ASCENSÃO E QUEDA DA LUTA PELA TERRA NO GOVERNO … · A Guerra de Canudos e as Ligas Camponesas no...

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1 ASCENSÃO E QUEDA DA LUTA PELA TERRA NO GOVERNO LULA (2003-2010) Camila Ferracini Origuéla Universidade Estadual Paulista – UNESP / Campus Presidente Prudente [email protected] Resumo Este artigo tem como objetivo apresentar uma breve análise sobre o processo de luta pela terra no Brasil ao longo dos dois mandatos do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010). Ressalto que, historicamente, a espacialização da luta pela terra, por meio de ocupações de terras e formação de acampamentos, possibilitou a territorialização e (re) criação do campesinato através da consolidação de assentamentos rurais (FERNANDES, 1996; 2000). Para isto, o debate bibliográfico e a análise de dados sobre ocupações de terras principalmente, acampamentos e assentamentos rurais serão fundamentais. O primeiro mandato de Lula (2003- 2006) é marcado pela ascensão da luta pela terra e esperanças para com a reforma agrária, já o segundo (2007-2010) pela queda das ações dos movimentos socioterritoriais, ocupação de terras e formação de novos acampamentos. Palavras-chave: Luta pela terra, reforma agrária. governo Lula. Introdução A discussão sobre a política econômica e a política de reforma agrária ao longo dos dois mandatos do governo Lula causa controvérsias e interpretações distintas. A principal questão é, o governo Lula foi um governo de ruptura ou apenas deu continuidade às políticas implantadas por Fernando Henrique Cardoso? Para alguns economistas, por exemplo, a política econômica do primeiro mandato de Lula em nada se diferencia daquilo que FHC havia consolidado por meio de políticas neoliberais e macroeconômicas de geração de superávit primário com o aumento da produção e exportação de commodities. Para alguns geógrafos, no que diz respeito à reforma agrária, a proposta do II PNRA foi um grande salto para a política agrária brasileira, contrariando o que havia sido feito por FHC e suas propostas de criminalização dos movimentos socioterritoriais. Outros estudiosos interpretam a política de reforma agrária do governo em questão como uma incipiente política de regularização fundiária, contra-reforma ou a reforma agrária que o agronegócio queria (OLIVEIRA, 2006). Todavia, apesar das esperanças, das propostas, do diálogo juntos aos movimentos de luta pela terra e reforma agrária, o governo Lula pouco avançou, pode-se até mesmo dizer que a sua política agrária teve os mesmos objetivos do que havia sido implantado até então: algumas desapropriações em propriedades alvos de ocupações de terras,

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ASCENSÃO E QUEDA DA LUTA PELA TERRA NO GOVERNO LULA (2003-2010)

Camila Ferracini Origuéla Universidade Estadual Paulista – UNESP / Campus Presidente Prudente

[email protected] Resumo Este artigo tem como objetivo apresentar uma breve análise sobre o processo de luta pela terra no Brasil ao longo dos dois mandatos do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010). Ressalto que, historicamente, a espacialização da luta pela terra, por meio de ocupações de terras e formação de acampamentos, possibilitou a territorialização e (re) criação do campesinato através da consolidação de assentamentos rurais (FERNANDES, 1996; 2000). Para isto, o debate bibliográfico e a análise de dados sobre ocupações de terras principalmente, acampamentos e assentamentos rurais serão fundamentais. O primeiro mandato de Lula (2003-2006) é marcado pela ascensão da luta pela terra e esperanças para com a reforma agrária, já o segundo (2007-2010) pela queda das ações dos movimentos socioterritoriais, ocupação de terras e formação de novos acampamentos. Palavras-chave: Luta pela terra, reforma agrária. governo Lula.

