Aspectualização Pela Análise de Textos

download Aspectualização Pela Análise de Textos

of 85

Transcript of Aspectualização Pela Análise de Textos

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    1/233

    Regina Souza Gomes (org.)

    LETRAS /UFRJ

    A SPECTUALIZAÇÃOPELANÁLISE DE TEXTOS

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    2/233

    Regina Souza Gomes (org.)

    Rio de Janeiro

    Faculdade de Letras da

    2014

    A SPECTUALIZAÇÃOPELANÁLISE DE TEXTOS

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    3/233

    : Regina Souza Gomes

    : Danielle Fróes & Matheus Antunes

    : Claudia Maria Sousa Antunes

     A838 Aspectualização pela análise de textos / ReginaSouzaGomes (org.). – Rio de Janeiro, 2014.

    232 f.

    E-book.Inclui bibliografia.

    ISBN 978-85-8363-001-2

    1. Semiótica. 2. Aspectualização do discurso. 3.Modelização no jornal. I. Título. II. Gomes, ReginaSousa (org.)

    CDD 401

    Ficha elaborada pela Biblioteca José de Alencar

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    4/233

    Sumário

    Apresentação REGINA SOUZA GOMES  6

    A construção do impacto por meioda aspectualização temporalCAIO CESAR CASTRO DA SILVA  14

    Londres-2012: modalização easpectualização no caderno especial

    do jornal folha de São PauloFELIPE LIMA  40

    Análise semiótica da

    aspectualização no discursoda presidente Dilma Rousseff

    MAYARA NICOLAU DE PAULA  57

    Aspectualização actancial em canção popular

    NATÁLIA ROCHA OLIVEIRA TOMAZ  77

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    5/233

    Aspectualização no discursoem Sylvia OrthofMARCIA ANDRADE MORAIS CABRAL 100

    O amor em canção de Clarice Falcão:

    uma análise semióticada aspectualização

    MATHEUS ODORISI MARQUES 120

    Aspectualização e paixões:uma análise das dimensões

    patêmicas no discurso JULIANA OLIVEIRA DOS SANTOS 139

    As paixões e a aspectualização:

    leitura de cadernos televisivosTIANA ANDREZA MELO DO NASCIMENTO 161

    Aspectualização espacial: 

    uma proposta de análise 

    CLAUDIA MARIA SOUSA ANTUNES 182

    A aspectualização espacial

    em relatos esportivosMARGARETH ANDRADE MORAIS RUBINO 207

    Sobre os autores  230

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    6/233

    Apresentação

    Regina Souza Gomes

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    7/233

    Os estudos sobre aspectualização no discurso ain-da carecem de maior desenvolvimento. Conceitu-ada pela semiótica como um procedimento dis-

    cursivo de instauração de um ponto de vista, pelaação de um observador que toma os eventos comoprocessos, recaindo não só sobre o tempo, mastambém sobre o espaço e o actante (GREIMAS,COURTÉS, , p. ), os estudos sobre a aspec-tualização não apresentam uniformidade. Isso sepercebe facilmente em Le discours aspectualisé,

    organizado por Fontanille (), obra decorrentede um colóquio sobre o discurso aspectualizado,no qual participaram pesquisadores de diversasdisciplinas – linguística geral, linguística histórica,ciências cognitivas, semiótica, entre outras – comseus métodos próprios.

    Nesse livro, se nos detivermos apenas na abor-dagem dos estudos semióticos, tanto se observamautores que assumem a posição de que tratar de as-pectualização é inelutavelmente “evocar suas rela-ções com o tempo” (GREIMAS, FONTANILLE, ,p. ), quanto outros que, na mesma obra, comoBarros (, pp. -) e o próprio Fontanille

    (, pp. -), não restringem o procedimentoàs suas relações com o tempo.

    Em outros trabalhos publicados posteriormen-te, há semioticistas que demonstraram, da mesmaforma, em suas análises, a rica possibilidade de ex-tensão desse mecanismo às dimensões espaciais eactanciais do discurso (BERTRAND, ; FIORIN,

    ; DISCINI, , dentre outros, citados pelos

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    8/233

    autores deste e-book).

    Podendo ser tomado como um mecanismo da

    conversão de estruturas semânticas mais abstra-tas dos textos em discurso, como se pode percebernos verbetes do Dicionário de Semiótica, tomos I() e II (), pode também assumir a formade uma investigação teórica mais “aspectualizada”da semiótica, desenvolvida especialmente por Zil-berberg ().

    É a partir da observação desse procedimentodiscursivo, à luz da semiótica, sob essa diversidadede abordagens, que as análises desenvolvidas emcada capítulo deste e-book  se constituirão.

    Os trabalhos aqui reunidos decorreram princi-palmente de dois cursos sobre aspectualização por

    mim ministrados em e , no âmbito do Pro-grama de Pós-Graduação em Letras (Letras Verná-culas) da UFRJ, e apenas um dos textos foi fruto dotrabalho de iniciação científica vinculado ao pro-

     jeto de pesquisa “Modalização e aspectualizaçãoem textos jornalísticos”, que coordeno. Por teremsido, fundamentalmente, decorrentes de trabalhos

    finais das disciplinas, há alguma repetição na apre-sentação dos fundamentos teóricos, retomados acada capítulo. No entanto, cada um dos trabalhosressalta certos procedimentos e categorias aspec-tuais mais que outros, a depender da especificida-de dos gêneros discursivos e dos textos particularesescolhidos para análise ou dos problemas coloca-

    dos em questão.

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    9/233

     A aspectualização temporal é observada nosdois primeiros capítulos. Em “A construção do im-pacto por meio da aspectualização temporal”, Caio

    Cesar Castro da Silva analisa uma crônica sobrea tragédia decorrente das chuvas torrenciais nasserras fluminenses. O autor nos mostra o efeito deimpacto produzido pela superlatividade relativa àtragédia somada a sua extensão e a sua duração.

     A intensidade da tragédia, posta a ver e sentir peloobservador, comentada pelo narrador que sobe a

    serra, é concretizada no discurso por meio da ten-são entre a perfectividade e a imperfectividade,pela aceleração e desaceleração.

    Felipe Lima, em “Londres-: modalização easpectualização no caderno especial do jornal Fo-lha de S. Paulo”, ao analisar as reportagens sobre as

    Olimpíadas em Londres, relaciona modalização easpectualização ao verificar que o julgamento doobservador em relação à competência de jogadorese equipes esportivas afetam a percepção aspectualdo tempo, inscrevendo continuidades ou descon-tinuidades às ações dos actantes, relativamente àprospecção dos jogos olímpicos no Brasil em .

     Ao investigar o discurso de Dilma Rousseff diri-gido aos chefes de Estado no Debate da Assembleiadas Nações Unidas em de setembro de , dis-cutindo temas como a crise econômica, a pobrezae o desemprego num momento de crise mundial,Mayara Nicolau de Paula observa igualmente oemprego da aspectualização temporal e actancial

    no discurso. Aponta como esses recursos permi-

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    10/233

    tem, no discurso presidencial, construir a imagemdo Brasil como um actante construído pela dura-ção cursiva e pela justa medida e equilíbrio, de-

    monstrando estabilidade num cenário mundial deincertezas.

    Nos três capítulos seguintes, novamente a as-pectualização actancial será alvo principal de aná-lise dos autores. Natália Rocha Oliveira Tomaz se-lecionou como objeto a canção Não sou mais disso,

    de Almir Guineto, observando as transformaçõesdo actante, que subitamente deixa de ter um com-portamento excessivo – beberrão e boêmio –, jul-gado negativamente pela sociedade, para assumirum modo de ser mais equilibrado, mediano, ajus-tado às exigências sociais.

    Da mesma forma, a aspectualização actan-

    cial também é alvo de estudo de Marcia AndradeMorais Cabral, ao analisar o livro infantil  A velhacambalhota, de Sylvia Orthof. Ao analisar o modode ser e agir da protagonista da narrativa, a autoramostra a relatividade do julgamento do observadorinstalado no discurso, que ora pode avaliar o modode ser do ator velha como excessivo e disfórico, ora

    pode considerá-lo como normal, dinâmico e eufó-rico, dependendo do ponto de vista que assume,estando em sincretismo com o narrador ou com osdiferentes actantes do enunciado.

    Em “O amor em canção de Clarice Falcão: umaanálise semiótica da aspectualização”, Matheus

    Odorisi Marques estuda três canções da artista,

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    11/233

    que se constroem em continuidade temática. Mos-tra, nas canções, uma gradação passional cada vezmais intensa do actante narrador, cujo modo de ser

    e agir é marcado pelo excesso e pela obsessão, emsua busca pela conjunção amorosa.

    Também analisando a aspectualização pelo viés das paixões, Juliana Oliveira dos Santos mostracomo o rompimento amoroso no poema Soneto deseparação, de Vinícius de Moraes, marca as trans-

    formações passionais subitamente apreendidas esofridas pelo sujeito narrador, marcadas pela per-fectividade temporal, pelo distanciamento espa-cial e pela instabilidade e desequilíbrio do sujeito.

    Enfocando a matéria Perigosa perua, do cader-no televisivo do jornal Extra, Tiana Andreza Melodo Nascimento, em “As paixões e a aspectualiza-

    ção: leitura de cadernos televisivos”, observa oscomportamentos passionais dos actantes atriz epersonagem televisiva, também abordando a gra-duação relativa a seus comportamentos. Se o equi-líbrio e a justa medida são avaliados como eufóri-cos quando se trata do comportamento da atriz, é

     justamente o excesso e o exagero no modo de ser e

    agir da personagem assumida pela atriz, no univer-so ficcional da novela, que cria o efeito de humor eé julgado positivamente pelo observador.

    Os dois capítulos finais apontam como a as-pectualização espacial tem importante papel naconstrução do sentido dos textos escolhidos pelas

    autoras. Claudia Maria Sousa Antunes, em “Aspec-

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    12/233

    tualização espacial: uma proposta de análise” temcomo objeto de estudo um editorial da revista VTViagem e Turismo, edição de setembro de .

    No texto, uma série de rupturas e deslocamentostranspõem os actantes circunscritos em espaçosdescontínuos, estáticos e fechados (um engarrafa-mento ou a redação da revista) para o espaço aber-to de uma ilha ou praia paradisíaca de uma viagemanteriormente realizada, lugares para onde semprese pode “voltar” pela lembrança e pela memória.

