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1 Ascensão à Verdade Pe. Pedro M. Guimarães Ferreira SJ (08/2009 – 10/2009) O presente trabalho pretende ser um resumo, com alguns comentários, do notável texto de Thomas Merton, The Ascent to Truth, cuja 1ª. edição é de 1951 por Hartcourt, Brace and Company: New York. A citação das páginas neste trabalho segue esta edição. O livro, com 342 + xx páginas de 21 × 13 2 cm , tem um Prólogo e 19 capítulos agrupados em três partes e com numeração única, bem como notas bibliográficas de grandes místicos ao final. O nome de São João da Cruz, repetido muitíssimas vezes, será abreviado como “J da C”. E o nome de São Tomás de Aquino, também muito citado, será abreviado por “T de A”. (Seja dito de passagem que São Tomás de Aquino é, no Brasil, referido como “Santo Tomás” ao invés de “São Tomás”. Apesar de bem estabelecida esta convenção, acho que ela não faz sentido, não vejo porque caiba modificar a regra que não tem (outra) exceção: antes de consoante, usa-se “São” e não “Santo”. Proponho, portanto, que o nome do “Doutor Angélico” seja sempre escrito “SÃO TOMÁS DE AQUINO”, mas que aqui, doravante, será abreviado por T de A, como dito). As páginas comentadas do livro são indicadas pelo número depois de “p.”, como “(p. 5)”. Não coloco entre aspas, postos que muitíssimo numerosas, as palavras de Merton. Coloco sempre entre [ ] os meus comentários e informações quando no meio do texto do próprio Merton. 1. Introdução: Thomas Merton nasceu em 1915 e faleceu em 1968, vítima de um choque elétrico em Bangcoque, na atual Tailândia, quando participava de um encontro de contemplativos de várias religiões. Com cerca de 26 anos fez-se monge trapista, já tendo concluído o Mestrado em Letras na Universidade de Columbia em New York e sendo professor de um “College” (Faculdade) dirigida pelos Franciscanos. Entrado no Mosteiro do Gethsemani, no Kentucky, perto de Louisville, inteligência de escol, absorve rapidamente a literatura espiritual cisterciense e começa logo a escrever, revelando um notável talento para tal. Sua mais conhecida obra, e que se tornou um “best seller” foi A Montanha dos Sete Patamares (The Seven Storey Mountain), uma auto- biografia. Outra dos primeiros anos foi Sementes de Contemplação (Seeds of Contemplation), considerada por vários uma Imitação de Cristo dos tempos modernos, também um “best seller”. [A Imitação de Cristo, pouco conhecida e pouco lida atualmente, foi escrita no século XIV tornando-se livro de cabeceira para muitíssimos católicos até recentemente, isto é, até os anos 60’s do século que passou]. Merton foi um escritor prolífico, contam-se cerca de 70 suas obras publicadas em aproximadamente 25 anos. A obra que nos ocupa é, na minha opinião, a mais notável dentre as muitas que conheço dele. Após o aprofundamento da espiritualidade beneditina /cisterciense nos seus primeiros anos de vida religiosa, Merton, com menos de 35 anos de idade, estudou J da C em profundidade, entusiasmou-se com sua obra e escreveu o texto que resumirei. É uma apresentação admiravelmente didática daquele que é considerado o maior dos doutores da mística na Igreja Católica. Devo dizer que só entendi razoavelmente – espero – a doutrina de J da C depois de ler – com muitas anotações – este livro.

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Ascensão à Verdade Pe. Pedro M. Guimarães Ferreira SJ (08/2009 – 10/2009) O presente trabalho pretende ser um resumo, com alguns comentários, do notável texto de Thomas Merton, The Ascent to Truth, cuja 1ª. edição é de 1951 por Hartcourt, Brace and Company: New York. A citação das páginas neste trabalho segue esta edição.

O livro, com 342 + xx páginas de 21 × 13 2cm , tem um Prólogo e 19 capítulos agrupados em três partes e com numeração única, bem como notas bibliográficas de grandes místicos ao final. O nome de São João da Cruz, repetido muitíssimas vezes, será abreviado como “J da C”. E o nome de São Tomás de Aquino, também muito citado, será abreviado por “T de A”. (Seja dito de passagem que São Tomás de Aquino é, no Brasil, referido como “Santo Tomás” ao invés de “São Tomás”. Apesar de bem estabelecida esta convenção, acho que ela não faz sentido, não vejo porque caiba modificar a regra que não tem (outra) exceção: antes de consoante, usa-se “São” e não “Santo”. Proponho, portanto, que o nome do “Doutor Angélico” seja sempre escrito “SÃO TOMÁS DE AQUINO”, mas que aqui, doravante, será abreviado por T de A, como dito). As páginas comentadas do livro são indicadas pelo número depois de “p.”, como “(p. 5)”. Não coloco entre aspas, postos que muitíssimo numerosas, as palavras de Merton. Coloco sempre entre [ ] os meus comentários e informações quando no meio do texto do próprio Merton. 1. Introdução: Thomas Merton nasceu em 1915 e faleceu em 1968, vítima de um choque elétrico em Bangcoque, na atual Tailândia, quando participava de um encontro de contemplativos de várias religiões. Com cerca de 26 anos fez-se monge trapista, já tendo concluído o Mestrado em Letras na Universidade de Columbia em New York e sendo professor de um “College” (Faculdade) dirigida pelos Franciscanos. Entrado no Mosteiro do Gethsemani, no Kentucky, perto de Louisville, inteligência de escol, absorve rapidamente a literatura espiritual cisterciense e começa logo a escrever, revelando um notável talento para tal. Sua mais conhecida obra, e que se tornou um “best seller” foi A Montanha dos Sete Patamares (The Seven Storey Mountain), uma auto-biografia. Outra dos primeiros anos foi Sementes de Contemplação (Seeds of

Contemplation), considerada por vários uma Imitação de Cristo dos tempos modernos, também um “best seller”. [A Imitação de Cristo, pouco conhecida e pouco lida atualmente, foi escrita no século XIV tornando-se livro de cabeceira para muitíssimos católicos até recentemente, isto é, até os anos 60’s do século que passou]. Merton foi um escritor prolífico, contam-se cerca de 70 suas obras publicadas em aproximadamente 25 anos. A obra que nos ocupa é, na minha opinião, a mais notável dentre as muitas que conheço dele. Após o aprofundamento da espiritualidade beneditina /cisterciense nos seus primeiros anos de vida religiosa, Merton, com menos de 35 anos de idade, estudou J da C em profundidade, entusiasmou-se com sua obra e escreveu o texto que resumirei. É uma apresentação admiravelmente didática daquele que é considerado o maior dos doutores da mística na Igreja Católica. Devo dizer que só entendi razoavelmente – espero – a doutrina de J da C depois de ler – com muitas anotações – este livro.

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Ao longo deste texto, ora resumirei o pensamento, ora citarei textualmente suas frases. 2. Prólogo (Misticismo na vida do ser humano) A única coisa que pode salvar o mundo de um completo colapso moral é uma revolução espiritual. Se os cristãos vivessem de acordo com o que professam, esta revolução aconteceria (p.3). O maior problema para o cristianismo não são seus inimigos. As perseguições nunca fizeram muito estrago ao cristianismo (p.4). A Verdade de que os homens precisam não é a abstração dos filósofos, mas o próprio Deus. O paradoxo da contemplação é que Deus não é conhecido a não ser que seja amado. E nós não podemos amá-lo se não fizermos sua vontade. A função deste livro é definir a natureza da experiência contemplativa (p. 12). Quando a fé desemboca numa compreensão espiritual profunda e progride além dos conceitos em uma escuridão que só pode ser clareada pelo fogo do amor, então o homem começa verdadeiramente a conhecer Deus do único modo que pode satisfazer a sua alma (id). Mas se a experiência contemplativa de Deus vai alem dos conceitos, ela é puramente subjetiva? Ela implica uma rejeição completa da verdade cientifica? Ela fica alem de toda autoridade? O místico é uma espécie de gênio religioso que vive numa atmosfera inteiramente própria, que não é assunto no qual os outros possam se meter? (id) Estas são as perguntas que constituem os escopo deste livro e suas respostas são: A vida contemplativa exige um desprender-se dos sentidos, mas não é uma rejeição completa da experiência dos sentidos. Ela sobe acima do nível da razão, mas a razão tem uma parte essencial na ascese interior. A oração mística sobe acima da operação natural da inteligência e, no entanto, ela é sempre essencialmente inteligente. Efetivamente, a mais alta função do espírito humano é o trabalho da inteligência transformada sobrenaturalmente na visão beatifica de Deus. E a vontade tem parte integral em toda contemplação, visto que não há contemplação sem amor. O amor é o ponto de partida da contemplação e sua fruição. Alem disso, a contemplação pressupõe a ascese. Deus é o principal agente neste trabalho sublime. A contemplação é seu dom e Ele é livre de dispor essa graça como Lhe parece. A contemplação mística nos advém, como toda graça, através de Cristo. A contemplação é a plenitude da vida de Cristo na alma e ela consiste, acima de tudo, na penetração sobrenatural dos mistérios de Cristo (pp. 12s). Este trabalho é feito em nós pelo Espírito Santo - presente em nós pela graça – juntamente com as outras duas Pessoas Divinas (p. 13). O ponto mais alto da contemplação é a união mística com Deus, na qual a alma é dita ser “transformada” em Deus (id). O objetivo principal do livro não é descrever estes níveis mais altos de experiência mística [mas isto é feito também], mas clarificar certas questões fundamentais que se referem mais propriamente à preparação ascética para a oração mística. Ou antes, a mais importante questão estudada será a relação entre a inteligência e a vontade na contemplação (p. 14). O misticismo cristão autêntico não é intelectualista no sentido da filosofia mística de Platão e seus seguidores [nomeadamente Plotino, cuja escola se extasiava com o Uno]. Mas não é tão pouco, certamente, anti-intelectualista ou anti-racional. Não há

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absolutamente oposição entre o misticismo cristão, por um lado, e as ciências físicas, a filosofia natural, a metafísica e a teologia sistemática por outro. A contemplação cristã é supra-racional, sem o mínimo desprezo da luz da razão (id). Não se pode pretender amar mais a Deus sem desejar também conhecê-lo melhor. Isto não obstante, o amor é a essência da perfeição e santidade cristãs, pois ele nos une a Deus diretamente, sem intermediação, já aqui nesta vida (p. 15). A contemplação mística é uma experiência sobrenatural de Deus como Ele é em si mesmo. Trata-se de um dom de Deus em sentido mais especial que todas as graças para nossa santificação (p.16). Trata-se de uma participação consciente e vívida de nossa alma e suas faculdades na vida, conhecimento e amor do próprio Deus (id). A experiência contemplativa no sentido estrito do termo é sempre uma experiência de Deus, o qual é apreendido não como uma abstração, não como um ser distante, mas como intimamente e imediatamente presente à alma (p. 17). Esta é a substância do misticismo católico e Merton se propõe a estudar esta substância tal como ela é exposta nas obras daquele que é o mais “seguro” dos teólogos místicos, São João da Cruz (id). Ele é, alem disso, o ponto culminante da tradição mística, que antes dele era atribuída ao Pseudo Dionísio (id). [O Pseudo Dionísio é um autor desconhecido do século VI, que escreveu obras magníficas sobre a Mística, atribuindo-as a Dionísio, o areopagita, um grego que ouviu São Paulo no Areópago, em Atenas (At 17, 34). O que o autor anônimo fez, atribuindo o próprio texto a outro, não era incomum na época, para que maior numero de pessoas se interessasse por ler o texto, principalmente se o autor fosse desconhecido pelos contemporâneos. Vários estudos, efetivamente, tentaram identificar quem seria o autor, depois que ficou provado que não poderia ser Dionísio, que viveu no primeiro século. (Só no século XIX é que ficou claro que o autor não poderia ter vivido no século 1º]). J da C é também dos grandes entre os teólogos de tradição “apofática”. [Chama-se teologia apofática a que estuda e estabelece os atributos divinos pela negação dos atributos das coisas, que são necessariamente finitos. Por oposição a ela, tem-se a teologia catafática, que é afirmativa a respeito de Deus]. O primeiro dos teólogos apofáticos de acordo com Merton foi São Gregório de Nissa (330 - 395), [o qual é um dos “Padres capadóceos” juntamente com São Basílio Magno (329 - 379) e São Gregório Nazianzeno (330 - 390), todos eles Doutores da Igreja]. A doutrina mística de J da C evita as ambiguidades e exageros no misticismo da Patrística. E isto porque se baseou na doutrina sólida do “Doutor Angélico”, São Tomas de Aquino (T de A), (1225 - 1274), que ele estudou muito bem na Universidade de Salamanca (p. 17). 3. Visão e ilusão (Primeiro Catítulo) [Aqui começa também a primeira parte do livro, que é denominada “A nuvem e o fogo”]. Existe na tradição cristã uma teologia da luz e uma da noite. Grandes teólogos da luz, em ordem cronológica: Orígenes (185 - 253), Santo Agostinho (354 – 430), São Bernardo de Claraval (1090 – 1153) e T de A. Grandes teólogos da noite: São Gregório de Nissa , Pseudo Dionísio e J da C. Modernos teólogos de gênio lograram unir as duas, sintetizando T de A e J da C. Mas todos os grandes místicos, como o Bem-aventurado

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Ruysbroeck (1293 – 1381), T de A e o próprio J da C descrevem ambos aspectos da contemplação, luz e trevas (pp. 25s). Os místicos frequentemente se referem ao mundo criado como “ilusão”, como “nada”. Estas palavras não devem ser entendidas literalmente. A razão disso é que enquanto o mundo criado está presente aos nossos sentidos, Deus em si mesmo está infinitamente alem do que podemos alcançar pelos nossos sentidos e pela nossa inteligência (p. 26). 4. Em uma noite escura (Terceiro Capítulo) [Omito o segundo capítulo, sobre a descrença, que é uma digressão menos pertinente ao tema que nos ocupa]. Segundo São Gregório de Nissa, a vida espiritual é uma jornada de uma luz que é escuridão para uma escuridão que é luz. A subida da falsidade para a Verdade começa quando a falsa luz do erro (que é trevas) é substituída pela verdadeira, mas insuficiente, luz da elementar a ainda muito humana noção de Deus. Então, esta luz deve ser “escurecida” no sentido que a mente deve se afastar das “aparências” sensíveis e procurar Deus naquelas coisas invisíveis que só a inteligência pode apreender: isto é chamado de “theoria”, uma forma intelectual de contemplação. Este “escurecimento” dos sentidos é uma “nuvem” na qual a alma se acostuma a caminhar cega, sem se apoiar nas aparências das coisas que mudam. Antes que o espírito possa ver o Deus vivo, ele deve ser cego mesmo para as mais altas percepções e julgamentos da sua inteligência natural. Mas esta escuridão é pura luz porque é a Luz infinita do próprio Deus. E porque esta Luz é infinita, ela é escuridão para nossas mentes finitas (p. 50). [Esta é uma “explicação” clássica do paradoxo luz /trevas na vida contemplativa: a Luz de Deus nos “cega”, tornando-se para nós escuridão, tal como quando olhamos, mesmo que por pouquíssimo tempo, para o sol]. Ainda São Gregório de Nissa: Moisés viu Deus primeiramente na luz da sarça ardente, depois numa coluna de luz e escuridão e depois no Sinai, “face a face”, mas na escuridão divina (pp. 50s). Esta travessia na escuridão não se faz sem angústia. Nossos espíritos foram feitos para a luz, não para a escuridão. Mas a queda de Adão nos “virou pelo avesso” e agora a luz de que nós gostamos é escuridão [e a escuridão é que é a verdadeira luz]. O único caminho para a verdadeira vida [na contemplação mística] é uma espécie de morte [e alias o encontro definitivo com a verdadeira Vida é através da morte]. O homem sente a atração da Verdade Divina e toma consciência de que está sendo puxado para fora deste mundo visível para um mundo de nuvem e escuridão. Isto lhe provoca uma espécie de vertigem, resultado de uma divisão interior de si mesmo: sua mente feita para o Deus invisível é, não obstante, para efeito de conhecimento claro, dependente das aparências das coisas exteriores (p. 51). [Sim, porque vemos e sentimos não as coisas em si, mas suas aparências, nossos cérebros processam as informações que nos vêm através dos sentidos. Mas o chamado “realismo tomista” (de São Tomás de Aquino) tem como um dos seus pontos de partida epistemológico – ao contrario do que entendo ser a posição de Kant – que as aparências do ser manifestam o próprio ser, ou seja, podemos inferir algo verdadeiro a respeito do ser a partir das suas aparências]. São João da Cruz divide a noite em três partes. A primeira parte é a dos sentidos, comparável ao inicio da noite, quando as coisas começam a perder a sua visibilidade. A

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segunda parte é a da fé, comparável à meia noite, escuridão total. E a terceira parte é o final da noite, é Deus, quando se aproxima o dia (p. 52). [Esta divisão da noite em três partes não é o que se fala usualmente sobre as noites de J da C, em que ele distingue somente duas, a dos sentidos e a do espírito. Aqui, entretanto, ele divide a segunda (do espírito) em duas partes, correspondendo à segunda e terceira partes acima. Cabe aqui a pergunta sobre a noite escura da Bem-aventurada Teresa de Calcutá, que foi matéria da grande mídia, com artigo de capa da revista Time sobre o “best seller” Mother Teresa – come be my light. Ela durou 50 anos, com poucas e breves interrupções. (Consta que o “record” pertencia antes a São Paulo da Cruz: 40 anos). Ela não teria chegado à terceira parte da noite na divisão acima? A mesma pergunta se pode fazer a respeito da segunda grande Teresa, a “Teresinha”, que durante os últimos seis meses de vida (ela morreu com apenas 23 ou 24 anos) mergulhou numa terrível “meia noite”. Para responder a esta curiosidade, reporto-me ao mesmo Thomas Merton que diz algures, provavelmente com conhecimento experimental, que uma pessoa numa Ordem contemplativa, pode chegar ao mais alto da união mística, se bem o entendi, depois de cerca de seis anos de vida religiosa. (E aliás em algumas das Ordens mais antigas a profissão é emitida cerca de 6 anos depois da entrada). A partir destas indicações, creio que nada se poderia dizer se as duas Teresas mencionadas chegaram ou não à terceira parte da noite. Teriam chegado, sim, pelo que diz Merton em geral? Mas isto teria sido antes de voltarem à segunda parte da noite: no caso da Teresinha, alguns anos antes, pois pouco depois de entrar no Carmelo, com 15 anos de idade tudo indica que já havia alcançado notável santidade. E quanto a Teresa de Calcutá, que entrou na “meia noite” logo depois de iniciar seu trabalho entre os mais pobres dos pobres. A primeira noite teria sido bem antes, ela já teria dado sinais de santidade consumada, generosa como era]. J da C é notavelmente lúcido e simples, continua Merton. Ele é “brutalmente claro”. E este é o problema: sua simplicidade é muito radical, ele nunca tenta fazer compromisso (p.52). Seu ascetismo é expresso nestes versos que se constituíram no escândalo e terror para muitos cristãos: “Para venir a gustarlo todo, no quieras tenir gusto en nada; para venir a poseerlo todo, no quieras poseer algo en nada; para venir a serlo todo, no quieras ser algo en nada; para venir a saberlo todo, no quieras saber algo en nada. Para venir a que lo no gustas, has de ir por donde no gustas; para venir a lo que no sabes, has de ir por donde no sabes; para venir a lo que no posees, has de ir por donde no posees; para venir a lo que no eres, has de ir por donde no eres”. (Subida do Monte Carmelo, livro 1, cap. 13, no. 11) Todo y nada. As duas palavras contêm a teologia de J da C. Tudo é Deus, o qual contem toda perfeição, contem de modo eminente a perfeição de todos os seres criados.