Introdução

A discussão sobre a política econômica e a política de reforma agrária ao longo dos dois

mandatos do governo Lula causa controvérsias e interpretações distintas. A principal

questão é, o governo Lula foi um governo de ruptura ou apenas deu continuidade às

políticas implantadas por Fernando Henrique Cardoso? Para alguns economistas, por

exemplo, a política econômica do primeiro mandato de Lula em nada se diferencia

daquilo que FHC havia consolidado por meio de políticas neoliberais e

macroeconômicas de geração de superávit primário com o aumento da produção e

exportação de commodities. Para alguns geógrafos, no que diz respeito à reforma

agrária, a proposta do II PNRA foi um grande salto para a política agrária brasileira,

contrariando o que havia sido feito por FHC e suas propostas de criminalização dos

movimentos socioterritoriais. Outros estudiosos interpretam a política de reforma

agrária do governo em questão como uma incipiente política de regularização fundiária,

contra-reforma ou a reforma agrária que o agronegócio queria (OLIVEIRA, 2006).

Todavia, apesar das esperanças, das propostas, do diálogo juntos aos movimentos de

luta pela terra e reforma agrária, o governo Lula pouco avançou, pode-se até mesmo

dizer que a sua política agrária teve os mesmos objetivos do que havia sido implantado

até então: algumas desapropriações em propriedades alvos de ocupações de terras,

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regularização de áreas e crédito fundiário. Esclareço, de antemão, que considerar o

governo Lula e suas políticas apenas como uma continuidade do governo FHC é uma

interpretação reducionista, até porque Lula sempre esteve disposto a ter contato com as

propostas dos movimentos, inibindo, até certo ponto, a criminalização de suas ações.

Mas, também, afirmar que esse governo concretizou ampla desconcentração da

propriedade fundiária é um equívoco.

Partindo das diferentes interpretações acerca do governo Lula, pretendo compreender

quais elementos contribuem para explicar a ascensão da luta pela terra no primeiro

mandato desse governo, seguida de queda no segundo mandato. Entendo que, além das

dificuldades nas ações dos próprios movimentos socioterritoriais que ao ocuparem

terras, formarem acampamentos, realizarem marchas, protestos, reivindicam

espacialmente o acesso a terra e reforma agrária, a atuação política e econômica do

Estado também contribui para com a ampliação ou o refluxo do desempenho dos sem-

terras.

Para compreender a atuação do Estado e sua relação com as práticas dos movimentos

socioterritoriais, o texto está divido em três partes. Inicialmente, discuto a importância

da atuação dos movimentos socioterritoriais que, ao ocuparem o espaço ou se

espacializarem, questionam a concentração fundiária e o processo de expropriação e

subordinação da classe camponesa perante o avanço do capital no campo. Já a segunda

parte é composta pela discussão sobre a ascensão da luta pela terra no primeiro mandato

do governo Lula e os possíveis elementos que explicam esse processo como: a) a

proposta do II PNRA; b) o frequente diálogo do presidente com os movimentos

socioterritoriais; c) o vínculo político e ideológico entre o presidente e a reforma

agrária. Na terceira e última parte do texto apresento a queda da luta pela terra, que pose

ser explicada a partir dos seguintes elementos: a) a correlação de forças impediu a

realização de uma ampla reforma agrária; b) a diminuição do número de assentamentos

rurais criados inibiu a ida de famílias sem-terras aos acampamentos; c) o presidente

preferiu ampliar os índices de distribuição de renda por meio de políticas

compensatórias, ao invés de investir em um processo de distribuição de terras e

desenvolvimento territorial. Concluo o artigo sistematizando as principais ideias

discutidas e os questionamentos acerca dos rumos da luta pela terra no Brasil.

Devo ressaltar que o presente artigo tem como base a pesquisa de iniciação científica

que desenvolvi ao longo da minha graduação, financiada pela Fundação de Amparo à

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Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), Formação da Rede DATALUTA: um

estudo sobre as mudanças das ocupações de terras no contexto da questão agrária

atual e monografia de bacharelado Paradigma e metodologias da questão agrária: uma

análise das ocupações de terras no Brasil com ênfase para o Pontal do Paranapanema-

SP.

Ocupar o espaço e resistir: a luta dos sem-terra

Historicamente, desde o Brasil colônia até a contemporaneidade, indígenas e

camponeses lutam pelo acesso a terra e resistem constantemente para permanecerem na

mesma. A Guerra de Canudos e as Ligas Camponesas no Nordeste, a Guerra do

Contestado no Sul, dentro outros exemplos, ilustram a trajetória dos mais de quinhentos

anos de luta pela terra no país (FERNANDES, 1999). Além destas, nos últimos trinta

anos principalmente, famílias sem-terras tem se organizado em movimentos

socioterritoriais e ocupado grandes extensões de terras improdutivas, os latifúndios. Ao

ocupar o espaço, essas famílias questionam a concentração fundiária, a expansão do

capital no campo e, ainda, territorializam a luta pela terra por meio da criação de

assentamentos rurais.

