Assédio - abordagem interdisciplinar
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REVISTA DE ESTUDOS CONTBEIS, LONDRINA, V. 2, N. 3, P. 53-73, JUL./DEZ. 2011.
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Assdio Moral no Trabalho: uma abordagem interdisciplinar
Moral Harassment in the Workplace: an interdisciplinary approach
Ricardo Lebbos Favoreto 1
Cristiane Vercesi2
RESUMO
Clamor constante, embora muitas vezes isolado, a humanizao do ambiente de trabalho na sociedade ps-industrial meta genuna, e passa, necessariamente, pela discusso de pontos anmalos que afetam as relaes sociais nele havidas. Como vcio muitas vezes intrnseco aos prprios mtodos administrativos pelos quais a organizao se constitui, o assdio moral assola as instituies de trabalho contemporneas: expropria a dignidade do trabalhador e gera como conseqncia um nus social a ser suportado por um conjunto muito maior de agentes. Abordando o fenmeno do assdio sob pontos de vista variados utilizando-se elementos de filosofia, administrao, psicologia e direito -, busca-se aqui agregar entendimentos, propondo-se reflexes complementares. A ttulo ilustrativo, resgata-se, no fim do artigo, um caso de grande repercusso ocorrido h alguns anos em uma grande organizao nacional. O relato direto da fonte, exposto na sequncia, demonstra realisticamente a perspectiva da vtima. Intenta-se, com as reflexes procedidas, reforar os debates sobre assdio, acrescendo-os de abordagens eclticas, bem como reforar a necessidade de um engajamento cientifico sobre a temtica em questo, j que o primeiro passo para expurgar conscientemente um vcio social conhec-lo bem.
Palavras-Chave: Assdio moral no trabalho. Abordagem interdisciplinar. Ambiente de trabalho.
ABSCTRACT
The humanization of work environment is a genuine goal in the post-industrial society and it requires the discussion of the anomalous points that affect the social relationships that occur therein. As a fault quite often intrinsic to the administrative methods by which the organization constitutes itself, moral harassment devastates the contemporary wok institutions: it expropriate worker's dignity and generates as consequence a social onus that has to endured by a much larger set of social agents. In this paper, we broach the moral harassment phenomenon in the light of different points of view, using elements of philosophy, psychology, administration and law. We seek to aggregate varied understandings and propose further reflections. As an illustration, it is exposed and discussed in the final section a case of great impact
1 Graduado em Administrao pela Pontifcia Universidade Catlica do Paran (PUCPR). Graduado em Direito
pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Mestre em Administrao pela UEL. Doutorando em Administrao pela Universidade Nove de Julho (UNINOVE) - e-mail: [email protected]. 2 Graduada em Formao de Psiclogo pelo Centro de Estudos Superiores de Londrina (1984), Ps-Graduada
em Psicodrama Pedaggico (1986); Mestre em Psicologia (Psicologia Social) pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (1997) e Doutora em Educao pela Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho (2002). Docente efetiva da Universidade Estadual de Londrina e-mail: [email protected]
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Favoreto, L.R.; Vercesi, C.
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occurred a few years ago in a large national organization. In a direct way, the victims perspective is realistically demonstrated. We intend with the reflections to enhance debates on moral harassment, joining eclectic approaches, as well as reinforce the need for a scientific engagement on the theme. To delete a moral fault we previously have to know it well.
Keywords: Moral harassment in the workplace. Interdisciplinary approach. Workplace.
1 Introduo
Por certo, o assdio moral no trabalho no um fenmeno recente. Desde que
haja trabalho e a perversidade de um trabalhador, est potencializado o campo para a
ocorrncia do assdio. Tomando em considerao que tanto um quanto outro
ingrediente provavelmente acontecem h muito tempo, poder-se-ia arriscar,
especulativamente, a afirmao de que o assdio deve ter surgido com as organizaes
mais primitivas de trabalho. A ateno meritria despendida ultimamente deve-se talvez
s formas marcantes como vm ocorrendo os acontecimentos. A novidade que tem
chamado a ateno nos ltimos anos parece residir na intensificao, gravidade,
amplitude e banalizao do fenmeno (BARRETO, 2000).
As ocorrncias comearam ento a incomodar acadmicos e gestores que
relegaram, por tempos, o tema a segundo plano. O assdio toma conta de muitas
organizaes e afeta uma classe que cresce cada dia mais em importncia, embora talvez
no o faa na mesma medida em associao: o trabalhador de organizao, sujeito esse
tomado no em sentido estrito, como empregado de uma empresa, mas o trabalhador
que faz emergir como identidade sua seu trabalho e como espao prioritrio, seja em
tempo, em dedicao ou em afiliao, a organizao na qual trabalha. esse o indivduo
que, como superior ou subordinado, sofre as conseqncias de um sistema produtivo
competitivo e individualista, aqui consideradas em um s aspecto: o do assdio moral.
Largamente presente, o tema tem demandado engajamento cientfico e poltico
no campo das relaes humanas. Aos estudos nacionais muito contriburam estudos
estrangeiros, oriundos de pases com tradio social mais slida que a nossa. Nesse
ponto, merece destaque a publicao Assdio moral: a violncia perversa do cotidiano,
da autora Marie France Hirigoyen, uma obra que destrincha as vrias nuanas bsicas do
fenmeno.
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O tema ganha em importncia quando se firma, realisticamente, que o fenmeno
no tem ocorrncia restrita a um ou a outro ponto do globo, mas um problema
praticamente mundial nas organizaes. Muito disso se deve ao fato de que muitas
organizaes so multinacionais, com tentculos espalhados pelos quatro cantos do
mundo, s vezes maiores e mais poderosas que muitas naes (MORGAN, 1996, p.
309). Com isso semelhanas culturais so constatadas em vrios pases, em seus
aspectos bons e maus.
