Max weber-Educação, racionalização e burocratização em Weber
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIS
DEPARTAMENTO DE HISTRIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA
ULISSES DO VALLE
AS VICISSITUDES DA HISTRIA: MAX WEBER E
A TEORIA DO CONHECIMENTO HISTRICO
GOINIA GO
2013
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TERMO DE CINCIA E DE AUTORIZAO PARA DISPONIBILIZAR AS TESES E DISSERTAES ELETRNICAS (TEDE) NA BIBLIOTECA DIGITAL DA UFG
Na qualidade de titular dos direitos de autor, autorizo a Universidade Federal de Gois (UFG) a disponibilizar, gratuitamente, por meio da Biblioteca Digital de Teses e Dissertaes (BDTD/UFG), sem ressarcimento dos direitos autorais, de acordo com a Lei n 9610/98, o documento conforme permisses assinaladas abaixo, para fins de leitura,
impresso e/ou download, a ttulo de divulgao da produo cientfica brasileira, a partir desta data.
1. Identificao do material bibliogrfico: [ ] Dissertao [X]Tese 2. Identificao da Tese ou Dissertao
Autor (a): Ulisses do Valle
E-mail: [email protected]
Seu e-mail pode ser disponibilizado na pgina? [X]Sim [ ] No
Vnculo empregatcio do autor Universidade Federal do Tocantins
Agncia de fomento: Sigla: UFT
Pas: Brasil UF: TO CNPJ:
Ttulo: As Vicissitudes da Histria: Max Weber e a teoria do conhecimento histrico
Palavras-chave:
Histria, teoria do conhecimento histrico, Max Weber, cultura, sujeito, conceito, causalidade
Ttulo em outra lngua: The vicissitudes of history: Max Weber and the theory of historical knowledge.
Palavras-chave em outra lngua: History, theory of historical knowledge, Max Weber,
culture, subject, concept, causality
rea de concentrao: Ideias, Saberes e escritas da (e na) histria
Data defesa: 22/02/2013
Programa de Ps-Graduao: Faculdade de Histria
Orientador (a): Luiz Srgio Duarte da Silva
E-mail: [email protected]
3. Informaes de acesso ao documento: Concorda com a liberao total do documento [X] SIM [ ] NO1 Havendo concordncia com a disponibilizao eletrnica, torna-se imprescindvel o envio do(s) arquivo(s) em formato digital PDF ou DOC da tese ou dissertao.
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Assinatura do (a) autor (a)
1 Neste caso o documento ser embargado por at um ano a partir da data de defesa. A extenso deste
prazo suscita justificativa junto coordenao do curso. Os dados do documento no sero
disponibilizados durante o perodo de embargo.
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ULISSES DO VALLE
AS VICISSITUDES DA HISTRIA: MAX WEBER E A
TEORIA DO CONHECIMENTO HISTRICO
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao
em Histria da Faculdade de Histria da
Universidade Federal de Gois, como requisito
da obteno do ttulo de doutor em Histria.
rea de Concentrao: Culturas, Fronteiras,
Identidades.
Linha de Pesquisa: Idias, Saberes e Escritas da
(na) Histria.
Orientador: Prof. Dr. Luiz Srgio Duarte da
Silva
GOINIA
2013
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Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)
GPT/BC/UFG
V181v
Valle, Ulisses do.
As vicissitudes da histria [manuscrito]: Max Weber e a
teoria do conhecimento histrico / Ulisses do Valle. 2013.
465 f.
Orientador: Prof. Dr. Luiz Srgio Duarte da Silva.
Tese (Doutorado) Universidade Federal de Gois,
Faculdade de Histria, 2013.
Bibliografia.
1. Histria. 2. Teoria do conhecimento Histria. 3. Weber, Max, 1864 1920. 4. Cultura. I. Ttulo.
CDU: 930.1
G05Caixa de texto461
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ULISSES DO VALLE
AS VICISSITUDES DA HISTRIA: MAX WEBER E A TEORIA DO
CONHECIMENTO HISTRICO
Tese defendida no Programa de Ps-Graduao em Histria da Faculdade de Histria da
Universidade Federal de Gois, para obteno do ttulo de Doutor em Histria, aprovada em 22 de
fevereiro de 2013, pela Banca examinadora constituda pelos seguintes professores:
Luiz Srgio Duarte da Silva (UFG)
Presidente
Jess Souza (UFJF)
Marcos Csar Seneda (UFU)
Carlos Oiti Berbert Jnior (UFG)
Srgio Ricardo da Mata (UFOP)
Francisco Chagas Evangelista Rabelo (UFG)
Eugnio Rezende de Carvalho (UFG)
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A meu pai, Joaquim Vieira do Vale, grande
incentivador, desde a minha mais tenra infncia,
conquista da independncia intelectual.
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AGRADECIMENTOS
Agradeo aos compadres dessa longa caminhada, especialmente Thiago
Oliveira, Diego de Moraes, Gabriel Cruz, Rodrigo Marquez, Cludio Ribeiro e queles
que porventura me esqueci de mencionar, com quem tantas vezes mantive conversas e
proveitosos debates.
Agradeo tambm aos professores que ao longo de anos colaboraram com este
trabalho, desde meu orientador Luiz Srgio, passando pelo professor Carlos Oiti e, de
maneira muito especial, ao professor Francisco Rabelo, exemplo enrgico de
apaixonada dedicao vida universitria.
Agradeo ainda minha famlia e esposa Dborah, que a mim apoiaram
incondicionalmente, sem expectativa de retribuio.
A todos, os meus sinceros cumprimentos e agradecimentos.
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RESUMO
Este trabalho procura perscrutar o pensamento e a obra de Max Weber (1864 1920) a
partir de alguns problemas definidos relativos s atuais querelas no mbito da teoria do
conhecimento histrico. , portanto, luz desses problemas que atribumos um
significado obra de Weber que potencialmente ultrapassa os limites de uma suposta
intencionalidade do prprio Weber. Por isso, em diferentes momentos mostrou-se
necessrio o dilogo com leituras j produzidas sobre Weber por alguns de seus
principais prossecussores, com destaque para Alfred Schutz (1899 - 1959), Talcott
Parsons (1902 1979) e Jrgen Habermas (1929 - ). Assim, do ponto de vista dos
interesses cognoscitivos da teoria do conhecimento histrico, sistematizamos uma srie
de insights da tradio weberiana de pensamento luz de quatro problemas
fundamentais, cada qual sumariado num especfico conceito-chave: o problema da
cultura, o problema do sujeito das transformaes histricas, o problema da formao de
conceitos e o problema da causalidade em histria. Em conjunto, estas questes definem
o campo de nossa abordagem da obra de Weber e direciona a leitura que dela
empreendemos.
Palavras-chave: histria, teoria do conhecimento histrico, Max Weber, cultura,
sujeito, conceito, causalidade.
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ABSTRACT
This paper seeks to scrutinize the thought and work of Max Weber (1864 - 1920) from
some problems defined relative to the current quarrels within the theory of historical
knowledge. It is therefore in the light of these problems we attach a meaning to the
work of Weber that potentially goes beyond the limits of a supposed Weber's own
intentionality. So at times proved necessary dialogue with readings ever produced about
Weber by some of its key followings, especially Alfred Schutz (1899 - 1959), Talcott
Parsons (1902 - 1979) and Jrgen Habermas (1929 -) . Thus, from the standpoint of the
cognoscitive interests of the theory of historical knowledge, we systematized a series of
insights of the Weberian tradition of thought in the light of four fundamental problems,
each summarized in a specific key-concept: the problem of culture, the problem of the
subject of historical transformations, the problem of concept formation and the problem
of causality in history. Together, these issues define the scope of our approach of Weber
and direct the reading which we it undertook.
Keywords: History, Theory of historical knowledge, Max Weber, culture, subject,
concept, causality.