A ocupação da terra deu vida e é o grande trunfo do Movimento dos Trabalhadores

Rurais Sem Terra (MST), um dos principais movimentos socioterritoriais de luta pela

terra e reforma agrária no Brasil. Conforme Stédile e Fernandes (1999, p. 117) “se não

ocupamos, não provamos que a lei está do nosso lado. É por essa razão que só houve

desapropriação quando houve ocupação”. Ao ocupar o espaço há a espacialização da

luta pela terra e do movimento socioterritorial e, consequentemente, a territorialização

do mesmo. Em outras palavras, a espacialização da luta pela terra proporciona a criação

de assentamentos rurais e a recriação do campesinato enquanto classe social

(FERNANDES 1996; 2000).

O MST, bem como a ocupação da terra, surgiram em um contexto socioeconômico

específico, o da modernização agrícola. Esta, na década de 1970 principalmente,

possibilitou significativas transformações na agricultura graças à inserção de

maquinários e a utilização de defensivos agrícolas. Concomitantemente a isso, inúmeras

famílias camponesas foram expropriadas ou subordinadas à lógica do capital. O

desenvolvimento do capital expropria e destrói o campesinato que migra para as cidades

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ou se recria em outra porção do território. Deste modo, a relação capitalista é por

natureza contraditória, cria relações capitalistas e recria relações não capitalistas, como

o trabalho familiar camponês (OLIVEIRA, 1996). Pode-se dizer que o capital

territorializa, desterritorializa e reterritorializa constantemente relações de produção

capitalistas e camponesas. Ainda, conforme Fernandes (2008, p. 5):

A formação do campesinato não acontece somente pela reprodução ampliada das contradições do capitalismo. A outra condição de criação e recriação do trabalho camponês é uma estratégia política do campesinato: a luta pela terra. É por meio da ocupação da terra que historicamente o campesinato tem enfrentado a condição da lógica do capital.

Nas décadas de 1980 e 1990, intensas ocupações de terras foram realizadas pelo MST

especialmente. A partir destas, ou seja, a partir da atuação constante de famílias sem-

terras organizadas em movimentos socioterritoriais, assentamentos rurais foram

consolidados, ampliando o território camponês no país. Além de ser imprescindível na

contemporaneidade para reivindicar o acesso a terra, as ocupações variam em

quantidade dependendo da conjuntura política e econômica do Estado.

No primeiro mandato do governo Fernando Henrique Cardoso (1995-1998), por

exemplo, em virtude do elevado índice de ocupações de terras, dos Massacres de

Corumbiara e Eldorado dos Carajás, da Marcha Nacional pela Reforma Agrária, da

diminuição do preço da terra, entre outros elementos, o número de assentamentos rurais

criados aumentou significativamente quando comparados ao governo Fernando Collor

de Melo/Itamar Franco. Já no segundo mandato (1999-2002), além da criminalização

das ações dos movimentos socioterritoriais, FHC impediu a vistoria de áreas passíveis

de desapropriação por dois anos quando ocupadas por famílias sem-terra e, ainda,

executou por meio do Banco Mundial (BIRD) a reforma agrária de mercado,

mercantilizando o acesso a terra. Estes elementos, dentre outros, inibiram a atuação em

ocupações de terras dos movimentos socioterritoriais. Diferente deste, o governo Lula

proporcionou um cenário inédito no que diz respeito à luta pela terra no Brasil, como

veremos nos próximos tópicos.

