As tradições profanas de teatro de bonecos na Europa

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As Tradições Profanas de Teatro de Bonecos na Europa: A Commedia dell'Arte e as sementes de Pulcinella. Resumo: Este texto apresenta um panorama geral sobre a constituição do teatro de bonecos popular na Europa e de como as companhias da Commedia dell’Arte exerceram um forte efeito de unificação no desenvolvimento do teatro de bonecos naquele continente. Nele, são ainda discutidas as relações entre estas formas populares e o Mamulengo brasileiro. No século XVII, companhias de Commedia dell’Arte viajaram por quase toda Europa ocidental. Como se sabe, a influência destes artistas ambulantes no teatro europeu foi de grande impacto, e os bonequeiros italianos exerceram um forte efeito de unificação no desenvolvimento do teatro de bonecos em muitos países da Europa. Muitos atores da Commedia dell’Arte eram também bonequeiros, ou tinham começado suas carreiras como tal. 1 Muitas das primeiras companhias dell’Arte que perambulavam pela Europa, além de suas peças, apresentavam espetáculos com bonecos, às vezes no mesmo show com atores. Os bonecos eram usados como forma de chamar a atenção da audiência e podiam também ser apresentados nos intervalos entre os atos das peças. Entretanto, havia muitas companhias italianas de teatro de bonecos que consistia de somente um bonequeiro, que viajava de país a país apresentando-se apenas com bonecos. Alguns deles estabeleceram-se em um país estrangeiro, outros, prosseguiram a vida viajando. Apresentação de Pulcinella em Roma no século XVIII in BRAGALIA, 1953, p.408 1 Ryan Howard, ‘Puppets and the Commedia dell’Arte in the Sixteenth, Seventeenth, and Eighteenth Centuries,’ The Puppet Year Book 1 (1995): 18.

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Bonecos na Europa

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As Tradições Profanas de Teatro de Bonecos na Europa: A Commedia

dell'Arte e as sementes de Pulcinella.

Resumo: Este texto apresenta um panorama geral sobre a constituição do teatro de bonecos popular na Europa e de como as companhias da Commedia dell’Arte exerceram um forte efeito de unificação no desenvolvimento do teatro de bonecos naquele continente. Nele, são ainda discutidas as relações entre estas formas populares e o Mamulengo brasileiro.

No século XVII, companhias de Commedia dell’Arte viajaram por quase toda Europa

ocidental. Como se sabe, a influência destes artistas ambulantes no teatro europeu foi de

grande impacto, e os bonequeiros italianos exerceram um forte efeito de unificação no

desenvolvimento do teatro de bonecos em muitos países da Europa. Muitos atores da

Commedia dell’Arte eram também bonequeiros, ou tinham começado suas carreiras

como tal.1 Muitas das primeiras companhias dell’Arte que perambulavam pela Europa,

além de suas peças, apresentavam espetáculos com bonecos, às vezes no mesmo show

com atores. Os bonecos eram usados como forma de chamar a atenção da audiência e

podiam também ser apresentados nos intervalos entre os atos das peças. Entretanto,

havia muitas companhias italianas de teatro de bonecos que consistia de somente um

bonequeiro, que viajava de país a país apresentando-se apenas com bonecos. Alguns

deles estabeleceram-se em um país estrangeiro, outros, prosseguiram a vida viajando.

Apresentação de Pulcinella em Roma no século XVIII in BRAGALIA, 1953, p.408

1 Ryan Howard, ‘Puppets and the Commedia dell’Arte in the Sixteenth, Seventeenth, and Eighteenth

Centuries,’ The Puppet Year Book 1 (1995): 18.

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A superioridade técnica dos bonequeiros italianos e o uso dos personagens

populares da Commedia dell’Arte nos seus espetáculos contribuíram para o crescimento

geral do interesse do público no teatro de bonecos. Os resultados de tal influência foram

a ascendência internacional do personagem/boneco Pulcinella e a polarização das

técnicas da marionete e de bonecos de luva.

Há uma discussão extensiva entre artistas e pesquisadores se Pulcinella

apareceu primeiramente como um personagem-tipo da Comédia italiana ou como

personagem/boneco. Embora se aceite mais que Pulcinella tenha feito seu debut como

uma máscara da Commedia dell’Arte em aproximadamente 16002

Pesquisadores indicam que a Commedia dell’Arte seja provavelmente originária das

farsas Atelanas. Os argumentos em favor desta tese vão desde a identidade comum dos

gêneros cômicos à surpreendente semelhança de muitas das características do antigo

teatro da província romana de Oscan (hoje conhecida como Campanha) com a

Commedia dell’arte: os persoangens-tipo; a improvisação; a atualidade dos lazzi

, não há nenhuma

dúvida que foi como boneco que ele exerceu maior influência no teatro europeu.