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Nele nós possuímos todas as coisas. Mas a fim de possuí-lo, devemos renunciar a tudo que é menos do que Ele próprio. Mas tudo que pode ser visto, conhecido, apreciado e possuído de modo finito é menos que Deus. Portanto, deve ser bloqueado (p. 53). Mas há que atentar bem às palavras exatas do Santo. A palavra chave para compreensão do poema acima é “desejar”. Ele não diz “para chegar a conhecer tudo, não saiba algo”, mas diz “não deseje conhecer algo”. Ou seja, não é o prazer, o conhecimento, a posse dos seres que devem ser mortificados, mas somente o desejo destas coisas. Ou por outras palavras, J da C não quer nos privar do prazer, do conhecimento (ciência) e tudo o mais, mas quer que cheguemos ao mais puro e mais elevado prazer, conhecimento, etc: gustarlo todo, poseerlo todo, serlo todo, saberlo todo (p. 54). Existem inúmeras paixões (desejos) que nos envolvem com o que é finito e contingente. Cada uma delas nos ocupa com coisas sensíveis. E estas ocupações nos estreitam e fecham a alma, impedindo-a de uma perfeita comunhão com o Infinito. Portanto, o segredo da libertação ascética é o “escurecimento” de todo desejo (id). J da C diz que este “black-out” de todo desejo é necessário se quisermos chegar a um cumprimento pleno do Primeiro Mandamento. Ele diz efetivamente que todos seus escritos são simplesmente uma explicação do que é contido no “amarás teu Deus com todo teu coração, com toda tua alma...” (pp. 54s). E diz também que esta completa mortificação do desejo é simplesmente a imitação de Cristo e também cumprimento de seu mandamento: “Se alguém não renunciar a tudo que possui, não pode ser meu discípulo” (Lc 14, 33) (p. 55). J da C é tão drástico que alguns acham que ele é maniqueu. Mas este não é o caso. O que ele diz, sem reservas, é que o desejo das criaturas como finalidades em si mesmas não pode conviver com o desejo de Deus como nosso verdadeiro fim. Não é possível servir a Deus e a “Mamona” (p. 57). 5. Falso Misticismo (Quarto Capítulo) Mas existe também o falso misticismo. Ele é tipicamente anti-intelectual. Promete uma grande alegria na imolação da inteligência. Convida a pessoa a lançar-se nas mãos de uma força cega, considerada às vezes alem do homem, às vezes dentro dele. Este misticismo é às vezes “político” (como por exemplo no marxismo / comunismo) e às vezes é religioso. Ele quase sempre exalta a emoção acima do pensamento. E a sua resposta a argumentos da inteligência é às vezes um programa de violência sistemática (pp. 60s). Claro que no sentido estrito do termo, não há misticismo em política, filosofia, arte, e menos ainda em expressões corporais da vida. Efetivamente, desde o romantismo, a palavra “mística” foi usurpada por críticos literários e historiadores e aplicada a toda pessoa (ou grupo de pessoas) que procura libertar a vida emocional e afetiva do homem de restrições convencionais ou reacionárias (p. 62). A experiência do artista e do místico são completamente diferentes [e aqui Merton escreve com experiência pessoal nos dois assuntos]. A experiência mística “refletida” pode se tornar assunto de experiência estética, como foi o caso em J da C. [Como foi o caso de outros grandes místicos, como Santa Teresa de Ávila]. J da C teve o dom de passar algo da sua experiência mística de Deus para a poesia [sempre de forma simbólica]. Mas há sempre um abismo enorme entre sua oração e sua poesia. Ele nunca foi tentado a supor que a composição de um poema fosse um ato de contemplação (p.62).

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Santa Catarina de Sena – [mística das mais importantes da história de Igreja e também ela doutora da Igreja] – teve uma atuação importantíssima na alta política do seu tempo e isto graças ao fato de ela ter sido uma mística, um instrumento de Deus. Mas seu misticismo nunca foi político em qualquer sentido, assim como sua ação política não era uma manifestação do seu misticismo. [Sua ação política era fruto do seu zelo pela Igreja, o qual estava intimamente ligado a seu amor a Deus, que por sua vez se alimentava da sua oração de união a Deus]. O misticismo [autentico] é sempre um conhecimento “escondido” ou “secreto” de Deus, um dom dado por Deus à alma unida a Ele por amor. O misticismo de Santa Catarina de Sena foi sua experiência de união com Deus em Cristo, cujo Reino “não é deste mundo” (Jo 18, 36). Há dois tipos de falso misticismo: um deles diz que o místico não tem necessidade de qualquer conhecimento conceitual de Deus. A fim de entrar em “união contemplativa” com Deus, o “homem espiritual” deve abandonar toda atividade, esvaziar sua alma de todo pensamento e afeições. Tão logo sua alma esteja vazia, ela é naturalmente e automaticamente preenchida com contemplação “adquirida”, mas sem conhecer nada. Donde se conclui que o conhecimento teológico de Deus é um obstáculo para a contemplação e, por conseguinte, o teólogo é mal equipado para se tornar um místico. Estes foram os erros do Quietismo (Molinos), condenado no século XVII. O Quietismo se parece em alguns aspectos com a doutrina autêntica sobre o misticismo, que é apresentada aqui, resumindo Merton, seguindo o ensinamento de J da C (p. 66). O Quietismo rejeita formalmente a teologia, deprecia a auto-revelação de Deus em Cristo, o Verbo Encarnado, rejeita completamente a oração formal e a meditação e sustenta que a contemplação sobrenatural pode ser adquirida por um mero cessar da atividade mental (id). O segundo tipo de falso misticismo é mais comum e está ligado a visões, locuções, êxtases, raptos. Neste caso, estes fenômenos são muitas vezes “fabricados” pela própria pessoa [ou pelo demônio]. Há que se notar que visões, locuções, êxtases, podem ser certamente sobrenaturais, vindos de Deus. Mas é fundamental lembrar [este sendo um ponto em que J da C insiste muito] que estas coisas não constituem a essência do misticismo autêntico, sendo coisas acidentais, que podem – ou não – ocorrer no misticismo autêntico [ao contrário do que se pensa muito frequentemente, associando-se estes fenômenos a elevado grau de santidade]. A contemplação mística no sentido estrito é uma experiência de Deus alcançada diretamente sem um meio [por exemplo, visão, locução ou mesmo compreensão]. Ou seja, não há entre a alma e Deus qualquer intermediário de imagem ou “espécie”, seja da mente ou dos sentidos. Deus é atingido diretamente pela alma. Assim, as visões e locuções se “opõem”, de certa forma, à verdadeira contemplação, pelo menos no sentido que elas diminuem sua pureza e perfeição. De acordo com a tradição apofática – por exemplo, em São Gregório de Nissa e o Pseudo Dionísio – se você tem uma visão e pensa que é Deus, então você não viu Deus. E J da C devota uma grande parte da Subida do Monte Carmelo para provar a tese que visões, locuções e outras experiências que supostamente nos dão um conhecimento da divindade, nunca devem ser procuradas e nem mesmo positivamente aceitos, visto que nenhuma coisa criada, seja visível, seja uma ideia clara, pode nos proporcionar a plena realidade de Deus, tal como Ele é em si mesmo (pp. 67s). Neste ponto aparece uma objeção óbvia a esta doutrina: como é que ficam as aparições nas vidas dos santos e as famosas aparições da Virgem Maria em tempos

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recentes? J da C responde que dizer que estas visões ficam fora âmbito da contemplação no sentido estrito, não é questionar a realidade e o valor moral destas aparições, na medida em que são aprovadas pela Igreja (pp. 68s). Nenhum bom teólogo afirmaria que todas estas visões são ilusórias e J da C certamente não afirmaria tal coisa. Ele próprio teve visões e outras experiências, alem de ter dirigido espiritualmente pessoas que também as tiveram. Ele estava bem consciente de que estas coisas vêm frequentemente de Deus. Mas por outro lado sabia como é difícil para um Diretor Espiritual distinguir entre uma visão [ou experiência análoga] que venha de Deus daquela que procede do Demônio [ou que seja fabricada pela própria pessoa] (p. 69). A verdadeira contemplação não é produzida por imagens e [nem mesmo] ideias que se formam na alma. Trata-se, [como já dito], de uma união espiritual imediata com Deus, uma união de amor (p. 70). E Santa Teresa de Ávila diz algures que qualquer um que tenha experimentado alguma vez a união mística, pode ver imediatamente a distância infinita [sic] que existe entre ela e a “moeda falsa” em termos de visões e locuções produzidas por nós mesmos ou pelo Demônio. Mas não existe tal distância clara no caso de verdadeiras e falsas locuções e visões. [A este propósito, Santo Inácio de Loyola, pouco depois de sua conversão radical e super-generosa, passou cerca de oito meses numa cova em Manresa, na Catalunha, e ali, entre iluminações autênticas e muitas consolações, experimentou também visões. Uma delas foi a de um objeto luminoso que lhe dava muita consolação e que ele pensou durante bom tempo que fosse uma manifestação da divindade. Demorou a perceber que era coisa do demônio. E só caiu na conta disso porque verificou que, após a visão, que lhe dava muita consolação, sentia uma perda de paz na alma]. E é por isso que J da C aconselha os contemplativos a permanecerem negativos com relação visões e locuções, sem mesmo se preocuparem se elas vêm de Deus ou do Demônio. A este propósito, Merton nota que J da C, que ele considera o maior dos teólogos místicos católicos, é de longe mais decidido neste ponto que a maioria dos autores. Mas todos os teólogos católicos estão de acordo que a alma contemplativa não deveria procurar visões e coisas análogas. Aliás, os bons autores concordam também que se alguém apresenta sinais de progresso espiritual suficiente e disposições adequadas, deveria ser usualmente permitido [pelo Diretor Espiritual] a aspirar à verdadeira contemplação e à união mística e deveria mesmo ser encorajado a este desejo (pp. 70s). O falso misticismo costuma existir quando há um apetite desordenado por visões, locuções e outras manifestações extraordinárias [odores, por exemplo] e quando se dá muito valor a estas coisas, colocando-se ênfase nelas. Não é falso misticismo ter visões autênticas, mas é falso o misticismo que consiste essencialmente de visões. É também falso misticismo atribuir maior importância a visões, locuções e revelações privadas às verdades reveladas por Deus através da Igreja, as quais são objeto da fé teologal. E também é certamente falso misticismo seguir um caminho que conduza a experiências espetaculares antes que à união obscura com Deus, como se a perfeição espiritual consistisse em ter tais experiências e como se ninguém pudesse tornar-se santo sem elas (p. 72). O falso misticismo tende a tratar a contemplação como se ela fosse só amor, sem conhecimento, ou pelo contrario, como se ela fosse só conhecimento, sem amor. E finalmente o falso misticismo nos afasta do nosso verdadeiro fim e procura o gozo de experiências gloriosas. Como se verá ao longo do texto, no falso misticismo há um

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lugar proeminente para a rejeição contumaz da razão, da filosofia, da verdade teológica e da autoridade dogmática da Igreja docente. 6. Conhecimento e não-conhecimento (“unknowing”) em J da C (Quinto Capítulo) 1 Cor 3, 18-19: “se algum de vós se julga sábio neste mundo, torne-se ignorante para ser sábio”. [Esta é a tradução apresentada por Merton, mas a tradução mais bem testemunhada tem “louco” ao invés de “ignorante”]. J da C escreve na Subida do Monte

Carmelo, livro 1, cap. 4, no. 5: “A fim de chegar à união com a Sabedoria de Deus, a alma tem que proceder antes pelo não-conhecer do que pelo conhecer [...]. Qualquer alma que toma consciência de todo o seu conhecimento e habilidade a fim de chegar à união com a Sabedoria de Deus, é supremamente ignorante aos olhos de Deus e ficará afastada daquela sabedoria...” (p. 74). Poder-se-ia objetar: qual a diferença entre esta afirmação e o quietismo? Efetivamente, é difícil ver a diferença se cada uma das duas doutrinas é apresentada de modo superficial, com poucas frases fora do contexto. Em primeiro lugar, J da C está falando aqui da sabedoria mística: conhecimento de Deus que a alma recebe na contemplação. T de A interpreta a passagem da 1ª. aos Coríntios, citada acima, da mesma forma que J da C (pp. 74s). Tanto J da C como T de A distinguem nitidamente sabedoria adquirida, que é fruto de estudos, e a sabedoria infusa, que é um dom de Deus, adquirida na contemplação. Na passagem citada, J da C contrasta estas duas sabedorias. O “conhecimento e habilidade humanas” – a sabedoria adquirida – nada pode fazer para levar o homem à “união divina com Deus”. [Esta expressão é textual em J da C; parece haver redundância, “divina com Deus”, mas na realidade, “união divina” significa “união mística” em J da C]. Tanto na Subida do Monte Carmelo como no texto da Noite escura da alma esta união divina com Deus é proposta como ponto culminante da “subida”, da ascensão da alma. É a “perfeição” à qual o principiante aspira quando ele começa a mortificação ativa (“noite”) dos sentidos, perfeição da qual o proficiente se aproxima nas “noites passivas” dos sentidos e do espírito. Esta “divina união” é o prêmio para os “perfeitos” (p. 75). [Esta última palavra, bem como “perfeição” na vida espiritual está bastante fora de moda]. O conhecimento de Deus na contemplação mística é tão diferente do conhecimento adquirido por estudos teológicos, que J da C os chama de “contrários” (p. 76). E aqui J da C volta ao tema principal da Subida do Monte Carmelo, que Merton considera “o tema” da obra [apesar de não ser tão falado, pelo menos até agora]: toda a vida ascética e mística é uma reprodução da vida de Cristo na terra, porque “aniquila” e esvazia completamente a alma a fim de uní-la a Deus. Para J da C, a imitação de Cristo significa somente uma coisa: a absoluta auto-renúncia. A única maneira de fazer algum progresso nos caminhos do espírito é avançar na imitação de Cristo. Cristo é o caminho, como ele próprio disse e este caminho é morte para nosso próprio “eu” em coisas dos sentidos e do espírito (pp. 76s). O principiante pensa, estuda e medita. E em sua oração ele começa a se aproximar da fronteira da contemplação infusa. Que significa isto? Que ele tem uma visão? Não, como vimos. A oração mística ou infusa tende a inibir o pensamento e a imaginação. Uma pessoa que estivesse acostumada a “insights” profundos e importantes a respeito de verdades espirituais, sente-se agora desolada ao tomar consciência de que não pode rezar e meditar como costumava. Suas mesmas noções a respeito de Deus que, eram claras e precisas, tendem a se tornar obscuras, e

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mais ainda, o caminho discursivo para alcançar a Deus que, era tão cheio de significado e afeto, já não mais a satisfaz. E o mesmo esforço para pensar a respeito de Deus é cansativo, como cansativo é o esforço para pensar em qualquer outra coisa. A pessoa perde o gosto por ideias e afetos. Ela quer ficar “descansando”, sente-se de certo modo presa a uma forma de silêncio, que apesar de torná-la “aleijada”, oferece uma oportunidade inescrutável de satisfação e libertação (pp. 81s). E é aqui que o desejo de atividade intelectual começa a apresentar uma dificuldade séria. Efetivamente, a contemplação infusa eleva o espírito humano à união com Deus, como vimos, sem o meio de qualquer imagem, ideia, ou qualquer outra coisa. Há muita discussão entre os teólogos se na oração mística a inteligência pode ser dita em imediato contacto com a Essência Divina [o que ocorre na vida eterna]. A maior parte dos teólogos afirma que a união imediata da alma com Deus, como já dito, é no amor, ou seja, há um “contacto” imediato das vontades (divina e humana). [(Observe-se que Deus e sua Vontade se identificam, Deus não tem partes, como os seres finitos). Esta doutrina é conforme à antropologia escolástica, segundo a qual enquanto que a inteligência produz um conceito interior à própria alma, a vontade “lança” a alma no seu objeto. Por isso, a união com Deus não pode ser feita pela inteligência, pois entre Deus e a alma existe o conceito (de Deus). A este propósito T de A, considerado com toda a razão um intelectualista, coloca a pergunta: qual é superior, a inteligência ou a vontade? E diz que, num aspecto aquela é superior a esta, porque diz respeito ao abstrato, enquanto que a vontade diz respeito ao concreto. Mas quando se comparam os objetos possíveis da inteligência e vontade, enquanto que o objeto da inteligência é sempre um conceito interno, o qual é finito, o objeto da vontade pode ser o próprio Deus, como ocorre na contemplação mística e na vida eterna, e neste sentido a vontade é superior à inteligência]. J da C diz que quando se estabelece esta união pelo amor infuso, a inteligência é absorvida em uma atenção geral e obscura de Deus, algo realizado como uma “presença”. Ou seja, na experiência mística Deus é apreendido como “desconhecido”. Deus é “sentido” na sua imanência e na sua transcendência. Ele se torna presente não como um conceito finito, mas na sua realidade infinita que ultrapassa qualquer noção analógica que tenhamos dele. Merton diz que o conhecimento místico de Deus é um “juízo”, mas acima dos conceitos. [Na antropologia da filosofia escolástica a verdade formal está no juízo, o qual é precedido pela “simples apreensão” que formula os conceitos]. É um conhecimento que se registra passivamente na alma sem uma ideia [conceito]. Isto parece estranho, mas as experiências místicas das pessoas que experimentam tais coisas nos asseguram que não há nada de essencialmente perturbador neste conhecimento de Deus na escuridão lúcida, porque traz consigo uma paz profunda e indizível (pp. 82s). Dito de outra forma, a contemplação mística obscurece o conhecimento claro das coisas divinas. Ela os esconde numa “nuvem do desconhecimento”. [The Cloud of

Unknowing é o nome de um tratado de um místico anônimo do século XIV]. Nesta nuvem Deus se comunica à alma passivamente e na escuridão, como diz J da C. Isto não satisfaz o desejo natural da inteligência, pois essa por sua própria natureza precisa de luz. A inteligência quer ver, quer penetrar a essência das coisas, quer compreender. Se a contemplação infusa é realmente concedida a uma alma, esta fome instintiva por ideias claras só pode encher a mente de obstáculos para a contemplação. Ela tende a substituir Deus [que é sempre contemplado na obscuridade, como vimos] por uma serie de ilusões fabricadas. As mentes imaginativas e intelectuais não avaliam o dano que faz esta