Os exemplos trazidos no corpo deste trabalho servem finalidade simples de
ilustrar casos de assdio e observar a metodologia proposta, mas em hiptese alguma
subestima-se a amplitude mundial do fenmeno: a violncia moral no trabalho
segundo levantamento da Organizao Internacional do Trabalho (OIT) fenmeno
mundial (BARRETO, 2000). J em um informe de outubro de 2000, divulgado em
comunicado de imprensa (ILO, 2007), a OIT (ILO international labour organization)
divulgou os resultados lastimveis de um estudo sobre polticas e programas de sade
mental concernentes aos trabalhadores da Alemanha, Estados Unidos, Finlndia, Polnia
e Reino Unido.
Segundo a pesquisa, a incidncia de problemas de sade mental aumentava, ao
ponto de, poca, um em cada dez trabalhadores sofrerem de depresso, ansiedade,
estresse ou cansao, que em alguns casos levam ao desemprego e hospitalizao. Os
resultados mostraram que, nos pases da Unio Europia, entre trs e quatro por cento
do PIB eram gastos com problemas de sade mental. Nos Estados Unidos, o gasto anual
com tratamento de depresso variava entre trinta e quarenta e quatro milhes de
dlares.
Hoje, o alto nvel de desemprego estrutural que assola as economias capitalistas
modernas (ILO, 2012) gera uma necessria reserva contingencial de mercado que,
segundo Freitas (2005) pode ser fator que colabora tambm para a ocorrncia do
assdio, porque ocasiona que muitos profissionais tenham medo de perder seus
empregos, e acabem se sujeitando a situaes constrangedoras no ambiente de trabalho.
No texto que segue, objetivam-se expor de forma sucinta e objetiva, sob variados
pontos de vista, alguns dos aspectos basilares e contemporneos do assdio moral no
trabalho, de forma a clarear um entendimento cientfico do fenmeno sob anlise
aonde chegamos. No h pretenso aqui de se esgotar qualquer dos conceitos
mencionados, apenas ajudar a traar um pouco mais, com marcos tericos e
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pragmticos, um entendimento cabal e interdisciplinar do assdio, bem como sua
compreenso. So utilizados, para tanto, elementos da filosofia, do direito, da
administrao e da psicologia.
2 Referencial Terico
2.1 O Indivduo Capitalista o Homem-massa de Gasset
O indivduo capitalista portador de algumas caractersticas que podem ter
relao estreita com o fenmeno do assdio, como com outras anomalias verificadas
atualmente nas relaes interpessoais. Por no ser a ocorrncia do assdio algo recente,
no se pode afirmar que o assdio condicionado a um sujeito inserido num entorno
capitalista, com caractersticas capitalistas. Muito embora, possa-se suspeitar, e
sustentar com certa legitimidade filosfica, que algumas caractersticas desse indivduo
contribuem para a ocorrncia do assdio.
Gasset (2002), em seu livro A Rebelio das Massas, editado pela primeira vez
em 1987, designa esse indivduo-modelo por homem-massa, um ser produzido pela
civilizao moderna, ps-revoluo industrial, de caractersticas medianas, nada de
extraordinrio: nem o delinqente nem o gnio; na tese de Ingenieros (2004), o homem
medocre. o foco nesse ser, que sempre representou maioria, desde a poca de
maturidade da Revoluo Industrial, que dar uma compreenso maior, pelo menos
quanto dimenso humana, do fenmeno do assdio.
Ressalte-se, em primeiro lugar, o individualismo. O homem-massa ganhou em
conforto, e, apesar dos momentos de perda do seu poder aquisitivo devido a flutuaes
econmicas sistematicamente normais, continua adquirindo as benesses tecnolgicas,
postas hoje a sua disposio por grande quantidade de empresas. Isso o tornou e o torna
mais seguro de si, mais poderoso em relao ao momento anterior.
possvel trocar cartas em tempo real, correr ouvindo a prpria msica,
praticar lazer em domiclio... Enfim, aumentam suas disponibilidades fsicas, e com elas,
ainda que por mera acesso, tambm as mentais. Tal fato faz dele individualista em dois
aspectos: por alargar, at nas coisas mais simples, suas fronteiras de atuao, sente-se
mais independente, talvez autnomo; e por projetar um grande sentido nos aumentos de
sua capacidade, pretende auferir sempre mais, relegando a pano de fundo os meios de
consecuo. Em resumo, como observa Gasset (2002, p. 86), cada dia sua posio era
mais segura e independente do arbtrio alheio. O que antes teria sido considerado um
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benefcio da sorte que inspirava humilde gratido ao destino converteu-se num direito
que no se agradece, mas que se exige.
Em segundo, a produtividade decorrente do anseio pelas comodidades. O
trabalho, antes realizado em larga escala com a segregao entre o mandar e o operar
(como relatado logo no primeiro captulo do Manifesto do Partido Comunista
Burgueses e Proletrios) (MARX, 2005, p. 45), e hoje realizado com a segregao entre
o formular estratgico e o atuar tcnico (MINTIZBERG, 2003, p. 22), desenvolve-se com
foco na produtividade, muitas vezes de maneira mope quanto aos efeitos de seus
excessos.
O mundo que rodeia o homem novo desde seu nascimento no faz com que ele se limite em nenhum sentido (...), ao contrrio, fustiga seus apetites que, em princpio, podem crescer indefinidamente. Pois acontece que esse mundo (...) sugere a seus habitantes uma segurana inabalvel de que amanh ser ainda mais rico, mais perfeito e mais amplo, como se gozasse de um espontneo e
inesgotvel crescimento (GASSET, 2002, pp. 88 e 89).