3 que

fundem elementos locais com os das comédias gregas; o uso da piveta4 comum aos

bufões grego-romanos; o uso da meia mascara negra (ou o uso da fuligem para a pintura

do rosto); os títulos das farsas; a típica mistura de prosa, canto e dança; a atuação de

mulheres nas personagens femininas; etc. Em relação a Pulcinella, parece que este seria

originário principalmente de Maccus, um dos personagens-tipo das Atelanas5

2 Contrariamente, Speaight diz que, embora nao se possa afirmar, Pulcinella parece ter aparecido

primeiramente no “castello” (empanada medieval para teatro de bonecos). (Speaight, The History, 39). 3 Lazzi do italiano, Lazzo (gracejo, piada)- Pequena ação comica bem codificada usada na Commedia dell'arte. Equivalente às gags dos palhaços. 4 Pequena palheta usada embaixo da lingua para distorcer a voz dos atores. 5 Bragaglia, Anton G., Pulcinella, 3-4

,

geralmente representado como jovem e trapalhão.

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Máscara de Maccus in BRAGALIA, 1953, p.03

Pulcinella nasceu e cresceu da (e na) pobreza napolitana, sendo representado

com uma camisa branca frouxa, amarrada com um cinto de barbante sobre suas calças.

Este era o traje diário do camponês italiano do século XVI. No século seguinte, sua

figura tornou-se estandardizada, passando também a usar um chapéu branco pontiagudo

e flexível, e uma máscara com um grande nariz. Pulcinella viajou com os outros

personagens da Commedia dell’Arte através dos Alpes. Na metade do século XVII

estabeleceu-se na França como Polichinelle (Polichinelo). Na França havia uma longa

tradição popular de tolos corcundas que influenciaram a nova fisionomia de Pulcinella.

Além da corcunda, Polichinelle aparece com um chapéu mais elaborado e um traje bem

mais elegante, resultado da influência francesa: "o rude camponês italiano transformou-

se em algo mais fantástico e gaélico".6

6 Ibid., 43.

Este personagem francês tendo retornado a Itália

influenciou o Pulcinella nativo. Em Veneza, particularmente, ele tornou-se corcunda

com um chapéu alto, redondo e rígido.

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Pulcinella italiano e Polichinelle francês in In SPEAIGHT, 1990, p.20

Pulcinella na versão boneco de luva com sua típica roupa branca e máscara negra. Coleção Bruno

Leone, foto Izabela Brochado.

A mesma mistura dos elementos estrangeiros e regionais, parte do processo dinâmico de

recreação e transformação da máscara da Commedia dell’Arte, pode ser observada no

desenvolvimento do personagem-boneco, particularmente na versão de boneco de luva.

O Pulcinella italiano foi reconhecido por pesquisadores e por artistas, como o “pai” da

maioria do teatro de bonecos europeu, uma vez que em muitos lugares por onde ele

apresentou-se no seu pequeno palco, foi adotado e naturalizado pela tradição popular

local. Bragaglia mostra a extensão da influência de Pulcinella sobre o teatro de bonecos

europeu:

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Do Pulcinella napolitano originou-se o Polichinelle francês, o espanhol Don Cristobal

Pulchinela e o Punch inglês, uma abreviatura de Pulchinello, além dos personagens

simplórios, similares a Pulcinella, como o alemão Hanswurst (João Sausicha, o glutao),

o australiano Kasper, o holandês Pickelhäring, o russo Petruskha e mesmo, o turco

Karagöz.7

A primeira onda da influência dos bonequeiros italianos ocorreu no inicio do

século XVII, quando viajaram pela maioria dos paises da Europa ocidental,

apresentando-se na Alemanha, França, Inglaterra, Áustria, Bélgica, Espanha

8 e também

Portugal.9 Entretanto, estes artistas ambulantes já tinham estado na França por volta de

1550, e na Inglaterra em 1573. No inicio do século XIX acontece uma nova ebulição do

teatro de rua e uma segunda onda de bonequeiros italianos alcança a Rússia 10 e também

a América do Sul e do Norte.11

Petruskha (no centro) e outros personagens do teatro de bonecos russo in Kelly, 1999,p.67

7 Ibid., 481. 8 Ibid., 398- 421. 9 Cardoso, Teatro Dom Roberto, 02-3. 10 Kelly, Petrushka , 108-139. 11 Paraná, São Paulo and Recife (Brazil); Buenos Aires (Argentina); Santiago (Chile). (Bragaglia,

Pulcinella, 479-8).

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É difícil estabelecer que tipo de bonecos os artistas usavam , se de cordas –

marionete - ou de luva. As referências aos bonecos nos séculos XVII e XVIII são vagas

e é impossível estabelecer ao certo qual dos dois tipos era o mais utilizado. O que se

pode dizer ao certo é que estes artistas ambulantes viajaram intensamente, influenciando

o teatro de bonecos em quase toda a Europa. A aceitação de Pulcinella pelas audiências

estrangeiras e a sua derivação em tantos outros protagonistas do teatro de bonecos são

resultado de seu temperamento variável, que permitiu a sua adaptação ao gosto local.