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substituição do divino pelo humano, do infinito pelo finito. J da C não hesita em aplicar estes princípios a todo tipo de “conhecimento claro” sobre Deus, mesmo que ele venha à alma através de visão ou revelação. Para ele o único meio próximo para a união com Deus é a fé; nenhuma visão, nenhuma revelação, mesmo a mais sublime, vale o menor ato de fé. Ele diz textualmente: “não se deve nunca confiar nestas coisas [visões, locuções,...] e nem mesmo admiti-las, mas deve-se sempre fugir delas, sem tentar avaliar se são boas [de Deus] ou más [do Demônio]....Quanto mais elas forem exteriores e corporais, menos elas são de Deus” (Subida do Monte Carmelo, livro 2, cap. 11, nn. 2 e 3). E acrescenta que estas coisas tendem a diminuir a fé daqueles que as recebem (pp. 84 – 86). A tentação de preferir um conhecimento claro de Deus, seja natural ou sobrenatural, ao conhecimento “escuro” coloca a alma no perigo de substituir a realidade por uma ilusão. Muitos leitores seriam tentados, a partir destas afirmações de J da C, a pensar que o misticismo dele é completamente anti-intelectual e irracional. Mas se esta conclusão fosse verdadeira, o santo teria que ser considerado completamente à margem do “clima” intelectual da teologia católica. O clima intelectual da teologia católica, diz Merton, é evidenciado pelo fato de a Igreja propor continuamente T de A como modelo dos teólogos católicos (p. 86). [Isto foi publicado em 1951. A partir do fim do Concílio Vaticano II, em1965, T de A tem sido abandonado pelos teólogos católicos, apesar de o mesmo Concílio afirmar que ele continua a ser o Doutor maior na formação dos Sacerdotes. Mas é certamente verdade que o “Doutor Angélico” foi o mais influente teólogo na maior parte do tempo da historia da Igreja a partir do século XIII]. Efetivamente, a estrutura teológica do catolicismo culmina numa contemplação mística, que se apóia não no agnosticismo, mas numa teologia sistemática (“especulativa”) e filosofia, que mostram grande respeito pela luz da razão. Neste contexto, Merton quer mostrar o sentido da doutrina do “desconhecer” em J da C. Que significa isto e que não significa? Em primeiro lugar, J da C não está tentando dizer que o intelecto é incapaz de compreender qualquer verdade. Não há uma única linha na sua obra que indique que ele desprezasse o poder da inteligência para atingir conclusões cientificas, filosóficas ou teológicas. Mas ele não estava preocupado com problemas gerais de epistemologia [nem estes problemas estavam postos de modo agudo na época, se bem entendo]. Efetivamente, todo seu ensinamento é baseado em sólidos princípios da filosofia e teologia escolásticas. Sim, o misticismo dele é todo no contexto da epistemologia da “Escola”. [Chama-se “Escola” e, respectivamente, “escolástica”, as doutrinas filosófica e teológica desenvolvidas a partir do século XIII e chegando ao século XX, que tem em T de A seu Doutor máximo. Este corpo filosófico / teológico teve períodos de grande pujança e outros de declínio. O último período pujante ocorreu entre o final do século XIX e início da segunda metade do século XX]. O conhecimento que é adquirido pela inteligência humana, seja no nível só da razão, seja quando, confortada pela graça, trata das verdades de fé, tem toda a validade para J da C como para T de A. Ou seja, o conhecimento conceitual é perfeitamente válido para ele (pp. 87s). Para ele, o “desconhecimento” (“unknowing”) se refere a Deus e não às coisas criadas, como é também o caso nos místicos orientais e idealistas do ocidente. Note-se que mesmo a teologia especulativa ou sistemática pode ser absorvida pelo apofatismo ao considerar os “nomes” de Deus, na medida em que eles nos dizem mais o

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que Deus não é do que aquilo que ele é. Mas este não é o ponto estudado e explicado por J da C. Ele não faz teologia especulativa ou sistemática. Sua preocupação é com relação aos problemas práticos do misticismo e suas experiências. E sua doutrina prática é baseada nas do Pseudo Dionísio e na de T de A. Três princípios claros mostram com precisão a função do “desconhecimento” na doutrina de J da C: - O conhecimento conceitual de Deus não deveria ser descartado, na medida em que ele ajuda o ser humano para a união com Deus. E este conhecimento ajuda para a união com Deus enquanto não interfere com a experiência mística, infusa e passiva, na “obscuridade”. - Não é tanto a presença de conceitos na mente que interfere com a “iluminação obscura” mística da alma, mas o desejo de atingir Deus através de conceitos. - Não se deve supor que o místico deva renunciar ao desejo de um conhecimento conceitual e claro de Deus, a não ser que ele esteja recebendo atualmente a oração infusa ou então a não ser que ele seja tão avançado na via mística que possa entrar na presença de Deus sem qualquer pensamento ativo sobre Ele. A este propósito, J da C ensina que aqueles que já começaram a receber graças de contemplação mística deveriam retornar à meditação ativa “sempre que a alma não esteja ocupada com o repouso e conhecimento místico”. E acrescenta que a meditação é um meio ordinário que dispõe a pessoa para a oração mística. Efetivamente, diz ele, a pessoa precisará frequentemente de fazer uso da meditação, “silenciosamente e com moderação” (Subida do Monte Carmelo, livro 2, cap. 15). A razão disto, diz Merton, é que a teologia de J da C não é puramente negativa, como não é a de nenhum santo cristão. Pelo contrario, tem um elemento fortemente positivo. Luz e trevas se sucedem e trabalham juntas. Os conceitos não levam a uma união imediata com Deus, mas têm sem dúvida uma função bem definida na preparação da união. (pp. 88-90). 7. Conceitos e Contemplação (Sexto Capítulo) O misticismo católico é baseado no dogma. E este tem como “serva” a filosofia escolástica, diz Merton logo ao início do capítulo. [Isto não é mais verdade há cerca de 50 anos, apesar de o Concilio Vaticano II manter T de A como guia dos estudos teológicos – e consequentemente também filosóficos, pois não é possível entender a teologia de T de A sem conhecer-lhe a filosofia – para aqueles que se preparam para o sacerdócio, conforme já foi notado]. A filosofia escolástica nos ensina com precisão [quanto isto é possível quando se usam conceitos análogos] como as palavras humanas podem ser ditas para que façam sentido quando aplicadas a Deus. O misticismo de J da C é articulado em um pensamento que se apoia fortemente na doutrina escolástica da analogia. O dilema que ocorre é o seguinte: num extremo, uma teologia que pretende falar sobre Deus como se Ele pudesse ser completamente abarcado por conceitos humanos, e, no outro extremo, o agnosticismo que diz que Deus é completamente não conhecível. A respeito do primeiro extremo, pode-se cair no antropomorfismo sem necessariamente descrever Deus com as características físicas do ser humano: basta que falemos do seu poder, justiça, sabedoria, ..., como se estas palavras fossem a Ele aplicáveis do mesmo modo que são aplicadas aos homens. Com efeito, todos os nossos conceitos têm limites, do contrario não poderia ser definidos. [“Definir” é colocar limites, etimologicamente].

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É claro que nossas ideias são, em certo sentido, ilusórias, porque não há conceito humano que contenha completamente a realidade das coisas [à exceção dos conceitos da lógica, da matemática e, de modo geral, quando se define de modo unívoco uma realidade abstrata]. Mas há que se concordar que os conceitos nos dizem o que é a coisa, mesmo que de modo parcial [ou então o diálogo humano seria impossível e teríamos que ser todos solipsistas]. Ora, se esta inadequação entre realidade e conceito vale a respeito das coisas criadas, com mais forte razão vale para Deus. Quando falamos em justiça e misericórdia dos homens, estamos falando não somente de coisas distintas, mas que no entendimento comum se opõem uma à outra. Mas em Deus, Justiça e Misericórdia se identificam entre si e com a própria natureza divina, Deus não tem “partes”. A teologia católica salvaguarda duas coisas nos conceitos pelos quais atingimos Deus. Em primeiro lugar, é afirmado que estes conceitos realmente o “atingem” tal como Ele é, eles falam a verdade a respeito de Deus. Mas esta verdade dos nossos conceitos fica “infinitamente” longe da Realidade mesma de Deus. De acordo com a expressão forte do Pseudo Dionísio, Deus está tão acima do ser criado, que Ele é “não-ser” (p. 93). Portanto todo conceito de Deus tem um duplo aspecto. Na medida em que ele atinge Deus, ele nos diz o que Deus é: Ele é Justo, Sábio, Misericordioso, Onipotente. E ao mesmo tempo o conceito nos diz o que Ele não é: Deus não é justo, sábio, onipotente, misericordioso, em um sentido limitado ou antropomórfico. Há então duas vias para Deus, uma de afirmação e uma de negação. Temos que afirmar e negar ao mesmo tempo. Se insistirmos na afirmação, sem a negação, acabamos por delimitar Deus pelos nossos conceitos; e se insistirmos na negação, sem a afirmação, acabaremos por negar que nossos conceitos digam alguma verdade a respeito de Deus (pp. 93s). Assim como o ascetismo cristão não deve destruir o corpo, assim a teologia apofática nas negações a respeito de Deus não deve ir tão longe a ponto de negar toda e qualquer afirmação a respeito de Deus (p. 95). Os Padres da Igreja e os grandes Escolásticos concordam que a via negationis é o caminho para um verdadeiro contacto com Deus, uma verdadeira “posse” de Deus na “escuridão”. [“Padres da Igreja” é uma expressão um pouco imprecisa e sobre a qual não há consenso perfeito; em geral, trata-se dos Santos que escreveram nos primeiro séculos, que têm especial autoridade por estarem mais próximos da Tradição. Quanto aos grandes Escolásticos, creio que Merton se refere aos primeiros, ainda que a contribuição para este problema daqueles dos séculos posteriores não tenha sido pequena]. Veremos mais adiante que a via negationis do intelecto requer também uma via amoris para a vontade (p. 95). A propósito, o grande São Boaventura, refutou aqueles que achavam que é possível uma visão [pelo intelecto] de Deus ainda nesta vida. Escreveu ele: “O mais excelente caminho de contemplação é ascender [a Deus] através do não conhecimento... como Moisés foi conduzido na escuridão” (“Excellentissimus modus contemplandi est ignote ascendere”). São Boaventura compara a pessoa nesta via de negação a um escultor, que vai cortando a pedra para atingir a ideia que tem da obra. Assim também, o místico [na via apofática] vai dizendo, à medida que vai negando: “Isto não é Deus, isto não é Deus” (“non est hoc Deus, non est hoc”). Ele avança negando e tirando fora (“per negationem et ablationem”) tal como o escultor, sem acrescentar nada (pp. 95s).

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Como já foi dito por outras palavras – e para melhor explicar a coisa – há dois perigos a serem evitados. Em primeiro lugar, não se deve tomar nosso conhecimento conceitual de Deus pelo que ele não é. E em segundo lugar, devemos tomar este conhecimento conceitual pelo que ele é. Ele não deve ser nem subestimado nem superestimado. Ambos excessos aqui caem num ateísmo prático. Com efeito, se atribuirmos muito poder às nossas “ideias claras” sobre Deus, acabaremos por construir um deus à nossa própria imagem. Se, pelo contrário, não atribuirmos a estes conceitos qualquer verdade a respeito de Deus, nós cortaremos todo contacto possível entre nossas mentes e Ele. Merton não sabe qual das duas alternativas é pior. Ambas, diz ele, são caminhos para o falso misticismo (p. 96). Se a pessoa começa a jogar com os conceitos de Deus através de ideias claras, as quais você pensa que delimitam e circunscrevem o Ser de Deus, você está na realidade fazendo afirmações a respeito de Deus de acordo com a medida das suas próprias ideias. Neste processo você “destroi” Deus, substituindo-o pelo seu próprio sistema de ideias. Isto, diz São Gregório de Nissa, é uma forma de idolatria (id). Mas há o outro extremo, que é mais comum, e que faz apelo às inércia moral e intelectual. Diz que nenhum dos nossos conhecimentos conceituais de Deus pode fazer sentido objetivamente. Visto que nossos conceitos não captam a plena realidade de Deus, eles não O atingem. [Creio que se pode dizer que existe aqui um “cartesianismo teológico”: já que não se pode ter “ideias claras e distintas” de Deus, então este é inatingível]. De acordo com este erro, a única justificação para os nossos conceitos de Deus é que eles são de certo modo símbolos para nossos estados interiores, eles tornam objetivos nossos ideais morais e religiosos. Pouco importa se há um Deus aos quais estes conceitos se referem, as ideias sobre Deus fazem as pessoas melhores (p. 97). E há uma outra forma deste mesmo erro, que se situa num nível mais alto. Exige nossa atenção, porque às vezes ele é invocado como tendo o apoio dos místicos. É o erro de considerar suspeitos todos os dogmas religiosos e mesmo doutrinas filosóficas, e que só admite a experiência do Absoluto direta, pessoal e supra-conceitual. A via negationis se torna então uma rejeição franca de todos os conceitos de Deus. E esta via em geral também implica uma técnica ascética pela qual se pretende suprimir todo pensamento e sensação, o espírito sendo esvaziado até que se atinja quase completamente este objetivo (supressão de todo pensamento e sensação). Merton alerta que não tem presente, com esta observação, o misticismo oriental, o qual, tal como o misticismo cristão, se funda numa base de doutrina de religião positiva (p. 98). A doutrina da analogia salva o místico católico do agnosticismo. Ela impede que as duas vias da afirmação e da negação caminhem em direções opostas. Ela permite que as fórmulas dogmáticas da fé sirvam como ponto de partida para uma ascensão mística para Deus. E o dogma serve como um critério seguro para testar e examinar as afirmações dos místicos, prevenindo-as contra os descaminhos das ilusões subjetivas (p. 100). A via da negação conduz ao mais elevado conhecimento de Deus. T de A: “o mais alto conhecimento humano de Deus é saber que não conhece Deus, enquanto sabe que Deus excede tudo aquilo que d’Ele sabemos” (“illud est ultimum cognitionis humanae de Deo quod sciat se Deum nescire, in quantum cognoscit, illud quod Deus est, omne ipsum quod de eo intelligimus, excedere”: De Potentia, q. 7, a. 5 ad 14). E ainda o Doutor Angélico: “Deus excedendo toda inteligibilidade accessível ao nosso intelecto, é claro que não se pode conhecer o que seja [sua Essência], mas somente se existe” (“ex hoc quod Deus

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omnem formam intellectus subterfugit, apparet quod non potest cognosci quid est, sed solum an est, ut dictum est”: Super Boetium, De Trinitate, pars 1, q. 1 a. 2 ad 2) (pp. 100s). [Cabe um comentário a esta afirmação forte de T de A: não sabemos que Deus é Trino? Então conhecemos algo a respeito de Deus. Mais ainda, sabemos que a 2ª. Pessoa da Ssma. Trindade – e só ela – se encarnou. E sabemos que o Pai gera espiritualmente o Filho, etc. Quer me parecer que nesta frase, como em outras equivalentes, que aparecem na sua obra, São Tomás tem em vista somente o conhecimento que nos vem da razão e não aquele que provem da revelação. E se não estou enganado, creio que já li texto dele em que diz exatamente isto. Mas a frase do Doutor Angélico conserva seu sentido forte quando caímos na conta que ao dizer, por exemplo, que em Deus há três Pessoas, o conceito “Pessoa” tem sentido análogo]. As duas vias, continua Merton, terminam na mesma afirmação do conhecimento negativo de Deus. É uma afirmação porque declara que conhecemos Deus: conhecemo-Lo em todos os conceitos positivos que temos d’Ele e, alem disso, sabemos que Ele está infinitamente acima de todos estes conceitos. E nós só negamos o que sabemos a respeito d’Ele a fim de saber algo mais (p. 101). Merton cita outra de T de A: “Deum tamquam ignotum cognoscimus”, ou seja, “Conhecemos Deus como desconhecido”. E comenta: longe de declarar que Deus não é conhecível, o dogma católico conhece Deus e O conhece na sua infinita transcendência, enquanto que o misticismo católico O conhece por experiência (id). 8. Razão e Misticismo em São João da Cruz – O fundamento teológico (Oitavo Capítulo) A segunda parte do livro tem o titulo de “Razão e Misticismo em São João da Cruz”, seu primeiro capítulo (oitavo do livro) sendo “O Fundamento (“background”) teológico”. O capítulo sétimo é omitido neste resumo, por menor relevância para o que pretendo. É difícil ler J da C, diz Merton, sem se impressionar pela precisão do seu pensamento e coerência de suas ideias. Mesmo aqueles que não se sentem à vontade com suas conclusões, devem admitir que ele chega a elas por raciocínios filosóficos e teológicos rigorosos. Nenhum outro místico cristão trabalha sobre fundamentos teológicos tão claros. Entre todos os místicos, ele é o mais próximo de T de A e dos grandes escolásticos (p. 121). É de se notar que grandes medievais como T de A, São Boaventura e São Bernardo, bem como grandes Padres da Igreja como Santo Agostinho e São Gregório de Nissa foram também místicos nas suas vidas e também nas suas obras. E isto mostra que, ao contrário do que alguns pensam, misticismo e dogma não são dois compartimentos separados (id). Embora os escritos de J da C reflitam sua experiência pessoal – e eles jamais poderiam ser escritos se ele não tivesse vivido estas experiências – entretanto eles não são apenas registros do que ele viveu, eles são obras teológicas num sentido mais pleno que os escritos de Santa Teresa de Ávila, de Ruysbroeck, de Tauler e dos outros místicos considerados mais importantes (p. 122). J da C não somente ilustra sua doutrina com um uso literário das Escrituras, ele a demonstra usando as Escrituras. Mais ainda, ele encontra sua doutrina na Bíblia. É por

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isso que ele é primariamente um teólogo e não somente o que se refere de modo pouco preciso como um “autor espiritual”. Os “instintos” mais profundos de um verdadeiro teólogo o advertiam que a Palavra revelada de Deus lhe oferecia mais segurança do que sua própria experiência. É o que ele diz textualmente no Prólogo, no. 2, da Subida do

Monte Carmelo: “...para dizer algo sobre esta noite escura, não me fiarei nem na experiência, nem na ciência, porque ambos podem falsear e enganar; mas não deixando de me ajudar, no que puder, destas duas coisas, vou me aproveitar [...] – pelo menos no que for mais importante e difícil de entender – da divina Escritura, porque se nos guiarmos por ela, não podemos errar, pois quem fala nela é o Espírito Santo. E se errar em algo pelo que disser, com ela ou sem ela, não é minha intenção apartar-me do santo sentido e doutrina da Santa Mãe Igreja Católica...” (pp. 124s). Merton observa que a Subida do Monte Carmelo e A Noite Escura são na realidade duas partes de um mesmo livro. As duas obras seguem um plano teológico cuidadoso e expõem uma doutrina, que de modo coerente e contínuo põem diante de nossos olhos o sentido teológico do Antigo e do Novo Testamento. J da C insiste que ele está atrás da mais elevada certeza intelectual e que ele espera encontrá-la não em uma experiência de Deus, mas no conteúdo objetivo de uma revelação conceitual e dogmática (p. 125). [A palavra “dogmática” provoca ressonâncias altamente negativas nos nossos dias; não era assim ao tempo de Merton, pelo menos no âmbito católico; significa simplesmente a parte do conteúdo da doutrina que é certa]. As mesmas ideias são repetidas no Prólogo do Cântico Espiritual. Este consiste num excelente comentário do seu próprio belo poema e é muito menos um tratado sistemático sobre a teologia espiritual do que as obras mencionadas antes. No Cântico Espiritual J da C fala mais do lado positivo da teologia mística – as “luzes” da oração mística e a magnífica alegria da união mística. Parece ser um livro muito mais pessoal, dá muito mais importância a fatos que ele poderá ter vislumbrado somente através de êxtases. Mas mesmo assim, aqui também ele insiste em ser teólogo, como dito no Prólogo, em que usa as mesmas palavras do Prólogo da Subida

do Monte Carmelo: “... não penso afirmar qualquer coisa baseado em experiência nem minha nem de outras pessoas que delas próprias tenha ouvido ou através de testemunhos – ainda que delas me aproveite – sem que esteja confirmado e declarado pela Escritura divina, pelo menos nas coisas que parecem mais difíceis de entender” (Cântico