    Por fim, em “A aspectualização espacial em re-latos esportivos”, Margareth Andrade Morais Rubi-no, ao fazer a leitura semiótica de narrativas espor-tivas dos jornais Lance e Marca, demonstra que orecurso da aspectualização espacial faz alternar oponto de vista a partir do qual a partida é descrita,

    fazendo recriar os deslocamentos e a movimenta-ção dos jogadores dos times em campo. A mudan-ça constante da posição do observador no campode futebol, suas trajetórias e limites, faz o leitor ex-perimentar a dinamicidade das partidas como se láestivesse, junto aos jogadores.

    Todas essas análises nos fazem concluir, pri-

    meiramente, a ocorrência de uma estreita relaçãoentre aspectualização e modalização, já que a as-pectualidade está inerentemente relacionada a um

     julgamento do observador quanto às durações,às trajetórias e às transformações dos actantes – asuas crenças e a seus saberes; aos limites, aos obs-táculos e às possibilidades interpostos. Esse fenô-

    meno nem sempre fica explicitado nas análises,

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    13/233

    mas sempre é perceptível ou inferível.

    Outra conclusão importante diz respeito à in-

    ter-relação entre aspectualidade temporal, espa-cial e actancial, de modo que, muitas vezes, umapressupõe a outra ou uma está intrinsecamentemisturada à outra (a duração implicada a um des-locamento espacial; a facilidade e a dificuldadena transformação relacionadas a uma rapidez oulentidão na realização das ações, para dar alguns

    exemplos).Por meio desses exercícios de análise, o leitor

    poderá comprovar a importância de perceber a ri-queza do emprego do recurso da aspectualizaçãona construção do sentidos dos textos dos diversosgêneros e em suas possibilidades de leitura.

    Rio de Janeiro, junho de Regina Souza Gomes

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    14/233

    A construção do impacto por meioda aspectualização temporal

    Caio Cesar Castro da Silva (UFRJ / CNPQ )

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    15/233

    . Introdução

     A crônica jornalística é, por excelência, um gênero

    híbrido, pois apresenta como características a nar-rativa de fatos, de origem literária, e a proximidadeao cotidiano e a efemeridade, de origem jornalísti-ca (RORATO & HAUPTMANN, , p. ). Sendoum dos gêneros de domínio jornalístico (GOMES,; MAGALHÃES, ), os eventos nele inscri-tospodem ser observados a partir de seu início, de

    seu fim ou ainda em seu curso. Essas possibilida-des são decorrentes da aspectualização, noção uti-lizada na semiótica para indicar o estabelecimentode um ponto de vista no discurso.

     A expansão do campo de atuação da aspectu-alidade provocou nos estudos semióticos novaspossibilidades de análise e interpretação dos con-teúdos semânticos dos textos, já que a aspectuali-dade não está mais restrita ao tempo, mas se referetambém ao espaço e à pessoa.

    Neste capítulo, examinaremos uma crônicapublicada na revista Rolling Stone  em fevereiro de, que trata dos danos causados na serra flumi-

    nense por fortes temporais, sob a perspectiva daaspectualização temporal. Interessa-nos, portanto,perceber como os eventos são observados, se emsua duratividade ou em sua pontualidade. Alémdisso, por ser um texto com viés trágico – expres-so até no título (Tragédia na Serra) –, o impacto (ZILBERBERG, , p. ) ajuda na construção dos

    sentidos, na medida em que funciona como estra-

    .  A noção zilberbegianade impacto diz respeito

    à união de uma intensi-dade forte e um rápido

    andamento ou, nostermos do autor, pode ser

    considerada como uma“superlatividade” (ZIL-

    BERBERG, , p. ).

    ...

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    16/233

    tégia do enunciador para manipular o enunciatá-rio. Observaremos, para tanto, os mecanismos quesão utilizados para atingir tal objetivo.

    O texto se divide da seguinte forma: na seção ,introduziremos as características do gênero com oqual estamos trabalhando; na , discutiremos al-guns dos postulados básicos da teoria semiótica,focando o debate na vertente tensiva (GREIMAS &COURTÉS, ; ZILBERBERG, ). Na seção ,

    analisaremos o texto Tragédia na Serra, de Fernan-do Gabeira; e, por fim, seguem as consideraçõesfinais.

    . O gênero crônica

     A origem das crônicas remonta aos relatos históri-cos do período clássico, ainda que tenha ganhado

    novas dimensões a partir do florescimento da im-prensa no fim do século XIX. Como a própria eti-mologia do termo indica (crônica vem do gr. khró-nos ‘tempo’), esse gênero tinha como principalfunção registrar os acontecimentos históricos nu-ma dada sequência cronológica. Ao ser integradaao jornal, a crônica ganha características de textos

     jornalísticos, como a efemeridade e o relato da vi-da cotidiana, e não mais de eventos relacionadosa pessoas importantes, como reis e imperadores(JURACH, ). De acordo com o ensaísta AntonioCandido (, p. ), é a dupla filiação do gênero– literária e jornalística – que o faz tão relevante nasociedade atual:

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    17/233

    [...] a crônica não é um ‘gênero maior’ [...] ‘Graçasa Deus’, - seria o caso de dizer, porque sendo as-sim ela fica perto de nós. E para muitos pode servir

    de caminho não apenas para a vida, que ela servede perto, mas para a literatura [...]. Por meio dosassuntos, da composição aparentemente solta, doar de coisa sem necessidade que costuma assumir,ela se ajusta à sensibilidade de todo o dia. Princi-palmente porque elabora uma linguagem que falade perto ao nosso modo de ser mais natural (CAN-DIDO, , p. ).

    Por ser parte de um veículo “transitório”, a crô-nica não se pretende permanecer na memória dosleitores, nem modificar comportamentos; existe,ao contrário, para tornar clara a dimensão dos va-lores e das pessoas (CANDIDO, , p. ).

     A crônica revela também um viés opinativo, fru-to do posicionamento do narrador no conjunto do

     jornal em que é veiculada. Dito de outra forma, oestilo do narrador da crônica está de acordo com oestilo do enunciador figurativizado pelo jornal. Se-gundo Melo (, p. ), “é o palpite descompro-missado do cronista, fazendo da notícia do jornalo seu ponto de partida, que dá ao leitor a dimen-são sutil dos acontecimentos nem sempre reveladaclaramente pelos repórteres ou pelos articulistas”.

     Assim, ao narrador da crônica é facultada a expres-são de opiniões, mesmo que de forma sutil, porqueé o seu ponto de vista que orienta a construção desentidos no texto.

    ...

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    18/233

     A crônica publicada na revista Rolling Stone  queserá analisada tem como público-alvo os jovens etraz notícias de variedades, entretenimento e co-

    tidiano. Intitulada, como dissemos, Tragédia naSerra, o texto é de autoria do político Fernando Ga-beira.

     . Pressupostos teóricos

     A teoria semiótica, de base greimasiana (GREIMAS& COURTÉS, ), se interessa por estabelecer

    os mecanismos que constituem o texto e que per-mitem a sua organização de tal modo que gere aprodução de significado. Dois importantes meca-nismos tratados nesse escopo teórico são a mo-dalização e a aspectualização. Ao propor que ascategorias invariantes mais abstratas organizemo texto, a teoria indica que a variação tome lugar

    nos níveis narrativo e discursivo. Portanto, a mo-dalização opera justamente nesses dois níveis: nonarrativo, explicita a relação de um sujeito comum objeto valor por meio das categorias básicasda modalidade (querer, dever, poder, saber e crer);

     já no discursivo, deixa vestígios que revelam a pre-sença do enunciador. Como afirma Gomes (,

    p. ), a modalização pode sobredeterminar, nonível discursivo, a enunciação ou o enunciado, ouseja, modifica tanto o dizer, quanto o dito.

     A aspectualização, ao contrário, se circunscreveno nível discursivo, instaurando um actante obser-

     vador no texto. É, pois, a partir do ponto de vista

    desse sujeito cognitivo que o discurso será cons-

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    19/233

    truído. Tradicionalmente, a noção de aspecto vemsendo tratada como uma questão referente ao tem-po, cuja marca mais explícita estaria na categoria

     verbal. Contudo, a semiótica expande essa defini-ção para os três componentes básicos da enuncia-ção, que são o tempo, a pessoa e o espaço. Pode-mos caracterizar o tempo através de sua duração, olugar através de um percurso e o ator através de umprocesso de transformação, com o posicionamentodo observador em qualquer ponto da escala, seja

    no início, no meio ou no fim (GOMES, ).

     A distinção básica entre tempo e aspecto, feitano seio da teoria, reside no fato de o tempo ser umacategoria enunciativa própria do ato da debrea-gem. A debreagem ocorre quando o enunciador, aose inserir no discurso, projeta um eu que se opõe

    a um tu, um agora que se opõe a um outrora ou aum futuro, e um aqui  que se opõe a um alhures. Ascategorias temporais projetam no enunciado umaorganização entre uma anterioridade, uma conco-mitância e uma posterioridade em relação ao mo-mento da enunciação. Se a debreagem temporalinscrever uma concomitância com a enunciação, a

    debreagem é enunciativa; se instalar como marcouma anterioridade ou posterioridade em relação àenunciação, é enunciva.

    Enquanto isso, as categorias aspectuais inves-tem no processo das ações, pressupondo barreirastransponíveis ou intransponíveis. Nesse sentido, o

     julgamento do sujeito observador determina o iní-

    cio, o meio ou o fim de um processo, próprios do

    ...

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    20/233

    procedimento aspectual do discurso, ou o toma emsua globalidade, ou mesmo antes ou depois de seuinício ou término, entre outros modos de ocorrên-

    cia aspectual da ação.

    Bertrand (, pp. -) resume de maneiraelegante a atuação do aspecto no discurso:

    Definido em linguística como “ponto de vista dosujeito sobre o processo”, o aspecto modula o con-teúdo semântico do predicado, quer seja no passa-do, quer seja no presente ou no futuro, conformeseja considerado como acabado (como o pretérito)ou não acabado (como o imperfeito), pontual, ite-rativo ou durativo, incoativo (considerado no seucomeço) ou terminativo (considerado na sua con-clusão) (BERTRAND, , pp. -).