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Sumrio 1.0 Questes Preliminares............................................................................................12
1.1 O enigmtico no texto weberiano e suas dificuldades hermenuticas................. 12
1.2 Uma hipottica e ideal tpica intentio operis ....................................................... 15
1.2.1 A leitura sociologista da obra de Weber ........................................................ 16
1.2.1 A leitura historista de Weber ...................................................................... 18
1.2.3 Uma nova polarizao: iluminista versus ps-iluminista .......................... 21
1.2.4 A explicitao de nossa intentio lectoris ................................................. 24
1.3 A delimitao dos problemas ........................................................................... 26
1.3.1 O problema da estase do conceito de cultura ................................................ 30
1.3.2 O problema da agncia humana para a Histria ........................................ 33
1.3.3. O problema da formao de conceitos em histria....................................... 34
1.3.4 O problema da causalidade histrica ......................................................... 36
2.0 Os distintos mbitos da cultura: o existencial e o conceitual...............................38
2.1 Limites iniciais do conceito epistemolgico de cultura: de Dilthey a Rickert ..... 40
2.2 Um aprofundamento da questo: de Rickert a Weber ........................................ 46
2.2.1 Rickert: o valor como um dever-ser. ............................................................. 47
2.2.2 Max Weber: o valor como um modo de ser. ............................................. 51
2.3 A ampliao do conceito de cultura: a delimitao de seu mbito existencial a
partir de um conceito de homem, o homo-hermeneut (capaz de ao e comunicao)
.................................................................................................................................... 57
2.4 Entre Weber e Schutz: cultura do mbito epistemolgico (temporalidade
pensada) e cultura do ponto de vista da experincia histrica (temporalidade vivida)
.................................................................................................................................... 70
2.4.1 O sentido como unidade analtica da cincia cultural ................................. 73
2.4.2 A distino entre temporalidade vivida e temporalidade pensada ............ 77
2.4.3 Dois conceitos bsicos de compreenso .................................................... 93
2.4.4 Dois tipos bsicos de racionalidade ......................................................... 105
2.4.5 Interldio ..................................................................................................... 114
2.5 Cultura e Linguagem: entre Weber e Habermas ................................................ 116
2.5.1 Cultura depois da virada lingustica: dois paradigmas distintos................ 118
2.5.2 A produo de significados idnticos: notas de um paradigma da virada
lingustica ............................................................................................................. 120
2.5.3 Cultura depois da virada pragmtica. ........................................................ 130
2.5.4 Cultura, racionalidade e os usos da linguagem.......................................... 150
2.5.5 Do mbito existencial da cultura ao epistemolgico: da ao ao discurso. 172
3.0 Da cultura histria: o fluxo heterogneo das contingncias...........................175
3.1 Max Weber: entre idealismo e naturalismo ........................................................ 181
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3.1.1 A distino entre ser determinado e ser regido por leis .................... 187
3.2 Max Weber: entre agncia e causalidade histrica .......................................... 201
3.2.1 A Medio dos paradoxos: o papel da agncia na Histria ou, como os
signos adentram prtica? .................................................................................... 217
3.3 A realidade histrico-cultural: labirintos neokantianos ................................... 221
3.3.1 De Rickert a Weber: a realidade emprica como contnuo heterogneo .. 228
3.3.2. A (ir)realidade histrica no mbito existencial das culturas....................... 238
3.4 Talcott Parsons e Alfred Schutz: por uma Dialtica weberiana ........................ 244
3.4.1 O marco de referncia da ao: o ato unidade como ponto de convergncia
entre descrio fenomenolgica e anlise estrutural ............................................ 246
4.0 Os limites da formao de conceitos em histria................................................259
4.1 Em defesa da imaginao ............................................................................... 262
4.1.1 A insuficincia da intuio sensorial para o domnio cientfico ................ 274
4.1.2 O geral e o particular no espectro de um tipo ideal .................................... 279
4.2 A variedade dos tipos ideais ............................................................................. 284
4.2.1 Os tipos ideais no mbito disciplinar da histria ......................................... 286
4.2.2 A Hermenutica profunda da Histria: contexto de significado e contexto de
experincia. ........................................................................................................... 315
5.0 Causalidade histrica e Imputao causal singular..........................................341
5.1 A explicao causal em histria ....................................................................... 343
5.2 Max Weber: o embate entre o narrado e o vivido. ........................................... 354
5.2.1 O conhecimento analtico-discursivo do vivenciado ................................. 355
5.2.2 O significado de ser-causado em histria .................................................. 368
5.3 A estrutura lgica da anlise causal singular ................................................... 375
5.3.1 A seleo da variedade emprica: o objeto de explicao como indivduo
histrico ................................................................................................................ 378
5.3.2 A Modificao Imaginria do devir: A teoria da possibilidade objetiva ... 387
5.3.3 A Avaliao Comparada ............................................................................ 400
5.3.4 A imputao causal ................................................................................. 409
5.4 A histria e as discusses axiolgicas: a histria como discurso hermenutico e
terico-emprico........................................................................................................ 416
6.0 Consideraes finais .....................................................................................436
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1.0 Questes Preliminares
1.1 O enigmtico no texto weberiano e suas dificuldades hermenuticas
Dizer que a interpretao potencialmente ilimitada no
significa que a interpretao no tenha objeto e corra por conta
prpria. (ECO, Umberto)
A tarefa auto-imposta, com a qual algum se autoriza a penetrar no crculo
semntico de uma obra literria, permite vivenciar experiencialmente o drama que as
discusses na teoria literria atualmente encenam. Trata-se da dificuldade, encontrada
por tal disciplina, de trazer tona aquilo que almeja: o estabelecimento do significado
de uma obra literria, um estudo sobre os limites mesmos a que a interpretao (de uma
obra) est sujeita ou no. Quando a obra literria em especfico, escolhida como objeto
de interpretao, corresponde a um clssico j muito divulgado e outrora interpretado,
este drama se radicaliza numa angstia sem fim. Tal a situao em que se encontram
muitos, seno todos, dos clssicos de nossa tradio literria. Em nosso caso particular,
a experincia deste drama se deu a partir da obra de Max Weber (1864 1920); a
dimenso publicitria e editorial em torno do texto weberiano, tamanha sua divulgao
e tamanho acmulo de diferentes interpretaes que recebera, coloca imediatamente o
problema do significado da obra de Weber.
Qualquer um que hoje se dedique ao estudo de sua obra se deparar com um
volumoso amontoado (que apenas sob reservas pode ser chamado conjunto) de
comentrios, sistematizaes, desenvolvimentos de sua obra, produzidos pelos mais
distintos leitores, de pocas e lugares diferentes, e que expressam todos eles uma
peculiar interpretao e leitura da obra weberiana; esta vria atribuio de significado,
que pode ser verificada numa histria da recepo da obra de Weber, tem suas razes no
texto ou nos intrpretes? Que status tem, afinal, o texto weberiano: teria ele uma
natureza a ser espelhada pela interpretao reflexiva (ou pela reflexo
interpretante), ou, em afinidade com a viso pragmatista, seu significado extrado no
dele prprio, mas do uso que dele faz seu intrprete?2 Ora, se tomarmos como
referncia a histria de sua recepo, dificilmente poderamos deixar de dar alguma
2 Para essa pequena problematizao da leitura da obra de Max Weber, contamos com a polmica
encerrada entre Umberto Eco e Richard Rorty, documentada no livro Interpretao e Superinterpretao
(2005). Essa polmica se distende sobre dois plos fundamentais de uma teoria da interpretao, um
pragmatista e outro semitico. Estes dois polos integram, pois, o horizonte interpretativo deste trabalho.
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razo ao ensejo pragmatista, para o qual o texto original se encontra descentralizado
em relao a seu uso: aquele que lanar-se no imenso carnaval da bibliografia
secundria sobre Weber no poder deixar de sentir, nalgum instante, a impresso de ter
perdido a referncia, de no se saber o que mais (ou ainda) se procura.
Por outro lado, ao observarmos mais de perto, podemos perceber que Rorty tem
apenas meia-razo na polmica com Eco. Isto por que, se por um lado a produo de
interpretaes da obra de Weber caminhou indefinidamente at aqui, de modo que haja
uma verdadeira indefinio quanto a seu significado (e que portanto a mesma obra, o
mesmo texto, a mesma coisa permita interpretaes que se antagonizam, que se
contradigam, que se rivalizam), por outro, um olhar mais atento permite perceber que
certas partes da obra se mostraram mais vulnerveis a controvrsias do que outras. o
caso, por exemplo, quando as abordagens interpretativas (seja na forma do comentrio,
da sistematizao ou da prossecuo de sua obra) debruam-se sobre os aspectos
poltico-ideolgicos que podem ser depreendidos do texto weberiano; neste caso, o
pragmatista-rortyano de fato se esbaldaria sobre o adepto da semitica de Eco: ora
intrpretes representam e refletem, ao fundamento da obra de Weber, uma intentio
auctoris pr-textual de cunho nacionalista fervoroso, ora de cunho republicano
resignado, ora como um liberal ou um idiossincrtico liberal (um liberal nietzschiano,
segundo Raymond Aron) e, no menos impressionante, ora tambm como um quase
anarquista (Whismter). Essa variedade de interpretaes, cujos matizes so dificilmente
abarcveis num trabalho como este, no tm o mesmo vigor quando deslocamos o foco
de nossa anlise. Se deixssemos de lado a interpretao das convices polticas de
Weber como fundamento de sua obra, e nos centrssemos na sua posio enquanto
cientista, como socilogo ou historiador, o leque de matizes interpretativos diminui
consideravelmente, e se torna mais afvel anlise. Assim, se por um lado inegvel
que, como pensou Rorty, o uso do texto, na produo de uma interpretao, tem
primordialidade sobre o prprio texto, por outro lado, no podemos deixar de notar que,
a despeito das inmeras e diferentes interpretaes a que o texto weberiano fora
submetido, ele ainda funciona como um ndice ao qual as mesmas devem minimamente
se adequar: por mais que o uso defina o propsito da interpretao e a direo dada a
ela, o registro textual legado por Weber h sempre de servir como instncia de controle
que limita, ainda que de modo pouco claro, quando e onde termina o texto e onde
comea a interpretao.
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Pode-se dizer, assim, que nosso trabalho se divide em dois impulsos
fundamentais: um semitico, no qual no abrimos mo de referendar nossa interpretao
ao texto do qual ela parte, e outro pragmatista, que assume a posio daquele que
interpreta ao usar e interpreta para usar. Neste sentido, a explicitao da intentio lectoris
ser-nos- fundamental desde agora. Ser apenas a partir dela que encaminharemos uma
interpretao sobre o texto weberiano, o que no invalida nem destitui as qualidades e
sentidos autorais nele mesmo contido. O fato de Weber no estar vivo para aceitar ou
refutar as interpretaes produzidas de sua obra apenas refora o pouco valor de se fazer
uma tentativa de reproduo ou de eternamente retornar a um comentrio da mesma.
Deste modo, a interpretao que procuramos dar ao texto weberiano tanto uma
tentativa de sistematizao (como toda interpretao declarada) quanto um esforo de
prossecuo de sua obra (como todo uso declarado), o que nos obriga a apresentarmos
desde j o sentido do uso que dela fazemos, isto , explicitarmos nossa intentio lectoris.
Muito bem, assumindo o fato de que nossa interpretao, a ser corporificada
neste trabalho, se desenvolve a partir do uso especfico que dela fazemos, posicionamo-
nos, inicialmente, ao lado do pragmatista. A ns simplesmente no interessa explicar
porque Weber pensou o que pensou ou escreveu o que escreveu (ainda que nos
julgssemos com tal capacidade). Partimos, deste modo, de problemas colocados pela
ordem do dia, de modo que transformamos tais problemas nos critrios em torno dos
quais buscaremos uma sistematizao do texto weberiano, ele mesmo, como se sabe,
fragmentrio, ensastico e, nessa medida, pouco sistemtico. Considerando assim que a
leitura que fizemos de Weber est comprometida, antes de mais nada, com uma rede de
problemas relativos teoria do conhecimento histrico nos dias atuais, apenas ao final
poderemos fazer um balano da interpretao derivada de nossa intentio lectoris com
aquilo sempre indefinido que sua intentio operis, isto , a hipottica intentio inscrita
ao texto weberiano.