Espiritual, Prólogo, no. 4). E sua interpretação da Escritura é guiada, evidentemente, pela Tradição cristã e pela autoridade da Igreja, como é dito no mesmo Prólogo (pp. 125s). Ora, ao tempo de São João da Cruz, a teologia da Escolástica, aristotélico-cristã, criada no século XIII, dominava amplamente o pensamento teológico católico. Seria pouco razoável, porem, esperar que a teologia mística de J da C fosse também escolástica. [Efetivamente, a escolástica se caracteriza por um alto grau de formalismo na expressão das ideias, com praticamente nenhum espaço para a poesia. Com isto, o aspecto simbólico, que aparece fortemente nos escritos de J da C, de Teresa de Ávila e tantos outros, fica prejudicado]. Mas J da C tem um forte “background” de teologia escolástica, tendo estudado na Universidade de Salamanca na Espanha. E isto aparece claramente no uso frequente que ele faz de princípios escolásticos (p. 126). [Em vista disse, creio que se pode dizer que a teologia mística de J da C é “escolástica” quanto às suas ideias mestras, ainda que não o seja na forma]. Quando J da C entrou na Universidade de Salamanca, ela era considerada a melhor Universidade do orbe católico, tendo ultrapassado a de Paris, graças em grande parte a

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gerações de professores de teologia, dominicanos brilhantes, herdeiros, mais que outros, do pensamento de T de A, pensamento que dominava amplamente o horizonte católico; sua famosa Summa Theologiae, sua obra maior, foi praticamente o “texto básico” do Concilio de Trento, que reformou a Igreja Católica nos século XVI, e cujos princípios e doutrina pautaram o desenvolvimento da Igreja desde então (pp. 128s) [até o início da segunda metade do século XX]. Quando J da C entrou na Universidade de Salamanca, nela haviam ensinado recentemente os famosos teólogos dominicanos Vitoria, Melchior Cano e Domingos Soto. Merton observa que ao lermos com cuidado a obra de J da C e, de modo especial, as seis primeiras questões da Ia-IIae da Summa de T de A, verifica-se que a doutrina do desprendimento das criaturas para chegar à união com Deus na Subida do Monte

Carmelo é muitas vezes uma citação quase palavra por palavra das mencionadas questões da Summa. Merton diz que praticamente toda a obra citada acima de J da C pode ser reduzida a estas páginas do Doutor Angélico. Mas nestas páginas de T de A falam sobre a vida eterna. O simples fato de J da C ter percebido a importância desta doutrina para a teologia mística mostra como ele era genial. E, claro também, isto mostra como J da C era um verdadeiro tomista, percebendo como Tomás, que “a graça é a semente da gloria”. Ninguém, diz Merton, que leia a Subida com cuidado, pode deixar de ficar impressionado com o paralelismo no pensamento destes dois textos, de grandes santos, de grandes contemplativos, um dedicado à teologia “especulativa” e o outro à teologia mística, ou seja, um dedicado à teologia na sua forma mais abstrata e o outro à forma mais experimental (pp. 132s). Na segunda questão da Ia-IIae T de A lista as satisfações e prazeres do ser humano e vai mostrando como em nenhum deles pode consistir a felicidade eterna: nem bens materiais, nem a honra, nem a fama, nem o poder, nem o prazer, nem saúde, nem esta vida. E São Tomás “mata” a questão com a frase: “O objeto da vontade humana é o bem universal” (“Appetitus autem humanus, qui est voluntas, est boni universalis”: S. Th. Ia-IIae, q. 2, a. 7, in c), ou seja, é Deus. E no artigo seguinte da mesma questão: “A felicidade é um bem perfeito, que satisfaz inteiramente a vontade; não seria o fim último se restasse algo a ser desejado” (“Beatitudo enim est bonum perfectum, quod totaliter quietat appetitum, alioquin non esset ultimus finis, si adhuc restaret aliquid appetendum”: id, a.8, in c). A eliminação metódica das coisas limitadas na dita questão da Summa nos remete para o mesmo método que é usado na Subida do Monte Carmelo. E J da C ao eliminar as coisas que não podem ser a nossa felicidade, conclui também, como é lógico, que a felicidade verdadeira não pode consistir em nenhuma espécie de graça sobrenatural ou visão, em nenhuma coisa que aconteça, nenhuma experiência, por mais sublime que seja. Deus somente é a nossa verdadeira felicidade (pp. 134s). E agora São Tomás traz uma segunda ideia que “ecoa e reverbera em todas as rochas do Monte Carmelo” (“echoes and reechoes on all sides from the cliffs of Mount Carmel”) no dizer de Merton, sempre poeta: a união com Deus não pode ser alcançada por operação dos sentidos e nem mesmo por um ato da inteligência que tenha seu ponto de partida nos sentidos. Este princípio é o fundamento da teologia mística de J da C. A perfeita felicidade, que é a união com Deus numa visão clara da Divina Essência é algo que excede a capacidade de qualquer criatura. Como diz e repete São Tomás de diversos modos: “Todo conhecimento que é segundo o modo de criatura fica aquém da visão da Divina Essência, que excede infinitamente toda criatura. Portanto nem o ser humano nem

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qualquer outra criatura pode alcançar a felicidade perfeita por seus próprios meios”. (“Omnis autem cognitio quae est secundum modum substantiae creatae, deficit a visione divinae essentiae, quae in infinitum excedit omnem substantiam creatam. Unde nec homo, nec aliqua creatura, potest consequi beatitudinem ultimam per sua naturalia”: S. Th, Iª-IIae q. 5 a. 5, in c.) (pp. 134-136). 9. Razão e fé (Nono Capítulo) A doutrina ascética de J da C teria sido muito mais bem entendida no passado se todos seus leitores tivessem observado que o Santo tem muito menos respeito por visões do que pelo bom senso. Ele é absolutamente definitivo ao afirmar que se pode fazer muito mais progresso na santidade seguindo a luz da razão do que condescendendo em um gosto desordenado por [...] supostas “experiências” espirituais. Num dos mais importantes capítulos da Subida do Monte Carmelo (ver o Livro 2, cap. 22, especialmente no. 11), o Santo explica que não é apropriado aos cristãos pedir a Deus sinais sobrenaturais e revelações particulares, ainda que estas coisas tenham sido concedidas por Deus com frequência no Antigo Testamento. E Merton comenta que isto mostra o verdadeiro caráter de J da C: sua doutrina é profunda, mas simples. E acima de tudo ela é sã, apresentando uma sabedoria filha de um equilíbrio natural e experiência sobrenatural (pp. 148s). Outro ponto que J da C considera muito importante é a direção espiritual. Merton comenta que qualquer pessoa que tenha se devotado seriamente à vida interior, reconhecerá que há quase tanta paz e progresso espiritual derivadas de uma conversa com um diretor “iluminado” comparando a uma hora de oração contemplativa. E observa que este encontro com o diretor espiritual tem que ser em clima de oração, para que valham as palavras do próprio Cristo: “quando dois ou mais se reunirem no meu nome, eu estarei no meio deles” (pp. 149s). Merton menciona que J da C foi às vezes considerado inimigo da teologia escolástica. Nada mais falso, diz ele. A teologia escolástica, diz ele, não somente não constitui qualquer obstáculo para a vida contemplativa, mas é seu fundamento necessário (p. 150). 10. Razão na Vida de Contemplação (Décimo capítulo) É certo que J da C começa a Subida do Monte Carmelo com a afirmação de que a alma não pode chegar à união com Deus [pela contemplação] a não ser que ela entre na “escuridão” com respeito a tudo que pode ser conhecido e desejado não somente pelos sentidos, mas também pela vontade e pela inteligência. Por outras palavras, há um certo sentido em que a fé e a contemplação “escurecem” e “cegam” a razão humana. Já foi bastante mencionada antes a limitação do conhecimento conceitual de Deus, de modo que a afirmação acima de J da C deve ser entendida neste contexto. Ela significa simplesmente que não se pode confiar num conceito claro de Deus, isto limitaria Deus, o circunscreveria por um conceito. A fé leva o ser humano alem dos limites da própria inteligência finita. A “escuridão” é isto: o ser humano não tem como ver a Verdade infinita de Deus, a qual, não obstante, está intimamente presente na obscuridade da fé teológica (p. 152). Infelizmente, diz Merton, muitos leitores dos grandes místicos concluíram que a razão não tem lugar na vida mística. Ora, é claro que seria suicídio espiritual basear sua vida em uma doutrina ascética que é essencialmente anti-racional. Se fosse assim, se a santidade implica a rejeição da razão, para que Deus nos teria dado esta? Efetivamente,

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Deus determinou que normalmente nós não podemos chegar à santidade sem fazer uso da razão. Aqui vale citar o famoso princípio enunciado por T de A, ainda que não seja exclusivo dele: “a graça não destroi a natureza, mas a eleva e a consagra a Deus”. Os seres humanos não deixam de ser humanos, muito pelo contrário. A razão humana deve servir ao ser humano no esforço pela santidade (“perfeição”). Há um grande perigo que o apetite por visões possa afastar a pessoa do único verdadeiro caminho para Deus, que é o da pura fé. E é aqui que entra a razão. Sua função mais importante na vida mística, de acordo com J da C é impedir que o contemplativo saia do caminho para a união divina. Uma das características do ascetismo de J da C é que ele exige constante crítica da própria experiência espiritual e a rejeição de experiências espirituais que caem fora do âmbito da pura fé. E o instrumento deste ascetismo interior não é nada mais que a nossa luz da razão. Esta, a serviço da fé deve questionar, avaliar e julgar todas as nossas mais íntimas aspirações espirituais. Deve examinar com objetividade “sem piedade” tudo que se apresenta a nós como um impulso sobrenatural. Deve questionar toda voz interior. Assim, o grande paradoxo na doutrina de J da C é que seu ascetismo da “noite” não pode ser praticado sem a luz da razão. Os que entendem errado J da C imaginam que o caminho do nada é como dirigir um carro à noite sem faróis. Não é. Trata-se de dirigir um carro com os faróis que só iluminam poucos metros à frente (por exemplo, numa estrada com muitas curvas). E estes faróis são a razão iluminada pela fé (pp. 154s). Merton observa que, de acordo com J da C, nenhum treinamento ascético pode dar à alma um completo domínio sobre todas as suas faculdades de modo que ela se “recolha” sempre que quiser, de tal modo que não permaneça nenhum movimento espontâneo de inclinação a qualquer outra coisa a não ser Deus. Deus – Ele próprio – deve tomar a alma a si num estado de “recolhimento passivo” antes que ela possa efetivamente amar a Deus com todas as forças, o que é prescrito pelo primeiro mandamento (p. 157). Por ascetismo entende a auto-purificação pela qual a alma, inspirada e fortificada pela graça, toma a iniciativa no processo de negar-se a si mesmo e na prática das virtudes. A alma é ativa neste processo. Por outro lado, a purificação passiva ou “mística” tem lugar sem nossa iniciativa. Nosso consentimento não tem nada de essencial neste processo. A purificação passiva é um trabalho feito na alma por Deus, a partir de “dentro” da alma mesma, assim como a graça de oração passiva é infundida na alma a partir do seu mais íntimo (p. 158) [E aqui é inescapável a palavra de Santo Agostinho: “Deus é mais íntimo a mim do que eu mesmo”]. Merton nota que, na prática, a vida interior nunca entra num estágio em que a pessoa é continuamente passiva em tudo. Nem existe um estágio na vida interior autêntica no qual não exista já algum grau de passividade. A fronteira da vida mística, entretanto, é cruzada quando a alma é habitualmente guiada de uma maneira passiva (da parte dela) por Deus tanto na oração como na pratica das virtudes. Habitualmente guiada de uma maneira passiva não significa “sempre”. De um modo geral, permanece a necessidade de uma cooperação constante com a graça, donde a necessidade imperiosa de ascese. Sem ascese, a vida mística é praticamente fora de questão. Mas ascese não significa necessariamente grandes exercícios de mortificações terríveis. Pelo contrario, a verdadeira ascese é um caminho de simplicidade e obscuridade, que inclusive começa com um cumprimento pleno dos deveres de oficio. Mas por outro lado, toda pessoa guiada pela graça de Deus desejará espontaneamente acrescentar algo aos sacrifícios que nos vêm pelos deveres de

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oficio e aqueles que nos surgem pela disposição da Divina Providência. E as melhores penitências, dentre as espontâneas, são aquelas que ficam invisíveis a todos, menos a Deus. Um ponto fundamental a respeito é que quando as purificações passivas começam, elas exigem maior coragem e desprendimento da alma do que as mortificações ativas (pp. 159s). Merton afirma que uma conclusão é inescapável a parir dos escritos de J da C: a oração mística é um dom de Deus a uma alma purificada por disciplina ascética. E esta é obtida somente quando todas as paixões são controladas pela razão (p. 161). [A este propósito, T de A ensina que a paixão em si é uma coisa boa; mas será de fato boa se for controlada pela razão. Controlar perfeitamente a razão, eis a questão. Na prática às vezes a pessoa controla parcialmente a paixão como numa discussão, por exemplo. Os outros tendem a achar que uma pessoa que se apaixona numa discussão está sempre sem razão. Não é bem assim, paixão não é necessariamente falta de razão]. A este propósito, o trecho do Evangelho escolhido para a Missa de J da C no Missal Carmelita contem a afirmação de Cristo: “A luz de teu corpo é o teu olho; se o teu olho for simples [sadio], todo teu corpo estará na luz; se teu corpo estiver doente, todo o teu corpo estará nas trevas” (Lc 11, 34). [“Olho simples” pode ser traduzido como “ratio recta”, razão reta, uma expressão cara a T de A, que a usa como critério para discernir a moralidade dos atos humanos]. Esta luz, que é a inteligência, não somente nos dá a compreensão das coisas criadas, mas é este “olho” que recebe a luz infusa da fé e da contemplação. A verdadeira contemplação é um “conhecimento amoroso de Deus”, que requer a ação coordenada do conhecimento sobrenatural e do amor. E está formalmente situada na inteligência, como concordariam J da C e T de A. Nosso espírito é “escurecido” pelos nossos apegos, a cegueira espiritual é fruto da emoção, paixão, desejos desordenados. E na Subida, livro 3, cap. 23, J da C é de novo (como sempre, aliás) implacável: “Mesmo que se beba um pouquinho deste vinho – o alegrar-se com as coisas criadas por elas mesmas, nota Merton – logo nosso coração é dominado [...] de modo que se um antídoto para este veneno não for logo tomado, de modo que ele possa ser logo expelido, a vida da alma corre perigo”. [Exagerado este final, não? Pois é, mas os Santos sabem das coisas...] (pp. 161s). Seria um erro fatal supor que J da C prescreva o uso da razão no trabalho ascético num âmbito puramente da natureza, de uma virtude puramente natural. Efetivamente, não se trata aqui simplesmente de uma perfeição ética ou moral, ele está falando de uma perfeição [santidade] sobrenatural, obtida pela ação da graça, de acordo com os princípios da fé. A razão deve guiar a alma do homem para Deus de acordo com o plano sobrenatural revelado por Deus e que nós só podemos conhecer pela fé (pp. 163s). Mas J da C é muito mais preciso, como fica mais claro num exemplo concreto: Suponha que uma pessoa tenha muito prazer sensível em coisas criadas e que este prazer esteja ligado ao amor a Deus acima de todas as coisas. Este prazer é útil para a alma? Ele ajuda a amar a Deus ou não? Como é que se pode saber a resposta a esta pergunta? Devemos saber responder à pergunta: nós amamos Deus ou o prazer? O Fim ou o meio? A resposta deve ser buscada na intenção da vontade: onde é que a vontade “descansa”, isto é, encontra sua satisfação final? Se em Deus, o prazer que ela encontra na coisa criada é apenas um meio, este prazer é bem ordenado, ajuda a louvar a Deus, santifica a alma. Mas um pouco de experiência pessoal nos mostra como é fácil nos iludirmos ao julgarmos a pureza de nossas intenções, quando temos grande prazer em coisas criadas.

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Ao querermos determinar se nossa intenção é ou não dirigida primariamente para Deus, muitos [segundo Merton] teólogos dizem que basta ter um “ato de pura intenção”. Neste “ato” [da vontade] desejamos expressar a intenção que o prazer no uso da criatura dê gloria a Deus. Efetivamente este ato não precisa ser formal ou explícito, ele pode ser “virtual” [não no sentido “informático” atual, mas no sentido que está presente, ainda que implicitamente, na vontade]. J da C com todos os teólogos católicos reconhece o valor sobrenatural da intenção pura. Ele adverte porem que, tendo em vista a “cegueira” de nossa alma, é bem possível que sejamos sinceros, mas iludidos, nas nossas boas intenções. Nossa sinceridade garantirá que nossa vontade seja realmente orientada para Deus quanto à intenção, mas como nos iludimos a nós mesmos, nossa vontade tem o seu “repouso” não em Deus, mas na criatura. Nós dizemos que queremos agradar a Deus e possivelmente dizemos isso a sério, mas porque permitimos que o prazer da criatura nos prenda, nós estamos inconscientemente nos satisfazendo na criatura (pp. 164-166). J da C diz textualmente: “Há que se ter muito cuidado nisso, olhando os efeitos [...]; porque muitas vezes pessoas muito espirituais usam dos ditos descansos (“recreaciones”) dos sentidos com pretexto de dar-se a Deus [...] e de dar-se prazeres a si mesmos mais que a Deus; a intenção que têm é para Deus, mas o efeito é a recreação dos sentidos, do que resulta mais fraquezas de imperfeição do que o reavivar da vontade e da entrega a Deus” (Subida Del Monte Carmelo, livro 3, cap. 24, no. 4). J da C afirma que uma pessoa experimentada nas vias do espírito pode dizer quando ela está usando os prazeres provindos das criaturas com pura intenção ou não. O sinal seguro é uma certa liberdade interior do espírito na qual a pessoa toma consciência de que não está sendo cativa do prazer. O prazer em si permanece então indiferente, neutro, perde-se o foco dele em Deus, só Deus interessa, só Ele é o foco da alma (cf. Subida, livro 3, cap24, no. 5). Quando sentimos esta liberdade interior, podemos confiar na nossa reta intenção no uso dos prazeres das criaturas. Mas J da C adverte – e Merton nota que este é o ponto mais importante de todos – que quando esta liberdade não é experimentada, não podemos confiar só na razão para nos guiar. Vemos, portanto que a razão tem seus limites, mesmo quando ela é dirigida pelos princípios da fé (p. 166). 11. Serviço segundo a razão (Capítulo Onze) A abnegação (auto-renúncia) é a característica daqueles que seguem a Cristo, porque o sinal do cristão é o sinal da cruz. E é São Paulo quem diz: “se viverdes de modo carnal, morrereis; mas se pelo Espírito fizerdes morrer vosso comportamento carnal, vivereis” (Rom 8, 13). E acrescenta: “Eu vos exorto [...] a oferecerdes vossos corpos em sacrifício vivo, santo [...], [este será] vosso serviço segundo a razão” (Rom 12, 1). Merton nota que T de A explica que significa este “sacrifício” de si mesmo. Pode ser o martírio, pode ser a penitência corporal. Mas não temos o direito de voluntariamente destruir nossa saúde. Este sacrifício corporal deve ser guiado, segundo T de A, pela fé e pela intenção reta, pelo “serviço segundo a razão”. E ele cita outra de São Paulo, que aparentemente não teria muito a ver, mas tem: “... tudo se faça de modo conveniente e com ordem” (1 Cor 14, 19). Nossa ascese deve ter ordem, ou por outras palavras, deve ser segundo a razão reta. E observa com Aristóteles, também exemplo de equilíbrio e bom senso: “Um médico deve dar a seu paciente tanta saúde como pode, mas não tanto remédio quanto pode” (Sanctus Thomas, In Epist. Pauli ad Romanos, Cap. 12, Lectio 1) (pp. 171s) .