Como observado por Bragaglia, "o napolitano [Pulcinella] ajustou-se aos países

estrangeiros melhor do que o judeu”. Em conseqüência a esta adaptabilidade, Pulcinella

aparece sob diferentes facetas: como um personagem luxurioso, tal como o turco

Karagöz; cruel e amoral, tal como o Sr. Punch (Sr. Perfurador) e como um aristocrata

avarento, tal qual o espanhol Don Cristobal de Polichinela. O título “Don” sugerindo a

sua nobreza, um avanço social inesperado para um descendente de um Pulcinella

camponês.

Outro aspecto da adaptabilidade de Pulcinella e da sua extensa influência pode

ser compreendido a partir da forma como os bonequeiros ambulantes enfrentavam o

público de língua estrangeira. Era prática comum entre estes artistas se ter um

"intérprete" na frente do palco, uma espécie de mediador entre bonecos e audiência que

falava a língua local. Ao longo do tempo, este personagem sendo incorporado em

algumas das tradições de teatro de bonecos derivados de Pulcinella. Em Petrushka, a

tradição russa, um músico localizado na frente da barraca, além de acompanhar

musicalmente o espetáculo, faz também de intermediário. O mesmo personagem

aparece nas tradições de teatro de bonecos do nordeste brasileiro. No Mamulengo

pernambucano é conhecido como Mateus, enquanto que no João Redondo do Rio

Grande do Norte e no Babau da Paraíba aparece como Arriquilim, uma clara referência

a Arlequim, outra mascara da Commedia dell’Arte.

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Ao lado da barraca com Petruskha e o Doutor,, o tocador de um tipo de realejo, in Kelly, 1999,

p.66

Os novos tipos de teatro de bonecos influenciados pelo herói italiano são uma

fusão de suas características e de antigos personagens cômicos regionais. O inglês

Punch é compreendido por alguns pesquisadores como sendo o resultado da mistura de

Pulcinella com os clowns primitivos das peças populares, tais como dos mummers' plays

medievais. Petruska seria a fusão do personagem italiano com os menestréis e velhos

palhaços da Rússia. Nós podemos pensar em Benedito e Simão, os protagonistas do

Mamulengo brasileiro como o resultado da mistura dos tipos locais, tais como o Mateus

e o Benedito do Bumba-meu-Boi / Cavalo-Marinho com personagens do teatro de

bonecos que aportou no Brasil, com os colonizadores e depois, com os imigrantes

europeus.

Não obstante, as similaridades entre vários personagens/ bonecos europeus da

família de Pulcinella não podem ser consideradas unicamente como o resultado da

influencia do antepassado italiano. As características comuns podem também ser vistas

como o resultado de determinadas tendências inerentes ao teatro popular; ao teatro de

bonecos de luva e a continuação de uma tradição européia comum que vai desde o

século XIV, e que todos os heróis do teatro de bonecos, incluindo Pulcinella, foram

herdeiros: a propensão destes personagens em inverter hierarquias; o uso constante do

jogo verbal utilizando-se das expressões da cultura local; a representação grotesca dos

seus personagens e as constantes referências ao sexo, comida e morte. Estas

características, entre outras, refletem a relação do teatro de bonecos com a cultura

carnavalesca medieval, da qual nos informou Bakthin. No entanto, pelas claras

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conexões entre os diversos protagonistas do teatro de bonecos europeu - suas eternas

lutas contra estruturas de poder (terrenas e metafísicas); suas insaciedades estomacais;

suas constantes referencias escatológicas - parece evidente que o velho Pulcinella tenha

espalhado suas sementes em muitos países. Uma interessante analogia a esta faceta de

Pulcinella pode ser encontrada em uma das cenas presentes no repertorio atual do

bonequeiro italiano Bruno Leonne. Nela, Pulcinella, como uma galinha, bota muitos

ovos de onde saem muitos “Pulcinellinhas”, assim também se deu no teatro de bonecos.

12

Bonequeiro ambulante carregando sua barraca portátil e o cesto cheio de bonecos. In SPEAIGHT, 1990,

p. 187.

Bibliografia

BAKHTIN, Michael. Rabelais and His World. Indiana: University Press, 1984.

BOGATYREV, Petr. “Il Teatro delle Marionette e dei Burattini e il Teatro Popolare

12 Pulcinella é considerado como uma figura originária da mistura de humano com um galináceo

(Pasqualino, “Marionette and glove puppet”, 227).

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Russo,” in Mario Di Salvo (ed.), Ill Teatro della Marionette. Brescia: Grafo, 1980, 9-

76.

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Leonardo, 1992.

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Hale,1990.

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