    Embora o aspecto possa ser observado pelasperspectivas do tempo, do espaço e do actante,neste trabalho, estamos preocupados com a as-pectualização temporal. Como foi dito, as açõespodem ser observadas como realizadas ou como

    abertas, a depender do ponto de vista estabelecidopelo actante observador. Se realizadas, tomamos asações a partir de seu fim; se abertas, do seu inícioou como uma duração. Essa divisão nos remete aossemas da duratividade e da pontualidade. Este fazreferência ao início (aspecto incoativo) ou ao fim(aspecto terminativo) do desenrolar de uma ação;

    aquele indica a continuidade ou descontinuidade

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    21/233

    do processo. Nas palavras de Gomes (, p. ),

    acontinuidade pode se realizar no discurso soba aspectualidade cursiva e durativa (no tempo),como uma trajetória (no espaço), ou como umatransformação em curso (do ponto de vista do su- jeito), sem que se deva tomar como horizonte umtérmino, um estado ou ponto de chegada definido.(...) A descontinuidade pode se apresentar comoum limite irreversível, uma demarcação a partir da

    qual o evento pode ser tomado em sua totalidade,externamente.

    Com isso, temos o aspecto durativo regido nacontinuidade das ações e o aspecto iterativo cons-truído a partir da sobreposição da descontinui-

    dade na continuidade. O ato de escovar os dentesdiariamente é um exemplo de iteratividade, já quecomporta a repetição de uma ação findável em umprocesso durativo.

    Quanto ao modo como a duratividade de umaação pode ser narrada, Zilberberg (, p. ) pro-

    põe que possa ser fruto de um andamento maislento ou mais acelerado, dependendo das catego-rias discursivas que estiverem em jogo. Nesse sen-tido, a velocidade, em termos teóricos, controla aduração, pois quanto mais velozmente for narradauma ação (ou como ela ocorre no narrado), menorserá o tempo de sua duração e vice-versa. Sendo

    assim, a velocidade com que o evento se desenrolaou é narrado interfere na compreensão, pois, a de-

    ...

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    22/233

    pender desse fator, a retenção de conteúdo se dá demodo mais ou menos eficaz. No tocante à relaçãodo aspecto com a duratividade, Zilberberg (,

    p. ) afirma que “o aspecto é a análise do devir as-cendenteou decadente de uma intensidade , forne-cendo, aos olhos do observador atento, certos mais e certos menos”.

     A estrutura básica da proposta de Zilberbergprevê uma estrutura tensiva com uma relação en-

    tre as dimensões da intensidade, que acomoda osensível, e da extensidade, que dá conta do inteligí- vel. Os valores, nesse quadro de análise discursiva,não são absolutos, mas construídos gradualmentea partir das valências de cada elemento. São pro-dutos, portanto, das duas dimensões apresenta-das anteriormente, a intensidade e a extensidade.

    Com relação a esta análise, buscamos observarcomo uma alta tonicidade aliada a um andamen-to rápido provoca o impacto. Na crônica, preten-demos verificar como a aspectualização temporal,com sua duratividade, própria do processo, atuana emergência do impacto, que orienta a constru-ção de sentidos do texto analisado. Essa questão se

    torna mais clara à medida que percebemos que o valor atingido é resultado de muita intensão comum curto andamento. Em outros termos, o impac-to emerge na construção textual a partir da conju-gação de uma forte tonicidade a um rápido anda-mento, pois o acontecimento acelerado dos fatosnum pequeno intervalo de duração faz com que o

    sujeito não consiga apreender totalmente seu sig-nificado.

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    23/233

    . Análise 

    Nesta seção, realizamos uma análise do texto

    Tragédia na Serra, de Fernando Gabeira, que foipublicado na revista Rolling Stone  de fevereiro de, reproduzida no anexo, ao final do capítulo.

     A tônica do texto analisado é construída pormecanismos discursivos, como a modalização e aaspectualização, por exemplo. Basearemos nossoestudo na aspectualização, buscando compreen-

    der como essa noção auxilia no desenvolvimentode um impacto que se estende, próprio do teor trá-gico das notícias.

    Conforme foi abordado na seção sobre a fun-damentação teórica, por estar inserida entre textos

     jornalísticos, a crônica acaba, por vezes, apresen-

    tando um efeito de imediatez, próprio da lingua-gem jornalística. Essa aparente instantaneidade écriada textualmente por estratégias como a alter-nância entre a debreagemenunciva e enunciativa.O enunciador instaura um marco temporal e asações, que se desenrolam anteriormente ao mo-mento de enunciação, ora são mostradas conco-

    mitantes a esse momento de referência passado,ora têm como marco a enunciação, como se pode

     verificar no trecho a seguir:

    Em , as chuvas impiedosas causaram destrui-ção na região serrana do Rio de Janeiro e geraram

    imagens que ficarão para sempre na memória dopaís. Um ano e muitas promessas depois, a situa-

    . Disponível online nolink: http://rollingstone.uol.com.br/edicao/edi-

    cao-/tragedia-na-serra.

    ...

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    24/233

    ção de risco insiste em permanecer.

    O ano passou rápido. As imagens ficaram na cabe-ça. Foi em fevereiro de . Subimos a região ser-

    rana do Rio de Janeiro em um dia nublado.

    Esse marco temporal (fevereiro de ), mos-trado como uma anterioridade em relação àenunciação, momento ao qual alguns eventos sãoconcomitantes (causaram destruição,  geraramimagens, subimos a região serrana...) se estendeaté o momento presente (insiste em permanecer ). Oemprego do presente e do futuro do presente são asmarcas textuais do sistema temporal do presente,manifestação da debreagem enunciativa.

    Do ponto de vista aspectual, há o uso da perfec-

    tividade ao longo do texto, como, por exemplo, nasequência “O ano passou rápido. As imagens  fica-ram na cabeça. Foi  em fevereiro de . Subimos aregião serrana do Rio de Janeiro em um dia nubla-do [grifo nosso]”. Esse uso do perfectivo nos verbos,além das frases curtas, reitera o efeito de pontuali-dade através da evocação de cenas curtas e pico-

    tadas, criando um cenário de caos semelhante ao vivenciado na tragédia relatada. No trecho selecio-nado, o aspecto pontual reforça a rapidez com queas ações se desenvolvem.

    Percebe-se, ainda, que o enunciador constrói, apartir da projeção de um observador, um jogo en-

    tre a perfectividade e a imperfectividade, que ficamais claro no segundo parágrafo, em que se relata

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    25/233

    o cenário de caos. Para tanto, inicia-se a narraçãocom a perfectividade para, em seguida, desaceleraro ritmo com o uso da imperfectividade. No trecho

    “O clima de emergência estava no ar. Helicópterosmergulhavam  e saíam  das nuvens em missão deresgate. Carros de polícia, caminhões carregadosde água mineral, barreiras caídas – o clima era dedesastre”, o uso de verbos no pretérito imperfeitorevela a escolha do observador em relatar os acon-tecimentos de modo mais lento e prolongado. Há,

    neste caso, um aspecto durativo que contrasta como aspecto pontual do início do parágrafo, como em“um temporal destruiu bairros inteiros”.

    Os termos perfectivo e imperfectivo são co-mumente definidos como representantes de umaação acabada e uma ação inacabada, respectiva-

    mente. Na corrente estruturalista, mais especifica-mente entre os teóricos do círculo de Copenhague,Castilho () afirma que as noções perfectivo eimperfectivo estão para intensivo e extensivo, res-pectivamente. Segundo o autor (, p. ), a ex-tensividade diz respeito ao elemento cujas relaçõescom outros apresenta maiores possibilidades, en-

    quanto a intensividade é representada por elemen-tos que têm relações mais limitadas. Com isso, “oimperfectivo é extensivo e o perfectivo, de funçõesmais delimitadas, é o intensivo” (, p. ).

    Quantitativamente, esse embate aspectualpode ser mensurado por meio de dois valores: nadimensão da extensidade, a lentidão da imperfec-

    tividade é maior, uma vez que prolonga a duração

    ...

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    26/233

    dos acontecimentos; já na dimensão da intensida-de, a perfectividade é consideravelmente tônicae acelerada, a ponto de reconstituir o cenário da

    tragédia. Os valores da comunhão do andamentorápido e da tonicidade alta instauram no discursoo impacto, que é, segundo Zilberberg (: ), “osignificado inapreciável de toda exclamação”.

    Essa “superlatividade” (ZILBERBERG, , p.), ou impacto, revela a intenção do enunciador

    durante a criação de sentidos do texto, que é a demobilizar o enunciatário para adotar uma posição.Essa manipulação é construída aspectualmente,

     visto que os sentidos surgem do ponto de vista doactante observador.

    De acordo com Magalhães (, p. ), ao tratarda seção de Ciência do jornal O Globo, “o observa-

    dor do jornal pode noticiar a ação a partir de umaperspectiva acelerada ou desacelerada, adiantadaou retardada com relação à produção do conheci-mento científico”. Isso indica que o ponto de vista doobservador permite que a narrativa seja enunciadabreve ou longamente, não coincidindo, necessaria-mente, com o desenrolar dos fatos no mundo natu-

    ral. É, na realidade, um julgamento, inscrito discur-sivamente, em que a expectativa pressuposta peloobservador tem por base os acontecimentos e suaduração no mundo “real”.

    Em certo trecho, o enunciador relata como umhomem encontra e enterra o corpo de seu filho em

    apenas quatro orações: “Um homem retirou o cor-

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    27/233

    po do próprio filho dos escombros, conservou-oem uma geladeira, improvisou um caixão e o en-terrou”. A aceleração da narrativa – embora não re-

    flita como a situação, de fato, aconteceu no mundo“real”, segundo a duração de realização esperadade acordo com o julgamento do observador – estárelacionada com a proposta do enunciador de criaro impacto no discurso. Ao relatar os acontecimen-tos de modo brusco, imprimindo um andamen-to mais acelerado ao discurso, a manipulação do

    enunciatário acaba sendo realizada por meio deum choque com alta carga emotiva. O enunciatá-rio se comove justamente por receber informaçõesfortes numa velocidade acelerada.