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E J da C adverte contra uma certa “gula espiritual” nos principiantes na questão de penitências, observando que tal tipo de penitência “não é melhor que a penitência das bestas” (Noite Escura, livro 1, cap. 6, no. 2). E Merton nota que “bestas” significa aqui o “homem animal” [uma tradução aparentemente menos correta, certamente destoante da exegese atual: 1 Cor 2, 14], aquele que não entende das coisas de Deus. E J da C faz a seguinte exegese deste texto: “Por homem animal se entende aqui aquele que usa somente os sentidos...” (Subida do Monte Carmelo, livro 2, cap. 19, no. 11) (p. 173). A avidez por mortificações exteriores é uma espécie de sensualidade: leva o penitente a punir sua carne pelo prazer que sente nestes exercícios. Mas seria pouco razoável caracterizar todas as manifestações de entusiasmo religioso de tipo penitente como masoquismo. Deve se fazer uma distinção entre os excessos de alguém psicologicamente saudável e as aberrações de um neurótico. Um desejo de sofrimento por si mesmo seria uma indicação de neurose. O prazer que as pessoas sãs têm de tais penitências deriva não da dor infligida ao próprio corpo, mas do fato de que estão sofrendo algo que é objetivamente doloroso, mas não tanto quanto se deveria esperar. Por outras palavras, eles têm a sensação prazerosa de terem, de certo modo, subido algo acima da dor por sua coragem e resistência [espiritual]. Isto não tem nada de neurótico, é bom para o homem se alegrar no exercício de fortaleza, de superar obstáculos. Mas a maior fortaleza é aquela em que superamos obstáculos com um mínimo de satisfação (p. 174). Merton nota neste contexto que o sucesso ou fracasso da vida espiritual de um homem depende da clareza com que ele é capaz de ver e julgar os motivos dos seus atos morais. O primeiro passo para a santidade é o conhecimento próprio. E é função da razão julgar os motivos, testar a pureza de intenção, avaliar o objeto de nosso desejo e as circunstâncias que envolvem nossa atividade moral. A maior tarefa da razão na vida espiritual é desmascarar os impulsos desordenados que parecem, à primeira vista, espirituais (p. 177). Sim, porque a ascese no sentido pleno renuncia não somente às coisas boas deste mundo, mas também aos mais altos dons e favores de Deus. Não que devamos recusar formalmente a um dom especial de Deus, mas devemos ser sempre cuidadosos ao receber seus favores extraordinários, de tal modo que nosso desejo esteja sempre centrado no Autor dos dons e não nos próprios dons. [O princípio clássico: devemos procurar o Deus das consolações e não as consolações de Deus]. Os prazeres da vida interior são tão elevados e tão puros, eles transcendem de tal modo as alegrias dos sentidos e as deste mundo, que exercem uma notável atração naqueles que já os experimentaram. O pensamento e memória deles, bem como a esperança de tê-los de volta podem mover o homem no mais profundo do seu espírito e “virá-lo pelo avesso” pela veemência de um grande desejo. Neste caso, ele fará o que for necessário, as coisas mais difíceis, para ter de volta, por dois minutos que sejam, o que ele experimentou e parecia ser uma visão de Deus. Ele irá aos confins do mundo para ouvir alguma palavra que uma vez o deixou suspenso entre o tempo e a eternidade. Mas J da C lhe diz que todos estes impulsos devem ser sacrificados com a espada da razão, e que o caminho para Deus é de esvaziamento, sem refresco e sem prazer, no qual não procuramos luz, mas a fé...(p. 178). 12. Entre o Instinto e a Inspiração (Capítulo Doze) Deus fala no silêncio, no mais íntimo de nós. Ele sempre nos traz paz, nunca provoca excitação, a voz de Deus traz a certeza. Se ele nos move para a ação, nós caminhamos

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com força e paz. Mais frequentemente suas inspirações nos ensinam a permanecermos quietos, elas nos mostram o vazio e a confusão dos projetos que nós pensávamos que havíamos empreendido para sua glória. Ele nos guarda dos impulsos que nos levariam a uma competição feroz com outros. O Espírito Santo é mais facilmente reconhecível quando nos inspira obediência e humildade. Não o conhece quem não provou a tranquilidade que vem da renúncia da própria vontade, do próprio prazer, dos próprios interesses, sem glória, sem ser notado, sem o aplauso dos outros. As inspirações do Espírito Santo não são grandiosas, elas são simples, elas nos movem a procurar Deus em trabalhos que são difíceis, sem serem espetaculares. Elas nos conduzem por caminhos que são felizes porque são obscuros. E é por isso que elas sempre nos trazem um sentido de libertação. Ele é o “Espírito de Verdade” (Jo 14, 17). Nós encontramos força e humildade, confiança e cautela na sua luz que nos ensina o caminho do conhecimento na escuridão, plenificando-nos com um amor milagroso. E esta luz não nos deixa satisfeitos conosco mesmos, mas com Deus (pp. 185s). A santidade consiste numa perfeita união da mente e da vontade com Deus. Ou seja, é a perfeita obediência de todo o nosso ser à vontade de Deus. Portanto, a vida espiritual pode ser reduzida, na prática, a uma fórmula simples: fazer a vontade de Deus. Mas esta fórmula não deve ser super-simplificada no sentido de uma aplicação mecânica, não podendo nunca ser uma questão de mera rotina, pois a obediência que Deus quer de nós deve ser de seres livre e inteligentes. Este exercício, na medida em que é ascético, só leva a um certo estado de união com Deus, precisa ser completado passivamente pela intervenção “supremamente delicada” [na expressão de Merton] do Deus Santificador. Em um primeiro nível, a alma chega a um estado no qual a vontade rejeita todo desejo que a razão, iluminada pela graça, reconheça ser contrário à vontade de Deus. Mas, como diz J da C, sem querer e sem saber, ou sem ter o poder de agir de outro modo, a alma pode cair em imperfeições e pecados veniais. Trata-se de hábitos que, apesar de nossas melhores intenções, criaram raízes profundas no nosso ser. E a mais alta santidade exige que mesmo estas raízes profundas de hábitos “inocentes” – mas que efetivamente nos afastam de Deus – sejam extirpados. Este trabalho não pode ser feito somente pela razão, ele requer a intervenção direta de Deus em uma purificação passiva (mística) da alma. E – pasme-se – a assim chamada Noite dos Sentidos não é suficiente para isso: a perfeita santidade não é conseguida sem uma purificação pelo fogo do amor infuso, equivalente em todos os seus efeitos espirituais às chamas do Purgatório. Esta é a verdadeira Noite Escura – a Noite da Alma. É bom para nós chegar lá, podemos e devemos pedir isto (pp. 187-189). Na Noite dos Sentidos a inteligência e a vontade não são “escurecidas”, mas não obstante, encontram dificuldade na sua atuação ordinária e isto porque a inteligência não pode conhecer algo naturalmente a não ser recebendo seu “input” dos sentidos [nihil in intellectu nisi prius in sensu = nada pode estar na inteligência a não ser que esteja antes nos sentidos], enquanto que o “input” para a vontade é o que vem da inteligência [nihil volitum nisi prae-cognitum]. O intelecto é levado a ficar numa simples intuição das verdades da fé e a vontade deixa os diversos objetos usuais e fica em um amor a Deus unificado e simples. Mas como a ação infusa de Deus na alma ainda é muito tênue e visto que a experiência produzida por ela é vaga e obscura, a inteligência e vontade ficam num estado que lhes parece equívoco, flutuando entre a angústia e a consolação. E a pessoa não sabe bem se está em angustia ou consolação. Sua atividade ainda não é obstruída,

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mas não sente satisfação nela e acha que é mais ou menos infrutífera. E ainda não sabe como se comportar de modo a ficar simplesmente e proveitosamente passivo sob a misteriosa ação de Deus. Mas acontece, por outro lado, que Deus nem sempre age nele deste modo especial. Quando Deus não está agindo, a pessoa não deve permanecer passiva, mas fazer algo [meditar, ler,...]. E é muito difícil dizer, no começo, quando Deus está infundindo as delicadas e passivas inspirações para a alma. E é uma lei da vida mística que as potências da alma [memória, inteligência e vontade] permanecem passivas no sentido estrito da palavra quando são absorvidas por Deus em um “rapto” e perdem todos as poderes sobre si mesmas [cita Santa Teresa de Ávila, Vida, capítulos 18 e 22]. De resto, a passividade na Noite dos Sentidos é relativa. É preciso entender em que sentido a alma permanece passiva nesta Noite. Em primeiro lugar, porque as faculdades da pessoa que permanecem ainda capazes de agir podem, agindo, frustrar o trabalho dedicado de Deus na alma. E em segundo lugar, pelo contrário, se a alma permanecer completamente inerte, ela deixará de fazer o trabalho simples de cooperação que Deus ainda pede dela. O princípio que Merton quer enfatizar é que embora a meditação discursiva formal seja praticamente impossível na Noite dos Sentidos, e que, neste tempo, o início de uma motivação infusa e passiva por Deus exijam que a atividade da mente e da vontade sejam purificadas, simplificadas e reduzidas à unidade, entretanto continua um trabalho a ser feito tanto pela mente como pela vontade. Porque durante a Noite dos Sentidos a ação divina usualmente não toma posse de nós sem que nos disponhamos inicialmente para recebê-Lo. Somente mais tarde, quando nos tornamos mais habitualmente imersos na Oração de Quietude é que a luz vem a nós e nos envolve na semi-escuridão translúcida do “não-conhecimento” (“unknowing”) nos mais inesperados momentos do dia (pp. 189-191). Na Noite dos Sentidos as inspirações infusas da oração contemplativa agem principalmente na vontade, é a vontade que é primeiramente sujeita aos movimentos do Espírito Santo. Porque Deus se torna imediatamente presente à alma contemplativa não pelo conhecimento, mas pelo amor. Assim, desde o começo, o amor tem a parte mais importante na contemplação, ainda que, formalmente, a contemplação seja um ato do intelecto. Mas a alma mantém a liberdade e pode se desviar da escuridão serena do amor divino. Eis porque a discrição da razão é importante também neste estágio (p. 191). E é certo também que quando a vontade começa a ser absorvida no misterioso e delicioso amor que Deus produz passivamente nela, ela torna-se momentaneamente independente da razão, pelo menos no sentido que ela começa a ser guiada diretamente por Deus numa intimidade de valores que não são tornados conhecidos a ela pela inteligência. A vontade, subitamente tocada pela chama do amor na escuridão da sua própria passividade, de certo modo “aprende” e “conhece” as coisas de Deus de uma maneira que a razão não tem a capacidade de penetrar. Mas a vontade por si não pode passar um juízo que decida sobre o real valor desta experiência. Esta cooperação da alma com a graça infusa de Deus será bem sucedida se a alma for humilde. E afinal a humildade é a verdade, ela pressupõe uma inteligência iluminada sobrenaturalmente (p. 192). Neste estado, como visto, a vontade é mais importante que a inteligência. Isto explica, diga-se de passagem, porque os teólogos de tradição agostiniana julgavam que a vontade fosse a mais alta faculdade da alma. Todo tomista concordaria que neste estado de oração a vontade opera num nível mais alto que a inteligência, em vista do seu mais imediato

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contacto com Deus. Se a vontade fosse de fato – sempre – uma faculdade mais elevada, a inteligência nada teria a intervir neste estado de oração. E concluiríamos também que a Oração de Quietude seria o mais elevado estado de oração, em que Deus é possuído sem ser conhecido (p. 194). Quando o contemplativo emerge da Noite dos Sentidos e entra profundamente na prática habitual da Oração de Quietude, com ocasionais toques de oração de plena união mística, a vontade entra em contacto com muitos objetos de prazer que são espirituais, mas não divinos. Donde a necessidade de grande discrição. A ação de Deus na oração passiva aprofunda e aumenta o poder natural da vontade para provar prazeres espirituais. Não há nada de milagroso a respeito das novas capacidades espirituais que a alma descobre em si mesma. Elas são parte da sua natureza, mas estavam bloqueadas pelos apegos dos prazeres dos sentidos (p. 195). 13. Razão e Raciocínio (Capítulo treze) A ascese interior requerida sobre a nossa razão por J da C não pode ser exercida sem o mais elevado heroísmo sobrenatural. Exige da nossa razão uma rejeição de todo estímulo sobrenatural que tende mais à auto-glorificação do que à pura submissão a Deus, como são as locuções interiores e visões. J da C é severo ao criticar contemplativos que estão prontos a aceitar todas estas (supostas) manifestações sensíveis da divindade. Ele não está preocupado se, por exemplo, estas locuções, algumas vezes faladas claramente no interior das almas, sejam ou não de Deus realmente. Ele está convencido que o hábito de aceitá-las, tendo complacência nelas e recordando-as com satisfação é um obstáculo perigoso para o progresso da oração interior. Este fato certamente surpreende aqueles cuja leitura espiritual consiste principalmente de revelações e locuções de Nosso Senhor e seus santos a pessoas piedosas. Merton diz que J da C diria que mesmo que estes místicos estivessem de boa fé, muitas das mensagens que eles supõem que tenham recebido do céu, tiveram de fato origem neles mesmos. E diz J da C a título de exemplo: “Eu conheci uma pessoa que tinha sucessivas locuções, algumas verdadeiras... mas outras eram pura heresia” (Subida do Monte Carmelo, cap. 29, no. 4), (pp. 201s). E o Santo explica porque estas locuções, mesmo que sejam verdadeiras, deveriam ser rejeitadas. Elas criam uma atmosfera de atividade desnecessária na alma, a qual deveria estar quieta e recolhida na fé, a fim de receber as inspirações que conduzem realmente à união divina e que não são sentidas pelo modo de palavras [nem de visões]. Textualmente J da C: “a inteligência não poderá encontrar outro recolhimento maior do que na fé e assim o Espírito Santo iluminará a pessoa na pura fé. Porque quanto mais pura e refinada for a fé da pessoa, tanto maior será a caridade infundida por Deus; e quanto maior a caridade, mais iluminada a pessoa e maiores dons do Espírito Santo serão comunicados a ela” (apud Merton, o.c., p. 202). De acordo com Merton, esta passagem luminosa pode ser considerada como um sumário da doutrina de J da C. Ela mostra com a maior clareza qual o papel da razão na vida mística. A razão deve conservar a alma pura e recolhida. Como? Na fé, isto é, conservando o olhar da inteligência exposto à luz da Verdade que Deus revelou à sua Igreja, em vez de deixá-la distraída em experiências emocionais. Por que? Porque a luz da fé abre o caminho para a caridade infusa. E a união mística com Deus nada mais é que a perfeição da caridade. E conclui distinguindo entre a ação do Espírito Santo em locuções e a ação através das virtudes teológicas e dons: “[através das locuções] é comunicada à alma uma sabedoria a respeito de uma ou duas verdades, mas

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na outra maneira é comunicada toda Sabedoria de Deus em geral, que é o Filho de Deus, que se comunica a Si mesmo à alma na fé” (pp. 202s). T de A define a contemplação como “simplex intuitus veritatis” (Summa, IIa-IIae, q. 180, a. 3, ad 1), ou seja, a contemplação é a intuição simples da verdade. Merton nota que esta definição vale tanto para o místico religioso como para o filósofo especulativo. [A contemplação filosófica é um fato, mas bastante fora de moda, com o grande abandono da metafisica. Plotino, um filósofo pagão, neo-platônico, se extasiava com a contemplação do Uno]. E porque a contemplação é essencialmente intuitiva, a mente deve permanecer pacificada, receptiva e não se envolver com muitos raciocínios quando exposta à luz infusa do Espírito Santo (p. 205). A fé é um simples ato de assentimento à autoridade propondo uma verdade a ser acreditada. Ela não contempla a verdade, não mergulha nas profundidades daquela verdade, ela simplesmente diz “sim”. Este ato de assentimento, mesmo que heróico, toma apenas um momento, ainda que possa revolucionar uma vida inteira. Mas a fé enquanto tal é um ato “frio” de assentimento à verdade. E este ato de assentimento não pode produzir a absorção amorosa e a compreensão íntima da verdade, que constitui a contemplação. E seja dito que o convertido cuja fé é emocionalmente “fria” e não é inflamado com uma experiência quase mística, não é por isso menos virtuoso nem menos agradável a Deus. Tal modo de ser pode exigir, até, maior caridade (pp. 211s). 14. Inteligência na oração de quietude (Capítulo catorze) J da C e Santa Teresa de Ávila, melhor que qualquer outro místico, descreveram os detalhes práticos da nossa cooperação com o Espírito de Deus no grau de oração que mais nos interessa aqui. Santa Teresa chama a Oração de Quietude “o começo de todas as bênçãos” e “o penhor de grandes coisas que virão”, é o primeiro gosto da oração mística. A Oração de Quietude absorve a alma num estado de recolhimento passivo e inunda todo o ser da pessoa com uma indescritível paz interior, que promana de uma intimidade profunda da Presença atual de Deus: a alma é tocada com a luz do céu. Inundada pela claridade de Deus, ela desperta para uma nova vida, descobre-se diferente, descansa em uma alegria desconhecida antes. Mas este sentido de Deus não é definido de modo preciso, pois a alma está ainda cega pela luz de Deus. Merton com sua veia poética diz que o espírito permanece em profunda tranquilidade, como um navio ancorado num porto tranquilo, enquanto que o sol nasce sobre um novo mundo através de uma névoa translúcida e silenciosa. William Blake, que experimentou a Oração de Quietude, se referiu a ela como uma noite de lua cheia e Santa Teresa tem várias expressões para caracterizá-la: quietude, recolhimento, satisfação, paz, grande alegria, repouso das faculdades, doce deleite (pp. 217s). Nesta oração as faculdades da alma estão passivas. E, no entanto, elas podem agir. Estão passivas no sentido de que nada podem fazer para adquirir esta bênção ou conservá-la. É puro dom de Deus. Não é produzida por qualquer técnica deliberada. Nossos esforços podem apenas nos dispor para recebê-la como um dom. Esta Oração de Quietude deve ser cuidadosamente distinguida de situações análogas que podem ser obtidas por esforço, como o recolhimento, o “centrar-se em si” numa experiência extremamente satisfatória de descanso. O amor humano também pode produzir este efeito, ainda que seja mais apto para produzir a inquietude do que o repouso. [Merton teve experiências de amor humano, inclusive fisicamente, antes de se fazer monge]. A