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O primeiro mandato de Lula (2003-2006) e a ascensão da luta pela terra no Brasil

A eleição presidencial de 2002 distinguiu-se das demais graças à eleição do ex-

sindicalista, fundador e líder do Partido dos Trabalhadores (PT), Luís Inácio Lula da

Silva. Este derrotou com mais de 60% dos votos o então candidato do Partido da Social

Democracia Brasileira (PSDB), José Serra. Em seu Programa de Governo (2002), Lula

propôs para a reforma agrária desapropriações de terras e políticas de desenvolvimento

territorial para assentamentos rurais já consolidados. O objetivo do então candidato era

o de: inclusão social, geração de emprego e renda, além de segurança alimentar às

famílias camponesas.

Historicamente, o PT e Lula possuem laços políticos e ideológicos com o MST, o que

explica a atenção dada por Lula, ainda candidato em 2002, ao tema da reforma agrária

em seu plano de governo. Entre o final da década de 1980 e início de 1990, bem como

ao longo do governo FHC, Lula sempre apoiou as ações do MST na luta pela terra e

pela reforma agrária, criticando veementemente a política econômica e agrária do

governo PSDB, que abriu as portas do país ao neoliberalismo. João Pedro Stédile, um

dos coordenadores nacionais do MST, em entrevista ao geógrafo Bernardo Mançano

Fernandes (1999, p. 37), quando questionado sobre a relação do MST com PT, afirma:

Para nós a relação partidária sempre foi muito clara. É uma relação de autonomia. Por acreditarmos no caráter classista do PT, ajudamos a fundá-lo em vários lugares. Muitas das lideranças que surgiram da luta pela terra passaram a militar no partido, como dirigentes ou como parlamentares. A proposta de reforma agrária do MST também sempre esteve muito próxima à do MST. Algumas vezes, até mais radical. Lembro-me de uma vez em que José Gomes da Silva, membro da Secretaria Agrária Nacional do PT, defendeu enfaticamente que as propriedades rurais deveriam ser limitadas a um tamanho máximo de 500 hectares. Nossa proposta era de que esse limite fosse de mil hectares. Há uma proximidade quase natural entre um movimento com características popular, sindical e política, e a proposta política de um partido da classe trabalhadora. Esta proximidade nunca prejudicou a autonomia das duas organizações. Nunca misturamos as bolas. Eventualmente, em um ou outro lugar em que essa autonomia fosse prejudicada, em que pessoas tenham se desviado da luta ou em que o PT não tenha assumido a luta pela terra, isso trouxe prejuízo para os dois lados. Ou o MST fracassou, ou o PT fracassou.

As palavras de João Pedro Stédile, mais uma vez, informam a proximidade existente

entre Lula e PT e a reforma agrária no Brasil, bem como a atuação dos movimentos

socioterritoriais, principalmente o MST. Quando eleito, e ao assumir a presidência em

2003, Lula encheu de esperanças inúmeras famílias sem-terras que estavam acampadas

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há anos e, também, estimulou outras famílias a migrarem para ocupações e

acampamentos. Segundo os dados do Banco de Dados da Luta pela Terra

(DATALUTA, 2012), o número de ocupações de terras em 2003 praticamente duplicou

quando comparados a anos anteriores (ver gráfico 1). Da mesma forma, o número de

novos acampamentos registrados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) foram

elevadíssimos, um dos maiores na história da luta pela terra no país (ver gráfico 1).

Fonte: Banco de Dados da Luta pela Terra (DATALUTA), 2012; Comissão Pastoral da Terra (CPT),

2012.

Ainda em 2003, como resposta aos constantes questionamentos por parte dos

movimentos socioterritoriais em relação à reforma agrária, Lula convocou Plínio de

Arruda Sampaio e pediu para que este elaborasse um II Plano Nacional de Reforma

Agrária (II PNRA). Sampaio convocou uma equipe formada por diversos profissionais,

principalmente professores universitários que possuíam estudos e pesquisas sobre a

questão agrária brasileira, e, também, manteve contato constante com os movimentos

sociais. Durante a construção da proposta, Sampaio e sua equipe enfrentaram problemas

como: os técnicos do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), bem como o

Ministro Miguel Rosseto, eram contrários à proposta de reforma agrária elaborada por

Sampaio e equipe, para aqueles uma reforma era desnecessária, ou melhor, impossível;

conforme Rosseto, o plano era extremamente ousado para os cofres públicos e para o

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conhecimento técnico dos órgãos responsáveis pela reforma agrária, interpretado como

inaplicável para a realidade agrária brasileira (BRANFORD, 2010).

