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ISSN 2177-8892 1174 ASPECTOS PEDAGÓGICOS DA COOPERAÇÃO INTERNACIONAL BRASILEIRA NA FORMAÇÃO DE TRABALHADORES RURAIS: UM ESTUDO SOBRE O PROSAVANA EM MOÇAMBIQUE Inny Accioly 1 INTRODUÇÃO O processo de transnacionalização” de empresas brasileiras e a expansão destas em direção a países africanos coloca em evidência a demanda por formação profissional no exterior. Ao mesmo tempo, é observado que instituições brasileiras de formação profissional (como SENAI, SENAR e EMBRAPA) estão servindo de modelo para a estruturação de centros de formação profissional em países africanos (BANCO MUNDIAL; IPEA, 2011). Esta pesquisa de doutoramento, que se encontra em andamento, busca investigar o modelo de educação voltado para a formação de trabalhadores rurais que é exportado pelas instituições técnico-científicas brasileiras envolvidas no programa PROSavana. Este programa tem o objetivo de promover o “desenvolvimento rural” em Moçambique, por meio de Cooperação Técnica trilateral firmada entre os governos do Brasil, Japão e Moçambique. Enquanto formação de força de trabalho em uma sociedade capitalista, a formação profissional é um campo em disputa entre “projetos hegemônicos voltados ao capital e projetos outros de educação do trabalhador como resistência ao modo de produção de vida existente” (PEREIRA, 2012, p.288). Desta maneira, a formação profissional rural difunde saberes, valores e modos de agir no mundo do trabalho que, no caso da agricultura, expressa tensões e contradições, entre, de um lado, formas de uso comum da terra e a agricultura camponesa e, de outro, a organização capitalista da agricultura e o agronegócio. 1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e bolsista CAPES. [email protected]

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ASPECTOS PEDAGÓGICOS DA COOPERAÇÃO INTERNACIONAL

BRASILEIRA NA FORMAÇÃO DE TRABALHADORES RURAIS:

UM ESTUDO SOBRE O PROSAVANA EM MOÇAMBIQUE

Inny Accioly1

INTRODUÇÃO

O processo de “transnacionalização” de empresas brasileiras e a expansão destas

em direção a países africanos coloca em evidência a demanda por formação profissional

no exterior. Ao mesmo tempo, é observado que instituições brasileiras de formação

profissional (como SENAI, SENAR e EMBRAPA) estão servindo de modelo para a

estruturação de centros de formação profissional em países africanos (BANCO

MUNDIAL; IPEA, 2011).

Esta pesquisa de doutoramento, que se encontra em andamento, busca investigar

o modelo de educação voltado para a formação de trabalhadores rurais que é exportado

pelas instituições técnico-científicas brasileiras envolvidas no programa PROSavana.

Este programa tem o objetivo de promover o “desenvolvimento rural” em Moçambique,

por meio de Cooperação Técnica trilateral firmada entre os governos do Brasil, Japão e

Moçambique.

Enquanto formação de força de trabalho em uma sociedade capitalista, a

formação profissional é um campo em disputa entre “projetos hegemônicos voltados ao

capital e projetos outros de educação do trabalhador como resistência ao modo de

produção de vida existente” (PEREIRA, 2012, p.288).

Desta maneira, a formação profissional rural difunde saberes, valores e modos

de agir no mundo do trabalho que, no caso da agricultura, expressa tensões e

contradições, entre, de um lado, formas de uso comum da terra e a agricultura

camponesa e, de outro, a organização capitalista da agricultura e o agronegócio.

1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro

(UFRJ) e bolsista CAPES. [email protected]

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A problemática de pesquisa aponta para a necessidade de compreender quais as

concepções de educação são difundidas por meio das instituições brasileiras quando

estas atuam no exterior.

Para responder a esta problemática, selecionamos o caso do PROSavana, que

está sendo implementado em Moçambique.

Enquanto fundamento teórico-metodológico, elegemos o materialismo histórico-

dialético.

Nossa hipótese aponta que as instituições de formação profissional brasileiras

envolvidas no PROSavana cumprem a função ideológica de formar trabalhadores

moldados às estritas necessidades do mercado capitalista, encoberta pela função técnica

de difundir conhecimentos acumulados sobre agricultura tropical. Por conseguinte, o

PROSavana excluiria as perspectivas da formação para emancipação humana presentes

no processo de independência das colônias africanas.