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alma que adquiriu asceticamente um alto grau de “vazio” e recolhimento pode produzir uma reflexão intelectual sobre o ser metafísico de Deus presente no seu interior – uma intuição metafísica do ser. Mas na Oração de Quietude a experiência é algo maior: toda a alma iluminada, vitalizada, elevada a um nível mais alto de ser, desembaraçada, em certa medida, das limitações materiais. Ela obtém um extraordinário sentido de leveza e liberdade. Mas além e acima de tudo isto está a Realidade Divina na qual esta experiência tem lugar. A alma não chegou a Deus por pensamento ou reflexão. Ela não o percebe em alguma imagem ou conceito. E, no entanto, ela está n’Ele, ela está “nadando” na sua Luz. Ele a envolve como uma nuvem de ouro. E o elemento mais essencial desta experiência é que a alma descobre Deus na sua imanência e na sua transcendência: tudo que a alma experimenta provem do mistério central que Deus está em todas as coisas e na alma e que, não obstante, Ele está infinitamente acima da alma e de todas as coisas (pp. 218-220). Santa Teresa faz brincadeira com as pessoas que provaram estes prazeres das coisas de Deus e tentam recuperá-las por próprio esforço. Mas ela brinca com ternura, porque ela mesma passou por esta tentativa. Os principiantes na oração têm este sentimento interior maravilhoso. Eles não ousam se mexer e nem mesmo respirar direito, para que a coisa não vá embora. E efetivamente a centelha do amor vai embora se a pessoa começar a fazer considerações sem utilidade (p. 220). Cabe então a pergunta: que fazem as faculdades da alma [sentidos exteriores, sentidos interiores, inteligência e vontade] na Oração de Quietude? Os sentidos exteriores devem estar recolhidos. Os sentidos interiores – especialmente a imaginação e a memória – ficam praticamente inativos quando a pessoa está profundamente recolhida. No estado de quietude, a vontade é a faculdade que está mais completamente passiva. As outras faculdades podem estar completamente distraídas, e a vontade ficar unida a Deus. É pela vontade que o amor de Deus toma posse da alma, enquanto que as outras faculdades não tomam consciência de como isto acontece, isto é, não sabem como esta união tem lugar. Santa Teresa diz expressamente: “embora as duas outras faculdades [memória e inteligência] possam estar distraídas, ... a quietude e repouso da vontade não são perdidas, e a vontade traz de volta, gradualmente, a inteligência e a memória para um estado de recolhimento. Porque embora a vontade não esteja ainda [na oração de quietude] completamente absorvida, ela está tão ocupada, sem saber como...” (p. 222). A solução para este aparente paradoxo, nota Merton, vem do fato que a vontade, quando movida passivamente por Deus, está de fato agindo num sentido muito mais alto e perfeito do que quando é movida por si mesma: quando a vontade se torna “prisioneira” do amor de Deus, ela não faz nada alem da Vontade do próprio Deus e, portanto, se torna perfeitamente livre com a liberdade do próprio Deus. Mas neste estado de Oração de Quietude, como já vimos, a vontade ainda não é completamente cativa de Deus, ela conserva sua tendência natural de seguir a inteligência. Esta e a imaginação podem “convencer” a vontade que suas próprias luzes são preferíveis às consolações obscuras e tênues que ela (a vontade) está recebendo secretamente. J da C afirma sem hesitação, que quando isto acontece, a oração passiva sobrenatural chega ao fim, mesmo que persista na vontade um forte sentido de consolação e um sentimento especial de passividade. Isto nos traz de volta uma vez mais à verdade sobre a qual Merton, seguindo J da C insiste, a saber, que mesmo na oração passiva, o progresso da alma e sua cooperação com Deus

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dependem em grande parte da discrição sobrenatural exercida pela inteligência (pp. 223s). De novo citando Santa Teresa: “O que a alma tem que fazer nestes momentos de quietude é caminhar mansamente e não fazer barulho. Por barulho eu quero dizer ir com o entendimento na procura de muitas palavras e reflexões com as quais quer agradecer por este dom e recordar seus pecados de modo a mostrar que não merece esta graça especial. A alma perderá muito se não for cuidadosa neste ponto, porque...logo começará a se convencer que está fazendo algo de valor, sendo seu discurso tão inteligente”. Continuando sua analogia de uma “pequena centelha”, ela adverte que a alma não colete muita lenha para esta centelha: “uns poucos gravetos são mais convenientes para acender o fogo”. Há uma consideração, diz Merton, que a razão deve usar, acima de todas, nesta oração, a saber, que se trata de um dom de Deus e deve reconhecer sua incapacidade para acrescentar qualquer coisa substancial ao trabalho que está sendo feito. Há que notar ainda que a oração de petição não é proibida mesmo nos momentos de absorção em Deus. Estas petições são simples e sem palavras, mas elas se alargam para abraçar as necessidades das pessoas no mundo. Finalmente, a meditação nunca é abandonada inteiramente pela pessoa que atingiu este estado. Ela terá que voltar às vezes à meditação discursiva formal, mas somente fora do tempo da oração passiva. Neste contexto há que lembrar que o único caminho para a união com Deus é o da cruz de Cristo (pp. 225s). Uma ideia errada sobre a função da razão no início da vida mística conduz inevitavelmente a uma estagnação espiritual. Sob o pretexto de permanecer em um estado de receptividade passiva sem fazer qualquer ato formal de amor ou conhecimento de Deus, o contemplativo deixa-se levar pelo hábito e pela rotina. Mas Deus não dará, usualmente, estas inspirações passivas às almas que não são consumidas por um desejo constante e generoso de cooperar ativamente com sua graça ordinária. O bem-aventurado Jan van Ruysbroeck, um místico flamengo do século XIV, diz: “Quando um homem se esvazia interiormente, se abstrai de todas as imagens na parte sensível da sua alma e se torna inativo nas suas faculdades superiores, entra num estado natural de repouso... Mas o homem que realmente ama a Deus, não pode permanecer neste estado, por caridade e pela ação interior da graça não quer ficar preguiçoso... Este estado de repouso, se permanecer [alem do razoável] acaba levando à condição de uma completa cegueira...” E continua: “Sem uma atenção interior amorosa para Deus, este homem estará sujeito aos maiores erros, porque ... tudo que ele está procurando são consolações, doçuras, ...Tudo que ele faz é para seu próprio interesse e não para a glória de Deus...” (pp. 226-228). Não é sempre fácil distinguir as inspirações da graça das inclinações naturais que afastam o homem de Deus. Só uma alma que adquiriu maturidade na oração contemplativa pode dizer rapidamente e facilmente a diferença entre a inatividade estagnada das faculdades e a frutuosa e passiva motivação da mente e da vontade pela inspiração do Espírito Santo. A razão guiada pela fé deve estar alerta e dar à vontade luz para rejeitar os impulsos seja para a hiper-atividade, seja para a tendência à indolência. Merton nota que a direção espiritual de contemplativos, ainda que deva ser bem fundada em sólidos princípios, é, contudo, uma “arte”. Assim, por exemplo, uma atividade que para uma alma seria inútil e mesmo prejudicial, poderia ser bastante deficiente para outra. E uma mesma alma precisará trabalhar mais com as faculdades num tempo que noutro. Eis porque é tão perigoso deixar almas contemplativas cair nas mãos de diretores

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espirituais que são apaixonados por uma certa doutrina – disputada, não consensual – que tende a forçar seus dirigidos dentro deste padrão, que pode ser um desastre (pp. 229s). Uma das mais delicadas questões a serem decididas na vida contemplativa de uma pessoa é saber se ela está, ou não, recebendo graças de contemplação infusa. E esta pergunta é crucial, dela depende toda a orientação que o diretor dará. Há a respeito disso um consenso geral entre as melhores autoridades no assunto que quando uma alma atinge a contemplação, sua atividade discursiva, suas meditações, os atos afetivos formais da vontade, etc., devem ser muito simplificados e reduzidos. E estas autoridades no assunto afirmam também que quando a contemplação é claramente passiva ou infusa, a atividade das faculdades é, pelo menos parcialmente, impedida pela ação de Deus. Mas infelizmente, o problema da fronteira entre os estados de oração ativa e passiva, entre o que é “adquirido” e o que é “infuso” é assunto de intenso debate teórico. [Isto era verdade no tempo em que o livro de Merton foi escrito, hoje parece que este problema e os outros relativos à vida contemplativa são pouco comentados e, menos ainda, discutidos] (p. 230). Mas apesar das diferenças neste ponto entre os autores, todos concordam que a contemplação infusa é um dom de Deus, e a melhor maneira para se dispor para este dom é a abnegação e humildade. E todos concordam também que enquanto a alma encontra proveito e paz nos caminhos da meditação e da oração afetiva, estas não deveriam ser descontinuadas. Portanto, na prática, qualquer que seja a “escola” [beneditina, carmelita,...] a que o diretor espiritual esteja ligado, ele não deve encorajar um interesse no misticismo que produza um desprezo orgulhoso dos caminhos ordinários da vida espiritual e enfraqueça a alma no seu esforço de mortificação e devoção à oração. Mas ele não deverá opor resistência ao caminho de uma alma profundamente humilde e com um fervoroso desejo de união a Deus e que seja também fortemente atraída ao silêncio e a formas simples e sem palavras de oração (p. 231). Segundo J da C, que, como diz Merton, é reconhecido como o maior dos teólogos místicos católicos, há três sinais na pessoa chamada à oração contemplativa, dois dos quais negativos e um positivo: O primeiro sinal é a incapacidade de meditar. J da C é preciso, não se trata de uma pessoa que não pode meditar, mas que antes era capaz de fazer meditações discursivas proveitosas e agora não consegue mais. Antes, o uso na oração da mente e da imaginação era fácil e agradável, agora se tornou duro, mentalmente cansativo e tedioso. Mas este primeiro sinal isolado não permite concluir a vocação para a contemplação. O segundo sinal é a falta de interesse em objetos particulares do pensamento, a ênfase aqui sendo a palavra “particular”. A alma está interessada em “Alguém”, que, entretanto, permanece indefinido; portanto a alma não consegue satisfazer este interesse dirigindo sua atenção para coisas particulares. A inteligência e a vontade não encontram repouso nem satisfação em qualquer coisa terrena e nem mesmo celeste, significando com isto que a alma não encontra satisfação com qualquer ideia de Deus ou do céu que possa ser representada à imaginação. Ou por outras palavras, a alma encontra de cheio a distinção entre Deus em si mesmo e Deus que é “contido” nos nossos conceitos sobre Ele. E isto pode ser causa de grande ansiedade, tensão e sofrimento, porque naturalmente temos a tendência de identificar Deus com nossas ideias sobre Ele, e o fato de não mais sentirmos qualquer afeição sensível por uma imagem mental ou ideia de Deus nos leva a pensar que não mais O amamos. As pessoas que não percebem esta distinção muito frequentemente

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passam por um colapso psicológico no esforço de tentar encontrar devoção sensível por uma representação particular de Deus. O terceiro sinal é o mais importante dos três. Com efeito, os dois sinais anteriores poderiam surgir também em caso de tepidez espiritual ou de problema de saúde. O terceiro sinal é uma atração positiva para a oração contemplativa solitária. Com a palavra, J da C (Subida do Monte Carmelo, livro 2, caps. 13 e 14): “... a alma quer estar só e espera com atenção amorosa por Deus, sem qualquer meditação particular, com paz interior e quieta, sem atos e exercício das faculdades – memória, inteligência e vontade – pelo menos sem discursos interiores...; a alma está sozinha, atenta, ... mas sem algum conhecimento particular”. Trata-se de descrição essencialmente idêntica à que faz Santa Teresa de Ávila, mas J da C observa a alma em um estágio anterior e mais árido da mesma oração, em que quase não há consciência de prazer e doçura nesta atenção passiva para Deus na “nuvem do desconhecimento”. J da C exclui apenas os atos discursivos da inteligência, de resto a alma está engajada com atenção da vontade e com intuição por parte da inteligência. A diferença não está entre atividade e inatividade da inteligência, mas entre raciocínio e intuição. A alma olha com desejo de amar para a escuridão onde Deus está escondido e gradualmente perde a vista de todos os outros objetos (pp. 231-234). Quando este tipo de oração toma conta da alma, ela se torna doce, consoladora e, em alguns casos, inebriante. Mas aqui também a razão deve estar cuidadosa. Nas palavras de J da C: “Quando a pessoa começa a ficar recolhida, o demônio costuma oferecer a ela amplo material para distrações, formando conceitos e palavras ... e assim corrompendo e enganando mais sutilmente com coisas que têm uma grande aparência de verdade” (Subida do Monte Carmelo, livro 2, cap. 29). Procede de modo totalmente diverso o Espírito de Deus, de novo nas palavras de J da C: “O Espírito de Deus ... inclina [a alma] para a ignorância [de coisas particulares, nota Merton] e não querer conhecer coisas de outros, especialmente de coisas que não são para seu proveito” (Cântico Espiritual, versão A, canción 17 (“Em la interior bodega”), no. 15; na versão B, canción 26, no. 15). O Santo está repetindo o que já disse a respeito do segundo sinal, acima (pp. 234s). Os três sinais indicados por J da C contêm todos os elementos essenciais deste estado de oração. São, portanto, suficientes para indicar como o Espírito Santo “unge” a alma com a unção das suas graças especiais. E J da C nos lembra que a contemplação mística não tem nenhum outro objetivo senão o de fazer a pessoa perfeita nas virtudes teologais, especialmente na caridade. E acrescenta o santo: “Às vezes a alma se sentirá terna e serenamente enlevada e ferida, sem saber por quem, nem de onde, nem como, visto que o Espírito se comunica sem nenhum ato da parte da alma” (Chama viva de amor, Canção 3). Esta contemplação é um paraíso de paz, liberdade interior e crescimento espiritual. A alma descobre sua dignidade essencial e se liberta da sua antiga escravidão ao desejo. A alma está começando a se mover num novo mundo, numa “nova criação”, algo que transcende o nível da sua própria natureza, o jardim suspenso da contemplação, a meio caminho entre o céu e a terra, diz Merton (p. 236). Os toques místicos da graça não dependem em nada da atividade de nossas faculdades. Mas isso não significa, como já vimos, que todo trabalho da inteligência e da vontade termine. J da C é mais definido que Santa Teresa ao estabelecer exatamente o que deve ser feito pelas faculdades da alma nesta Oração de Quietude. Ele parece pedir muito menos da alma que a Santa, igualmente Carmelita, mas lembremo-nos que ela

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estava considerando toda a vida do contemplativo, seja na oração, seja fora dela, enquanto que J da C está falando principalmente sobre o que deve ser feito no tempo da oração. A atividade que ele requer na oração provêem da inteligência e da vontade. É muito simples e tem três estágios: Primeiramente uma disposição geral remota para receber as inspirações da oração passiva. O principal cuidado da alma será de não colocar obstáculos ao Espírito Santo. E para isso é muito importante um Diretor Espiritual ajudá-lo. A tarefa de remover os obstáculos deve ser feita com “discernimento dos espíritos”. Em segundo lugar, quando a mente está recolhida em oração e a vontade está centrada em Deus, a alma deve ficar numa atitude de “simples conhecimento” para receber o conhecimento infuso e o amor que vem a ela de Deus. E finalmente, quando há uma indicação positiva (que a alma saberá por experiência) que a alma está sendo “puxada” por Deus para um silêncio profundo e solidão, as faculdades abandonam toda atividade, deixando-se arrastar para a doce e poderosa atração de Deus, pela qual ela é submersa na escuridão do seu amor. Neste momento, a consciência do nosso “falso eu” do dia a dia é deixado como uma canga pesada e mal cheirosa. E o “eu profundo”, que está muito ao fundo para reflexão e analise, é precipitado em “queda livre” no abismo da liberdade e da paz de Deus. Neste ponto já não se adverte sobre o que está acontecendo dentro do contemplativo, menos ainda do que ocorre ao redor dele. Neste ponto o contemplativo está muito abaixo da “superfície” onde a reflexão é possível. Mergulhado em Deus, a alma só O conhece, e O conhece obscuramente. O espírito é levado para a eternidade como uma folha num vento de novembro, diz Merton (pp. 237s). 15. O espelho das águas prateadas (Capítulo quinze) Aqui começa a terceira parte do livro que se intitula “Doutrina e experiência”. Não se pode entender completamente J da C ou São Gregório de Nissa sem levar em conta que o misticismo deles é centrado em Cristo. Mesmo sendo apofática, a experiência supra-conceitual deles não pode ser conseguida sem Cristo. Mais ainda, não se pode chegar a ela sem um conceito de Cristo como o Verbo de Deus Encarnado: “Ninguém chega ao Pai a não ser pelo Filho” (Jo 14, 6). Efetivamente, muitos entendidos acham que os místicos cristãos da “Noite” deixaram Cristo fora dos portões do próprio Éden contemplativo. Alguns opinaram que J da C tivesse vivido um panteísmo atrás de uma fachada cristã. A ideia de um Verbo Encarnado estaria bem para pessoas simples. Estas afirmações teriam fundamento se se omitisse a leitura dos capítulos mais importantes de J da C (pp. 243s). A doutrina dos Carmelitas espanhóis, dos Cistercienses franceses, dos franciscanos italianos, dos Padres gregos dos místicos do Deserto do Egito é não somente cristã, mas católica. Ou seja, é não somente centrada no Jesus histórico, mas é nutrida na extensão da Encarnação, que é o Corpo Místico de Cristo, a Igreja. Tudo o que foi dito até aqui sobre o lugar da razão na mística de J da C ainda precisa ser completado pela seu conceito da relação entre a razão e a verdade revelada e a autoridade eclesiástica. A razão interessa J da C por causa da sua importância na ordem sobrenatural em que se encontra a humanidade. Pois afinal, a vida eterna do homem é a visão de Deus face a face. O frontispício da Subida do Monte Carmelo de J da C propõe ao contemplativo três caminhos, dois dos quais são errados: um não leva a lugar algum, outro leva ao nosso destino sobrenatural após uma jornada cansativa e em círculos. Os que seguem estes

