flamen Martialis (Marte), flamen Quirinalis (Quirino), e o restante dos flmines que veneravam deidades menores, alm de trs colgios sacerdotais principais: o Colgio dos Pontfices, o Colgio dos ugures e o Colgio dos Fetiale (Giordani, 1998, p.297). Desses grupos sacer-dotais, era nos colgios que as instituies de augrios e auspcios operavam sobre o bellum justum romano. De acordo com o parecer de Giordani, as atribuies dos colgios eram:

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    Colgio dos Pontfices: esse colgio era regido pelo Pontifex Maximus, o mximo construidor de pontes entre os roma-nos e seus deuses. Ao que parece, em tempos remotos esse cargo era ocupado pelos reis, mas na repblica os pontfices escolhiam seu chefe em carter vitalcio e possuam grande controle sobre a religio romana; dentre suas atribuies, destacam-se a de nomear os flmines e a de transmitir o rex sacrorum. A importncia do Pontifex Maximus para o sistema poltico de Roma pode ser avaliada pela obstinao de Csar e Octaviano Augusto em ocupar esse cargo.

    Colgio dos ugures: seus membros eram vitalcios e sua competncia era assistir magistratura em interpretar os aus-pcios. Usavam para isso trs expedientes: exame do voo e grito das aves (auspicia ex avibus); observao do comporta-mento dos frangos sagrados e a interpretao dos relmpagos (auspicia caelestia). Como toda deciso poltica importante demandava a interpretao dos auspcios, os ugures, durante muito tempo, puderam dispor de influncia nos processos polticos da monarquia e da repblica; em contrapartida, na poca imperial seu papel foi se tornando secundrio.

    Colgio dos Fetiale: de acordo com o entendimento de Gior-dani, considerando-se os instrumentos e a liturgia desse Col-gio, conclu-se que sua existncia remontaria a tempos ime-moriais. O colgio era formado por vinte sacerdotes com a incumbncia de garantir que as relaes exteriores do Estado Romano observassem o jus divinum. Para que uma guerra romana fosse considerada justa, era necessrio que os fetiales, aps examinar os auspcios, a declarassem como justa, ou seja, no declaravam a moralidade da guerra e dos tratados de paz, apenas confirmavam que essas moes seguiram as regras pre-cisas e minuciosas exigidas pelo formalismo da liturgia romana.

    Para Yoram Dinstein (2004, p.87), pelo menos duas condies primrias deveriam ser cumpridas para a guerra justa: o primeiro requisito era encaminhar uma petio ao adversrio insistindo na reparao de danos ou ofensas cometidas contra Roma com prazo preestabelecido para a devida resposta. O segundo requisito era

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    emitir a declarao de guerra que envolvia uma cerimnia rituals-tica elaborada e realizada pelos fetiales.

    Aspecto notadamente interessante concerne ao sujeito contra quem a guerra justa podia ser movida pelos romanos, os chama-dos hostis. Semelhante ao philtes e o phili grego antes abordado, o hostis, como esclarece Alberico Gentili (2005, p.62), era a palavra utilizada pelos romanos em referncia aos forasteiros que dispuses-sem de igualdade de direitos com os romanos; propriamente dito, o hostis era a pessoa contra qual feita a guerra e que igual outra. O princpio de igualdade entre as partes trazia a noo de que no havia luta, mas disputa entre elas, especialmente em se tratando dos primeiros vizinhos dos romanos, uma possvel aluso aos etrus-cos e aos samnitas. A partir da concepo de igualdade de poder entre as partes, surgiu um humanismo, nem sempre respeitado, do qual se inferia que no se deveria ser demasiado cruel e spero para com o inimigo, enfatizando-se os povos vizinhos. Por essa razo, dizia Gentili, agrada-me constatar a esse propsito a inteli-gncia daqueles sbios na escolha dessas palavras (ibidem, p.63).