1. OBJETIVO GERAL

Investigar o modelo de educação exportado pelas instituições técnico-científicas

brasileiras para a formação de trabalhadores rurais no projeto PROSavana.

2. OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Identificar se existem afinidades entre as demandas de formação de

trabalhadores expressas pelos grupos empresariais brasileiros que atuam em

Moçambique e as ações pedagógicas promovidas pelas instituições técnico-

científicas envolvidas no PROSavana.

Identificar em que medida as ações do PROSavana dialogam e/ou incorporam as

críticas formuladas pelos movimentos sociais camponeses de Moçambique.

Identificar se existem tensões e contradições entre as demandas do capital e as

demandas dos camponeses moçambicanos e em que medidas estas tensões se

relacionam com a perspectiva de emancipação humana.

RELAÇÕES ENTRE BRASIL E MOÇAMBIQUE

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Moçambique figura como o “laboratório” da Cooperação Internacional

brasileira. Este país africano, que guarda semelhanças com o Brasil devido à

colonização portuguesa, estabeleceu acordos de cooperação com o Brasil para a

implantação de diversos projetos, entre eles: o projeto Bolsa-Escola; o Programa

Alfabetização Solidária; o Programa de Alfabetização e Educação de Adultos; o

Programa Nacional de Alimentação Escolar de Moçambique; o Centro de Formação

Profissional Brasil-Moçambique (para implantação de modelo baseado nas práticas de

gestão do SENAI); o Programa de Cooperação para formação, em regime de Educação

a Distância (EaD), de professores e agentes do serviço público de Moçambique, e,

ainda, projetos de formação direcionados às áreas da saúde e da agricultura.

Além de abrigar empresas brasileiras como a Vale, Camargo Correa, Odebrecht

e Andrade Gutierrez, Moçambique é a única nação do mundo (além do Brasil) em que

atuam quatro instituições do Sistema “S” (SENAR, SENAI, SENAC e SEBRAE),

voltadas para a formação profissional e aperfeiçoamento de processos produtivos.

O panorama abaixo, apresentado em 2009 na ocasião da 39a

Reunião do Centro

Interamericano para o Desenvolvimento do Conhecimento na Formação Profissional

(CINTERFOR), realizada em Brasília, apresenta a atuação internacional do “Sistema

S”.

Fonte: http://www.oitcinterfor.org/sites/default/files/edit/docref/rct/39/senai_pt.pdf

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Em fevereiro de 2013, em discurso proferido na ocasião da cerimônia de

abertura da III Cúpula América do Sul-África (ASA), realizada na Guiné Equatorial, a

presidenta Dilma Rousseff anunciou:

Mas eu estou aqui hoje para propor e construir parcerias concretas.