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caminhos são guiados por um padrão puramente subjetivo de valores: eles obedecem aos impulsos da paixão e do desejo. O desejo é cego, julga as coisas de acordo na sua relação conosco mesmo. O terceiro caminho, o verdadeiro, é o caminho do Nada, a rejeição de todo subjetivismo, de modo a tomar as coisas objetivamente. Ora, a realidade objetiva das coisas é aquilo que elas são em relação com Deus, considerado em si mesmo e como nossa última finalidade. Mas para seguir o caminho do “Nada”, o ser humano que se esforçar por ser perfeito nas virtudes teologais e, para isso, ele tem que exercitar continuamente sua inteligência e vontade, ativamente ou no nível passivo e místico. A função da inteligência é garantir a pureza da fé, esperança e caridade – [as virtudes teologais] – não por raciocínios sutis, mas por um discernimento constante entre as ilusões do subjetivismo e a luz verdadeira que vem de Deus (pp. 244-246). E aqui surge um problema importante. Este exercício sem tréguas de purificar a intuição é algo que se aprende através das inspirações diretas e pessoais de Deus? Em caso afirmativo, estamos no perigo de sermos confinados no subjetivismo, do qual estamos querendo escapar. Porque mesmo que Deus possa nos dar um sentido interior pelo qual possamos “sentir” a diferença entre o certo e o errado – e Ele de fato nos dá este sentido – no entanto Ele não quer que façamos nossos julgamentos morais somente pelos padrões de uma delicada “sensação” interior. Porque é muito mais fácil perverter um “sentido” interior, que é algo indefinido, do que iludir a luz da razão. Com efeito, julgamento baseado em “sentido” e “sentimento” é apto para ser algo bastante individual. Enquanto que a verdade se revela à luz da razão de uma maneira que pode ser participada do mesmo modo por todos os que participam desta luz. Alguém que compreenda uma verdade, pode passá-la adiante por evidência e demonstração. A verdade que é transmitida de uma mente para outra produz a mesma certeza objetiva em ambas as pessoas, mesmo que tenha diferentes repercussões subjetivas nelas (pp. 246s). Por isso, se J da C coloca a razão como um dos fundamentos da vida mística, é porque, para ele, a razão exerce plenamente sua função somente quando é guiada pela fé. E a fé não é algo puramente subjetivo, pessoal e incomunicável, mas é objetivamente centrada em Deus, o qual é revelado para todo o Corpo dos fieis. E este Corpo é a Igreja, uma unidade orgânica, com um Credo definido claramente, um conjunto de leis, um culto, uma cabeça visível. Assim, o misticismo de J da C é não somente reconciliável com uma Igreja com um sistema dogmático, mas é impossível sem eles. E isto não é dito somente em função das múltiplas declarações do Santo, que se submete à autoridade doutrinal da Igreja. Porque, como vimos, para J da C a vida mística é impossível sem uma ascese sem compromisso da vontade guiada pela inteligência. Mas esta ascese interior é sintetizada no conceito de “pura fé”. A submissão da inteligência à autoridade doutrinal da Igreja é uma das características mais fundamentais da ascese da razão de J da C (pp. 247s). De acordo com Merton, praticamente em todas as páginas da Subida do Monte

Carmelo, J da C impõe à razão a tarefa e estrita obrigação de julgar e banir da alma não somente toda aspiração espiritual que não esteja em harmonia com a mente da Igreja, mas também toda inspiração mística que, mesmo sendo sobrenatural e mesmo que venha de

Deus, é porem uma tentação contra a revelação pública e a autoridade doutrinal. J da C seria a última pessoa do mundo a dispensar a mística da submissão ao Magistério da Igreja. Mesmo que fosse possível para um contemplativo receber na sua alma todos os mistérios da fé diretamente de Deus, J da C escreve somente para místicos que são

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formados, por Deus, de acordo com a via ordinária de uma revelação mediata [através da Igreja]. E o Santo tem uma razão muito especial para insistir nisto. A sua ascese de “pura fé” exige a mais absoluta humildade, obediência e abnegação interior. E esta submissão é mais perfeita quando se recebe a Palavra de Deus através de um representante humano. Como disse o próprio Cristo a São Tomé: “Bem-aventurados os que não viram e creram” (Jo 20, 29). J da C, como vimos, desconfia de toda revelação particular, por isso ele manda recusar visões, revelações, raptos, locuções a fim de se permanecer na “pura fé”, que é o único meio próximo de união com Deus (pp. 248-250). A doutrina de J da C a respeito das revelações particulares é extraordinariamente estrita, e é efetivamente muito mais rígida do que a da maioria dos teólogos católicos, embora na prática a reserva da Igreja quanto a revelações particulares possa encorajar a adoção dos padrões estabelecidos pelo Santo carmelita. Neste ponto ele já descartou formas inferiores de experiências místicas extraordinárias – visões de santos, locuções interiores – e gasta muito pouco papel com profecias do fim do mundo. E agora diz que nenhuma revelação privada relativa aos mistérios de Deus deve ser aceita pela alma, mesmo que – nota bene! – seja em conformidade com o que Deus já revelou publicamente à Igreja. Mas devemos entender bem a doutrina de J da C no que diz respeito a seu desprezo com relação a tudo o que fica fora do domínio da pura fé. Ele não pretende privar o contemplativo de luzes, experiências e visões porque seria orgulho desejar tudo que está à margem da fé, pois este é o alimento do fiel comum. Não se trata disso de forma alguma, o objetivo do Santo é ensinar às almas o caminho para a mais alta possível união com Deus. Tudo o mais não é suficientemente bom, não é a verdadeira “coisa” (p. 251). Merton recorda que o objeto da fé é o próprio Deus, através do enunciado do dogma. [Vale aqui citar T de A: “actus fidei non terminatur ad enuntiabile, sed ad rem”]. E é neste contexto que deve ser entendida a afirmação de J da C, já repetida varias vezes, com palavras equivalentes, que “a fé é o meio próximo e proporcionado pelo qual a alma se une a Deus”, ou ainda, “este conhecimento amoroso e na escuridão, que é a fé, serve como um meio para a divina união nesta vida, e, na próxima, a luz da glória servirá como meio para a clara visão de Deus”. J da C faz eco ao que T de A diz que a fé é um começo da vida eterna, “quaedam inchoatio vitae eternae”. Mais ainda, J da C diz que quanto mais pura a fé, maior a união da alma a Deus. Mas a fé é essencialmente obscura. Portanto, a pureza da fé é proporcional à sua escuridão, conclui Merton. E efetivamente, J da C diz ao principio da Subida, que a fé pura é tão escura quanto a noite para o entendimento. Por outras palavras, nota Merton, é na mais profunda escuridão espiritual, na mais profunda noite do desconhecimento na pureza da fé nua que Deus une a alma a si na união mística (pp. 255-257). Subindo por uma espiral, diz Merton, nós chegamos à mesma paisagem intelectual que atraiu nossos olhares ao início desta obra. Mas agora nós vemos de altura maior e é tempo de dar forma final às nossas conclusões sobre a função dos conceitos na contemplação. Isto irá finalmente colocar a teologia dogmática na sua relação com a vida mística. É hora de determinar como o conhecimento conceitual do qual depende um ato de fé teologal pode contribuir para a união mística da alma com Deus. Como vimos, de acordo com J da C, o místico está unido a Deus na escuridão pura. Portanto, a pura fé, que é a atmosfera própria para a união divina, vai alem de todo conceito claro e conhecimento científico de Deus. J da C diz que “a fé cega e ofusca [com

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sua luz intensa] o conhecimento”. A alma que entra no estado de contemplação infusa perde de fato sua inclinação [natural] para ficar com objetos precisos e particulares do conhecimento, procura Deus numa escuridão que está acima dos conceitos e o encontra além de todo conhecimento. Isto posto, há que afirmar também que não existe contradição entre os conhecimentos adquirido e infuso e Merton cita aqui a Encíclica Humani Generis do Papa Pio XII. E, como já foi dito várias vezes antes, J da C não rejeita o conhecimento conceitual e a teologia científica, mas ao mesmo tempo ele mantém, com T de A e todos os grandes teólogos, que a sabedoria infusa se eleva acima do conhecimento distinto e atinge as perfeições de Deus em uma fruição imediata que provem do amor místico obscuro. Nós “conhecemos” Deus porque nos identificamos com Ele pelo amor. Mas este conhecimento conatural de Deus ajuda a aperfeiçoar nossos conceitos a respeito d’Ele enquanto que o conhecimento da ciência dogmática serve como guia para as afirmações baseadas na experiência mística (pp. 257s). E agora nós enfrentamos a questão da contemplação mística. Que é a contemplação mística? É simplesmente a experiência sobrenatural das verdades acerca de Deus contidas no depósito da fé cristã. Mas como de fato toda Verdade revelada converge para o Verbo Encarnado, o qual por sua morte na cruz redimiu a humanidade e a uniu misticamente a Deus na sua Pessoa, a consumação da oração mística é uma fruição de Deus na qual o místico experimenta na sua alma o cumprimento do trabalho que Cristo veio realizar. Este cumprimento é chamado união transformadora. Trata-se de uma perfeita união com Deus através de Cristo, no Espírito Santo. Esta união de amor é tão perfeita que a alma vive e age como se ela tivesse sido “transformada” em Deus, de tal maneira que parece que não há distinção entre ela própria e Deus. Uma pessoa “transformada” em Deus age como se ela fosse “parte” de Deus. Ora, minha mão e meu pé são partes do meu corpo, qualquer coisa que minha mão faz, eu faço, qualquer coisa que meu pé faz, eu faço. O que acontece a eles, acontece a mim. E é neste sentido somos todos membros de Cristo, segundo São Paulo, membros do seu Corpo Místico. [São Paulo se refere simplesmente ao Corpo de Cristo, o adjetivo “Místico” foi acrescentado posteriormente, para distinguir do Corpo de Cristo na Eucaristia]. Mas Cristo é Deus. Portanto quem for completamente absorvido na vida de Cristo como membro de seu Corpo, identifica-se com Ele, e através d’Ele, com o Pai, e n’Ele com todos os membros de Cristo. “Eu neles e Tu em Mim, para que eles possam ser perfeitos na unidade” (Jo 17, 11) (pp. 258-260). 16. Uma nuvem escura iluminando a noite (Capítulo dezesseis) J da C comenta dois aspectos da fé, escuridão e certeza. Do ponto de vista racional, estas duas características parecem se contradizer. Mas na ordem sobrenatural, as coisas são, enquanto estamos caminhando para a Pátria, ao contrario: o que é mais certo é mais obscuro. Neste sentido, comenta Merton, as dificuldades intelectuais a respeito dos mistérios de fé não podem ser consideradas dúvidas ou tentações contra a mesma fé. E cita a propósito o Cardeal Newman: “mil dificuldades não fazem uma dúvida”. Efetivamente, não se pode esperar entender o que é essencialmente obscuro para nossas inteligências finitas. As verdades de fé são alem de toda proporção do intelecto humano e são conhecidas apenas quando são aceitas da Revelação divina. J da C comenta: para a alma esta excessiva luz da fé que lhe é dada, é escuridão espessa... como a luz do sol que torna escura todas as outras luzes que vemos. É somente neste sentido que se diz que a fé cega e escurece nosso entendimento. Não é que o conhecimento natural não tenha valor

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em si, mas se trata do fato que o conhecimento natural pouquíssimo adianta para nos fazer compreender os mistérios de Deus. Sabemos que entendemos coisas abstraindo dos sentidos. Mas Deus pode, se Ele quer, iluminar a mente diretamente. E efetivamente Ele fará isto no céu, quando nos será dada a “luz da glória”. Mas isto pode acontecer [em menor grau, suponho] já nesta vida, e de fato ocorre para algumas poucas pessoas. E é pelo exercício da fé, esperança e caridade que a alma desenvolve – ou pode, em principio, desenvolver – esta capacidade de receber de Deus estas graças extraordinárias. Ou por outras palavras, o crescimento da alma nas virtudes teologais, infusas, é que a prepara para uma experiência direta e supra-conceitual da realidade de Deus e de seus mistérios (pp. 263s). Mas a fé é supra-conceitual? Sim e não. Ela usa de conceitos a fim de passar às nossas mentes um conhecimento de Deus, cujas infinitas perfeições excedem a capacidade de todos os conceitos. Os conceitos atingem realmente Deus, as afirmações da fé a respeito de Deus são objetivamente verdadeiras. E no entanto os conceitos usados ficam infinitamente aquém das próprias perfeições de Deus, de modo que se pode dizer num certo sentido que os conceitos O escondem ao mesmo tempo que O revelam. J da C passa ao segundo aspecto do paradoxo, a certeza da fé. A fé não é um assentimento cego da vontade contra a o intelecto, ela é uma luz intelectual que ilumina a inteligência com coisas sobrenaturais, privando-a de sua luz natural, mas não com respeito a todo conhecimento, mas apenas com relação a mistérios sobrenaturais que nossa inteligência nunca poderia penetrar por ela mesma. Escurecendo a mente neste particular, a fé a faz capaz, simultaneamente, de uma luz superior pela qual pode penetrar os mistérios de Deus. J da C paradoxal: “A fé é noite escura para a alma e é deste modo que ela lhe dá luz; e quanto mais a alma for escurecida, tanto maior luz lhe é comunicada”. E o santo compara com a coluna de fogo e fumaça que mostrava ao povo eleito o caminho na sua saída do cativeiro do Egito, a saber, “a nuvem era plena de escuridão e dava luz à noite” (pp. 265s). O ser humano foi criado para conhecer a verdade e sua salvação consiste em amar a mais alta Verdade, a qual não pode ser amada sem ser conhecida [de acordo com o adágio, “nil volitum, nisi prae-cognitum”]. Mas há uma citação clássica de Isaias, citada por muitos Santos Padres, que nos ajuda a entender este paradoxo que nos ocupa e que não é traduzida de modo certo, mas é o que vem a propósito: “se não crerdes, não entendereis” (Is 7, 9). Só a fé pode nos dar alguma inteligência dos mistérios de Deus. E tem mais. De acordo com frase famosa da Carta aos Hebreus, “sem a fé não podemos agradar a Deus” (Heb 11, 6). Dizemos que agradamos a Deus se formos plenificados com sua própria realidade, seu próprio amor, sua própria verdade. De um modo misterioso, nós agradamos a Deus conhecendo-o, afinal só podemos conhecê-lo recebendo sua luz nos nossos corações. De acordo com a Carta aos Hebreus, a fé não somente penetra a Verdade divina, mas nos salva. O raio de luz da verdade é mais que especulação, ele dá vida. E que vida é esta? É a presença de Deus em nós. A relação entre o conteúdo da fé e a luz infusa por Deus é dita em poucas palavras por T de A : ... fides principaliter est ex infusione; et quantum ad hoc per Baptismum datur; sed quantum ad determinationem suam est ex auditu; et sic homo ad fidem per catechismum instruitur (... a fé provém principalmente da infusão e é dada pelo Batismo; mas quanto à determinação provem da pregação e assim o homem é instruído pela catequese para a fé), (Super Sent., lib. 4 d. 4 q. 2 a. 2 qc. 3 ad 1), (pp. 266-268).

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17. O conhecimento amoroso de Deus (Capitulo dezessete) A pura fé, nas palavras de Merton, aperfeiçoada pelos dons do Espírito Santo e, acima de tudo, transfigurada pela caridade, jorra das profundezas da alma e provê para beber, no segredo, as águas da verdade divina. Essas águas não são somente frases acerca de Deus, mas são a presença do próprio Deus. Mas a partir do momento em que a contemplação transcende os conceitos, em que a inteligência entra na escuridão divina, nosso conhecimento de Deus é dominado pelo amor e jorra dele. E isto a tal ponto que, muitos dos Padres da Igreja, e a exemplo deles o Cisterciense Guilherme de Saint Thierry, afirmou “Amor Dei est ipsa notitia” (O amor a Deus é o nosso conhecimento d’Ele). [A expressão “amor de Deus” da linguagem comum é ambígua: trata-se tanto do amor de Deus por nós como do amor a Deus. Esta ambigüidade não é, no fundo muito grave, porque o amor a Deus nos é infundido por Ele próprio, a virtude teológica infusa da caridade]. Merton observa que esta expressão é pouco precisa do ponto de vista teológico [porque amor e conhecimento se referem a duas faculdades diferentes, vontade e inteligência, respectivamente]. Entretanto, diz Merton, esta frase traduz uma verdade importante, que é muito enfatizada por J da C e recebe uma explicação precisa nas paginas de T de A. Embora, diz Merton, a contemplação consista, claro, em um ato da inteligência e não da vontade, não obstante é certo que, na prática, o elemento mais importante na vida contemplativa não é a inteligência, mas a vontade. E eis algumas das razões do porque disso. Em primeiro lugar, a contemplação infusa, embora formalmente no intelecto, provem do amor e termina no amor. Vimos, com efeito, que esta contemplação consiste numa experiência em que se atinge a verdade divina em uma escuridão que transcende os limites do conhecimento conceitual. E tal experiência pode ser válida e verdadeira se

nascer do amor divino. [A letra itálica é do próprio Merton]. Só o amor pode estabelecer o contacto vital com Deus em que a vontade supera o ofuscado intelecto e “toca” a mesma substância de Deus, que não pode ser visto pela nossa mente. Ou de modo mais preciso, na explicação brilhante de Merton: a mesma ação divina que toca as profundezas da alma, onde a mente a vontade são uma coisa só, simultaneamente escurece a inteligência com sua luz excessiva e incendeia a vontade com o fogo do amor. Portanto o amor é importante em primeiro lugar porque ele é a causa da contemplação. T de A distingue claramente a sabedoria adquirida pela investigação racional e a sabedoria que vem da contemplação mística, que diz ou escreve sobre as coisas de Deus a partir da experiência, em virtude de uma conaturalidade, per modum inclinationis, na expressão de T de A. [A propósito, a tese de doutorado em filosofia de Dom Luciano Mendes de Almeida – então ainda não era Bispo – foi justamente sobre o conhecimento por conaturalidade em T de A; sendo uma tese de filosofia, imagino que este tipo de conhecimento é mais geral na obra de T de A do que aquele referido na contemplação mística. A conferir]. Esta sabedoria, embora formalmente seja um ato de inteligência, é enraizada no amor, porque depende inteiramente de uma experiência de união com Deus que só pode ser feita no amor. T de A, com a precisão costumeira: “Sapientia quae est donum, causam habet in voluntate; sed essentiam habet in intellectu...” (A sabedoria que é dom [do Espirito Santo] tem sua causa na vontade; mas tem sua essência no intelecto...). [O lugar indicado da citação no livro de Merton está errado, não consegui descobrir onde está].