     Ao contrário, o enunciador pode também im-primir uma desaceleração ao discurso que seja

    mais compatível com o desenrolar dos fatos. É ocaso, por exemplo, da narração do percurso que osujeito realizou desde o centro de Teresópolis até obairro mais atingido pelas chuvas. Levam-se qua-tro parágrafos para descrever todo o caminho, oque torna o discurso mais arrastado. É condizente,contudo, com a intencionalidade do enunciador,

    pois cria textualmente o cenário de destruição queajuda, de outro modo, na construção da superlati- vidade. Pode-se exemplificar esse andamento maisprolongado com a retirada de dois fragmentos dotexto:

     À medida que subia para o ponto mais atingido deTeresópolis – o bairro de Campo Grande –, eu cru-

    ...

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    28/233

    zava com as famílias batendo em retirada, com aspoucas coisas que salvaram, cachorros e gatos deestimação. Carregavam o que podiam, inclusive a

    angústia de escolher o que salvar. Algumas pessoas vasculhavam os escombros. Asnuvens tornaram-se ameaçadoras e os helicópte-ros passavam apressados. Alguém disse: “Olha achuva aí!”

    Com a chuva batendo forte, descemos rapidamen-te. (GABEIRA, )

    Nesses exemplos, percebe-se que a descriçãoé feita minuciosamente, o que cria um efeito delentidão. O aspecto de duratividade perpassa essetrecho, porque o andamento é mais lento, porém atonicidade é menor.

    Do mesmo modo, duas ações podem ser dis-cursivizadas contínua ou pontualmente, depen-dendo de suas características inerentes. Podemosobservar isso, no texto, a partir da notícia do desviode verbas para a ajuda às áreas atingidas, em quesão informados a investigação e o resultado desse

    trabalho. Espera-se que um processo de investiga-ção seja um ato que consome tempo, pois todos osfatos e suspeitos devem ser analisados até que sepossa apontar um culpado. No texto, o enuncia-dor utiliza a imperfectividade para traduzir esseprocesso em “A culpa estava sendo investigada”.

     Além do mais, enumera, no nível da enunciação,

    questionamentos que acarretam na cursividade

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    29/233

    das ações, como em “Como foi possível que esti- vessem ocupadas mais de encostas escorrega-dias na serra fluminense? Como os rios chegaram

    a ser entulhados ao longo desse período? (...) Outrapergunta importante: por que não houve uma ad-

     vertência antes do temporal?”.

     A fim de estabelecer um contraste, na expressãoda sanção – ou seja, no julgamento de um culpa-do para o desvio de recursos – o observador toma

    a ação em sua pontualidade por meio da perfecti- vidade: “ele [o prefeito Jorge Mário Sedlaceck] foiacusado de ter desviado o dinheiro destinado às

     vítimas das enchentes”.

    Os aspectos durativo e iterativo que se manifes-tam no ato do enunciar também aparecem no dito,ou seja, no enunciado. A lexicalização de palavras

    é uma forma de materializar a aspectualização notexto. Observa-se esse expediente em vocábuloscomo “ficarão” e “permanecer” logo no início dacrônica, indicando a duratividade do processo. Damesma maneira, na frase “Desde , a cidade dePetrópolis, uma das mais atingidas, está montando um sistema de estações meteorológicas” o uso

    do gerúndio revela o aspecto durativo, bem como apreposição “desde” no início da sentença.

    Conforme se argumentou anteriormente, nafrase “Durante vários meses, ele foi acusado de terdesviado o dinheiro destinado às vítimas das en-chentes”, o aspecto pontual é percebido através da

    perfectividade. No nível do enunciado, a perífrase

    ...

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    30/233

     verbal “foi acusado” indica a pontualidade pelaqual o processo é percebido. Entretanto, o sintag-ma preposicional “durante vários meses” pres-

    supõe uma continuidade. A descontinuidade dasanção se sobrepõe à continuidade do sintagmapreposicional “durante vários meses”, instaurandoo aspecto iterativo. Em outras palavras, o prefeitofoi acusado, que é uma ação pontual, por um tem-po prolongado, que é contínuo. O contraste entreos aspectos perfectivo e imperfectivo e a iterativi-

    dade indicam a inocuidade das acusações e a posi-ção crítica do narrador.

    Outra forma de manifestar a aspectualização épor meio da construção do enunciado com frasescurtas, seja para imprimir velocidade, seja para re-construir o cenário caótico da destruição do local.

    No parágrafo inicial, as ações são elencadas atra- vés de frases simples justapostas, em sua maioria,e sem nenhum elemento subordinador, como se vêno trecho: “O ano passou rápido. As imagens fica-ram na cabeça. Foi em fevereiro de . Subimos aregião serrana do Rio de Janeiro em um dia nubla-do. (...) Carros de polícia, caminhões carregados

    de água mineral, barreiras caídas – o clima era dedesastre”.

     A leitura da crônica de Gabeira sob o aparato dateoria semiótica permitiu observar de que modoa categoria do impacto é instaurada no texto paramanipular os leitores. Os expedientes da semióti-ca, como puderam ser verificados, auxiliam, por-

    tanto, na interpretação do significado, uma vez que

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    31/233

    atuam na construção dos sentidos do texto.

    . Considerações finais

    Buscamos observar neste capítulo como o pon-to de vista de um observador evoca os sentidos notexto. Para tanto, analisamos uma crônica sobre odesastre ocorrido na serra fluminense a partir daótica da aspectualização, um procedimento dis-cursivo que organiza as ações em processo. Pro-curamos também evidências que confirmassem a

    hipótese de que o impacto foi a categoria pela qualo enunciador planejou a manipulação do enun-ciatário, aliado à expressão de uma extensividadetemporal e espacial da tragédia (ela perdura, atin-giu encostas). Esse impacto se fez sensível,sobretudo, pelo embate entre a perfectividade deações pontuais e a imperfectividade de elementos

    durativos.

     A aspectualização também teve relevante papelna construção do texto quanto ao gênero ao qualestá filiado. A imediatez, própria dos textos jorna-lísticos, aparece pela escolha de frases curtas noenunciado, ou pelo sema pontual pelo qual o pro-

    cesso é apreendido. Assim, a teoria semiótica traz importantes con-

    tribuições para os estudos do aspecto, uma vez quenão se restringe à questão gramatical, mas empre-ende uma discussão sobre como o ponto de vistainstaurado no texto por um observador permi-te novos caminhos de análise do enunciado e daenunciação.

    ...

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    32/233

    Referências

    BERTRAND, Denis. Caminhos da Semiótica literá-ria. São Paulo: , .

    CANDIDO, Antonio. A vida ao rés-do-chão. Pre-fácio do livro Para Gostar de Ler. São Paulo: Ática,.

    CASTILHO, Ataliba. Introdução ao estudo do aspec-to verbal na língua portuguesa. (Tese de Doutora-do) São Paulo: , .

    GABEIRA, Fernando. Tragédia na Serra. In: RollingStone . Edição . Fevereiro de .

    GOMES, Regina S. A Modalização em ReportagensJornalísticas. In: Diadorim: revista de Estudos Lin-guísticos e Literários, Rio de Janeiro: , Progra-ma de Pós-graduação em Letras Vernáculas, n. ,.

    ______. Aspectualização em poemas publicados emsites de poesia. Paris, [texto inédito].

    GREIMAS, Algirdas J.; COURTÉS, Joseph. Dicioná-

    rio de semiótica. São Paulo: Contexto, .

    JURACH, Jussara M. A intertextualidade como re-curso argumentativo e de estilo nas “crônicas jor-nalísticoliterárias” de Arnaldo Jabor no O Estadode S. Paulo. In: VII Congresso Internacional da

     Abralin, , Curitiba. Anais... Curitiba: ABRALIN,.

    MAGALHÃES, Jéssica T. Aspectualização e modali-

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    33/233

    zação em textos de divulgação científica em jornalimpresso. In: Linguasagem. São Paulo, v. , pp. /-, .

    MELO, José M. de. A crônica. In: CASTRO, Gusta- vo de; GALENO, Alex (org.). Jornalismo e literatura:a sedução da palavra. ° ed. São Paulo: EscriturasEditora, .

    RORATO, Kamilla & HAUPTMANN, Claudemir.Crônica como ponte entre jornalismo e literatura.In: Revista Advérbio, vol. , n. Especial, , pp.

    -.

    ZILBERBERG, Claude. Síntese da Gramática Tensi- va. In: Significação: Revista Brasileira de Semiótica,n. . São Paulo: Annablume, .

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    34/233

    Tragédia na serra

    Em , as chuvas impiedosas causaram des-truição na região serrana do Rio de Janeiro e gera-ram imagens que ficarão para sempre na memóriado país. Um ano e muitas promessas depois, a situ-ação de risco insiste em permanecer.

    O ano passou rápido. As imagens ficaram na

    cabeça. Foi em fevereiro de . Subimos a regiãoserrana do Rio de Janeiro em um dia nublado. Li-gamos o rádio e os locutores só falavam naquilo:um temporal destruiu bairros inteiros, bombeirosprocuram os mortos. O clima de emergência esta-

     va no ar. Helicópteros mergulhavam e saíam dasnuvens em missão de resgate. Carros de polícia,

    caminhões carregados de água mineral, barreirascaídas – o clima era de desastre.

    Mas ninguém poderia imaginar o tamanho dodesastre: mortos, ruas riscadas do mapa, famí-lias desfeitas e, no ar, o cheiro dos destroços mo-lhados e dos corpos esperando enterro em mor-gues improvisados. Como foi possível tudo isso?Por que não estávamos preparados? Quais lições

     vamos aprender com a tragédia? As perguntas sesucediam, mas não era um bom momento paraelas.

     À medida que subia para o ponto mais atingidode Teresópolis – o bairro de Campo Grande –, eu

    cruzava com as famílias batendo em retirada, com

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    35/233

    as poucas coisas que salvaram, cachorros e gatosde estimação. Carregavam o que podiam, inclusi-

     ve a angústia de escolher o que salvar. Abraçada a

    um poodle, a mulher o mostrava orgulhosamente.Mas a voz do marido, alguns metros atrás, era im-placável: “O cachorro que estava velho e cego vocêdeixou para trás.”