Em outubro de 2003, Sampaio e sua equipe apresentaram a proposta de assentar um

milhão de famílias sem-terra, com pouca terra, desempregados, entre outros. Além da

regularização fundiária, reconhecimento de áreas indígenas e quilombolas,

desenvolvimento de assentamentos já consolidados e, por fim, cooperar com famílias

que possuíam renda mensal inferior a três salários mínimos e meio etc (SAMPAIO et al,

2003). Apesar de elogiados pela proposta, Sampaio e sua equipe foram dispensados e

Lula apresentou uma versão diluída da proposta, que tinha como objetivo assentar

apenas 400 mil famílias.

Interpreto o plano de Sampaio e sua equipe como uma proposta de ruptura com as

políticas de reforma agrária em vigor até o momento, todavia, devido à correlação de

forças e ao próprio governo Lula, não vingou. Muitos autores, ao final do primeiro

mandato de Lula confirmaram que a reforma agrária proposta, na verdade, foi uma

política de regularização fundiária, ou seja, uma contra-reforma agrária (OLIVEIRA,

2006). Creio, antes mesmo de analisar números, já em 2003, que ao dispensar a

proposta de Sampaio, Lula reafirmou os verdadeiros objetivos de seu governo, e a

reforma agrária não estava entre eles.

Conforme Oliveira (2006), os números disponibilizados pelo Instituto de Colonização e

Reforma Agrária (INCRA) e MDA sobre a reforma agrária no primeiro mandato de

Lula são contraditórios. O governo contabilizou como reforma agrária os assentamentos

rurais criados em áreas desapropriadas, por não cumprirem com a função social da terra

de acordo com a Constituição Federal de 1988, áreas regularizadas e reconhecidas ou,

até mesmo, reassentamentos, inflando os dados sobre a política de reforma agrária do

governo, que segundo esse mesmo autor deveria contabilizar somente os novos

assentamentos criados.

O governo Lula, para o geógrafo Bernardo Mançano Fernandesi, tem proporcionado a

reconceitualização da reforma agrária no Brasil ao priorizar a regularização fundiária, o

reconhecimento, a compra e venda de terras, assentando também famílias em lotes

vagos. Ainda, segundo Fernandes, o principal entrave para a desapropriação de terras é

o poder judiciário e a não atualização dos índices de produtividade, que datam de 1975.

Além dos elementos citados acima, pode-se destacar que a correlação de forças, antes

mesmo de Lula assumir a presidência, não era favorável a uma ampla e massiva reforma

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agrária. Ainda em 2002, ao longo de sua campanha eleitoral, mais precisamente no

documento Carta aos Brasileiros, o então candidato Lula se comprometeu perante o

Brasil e o mundo a cumprir com todos os encargos deixados pelo governo FHC,

conservando os acordos realizados até então com o mercado interno e externo,

principalmente com o Fundo Monetário Internacional (FMI) (JARDIM, 2009). Nesse

mesmo período chegou a visitar a Bolsa de Valores de São Paulo (BOVESPA)ii. Lula

optou pela governabilidade ao assumir compromissos com as mais diversas classes

sociais e com o capital internacional, demonstrando a ambos que seu governo não

oferecia perigo algum.

Após garantir à burguesia nacional e ao capitalismo internacional que seu governo não

era nada radical e conservaria as políticas iniciadas por FHC, Lula foi eleito, mas ainda

enfrentava outro problema, o Congresso Nacional. Neste o PT possui menos de um

quinto dos assentos e para continuar governando precisava encontrar aliados e foi isso

que Lula fez, atrelando seus interesses ao de diversos outros partidos políticos

(ANDERSON, 2011). Uma das evidencias de que alianças dos mais diversos tipos

foram seladas foi o episódio do escândalo do Mensalão, em 2005/2006, uma espécie de

mensalidade paga em dinheiro por favores políticos ou compra de votos.