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[A propósito, Merton cita várias vezes, a propósito dos dons do Espírito Santo, João de São Tomás, um dominicano, nascido em Liboa em 1589 e falecido em Alcalá em 1644. É considerado um dos melhores comentadores de São Tomás de todos os tempos, com destaque para seus estudos e comentários sobre os dons do Espírito Santo. Apesar de original nestes estudos, nunca quis ser mais do que um comentador de T de A. Foi contemporâneo de um outro grande, Francisco Suarez, jesuíta, considerado mais genial do que ele, mas que se distanciou de T de A em pontos essenciais, talvez sem ter consciência disso e que, na opinião deste escriba, “pisou na bola”. O casal Maritain considerava João de São Tomás o melhor comentador de T de A. A razão que me parece provável da preferência, principalmente de Raïssa Maritain por João de São Tomás, foi, a meu ver, a sua veia mística, que era também dele] (pp. 274s). 18. Montanha e Colina (Capítulo Dezoito) O único propósito deste livro, diz Merton, é trazer o leitor à fronteira da Terra Prometida e ver sua paisagem a partir do outro lado do rio Jordão. A tarefa a que se propôs foi dar uma ideia clara e concreta do prelúdio ao misticismo e colocar alguns princípios fundamentais sem os quais a contemplação infusa não pode ser completamente entendida. No interesse revigorado nos nossos dias pela contemplação cristã [o autor escreve isto em 1950, mas este interesse volta periodicamente no seio da Igreja], encontram-se muitos livros que dão a impressão que o mero começo da contemplação infusa é o final da jornada e que a Oração de quietude é o ponto culminante da via unitiva. Este é um erro sério, porque como diz J da C a Noite dos Sentidos e o período da quietude consoladora são somente preparações para o verdadeiro misticismo da Noite Espiritual, da Núpcias Espirituais e a União Transformante. Na Noite dos Sentidos e Oração de Quietude o contemplativo está ainda na sua infância e a tragédia é que na maioria dos casos a oração mística não vai alem deste estágio inicial. A causa deste desenvolvimento abortado se encontra em formas sutis de apegos aos quais o espírito se prende, talvez não tomando consciência das próprias imperfeições. O crescimento na oração mística depende da pureza do nosso amor, podendo haver muitas razões porque nosso amor nunca fica purificado. Alguns destes fatores podem estar completamente fora do nosso controle. A falta de uma boa direção espiritual é uma das causas mais comuns. Algumas pessoas há que poderiam chegar a um mais alto grau de abnegação em ambiente mais favorável e que são forçadas, por fatores fora do próprio controle, a permanecerem em uma atmosfera de atividade e confusão. Por alguma razão inescrutável Deus pode deixar um contemplativo potencial em uma situação onde a contemplação está fora de questão. Tal pessoa pode ficar segura de que a Providência de Deus não lhe privará de nem um grau de santidade e de gloria no céu. Mas o caminho para chegar a isto será escuro, turbulento e cheio de confusões e retardos (pp. 288s). Quando o amor de Deus toma posse de uma alma, ela quer conhecer Deus, saber como agradá-lo e descobrir todas as maneiras de serví-lo e dar-lhe glória. Portanto um dos primeiros efeitos da caridade é uma intensa fome pela verdade. Sob o impulso do amor o homem aplica sua mente ao conhecimento espiritual de Deus. Em alguns santos “luz” e “escuridão” trazem alternadamente alegria e angústia. Para alguns místicos, Deus foi sempre luz, quaisquer que tenham sido os sofrimentos por que passaram. Para outros, como J da C, Deus desce à alma como uma noite profunda e a esvazia de tudo, reduzindo todo pensamento e linguagem ao silêncio. Não há diferença

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essencial entre o misticismo da luz e o misticismo da escuridão. [Recorda-se que T de A é do primeiro grupo, enquanto que J da C é do segundo. Mas ambos eram apofáticos]. A diferença entre as duas escolas está na linguagem em que cada qual tenta exprimir o que é essencialmente a mesma experiência. Os místicos da luz descem da nuvem e vestem o conhecimento de Deus em imagens e conceitos positivos. Eles sabem perfeitamente que nenhuma imagem pode comunicar perfeitamente o que eles experimentaram, mas se inclinam a tentar fazer o melhor uso possível da linguagem. Os místicos da noite também desejam se expressar da melhor forma, mas eles insistem no caráter transcendente da experiência mística. E por isso enfatizam que o conhecimento místico é atingido numa nuvem do não-conhecer. São Bernardo de Claraval [da primeiríssima geração dos cistercienses, recordando-se que Merton era cisterciense reformado, chamados “trapistas”] é um místico da luz. Seus escritos enfatizam o deleite antes que a angustia da ascensão a Deus. Há muito pouco nele da tradição apofática. E, no entanto, um estudo cuidadoso de seus escritos mostra que a experiência mística descrita por ele é a mesma que se encontra em J da C (pp. 291-293). Como se pode dizer que o amor “ilumina” a alma na experiência daquela mística Sabedoria, que é um dom do Espírito Santo e que, propriamente, constitui a contemplação mística? Os teólogos cristãos em geral concordam com T de A ao dizer que a sabedoria mística conhece Deus não por conceitos, mas por uma secreta afinidade baseada no amor. Este modo de conhecimento é dito por “conaturalidade”, porque, como vimos, o amor une a alma a Deus e é impossível deixar de saber algo d’Aquele com o qual a alma está identificada. Os teólogos oferecem explicações diferentes da maneira precisa [de acordo com Merton] como o amor ilumina a alma. A dificuldade do problema é que a vontade é cega e que o amor não é conhecimento. [Francisco Suarez (1548 – 1617) foi um eminente filosofo, teólogo e jurista jesuíta. Era tomista com bastante independência com relação a T de A em alguns pontos importantes. Os tomistas mais ortodoxos, dominicanos quase todos, acham que ele não entendeu direito o mestre].A solução de Suarez para o problema é que a alma está unida a Deus pelo amor, sendo coisa fácil para a vontade conservar a inteligência fixada em Deus. Ou seja, a vontade mantém o intelecto olhando para a escuridão. Portanto, de acordo com Merton, nesta concepção, não há iluminação, visto que o intelecto não “veria” nada. Na melhor das hipóteses, a vontade manteria o intelecto concentrado no seu objeto invisível, ou seja, o amor manteria a mente suspensa acima dos conceitos, entre o céu e a terra. Ainda segundo Merton, interpretando Suarez, a alma ficaria satisfeita ao atingir intuitivamente todas as verdades adquiridas já conceitualmente, enquanto que toma consciência que Deus é infinitamente mais que o pensamento humano pode formular. A maior dificuldade desta concepção é que ela sugere uma espécie de contemplação em que nada acontece. Tal contemplação só é possível em teoria. Na prática, se a alma não tem nada a fazer nem por conta própria, nem passivamente sob o Espírito Santo, as faculdades dormem. E este sono não tem nada de figurativo ou místico, é sono mesmo. [João de São Tomás (1589-1644), portanto cerca de 40 anos mais novo que Suarez, fez-se dominicano depois de já ser Sacerdote, em 1623]. João de São Tomás é considerado o porta-voz da escola tomista neste e em outros assuntos. De acordo com ele, o amor faz mais do que simplesmente dirigir a mente para um objeto invisível. O amor faz uma importante contribuição para o nosso conhecimento de Deus na oração contemplativa.

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Como? Não atingindo um outro objeto diferente do que já foi apresentado à inteligência e aceito por ela através das fórmulas conceituais da fé. O objeto é o próprio Deus. Mas enquanto que a fé e a esperança atinge Deus somente a distância – procurando-o como Revelador da Verdade e Aquele que recompensa nosso amor – o amor vai diretamente às profundidades da Divina Substância e descansa em Deus, tomando-nos fora de nós mesmos, por assim dizer e fazendo-nos viver inteiramente n’Ele. Este é o ensinamento de T de A, conforme Merton (pp. 293-295). [Acho que dita assim, esta explicação é deficiente, não explica a coisa realmente. Há que apelar para o que já foi dito antes, o conhecimento “por conaturalidade”: o amor faz “conaturais” por união os que se amam e daí vem uma “compreensão” do concreto; esta é uma experiência de todas as pessoas que se amam, é uma “intuição” do outro, que com o tempo, analisando as reações da pessoa amada, vai compreendendo mais profundamente a pessoa já no sentido de dar as razões para aquele comportamento. Imagino que algo de semelhante, mas num nível muito mais elevado e misterioso, deve acontecer à pessoa que se eleva à oração contemplativa no sentido estrito, também chamada de “mística”, ou “infusa”. T de A fala expressamente de “conaturalidade”, mas ao que parece seus comentadores dos séculos XVI e seguinte não o fizeram. A conferir] . Segue-se que este amor dá à alma uma posse concreta de tudo que está contido nas verdades de fé. O amor dá assim uma experiência, um gosto daquilo que não se vê e que ainda não somos capazes de ver. A fé nos dá um título pleno de posse deste tesouro, que possuímos na escuridão. O amor penetra nesta escuridão e se apodera daquilo que é seu. O ponto preciso da posição de T de A é portanto que o amor dá uma experiência positiva das perfeições superabundantes que os conceitos podem exprimir somente em um modo negativo. A fé nos diz: “Deus é bom de um modo que transcende infinitamente qualquer de nossas ideias de bondade”. Mas quando a chama do Espírito de Amor visita a alma na escuridão da sabedoria e acende nela o Fogo Divino, esta experiência de amor dá uma realização direta e positiva daquela Bondade, da qual os conceitos podem declarar apenas que está alem de todo conhecimento. A fé nos fala sobre o infinito poder de Deus, que é tão grande que nenhuma palavra pode conter seu significado. Mas o amor que transporta a alma na escuridão alem da fé une o ser humano ao Ser de Deus de tal modo que a pessoa se sente aniquilada, de modo que nada permanece alem do poder e da glória de Deus. É deste modo que o amor deixa a inteligência atônita com vívidos relatos de uma Realidade Transcendente. Assim, quando a mente admite que Deus é muito grande para o nosso conhecimento, o amor responde: “Eu o conheço!”. E no entanto o amor é o primeiro a admitir que sua experiência de Deus não é, estritamente falando, conhecimento. E é aqui que a verdadeira angústia da Noite Escura começa. Os problemas e sofrimentos da alma que tem que abandonar a evidência do sentido e da imaginação e transcender o nível da razão a fim de encontrar Deus são somente o início da luta que se segue. Porque daqui para a frente a alma deve ir para frente desarmada e despida de todo recurso natural para entrar na terrível purgação que é a Noite do Espírito. [J da C diz em certa passagem algo como “La noche de los sentidos es terrible, pero la noche del espírito no tiene comparación, que es mucho más…”]. A sua indigência é tão grande como sua capacidade. Este vazio, este agonizar no qual a alma entra pelo seu nada tornado mais consciente que nunca, este esvaziar-se de todas as coisas: eis o problema (pp. 295-297).

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A plena, perfeita e ilimitada possessão e fruição de Deus só é alcançada na visão beatífica [o céu]. Os “raptos” que ocorrem nesta terra, que são um prelúdio do céu, não devem desviar o olhar do contemplativo do seu verdadeiro destino. Toda sua vida é consumida neste desejo de Deus, que só pode ser visto [com os olhos da mente, confortada pela “luz da glória] no céu. No início da vida contemplativa é possível à alma permanecer por longos períodos absorvida na consolação do amor divino. Esta contemplação pode parecer tornar-se um fim em si mesmo, como se esta carícia de Deus fosse já o próprio céu. Mas isto é uma ilusão. Cedo ou tarde esta alegria termina, conforme a Providência Divina o dispõe. O amor que era doce e consolador torna-se uma chama de purgatório. O repouso amigo torna-se um terrível adversário. A contemplação torna-se não mais um orvalho, mas um vento de deserto, sufocando nosso ser com fogo e areia. A mente se desintegra em cinzas consumida pela sede da visão de Deus. O amor, que parecia o próprio céu, se torna um inferno. O amor não é mais solução, é o problema. A alma deve ser purificada pelo amor divino. Quando ela for completamente purificada, ela verá Deus [no céu]. Na medida em que for purificada, ela conhece Deus cada vez melhor. Como foi dito, ele se revela à alma pela ação do seu amor. J da C: “Esta presença especial de Deus na alma pelo amor é tão grande que parece à alma que existe um enorme ser escondido nela, do qual ela é consciente e a partir do qual Deus comunica a ela certos vislumbres obscuros da Sua divina beleza...” (Cântico Espiritual, ap. Merton). J da C comenta aqui o próprio poema, Cântico Espiritual (B) na seguinte estrofe (Canción 11): “Descubre tu presencia y máteme tu vista y hermosura; mira que la dolencia de amor, que no se cura sino con la presencia y la figura”. O Cântico Espiritual contem, segundo Merton, a mais completa exposição dos mais elevados graus da vida mística – núpcias espirituais e união transformante. Na união transformante a alma é unida a Deus quase como no céu. Ela vê algumas vezes a Ssma. Trindade no seu próprio íntimo e vê-se a si mesmo na Trindade com uma clareza tão grande que alguns teólogos pensam que se trata de uma intuição de Deus como Ele é em si mesmo, diferindo da Visão Beatifica somente pelo fato de ser transiente e por uma certa obscuridade, comparando à mesma visão beatífica. J da C enfatiza que neste estágio de união transformante a alma deseja ardentemente uma visão clara e permanente de Deus. A alma é agora quase perfeitamente pura, a chama do amor tendo queimado toda [ou quase toda] imperfeição. Consequentemente o fogo do Espírito Santo “consome” a alma não mais com agonia, mas com alegria. As chamas do fogo envolvem completamente o espírito e o transformam em fogo e, na exultação, Deus e a alma celebram a festa de núpcias. As quatro últimas canções do Cântico Espiritual são o mais perfeito hino jamais feito no louvor da suprema teologia, que é a contemplação de Deus no céu (pp. 297-300). 19. O Gigante se move no seu sono Jesus, o Verbo de Deus feito homem, sem deixar de ser Deus, é um com o Pai: “Quem me vê, vê o Pai. O Pai e eu somos um” (Jo 14, 19 e 10,30). E a Carta aos Hebreus diz o Pai nos falou no Filho (Heb 1, 2). Jesus veio para unir a humanidade n’Ele a Deus.

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“Porque àqueles que o receberam, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus” (Jô 1, 12). Portanto toda a economia está ordenada a que todos os homens sejam atraídos pelo Espírito Santo de amor, através de Cristo, ao Pai, para serem imersos no abismo da divina contemplação do qual o centro é o Verbo de Deus, a Palavra Divina, como Ele próprio disse: “aquele que me come [na Eucaristia], viverá por mim” (Jo 6, 58). Numa palavra, não há contemplação de Deus a não ser em Cristo. Na Subida do Monte

Carmelo, depois de rejeitar todas as formas espúrias de misticismo e mesmo todas as formas genuínas de experiência mística que são menos puras que a pura fé, J da C devota um poderoso capítulo à verdade que em Cristo nós encontramos tudo que nós podemos saber de Deus. E no Cántico Espiritual ele diz que mesmo no céu os santos contemplam Deus nos mistérios de Cristo. Mas já na Subida do Monte Carmelo ele adverte: “Aquele que ... procurasse alguma visão ou revelação, não somente estaria agindo de modo tolo, mas ofenderia a Deus não colocando seus olhos inteiramente em Cristo...”. E agora, no Cántico Espiritual, a alma canta uma subida com o Amado nas “cavernas do rochedo”: “Y luego a las subidas caviernas de la piedra nos iremos que están bien escondidas, [y] alli nos entraremos y el mosto de granadas gustaremos” (Cántico Espiritual (B), Canción 37 ou (A) Canción 36). E J da C explica que as cavernas são os mistérios de Cristo e o rochedo é o próprio Cristo. A linguagem do Santo é aqui sempre superlativa. A contemplação de Deus nos mistérios de Cristo é “a mais elevada e detectável sabedoria de todas as suas obras” (“Declaración” do Santo sobre a estrofe acima). Temos nestas palavras um eco de São Paulo na Carta aos Efésios: “A mim, o menor de todos os cristãos, foi dada esta graça de anunciar aos pagãos a impenetrável riqueza de Cristo...” (Ef 3, 8) (pp. 307-312). E mais, J da C faz uma poderosa afirmação que tem sido deixada de lado por alguns dos seus comentadores. Ele não somente diz que a penetração místicas dos mistérios de Cristo é a mais alta de todas as graças de oração, mas ele declara que todas as graças, todos os favores místicos, todas as purificações passivas e mesmo a própria união transformante não têm outra função que dispor a alma para o supereminente conhecimento de Deus em Cristo. Nas palavras do próprio Santo: “Todos estes favores são inferiores à sabedoria dos mistérios de Cristo, porque são preparações para ela” (Declaração da Canção 37 do Cântico Espiritual (B)). Aqui algum teólogo objetaria: se J da C quer dizer que a mais alta contemplação dos bem-aventurados no céu termina na Sagrada Humanidade de Cristo, considerada precisamente como Natureza Humana, a afirmação seria incorreta. Mas J da C deixa claro que para ele “os mistérios de Cristo” não se referem apenas ao que aconteceu na vida terrena de Cristo – que tudo foi manifestação da sabedoria e bondade de Deus – mas especialmente se refere à União Hipostática das duas Naturezas numa Pessoa Divina e também à união de todos os homens no Corpo Místico de Cristo. É o que ele diz textualmente na Declaração da Canção 37 mencionada acima. Mas mesmo tomando o mais profundo sentido da expressão “mistérios de Cristo”, seria incorreto dizer que o Mistério da Encarnação, a União Hipostática, e os mistérios da nossa Redenção formam juntos “o mais elevado” dos mistérios e portanto o mais alto objeto de contemplação dos bem-aventurado no céu. Tal afirmação seria completamente

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falsa e contrária a todo o ensinamento da Igreja. Seria uma exageração e distorção da verdade católica. Ora, J da C não caiu em tal exagero, pois ele colocou a Encarnação no seu próprio lugar ao dizer que ela contem “a mais alta e delectavel sabedoria de todas as obras de Deus” (Declaração da Canção 37 mencionada acima). E esta afirmação é inquestionável em termos de ortodoxia. Efetivamente, como é sabido, o mais elevado dos Mistérios é o da Santíssima Trindade, que é o Mistério da Vida íntima de Deus. E este é o objeto de contemplação, acima de todos, dos bem-aventurados no céu. E é isto que ele diz de forma simbólica na Canção 39: El aspirar de el aire, el canto de la dulce filomena, el sono y su donaire en la noche serena, con llama que consume y no da pena. O “respirar do ar” é a Expiração da Terceira Pessoa da Santíssima Trindade na alma, comunicada à alma pelo Pai através dos mistérios de Cristo. É dada portanto a ela “nas altas cavernas do rochedo”. J da C não deixa dúvida na afirmação da super-eminente dignidade do Mistério da Ssma. Trindade, este sendo o objeto da Visão Beatífica. E aqui recordamos a doutrina de T de A: a Visão beatifica é essencialmente um ato do intelecto, que provem do amor, ao mesmo tempo que esta Visão tem sua finalidade e perfeição no amor. Temos então uma “espiral” de ascensão a Deus através da dialética mística de conhecimento e amor: O amor a Deus conduz a razão a procurá-Lo na fé. A fé dá à razão luz para procurá-Lo num amor maior. Este amor maior e sacrifical eleva a razão acima dos conceitos, conforme vimos, etc. (pp. 312-315). Apêndice Texto famoso de São Boaventura: “...há que abandonar toda especulação de ordem intelectual e concentrar em Deus a totalidade de nossas aspirações. Isto é algo misterioso e secretíssimo, que só pode conhecer aquele que o receber, ninguém o recebe se não o deseja e só deseja se for inflamado no mais íntimo pelo fogo do Espírito Santo que Cristo enviou à terra. Por isso diz o Apostolo que esta sabedoria misteriosa é revelada pelo Espírito Santo. Se queres saber como se realizam estas coisas, pergunte à graça e não ao saber humano, pergunte ao desejo e não ao entendimento, pergunte ao gemido expresso na oração e não ao estudo e à leitura, pergunte ao Esposo e não ao Mestre, pergunte a Deus e não ao homem, pergunte à escuridão e não à claridade, não pergunte à luz e sim ao fogo que abrasa totalmente e que leva até Deus com unção suavíssima e afetos ardentíssimos. Este fogo é Deus, cujo forno, como diz o Profeta, está em Jerusalém; e é Cristo quem o acende com o fervor da sua ardentíssima Paixão, fervor que só pode compreender quem for capaz de dizer: preferiria morrer asfixiado, preferiria a morte. Aquele que ama de tal modo a morte pode ver Deus já que está fora de dúvida aquela afirmação da Escritura, “ninguém pode ver meu rosto e seguir vivendo”. Morramos pois e entremos na obscuridade, imponhamos silêncio a nossas preocupações, desejos e imaginações, passemos com Cristo crucificado deste mundo para o Pai e assim, uma vez que nos tenha mostrado o Pai, poderemos dizer como Felipe: “Isto nos basta”; ouçamos aquelas palavras dirigidas a Paulo, “te basta a minha graça” (S. Boaventura, Itinerarium mentis ad Deum, cap.7, 1.2.4.6; Opera Omnia 5, 312-313, apud 2ª. leitura da 4ª. feira da 15ª. semana do Tempo Comum).

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