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    ASCENSO DA AUTOBIOGRAFIA /

    DECLNIO DO SUJEITO

    Myriam [email protected]

    DAMIO, Carla Milani. Sobre o declnio da sinceridade. Filosofia e auto-biografia de Jean-Jacques Rousseau a Walter Benjamin. So Paulo: EdiesLoyola, 2006. 239p.

    A autobiografia tem atrado cada vez mais a ateno dos estudiosos emdiversas reas. Antes ocupando um lugar modesto e marginal no conjunto daobra de escritores, filsofos, artistas e cientistas, passou, nas ltimas dcadas,a texto-chave para a avaliao dessa mesma obra ou documento inestimvel deuma poca e de umZeitgeist. Para a literatura, o gnero autobiogrfico levantainstigantes questes sobre as negociaes entre fico e realidade, identidadenarrador-autor e em torno do pacto que busca estabelecer com o leitor. CarlaMilani Damio, com seu livro Sobre o declnio da sinceridade. Filosofia

    e autobiografia de Jean-Jacques Rousseau a Walter Benjamin, discute umaspecto complexo da escrita autobiogrfica que a crtica literria tem tratadocom certa rapidez: o do compromisso com a verdade. Se o reconhecimento dopapel da linguagem e dos processos narrativos na mediao entre realidade etexto parece nos resguardar suficientemente de uma leitura ingnua, a verdade

    KRITERION, Belo Horizonte, n 114, Dez/2006, p. 439-442.

    * Professora da Faculdade de Letras da UFMG.

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    Myriam vila440

    como imperativo ltimo da empresa autobiogrfica tem passado ao largo damaioria dos estudos a ela dedicados.

    Entretanto, definir o teor de sinceridade nas obras deste e daquelememorialista ainda um objetivo estreito demais para a reflexo filosfica.Colocando-se na interface literatura-filosofia, a autora de Sobre o declnio...mostra sua filiao segunda ao ir alm da investigao sobre obras e autores,tomando como escopo a mudana de uma sensibilidade (ela usa o termo cartersocial) pertinente ao sujeito e percepo da subjetividade, de um perodopr ou proto-moderno1(sculo XVIII) at o sculo XX, em que se estabeleceo esprito de poca que at hoje reconhecemos como contemporneo. Essaextenso temporal e a tomada de textos autobiogrficos de diversos tiposcomo iluminadores de um processo de mudana foram-lhe sugeridas por um

    projeto de Walter Benjamin, registrado em carta de 30 de novembro de 1939a Max Horkheimer, ento diretor do famoso Instituto de Pesquisa Social deFrankfurt. Benjamin pretendia fazer uma comparao entre as Confissesde Rousseau e o dirio de Andr Gide, separados por mais de um sculo. Oestudo do sculo XIX, no entanto, tanto o atrai que o filsofo acaba se fixandoem Baudelaire como o autor que encarnou o nascimento de uma subjetividadepropriamente moderna. Carla Damio retoma a idia abandonada por Benjaminacrescentando aos nomes propostos dois outros autores de textos de estatutovacilante com relao a seu carter autobiogrfico: Nietzsche (com o Ecce

    Homo) e Proust, concluindo seu estudo da construo textual do eu com osescritos memorialsticos do prprio Benjamin.

    O material vasto e variado e tantas so as trilhas que se abrem margemda via principal que admirvel a segurana com que a autora mantm coesasua linha de argumentao. Damio parte da idia de que a autobiografiacompartilha questes de base com a filosofia, tais como a do conhecimento desi e a convergncia possvel entre verdade e expresso, configurando-se comoum cruzamento inevitvel entre aquela disciplina e a literatura. Sua escolhade corpus extremamente engenhosa, j que obtm com ela dois outros pares

    que ilustram contrastes de postura to exemplares quanto o que Benjaminpropusera. Se, de fato, o cotejo Rousseau/Gide permite uma exposio quasedidtica das transformaes do sujeito na passagem para a modernidade,2asopes divergentes de Nietzsche e Benjamin com relao escrita do eu ea conduo estilstica oposta da mesma escrita em Proust e Benjamin sero

    1 Aqui o adjetivo usado em seu sentido mais restrito, referindo-se a um desenvolvimento que s atinge suapotncia mxima na passagem do sculo XIX ao XX.