Em terceiro, como decorrncia do individualismo e da produtividade, a
competitividade exacerbada. Levada ao seu extremo, a competitividade manifesta-se sob
o prisma da converso de atitudes aticas em comportamentos impiedosos para com o
prximo. O homem-massa esquece-se da civilizao, toma-a por algo pronto, que em boa
parte sequer ajudou a construir, e, olvidando sua base mais slida, qual seja o trabalho
coletivo, despreza os que cruzam a sua frente com interesses distintos dos seus, como se
os seus traos pessoais correspondessem a uma personalidade prontamente universal:
o homem mdio no encontra mais nenhuma barreira social (GASSET, 2003, p. 87);
Este personagem, que agora anda por todas as partes e impe sua barbrie ntima em
todos os lugares, , de fato, o menino mimado da histria humana. O menino mimado o
herdeiro que se comporta exclusivamente como herdeiro. Agora a herana a
civilizao (GASSET, 2003, p. 130).
Assim, individualismo, produtividade e competitividade, quando presentes sob
um formato anmalo que conflui para eventos humanos desrespeitosos definham as
caractersticas genuinamente positivas do ser trabalhador, uma vez que o trabalho
coletivo e, como tal, demanda um esprito de coleguismo. So da sua essncia a
solidariedade, a cooperao.
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2.2 Os Valores Principiolgicos Atualmente Positivados
Quando se julga algo, positiva ou negativamente, julga-se com base em critrios.
Vale dizer: todo juzo de valor criterioso, por mais simples que o seja.
O assdio moral no trabalho tratado aqui, tal como na doutrina e na
jurisprudncia, como um fenmeno, em essncia, ruim. V-se no assdio uma expresso
de maldade, qualidade vista como anmala a um processo organizacional tido por ideal;
como ressaltado acima, eminentemente cooperativo.
Cumpre, ento, sob o ponto vista pragmtico, questionar com base em quais
critrios compreende-se o assdio como comportamento ruim. nesse ponto que
qualquer sujeito se convence de que, a despeito de por muito tempo ter inexistido
regulamentao especfica ao assdio, os valores positivados brasileiros e internacionais
quase sempre dedicaram certa dose de cuidado ao tema, ainda que de forma indireta
(como podem entender alguns). No se pretende neste espao relatar todos os
dispositivos legais relacionados ao tema, apenas apontar para uma possvel
concretizao, perante as prticas de assdio, do valor dignitrio norteador da vida
social, ptria e internacional.
Assim que logo no primeiro artigo da Constituio Federal de 1988, elege-se a
dignidade da pessoa humana como um dos cinco fundamentos da Repblica Federativa
do Brasil. Do lado oposto, o assdio mitiga a personalidade do trabalhador, rechaa sua
dignidade. Acha-0se a o fundamento jurdico maior para legitimar a punio do
assediador. certo que as formas de punio devem obedecer a outros preceitos
relacionados a procedimentos particulares, mas essa cautela no justifica qualquer
inrcia estatal nem privada perante as prticas de assdio.
No bastasse o texto constitucional, a Consolidao das Leis Trabalhistas (CLT),
alm da sistematizao de todo um conjunto de regras destinado proteo do
trabalhador, prev no Art. 483, alnea e, que o empregado poder considerar rescindido
o contrato e pleitear a devida indenizao quando praticar o empregador ou seus
prepostos, contra ele ou pessoas de sua famlia, ato lesivo da honra (...) (BRASIL, 2012).
Ressalte-se aqui que, do outro lado, o assdio sempre praticado com algum
comportamento lesivo da honra; enfim, mais uma vez contra um valor socialmente
positivado.
Cite-se ainda, no mbito internacional, que a Constituio da Organizao
Internacional do Trabalho prev em seu Anexo Declarao Relativa aos fins e objetivos
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da OIT as clusulas constantes da Declarao de Filadlfia, entre elas: II.a) Todos os
seres humanos (...) tm o direito de perseguir o bem-estar material e espiritual, em
condies de liberdade e dignidade (...); III. A Conferncia reconhece a obrigao solene
da OIT de fomentar, entre todas as naes do mundo programas que permitam: b)
empregar trabalhadores em ocupaes em que possam ter satisfao (...), g) proteger
adequadamente a vida e a sade dos trabalhadores em todas as ocupaes (ILO, 2007).
Com isso, mostra-se que a prtica do assdio moral no trabalho nacional e
internacionalmente impugnada por regras bastante claras. Parece, talvez por simples
que so, ainda portarem pouco contedo pragmtico, mas existem, e representam
valores emergidos ao nvel de princpios a serem universalmente observados.
2.3 Assdio: Elementos Conceituais Prprios e Correlatos
O termo assdio moral parece ter sua origem, pelo quanto a uma ampla
divulgao, em 1998, quando a psicanalista francesa Marie-France Hirigoyen lanou o
livro Le Harclement Moral, traduzido para o portugus em 2000 com o ttulo Assdio
Moral: a violncia perversa no cotidiano.
Em publicao atualizada, Hirigoyen (2006, p. 65) define o assdio moral no
trabalho como toda e qualquer conduta abusiva manifestando-se sobretudo por
comportamentos, palavras, atos, escritos que podem trazer dano personalidade,
dignidade ou a integridade fsica ou psquica de uma pessoa, pr em perigo seu emprego
ou degradar o ambiente de trabalho.
Barreto (2003) define o assdio moral como a exposio dos trabalhadores a
situaes humilhantes e constrangedoras, repetitivas e prolongadas durante a jornada
de trabalho e no exerccio de suas funes, sendo mais comuns em relaes hierrquicas
autoritrias e assimtricas, nas quais predominam condutas negativas, relaes
desumanas e no ticas de longa durao, de um ou mais chefes dirigida a um ou mais
subordinados, desestabilizando a relao da vtima com o ambiente de trabalho e a
organizao, e mesmo forando-a a desistir do emprego.
Para que se verifique o assdio, preciso, como vem tratando a literatura e a
jurisprudncia (HIRIGOYEN, 2006; acrdo 61.415 BRASIL, 2007), que se constatem,
essencialmente, quatro elementos: a intencionalidade de agir do agressor; o dano
sentido pela vtima; a periodicidade das ocorrncias; e a perpetuao dessas no tempo.