Quero propor como mais uma parceria entre nós e para os países

africanos no âmbito da ASA, uma parceira na área da formação de

professores e gestores para o ensino técnico profissionalizante para a

formação de estudantes especialmente do setor agropecuário. [...] Nós

usaremos toda a rede que o Brasil tem de institutos federais de ensinos

técnicos, profissionais. Usaremos a nossa Empresa Brasileira de

Pesquisa Agropecuária, a parceria com entidades empresariais do

setor agrícola e do setor industrial para dar suporte à formação tanto

de estudantes quanto de professores, de técnicos como de agrônomos,

na área do ensino médio como na área do ensino universitário. Na

última década, o Brasil ofertou mais de 5 mil bolsas de estudo de

graduação e pós-graduação. Nós também criamos a universidade, a

chamada Unilab, universidade voltada para a integração com a África

e América Latina, que hoje já tem mais de mil estudantes. Mas nós

queremos caracterizar essa cooperação e focá-la mais ainda em áreas

que nós podemos fazer a diferença com a nossa cooperação. Outra

iniciativa importante que também nós colocamos à disposição é a

Universidade Aberta do Brasil, de ensino à distância, que hoje já

opera um pólo presencial em Moçambique. Estamos dispostos a

ampliar essa rede especialmente para os cursos, repito, de agronomia e

da área de saúde. Queria lembrar aos senhores que no passado nós

construímos a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária enviando

para o exterior na década de 70, 80, final da década de 70 e início da

década de 80, enviando mil estudantes para os Estados Unidos e a

Europa. A partir desses mil estudantes nós criamos, talvez, uma das

tecnologias agrícolas mais competitivas do mundo. O que nós estamos

oferecendo aos senhores é uma trajetória diferente dessa. Nós estamos

oferecendo não só a formação lá no Brasil, mas também - com o apoio

dos senhores - aqui na África, o que nós consideramos que nós temos

de melhor. Aliás, as atividades do escritório da Embrapa, Empresa

Brasileira de Pesquisa Agropecuária, em Gana; e de projetos como a

fazenda modelo para produção de algodão, nos países do Cotton 4 e o

Pró-Savana, em Moçambique, são exemplos bem sucedidos de

cooperação para o desenvolvimento agrícola.2

2 O Discurso na íntegra está disponível no site do Planalto:

<http://www2.planalto.gov.br/imprensa/discursos/discurso-da-presidenta-da-republica-dilma-rousseff-na-

cerimonia-de-abertura-da-iii-cupula-america-do-sul-africa-malabo-guine-equatorial>. Acesso setembro de

2013.

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O programa PROSAVANA, fruto de parceria entre os governos do Brasil, Japão

e Moçambique, tem como objetivo o “desenvolvimento agrícola e rural” em

Moçambique.

O Programa se inspira na experiência adquirida através dos programas

brasileiros de desenvolvimento agropecuário realizados em parceria

com a Agência de Cooperação Internacional do Japão (JICA),

principalmente a experiência e os resultados do Programa de

Cooperação Japão-Brasil para o Desenvolvimento dos Cerrados

(PRODECER) e Programas de Assentamento Dirigido no Distrito

Federal (PAD-DF), desenvolvido a partir de 1973. [...]Concebido

como um Programa de Desenvolvimento Agrícola e Rural para o

Corredor de Nacala, em Moçambique, o ProSAVANA-JBM tem

como objetivo melhorar a competitividade do setor rural da região,

tanto em matéria de segurança alimentar a partir da organização e do

aumento da produtividade no âmbito da agricultura familiar, como na

geração de excedentes exportáveis a partir do apoio técnico à

agricultura orientada para o agronegócio. (PROSAVANA-TEC, 2011,

p.3)

Este programa vem sendo denunciado por movimentos sociais de Moçambique,

do Brasil e do Japão 3 por promover, na região de Nacala, em Moçambique, a

apropriação de terras por corporações transnacionais, o que contribuiria para a

expropriação de agricultores familiares moçambicanos e o surgimento da figura do

trabalhador rural sem-terra em Moçambique.

Em termos de infraestrutura, o PROSAVANA prevê a estruturação de “centros

integrados de investigação agrária”, equipados com laboratórios e unidades de

“beneficiamento” de sementes genéticas e básicas, dispondo de “recursos humanos

capazes de planejar, coordenar e executar projetos de pesquisa agropecuária”

(PROSAVANA-TEC, 2011, p.7).

Em termos de capacitação e treinamento de recursos humanos, a ideia

é romper os problemas de internalização dos sistemas de produção a

serem estudados e recomendados e relativos tanto aos diferentes

idiomas falados no campo, como no que se refere às atitudes e

3 “Mais de 60 movimentos sociais, ambientais, camponesas e várias organizações da sociedade civil

(OSC) de Moçambique, Brasil e Japão participam da Primeira Conferência Triangular dos Povos

agendada para os próximos dias 7 e 8 de Agosto de 2013 na cidade de Maputo. A Conferência de Maputo

tem como objetivo fortalecer a articulação internacional e as estratégias de luta e resistência contra o

Programa Prosavana em curso no país desde 2009, contribuindo deste modo para uma melhor definição,

implementação e monitoria de políticas públicas em prol de um desenvolvimento integrado”. Disponível

em < http://www.unac.org.mz/index.php/7-blog/56-povos-de-mocambique-brasil-e-japao-discutem-em-

maputo-formas-de-resistencia-detencao-e-reflexao-do-prosavana>. Acesso setembro 2013.