Os problemas historiogrficos dos quais partimos e aos quais se conectam todos
os outros so fundamentalmente quatro: a) o problema da estase do conceito de cultura,
b) o problema da mudana e do sujeito da mudana em histria, c) o problema da
formao de conceitos em histria e d) o problema da explicao causal em histria
Obviamente que tais problemas sero desenvolvidos em detalhes adiante: aqui nos cabe,
por enquanto, apenas definir o sentido de nosso estudo.
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1.2 Uma hipottica e ideal tpica intentio operis
Max Weber quase sempre escreveu por ensaios. Logo ele, de quem poucos dos
seus leitores no concordam quanto sua obstinao em ser cientista; logo ele, to
conhecido por suas formulaes gramaticais que tanto almejavam clareza e
sistematizao conceitual, escolhera o ensaio como forma de expresso dos resultados
de suas pesquisas empricas e de suas elucubraes tericas; em funo deste mesmo
estilo, defendemos, a obra de Weber tem um carter fragmentrio, no-sistemtico, que
de antemo amplia o leque das intentio lectoris, das interpretaes que podem vir a ser
produzidas: o estilo ensastico e o carter fragmentrio aumentam o lapso entre a
intentio autoris e a intentio operis, de tal modo que esta expande-se a uma proporo
que anula aquela (o texto ganha autonomia em relao ao autor)3.
Este efeito pode ser constatado na recepo da obra de Weber: a variedade de
temas a partir dos quais sua obra relida e assim interpretada depe contra a ideia de
uma unidade da obra fechada nela mesma. Essa complicao, reiteramos, se d naquela
parte da obra de Weber que j foi muitssimo divulgada mundo a fora, algo que se
agravaria caso falssemos da obra completa de Weber.4 Partindo de algumas escolhas
que adiante sero justificadas, traamos, na difusa massa de interpretaes que
encontramos como comentrios, sistematizaes e prossecues de sua obra, algumas
demarcaes que so mais ou menos recorrentes e que, nessa medida, apontam para
uma certa delimitao da intentio operis do texto weberiano; veremos como tal
delimitao congrega uma polarizao interna: desde a morte de Weber at hoje, a
massa de volumes interpretativos de sua obra pode ser reunida e posta em conjunto
tendo-se como critrios algumas polarizaes que so recorrentes nos mais diferentes
intrpretes.
Deste modo, tal recorrncia que justifica as demarcaes que operamos na obra
de Weber; o ncleo de acordo que parece haver entre os intrpretes corresponde ao
3 Entre toda a massa de estudos produzidos sobre a obra de Weber, poucos se concentraram em uma
anlise de seu estilo literrio, e de como esse estilo acarretaria implicaes quanto ao contedo de seus
escritos. Fredric Jameson (1973) escreveu um importante ensaio sobre a sintaxe da histria em Max
Weber, dando ateno especial ao que seria a estrutura narrativa de sua obra luz do quadrado semntico
de Greimas. Outra fonte que problematiza a questo do estilo weberiano Max Weber as a Writer, de
Alan Sica (2004). Neste texto, Sica discute o tratamento que Jameson oferece da narrativa weberiana,
alm de dissecar a influncia que autores pouco discutidos na literatura secundria exerceram sobre
Weber, como Gottl, por exemplo. 4 Um dos responsveis pela editorao das obras completas de Max Weber, W. Schluchter, estima que a
obra completa do pensador alemo reunir em torno de quarenta tomos.
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nosso critrio de delimitao da intentio operis. Levando-se em conta, ento, o histrico
de sua recepo, a obra de Weber apresenta duas polarizaes sempre recorrentes: quase
todas as leituras produzidas sobre Weber, portanto, podem ser remetidas a quatro tipos
puros fundamentais: uma leitura sociologista/historista (primeira polarizao) ou ainda
uma leitura iluminista/ps-iluminista (segunda polarizao). claro que, em concreto,
tais tipos puros podem estar diferente e difusamente concentrados numa s leitura: sua
pureza se deve justamente a seu carter tipolgico e abstrato e sua separao
evidentemente analtica.
1.2.1 A leitura sociologista da obra de Weber
Esta corresponde a um tipo de leitura que define a obra de Weber como
predominantemente sociolgica. Este tipo de leitura considera como fundamental o fato
de Weber estar criando a sociologia compreensiva, e toma como subsdio desta
convico o ato de Weber mesmo se autodenominar como socilogo de profisso; alm
disso, a leitura sociologista tambm se debrua fundamentalmente sobre a teoria da ao
social desenvolvida por Weber, considerando-a como o epicentro de sua obra; os
intrpretes que mais se aproximam do tipo puro da leitura sociologista so, em ordem
cronolgica, Alfred Schutz, Talcott Parsons e Jrgen Habermas.
Alfred Schutz encaminha uma descrio fenomenolgica da ao social. Sua
interpretao tambm uma prossecuo da obra de Weber. O uso que dela faz, neste
sentido, tem compromissos prprios e interessados: no caso, fundamentar
fenomenologicamente o processo de atividade teleolgica que constitui a unidade
analtica da ao social e, portanto, de toda a sociologia compreensiva. Ele no apenas
submete a atribuio subjetiva de sentido ao ponto de vista de sua constituio na
corrente temporal de conscincia, como tambm delimita o horizonte significativo,
comunicacional e trans-histrico dentro do qual um ator social se dirige, com sua ao,
para outros. Schutz, neste sentido, estava a desvelar tanto o carter temporal sob o qual
uma vivncia ou ao adquire um significado, como a eternidade da orientao para o
outro que perfaz o sentido de uma ao social.
Ainda dentro do paradigma sociologista, Talcott Parsons encaminhara uma
interpretao da obra de Weber completamente distinta da de Alfred Schutz. Parsons,
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assim como Schutz e Habermas, pode ser considerado continuador da obra de Weber. O
direcionamento que ele lhe d, entretanto, deriva de uma leitura completamente distinta
da que fora feita por Schutz, apesar dele tambm se concentrar sobre a teoria da ao
social de Weber. de Parsons que deriva originalmente toda leitura estruturalista da
obra de Weber. Com Parsons, a ao social, embora conceito fundamental, praticamente
perde a qualidade subjetiva que a torna ao, isto , comportamento auto-referido a um
sentido. A autonomia do sujeito-agente subtrada com sua integrao num sistema de
ao: com Parsons a unidade analtica da sociologia deixa de ser a ao per si e seu
ncleo de significado, realizada pela pessoalidade de um Eu socializado, e passa a ser
padres annimos de ao integrados sistemicamente no seio de uma tradio cultural
simbolicamente constituda. A unidade analtica agora a prpria interao entre Ego e
Alter, que impe para ambos uma normatividade que cada qual necessariamente leva
em conta ao definir o sentido de sua ao. O prprio sentido subjetivamente visado se
dissolve numa padronizao estandar do que se pode almejar e de como se pode agir. O
agente perde autonomia sobre sua ao na medida em que a realizao desta, em ltima
instncia, serve sempre ao desenvolvimento/evoluo de um sistema que se auto-
reproduz. Mesmo o sentido subjetivamente visado, pois, mera funo de uma
totalidade sistmica que ultrapassa a ao.
Habermas, talvez por ser o mais recente dentre eles, o que leva a leitura
sociologista da obra de Weber a limites mais longnquos, em estreita ligao com uma
leitura filosfica e teraputico-poltica da obra de Weber. Em primeiro lugar, Habermas
atualiza a teoria da sociedade nos termos da filosofia da linguagem e da pragmtica
formal. Mesmo sem desconsiderar em absoluto algumas premissas da sociologia
parsoniana, Habermas mesmo assim leva a leitura de Weber para um patamar
completamente distinto. Sem deixar de tratar a cultura como um sistema simblico ou
uma estrutura de signos, Habermas subverte o carter essencialmente formalista do
conceito de cultura derivado da leitura parsoniana, introduzindo uma concepo
pragmtico-lingustica de gerao de sentidos e, portanto, da cultura. Habermas se
concentra mais na relao entre as significaes com a prtica que as pe em uso, do
que na estruturao formal e analtica dos signos num sistema integrado. Neste sentido,
veremos, os problemas que encerram a conceptualizao da cultura para a constituio
de um modelo de inquirio histrica, e o respectivo papel explicativo que o mesmo
deve ter para uma investigao histrica, j estavam incorporados na prpria tradio de
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leitura e recepo da obra de Weber, que se estende de Schutz a Habermas, passando
por Parsons.
1.2.1 A leitura historista de Weber
No plo oposto ao tipo sociologista est o historista. Ambos os tipos demarcam,
pois, duas tendncias polarizadas sobre as quais versaram os intrpretes de Weber.
curioso pensar que, durante uma primeira fase da histria da recepo da obra de
Weber, predominaram as leituras sociologistas. Apenas nos meados do sculo XX que
comearam a aparecer leituras historistas da obra de Weber, e o marco aqui talvez sejam
as intromisses de Karl Lwith no debate weberiano. Nota-se que, da passagem de uma
leitura sociologista para uma historista mudam-se tambm os ensaios especficos que
guardam posio privilegiada no processo interpretativo. Se os sociologistas atribuam
maior importncia aos ensaios reunidos em Economia e Sociedade, sua tipologia da
ao e da dominao, os historistas se concentraram sobre seus ensaios de
epistemologia reunidos em Metodologia das Cincias Sociais, e s suas pesquisas
comparativas e a conhecida tese da racionalizao, tomada ento como um processo de
longo alcance histrico.