    2 De novo, em sentido restrito.

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    importantes, j no para a compreenso da perspectiva histrica, mas para ailuminao do texto autobiogrfico como gnero e tambm para uma percepomais refinada do pensamento benjaminiano.

    As possibilidades combinatrias no terminam a: tomando-se asConfissese Em busca do tempo perdido, podemos pensar na passagem daautobiografia-romance para o romance-autobiografia como correlata ao temado declnio da sinceridade. Rousseau pega carona na ascenso do romance,formulando o eu como esse personagem do qual, j em Richardson e Defoe,era preciso afirmar a existncia real, enquanto Proust aborda o gnero nomomento em que ele j no pode aspirar monumentalizao do sujeito,contentando-se com a imitao lacunar e sempre incompleta3da experinciacotidiana de si, do outro e do tempo. Essa incompletude, prope Carla Damio,

    se faz representar, na escrita, pelo dirio, pois a autobiografia propriamentedita seria sempre esse romance em que o protagonista aparece coeso e ntegro,e a sinceridade no em nada abalada pela mentira que nela se ancora.

    nesse contexto, ainda, que Sobre o declnio... revisita a opo pelaalegoria em Benjamin. As imagens supririam, no s nos textos benjaminianosde carter autobiogrfico, mas tambm em seus ensaios, a perda de expressodo sujeito, pelo qual elas falariam, no mais de forma seqencial e progressivacomo nos sintagmas lingsticos, mas operando em uma temporalidademltipla que inclui desde o relampejar sbito at a lenta fermentao de

    sentido que o contato com o presente histrico lhes faculta.No todo, Sobre o declnio... rende, com o rastreamento dessa questo que

    ficara suspensa na obra de Benjamin, uma homenagem ao filsofo berlinenseque s poderia ser realizada por uma estudiosa perspicaz daquela obra.Quando o texto se estende pela investigao de outros autores, sempre aBenjamin que se quer voltar e se volta movimento pelo qual, apesar de toda aequanimidade da autora, ela deixa implcita sua constante admirao. Elogivel, portanto, sua recusa em mimetizar o estilo benjaminiano, mantendo sempreuma argumentao elegante e flexvel, sem apelos fceis e equilibrando, com

    o distanciamento necessrio, sua empatia com o objeto.Embora a capacidade de no se perder nos inmeros meandros que temasto amplos quanto os seus no cessam de trazer baila seja uma das grandesqualidades desse livro, ganharamos muito se Carla Damio se dispusesse aprosseguir suas investigaes dos temas autobiografia e interao filosofia/literatura com a competncia que acaba de demonstrar. Lidando com extensa

    3 Proust no conseguia nunca dar seu texto por encerrado.

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    e pesada bibliografia, mostrou-se capaz de deixar soar no texto uma multi-plicidade de vozes, sem que o frum assim instalado substitusse a sua percepodireta do objeto e sem que as diversas perspectivas se neutralizassem umas asoutras. Lembre-se ainda o bnus extra dos anexos, em que nos presenteiacom dados e resenhas preciosas sobre o envolvimento de Benjamin com oabortado projeto Rousseau/Gide. Como toque final que evidencia a extremadedicao e ateno ao acabamento com que a autora preparou seu livro, asfotografias de Eugne Atget que abrem cada captulo apresentam ao leitor umtrabalho que tambm ocupou a reflexo de Walter Benjamin, trazendo a Sobreo declnio... a dimenso da imagem, to essencial para o filsofo.