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1 ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE CIÊNCIA POLÍTICA 8vo. ENCONTRO ABCP 01-04 DE AGOSTO DE 2012, Gramado RS AT: Relações Internacionais Estratégias e parcerias do Brasil na ordem global: o lugar da Europa Miriam Gomes Saraiva Universidade do Estado do Rio de Janeiro [email protected] Desde 1993 que a política externa brasileira vem buscando dois objetivos paralelos e conectados entre si: uma projeção maior no cenário internacional como ator global e a construção da liderança regional na América do Sul. Essas duas iniciativas foram implementadas articuladas com a utilização da política externa como mecanismo para se conseguir insumos para o desenvolvimento nacional. Durante o governo de Lula da Silva as estratégias de conquista desses objetivos apresentaram melhores resultados. Por um lado, o cenário internacional de 2003, quando teve início a gestão de Lula, estava já diferente da ordem internacional globalizada e de caráter homogêneo dos anos 1990. O ataque às Torres Gêmeas de 11 de setembro abriu novas perspectivas de fragmentação da ordem com espaços para a modificação do peso de seus atores no processo de conformação das regras do jogo. A crise financeira de 2008 contribuiu para uma consolidação desses novos espaços. Em termos de América do Sul, desde o início dos anos 2000 que o liberalismo vem mostrando suas limitações na região e governos de caráter antiliberais foram eleitos reforçando as tendências à mudança. Este cenário regional favoreceu ajustes no comportamento brasileiro para o continente. Por outro lado, o presidente Lula promoveu uma mudança significativa no interior do Itamaraty, alterando o grupo de maior influência no processo de formulação da política externa. Esses novos atores que ocuparam posições de destaque empreenderam reformas na estratégia de comportamento externo adotando um caráter mais assertivo, que ampliou de fato tanto a projeção do país na política internacional quanto a presença no continente sul-americano. Nos marcos destas iniciativas, em 2007 o Brasil assinou um acordo de Parceria Estratégica com a União Européia.

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ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE CIÊNCIA POLÍTICA

8vo. ENCONTRO ABCP 01-04 DE AGOSTO DE 2012, Gramado RS

AT: Relações Internacionais

Estratégias e parcerias do Brasil na ordem global: o lugar da Europa

Miriam Gomes Saraiva Universidade do Estado do Rio de Janeiro [email protected]

Desde 1993 que a política externa brasileira vem buscando dois objetivos

paralelos e conectados entre si: uma projeção maior no cenário internacional como ator

global e a construção da liderança regional na América do Sul. Essas duas iniciativas

foram implementadas articuladas com a utilização da política externa como mecanismo

para se conseguir insumos para o desenvolvimento nacional. Durante o governo de Lula

da Silva as estratégias de conquista desses objetivos apresentaram melhores resultados.

Por um lado, o cenário internacional de 2003, quando teve início a gestão de

Lula, estava já diferente da ordem internacional globalizada e de caráter homogêneo dos

anos 1990. O ataque às Torres Gêmeas de 11 de setembro abriu novas perspectivas de

fragmentação da ordem com espaços para a modificação do peso de seus atores no

processo de conformação das regras do jogo. A crise financeira de 2008 contribuiu para

uma consolidação desses novos espaços. Em termos de América do Sul, desde o início

dos anos 2000 que o liberalismo vem mostrando suas limitações na região e governos

de caráter antiliberais foram eleitos reforçando as tendências à mudança. Este cenário

regional favoreceu ajustes no comportamento brasileiro para o continente.

Por outro lado, o presidente Lula promoveu uma mudança significativa no

interior do Itamaraty, alterando o grupo de maior influência no processo de formulação

da política externa. Esses novos atores que ocuparam posições de destaque

empreenderam reformas na estratégia de comportamento externo adotando um caráter

mais assertivo, que ampliou de fato tanto a projeção do país na política internacional

quanto a presença no continente sul-americano. Nos marcos destas iniciativas, em 2007

o Brasil assinou um acordo de Parceria Estratégica com a União Européia.

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Como a diplomacia brasileira identificou ordem internacional a partir dos anos

2000? Qual lugar vem sendo ocupado pela Europa na política externa brasileira do

período? Como e Europa é percebida pelos formuladores da política externa brasileira,

quais as expectativas brasileiras em relação ao continente e aonde há possíveis áreas de

cooperação? Partindo do suposto que o Brasil está construindo, ao mesmo tempo, tanto

sua liderança na região quanto seu papel como ator global, esse artigo apresenta as

percepções e expectativas da diplomacia brasileira em relação à Europa.