Ser eleito e governar custaram caro ao Lula e PT, sem acordos de cunho econômico e

político, a presidência de ambos seria impossível. O sociólogo Francisco de Oliveira,

um dos fundadores do PT, que deixou o partido logo quando Lula foi eleito, em seu

livro Hegemonia às Avessas (2010), utiliza o conceito de hegemonia de Gramsci para

explicar o cenário político brasileiro. Para Gramsci, a hegemonia em uma ordem social

capitalista era a ascendência moral dos proprietários dos meios de produção sobre as

classes trabalhadoras, o que garantia o consentimento dos dominados a sua própria

dominação. Partindo dessas premissas, Oliveira (2010) interpreta o governo Lula da

seguinte maneira, os dominados inverteram a fórmula, pois possuem o consentimento

dos dominadores para a sua liderança na sociedade, uma espécie de hegemonia às

avessas, onde dominados governam a própria exploração.

Para alterar o modelo político e econômico em vigor até então, o governo Lula deveria

mudar a política macroeconômica, todavia, para reestabelecer o Brasil no mercado

internacional manteve a política econômica requerida pelo FMI. Entre continuidades e

mudanças, houve algumas pequenas rupturas no que diz respeito à política social no

governo Lula. O crescimento econômico que tomou o país a partir de 2004, devido aos

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investimentos maciços no agronegócio, proporcionou a criação de programas

assistencialistas como o Bolsa Família. Este está atrelado a uma das propostas do

governo de erradicar a fome no país, através da distribuição mensal de uma quantia em

dinheiro para famílias carentes.

Retornando ao tema da luta pela terra, pode-se afirmar que, apesar de o governo

Lula/PT possuir vínculos políticos e ideológicos com o tema da reforma agrária e com

movimentos socioterritoriais como o MST e, ainda, propor o II PNRA, o contexto

político e econômico da globalização/neoliberalismo e a correlação de forças políticas e

econômicas internas impediram que esse governo avançasse na distribuição de terras no

país. Até porque, o agronegócio foi e ainda é o grande trunfo do governo para geração

de superávit primário. O agronegócio pode ser caracterizado como “um complexo de

sistemas que compreende agricultura, indústria, mercado e finanças” (FERNANDES e

WELCH, 2008), que tem concentrado e centralizado a produção agrícola mundial em

apenas algumas grandes empresas transnacionais. A concentração se deve ao processo

de aglutinação de diferentes empresas e a centralização é quando uma mesma empresa

controla todos os setores da produção (STÉDILE, 2008).

A produção de commodities para exportação tem como base de sustentação a grande

propriedade, deste modo, a reforma agrária possível foi a regularização fundiária, o

reconhecimento e a compra e venda, sobretudo. Penso que a regularização de áreas é de

extrema importância para que camponeses de diferentes regiões do país tenham acesso à

políticas de crédito e desenvolvimento territorial, mas a desapropriação de áreas

improdutivas ou que não cumprem com a legislação ambiental e trabalhista e o

assentamento de famílias acampadas também são fundamentais para o processo de

recriação do campesinato e agricultura baseada no trabalho familiar.

As esperanças para com o governo Lula abarrotaram os acampamentos de sem-terras e

as ações dos mesmos em ocupações de terras, levando à ascensão da luta pela terra em

todo o país. As conjunturas do primeiro mandato de Lula, bem como a continuidade da

política macroeconômica aliada à políticas compensatórias, irão proporcionar outro

cenário para a luta pela terra no segundo mandato, a queda.

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Os reflexos do governo Lula e a luta pela terra no Brasil

A diminuição do número de novos assentamentos rurais criados, aqueles que

contemplam famílias acampadas organizadas em movimentos socioterritoriais, e às

políticas de cunho social compensatórias, além das dificuldades que movimentos como

o MST têm enfrentado nos trabalhos de base, explica, até certo ponto, a queda da luta

pela terra no segundo mandato do governo Lula. Oliveira (2011), afirma que os

movimentos socioterritoriais, especialmente o MST, estão adotando sistematicamente

novas formas de ações, como a luta contra o capital, o que proporcionou a queda da luta

pela terra e a perda do protagonismo político dos sem-terras.