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comportamentos sociais segundo as diferentes etnias e estágios de

conhecimentos em agricultura e pecuária. Neste caso, é que se

pretende envolver instituições e organizações locais na execução do

projeto, treinar seus quadros no Brasil e em Moçambique, e formar

uma equipe de pelo menos 150 multiplicadores capazes de ensinarem

e disseminarem na região novas técnicas de gerenciamento do uso de

recursos naturais para uso agrícola; de multiplicação, beneficiamento

e comércio de sementes; de gestão da pesquisa, planejamento

participativo e de difusão de tecnologias; e do uso de modelos de

decisão para o gerenciamento da produção, processamento e comércio

da produção agrícola; entre outros. (idem, p.12)

Percebemos que o PROSAVANA carrega em seu discurso a ideia de educação

enquanto uma ferramenta voltada unicamente para “capacitação” e “treinamento” de

pessoas – vistas como “recursos humanos” -, com o objetivo de facilitar a chamada

“internalização” das recomendações, em um processo explicitamente de fora para

dentro.

A previsão de formação de “multiplicadores” reforça esta ideia, afirmando que

estes indivíduos terão a função de disseminar “novas técnicas de gerenciamento do uso

de recursos naturais”, desconsiderando as técnicas tradicionais locais. Ao mesmo

tempo, o documento fala em “planejamento participativo”.

Nestes “Centros Integrados” também está prevista a criação de um módulo de

“Educação Ambiental em Agricultura”. Entretanto, o projeto não fornece maiores

detalhes sobre os objetivos educacionais deste módulo.

No âmbito do PROSAVANA, a formação profissional rural está a cargo da

Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA), empresa pública vinculada

ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), e do Serviço

Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR), entidade de direito privado, paraestatal,

mantida pela classe patronal rural, vinculada à Confederação da Agricultura e Pecuária

do Brasil (CNA).

Por compreendermos que a educação apresenta-se historicamente como um

campo da disputa hegemônica, materializando-se no embate pela articulação das

concepções e pela organização dos processos educacionais que ocorrem nas diferentes

esferas da vida social de acordo com os interesses de classes (FRIGOTTO, 2010),

entendemos que os “conhecimentos técnicos” a serem “transferidos” não são

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conhecimentos neutros e que seguem a lógica de uma racionalidade cindida pela

perspectiva de classes.

Na perspectiva das classes dominantes, historicamente, a educação

dos diferentes grupos sociais de trabalhadores deve dar-se a fim de

habilitá-los técnica, social e ideologicamente para o trabalho. Trata-se

de subordinar a função social da educação de forma controlada para

responder às demandas do capital. (FRIGOTTO, 2010, p.28)

Conforme aponta Frigotto (2010), o embate entre as concepções de educação da

classe trabalhadora e das classes dominantes aparece repleto de sutilezas, que se

refletem nas concepções acerca do papel social da educação ou, especificamente, da

relação entre o processo de produção e os processos educativos ou de formação humana.

Neste embate, as políticas públicas de educação e de formação humana foram

historicamente definidas a partir das necessidades e demandas do processo de

acumulação de capital sob as diferentes formas de sociabilidade que este assumiu em

seus diferentes momentos históricos. “Ou seja, reguladas e subordinadas pela esfera

privada, e à sua reprodução”. (FRIGOTTO, 2010, p.33)

Ao afirmarmos o Estado enquanto instrumento de uma classe, precisamos

sempre considerar que ele é também, e ao mesmo tempo, lugar de luta pela hegemonia

e processo de unificação das classes dirigentes (LIGUORI, 2007). O “Estado

Ampliado”, enquanto conceito de Gramsci, é atravessado pela luta de classes. A

dialética é real, aberta, o resultado não pode ser predeterminado.

O estado é certamente concebido como organismo próprio de um

grupo, destinado a criar as condições favoráveis à expansão máxima

deste grupo, mas este desenvolvimento e esta expansão são

concebidos e apresentados como a força motriz de uma expansão

universal, de um desenvolvimento de todas as energias “nacionais”,

isto é, o grupo dominante é coordenado concretamente com os

interesses gerais dos grupos subordinados e a vida estatal é concebida

como uma contínua formação e superação de equilíbrios instáveis (no

âmbito da lei) entre os interesses do grupo fundamental e os interesses

dos grupos subordinados, equilíbrios em que os interesses do grupo

dominante prevalecem, mas até um determinado ponto, ou seja, não

até o estreito interesse econômico-corporativo. (GRAMSCI, 2011,

p.41-42)

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Se é verdade que a disputa da classe trabalhadora por processos educacionais

geridos pelo Estado tenciona para que os recursos públicos sirvam a esta classe e

contribuam para seu processo de formação e organização seguindo seus próprios

interesses, também é verdade que a ideologia das classes dominantes, por ter meios de

difusão em maior quantidade e com maior força, contribui para que os interesses da

classe burguesa sejam absorvidos como sendo interesses comuns e em “harmonia” aos

interesses da classe trabalhadora.