Os leitores historistas, assim como os sociologistas, so apenas um tipo abstrato
e ideal para isolar alguns traos interpretativos recorrentes na recepo do texto
weberiano. Neste caso, concentram-se interpretaes que tomam a Histria (e no a
Sociologia) e seus problemas ontolgicos e epistemolgicos, como o foco central da
intentio auctoris do texto weberiano: para tal perspectiva, considera-se sobretudo o fato
de Weber ter formando-se num ambiente intelectualmente dominado pelo historicismo
(a Escola Histrica Alem) , alm de que, levando-se em conta sua obra publicada em
vida, boa parte dela lidou com questes provenientes das discusses historiogrficas,
que envolve-o diretamente no debate com Dilthey, Rickert, Windelbandt, Lamprecht,
Eduard Meyer, Roscher, Ranke, e outros clssicos que protagonizaram a
Metodenstreith. As leituras paradigmticas, que mais se aproximam do tipo puro e que
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19
mais destacaram no histrico da recepo de Weber foram as de Karl Lwith,
Schluchter, Guenther Roth.5
Karl Lwith empreende um estudo que conecta problemas essenciais de filosofia
da histria com implicaes teolgicas e religiosas no percebidas. a questo pelo
sentido da histria que o pe em contato com a obra de Weber e o obriga a emitir uma
interpretao. Lwith mostra, com respaldo de Weber, como os problemas tpicos da
filosofia da histria e mesmo a histria-cincia tm origem na conscincia religiosa
desenvolvida no seio do cristianismo. A partir disso, desenvolve uma reflexo a respeito
da passagem em histria que constitui uma prossecuo da obra de Weber. Lwith
destitui qualquer concepo filosfica da histria que entenda que a passagem de um
acontecimento a outro corresponda a um trnsito dialtico entre opostos; a histria, pois,
tem a capacidade de, com sua continuidade intransigente e heterodoxa, desvanecer toda
oposio numa gradao: no desenvolvimento da histria ocidental, isso se evidencia,
segundo Lwith, na relao entre racionalismo religioso e racionalismo cientfico. Se,
durante a constituio das premissas do racionalismo cientfico, encarnada sobretudo
nos pensadores iluministas, este aparecia como a oposio lgica do racionalismo
religioso, a histria hoje parece mostrar outra perspectiva; apoiando-se em Weber,
Lwith concluir que entre os dois tipos de racionalismo h graves conexes, e suas
diferenas, ainda que substanciais, colocam entre eles uma relao de gradao e no de
oposio: tambm a cincia se assenta em pressupostos supra-empricos e talvez, na
esteira de A Cincia como vocao, apenas um delgadssimo fio de cabelo separe, de
fato, f de cincia. Razo (moderna) e f tm em comum o fato de ambas, cada uma a
seu modo, exigirem um sacrifcio do intelecto.
A leitura encaminhada por Lwith retoma ento o aspecto da obra de Weber que
ficara obliterado na tradio de tipo sociologista, justamente a ateno dada Histria.
Sobretudo aps as intervenes de Karl Lwith, as leituras da obra de Weber
comearam a se deslocar em direo s prerrogativas de uma leitura historista. Sem
5 Podemos facilmente acrescentar aqui a tradio francesa crtica da escola dos Anales, que vai de
Merleau-Ponty, passando por R. Aron e Paul Veyne, at chegar a Paul Ricoeur. Todos eles atestam, uns
mais que os outros, terem recebido alguma influncia decisiva de Weber e, ainda, todos eles escreveram
algo que nos permita confirmar essa inferncia. Essa tradio francesa de leitura de Weber ser-nos- de
fundamental importncia, tendo em vista o modo como ela se debruou em questes essenciais do ponto
de vista de uma teoria do conhecimento histrico. Na Alemanha, alm de Schluchter, considerado mais
um socilogo do que propriamente um historiador, poderamos tomar as obras de Rsen e Kocka como
representantes do tipo historista, no fosse o carter demasiado heterodoxo desses historiadores e sua
relao com vrios outros clssicos das cincias humanas, como Droysen e Humboldt.
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20
dvida um dos maiores intrpretes de Weber, Schluchter mais um caso paradigmtico
da leitura historista que redireciona a interpretao da obra de Weber para uma
tematizao da histria. Schluchter, neste caso, vai alm de Lwith, e enxerga na obra
de Weber uma grande tipologia do desenvolvimento histrico-universal do racionalismo
ocidental; e Schluchter l a prpria sociologia da religio de Weber como expresso
tipolgico-abstrata de uma imensa e abrangente pesquisa histrico-gentica e histrico-
evolutiva a respeito das origens e do desenvolvimento do racionalismo ocidental. A
partir da sociologia da religio de Weber, Schluchter oferece uma penetrante anlise e
sistematizao do desenvolvimento tico do Ocidente. Esta abordagem de Schluchter
abre a caminho para uma tematizao a respeito da relao entre sociologia e histria no
interior da obra de Weber e imprime obra de Weber o sentido de uma macro-histria
do racionalismo ocidental.
Um terceiro caso paradigmtico de leitura historista a encaminhada por
Guenther Roth. Muito prximo de Schluchter, Roth opera uma tematizao da obra de
Weber que a coloca perante o enfrentamento de questes tipicamente historiogrficas e
metodolgicas. Neste caso, Roth parece seguir Schluchter na problematizao da
relao entre sociologia e histria. A abordagem de Roth, concentrada principalmente
sobre questes de mtodo, d a entender ou induz a pensar que Weber talvez estivesse
criando a sociologia compreensiva para resolver problemas especficos da teoria do
conhecimento histrico. A generalizao sociolgica aparece como funo do mtodo
da imputao causal em histria, sendo este o valor primordial da sociologia: servir
Histria. Isto que faz de Roth um historista: embora se d conta da diviso de tarefas
entre as duas disciplinas, a histria que preside o sentido da pesquisa sociolgica,
etapa inicial daquela.
Roth, Schluchter e Lwith, cada qual por uma via diferente respectivamente, a
metodologia da histria, a histria neo-evolucionista do racionalismo ocidental e a
filosofia da histria empreenderam leituras que delineiam o tipo historista. So
leituras que esto num certo grau de heterogeneidade com aquelas expressas no tipo
sociologista e, no fosse a referncia ao texto legado por Weber, dificilmente poder-se-
ia reuni-las num conjunto. Tendo percebido este fato, F. Tenbruck6 colocara
6TENBRUCK, Friedrich. The problem of the thematic unity in the works of Max Weber. The british
journal of sociology, vol. 31, n 3: 1980.
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explicitamente o problema da unidade temtica na obra de Weber, problema este
radicalizado na opinio de R. Bendix7, para o qual existe um hiato entre a pesquisa
emprica realizada por Weber e seus escritos metodolgicos. Talvez esta impresso
gerada pela heterogeneidade das interpretaes produzidas tenha se agravado,
recentemente, com a recorrncia de um novo tipo de leitura, que, se por um lado pode
ser entendida como uma extenso do tipo historista, por outro apresenta caractersticas
que o qualifica como um tipo parte e d incio a uma segunda polarizao alm da
sociologista/historista.
1.2.3 Uma nova polarizao: iluminista versus ps-iluminista
As intervenes de Karl Lwith acabaram por se desenrolar num rumo distinto
do puramente historista. Sua interpretao sobre a passagem da histria e sobre a
relao de gradao que a caracteriza abriu olhares para flancos distintos no texto
weberiano. provvel que Lwith no planejara tais consequncias que sua
interpretao (de Weber) teria para posteriores geraes de leitores: sua intentio
auctoris provavelmente no foi propositada no sentido que aqui descrevemos. Neste
caso, confirmamos o nico acordo que parece haver entre Eco e Rorty: a intentio
auctoris trivial para a interpretao de um texto em seu sentido meramente filolgico
(muito difcil de descobrir e frequentemente irrelevante para a interpretao de um
texto) e, por isso, pouco nos importa as intenes de Lwith, tal como, a princpio,
pouco nos importam tambm as de Weber. Os textos de ambos ganharam autonomia
sobre os respectivos autores, cujas intenes originais necessariamente permanecero
escamoteadas como funo de uma intentio lectoris sempre renovada8. Alm de
imprimir uma primeira polarizao na histria da recepo de Max Weber, as
intervenes de Lwith acabaram implicando uma segunda polarizao: a percepo de
que entre o racionalismo religioso (metafsico) e o racionalismo moderno (cincia e
7 BENDIX, Reinhard. Max Weber: an intellectual portrait. Garden City: Anchor Books, 1962.
8 Como atesta Paul Ricoeur (1973), textos como o de Weber, e outros clssicos, tm a capacidade de se
emanciparem das referncias ostensivas que guardavam em relao a seu contexto. Uma das premissas
essenciais deste estudo diz respeito a essa possibilidade de ler a obra de Weber como estando desconexa
das referncias ostensivas ao mundo do qual ela parte.
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22
tcnica) existira no uma ruptura ou oposio ( na forma de uma dicotomia entre f e
razo), mas a intensificao continuada de um processo de desencantamento do mundo
e secularizao cujo pice a imagem moderna de um mundo carente de sentido e
orientao. Nessa medida, a interpretao de Lwith acabara por se opor a um enorme
conjunto de outras leituras que ainda no se percebiam como leituras possveis, mas
como o prprio reflexo espelhado do texto weberiano. Desde Wittenberg, pelo menos,
Weber era visto como um adepto fiel do pensamento e do projeto Iluminista como um
todo. Sua sociologia da religio, por exemplo, fora caracterizada por Wittenberg como
um virulento ataque (!) religio. Neste caso, a intentio auctoris de Weber ficou
submetida, atravs da intentio lectoris voraz de Wittenberg, s prerrogativas iluministas
do pensamento, encerradas nas dicotomias fundamentais do Iluminismo tomado em
bloco (f versus razo, sujeito versus objeto, fato versus valor, natureza versus cultura;
etc.) De l para c (principalmente da dcada de 70 para c), um surto de interpretaes
foram desenvolvidas aproximando Weber das contracorrentes iluministas. Trabalhos
hermenuticos que tentavam desvendar a influncia de Gethe ou de Nietzsche (e no
de Kant), e que ressaltaram aspectos biogrficos que retratavam um Weber romntico,
meio bomio meio excntrico, aberto s experincias msticas e ao xtase sexual;
tambm foram descritas a sua participao em crculos literrios de poesia simbolista e
vanguardista, sua aproximao e amizade com anarquistas e sua admirao pelo
feminismo nascente. Situados neste terceiro tipo, como casos paradigmticos,
ressalvando Lwith, temos poucos prossecussores do texto weberiano, e muitos
comentadores e hermeneutas quase-obsessivos. Escapando um pouco do pedantismo
que tal tarefa exigiu dessa enorme quantidade de leitores, enumeramos os seguintes
casos paradigmticos que compem o tipo abstrato de uma leitura ps-iluminista da
obra de Weber: o j mencionado Lwith, seguindo de F. Ringer, J. Ciaffa, J. Alexander
e B. B. Koshul. Na esteira de Lwith, cada um desses quatro se concentrou sobre a
posio que o texto weberiano assumia diante das diferentes dicotomias com as quais o
Iluminismo, em geral, estava envolvido.