Conforme os números apresentados no gráfico 1, o número de ocupações de terras e

acampamentos diminuíram ano a ano, de 2007 a 2010. Em 2010, por exemplo, foram

registradas apenas 184 ocupações de terras e 35 acampamentos em todo o país, índice

pequeno quando comparado a 2003, primeiro ano do governo Lula. Pode-se interpretar

que com a chegada de Lula à presidência, os números da luta pela terra aumentaram

significativamente e, quando este deixou o cargo em 2010, diminuiu como nunca visto

antes. Em relação aos assentamentos rurais criados, o governo também deixou a desejar,

foram apenas 41 em 2010. Vale ressaltar que dentre estes há desapropriações,

regularizações, reconhecimento etc.

O que explica o descenso da luta pela terra no final do segundo mandato do governo

Lula? Dentre as hipóteses, destaco: a) a política de reforma agrária do primeiro mandato

de Lula, que priorizou a regularização fundiária, o reconhecimento e a compra e venda

em detrimento da desapropriação de terras e assentamento de famílias acampadas; b) o

avanço do agronegócio sobre o latifúndio, impedindo que terras destinadas à produção

de commodities sejam desapropriadas; c) a ascensão de políticas compensatórias

imediatas, como o Bolsa Família, que inibi muitas famílias de lutarem por terras e

habitarem acampamentos; d) os movimentos socioterritoriais, dentre eles destaco o

MST, têm dificuldades de se organizar social e territorialmente diante do avanço do

agronegócio, da criminalização das ocupações de terras por meio de processos judiciais

aos líderes do Movimento e da incipiente política de reforma agrária.

Conforme Santos (2010), ainda no primeiro mandato do governo Lula, 55% dos

assentamentos rurais criados tiveram como política de obtenção a desapropriação da

terra, 21% o reconhecimento, 14% a regularização fundiária, 6% a compra de terras e

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4% a doação. Analisando os números apresentados pode-se afirmar que 45% do total de

assentamentos rurais criados provém de políticas alternativas à desapropriação, que

obteve a porcentagem de 55%. Já em relação à área dos assentamentos rurais,

contraditoriamente temos os seguintes números: 74% da área provém da política

regularização fundiária, 13% desapropriação, 10% reconhecimento, 2% compra e 1%

doação. Estes dados reafirmam que em relação à área, ou seja, ao tamanho em hectares

dos assentamentos rurais “criados” no primeiro mandato de Lula, a regularização

fundiária se sobressai em relação às outras políticas de obtenção.

O governo Lula priorizou políticas de obtenção baseadas na regularização de áreas,

reconhecimento e compra, desapropriando algumas propriedades. Este elemento nos

ajuda a compreender o descenso da luta pela terra já no segundo mandato, quando

famílias acampadas desistem da luta pela terra devido à demora ou a não realização da

reforma agrária. Devo ressaltar que somente a desapropriação de terras contemplam

famílias acampadas nas beiras das estradas, sendo que a diminuição do número de

famílias acampadas não significa o assentamento destas, mas sim a desistência.

A espacialização da luta pela terra proporciona a territorialização da mesma e a criação

de assentamentos rurais. Se não há territorialização, o processo de espacialização é

inibido. Ou seja, se o Estado não cria assentamentos rurais, as famílias que estão

acampadas há anos acabam desistindo e migrando para as cidades. Nos acampamentos

do MST no estado de São Paulo, especificamente na região do extremo oeste, o Pontal

do Paranapanema, o fluxo e o vai e vem de famílias nos acampamentos é constante. Da

mesma forma que novas famílias são incorporadas, outras voltam às cidades ou migram

para acampamentos de outras regiões. O acampamento é um espaço cada vez mais

vulnerável, a vida nestes é esporádica, com famílias que trabalham nas cidades e apenas

dormem nos acampamentos ou que moram nas cidades e retornam somente nos finais

de semana. Na foto 1 é possível observar que, ao longo da semana são pouquíssimas as

famílias que se encontram nos acampamentos.

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Foto 1: Acampamento Dorcelina Furlador, município de Sandovalina-SP

Fonte: Trabalho de campo, 2012.