Cabe ressaltar como premissa, porém, que as percepções da diplomacia

brasileira da UE não têm sido claras. A Europa comunitária tem três canais de relações

com o Brasil: do país com a própria UE, relações bilaterais com um (ou mais de um) de

seus Estados membros, e da UE com o Mercosul. Para a diplomacia brasileira, de

tradição realista, alguns países membros da UE –com destaque para Alemanha, França,

Espanha e Portugal- são considerados parceiros importantes, enquanto a UE em seu

coletivo é identificado com um ator que sistematicamente traz complicações para o

Brasil. Nas negociações de temas complexos com o Brasil a Comissão Europeia tem uma

margem de manobra limitada, que reduz as possibilidades de ção de seu interlocutor.1 A

percepção da UE como ator político internacional não vem sendo definida com precisão

e, politicamente, A diplomacia brasileira tem clara preferência por relações

intergovernamentais. Estas três dimensões são tomadas em conta no decorrer da análise.

Com vistas a cumprir seu objetivo, o artigo apresenta primeiro e um debate entre

continuidade e mudança na política externa brasileira. Em seguida, faz um breve histórico

do comportamento externo brasileiro frente à UE desenvolvido pelo governo de

Fernando Henrique Cardoso. A terceira parte apresenta as ideias que deram base para a

formulação da política externa durante o governo de Lula. O quarto subitem analisa as

características da política externa propriamente dita implementada durante o governo de

Lula, seguida de uma parte que foca o lugar da Europa no marco das estratégias e

parcerias brasileiras nos marcos de uma ordem internacional em transformação. Por fim,

o artigo discute as expectativas e possibilidades que se abrem com o novo governo de

Dilma Rousseff. Como pano de fundo da análise, as ideias dos formuladores de política

externa têm um peso importante.

1 Para mais informações sobre os limites da margem de manobra da Comissão nas negociações internacionais, ver Canesin (2009).

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Continuidade e descontinuidade na política externa de Lula

Em termos gerais, a política externa brasileira é identificada pela continuidade.2

Como pano de fundo para esta perspectiva, pode ser identificado, por um lado, um

discurso político que defende a continuidade e, por outro, algumas crenças que orientam

sua evolução há muitos anos: a autonomia, a ação universalista.3 Neste caso, o

universalismo corresponde à ideia de estar aberto para manter relações com todos os

países, e pode ser vinculado ao comportamento de “global player”. A autonomia, por

sua vez, é definida, grosso modo, como a margem de manobra que o país tem nas suas

relações com demais Estados e em sua atuação na política internacional. Subjacente às

ideias de universalismo e autonomia está uma crença histórica entre os formuladores da

política externa: desde o início do século XX que podem ser identificados alusões em

discursos ao destino do Brasil como uma grande potência. Com base nesta perspectiva,

acreditou-se que o Brasil deveria ocupar um lugar especial no cenário internacional em

termos político-estratégicos (Silva, 1998).

Assim, a forte concentração do processo de formulação da política externa

brasileira com a presença histórica do Itamaraty enquanto burocracia especializada

contribuiu durante muito tempo, desde uma perspectiva do institucionalismo histórico,4

para um comportamento mais estável pautado em princípios de mais longo prazo. No

entanto, estas crenças dão base à organização de comportamentos externos inspirados

em premissas claramente realistas.

Desta forma, a perspectiva de continuidade (destacada no discurso político)

convive com descontinuidades. As opções podem orientar-se para estratégias de caráter

mais multipolar ou de busca de ganhos relativos no cenário internacional; para

preferências por uma atuação externa mais autônoma ou por alinhamentos a parceiros;

para um comportamento do país como stakeholder ou como revisionista das instituições

internacionais. O conceito de autonomia assumiu diferentes abordagens no decorrer dos

últimos anos.5 Nestes casos, as alternativas foram definidas a partir do contexto

internacional do momento, da estratégia de desenvolvimento e de determinados cálculos

2 A ideia da continuidade é apresentada pela diplomacia brasileira como um dado, entendendo os ganhos políticos que esta crença pode trazer. 3 Segundo Vigevani et al (2008), a autonomia e o universalismo devem ser vistos como elementos norteadores do comportamento externo brasileiro. 4 Ver Hall e Taylor (1996). 5 Autonomia pela distância, autonomia pela participação, autonomia pela integração, autonomia pela diversificação.

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dos formuladores de política externa que variaram de acordo com a visão política e a

percepção destes formuladores do que seriam os interesses nacionais, da conjuntura

internacional e de outras variáveis mais específicas. Lima (1990, 17) argumenta que

países como o Brasil adotam com freqüência um comportamento internacional de

natureza multifacetada que busca, ao mesmo tempo, beneficiar-se das possibilidades do

sistema internacional, liderar esforços de remodelá-lo com vistas a beneficiar os países

do Sul, e atuar no contexto regional com uma perspectiva de liderança.

Nos anos 90, segundo Lima (2000), na medida em que a agenda de política

externa foi ganhando espaço nos marcos das políticas públicas e tornando-se objeto de

interesse de diferentes setores da sociedade, o monopólio do Itamaraty na formulação de

políticas e do que seria apresentado como “interesses nacionais” do país perdeu força. A

abertura da economia contribuiu para a politização da política externa em função da

distribuição desigual de seus custos e ganhos, enquanto a consolidação democrática

fomentou na sociedade debates e preferências sobre temas de diferentes áreas da agenda

internacional. Estes dois processos abriram espaços tanto para a consolidação de

correntes de pensamento diferenciadas no interior do Itamaraty.