F. Ringer9 concentrou sua interpretao sobre o problema da relao entre
sujeito/objeto no interior do texto weberiano. Ringer detectar, com Weber, o necessrio
engajamento do historiador (pois a omisso e a resignao tambm so aes) numa
9 Cf. RINGER, Fritz. A Metodologia de Max Weber: a Unificao das Cincias Culturais e Sociais. So
Paulo: Edusp, 2004. RINGER, Fritz. Max Weber on causal analysis, interpretation and comparation. In.:
History and Theory, n 42, vol. 2, p. 163 178, 2002.
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situao presente que constantemente se transforma e est a passar, a se transformar em
passado: com Weber, pois, Ringer indica a concluso de que a dualidade entre sujeito e
objeto em histria s se resolveria epistemologicamente quando algum dia se resolva a
dualidade entre passado e presente, o presente que est a passar e sua relao com o
presente j-passado ou o passado in totto. O historiador est condenado a viver a
histria enquanto a escreve: o texto historiogrfico, nessa medida, h sempre de correr o
risco de ser apenas um captulo virtual e sem realidade da histria que no se pode
deixar de viver enquanto se escreve o texto historiogrfico; este, por fim, corre sempre o
risco de, ao encerrar um significado ao passado, encerrar tambm o presente enquanto
horizonte de indefinio do que est a passar. A indicao desta problemtica da parte
de Ringer pode ser endossada com a leitura feita por Merleau-Ponty em seu ensaio
intitulado A Crise do Entendimento.
O que Ringer fez com relao dicotomia sujeito/objeto no interior da obra de
Weber, Ciaffa o fez com relao dicotomia entre fato e valor. A leitura feita por Ciaffa
apresenta a obra de Weber como uma alternativa em meio ao idealismo neokantiano e o
empirismo historicista, no que se refere ao problema da neutralidade axiolgica das
cincias culturais. Segundo essa leitura, a cincia cultural tal qual Weber a defende,
est, ao mesmo tempo, livre de valores ao nvel prtico, e comprometida com valores ao
nvel teortico, de um tal modo que sua posio dissolve a referida dicotomia ou, como
diz Ciaffa, a supera, uma vez que tal posio no significa nem a derrocada da
objetividade cientfica no domnio metodolgico, nem a recada ou a sugesto a um
irracionalismo no domnio da vida prtica. Fato e valor encerram no uma dicotomia,
mas uma dualidade relacional cujo foco de convergncia so os sentidos e as
significaes culturais.
As leituras de Ciaffa e Ringer podem ser vistas como derivaes da leitura
adiantada por J. Alexander. Considerando a leitura destes trs ltimos, a obra de Weber
ganha um lugar no debate atual em torno das cincias humanas. As dicotomias entre
sujeito e objeto, e entre fato e valor, esto concentradas, na leitura de Alexander, na
expresso de uma s dicotomia, entre real e ideal: Alexander entende toda a obra de
Weber como um esforo abismal para conciliar o idealismo que herdara de seus amigos
neokantianos com o empirismo de seus colegas e professores historicistas. A tese de que
no existem conexes reais entre as coisas, mas apenas relaes ideais entre problemas,
ser uma demarcao comum a todo pensamento weberiano, e ser visto por Wihelm
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Hennis (1983) como a questo-chave de sua obra. Esta tese endossa a leitura de
Alexander, que interpreta a sntese weberiana como uma precoce soluo para as atuais
querelas epistemolgicas.
No por acaso, recentemente alguns autores (leitores de Weber) falaram, ento,
de alguns aspectos ps-modernos inerentes ao texto weberiano. Nicholas Gane, com
sua obra Max Weber and the PostModern Theory: rationazation versus re-
enchantment (2002), e Basit Bilal Koshul, com The postmodern significance of Max
Webers legacy (2005), so bons exemplos dessa nova tendncia de leitura.
Gane, Koshul, Alexander, Ciaffa, Ringer, precedidos por Lwith, podem ser
isolados, ento, num tipo parte de leitores de Weber, doravante a ser considerados
como casos paradigmticos de uma leitura ps-iluminista de Weber. Naturalmente, a
individualizao deste tipo implica numa polarizao interna da recepo do texto
weberiano, entre uma leitura iluminista e outra ps-iluminista. Considerando os tipos
at aqui descritos, podemos oferecer o seguinte quadro geral de leituras j produzidas
sobre Weber. Todo o amontoado e a esmagadoramente numerosa quantidade de
volumes interpretativos e exerccios hermenuticos cujo tema foi o texto weberiano,
parece se movimentar indefinidamente entre estes tipos puros, misturando-os mas nunca
transcendendo-os10
.
1.2.4 A explicitao de nossa intentio lectoris
Um trabalho como este, que j se desenvolve a alguns anos em torno de uma
mesma temtica geral qual seja, o significado da obra de Max Weber, em particular
para a Histria como disciplina necessariamente passou por muitas revises,
reformulaes, re-leituras de seu propsito e estratgias. claro que no convm
descrever a trajetria dessas retomadas e suas resistncias e vicissitudes; convm, ao
invs disso, explicitarmos o sentido que a princpio damos nossa prpria leitura de
Weber.
A busca pelo significado da obra de Weber mostrou-se reveladora: no tanto o
contedo da obra ou algumas concluses esclarecedoras que dela pude ocasionalmente
10
Talvez algumas excees seriam Karl Jaspers e Maurice Merleau-Ponty, autores nos quais poderamos
enxergar uma repercusso filosfica do texto weberiano. No Brasil, o livro de Marcos Csar Seneda
(2008) d um timo testemunho de algumas repercusses fundamentais do texto weberiano ao
pensamento de Karl Jaspers no que toca a problemas epistemolgicos de uma cincia emprica da ao.
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25
extrair, mas sobretudo a prpria busca. Ao buscar outrora o significado da obra de
Weber, senti a mim mesmo, nalgum momento, como uma caricatura daqueles
decifradores de cdigos que Rorty ironiza; uma espcie de obsesso quase paranica por
encontrar as verdadeiras intenes de Weber que subjazem nas escrituras por ele
legadas. Mesmo sabendo das numerosas interpretaes de Weber e de exerccios
hermenuticos assim j produzidos, e quase ignorando-os, persistia um desejo
semiconsciente de revelar o segredo da obra, de desvendar sua essencialidade at
ento no percebida. Mal possvel determinar quanto tempo se passou at sermos
atingidos pelo choque catrtico: percebi que no apenas eu prprio, como tambm a
maioria dos comentaristas e intrpretes de obras clssicas, e sobretudo, num grau de
maior amplitude, uma grande maioria entre meus colegas historiadores, podiam ser
reunidos numa caricatura geral dos decifradores de cdigos. Todos ns, em alguma
medida, buscvamos (e certamente muitos de ns ainda buscam) o sentido original de
algum texto, de algum acontecimento do mundo (um tipo diferente de texto). Em nosso
caso, a busca pelo significado mostrou-se sem significado. Descobrimos que um
significado no pode ser buscado, mas tem de estar concomitantemente atribudo para
que haja ou possa haver qualquer busca. Buscar as intenes originais de Weber, o
verdadeiro significado de sua obra, sua coerncia original e essencial, impossvel sem
concomitantemente supormos quem foi Max Weber, qual o seu contexto, quem foram
seus interlocutores, seguidas de tantas outras pressuposies que apenas de maneira
muito superficial ganham forma.
No trataremos, por isso, de buscar um tal sentido original da obra de Weber. A
ela queremos imprimir o sentido autoral de nossa prpria leitura, que deriva
principalmente de um esforo de convergncia para os interesses cognoscitivos
atinentes a uma teoria do conhecimento histrico. nessa medida, e somente nela, que
nos dirigimos ao texto weberiano, e so esses interesses os que serviro de baliza a
partir da qual sistematizaremos seu pensamento em uma forma definida, ao lado de
tantas outras j alcanadas. Nossa estratgia de leitura, por isso, vai alm de qualquer
hermenutica que recuse a mxima pragmatista. Usamos a obra de Weber para resolver
problemas definidos, colocados por um contexto de interao que torna-se assim o
porto de entrada desta obra com muitas portas. Longe de estabelecer um espelho
lmpido do texto weberiano, nossa interpretao est comprometida, antes de qualquer
outra coisa, com uma reflexo atual sobre os problemas que movem a disciplina da
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26
histria. A obra de Weber, neste processo, considerada como uma fonte de insights
valiosos para a reflexo sobre estes temas, e no como a guardi de um segredo que
ainda h de ser revelado por sagazes hermeneutas. A colocao dos problemas,
portanto, consiste no passo inicial a partir do qual deveremos adentrar na imagem de
mundo weberiana.
1.3 A delimitao dos problemas
Embora j praticada desde os tempos de Tucdides, a Histria enquanto prtica
cognoscitiva s ganhou um impulso profissionalizao j no sculo XIX. claro que,
de Tucdides pra c, so quase incontveis as mudanas atravs das quais tal disciplina
passara. A despeito de to longa tradio, a historiografia ainda hoje conta com
problemas tpicos de uma disciplina nascente, que ainda no tem um grau de maturidade
suficientemente seguro em relao s prprias premissas intelectuais. Ainda hoje, pois,
seus problemas vo desde a definio de seu prprio mbito objetual, at s definies
primeiras que caracterizam seu respectivo ponto de partida, sem contar os grandes
problemas de exposio e representao dos resultados, cujo detalhamento crtico pode
nos informar a histria intelectual do sculo XX (de Saussure a Derrida, chegando a
homens como Hayden White e Ankersmith).