    O princpio de hostis e de igualdade no direito romano to pungente que Gentili alega ser esta a prpria base da concepo moderna de que a guerra uma atividade realizada por entidades polticas soberanas. Esse juzo decorre do entendimento de que s eram inimigos dos romanos aqueles contra quem fora declarada publicamente a guerra, ou os povos que declarassem publicamente a guerra contra Roma. De resto, havia apenas os salteadores ou ladres que eram tratados a partir do jus gentium (direito das gen-tes), essencialmente direito privado (ibidem, p.65).

    A partir dessas consideraes, de se interrogar: as guerras pre-ventivas poderiam ser justas para os romanos? Uma vez mais, a resposta depende da noo de guerra justa que se considere.

    Desenvolveu-se ao longo dos sculos um intenso debate sobre as guerras justas romanas e seu carter preventivo, entre os prin-cipais pensadores do bellum justum escolstico, durante o medievo europeu e at o perodo da Renascena, ao que surgem tambm os argumentos laicos dos juristas e dos realistas polticos. Sob diversos

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    aspectos, pode-se entender que o debate sobre as guerras justas ro-manas serviu como um mundo histrico e, para algumas correntes, como um mundo ideal, do qual seus adeptos se valeram para apre-sentar e refutar suas concepes polticas e morais sobre as guerras.

    Para ilustrar os argumentos de cada corrente sobre as guerras justas romanas, resgataremos o parecer de Francisco de Vitria, como representante do bellum justum escolstico; Hugo Grtius, representando os juristas; e Maquiavel e Montesquieu, represen-tando os realistas polticos. Em adio, selecionamos um trecho do National Security Strategy de 2002 da administrao Bush, para realar a semelhana na estrutura formal de argumentao sobre as guerras preventivas de discursos polticos clssicos e os con-temporneos. Vale qualificar que apesar de ser a abordagem, aqui, prioritariamente terica, no se deve descartar a importncia que os estudos histricos oferecem sobre a civilizao greco-romana porque, como afirma Toynbee (1976, p.62), em muitos aspectos a civilizao grega entrou em colapso, no sculo V a. C. por no ter podido encontrar uma resposta feliz para este mesmo desafio que nossa civilizao ocidental est enfrentando agora, em nossa existncia. Para uma melhor exposio dos argumentos tericos, a citao literal dos autores parece-nos a mais apropriada, por acredi-tar que no faz-lo diminuiria a preciso conceitual dos vocbulos utilizados no discurso dos autores:

    a) Escolstica de Francisco de Vitria (2006, p.107):

    Isso se confirma porque realmente esta foi a causa principal pela qual os romanos ampliaram seu imprio, prestando ajuda a seus aliados e amigos; aceitando guerras justas, aproveitaram para tomar posse de novas provncias de acordo com o direito de guerra. Santo Agostinho e So Toms reconheceram a legitimidade do imprio romano... No se sabe mediante qual outro ttulo jurdico pudessem os romanos a se apossar do mundo, a no ser pelo Direito de guerra, cuja ocasio foi, principalmente, defender e vingar seus aliados... Este parece ser o stimo e ltimo ttulo pelo qual puderam os ndios e suas provncias cair em poder e domnio dos espanhis. (grifo nosso)

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    b) Juristas, Hugo Grotius (2004, p.51):

    o que nos ensina essa antiga frmula dos romanos expressa por Tito Lvio: Acho que devemos recuperar estas coisas por uma guerra sem mcula e justa. Os mesmos antigos romanos, como Varro notava, no empreendiam a guerra seno tardiamente e nela no cometiam nenhum abuso porque pensavam que nenhuma guerra devia ser feita que no fosse legtima. Camilo dizia que se deve fazer a guerra com no menos justia que intrepidez. Segundo Cipio, o Africano, o povo romano empreendia suas guerras com justia e as ter-minava da mesma maneira. Nesse autor se pode ler que a guerra tem suas leis, bem como as tem a paz. Outro admira Fabrcio como um grande homem porque, o que muito difcil, conduzia a guerra com honestidade e acreditava que h coisas ilcitas, mesmo com relao ao inimigo... A opinio de que a guerra no foi movida com temeri-dade nem com injustia e que conduzida de maneira legtima tem at uma grande eficcia para conciliar amizades que os povos, como os indivduos, tm necessidade para muitas coisas. Ningum, de fato, se alia facilmente aos que tem reputao de fazer pouco caso do direito, da justia e da boa-f.