    Naqueles primeiros momentos, ainda haviao risco de novas chuvas. Só usavam máscaras os

    parentes que iam reconhecer corpos, os funcioná-rios e os voluntários no IML. Um caminhão frigo-rífico de uma peixaria foi colocado na porta pararecolher os corpos excedentes. Nem todos os mo-radores isolados estavam a salvo. Às vezes, o mautempo mantinha os helicópteros no solo. Equipesde TV encontraram uma grávida em trabalho de

    parto. E a trouxeram, perguntando com insistên-cia, ao microfone, se estava se sentindo bem, se eramenino ou menina. Mas nem todos foram ajuda-dos. Um homem retirou o corpo do próprio filhodos escombros, conservou-o em uma geladeira,improvisou um caixão e o enterrou.

    Havia, então, dois obstáculos: os novos tem-

    porais e os boatos sobre arrastões e rompimen-to de represas que não ocorreram. Em Friburgo,um repórter de TV perguntava às autoridades oque fazer: “Fugir ou subir no prédio mais alto?” Aresposta: “Não sabemos, pode ser que os prédiosdesabem também”. Mas o medo real era de umnovo temporal. Alcancei para o bairro de Campo

    Grande, quando todos o abandonavam, e passei

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    36/233

    algumas horas examinando os escombros. No ca-minho, vi carros cobertos de lama, piscinas inva-didas pelo barro, portões soltos na rua, uma igreja

    isolada pelos escombros. Mas o que impressionavaera olhar para cima e ver a quantidade e o tamanhodas pedras que rolaram da montanha. Cheguei an-dando ao bairro destruído. Nosso Gol ficou no ca-minho, incapaz de vencer os obstáculos – pedras,buracos, inundações. Lá em cima, vi algo parecidocom o fim do mundo. Não havia quase nada em pé.

    O interior das casas estava revirado. Algumas pes-soas vasculhavam os escombros. As nuvens torna-ram-se ameaçadoras e os helicópteros passavamapressados. Alguém disse: “Olha a chuva aí!”

    Com a chuva batendo forte, descemos rapida-mente. Voltaria muitas vezes, ao longo do ano para

    entender o que passou e o que estava sendo feitopara atenuar a dor daquelas pessoas. Era uma pro-messa.

    Os primeiros dias após uma tragédia são osmais difíceis. Muitos corpos não foram encontra-dos. O anúncio de que o governo disporia de até R milhões para os reparos tranquilizou a opinião

    pública. E alguns heróis que não tiveram espaço noauge da crise apareciam agora, como o cachorroCaramelo, que ficou durante muito tempo ao ladodo túmulo da dona, Cristina Maria da Silva. Espe-cialistas explicaram o feito de Caramelo. Era capazde identificar sua dona, embaixo da terra, porqueum cachorro tem milhões de células olfativas

    contra milhões dos seres humanos.

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    37/233

    Passada a fase inicial, a poeira e a culpa domi-naram a cena. Os moradores de Friburgo, que, an-tes, só usavam máscaras ao reconhecer os mortos,

    andavam mascarados pelas ruas. Os estoques seesgotaram rapidamente. A culpa estava sendo in-

     vestigada. Como foi possível que estivessem ocu-padas mais de encostas escorregadias na serrafluminense? Como os rios chegaram a ser entu-lhados ao longo desse período? Técnicos do Crea(Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura)

     vieram à região para mapear as encostas perigosase concluir o mesmo que a CPI da Assembleia con-cluiu: não foi uma tragédia natural, mas o resulta-do de um longo período de ocupações irregulares.Outra pergunta importante: por que não houveuma advertência antes do temporal? Ele foi o resul-tado da associação da frente fria com a chamada

    “zona de convergência” – nuvens que se estendemdo Norte do país até o litoral do Sudeste.

    O Brasil ainda não estava preparado para pre- ver. Desde , a cidade de Petrópolis, uma dasmais atingidas, está montando um sistema de estações meteorológicas. Foram investidos R

    mil, mas a prefeitura não tinha os R mil ain-da necessários para a conclusão da montagem. Aprevisão falhou. Outro mecanismo que costumaser acionado nessas horas: comunicados urgentesaos prefeitos de áreas que podem ser atingidas. Ogoverno federal afirma que mandou mensagens.Perderam-se nas gavetas da burocracia.

      Os holofotes se apagam, os jornalistas desar-

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    38/233

    mam suas tendas e o observador comum acha quetudo voltou ao normal. Mas é exatamente aí queocorrem as grandes dificuldades. As verbas que o

    governo anuncia no momento da tragédia quasenunca expressam a realidade. Demoram a sair e,assim mesmo, só uma pequena fração do prome-tido chega aos necessitados. Passado o primeiromês, mil pessoas continuavam desabrigadas naserra fluminense. Sete mil famílias foram cadastra-das para receber o aluguel social durante meses.

    Mas nem todas conseguiram. O aluguel social é deR . Como conseguir casas a esse preço? O pri-meiro movimento, típico de mercado: os aluguéissobem com o aumento da procura.

    No Vale do Cuiabá, em Itaipava, onde o rio San-to Antônio arrastou muitas casas e barracos, não

    havia solução no horizonte. A maioria trabalha empousadas de luxo ou nos haras da região. Não hácasas para se alugar. Os moradores modestos te-riam abrigo se saíssem de lá, mas perderiam o em-prego.

    Poeira, escombros, dificuldade de alojar as pes-soas – no princípio de março de , os moradores

    de Teresópolis e Friburgo perceberam que haviaalgo de errado. Falava-se em milhões de reais, masnão conseguiam ver nenhuma melhoria em seucotidiano. Foi aí que surgiu a primeira manifesta-ção. O local escolhido foi a praia de Copacabana.

     A forma de luta para as circunstâncias visava prin-cipalmente a televisão: cruzes foram enterradas na

    areia da praia para lembrar os mortos. O movimen-

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    39/233

    to em Teresópolis visava diretamente o prefeitoJorge Mário Sedlaceck. Durante vários meses, elefoi acusado de ter desviado o dinheiro destinado às

     vítimas das enchentes. Na época, era membro doPT, mas o próprio partido achou um jeito de afastá--lo, por discordar de sua atuação. (GABEIRA, )

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    40/233

    Londres-2012: modalização easpectualização no caderno

    especial do jornal Folha de S. Paulo

    Felipe Lima (UFRJ / PIBIC)

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    41/233

    . Introdução

    Mediante o uso das ferramentas teórico-metodoló-

    gicas da semiótica de linha francesa, observaremosas relações entre a modalização e a aspectualiza-ção no discurso do jornalismo esportivo, num cor-pus composto por matérias publicadas no cadernoespecial Londres /Esporte   do jornal Folha deS. Paulo, no período de de julho a de agos-to de . Partimos da noção de que o jornalismo

    esportivo pode possuir características textuais queo inserem no espaço do jornal impresso como umgênero específico de discurso. Assim, procuramosobservar os recursos utilizados pelo enunciadorna construção do sentido, com especial atençãoaos valores modais e aspectuais, e suas relaçõesde pressuposição, a fim de se chegar a uma gene-

    ralização que exprima o vínculo entre as duas ca-tegorias. Numa perspectiva abrangente, algunscritérios caros à prática jornalística são colocadosem evidência no momento em que notamos a pre-sença do narrador na escolha dos valores positivose negativos no texto, assim como a visão do desen-

     volvimento das ações, que tornam mais claros os

    efeitos de sentido de objetividade e imparcialida-de construídos pela relação entre o enunciador e oenunciatário.

    . Modalização e aspectualização

     A compreensão de uma categoria linguística relati- va ao estudo da semiótica francesa deve ser pauta-

    da pelo nível de pertinência na qual ela se situa. Ou

    -...

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    42/233

    seja, ao tratarmos da definição da modalização eda aspectualização, estabelecemos o discurso (pla-no transfrasal) como a esfera concernente à análi-

    se. Esse adendo se faz necessário uma vez que ascategorias modais e aspectuais já fazem parte dosestudos gramaticais tradicionais, sobretudo os es-tudos relacionados ao verbo. Todavia, a diferençade tratamento dada pela semiótica, que amplia osconceitos mencionados, justifica uma explicaçãoparticular.

    Situamos que a semiótica procura depreender aestrutura da significação de um texto a partir de umpercurso gerativo de sentido composto por três ní-

     veis: o nível fundamental, o narrativo e o discursi- vo. Dessa forma, opera-se com um modelo hierár-quico de complexificação do sentido que percorre

    do mais abstrato ao mais concreto, sendo que cadaum dos níveis possui uma sintaxe e uma semânti-ca próprias. O conceito de modalização pode serapreendido no nível narrativo e no nível discursivoao passo que o conceito de aspectualização, numsentido mais estrito, faz parte do nível discursivo.Jacques Fontanille define a modalização como:

    predicados que atuam sobre outros predicados e,portanto, eles são predicados que modificam o es-tatuto de outros predicados. Ademais, eles assegu-ram uma mediação entre os actantes e seu predi-cado de base no interior de uma cena predicativa.(FONTANILLE, , p. )

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    43/233

     A manifestação linguística das modalidadespode ocorrer por meios lexicais ou por meio gra-maticais. Assim, reforçamos que, para a semiótica,

    a modalização não fica restrita ao estudo dos ver-bos ditos modais, conforme a visão tradicional dagramática. Os predicados, nesse caso, são da or-dem do querer, do dever, do poder e do saber. Alémdisso, existem as modalidades mais complexas, re-lacionadas ao ser e ao crer, que fizeram parte daspesquisas do que Fiorin () chama de terceira

    fase dos estudos sobre a modalização, na qual osenunciados veridictórios, que se preocupam coma relação entre ser e parecer podem ser sobrede-terminados pelas modalidades epistemológicas docrer. Desse modo, a interpretação dos textos se voltaao julgamento e à interpretação das relações enun-ciativas. Logo, o predicado regente e o predicado

    regido podem assumir no discurso outras formasde expressão além das marcas verbais, como dizDenis Bertrand (, p. ), ao afirmar que essasfunções podem ser expressas também pelos “for-mantes figurativos (um automóvel, por exemplo,pode modalizar seu proprietário pelo /poder/)”.Ou seja, um elemento invariante, do nível narra-

    tivo, pode ser representado por variantes no níveldiscursivo. Exemplificamos com o caso do seguin-te enunciado da Folha de S. Paulo (//): “Otécnico Jorge Barcelos trouxe para o Reino Unido das jogadoras que ficaram em segundo lugarna última edição dos Jogos – a medalha de ouroficou com os EUA.”. Nota-se que o alto número de

     jogadoras experientes figurativiza o valor modal do

    -...