J tem algum tempo que no nos basta dizer simplesmente que o objeto da
disciplina da Histria o passado o humano. Este lugar-comum que outrora abrigou a
ingenuidade de muitos dentre os melhores de ns, historiadores, j no serve mais to
diretamente como uma referncia quilo que visamos quando fazemos histria. O que se
nota que as dificuldades metodolgicas da disciplina cresceram desproporcionalmente
em relao sua profissionalizao. Embora praticamente j profissionalizada e
institucionalizada, a historiografia ainda no consegue dar plenas razes de sua
existncia e, principalmente, de seu papel pblico. Basta ver, por exemplo, as
discusses recentes entre Hayden White e Dirk Moses11
. Este papel de justificao,
11
Cf. MOSES, Dirk. Hayden White, traumatic nationalism, and the public role of history. History and
Theory, n40, vol.3, p. 311-332: 2005. WHITE, Hayden. The public relevance of historical studies: a
reply to Dirk Moses. History and Theory, n40, vol. 3, p. 333-338: 2005. MOSES, Dirk. The public
relevance of historical studies: a rejoinder to Hayden White. History and Theory, n40, vol.3, p-339-
347,2005.
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27
tanto de seu valor como disciplina, como dos enunciados proposicionais que encerra,
fora delegado aos estudos epistemolgicos de teoria da histria.
Este fato no impressiona tanto quanto um outro: embora comum tambm nas
demais disciplinas cientficas, a diviso de tarefas entre tericos e praticantes empricos
assume em nosso caso um conflito dramtico. A teoria da histria e a historiografia
emprica parecem no falar a mesma lngua. Tericos da histria e historiadores
profissionais12
por vezes parecem no estar engajados na mesma causa, qual seja, a de
uma slida construo dos parmetros disciplinares que envolvem o conhecimento
histrico. Isto pode ser confirmado no apenas pela completa ausncia de um modelo
explicativo bsico que deveria referendar as proposies historiogrficas, mas, ainda
mais acentuadamente, se confirma no conflito e na disputa que diferentes vertentes
metodolgicas encerram entre si.
Por um lado, seria interessante notar como tal tipo de problema foi vivenciado
em outras disciplinas particulares, como o caso da prpria sociologia. Embora hoje a
sociologia goze de uma teoria sociolgica mais avanada em questes de princpio, por
tempos ela tambm viveu problemas parecidos aos que ns, historiadores, hoje nos
deparamos e ao qual este trabalho visa dar uma modesta contribuio. Tal paralelo com
nossa prpria dificuldade pode ser notado na constatao inicial que fizera Habermas
12
Para Max Weber, a diviso de tarefas interna ao mbito cientfico compunha um dos fatos irrevogveis
da modernidade. A especializao compreende, junto a outros elementos, parte do destino de nossa poca.
Exatamente por isso Weber via como natural a diviso de tarefas entre tericos da histria e praticantes da
historiografia. Na poca de Weber, contudo, no havia ainda a tamanha abundncia de estudos histricos
como a que conhecemos hoje apesar de ele vir de uma poca eminentemente historicista e historista e
talvez isso explique porque o chamado conflito das interpretaes ainda no havia assumido o aspecto
dramtico que hoje podemos facilmente acompanhar. Mais do que uma dissonncia entre a prtica
historiogrfica e a teoria que a subsume, existe nos dias atuais uma verdadeira batalha travada em torno
da validao de interpretaes distintas a respeito de um mesmo tema. No mais um conflito
relativamente simples entre historiadores profissionais e tericos no praticantes, mas um conflito entre
diversas teorias distintas que tomam como objeto um mesmo tema. Assim, o mesmo objeto, Revoluo
Francesa, por exemplo, acaba sendo o foco de representaes distintas e por vezes conflitantes entre si,
de tal modo que a superabundncia de estudos sobre a Revoluo Francesa no garante que, agora,
conhecemos mais sobre aquele perodo. Por isso, aquele conflito entre tericos e praticantes, que j
Weber discutia a respeito principalmente no texto sobre a lgica das cincias da cultura e que para ele
era um conflito saudvel e profcuo, torna-se agora num conflito entre tericos e entre teorias, quase
esquizofrnico, no sentido de no serem reais os inimigos de cada qual. Cada obra historiogrfica,
assim, parece portar uma concepo de verdade histrica, uma concepo de causalidade histrica, uma
concepo de mudana e de sujeito da mudana histrica, etc. A alternativa inversa, no entanto, ainda
menos redentora. Mergulhar na prtica laboratorial da histria, e fazer dos arquivos a prpria casa,
corresponde a uma ao que deriva de uma convico que perdera o sentido. Afinal, sem que se responda
para que?, esse tipo de apelo ao valor da histria de fato parece to somente o de um antiqurio ou, no
mais das vezes, o de um fofoqueiro sem presente. Sem justificao, que importa as verdades da histria?
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28
logo ao incio de seu ensaio Lies sobre uma fundamentao da sociologia em termos
de teoria da linguagem:
Nas cincias sociais competem diversas perspectivas tericas que
no apenas se distinguem pelos problemas que tipicamente abordam e pelas
estratgias de investigao de que fazem uso, mas por questes de princpio.
Refiro-me a diferenas na eleio do marco categorial e na conceptualizao
do mbito objetual. Em tais diferenas de estratgia conceitual se expressam
conflitos profundos: distintas concepes de cincia e interesses
cognoscitivos diversos. (HABERMAS: 1984, p. 19)
A despeito de contar com uma tradio disciplinar bem mais longnqua que a
sociologia, a historiografia lida ainda hoje com essas mesmas dificuldades. Os
historiadores, ao elegerem determinado fragmento do passado como objeto, entram em
conflito entre si no mbito de diversas questes: desde o modo como se considera ou se
deveria considerar a conceptualizao prvia daquele objeto (Histria), at o modo a
partir do qual se leva adiante sua anlise e sua posterior insero num sistema de
enunciados causais e proposicionais. Quando tomam, por exemplo, como objeto a
queda da Bastilha em 1789, dificilmente chegam os historiadores a um consenso
racionalmente fundado quanto caracterizao geral do evento, quanto s causas que o
determinaram, quanto s consequncias que engendrou e, por fim, quanto ao prprio
evento: termina-se, ao final de sabe-se l quantas histrias que j foram produzidas
sobre a queda da Bastilha, sem saber ao certo o que foi a queda da Bastilha. Em histria,
estamos frequentemente diante do paradoxo que consiste em que, quanto mais se sabe
sobre um objeto, mais parecemos distantes de uma delimitao, seno unvoca, ao
menos consensual, sobre o significado histrico do mesmo. Este exemplo apenas reitera
a condio atual de nossa situao disciplinar, muito parecida com aquela constatada
por Habermas enquanto este projetava sua teoria da ao comunicativa.
Longe de querer uma tal fundamentao unvoca do conhecimento histrico,
nosso intuito, a partir de agora, dar uma colaborao mais ou menos sistemtica
quanto a problemas metodolgicos tpicos e atuais da disciplina da Histria. Isto h de
ser feito, pois, com a delimitao prvia de quatro destes problemas com os quais a
historiografia tem de enfrentar-se atualmente: um primeiro, relativo ao marco categorial
da disciplina da histria; ao lado desta questo se coloca o problema do sujeito da
mudana em Histria, ou, em outras palavras, o problema da agncia humana e o modo
como ela afeta e afetada pela Histria; um terceiro problema diz respeito
conceptualizao em histria, bem como as implicaes que a atividade conceitual, por
-
29
parte do historiador, encerra sobre seu objeto; atrelado a este est, por fim, o problema
da formao de juzos causais em histria e de sua estrutura explicativa, problema este
que conecta nossa disciplina com as discusses gerais das cincias humanas ou mesmo
de sua possibilidade13
.
A estrutura geral das respostas que daremos a tais problemas deriva de uma
interpretao que encaminhamos a respeito da obra de Max Weber e da tradio
epistemolgica que se segue a ela. Discutimos anteriormente as dificuldades que
envolvem, antes de mais nada, a tematizao da obra de Weber enquanto artefato
literrio. O carter fragmentrio de sua obra colocara sua recepo uma diversidade de
contedo sobre a qual seus estudiosos no conseguiram chegar a um acordo quanto a
sua ideia central, quanto ao tema que a percorre na forma de uma unidade. Chegaram a
concluir, alguns desses estudiosos, pela ausncia de unidade temtica na obra de Weber
(Bendix e Tenbruck). A princpio, defenderei aqui uma tese distinta, porquanto com
algum grau de ousadia: se h alguma unidade temtica que percorre a obra de Weber,
ela s pode ser encontrada na tematizao de uma cincia da cultura. Neste ponto,
ento, discordo tambm de Habermas, uma vez que a temtica da racionalizao teria
que deixar de fora, ou numa condio deveras marginal, seus escritos epistemolgicos
que aqui tanto nos interessam. Habermas, com sua leitura estritamente sociolgica da
obra de Weber, no ultrapassa os limites do interesse da prpria sociologia,
concentrando-se sobre um dos mais gerais conceitos weberianos (racionalizao) e dele
derivando todas as demais concluses. Da nosso enquadramento de Habermas como
um paradigma da leitura sociologista de Weber.