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O elemento volitivo diz respeito subjetividade do agressor, ao fazer consciente,
vontade de prejudicar a vtima por meio do assdio. Em linguagem jurdica, dir-se-ia,
da culpa do agente, em sentido amplo (NORONHA, 2003).
Na outra ponta, o dano sentido conseqncia do comportamento agressivo.
Para que se configure o assdio, no necessrio o advento de um quadro patolgico,
mas to somente que a vtima perceba o assdio. A indefinio de um critrio
conseqente restritivo deve-se ao fato de no ser possvel elaborar uma previso de um
desastre sensitivo padro para qualquer vtima assediada, porque cada pessoa nica, e
pode reagir de um modo diferente. Da o posicionamento de que apenas a percepo
(correspondente realidade, claro) suficiente para a concretizao do assdio.
A periodicidade e a perpetuao das ocorrncias enquadram-se no elemento
temporal do assdio. O primeiro fator refere-se a quantas ocorrncias se constatam num
dado intervalo de tempo; o segundo, durao dessa seqncia. Como vem se
sedimentando, a tipificao parte de uma periodicidade e uma durao mnimas, por
enquanto eqitativamente percebidas mas legalmente ainda no regulamentadas.
Alm dos elementos bsicos constitutivos, vale mencionar a classificao do
assdio conforme o sentido pelo qual ocorre. Diz-se vertical do assdio ocorrido entre
trabalhadores posicionados em nveis hierrquicos distintos; noutras palavras, entre
superior e subordinado. Se a ofensa parte do superior, o assdio denominado
descendente; se do subordinado, de ascendente. Em ambas as situaes, o assediador
utiliza-se dos atributos relativos a sua posio para cometer o assdio.
Pelo mesmo critrio da direcionalidade, diz-se horizontal do assdio ocorrido
entre pessoas ocupantes de cargos de mesmo nvel hierrquico. As agresses podem ser
motivadas em simples apatias ou na competitividade entre os membros da organizao
podem ser, dessa forma, pessoais ou funcionais. O intuito a pode ser genrico ou
especfico, respectivamente.
Importante salientar que o assdio pode ainda ser misto, ou seja, partir do chefe e
de colegas concomitantemente. Esse tipo de assdio mescla o vertical com o horizontal e
carrega as particularidades de cada um sendo praticadas de uma s vez contra a vtima.
Nesse caso, tem-se dois viles que podem somar foras e tornar a recuperao da vtima
ainda mais rdua.
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2.4 Reao da Vtima sob a perspectiva do estresse
O assdio moral apresenta-se como uma ameaa integridade fsica e psicolgica
da vtima. Em grande parte dos casos, o abalo psicolgico tende a causar danos fiscos,
assim como a debilitao fsica pode causar transtornos psicolgicos. Por ora, colocam-
se em pauta de discusso questes relativas ao estresse e seus efeitos fsicos, por ser ele
um fator que tende a ocorrer com bastante frequncia nos casos de assdio. Em muitos
deles, contudo, o estresse colocado sob denominaes variadas, tal como crises de
choro e insnia, que na verdade, como se ver adiante, so as manifestaes do estresse.
Enfoca-se aqui o estresse em seu aspecto negativo, desencadeador de doenas que
implicam limitaes vivncia cotidiana da vtima.
A pessoa que se encontra na posio de assediado vivencia situaes
embaraosas e desconfortantes, por conta da humilhao sofrida. Os efeitos dessa
relao em que uma das partes sempre prejudicada e inferiorizada pela outra podem
ser drsticos, e, algumas vezes, irreparveis. O que se constata que A humilhao
repetitiva e de longa durao interfere na vida do trabalhador, comprometendo sua
identidade, sua dignidade e suas relaes afetivas e sociais, e ocasionando graves danos
sade fsica e mental, que podem evoluir para a incapacidade laborativa, desemprego
ou mesmo morte, constituindo um risco invisvel, porm concreto, nas relaes e
condies de trabalho (BARRETO, 2000).
O risco contido em uma relao de assdio pode ter incio com a instalao do
medo e da ansiedade patolgica na vida do assediado, que so pontes para o
desenvolvimento de quadros patolgicos de estresse. Essas duas fontes so
comportamentos encobertos, ou estados emocionais, conforme coloca Delitti e Meyer,
1995, (apud Santos, 2000, p. 191), as emoes so vistas como comportamentos
encobertos, pois ocorrem sob a pele.... Esses comportamentos, por sua vez, so capazes
de produzir e manter conseqncias observveis, que podem tambm ser chamadas de
reaes da vtima e manifestaes do organismo. Tais comportamentos podem variar de
pessoa para pessoa, por serem, segundo Santos (2000), manifestaes objetivas
inespecficas.
Apesar de o trabalhador poder reagir de diversas maneiras, sempre
impulsionado por essas duas variveis. Santos (2000, p.190) afirma que tanto a
ansiedade quanto o medo tm suas razes nas reaes de defesas. Dessa forma, a vtima
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tende a apresentar reaes resultantes da atuao do medo e/ou da ansiedade como
uma tentativa de se proteger do estmulo aversivo, no caso, o assdio moral.
Essas reaes so respostas que o organismo emite em situaes comumente
associadas a diversos estados emocionais, tais como, expectativa, ira, entre outros. So
tambm chamadas de comportamentos defensivos, cuja principal funo proteger o
organismo de perigos e ameaas. Conforme aponta Santos (2000), pode-se citar como
reaes fsicas advindas sudorese, taquicardia, tremores, calafrios, etc.
Na medida em que o quadro se agrava, devido a constncia e a durao com que
ocorrem o assdio moral, efeitos estressantes passam a desempenhar seu papel no
organismo da pessoa assediada. Conforme aponta Pinel (2005, p. 456), o medo a
reao emocional ameaa, a fora motivadora dos comportamentos defensivos.
Afirma ainda que quando o corpo exposto a perigo ou ameaa, o resultado um
conjunto de mudanas fisiolgicas que costuma ser chamado de resposta ao estresse
ou simplesmente estresse (PINEL, 2005, p. 459).