Deste modo, se não há a criação de assentamentos rurais, algumas famílias desistem da

luta pela terra e se contentam com programas assistencialistas, como o Bolsa Família,

que contempla mais de 13 milhões de famílias com renda per capita inferior a R$ 70, 00

reais mensaisiii. O programa seleciona famílias com base nas informações inseridas

pelos municípios no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal,

instrumento de coleta de dados que tem como objetivo identificar todas as famílias de

baixa renda existentes no Brasiliv. O objetivo principal do programa é, única e

exclusivamente, o alívio imediato da pobreza.

Em paralelo a esses elementos temos o avanço do agronegócio canavieiro em alguns

estados do país, como São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso do Sul,

conceituado por Thomaz Júnior (2010) como o polígono do agronegócio. A intensa

produção de commodities, a valorização e aumento no preço das terras e a expansão da

produção em áreas antes improdutivas tem impedido que estas adentrem ao circuito da

reforma agrária e sejam desapropriadas. Deste modo, contemporaneamente o campo

brasileiro está pautado não só na disputa por terras, mas na disputa política e econômica.

O governo Lula conseguiu atrelar diferentes interesses em seus mandatos, primeiro

porque conteve os movimentos sociais, mesmo não investindo maciçamente na reforma

agrária, e sindicatos, expandiu a produção de commodities e, ainda, perseguiu as

recomendações do FMI. No que diz respeito à reforma agrária e a luta pela terra, com a

diminuição de assentamentos rurais criados e a disponibilidade de programas

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compensatórios, muitas famílias aderiram a estes ao invés de acamparem, até porque a

vida no acampamentos é extremamente precária. Assim, o governo não investiu na

reforma agrária, mas, sim, na assistência social (MARQUES e MENDES, 2006).

A correlação de forças internas e o cenário externo ou global nunca foram favoráveis à

reforma agrária e o governo Lula realizou apenas o que estava ao seu alcance, até

porque uma ampla e massiva reforma agrária causaria crise em seu governo. A não

consolidação de um número expressivo de assentamentos rurais, a opção pelo

agronegócio, as políticas compensatórias e as dificuldades encontradas pelos

movimentos socioterritoriais para arregimentar famílias na luta pela terra, justamente

devido aos itens citados anteriormente, levaram à queda da luta pela terra.

Considerações Finais

Concluo afirmando, e questionando em alguns momentos, que polarizar as discussões

sobre o campo brasileiro em: camponeses versus agronegócio ou reforma agrária versus

regularização fundiária, reduz a compreensão da complexidade do que é a questão

agrária na contemporaneidade, até mesmo porque muitos desses debates possuem raízes

no capitalismo financeiro internacional e ultrapassam o território e a política nacional.

Para compreender a luta pela terra e a atuação dos movimentos socioterritoriais, a

análise política e econômica em diferentes escalas é imprescindível e a polarização de

ideias só tende a restringir a realidade.

Explica-se a ascensão da luta pela terra no primeiro mandato do governo Lula através

dos seguintes elementos: a) Lula, PT e MST possuem raízes políticas e ideológicas no

que diz respeito à reforma agrária, o que criou esperanças e aumentou o número de

ações dos movimentos socioterritoriais; b) a proposta do II PNRA também contribuiu

para que diversas famílias sem-terras lotassem os acampamentos e participassem de

ocupações de terras; c) e, por fim, o constante diálogo entre Lula e movimentos. Já no

segundo mandato desse mesmo governo, pode-se atribuir a queda da luta pela terra aos

seguintes itens: a) a não realização da reforma agrária no primeiro mandato do governo

Lula inibiu a atuação de famílias sem-terras e movimentos socioterritoriais; b) o avanço

do agronegócio tem impedido o avanço da desapropriação de terras; c) políticas

compensatórias foram priorizadas e muitas famílias optaram por estas ao invés de

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lutarem por terra; d) os movimentos socioterritoriais estavam e ainda estão com

dificuldades de se organizar em um contexto de luta tão diverso.

Notas

_______________

i Disponível em: < http://www.mst.org.br/Incra-prioriza-regularizacao-fundiaria>. Acesso em 21 de junho

de 2012. ii Ibidem, 2009. iii Disponível em: < http://www.mds.gov.br/>. Acesso em 21 de junho de 2012. iv Disponível em: < http://www.mds.gov.br/>. Acesso em 21 de junho de 2012.

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