Tambm nossa leitura e interpretao de Weber no se envergonha do uso que
faz de sua obra: longe de pretender um purismo semitico que almejaria, como tantos
ainda o fazem, alcanar a intentio auctoris do texto weberiano, optamos por explicitar a
princpio os problemas que nos fazem recorrer a ela, as resistncias que, com sua ajuda,
13
Necessariamente retomaremos o tema da possibilidade de se conceber a disciplina da histria como
cincia. Sabemos que Weber defendera fervorosa e apaixonadamente que sim. Mas sabemos, tambm, o
quanto ele, para isso, teve que alargar o conceito de cincia. Enquanto disciplina, a historiografia acabou
tendo que se voltar, durante o sculo XX, para o enfrentamento terico derivado de sua aparelhagem
discursiva, o que definitivamente conturbou suas pretenses cientficas. A princpio, podemos adiantar
nossa afinidade com a posio weberiana por dois motivos bsicos, e no pela sede de se calcular a
histria: trata-se, primeiro, de acatar tal possibilidade tendo em vista a distino entre Cincia e seu
estreitamento em tcnica; posteriormente a isso, caber a ns perguntar no se a histria ou no uma
cincia, mas em que medida o seu discurso poderia se aproximar de algumas prerrogativas do que seria o
discurso cientfico, em oposio aos prognsticos tcnicos eles mesmos no discursivos. Esta
problemtica, entretanto, apenas poder ser abordada adiante.
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esperamos vencer. Nosso trabalho, neste sentido, se assenta sobre um vis pragmtico,
caracterizado com uma relao quase instrumental com a obra de Weber, a qual no nos
basta interpretar, mas a qual queremos mesmo usar: direciona-la aos problemas os
quais aqui nos aparecem como uma resistncia a ser vencida, problemas estes que,
como o dissemos, so relativos teoria do conhecimento histrico.
1.3.1 O problema da estase14
do conceito de cultura
O primeiro de nossos problemas talvez um dos mais urgentes a serem
resolvidos. Isso porque a questo da cultura, enquanto mbito objetual da disciplina da
histria, traz no apenas as dificuldades de sua delimitao, mas, alm deste, tambm o
problema de sua estase. O que aqui chamamos de estase do conceito de cultura consiste
no esgotamento desta categoria como lcus de construo do conhecimento histrico.
Neste caso, nossa inteno expor uma debilidade interna do conceito de cultura, que
no precisa recorrer a crticas externas, como a do estruturalismo e do ps-
estruturalismo (embora sejam totalmente dignas de se levar em conta), e que deriva do
uso abusivo a que tal conceito fora submetido, sobretudo ao longo das ltimas dcadas.
O problema da estase do conceito de cultura, portanto, um problema interno que
divide os prprios partidrios da histria cultural, como frequentemente chamada. Este
uso abusivo do conceito de cultura, ao qual referirei adiante, tem por consequncia um
fato curioso: o conceito de cultura deixa de funcionar como categoria das cincias da
cultura, e passa a integrar, de uma maneira generalizada, amorfa, e massificada, tambm
as interpretaes emitidas no senso-comum: cultura, aos poucos, deixa de ser uma
categoria altamente elaborada, como o era elaborada a Natureza que Kant inventara para
fundamentar as cincias naturais (e como o foram os conceitos de Cultura elaborados
por Rickert, Simmel ou Weber), e passa cada vez mais a funcionar como uma categoria
que extrapola as pretenses de validade tpicas do conhecimento disciplinar, integrando
tambm as interpretaes emitidas em veculos do senso-comum, desde reportagens
ordinrias e crnicas jornalsticas, at as conversaes cotidianas. O uso abusivo do
14
A palavra estase foi usada aqui, num primeiro plano, para indicar o esgotamento da palavra cultura
enquanto categoria das cincias humanas. Essa palavra corresponde a um termo mdico que designa a
interrupo do fluxo normal de um lquido: fala-se, por exemplo, da estase do fluxo sanguneo, quando
sua diminuio alcana a completa estagnao. O termo estase, ento, quando aplicado cultura, permite
identificar melhor o esgotamento dessa categoria para os estudos humanos: esse esgotamento deriva
justamente de um conceito de cultura que no est em fluxo, mas que permanece fixado de maneira no
reflexiva como um pressuposto inquestionvel dos estudos histricos.
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conceito de cultura consiste em, e deriva de, sua no-problematizao ou no-
tematizao terico-analtica. No soa estranho que nos veculos de senso-comum no
haja uma tal problematizao; mas de fato se trata de um incmodo rudo quando o caso
vem a ser nos veculos acadmicos, que por sua vez ensejam uma pretenso distinta de
validade. Nos referimos aqui a um conjunto amorfo de estudos reunidos em torno do
nome Histria Cultural. Como expressa um de seus maiores expoentes, Peter Burke
(2000), a dita Histria Cultural tem praticado a historiografia de um ponto de partida
deveras ambivalente15
: embora seja histria cultural, ela abre mo de uma definio
categorial de um conceito de cultura, e o faz sob argumento da polissemia que o
conceito enseja: ambivalncia mal justificada, que permite no apenas uma depreciao
dos estudos culturais, como a des-diferenciao entre as pretenses de validade tpicas
dos interesses disciplinares da histria e das cincias humanas em geral, por um lado, e
tpicas do senso-comum, por outro. Cultura, de uma maneira geral, passa a funcionar,
tanto no senso-comum como nos meios acadmicos, como um conceito pr-consciente
que funciona a qualquer momento como fator explicativo (ou mera expresso
qualitativa) do comportamento humano historicamente situado; uma espcie de palavra
mgica a partir da qual se determina uma realidade at ento indefinida e sem
inteligibilidade.
Dada uma tal situao, que em algum grau atinge todo o campo acadmico da
historiografia, na medida em que lida com cultura, nossa pergunta : o que permite
distinguir as anlises e as proposies historiogrficas e scio-culturais, daquelas
interpretaes mais grosseiras e generalizadas, disseminadas no senso-comum e na vida
cotidiana, se ambas por vezes se apoiam num conceito pr-reflexivo de cultura? Pode o
cientista cultural abrir mo de uma definio conceitual e reflexiva do conceito de
cultura e ao mesmo tempo requerer para suas proposies causais um status de validade
distinto e superior s interpretaes disseminadas no senso-comum?
A resposta a questes como esta ter que superar, antes, uma srie de outras
questes que vo inclusas em seu escopo. Trata-se de questes que, antes de
especificarem um conceito particular de cultura, definem suas condies de
possibilidade; elas dizem respeito, sobretudo, a uma considerao reflexiva da relao
15
BURKE, Peter. Variedades da Histria Cultural. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.
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entre cultura e sentido/significado. esta relao a que atrai o maior interesse na
teorizao da cultura como um mbito objetual pertinente histria como disciplina.
O problema de como sentido produzido foi e continua sendo uma das questes
que mais divide os historiadores e os tericos da histria. Este problema se agravou
mais ainda justamente quando os historiadores pensaram t-lo resolvido. Tal suposio
surgiu principalmente da dcada de 80 para c, quando as premissas da chamada virada
lingustica foram incorporadas nos estudos historiogrficos. Sob a presso dos estudos
estruturalistas, cujo impacto massivo chegou a invadir mesmo o senso comum, os
historiadores pensaram ter resolvido o problema da cultura e da gerao de sentidos ao
tratar aquela como um sistema coerente de signos, de tal modo que a gerao de sentido
dependesse apenas das relaes diferenciais que os signos integrados sistemicamente
engendram. A assuno desta premissa deu aos historiadores melhores condies de
defender a cientificidade de sua disciplina, o que certamente era bastante atrativo;
tratando a gerao de sentidos como o resultado no de processos histricos perpetrados
pela ao e pela luta entre homens existencialmente lanados ao mundo (e no, to
somente, lanados linguagem), mas como fruto de relaes sistmicas entre signos
diferenciais reunidos numa mesma linguagem, cdigo, cultura, os historiadores
chegaram concluso que podiam identificar a cultura a uma linguagem, autorizando-se
assim a tratar os eventos histricos particulares como um tipo de texto, uma
especificao particular da cultura, tal como a fala em relao lngua. Este
procedimento tem como consequncia, veremos, uma concepo de cultura que no est
aberta contingncia histrica, j que, como linguagem, a cultura codifica a
possibilidade de qualquer texto, isto , de qualquer especificao que um evento
histrico particular venha a assumir. Com a cultura assim concebida deixava de haver
espao para qualquer fator extrnseco ao cdigo cultural; a contingncia no existe
seno pela mediao lingustica do cdigo que sempre formalmente anterior s
possibilidades de sentido e no-sentido, j que sentido gerado no pela criatividade
que representa a ao humana e sua enorme margem de irracionalidade, mas to
somente pela posio que ocupa numa rede sincrnica de relaes diferenciais entre
signos.
Ora, este problema nos conecta diretamente com um problema subsequente, e
que muito diz respeito aos interesses cognoscitivos de uma disciplina como a histria.
Falamos agora do problema do sujeito da mudana em histria. Depois que os
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historiadores optaram por identificar a cultura a um sistema fechado de signos, uma
nova dificuldade atingiu os estudos histricos: subtraindo toda contingncia no-
lingustica, entre elas a prpria agncia humana, os historiadores adeptos desta premissa
tiveram dificuldades para explicar a mudana histrica e aquilo ao qual se pode atribuir
um valor causal em relao a ela. Mais especificamente, no dizer de Michael Fitzhugh e
Willian Leckie16
, os historiadores passam a precisar de um deus ex machina para
explicar uma mudana cultural ou uma mudana no prprio sistema de signos. Com isso
chegamos ao nosso segundo problema.
1.3.2 O problema da agncia humana para a Histria
O problema da agncia humana para a histria, apesar da longa tradio que
discute a relao entre agncia e causalidade, bastante atual; este problema ascendeu
novamente com toda a fora depois que algumas premissas da virada lingustica foram
incorporadas sem concesses. Uma delas, j o dissemos, a de que a cultura
compreende sistemas fechados de signos em relaes diferenciais. Paralelo a esta a
proposio de que os seres humanos, enredados na linguagem e na condio
discursiva17
, conhecem apenas e inteiramente na linguagem. Uma proposio , na
verdade, o correlato lgico da outra (FITZHUGH, LECKIE, 2001: p.64), bem como o
so as suas consequncias para a historiografia. A pretenso, que alguns discpulos de
Foucault tentam ainda levar a cabo, de escrever uma histria sem sujeito deriva
justamente dessa premissa, levada s ltimas consequncias, de que os humanos
conhecem apenas na linguagem. Dentro de uma tal estrutura, a realidade no existe
alm da extenso da linguagem, ela sempre j construda na linguagem, que
anterior a nosso conhecimento do mundo. (FITZHUGH, LECKIE: 2001, p.64). Ora,
este ponto de vista alcana seu ponto paradoxal assim que nos perguntamos por que,
16
Cf. FITZHUGH, Michael and LECKIE William. Agency, post-modernism and the causes of change.