Algumas respostas do organismo exposto ao estresse, segundo Pinel (2005) so:
desenvolvimento de lceras gstricas; diminuio da resistncia a infeces; alterao
dos nveis circulantes de hormnios que esto implicados com transtornos fsicos. Tem-
se ainda crises de choro, insnia e outras manifestaes emitidas pelo organismo.
Todos os estressores, sejam eles de natureza fsica ou psicolgica, produzem
mudanas fisiolgicas. Contudo, o estresse psicolgico crnico (medo crnico), que
culmina em problemas de sade mais freqentes. Os casos de assdio moral que
submete a vtima ao medo prolongado, persistente, pode durar o suficiente para gerar o
estresse psicolgico crnico.
Tem-se ainda o estresse por subordinao, marcado pela humilhao e
sentimento de inferioridade experienciada pela vtima, que alm de estar submetida s
situaes estressantes, suporta o fator adicional de estar sob a ameaa e controle de um
membro da mesma espcie. Como constata Pinel (2005, p.460), quando uma ameaa
co-especfica torna-se permanente na vida cotidiana, o resultado o estresse por
subordinao.
As ameaas sofridas pela vtima tendem a gerar comportamentos que estejam de
acordo com as regras ditadas pelo asseiador. Este passa a exercer domnio sobre o
assediado e o coloca na posio de subordinado, mesmo que no seja. De forma
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desconectada com a hierarquia de cargos da empresa, forma-se a hierarquia de
dominao, que pode ocorrer tanto a partir do assdio vertical quanto do horizontal.
McEwen (1994, p. 460, apud PINEL, 2005, p. 460), afirma que a intensidade da
resposta de estresse no depende apenas do estressor e do indivduo, mas tambm das
estratgias que o indivduo adota para enfrent-lo.
Por isso, aqueles que reagem de forma mais visvel, aparente aos colegas de
trabalho, com uma atuao mais espontnea que premeditada, acabam-se prejudicando
aos olhos dos colegas, virando a mesa contra si mesmos. Veja-se:
Para outros, ainda, a resposta comportamental, de carter, e resulta diretamente da provocao perversa. So tentativas inteis de fazer-se ouvir uma crise de nervos em pblico, por exemplo, ou ento uma passagem a um ato agressivo contra o agressor que viro mais uma vez justificar a agresso: Eu
lhe avisei, ele(a) completamente doente! (HIRIGOYEN, 2006, p. 179).
Na mesma linha, Hirigoyen (2006, p. 178) ainda observa que alguns, j
fragilizados psicologicamente, preferem a inrcia a um comportamento atuante: o que
espantoso, nesta fase, que, quando vemos empregados perseguidos em seu prprio
local de trabalho e propomos uma licena para tratamento, raro que ela seja aceita: Se
eu parar, vai ser pior! Vo me fazer pagar caro por isso! O medo faz com que aceitem
tudo.
2.5 Elemento relativo: o nexo causal
O assediar, como comportamento em si, perceptvel quanto a certos elementos
componentes de uma relao de causalidade, entre a ao do agente e a impregnao de
certa dose de violncia na vtima. So elementos: ao ou omisso causal; resultado; e
nexo causal.
Conforme bem esclarece o Art. 13, do Cdigo Penal brasileiro, a ao ou omisso
so causas quando sem elas o resultado no teria ocorrido (BRASIL, 2012). Em sntese,
entre a ao e o resultado deve existir uma relao de causa e efeito (NORONHA, 2003,
p. 117). No dispositivo do Cdigo, ainda que no intencionalmente o tenha feito o
legislador, j vem explicado, implicitamente, o conceito de nexo causal.
Importante ressaltar que no assdio a ao h de ser acompanhada por um
quinho reservado ao subjetivo. Noutras palavras, s se configura a ao de assediar
quando h intencionalidade, vontade do agente de lesar a vtima.
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Aqui, vlido questionar se o assdio pode-se configurar tambm pela omisso
do agente, que, comportando-se com indiferena (e existindo a possibilidade de uma
atuao contrria), permite que o assdio acontea. Seria o caso, por exemplo, do chefe
de terceiro nvel hierrquico que no impede que o chefe de segundo nvel, subordinado
direto seu, assedie funcionrio a este ligado. Para Noronha (2003, p. 117), a omisso
no um no-ser, porm modo de ser do autor.
O texto do Cdigo Penal brasileiro bastante claro ao dispor, no Art. 13, 2o que
a omisso penalmente relevante quando o agente devia e podia agir para evitar o
resultado (BRASIL, 2012). Logo adiante, o cdigo estabelece as trs formas de omisso
O dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigao de cuidado, proteo ou
vigilncia; b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; c) com
o seu comportamento anterior, correu o risco da ocorrncia do resultado (BRASIL,
2012).
Tomando-se como fonte subsidiria os dispositivos do Cdigo Penal brasileiro,
parece que, ao menos civilmente, plausvel a possibilidade de responsabilizao por
omisso. J na esfera penal, para que haja um crime, preciso que exista, previamente,
uma tipificao legal nullun crimen, nulla poena sine praevia lege, e, no caso,
especificamente para o assdio, ainda no o h.
Havida a ao, ou a omisso, referente ao assdio, sucede-se (se se tratar
efetivamente de assdio) um resultado, que verificado pela modificao que se opera
no mundo exterior ao do agente, no caso, no universo personalstico do assediado. O
resultado, portanto, lesa o bem jurdico integridade psquica da vtima, e, por isso,
conforma-se como um ilcito. A leso integridade fsica, como se exps acima, advm
como conseqncia.
Ento, ao e resultado, pragmaticamente, apresentam-se como o assdio
ocorrido. E o que h entre eles, o liame que os faz causa direta e efeito decorrente,
denomina-se nexo causal. o nexo que posicionar nos dois plos do assdio agente e
vtima, assediador e assediado. O comportamento perverso ocasionou leso vtima?