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    44/233

    poder, uma vez que o enunciado sanciona a ca-pacidade de performance da seleção pontuandoa classificação na competição anterior.

     A noção de aspecto na semiótica se distanciada definição linguística estrita, de natureza mor-fológica. Sobretudo por sobredeterminar os trêscomponentes da enunciação: o tempo, o espaçoe a pessoa, ampliando a definição de aspectuali-zação como: “a disposição, no momento da dis-

    cursivização, de um dispositivo de categorias as-pectuais mediante as quais se revela a presençaimplícita de um actante observador” (GREIMAS& COURTÉS, , p. ). Esse actante observa-dor julga o processo da ação conforme um pon-to de vista. Desse modo, no nível mais profundo,as ações podem ser interpretadas conforme sua

    continuidade, não-continuidade, descontinuida-de e não-descontinuidade. Toda situação implicaum início, um meio e um fim, como um momen-to antes de seu início e um momento depois deseu fim, que podem manifestar a noção de dife-rentes aspectos das categorias mais gerais, comoo imperfectivo, o cursivo, o perfectivo, o iterativo,

    entre outros. Barros (, p. ) atenta para o fatode que a aspectualização transforma as “funçõesnarrativas, de tipo lógico, em processo, graças aoobservador colocado no discurso enunciado”.

    Trataremos especificamente da aspectualiza-ção temporal. Contudo, salientamos que esta nãose confunde com a descrição do tempo verbal e

    não é subordinada às formas dêiticas da enun-

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    45/233

    ciação. Tomamos como exemplo a frase a seguirretirada da Folha de S. Paulo (//): “Consi-derado carro-chefe do COB (Comitê Olímpico Bra-

    sileiro) para a Olimpíada do Rio-, o vôlei bra-sileiro inicia hoje sua caminhada em Londres sobforte pressão.” Do ponto de vista da enunciação, atemporalização marca a concomitância com o mo-mento da enunciação, marcada linguisticamentepelo emprego do presente do indicativo (“inicia”) epelo advérbio “hoje”. Já o aspecto incoativo da ação

    é descrito como o início de uma ação, o começodos jogos para a seleção de vôlei, uma fase mar-cada pela não-descontinuidade, já que segmentauma duração, indicando sua fase inicial, lexicaliza-da pelo verbo.

    No caso do Jogos Olímpicos de Londres, nota-

    mos que, em relação ao Brasil, compreendemosdois marcos temporais que tornam complexas asrelações aspectuais. Neste caso, os jogos de Lon-dres- e as Olimpíadas do Rio-. A comple-

     xidade citada se torna evidente quando uma açãoque prevê, de maneira lógica, um final com o tér-mino dos jogos correntes (Londres-) é enun-

    ciada como uma etapa, um intervalo ou uma conti-nuidade/descontinuidade em relação aos jogos de. A relação com a modalização é assinalada aoatentarmos para os valores negativos ou positivosdos enunciados, conforme o valor modal atribuídoaos actantes, que podem ser a delegação brasilei-ra, uma equipe, ou um atleta. Na matéria “Tombo”,

    do dia //, que descreve o desempenho do

    -...

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    46/233

    atleta César Cielo durante os jogos e a sua derrotana última disputa, o aspecto perfectivo – no qual oprocesso é visto em sua totalidade, de maneira irre-

     versível – está relacionado ao não saber fazer , queaparece reiteradamente no texto, como no enun-ciado “Após passar em branco nos m livre, Cie-lo falha na defesa do título olímpico dos m e saide Londres com apenas uma medalha de bronze”.

     A expectativa do desempenho positivo gerada pelonarrador, vinculado às conquistas passadas, tor-

    nam a conquista de uma medalha de bronze umfato negativo. Pesamos na análise todos os termosque sugeriam a concretização do objeto-valor datransformação narrativa, como a medalha de ourono caso do nadador César Cielo que, ao não serconquistada como previa o narrador, confere umefeito de sentido específico à medalha de bronze.

    Reforçamos que, para cada texto, o narrador impri-me um sentido diferente para as vitórias e derrotasconforme o objeto-valor projetado na narrativa,seja ele uma medalha, um bom desempenho, umacolocação próxima aos vencedores, a subida ao pó-dio, etc.

     . ResultadosNa primeira etapa da pesquisa que empreende-mos, estudamos a relação entre a modalizaçãoe a aspectualização dos enunciados do jornalis-mo esportivo com a finalidade de compreenderde modo mais preciso como as expectativas do

    observador

     podem ser projetadas na visão aspec-

    .  Devemos realizaruma distinção entre os

    termos observador enarrador do ponto de

     vista da semiótica fran-cesa. Conforme definemGreimas e Courtés (,

    p. ), o observador, de-legado pelo enunciador

    por meio da debreagem,pode ser reconhecido

    pela análise semântica, o

    que revela sua presençano interior do discursoe, “da mesma forma, as

    categorias aspectuais sóse explicam pela presen-ça do observador, que se

    pronuncia implicitamen-te sobre o fazer do sujeito

    no momento de suaconversão em processo”.

     Ao passo que, o narrador/narratáriosão sujeitos de-legados pela enunciação

    enunciada, o “eu” e o “tu”e “podem encontrar-se

    em sincretismo com umdos actantes do enuncia-

    do (ou da narração), talcomo o sujeito do fazerpragmático ou o sujeitocognitivo, por exemplo”(GREIMAS & COURTÉS,

    , p. ).

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    47/233

    tual do tempo de uma ação, de suas fases e de-senvolvimento. As conclusões apontaram para arecorrência de certas projeções conforme o juízo

    assumido pelo observador, seja ele positivo ou ne-gativo, e a visão do grau de conclusão das ações, se-

     jam elas, por exemplo, não-começadas ou acaba-das e concluídas. Posteriormente, foi feita a análisede um recorte maior do corpus, um número maiorde textos, para se atingir um grau satisfatório de ge-neralização.

    No segundo momento, empreendemos o es-tudo do caderno especial dos Jogos Olímpicos deLondres-, publicado pelo jornal Folha de S.Paulo  entre os dias de julho a de agosto de. Conforme citado anteriormente, observamosque as ações são compreendidas em seu processo

    de acordo com dois intervalos temporais (Lon-dres- e Rio-) e três actantes: o país, a equi-pe e o atleta. Conforme o juízo positivo, equalizadoou negativo do observador em relação à competên-cia dos actantes, o desenvolvimento dos processosé visto de maneira particular, gerando efeitos desentido complexos que reforçam a ligação entre

    a modalização e a aspectualização. Encontramostrês tipos de recorrência que atestam essa relação.

    Os enunciados que demonstraram uma ava-liação positiva das ações dos actantes tendem ainstaurar uma duração temporal dos eventos como objetivo de se marcar uma continuidade entre oque acontece no ano de e a preparação para

    uma nova etapa, a ser realizada em . Deta-

    -...

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    48/233

    lhadamente, observamos que os esportes de me-nor prestígio social que se sobressaíram durante acompetição de Londres são modalizados por um

    saber fazer , que possui o sentido de competênciae, além disso, um sentido de superação, por contada sobreposição de vários obstáculos presentes nanarrativa. Nesse caso, o valor aspectual mais evi-dente é o da duratividade. O boxe serve de exemplopara essa generalização. A matéria do dia //,intitulada “O Brasil no jogos”, faz um balanço do

    desempenho das principais modalidades esporti- vas que se destacaram durante Londres-. Ne-las, vemos o seguinte trecho:

     A boxeadora Adriana Araújo e os irmãos Esquivae Yamaguchi Falcão puseram fim a um jejum de

    anos sem medalhas olímpicas no boxe para o Bra-sil.

     A primeira e até então única havia sido o bronze deServílio de Oliveira, conquistado nos Jogos da Cida-de do México, em .

    O campeão mundial Everton Lopes caiu logo emsua estreia nos Jogos de Londres.

    Para tentar manter os atletas no amadorismo, a Aiba (Associação Internacional de Boxe Amador)ofereceu a eles contrato para participarem da APB,sua liga profissional.

     A vantagem, além do pagamento de bolsas, é a ma-nutenção de seus status de amadores, o que permi-tiria a participação na Rio-. (Folha de S. Paulo,//, grifo nosso).

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    49/233

    O saber fazer   está figurativizado pela conquis-ta de medalhas e pelo feito que compreende o fimde um jejum de conquistas de mais de anos. A

    conclusão de uma ação, os jogos de Londres-,é enunciada pelo narrador como uma etapa para aprovável participação na Rio-. Ou seja, é vistacomo uma duratividade possível por conta das vi-tórias, ainda que a ação não possa ser entendidacomo certa, como está projetada na frase “o quepermitiria a participação na Rio-”, exprimin-

    do uma posição do narrador em apresentar o fatocomo possível, mas não como certo, modalidadesmarcadas linguisticamente pelo lexema “permitir”no futuro do pretérito, com valor metafórico.

    Em alguns casos, o julgamento positivo do ac-tante de uma ação acabada em pode atualizar

    a ocorrência de outro intervalo temporal em . As equipes que possuem um histórico de vitóriassão projetadas e julgadas pelo observador de modomais complexo, ou seja, a análise semântica do as-pecto decorre de evidências positivas e negativas,implícitas às ações julgadas pelo observador. A al-ternância entre a competência e a incompetência

    dos actantes no decorrer das ações/transforma-ções operadas na narrativa produz efeitos aspectu-ais perfectivos e durativos. As matérias sobre os jo-gos da equipe de vôlei mostram uma oscilação: ospercalços na trajetória que levaram à conclusão dacompetição e à vitória (aspectos perfectivo e con-cluso) instauram também, no último texto, uma

    duratividade, uma continuação para as olimpíadas

    -...

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    50/233

    do Rio-. Os valores modais do saber fazer  e donão saber fazer   estão presentes nos enunciados,como no exemplo da matéria “Bis”, que lemos a se-

    guir.

    Quatro anos após fazer uma campanha irrepreen-sível em Pequim, perdendo só um set, a seleçãofeminina experimentou uma trajetória cheia depercalços, suor, drama e, sobretudo, superação nos

     Jogos de Londres. A campanha na capital britânica pode ser traduzi-da pela história da última partida. Um início desas-troso, marcado por uma virada gloriosa.