Florestan Fernandes (1975), em suas análises sobre a formação social nos países

capitalistas dependentes, aponta que as burguesias nacionais destes países, para além da

defesa de um “legítimo interesse nacional”, se converteram em formas internalizadas de

defesa do capitalismo:

As burguesias nacionais dessas nações converteram-se, em

consequência, em autênticas “fronteiras internas” e em verdadeiras

“vanguardas políticas” do mundo capitalista (ou seja, da dominação

imperialista sob o capitalismo monopolista) [...] Elas querem: manter

a ordem, salvar e fortalecer o capitalismo, impedir que a dominação

burguesa e o controle burguês sobre o Estado nacional se deteriorem.

(FERNANDES, 1975, p.294-295, grifos do autor)

Fontes (2010) aponta que a burguesia brasileira remói, resulta e promove

contradições: atualiza as heranças das formas de dominação pregressas (como o racismo

e a subalternidade cultural); resulta da contraditória articulação que conecta setores

nativos profundamente desiguais a uma subordinação ao capital-imperialismo; promove

contradições ao levar ao extremo sua ambivalente situação de impotente prepotente,

com enorme crescimento da produção de commodities (adequada à posição de

subalternidade) ao lado do estímulo dado pelo Estado à expansão de empresas

transnacionais, procurando aproximar-se da ponta dominante do capital-imperialismo.

Nesta linha, Fontes (2010) ainda ressalta as formas com que a burguesia

brasileira insere-se no capitalismo mundial: exportando suas tradições truculentas,

somadas à uma ampla rede de convencimento no âmbito da sociedade civil, convertida

em política de Estado.

Neste contexto, assume materialidade o conceito Gramsciano de Estado

“educador”, na medida em que uma das suas funções mais importantes (e quase sempre

esquecida) é elevar a grande massa da população a um determinado nível cultural e

moral, nível que corresponde às necessidades de desenvolvimento das forças produtivas

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e, portanto, aos interesses da classe que está no domínio. Desta forma, o Estado age

também como uma “racionalização” da produção nacional, como um instrumento de

“aceleração” que, operando segundo um plano, pressiona, incita e impele.

A “COOPERAÇÃO” BRASILEIRA

O histórico da cooperação técnica internacional, como mecanismo “auxiliar do

desenvolvimento”, remonta ao final da Segunda Guerra Mundial, especificamente à

conferência de Bretton Woods, em 1944, quando foram criados o Banco Mundial e o

Fundo Monetário - FMI. As primeiras iniciativas de estruturação da cooperação

internacional (científica, técnica e tecnológica) foram motivadas pelas Nações Unidas

sob a justificativa da necessidade de reconstrução dos países afetados pela guerra e da

necessidade de acelerar o desenvolvimento dos países “menos industrializados”.

A expressão “assistência técnica” foi instituída, em 1948, pela Assembleia Geral

das Nações Unidas (ONU), que a definiu como sendo

a transferência, em caráter não comercial, de técnicas e

conhecimentos, mediante a execução de projetos a serem

desenvolvidos em conjunto entre atores de nível desigual de

desenvolvimento, envolvendo peritos, treinamento de pessoal,

material bibliográfico, equipamentos, estudos e pesquisas. 4

Em 1959, a Assembleia Geral da ONU decidiu rever o conceito de "assistência

técnica”, substituindo a expressão por "cooperação técnica”, termo que era propício para

definir “uma relação que, se por um lado pressupõe a existência de partes desiguais, por

outro representa uma relação de trocas, de interesses mútuos entre as partes”. 5

A influência dos “acordos de cooperação internacional norte-sul” e do Banco

Mundial nas políticas educacionais brasileiras já foi alvo de inúmeras investigações

(LEHER,1998; FONSECA,1998; ARRUDA,1998). Estas políticas contam com o apoio

decisivo dos governos e das elites nacionais que viabilizam sua inserção e

4 Agência Brasileira de Cooperação. Disponível em

<http://www.abc.gov.br/CooperacaoTecnica/Historico>. Acesso setembro 2013. 5 Agência Brasileira de Cooperação. Disponível em

<http://www.abc.gov.br/CooperacaoTecnica/Historico>. Acesso setembro 2013.