Quem o protagonizou? Quem sofreu as conseqncias? Essas perguntas nortearo o
observador na identificao do assdio. E o nexo, constatado, dar a certeza de que a
situao resultou do evento.
Emprestando outra vez teoria do Direito Penal brasileiro, pode-se afirmar que
tudo quanto concorre para o resultado causa; em termos lgicos, a ao ou a omisso
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so condies sem as quais no se daria o resultado. Assim, a causa dependente do
agente a ele deve ser imputada, porque, em sentido amplo, h culpa no seu atuar. O nexo
seria constatado, ento, no assdio, pela perversidade frequente do assediador, que, com
comportamentos mltiplos e seqenciais, age de forma a destruir, com cada um deles, a
personalidade da vtima.
Fecha-se, assim, o processo: ao ou omisso, resultado e nexo caracterizam, em
termos objetivos, o assdio. V-se, prova-se a ocorrncia. Esse mtodo de percepo do
assdio, embora seja insuficiente para compreender os elementos subjetivos que
entremeiam os universos psquicos de assediador e assediado, til para se identificar o
assdio de forma precisa, para, em ltima anlise, responsabilizar quem de fato assedia,
no mais. E para prevenir, principalmente.
3 Procedimentos Metodolgicos
A pesquisa realizada, quanto ao seu objetivo, tem carter demonstrativo-
exploratrio, porque visa colocar, em moldes atuais, uma situao verificada nas
organizaes, e, conforme prope Vergara (2000), com nfase em alguns conceitos ainda
pouco estudados, embora de extrema pertinncia ao tema. A modelagem do referencial
terico e os comentrios aos dois exemplos foram feitos com esse intuito.
A escolha dos procedimentos tcnicos utilizados pautou-se pelas finalidades a
que se props o estudo. Inicialmente, busca-se retratar brevemente o quadro
humanstico e axiolgico no qual o fenmeno ocorre. Depois, o referencial aborda
conceitos referentes, com destaque queles posicionados em reas limtrofes das
principais cincias envolvidas: Filosofia, Administrao, Psicologia e Direito. Com isso,
pretendeu-se sistematizar e apontar, implicitamente, para novas apuraes conceituais.
Nesse trecho foram utilizados materiais contidos no acervo de legislao, e de materiais
notrios na rea.
Como forma de constatao da realidade, foram considerados os ensinamentos
de Yin (2010), que prope a utilizao de estudos de caso quando o foco do estudo
constitui-se de fenmenos perceptveis sob tnues fronteiras com o contexto no qual
ocorrem. Neste texto, a exposio dos ocorridos tem carter essencialmente ilustrativo,
para demonstrar conceitos e lev-los ao mbito da reflexo acadmica.
Com o primeiro dos exemplos trazidos tona, selecionado, assim como o
segundo, de forma intencional e por convenincia, buscou-se chamar ateno para um
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possvel marco no traado histrico do tema, pelo menos quanto publicidade. J com a
exposio do segundo exemplo transcrio e comentrios da entrevista , buscou-se
trazer mostra um caso concreto com as nuanas perceptveis diretamente da fonte, a
vtima. Foram selecionados a os trechos que serviam de demonstrativos para a
exposio terica realizada por comentrios, disposta criteriosamente entre eles.
Cabe destacar que, em alguns pontos, como nos referentes ao primeiro exemplo,
ao nexo causal e aos valores pricipiolgicos, tomaram-se emprestados elementos
conceituais jurdicos, pela potencial valia pragmtica que se acredita conferirem ao
tratamento do tema.
4 Casos ilustrativos
4.1 A ocorrncia em uma grande companhia cervejeira
Em agosto de 2006, um caso milionrio soou nos principais jornais do pas: uma
grande companhia cervejeira era condenada pela Justia trabalhista a pagar multa por
assdio moral coletivo no trabalho. Na tiragem de 23 de agosto, a Gazeta Mercantil
noticiava: A Justia do Trabalho aplicou a maior multa da sua histria em ao coletiva
de danos morais. A Companhia x foi multada em R$ 1 milho por assdio moral
praticado pela empresa aos vendedores (nome ocultado pelos autores).
O caso foi denunciado como toque de alerta pela Procuradoria do Trabalho
Ministrio Pblico do Trabalho -, na 1 Vara do Trabalho de Natal (RN), por meio de uma
Ao Civil Pblica. A procuradora relatou situaes indignas a que eram expostos os
trabalhadores, tais como: uso de camisetas com apelidos jocosos, impedimento de
assento aos empregados em reunies, e obrigao a danas vexatrias.
Em fase recursal, o acrdo de n. 61.415 ratificou a sentena prolatada pelo juzo
singular no que tange ao mrito da ao. Dois pontos chamam a ateno: a cominao
preventiva de multa no valor de R$ 10.000,00 por empregado prejudicado e a
indenizao por danos morais coletivos no valor de R$ 1 milho. A procuradora fez,
ainda, questo de frisar que a existncia de uma ao coletiva no impede a interposio
de aes individuais com o pleito de danos morais. A indenizao ser paga ao Fundo de
Amparo ao Trabalhador.
Segundo notcias veiculadas poca a exemplo do contido na Revista Consultor
Jurdico - no era a primeira vez que a empresa era condenada na rea trabalhista por
danos morais praticados contra seus trabalhadores. Outras condenaes j ocorreram
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nos Estados de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul. Os fatos revelam uma cultura um
tanto discrepante da divulgada pela organizao, que tem como valores, entre outros, o
desenvolvimento das melhores pessoas, o respeito e a confiana mtuos (informaes
constantes do site da companhia).