In. History and Theory, n 40, 2001, p. 59-81.
17 Cf. ERMATH, Elizabeth. Agency in the discursive condition. In. History and Theory, n40, 2001, p.
34-58.
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ento, mudariam os prprios cdigos culturais, j que, no sendo afetados por nada
exterior a eles prprios, por que eles mesmos se auto-impeliriam a uma mudana?18
Deste modo, surge para ns um problema que suscita muita polmica. A cultura
feita pela ao humana ou o contrrio? A ao humana perpetra criativamente o
domnio da cultura e lhe imprime as mudanas histricas que o historiador percebe
nela? Ou, diferentemente, a ao humana sempre objeto de padres de significado
reunidos num sistema estruturado de signos, e to somente corresponde a uma
especificao particular e concreta deste sistema abstrato e formal, de tal maneira que
sempre que falarmos de ao falamos da projeo de personificaes antropomrficas?
De que maneira deve-se compreender o papel da agncia humana sobre a histria da
cultura e de que maneira os seres humanos conectam as representaes culturais sua
prtica social?
desnecessrio dizer agora, em detalhes, como a obra de Weber ocupa uma
posio fundamental para uma reflexo sobre estes problemas. Certo que Weber
conectou uma teoria da causalidade histrica a uma teoria da ao social,
procedimento inaudito e cuja caracterstica fragmentria da obra de Weber torna difcil
de entrever. Esta conexo redimensiona a discusso sobre agncia e o seu respectivo
valor causal para histria. Ela nos leva, alm disso, a outros dois de nossos problemas
principais.
1.3.3. O problema da formao de conceitos em histria
A relao entre conceito e realidade emprica sempre esteve no centro das
discusses filosficas, especialmente em teoria do conhecimento. Em teoria do
conhecimento histrico, particularmente, o problema da formao de conceitos constitui
uma questo dramtica. As dificuldades que o tema da formao de conceitos assume
em histria, corresponde, antes de mais nada, a uma dificuldade inicial de delimitar o
18
Eis a maneira como Fitzhugh e Leckie colocam a questo: Se um pensamento pode expressar apenas
possibilidades permitidas pelas relaes no sistema de signos num momento dado, todos os pensamentos
so essencialmente formulados no momento em que ocorrem. Em adio, porque o meio do pensamento
constitui um sistema fechado, humanos no podem ganhar acesso a qualquer coisa fora daquele sistema,
conscientemente ou no, nada pode penetr-lo de fora. Carecendo de estmulos externos, resulta difcil
conceber qualquer maneira na qual seres humanos poderiam criar novos termos ou mesmo combinar seus
velhos elementos lingsticos em uma nova maneira, sem recorrer a um deus ex machina filosfico.
(LECKIE & FITZHUGH, 2001: p. 65)
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ponto de referncia a que seus conceitos devem estar voltados: isto , as dificuldades de
delimitar antecipadamente o carter e a natureza da realidade emprica sobre a qual os
conceitos histricos devem versar.
Situao incmoda, uma vez que a realidade emprica, tambm ela, precisa a
princpio ser definida conceitualmente antes mesmo que se possa fazer conceitos a
respeito dela, sejam eles conceitos fsicos, biolgicos, sociolgicos ou histricos. Desta
situao parece restar a seguinte alternativa bvia: por trs de todo conceito de conceito,
h sempre um conceito do que realidade emprica, ou, em outras palavras, daquilo que
pode ser apreendido por um conceito e sobre o qual ele se volta. Mesmo conceitos que
deliberadamente no assumem como objeto algo que provenha da realidade
concretamente vivida, o conceito haver sempre de ter sua natureza delimitada
correlativamente a algo que no conceito, mas que, entretanto, encontrava-se j
conceituado. Assim, mesmo que conceitos se refiram a conceitos, h sempre uma
pressuposio ltima de algo que seja mais do que conceito, isto , a prpria realidade
emprica, que no mais das vezes encontra-se j conceituada, mas que nem por isso deixa
de estar pressuposta, j que isso colocaria um segundo problema ainda maior: a da
funo ou, neste caso, da inutilidade cognoscitiva dos conceitos ou, por acaso, no
seria um absurdo em si usar conceitos para conhecer novos conceitos?
Do ponto de vista da funo, o conceito apresenta melhor sua face de Jano: seu
substrato sgnico19
fica mais evidenciado em relao a uma discusso que tematize a
natureza dos conceitos, e seu carter arbitrrio fica assim melhor exposto, como fruto
de intervenes e construes semnticas mais ou menos organizadas em torno de um
nome, mas que, entretanto, sabemos, bem mais que uma palavra.
O problema da formao de conceitos, ento, tem um duplo aspecto
problemtico, seja l qual disciplina deles queira se apoderar. Em nosso caso (o caso da
disciplina da histria), veremos, tal problema est radicalizado desde o sculo XIX e,
talvez, adiante, para todo sempre, em vista de algo que nos parece de fato irreversvel.
Desde que se anunciou a natureza irrepetvel e absolutamente idiossincrtica da
realidade histrica (com Vico e Herder, Windelbandt e Dilthey, cada qual a seu modo),
19
A palavra sgnico, aqui, consiste num neologismo que encontramos para designar aquilo que referente
to somente aos signos, enquanto formas utilizadas na representao. Quando, portanto, falamos de
substrato sgnico, fazemos meno quilo que no o contedo de um signo, mas to somente sua
forma. Se esta forma decisiva para questes e variaes quanto ao contedo do signo, essa outra
questo que a princpio em nada probe o uso da expresso substrato sgnico.
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isto , do no-conceito sobre o qual os conceitos histricos devem voltar seu espectro
semntico e representacional, a formao de conceitos em histria tem que se
comprometer com severas discusses a respeito da plausibilidade da relao que
procura estabelecer entre conceito e realidade emprica (no caso uma realidade j
passada e em todo caso absolutamente individual), por um lado, e da relao que
procura (ou que negligencia) estabelecer com outros conceitos j existentes pr-
reflexivamente.
Estes dois problemas, porquanto conectados entre si, devero receber trato
analtico durante a exposio que se segue, com vistas a uma captao das intervenes
de Weber nesse debate, cujas contribuies ainda se fazem notrias para uma teoria do
conhecimento histrico. Veremos que o postulado de uma natureza imagtica dos
conceitos, presente em Weber, que delimitar o amplo escopo de utilidades que tal
ferramenta assume no trabalho historiogrfico, contando dentre elas a mais importante
para uma teoria do conhecimento histrico, qual seja, a formao de nexos causais entre
distintos eventos, entre passado, presente e futuro.
A frmula tipo-ideal, j to conhecida na literatura mundial, dever ento ser
condensada com vistas formao de conceitos em histria, estabelecendo seus limites
e implicaes imediatas para a consecuo e produo do conhecimento histrico.
1.3.4 O problema da causalidade histrica
Dentre os trs problemas que elegemos, este nos parece o de maior
complexidade. Isto no apenas porque a categoria de causalidade tornou-se, em todo o
sculo XX, objeto de incontveis ataques. Ainda desconsiderando essas ofensivas,
deveras robustas e instrutivas (sobretudo as advindas da filosofia da linguagem), temos
motivos internos nossa prpria disciplina para suspeitar dessa categoria. Tais motivos
podem ser condensados em um s: a completa ausncia de um modelo bsico de
causalidade a que tenham os historiadores se referido ao longo da histria da
historiografia. Pelo contrrio, existe um quase absoluto desacordo quanto ao que
significa ser causado em histria, muito embora eu no conhea nenhuma obra
historiogrfica que no tenha estabelecido, mesmo que despretensiosamente, nexos de
causalidade entre os mais diversos eventos que abordam.
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Justamente por isso, a gravidade deste problema tanto se destaca como coloca
para nossa disciplina uma situao interna de conflito que pouco faz avanar o
conhecimento histrico em vistas de sua utilidade e de um possvel papel pblico que
tenha a desempenhar, restando como mera justificativa intelectual para afirmao de
ideologias particulares. A causalidade histrica, em outras palavras, flutua a cada obra
historiogrfica merc da teoria que a constrange: um historiador estruturalista
estabelece nexos causais absolutamente incongruentes, por vezes incompatveis e
antagnicos, com um historiador, no menos qualificado, que se orienta por uma teoria
hermenutica, ainda que ambos se voltem para o mesmo fragmento do passado.
O problema da causalidade histrica deixa entrever, ainda, uma outra frente,
conectada com o nosso problema anterior. medida que a formao de conceitos em
histria se depara com uma realidade resistente seco conceitual, isto , com um
contedo que, a despeito de chegar at ns de forma fragmentria e j codificada,
remete a uma continuidade indivisvel, como estabelecer um inter-relacionamento
lgico entre suas partes assim debilmente delimitadas? Como, pois, estabelecer algumas
partes como causando, condicionando outras, se a prpria diviso do passado (ou, no
caso, da realidade histrico-emprica) em partes se demonstra, antes de tudo, como um
problema a ser resolvido? Muito embora tal problema exista, a maior parte dos
historiadores, no cotidiano de seus afazeres acadmicos, desconsideram tais
dificuldades que envolvem primeiro um seccionamento em partes de algo que por si no
tem limites, e depois, do estabelecimento de uma conexo lgica de condicionamento
entre tais partes assim destacadas de uma totalidade abscondida.
Tambm estas duas frentes de problemas devero contar com nosso cuidado
analtico. Trataremos de coloc-los luz do pouco debatido mtodo da imputao
causal, mtodo este que Weber sintetiza e que apresentaremos como via de se alcanar
um patamar de validade s proposies historiogrficas que atinja um grau de
plausibilidade que supere a superespecializao interna que o saber histrico
experimenta, oferecendo assim, tanto para estruturalistas como para hermeneutas, por
exemplo, um solo co