     A primeira fase e o primeiro set da final foramigualmente decepcionantes, o que deixou a torcidadesconfiada em relação à capacidade de recupera-

    ção da equipe.No início do torneio, o Brasil acumulou uma vi-tória suada e duas derrotas, o que lhe deixou emsituação complicada, dependendo de outros resul-tados para se classificar.

      (…)

    Inicialmente tímida, a torcida no EarlsCourt em-balou suas meninas de novo com o grito: “O cam-peão voltou”. Era a mesma frase que fora cantadainicialmente na vitória contra as russas.

    Depois, só vitórias. Um passeio no segundo set por a . Uma parcial mais equilibrada no terceiro,com a e o  triunfo no quarto set , por a .“Quando acabou o jogo, eu só pensava na nossasuperação”, disse Sheilla.

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    51/233

    No Rio-, os torcedores terão que mudar umpouco o cântico. “O bicampeão voltou” será maisapropriado. (Folha de S. Paulo, //, grifo nosso)

     A perfectividade aspectual é percebida pelosentido de totalidade em que os jogos de Lon-dres- são enunciados, ao passo que, em rela-ção ao Rio-, ocorre um efeito de duratividadepor meio da vitória e da projeção da participação

    do actante equipe nas partidas de , e da ex-pectativa de início de uma competição ainda nãocomeçada, presente na debreagem interna, que dá

     voz ao canto da torcida.

    Diferentemente das narrativas acima analisa-das, o julgamento negativo dos actantes pode pro-

     jetar uma parada no processo, sem que se cons-titua uma conclusão. Os valores modais do nãopoder fazer  e do não saber fazer  produzem o senti-do de incompetência e impossibilidade nos textosanalisados, como no exemplo do time de basquetemasculino (Folha de S. Paulo, //), em que“o time do ‘quase’ não teve pernas para virar. Teve

    um aproveitamento pífio nos lances livres. Desper-diçou nada menos que dos tiros a que teve di-reito, quatro na última parcial”. Nessa passagem, aqualificação da ação do sujeito time  pelo advérbio“quase”, o uso do verbo “desperdiçar”, o adjetivo“pífio” e o não saber fazer  expresso por “não tevepernas para virar” geram esses efeitos de sentido

    disfóricos. Distinguimos no corpus que, quandose narra uma derrota ou a conquista de uma me-

    -...

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    52/233

    dalha que não seja aquela projetada previamenteno discurso, o observador pode avaliar as açõescomo negativas, constituindo aspectualmente um

    segundo marco temporal, com o sentido de limitepara os actantes, de aspecto acabado ou de não--continuidade. É o caso do exemplo da matéria “Eo vento levou”, que trata da derrota da corredoraFabiana Murer.

    Campeã mundial do salto com vara e há quatroanos treinando pelo sonho olímpico, Fabiana Mu-rer desistiu de sua última chance de ir à final deLondres- por causa do vento forte . Antes disso,errara três dos seus quatro saltos nos Jogos.

    Resultado: a maior candidata a pódio do atletismonacional foi eliminada na fase classificatória da

    Olimpíada.[…]

    Seu desempenho foi pior do que o décimo lugar emPequim, quatro anos atrás. Desta vez, Murer aca-bou apenas na ª colocação.

    […]

    Outra diferença foi a explicação da derrota. NaChina, foi o sumiço de uma vara. Na Grã-Bretanha,o vento forte.

    De fato, havia condições climáticas desfavoráveisontem no Estádio Olímpico.

    […]

     Agora, ela vai pensar o que fazer na carreira. Estu-

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    53/233

    da parar por um ano para depois treinar para os Jogos Olímpicos do Rio, em .

     Até lá, resta saber qual será o novo episódio da no-

    vela olímpica de Murer  (Folha de S. Paulo, //,grifo nosso).

    Percebemos que a avaliação negativa do narra-dor ocorre mesmo com a discursivização dos ele-mentos que impossibilitam a realização da ação,

    como o vento forte, o não poder fazer  somado aoserros, concretizando a modalização das ações pelo não saber fazer . As ações da atleta, julgadas emetapas cujas fronteiras são os jogos olímpicos, orarepresentam o aspecto acabado, perfectivo (em re-lação à campanha Londres-, neste caso), oracomo numa fase de um processo que se inicia em

    Pequim e se projeta para Rio-. Em rela-ção a este último marco, percebe-se a discursivi-zação do aspecto de interrupção, de suspensão,de não-continuidade da preparação em busca damedalha, figurativizado pela interposição de obs-táculos (“vento forte”, “condições climáticas”) quelevam ao fracasso em Londres-, o que se pode

    comprovar pelos dois últimos parágrafos do trechocitado acima.

    . Conclusões

    Identificamos que o juízo do observador emrelação à competência dos actantes confere dife-rentes sentidos aspectuais aos eventos. Esse juízodecorre de uma leitura global dos textos, median-

    -...

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    54/233

    te a aferição do objeto-valor, que pode mudar deenunciado para enunciado, mas que, na leitura doconjunto do corpus, mostra uma recorrência para

    cada esporte descrito.

    No caso de vitória, conquista de medalha oubom desempenho, o processo de preparação paraos jogos do Rio- se torna um intervalo tempo-ral atualizável, no qual Londres- pode ser vis-to como uma etapa de preparação para um evento

    futuro. O julgamento baseado na crença e na con-fiança em prospecção está estreitamente relacio-nado à aspectualização contínua, cursiva, em aber-tura. Quando o julgamento dos actantes é negativo,como é evidente na estrutura modal do não saber fazer , com sentido de incompetência, ou do juízoepistêmico do não crer ser , com sentido de descon-

    fiança, a visão do processo em relação ao marcotemporal Rio- é tida como incerta ou não-rea-lizável, do ponto de vista modal e como não-contí-nua, suspensa, do ponto de vista aspectual. Existeuma oscilação nos resultados que não permite umageneralização completa neste momento. Apesar dealgumas variantes textuais no conjunto do corpus,

    não se pode deixar de ressaltar que há uma forterelação entre os valores atribuídos às ações dos ac-tantes e a visão do desenvolvimento dos processosno caso dos jogos olímpicos, que possuem uma re-corrência que está subordinada ao marco temporalRio-.

    Essas observações reforçam a conclusão da pri-

    meira etapa da pesquisa, na qual ponderamos as

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    55/233

    relações entre a modalização e a aspectualização.Nesse momento, concluímos que os sentidos deobjetividade e imparcialidade são abalados pela

    leitura, se afastando gradualmente conforme aexpectativa de êxito gerada pelo narrador. Desseforma, podemos inferir que a relação entre a mo-dalização e a aspectualização coloca em primeiroplano as estratégias textuais que almejam à persu-asão e à veridicção dos textos.

    -...

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    56/233

    Referências

    BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria do discurso:

     fundamentos semióticos.  São Paulo: Humanitas/FLLCH/, .

    BERTRAND, Denis. Caminhos da semiótica literá-ria. Bauru, São Paulo: , .

    FIORIN, José Luiz. Em busca do sentido - estudosdiscursivos. São Paulo: Contexto, .

    FONTANILLE, Jacques. Semiótica do discurso. SãoPaulo: Contexto, .

    FONTANILLE, Jacques; ZILBERBERG, Claude.Tensão e significação. São Paulo: Discurso Edito-rial, .

    GOMES, Regina Souza. Aspectualização em poesiaseletrônicas. [texto inédito]

    GREIMAS, Algirdas J.; COURTÉS, J. Dicionário desemiótica. São Paulo: Contexto, .

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    57/233

    Análise semiótica daaspectualização no discurso

    da presidente Dilma Rousseff 

    Mayara Nicolau de Paula (UFRJ / CNPq)

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    58/233

    . Introdução

    O presente trabalho analisa o discurso da presi-

    dente do Brasil dirigido aos chefes de Estado noDebate da Assembleia das Nações Unidas, quediscute temas como a crise econômica, pobreza edesemprego, em de setembro de . Preten-do analisar esse discurso sob o ponto de vista daaspectualização temporal e actancial, focalizandoas referências feitas ao governo brasileiro atual e à

    situação política e econômica do Brasil em compa-ração com os outros países do mundo. O texto seinsere no atual contexto sócio-político internacio-nal.

     A análise tem como base teórica a Semióticafrancesa que, com seu aporte teórico, permite umestudo aprofundado do texto. Partimos do enten-dimento de que um texto é produto da união deum plano da expressão e um plano do conteúdo, sefundamenta em relação de oposições e está direta-mente relacionado ao contexto discursivo no qualestá inserido.

    . Aporte teórico-metodológico

     A semiótica entende o sentido do texto como umpercurso gerativo. Esse percurso apresenta três ní-

     veis diferentes, a saber: nível fundamental, nívelnarrativo e nível discursivo (FIORIN, ). É nonível fundamental que se encontram as oposiçõesbásicas sobre as quais o texto se fundamenta. Onível narrativo é um nível intermediário e é neleque temos a instalação do sujeito e do seu obje-

    . Texto na íntegradisponível em: http://

     www.planalto.gov.br/acompanhe-o-

    -planalto/discursos/discursos-da-presidenta/

    discurso-da-presidenta--da-republica-dilma-

    -rousseff-na-abertura--do-debate-geral-da-a-

    -assembleia-geral-das--nacoes-unidas-nova-

    -iorque-eua

    ...

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    59/233

    to de busca, assim como os papéis narrativos quese representarão no decorrer das ações. Por fim,no nível discursivo, instaura-se a enunciação, sua

    projeção no discurso e estabelecem-se as relaçõesentre enunciador e enunciatário. Entende-se aquique a apreensão do sentido não se dá somente peloque está dito (enunciado), mas também pela formade dizer (enunciação). É no nível discursivo quese observa, também, a configuração semântico--discursiva dos textos, que se organizam na relação

    tema x figura.

    No caso do texto analisado aqui, a oposiçãocentral se define pelo contraste entre um momentodelicado no que diz respeito à economia mundiale a possível oportunidade positiva que os paísespodem tirar desse momento. Portanto, o tema em

    questão é figurativizado pela crise econômica deum lado e, de outro, a reviravolta que pode aconte-cer a partir dessa crise.