Na deciso de 2 grau, os juzes invocaram o Art. 129, IX, da Constituio Federal,
como fundamento da legitimidade do Ministrio Pblico para a defesa de interesses
coletivos, quando desrespeitados os direitos sociais constitucionais. Para a juza
relatora, a situao constrangedora a que foram submetidos os empregados suficiente
para justificar a interveno do Ministrio Pblico do Trabalho. Destacou, ainda, ser
funo do MP atuar de modo coibir a prtica de ilcito constatado no campo das
relaes de trabalho. Sem dvida, abrem-se portas para uma atuao mais marcante do
MP do Trabalho no mbito das relaes laborais.
Quanto ao instituto jurdico cabvel, parece claro, e coerente, o posicionamento da
Justia de enquadramento do assdio moral como hiptese de dano moral. o que se
constata neste trecho do relatrio do decisum: Comprovado o cometimento, pelo
empregador, de atos de constrangimento a seus empregados, consistentes na submisso
destes situao vexatria, como utilizao de camisetas, pelos vendedores, com
apelidos jocosos, alm de brincadeiras humilhantes, est patente o assdio moral
autorizador do deferimento de indenizao por danos morais.
A grande questo concernente prtica jurdica relativa ao assdio o nexo
causal e a correlao do dano com o prejuzo causado. Argumentou a empresa, no
recurso, pela impropriedade da petio inicial, sob a alegao de que no houve a
indicao de qualquer prejuzo concreto coletividade ou, conforme relatado no
acrdo, dano com relao ao qual possa ser estabelecida uma relao de
correspondncia com o valor pleiteado a ttulo de indenizao. Os juzes, no entanto,
adentraram com firmeza a questo, e reconheceram a figura do assdio moral coletivo,
acertadamente, porque prprio organizao do trabalho sob anlise. Quanto multa,
utilizaram como critrio a gravidade do ilcito e o intuito sancionatrio da quantia; em
suas e noutras palavras, pautaram-se no princpio da razoabilidade.
Posto juridicamente, o episdio configura-se, ao mesmo tempo, como ratificao
de um movimento antittico ao assdio moral e como um marco que pode fazer emergir
uma repulsa institucional mais sria que a corrente. O julgado parece esclarecer, ntida e
coerentemente, um encaixe de postos, cada qual na sua funo: o MP laboral assume a
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responsabilidade de quebrar a inrcia jurisdicional; os juzes ditam a lei ao caso
concreto, aplicam os princpios humansticos aos quais nos submetemos por um
possvel contrato social; as testemunhas falam; os agentes participam do processo; a
empresa condenada, afinal cometeu um ilcito.
4.2 A ocorrncia em uma instituio pblica de ensino: sob o ponto de vista da vtima
O exemplo tomado ocorreu numa repartio de uma grande instituio pblica de
ensino superior, estadual, brasileira. Os recortes de fala encaixam-se entre intermdios
explicativos do assunto em questo, segundo um critrio coerente de ordenao. Nele,
podem-se identificar todos os elementos necessrios configurao do assdio.
As situaes descritas indicam comportamentos perversos e um tanto doentios
por parte do assediador. Numa mesma ambincia, protagonizada por assediador e
assediado, os personagens complementam-se, como sujeito e sujeito-objetivado. Um faz,
outro sofre os fazeres; um explora, outro explorado; um alega, outro, a princpio objeta,
depois, portador de uma personalidade mitigada, parece acostumar-se maldade que a
ele se dirige, e, ento, internaliza, reprime-se, adoece. Desenvolve-se uma relao em
que tomam posio dois sujeitos, cada um no exerccio do seu papel, os dois atuando de
forma a constituir o assdio moral.
L no meu servio, eles me boicotavam. Quando eu passava, a coordenadora, que a fulana, passava e mostrava a lngua para mim, falava para todos que eu era desequilibrado (...). Ela fazia questo de tomar caf e s vezes deixar o copo em cima, quando no batia a mo: ai, caiu. Isso foi freqente, derramando caf em cima da mesa para me tirar do srio, para ver se eu a agredia.
Com uma estrutura organizacional desorganizada, e na ausncia de um espao
institucionalizado de dilogo entre seus membros, o assdio encontra ambiente profcuo
para disseminar-se. Somada ambincia a perversidade do indivduo, o assdio
provavelmente acontecer. Por vezes, um espao democrtico de dilogo, que deveria
ser institucionalizado, cede lugar a uma quase institucionalizao do assdio, constatada
quando a prpria estrutura organizacional (ou desestrutura) favorece a prtica do
assdio. Veja-se: Quando resolvi reclamar para a chefia superior, ouvi: coloca uma
coisa na sua cabea, eu no gosto de voc, nunca gostei, voc no bem vindo aqui - foi
a resposta que ele me deu.
Ainda: Ento, a partir desse momento, tambm comeou uma perseguio por
parte dele. Tudo era motivo para fazer reunio comigo. Chegou a inventar para minha
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chefa direta que eu disse que ia vomitar nela, na cara dela, tudo era motivo para me
humilhar.
Como um dos mtodos mais constatados de assdio, o assediador tenta isolar o
assediado, como se a ele (e aos outros) fosse dado o seguinte recado: voc no pertence
nossa equipe. Ento, alm das ofensas diretas, o assediado perde tambm uma possvel
sustentao de solidariedade, sentimento moral comumente buscado quando se passa
por situaes difceis. A perversidade tanta que atinge at os laos morais que unem os
membros da organizao:
O zelador do departamento foi ameaado dizendo que era para ele se afastar de mim, que eu era uma pessoa perigosa, que estava sendo acusada de um monte de coisas, e se ele no se afastasse como todo mundo deveria fazer, a corda ia estourar do lado do mais fraco, e o lado mais fraco era ele.
A periodicidade diria com que ocorriam os eventos foi, aos poucos, mitigando a
personalidade do assediado, e ocasionou um evidente desequilbrio emocional:
Eu fiquei muito fragilizado. Agora, foi uma mola para que eu corresse atrs e no deixasse me abater, entendeu? Mas tive que procurar um psiquiatra, eu no dormia mais noite. Eram quatro horas da manh e eu estava de olhos abertos. Quando ia dormir, pensava ser que eu vou conseguir? E ficava lembrando das humilhaes por que eu passava.