    Estou convencido, pelas consideraes que acabo de expor, que existe um direito comum a todos os povos e que serve para a guerra (jus ad bellum) e na guerra (jus in bello). Por isso tive numerosas razes para me determinar a escrever sobre o assunto. Via no universo cristo uma leviandade com relao guerra que teria deixado enver-gonhadas as prprias naes brbaras. Por causas fteis ou mesmo sem motivo se corria s armas e, quando j com elas s mos, no se observava mais respeito algum para com o direito divino nem para com o direito humano, como se, pela fora de um edito, o furor tivesse sido desencadeado sobre todos os crimes. (grifo nosso)

    c) Realismo de Maquiavel e Montesquieu:

    Os romanos nestes casos fizeram o que todo prncipe prudente deve fazer: no s remediar o presente, mas prever os casos futuros

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    e preveni-los com toda a percia, de forma que lhes possa facilmente levar corretivo, e no deixar que se aproximem os acontecimentos, pois deste modo o remdio no chega a tempo, tendo-se tornado incurvel a molstia... ...assim os romanos, vendo de longe as perturbaes, sempre as remediaram e nunca as deixaram seguir o seu curso, para evitar guerras, pois sabiam que a guerra no se evita, mas se protelada redunda sempre em proveito de outros. Assim, empreenderam a guerra contra Filipe e Antoco, na Grcia, para no ter de faz-la na Itlia; podiam t-la evitado, mas no o quiseram. No lhes agradava fiar-se no tempo para resolver as questes, como os sbios da nossa poca, mas s se louvavam na prpria virtude e prudncia, porque o tempo leva por diante todas as coisas, e pode mudar o bem em mal e transformar o mal em bem. (Maquiavel, 2008b, p.58-9)

    Como eles cometiam aos inimigos perversidades inconcebveis, quase no se formavam ligas contra eles. Pois os que estavam mais afastados do perigo no queriam aproximar-se.

    Sendo seu costume falar como senhores, os seus embaixadores, enviados a povos que ainda no haviam sentido o poderio deles, eram certamente maltratados, o que constitua pretexto certo para fazerem uma nova guerra. (Por exemplo, guerra contra os dlmatas).

    Mesmo o ttulo de aliado sendo uma espcie de servido, era, no obstante, muito procurado. Pois se estava seguro de receber injurias s dos romanos, e era de esperar-se fossem elas menores.

    Serviam-se os romanos dos seus aliados para fazer a guerra a um inimigo mas logo destruam os destruidores;

    Aps destruir os exrcitos de um prncipe, arruinavam-lhe as finanas com taxas excessivas ou um tributo, a pretexto de faz-lo pagar os custos de guerra.

    Como nunca faziam a paz de boa-f, e como, no desgnio de invadir tudo, seus tratados no passavam de trguas propriamente, eles incluam a condies que sempre iniciavam a runa do Estado que as aceitava.

    Enfim, pelos tratados impostos e pela lei da sujeio nunca faziam uma paz que no contivesse uma aliana, quer dizer, no havia povo

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    que eles submetessem e que lhes no servisse para rebaixar outros povos. Assim, podiam contar com tropas dos seus aliados para somar a uma parte de seu exrcito destinado a enfrentar o inimigo; alocavam outra parcela do seu exrcito na provncia romana mais prxima ao inimigo, e a outra parte deixava defendendo Roma, mas pronta para marchar. Destarte, os romanos investiam apenas uma parcela do seu poderio contra um inimigo que tinha que usar todas as suas for-as para se defender. (Montesquieu, 1997, p.167-82, grifo nosso)

    d) Doutrina Bush:

    Para prevenir... atos hostis, de nossos adversrios, os Estados Unidos, se necessrio, agiro preemptivamente... O propsito das nossas aes ser sempre eliminar uma ameaa especfica aos Esta-dos Unidos ou aos nossos aliados e amigos... As razes para nossas aes sero claras, a fora ser medida, e a causa justa.4 (traduo e grifo nossos)

    Dessa longa exposio de argumentos, logo concordamos com Aristteles sobre a existncia de uma pluralidade e uma instabi-lidade dos juzos do que justo e honesto na poltica e na guerra, desconfiando de que seja possvel valer-se de um vocabulrio moral suficientemente comum e estvel para realizar julgamentos com-partilhados e punies morais, como afirma Walzer. Tambm nos aproximamos de Bobbio (2002, p.30) nesse sentido e reconhecemos que no mundo dos valores no h lugar para as respostas definiti-vas, para as respostas que tapam a boca do adversrio. No h uma nica questo sobre a qual seja possvel estabelecer um acordo uni-versal e duradouro. Ademais, os pensadores das correntes (a) e (b),

    4 To forestall...hostile acts, by our adversaries, the United States will, if neces-sary, act preemptivelyThe purpose of our actions will always be to eliminate a specific threat to the US or our allies and friends The reasons for our actions will be clear, the force measured, and the cause just. White House, The national Security Strategy of the United States of America, September 2002, http: www. Whitehouse.gov/nsc/nss.html.

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    ao afirmarem que os romanos s fizeram guerras justas, moral e le-galmente, criam um universo romano ideal no intuito de prescrever sua convico de que as guerras sejam movidas em conformidade com os princpios morais e jurdicos que apregoam. J a corrente (c), dos realistas polticos, figura como a mais fidedigna em relao histria das guerras romanas.

    Isso porque os polticos estavam atentos aos princpios de di-viso dos poderes em Roma, e sabiam que mesmo os fetiale in-fluenciando a poltica externa romana, por meio da prerrogativa de declarar o bellum justum, em ltima anlise, eram os reis na mo-narquia, o senado romano (SPQR) na repblica e os imperadores no imprio os que realmente orientavam as relaes exteriores de Roma. Para tanto, valiam-se os poderes polticos de expedientes de corrupo ou mesmo dissuaso contra os fetiale para que suas moes fossem aprovadas. Cientes do expansionismo romano, os realistas polticos identificavam que grande parte dos movimentos de expanso ocorreu no perodo republicano, notadamente quando o senado (SPQR) mais disps de poder poltico. Edward Gibbon (2005, p.32) elenca que o mpeto expansionista republicano decor-reu prioritariamente da ativa emulao dos cnsules e do esprito marcial do povo; Montesquieu (1997, p.112) arremata que empe-nhava o senado a propor ao povo a guerra e lhe mostravam novos inimigos todos os dias.

    O esprito marcial ou virtudes blicas dos romanos faziam-se sentir tambm nas suas profisses, visto que acreditavam que o comrcio e os ofcios eram profisses de escravos e procuravam no exercer essas profisses de maneira alguma; deixavam apenas que os libertos conservassem suas indstrias, isto , mantives-sem seus negcios. Assim, geralmente, os romanos no conheciam seno a arte blica, a qual constitua a nica via para as magistra-turas e as honrarias. Desta forma permaneceram as virtudes guer-reiras, quando j perdidas todas as outras (ibidem, p.210).

    Ainda, havia nos romanos uma relao to prxima entre a sua religio e as suas virtudes blicas, que Montesquieu afirma-va solenemente que os romanos eram o povo mais religioso do

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    Mundo no juramento, o qual foi sempre o nervo da sua disciplina militar (ibidem, p.113). Mas necessrio ressalvar que a guerra s se tornou uma atividade agradvel para os romanos porque pela distribuio do butim a guerra se tornava tambm til para eles (ibidem, p.113). por isso que Montesquieu, e outros realistas, em discordncia com os adeptos d