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operacionalização seguindo as orientações das agências que monitoram, por meio do

mecanismo das condicionalidades, as metas acertadas.

Nesse sentido, a propalada “cooperação” consiste, de fato, em

estratégia de expansão das políticas e interesses do capital

internacional, sendo que a educação, nessa perspectiva, restringe-se ao

papel de reproduzir a força de trabalho para o capital, formar

ideologicamente conforme os interesses do mesmo e servir como

segmento do mercado a ser explorado comercialmente pelo setor

privado. (CRUZ, 2003, p.72)

No discurso oficial do Ministério das Relações Exteriores, a cooperação

internacional

constitui importante instrumento de desenvolvimento, auxiliando um

país a promover mudanças estruturais nos campos social e econômico,

incluindo a atuação do Estado, por meio de ações de fortalecimento

institucional. Os programas implementados sob sua égide permitem

transferir ou compartilhar conhecimentos, experiências e boas-práticas

por intermédio do desenvolvimento de capacidades humanas e

institucionais, com vistas a alcançar um salto qualitativo de caráter

duradouro.6

O surgimento da “cooperação técnica entre países em

desenvolvimento (CTPD)”, também conhecida como “cooperação horizontal” ou

“cooperação sul-sul”, é associado à inauguração do “Movimento dos Países Não

Alinhados” na Conferência de Bandung, em 1955, sob o contexto de descolonização e

da Guerra Fria (ABREU, 2012).

A partir da análise histórica da Cooperação Sul-Sul (CSS), observa-se que

inicialmente o discurso diplomático multilateral do Sul era opositivo aos países do

Norte. No entanto, ela passou a ser considerada como complementar à “ajuda oficial ao

desenvolvimento”, promovida nas Cooperações Norte-Sul. A principal justificativa

dessa capacidade de complementaridade é a semelhança dos desafios enfrentados pelos

países do Sul, gerando um tipo de conhecimento específico e mais efetivo no “caminho

ao desenvolvimento” que o conhecimento dos países do Norte.

O Brasil entende a cooperação técnica internacional como uma opção

estratégica de parceria, que representa um instrumento capaz de

produzir impactos positivos sobre populações, alterar e elevar níveis

de vida, modificar realidades, promover o crescimento sustentável e

6 Agência Brasileira de Cooperação. Disponível em

<http://www.abc.gov.br/CooperacaoTecnica/Conceito>. Acesso setembro 2013.

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contribuir para o desenvolvimento social. [...] A CGPD [Coordenação

Geral de Cooperação Técnica entre Países em Desenvolvimento]

brasileira se faz pela transferência de conhecimentos técnicos e

experiência do Brasil, em bases não comerciais, de forma a promover

a autonomia dos parceiros envolvidos. Para tanto se vale dos seguintes

instrumentos: consultorias, treinamentos e a eventual doação de

equipamentos. [...] A missão da CGPD é "contribuir para o

adensamento das relações do Brasil com os países em

desenvolvimento, para a ampliação dos seus intercâmbios, geração,

disseminação e utilização de conhecimentos técnicos, capacitação de

seus recursos humanos e para o fortalecimento de suas instituições”.7

No Brasil, a cooperação técnica entre países em desenvolvimento ganhou

impulso com a criação, em 1987, da Agência Brasileira de Cooperação (ABC), ligada

ao Ministério das Relações Exteriores (MRE).

Entre as áreas de atuação mais intensa da ABC se destaca a de

agricultura e educação (programas de alfabetização), responsáveis por

55% da cooperação prestada pelo país, secundadas pelas áreas de

formação de quadros técnicos, biocombustíveis (etanol e diesel),

saúde (combate ao HIV/aids), apoio eleitoral (urnas eletrônicas),

cooperação desportiva (futebol), entre outras. Segundo o Chanceler

brasileiro, ao oferecer oportunidades de cooperação, o Brasil não

almeja ganho ou lucro comercial, assim como nenhuma outra

condicionalidade. Segundo o discurso da ABC, a cooperação prestada

se baseia em valores como a nova visão das relações entre países em

desenvolvimento, inspirada na comunhão de interesse e na ajuda

mútua. (VIDIGAL, 2010, p.41-42)