    O texto se estrutura em torno do seguinte eixo: oproblema da crise econômica que atinge o mundo,inclusive os países desenvolvidos – as dificuldadesimpostas pela crise – e as possíveis soluções para

    o problema em questão. Tal organização estruturalserá analisada sob a ótica da aspectualizaçãopelaperspectiva da semiótica, como já comentei nosparágrafos iniciais.

     Ainda que meu foco seja a aspectualização tem-poral e actancial, é importante que seja feita uma

    breve distinção entre esses procedimentos que se-

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    60/233

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    61/233

    sua duratividade (aspecto cursivo ou iterativo) oupela sua pontualidade, (aspecto incoativo ou ter-minativo) (SANTORO, ). A aspectualização

    pode ser observada com base no aspecto quanti-tativo (mais ou menos), que focaliza o andamen-to da ação e o desenrolar do processo (lentidão xrapidez), que abrevia ou alonga a duração (ZIL-BERBERG, ). Um dos enfoques da presenteanálise será a aspectualização temporal, que podeser representada, tanto quanto as outras formas de

    aspectualização(actancial ou espacial), pelo se-guinte quadrado semiótico que abrange as catego-rias mais gerais, de nível mais profundo, segundoproposição de Gomes ():

    Figura I: categorias aspectuais (GOMES, 2001)

    Se levarmos em conta o tempo, por exemplo, acategoria continuidade diz respeito ao aspecto cur-sivo, à imperfectividade. A não-descontinuidadediz respeito à segmentação ou às etapas de umatransformação (aspectos incoativo, durativo, ter-minativo). A descontinuidade, por sua vez, se re-fere ao aspecto perfectivo, à imposição de limitesirreversíveis. Por fim, a não-continuidade se carac-teriza por ser uma suspensão com possibilidade de

    Continuidade

    Não continuidadeNão descontinuidade

    Descontinuidade

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    62/233

    ser reversível. Entende-se, portanto, que os aspec-tos (imperfectivo, perfectivo, cursivo, etc.) são atu-alizações dessas categorias mais gerais presentes

    no quadrado semiótico (GOMES, ).

     A presidente, no discurso analisado neste tra-balho, deseja passar uma mensagem de continui-dade, que seria a manutenção de uma trajetóriaque já está em curso, no caso o sistema de governo.Para isso, ela se esforça para não transmitir uma

    noção oposta, a de descontinuidade, que seria orompimento total com as ações anteriores e evitatambém a noção de não continuidade, pois estanegaria a continuidade que ela pretende manterem relação ao governo precedente.

    Fiorin () propõe categorias de análise parao estudo do ator, partindo do princípio de que “a

    aspectualização do ator mostra a qualidade da per-formance” (FIORIN, , p. ). Tal qualidade édeterminada por um observador que apresentaum julgamento social das situações. O autor, usan-do uma lógica gradual, afirma que, socialmente, oexcesso e a falta são considerados disfóricos (ne-gativos). A neutralidade ou justa medida é o ponto

    que recebe a avaliação positiva (eufórica).

    Entende-se, portanto, que o ator pode ser ob-servado no quesito  falta x excesso x justa medida(FIORIN, ), aos quais serão atribuídos valoreseufóricos e disfóricos, dependendo do texto. Essaobservação e atribuição de valores não provém de

    um ponto de vista individual, mas sim de um jul-

    ...

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    63/233

    gamento social relativo ao modo como o ator seapresenta no contexto. Isso significa que um sujei-to ambicioso pode ter seu comportamento avalia-

    do tanto positiva quanto negativamente, a depen-der do contexto discursivo. Assim como um sujeitoacomodado ou desinteressado pode receber valo-res eufóricos ou disfóricos de acordo com o con-texto em que está inserido. Para Fiorin, a justa me-dida, no caso desse sujeito citado como exemplo,seria o desprendimento.

    Logo, entende-se a aspectualização como oconceito que dá conta de um processo em anda-mento, uma transformação, uma trajetória. A esseprocesso podem ser interpostas barreiras, marcose intervalos que serão observados por um actanteimplicitamente instaurado que produzirá um jul-

    gamento a partir de uma percepção ou ponto de vista.

     . A aspectualização temporal no discurso daPresidente Dilma Rousseff 

    O objetivo geral do discurso feito pela presidente étransmitir a ideia de manutenção de um modelo de

    governo que, de acordo com seu julgamento, estáfuncionando muito bem e só tem trazido benefí-cios e crescimento ao Brasil. O governo anterior (odo presidente Luís Inácio Lula da Silva) teve altoíndice de aprovação popular. Como candidata quedaria continuidade a esse governo, Dilma Rousseffnão deseja demonstrar uma possível interrupção

    ou mudança. Essa observação é fruto de uma refle-

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    64/233

     xão inicial que encontra suporte na leitura do texto.

    Embora o eixo que organiza o texto se volte para

    a continuidade, uma primeira ruptura acontece nodiscurso em questão, já que nenhuma referência éfeita aos governos que precederam o início da eraLula no Brasil. Essa ruptura, ou seja, a divisão entreo momento iniciado no governo Lula e os anterio-res pode ser interpretada como uma descontinui-dade, pois a presidente não cogita a possibilida-

    de de um governo diferente do que está em vigoragora voltar ao comando, dando a entender queessa ação de mudança de governo já foi concluídae apresenta aspecto acabado e irreversível. Isso érecorrente em todo o discurso, já que não são feitasmenções a nenhum governo anterior ao longo dotexto todo.

    O texto foi produzido em um período de transi-ção, já que o início da atuação da atual presidentefoi em janeiro de e esse discurso circulou nomês de setembro desse mesmo ano, ou seja, a pre-sidente tinha menos de um ano de governo. Parailustrar meu ponto de vista, destaquei algumaspassagens do discurso, no entanto os destaques

    dados aqui são uma constante no texto inteiro, poisa ideia de continuidade perpassa todos os parágra-fos. Isso mostra um aspecto durativo cuja bordafinal não aparece delimitada, já que a presidenteparece evitar tratar do fim do seu governo. Alémdas passagens, farei comentários a respeito das es-colhas lexicais e de tempos verbais que mostram

    na enunciação uma escolha cuidadosa para que

    ...

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    65/233

    alguns temas sejam veiculados no enunciado.

    Em relação aos tempos verbais escolhidos pela

    enunciação, observa-se uma rejeição ao pretéri-to perfeito e ao futuro simples ao longo de váriaspartes do discurso. Essa opção acontece em todosos momentos em que é feita alguma referência aoBrasil e ao governo. A opção da presidente em nãousar o pretérito perfeito é justificada pelo fato deque esse uso daria a ideia de descontinuidade, ou

    seja: o que foi feito no passado (governo Lula) não vai continuar sendo feito no atual governo e não éessa ideia de aspecto acabado ou suspenso que apresidente deseja transmitir.

    Por outro lado, o uso de futuro daria a ideia deque as ações em discussão só aconteceriam poste-riormente ao momento da enunciação, causando

    um efeito de adiamento, de que seria necessárioum tempo para que as ações entrassem em vigor.Isso deixaria implícito que, até o momento con-comitante ao da enunciação, nenhuma das açõescitadas por ela teriam entrado em vigor, o que nãoé a verdade que se quer veicular, uma vez que esseé um governo que está dando prosseguimento a

    atividades e programas já iniciados pelo governoanterior.

    Como exemplo, os seguintes trechos foram se-lecionados:

    O Brasil está fazendo a sua parte; mantemos os gas-tos do governo sob rigoroso controle [...] Estamos()

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    66/233

    tomando  precauções adicionais [...] Temos insis-tido na interrelação entre desenvolvimento, paz esegurança.

    O Brasil está pronto a assumir suas responsabilida-des como membro permanente do Conselho. Vi-vemos em paz com nossos vizinhos há mais de anos. Temos promovido  com eles bem-sucedidosprocessos de integração e de cooperação.  Abdica-mos, por compromisso constitucional, do uso da

    energia nuclear para fins que não sejam pacíficos.

    Os sintagmas verbais que aparecem destacadosnos parágrafos selecionados para análise são acom-panhados de um aspecto durativo e evidenciam acontinuidade que o governo Dilma está dando a

    tudo que foi feito ou iniciado no governo anterior,apesar de não aparecerem referências concretasa tal período ao longo do texto. A informação vei-culada pelos verbos não permite que se pense quetais ações são curtas e têm prazo para conclusão,ou seja, que apontem para a descontinuidade ounão continuidade. Pelo contrário, o foco é na conti-

    nuidade e no aspecto durativo das ações.

     Algumas escolhas lexicais também mostram aideia de manutenção e continuidade e priorizam oaspecto não acabado. Observem-se os exemplos:

    Há pelo menos três anos, senhor Presidente, oBrasil repete, nesta mesma tribuna, que é preciso

    ()

    ()

    ...

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    67/233

    combater as causas, e não só as consequências da instabilidade global.

    Observamos, a partir da estrutura há pelo me-nos três anos, que não é a primeira vez que o assun-to é discutido pelo Brasil e tal ideia é reforçada coma palavra repete  logo em seguida. Isso mostra que aatual presidente, que ainda não completou um anode mandato, não só apoia as propostas levantadas

    pelo governo anterior como também as repete esustenta.

    Em uma observação geral do discurso, desta-camos as seguintes palavras que veiculam a ideiade continuidade e manutenção de um modelo queteve início antes do momento da enunciação e deve

    ser mantido até o final dessa “linha do tempo” queé o governo Dilma: insistir, continuar, manter, repe-tir . Tais escolhas lexicais demonstram um aspectodurativo que entra em consonância com a noçãode continuidade expressa pelas estruturas já desta-cadas anteriormente. Poucas informações revelamaspecto incoativo, já que estamos sempre falando

    de programas já iniciados no governo anterior.Nos exemplos () e (), é possível confirmar

    essa referência ao governo anterior por meio dos verbos destacados, e, mesmo indicando algumaação que já está acabada, ou seja, que não foi fei-ta por ela, mas sim em um momento anterior, estámodulada por um processo contínuo de aumentos

    e diminuições (concretizado pelos lexemas dimi-

  • 8/20/2019 Aspectualização Pela Análise de Textos

    68/233

    nuição, avançou, ascenderam).

    O Brasil descobriu que a melhor política de desen- volvimento é o combate à pobreza, e que uma ver-dadeira política de direitos humanos tem por basea diminuição da desigualdade e da discriminaçãoentre as pessoas, entre as regiões e entr