O intercmbio negativo de funes - da funo contratada para outra realizada
por funcionrio de mais baixo cargo -, outra prtica comumente constatada no assdio:
Ela dizia: Voc no est vendo que as caixinhas e o gramado ta cheio de bituca? Vai l
catar. Essas coisas eram para me humilhar.
Mas, parece, como compensao para o desequilbrio intencionalmente causado
no assediado, o assediador, embora se caracterize comumente como uma pessoa astuta,
tambm tem seus momentos de queda: Ela foi to ingnua, to ruim, que no
raciocinou. Uma vez ela colocou isso da bituca no papel, escreveu, e eu levei isso na
direo. E como conseqncia do sofrimento gerado pelo assdio, advm o quadro
patolgico:
Eu emagreci no sei quantos quilos e no consegui recuperar. Eu fiquei com a minha auto-estima fragilizada, e ainda est por tudo que eles fizeram. Eu estou tentando readquirir a minha confiana porque eu ouvi tanto voc um mero tcnico administrativo que isso me machucou muito. Eu cheguei ao grau... eu vomitava, me dava aquele aperto aqui dentro. Eu tive uma crise uma vez que a minha me chorou junto, que no auge da crise, eu queria sair batendo a cabea na parede, enquanto que o meu organismo... Hoje eu choro, porque aprendi a chorar, eu no conseguia. Ento como que meu corpo se manifestava? Eu vomitava, eu passava a noite vomitando.
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O assdio, em regra, abala a estrutura psicolgica da vtima. A despeito das
consideraes filosficas que consideram a maldade como sendo intrnseca ao homem, o
comportamento de um assediador incongruente com os padres normalmente aceitos
por uma personalidade sadia. No caso, por bem, o assediado apresentou ao final uma
resposta positiva ao assdio. Foi o que lhe deu fora para superar a situao:
Ento existem esses sintomas, mas hoje eu sei que me serviu para mostrar que eu posso, que fazer a minha parte, o meu servio e correr atrs dos meus sonhos. Eu consegui fora na sacanagem deles... E eu tenho essa fora dentro de mim. Cada vez que eles me puxavam o tapete, jogando o caf na minha mesa, arrancando folhas do meu processo, ameaando amigo meu, falando que eu no era nada... Sabe foi um perodo longo e por ser uma coisa diria, muita coisa pra se lembrar.
5 Consideraes finais
Por muito tempo, o trabalhador, como ser humano, no ocupou papel central na
ateno dos gestores e estudiosos de Administrao. Nos ltimos anos, porm, com o
amadurecimento da tica organizacional e dos direitos referentes pessoa humana,
passou-se a entender e compreender o trabalhador como a realidade importante que
efetivamente representa: sem dvida, o principal sujeito, o protagonista dos processos
administrativos.
Sob uma nova tica, de mero meio para a consecuo dos fins organizacionais o
trabalhador visto como tambm uma finalidade da organizao. Afinal, do ponto de
vista humanista, de que servem os lucros de uma organizao se em seu espao o
trabalhador mais degradado que favorecido?
Este trabalho buscou esclarecer conceitos relacionados direta e indiretamente
com o fenmeno do assdio moral no trabalho, promovendo um dilogo entre as que se
considera serem as principais reas envolvidas no tratamento do tema: Filosofia,
Administrao, Direito e Psicologia. Por isso, em alguns trechos encontram-se
peculiaridades prprias de cada rea.
No mbito da Filosofia, destaque-se a importncia das reflexes que esclarecem
as caracterizaes da sociedade em dada poca, a exemplo do homem-massa de
Gasset. Da Cincia Administrativa, o problema das estruturas desorganizadas,
propiciadoras do assdio, assim como os referentes cultura organizacional. Em Direito,
as regulamentaes legais necessrias para se coibir uma prtica to avessa aos valores
vigentes especialmente quanto a uma tipificao mais estrita dos comportamentos
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indesejados e um desenvolvimento jurisprudencial consistente no que tange definio
do nexo causal. Em Psicologia, o ser humano agredido e sua reabilitao.
Ainda, vale dizer quanto a real ocorrncia do assdio, que para se constatar sua
prtica, imprescindvel que se verifique, in casu, o nexo causal a relao de causa que
guarda o comportamento da vtima com o evento danoso do qual o assediado vtima.
Se no se verifica o nexo, no h se falar em assdio. Essa anlise fundamental para
que no se crie uma indstria em torno das indenizaes por assdio, o que,
ocorrendo, dentro em pouco, sem dvida mitigaria as pesquisas e as lutas empenhadas
at ento, porque o assdio se tornaria um tema banalizado.
Como demonstrado, por ser contrrio s concepes morais normalmente aceitas
e aos princpios regulamentados pela legislao internacional e nacional, o assdio deve
ser tratado institucionalmente, por governo e iniciativa privada, sob pena de se criarem
focos pontuais dispersos, sem a fora necessria para uma condenao pragmtica mais
slida.
As ocorrncias fticas acima expostas so meramente ilustrativas. Nosso
principal objetivo foi refletir sobre o fenmeno sob perspectivas mais eclticas. O espao
destinado s ilustraes limita as anlises delas decorrentes.
Como sugesto para estudos futuros, prope-se a elaborao de pesquisas que
desvendem o grau de relao entre o assdio e outras variveis, tais como: tipo de
estrutura organizacional; estilo de liderana; canais de comunicao; tamanho da
organizao; etc.; tratando-se as variveis relacionadas de forma dependente ou
independente. Interessante seriam tambm estudos que relacionassem o assdio a
medidores organizacionais quantitativos, como produtividade e rentabilidade.
Certamente, seriam estudos de grande valia para o desvendo da sistemtica do
fenmeno. A relevncia do ser humano num contexto organizacional justifica uma
constante atividade cientfica especulativa sobre o tema em questo.
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