No âmbito da cooperação técnica sul-sul, o Brasil têm se posicionado, nas

últimas décadas, prioritariamente na condição de “prestador de cooperação técnica”:

O Brasil possui um importante acervo de conhecimentos técnicos e

soluções imaginativas que podem ser aplicados em países com

carência de recursos e de "know-how”. A estratégia maior da

cooperação técnica prestada pelo Brasil, que não é assistencialista, não

tem fins lucrativos nem pretensões comerciais e está centrada no

fortalecimento institucional de nossos parceiros, condição

fundamental para que a transferência e a absorção de conhecimentos

sejam efetivas8.

7 Disponível no site da Agência Brasileira de Cooperação (ABC), ligada ao Ministério das Relações

Exteriores. < http://www.abc.gov.br/SobreAbc/Direcao/CGPD>. Acesso em setembro de 2013. 8 Disponível em <http://www.abc.gov.br/SobreABC/Direcao/CGPD>. Acesso em setembro de 2013.

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No entanto, em relação a Moçambique, as “pretensões comerciais” brasileiras

fizeram o Brasil alcançar, no ano de 2012, o posto de maior investidor estrangeiro9 neste

país, chegando a superar a antiga metrópole portuguesa.

A Vale do Rio Doce explora carvão mineral em Moatize. A Camargo

Corrêa vai instalar uma hidrelétrica no Rio Zambeze – Mphanda

Nkuwa, a segunda maior da África. A Odebrecht está construindo o

aeroporto internacional de Nacala, em Nampula. Depois da mineração

e da infraestrutura, o agronegócio está virando a mais nova frente de

atividade para os empresários brasileiros.10

Fonte: Projeto PROSAVANA: Melhoria da capacidade de pesquisa e de transferência de tecnologia para o

desenvolvimento da agricultura no corredor de Nacala em Moçambique. Programa EMBRAPA_Moçambique.

Cooperação trilateral Brasil-Moçambique-Japão.

Neste processo, é importante ressaltar a participação ativa das instituições

Moçambicanas, que garantem o “ambiente propício” para os investimentos brasileiros.

Como parte deste “ambiente propício”, está a garantia de intervenção no projeto de

educação do país, conforme explicitado no “Plano estratégico da educação do

Ministério da Educação de Moçambique (2012-2016)”:

O direito de todos à Educação não é apenas responsabilidade e/ou

obrigação do Estado, mas de todos: pais e encarregados de educação,

famílias e comunidades, organizações não-governamentais e parceiros

internacionais. Cada um destes grupos alvo desempenha um papel na

9 Informação divulgada no Jornal O GLOBO do dia 11 de dezembro de 2012. Disponível em

<http://oglobo.globo.com/economia/brasil-desbanca-portugal-se-torna-maior-investidor-estrangeiro-em-

mocambique-7005344>. Acesso setembro de 2013. 10

Disponível em <http://oglobo.globo.com/economia/brasil-desbanca-portugal-se-torna-maior-investidor-

estrangeiro-em-mocambique-7005344>. Acesso setembro de 2013.

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oferta e procura de serviços educativos, dentro das suas capacidades e

meios, em função das necessidades. (Moçambique, 2012, p.19)

CONSIDERAÇÕES

Por ser uma investigação em andamento e que se encontra em estágio iniciais,

nos falta elementos para melhor compreender as contradições que permeiam o objeto de

análise.

Entretanto, considerando que o ensino técnico-profissional agrícola de

Moçambique encontra-se em processo de reforma financiado pelo Banco Mundial,

apontamos a importância desta investigação na compreensão das contribuições

brasileiras neste processo.

É importante ressaltar que os documentos de financiamento do Banco Mundial

preveem reassentamento de famílias como parte da reforma do ensino técnico-

profissional.

Desta forma, consideramos que a compreensão acerca dos aspectos pedagógicos

das relações de cooperação técnica entre Brasil e Moçambique na área da agricultura

trará importantes elementos para o debate sobre as relações entre as atuais diretrizes

pedagógicas para o meio rural no Brasil e demais países do “sul”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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para o desenvolvimento. Anais do I Seminário Nacional de Pós-Graduação em

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