Desde os anos 1990 a diplomacia brasileira é dividida grosso modo entre duas

correntes de pensamento -autonomistas e institucionalistas pragmáticos- com visões

diferentes sobre a dinâmica da ordem internacional, sobre interesses nacionais e sobre a

melhor estratégia para se atingir os objetivos de autonomia e crescimento econômico do

país. Estas duas correntes foram consonantes com visões de atores políticos do período

e consolidaram-se no decorrer da década.6 Por outro lado, essa diferença de visões no

interior do MRE facilitou a inclusão atores de outras agências estatais e de atores não-

governamentais no processo de formulação e implementação de iniciativas externas.

Antecedentes no comportamento brasileiro para a UE: expectativas de parceria

Nos marcos da diplomacia brasileira, os institucionalistas pragmáticos vieram

a compor a corrente de pensamento e ação que se consolidou durante o governo de

Cardoso. No campo econômico, seriam favoráveis a um processo de “liberalização

condicionada” da economia7 e, no espectro partidário, encontrariam maior identidade

6 Sobre este tem aver Saraiva (2010). 7 Segundo Veiga (2002), nos anos 90 estabeleceu-se no Brasil uma confrontação com equilíbrio sobre os rumos da estratégia de desenvolvimento a ser adotada entre um pensamento liberal e outro mais tradicional, nacionalista e desenvolvimentista. E isto levou à implementação de forma gradual e

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principalmente no PSDB. Os institucionalistas pragmáticos caracterizaram-se por dar

maior importância ao apoio do Brasil aos regimes internacionais em vigência. Esta

postura identificava a regulamentação das relações internacionais como um cenário

favorável ao desenvolvimento econômico brasileiro. Defendia também a ideia de uma

inserção internacional do país a partir de uma nova visão dos conceitos de soberania e

autonomia, aonde os valores globais deveriam ser defendidos por todos. Neste caso, a

autonomia comportaria um país integrado à ordem internacional que empreenderia suas

iniciativas frente a diferentes temas nos marcos das instituições multilaterais vigentes.

Dentro dessa perspective, o conceito de soberania foi revisado dando lugar à

adoção da noção de “soberania partilhada”. Esta visão identificava um mundo marcado

por um “concerto” de países com discurso homogêneo em defesa de valores universais,

junto com a tendência a formar regimes para garanti-los. Uma das condições da

manutenção deste “concerto” seria a grande adaptabilidade da liderança norte-

americana às demandas das potências e, em segunda instância, dos países médios e

pequenos (Fonseca Jr. 1999, 32). Este cenário abriria espaços para o Brasil –em uma

busca de mecanismos para ampliar sua capacidade de atuação internacional- adotar uma

posição que não significasse nem alinhamento aos Estados Unidos e nem postura de

“free rider”, e que permitisse ao país maior projeção internacional nos marcos das

instituições internacionais. Esta posição orientar-se-ia, em primeiro lugar, pela

percepção da existência de um novo cenário de alinhamentos variáveis. Dentro da

manutenção da crença da autonomia, isto significou também uma modificação em seu

conteúdo: a ideia da “autonomia pela integração” se firmou, em detrimento da

autonomia buscada anteriormente visando a distância ou a autossuficiência do país.8

Em relação aos Estados Unidos, a política externa brasileira manteve divergências

tanto em temas da organização do comércio internacional e do protecionismo dos países

desenvolvidos quanto em temas relacionados ao processo de integração do continente

americano. Enquanto o governo norte-americano mostrava mais pressa em concluir a Área

Livre Comércio das Américas (ALCA), o governo brasileiro preferia criar obstáculos e

atrasar a sua conclusão dando ênfase às experiências sub-regionais como o Mercosul.

descontínua e muitas vezes incompleta dos novos paradigmas liberais. Este cenário foi por ele caracterizado como de “liberação condicionada”. 8 ”Acabaram-se os tempos de isolacionismo e da auto-suficiência. A soberania nacional deixou de ser argumento para comportamentos que atentam contra os valores fundamentais”, “A autonomia pela integração significa apoio aos regimes internacionais”. Lampreia (1998, 8-11).

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Em relação à aproximação com outros países do Sul que havia tomado um forte

impulso durante o governo anterior, a ascensão dos institucionalistas pragmáticos

favoreceu uma diminuição em seu ritmo e a concentração de maiores esforços no campo

comercial. Em 1996 foi assinado o Acordo de Pretória e foram iniciadas as negociações

comerciais entre o Mercosul e a África do Sul que culminaram em um acordo marco

assinado em 2000.9 Dentro dos marcos do universalismo, o destaque a interações com

novos parceiros foi importante.

No que diz respeito à South America a aplicação prática da ideia de “soberania

compartilhada” não ocorreu. Na esfera regional a ideia de autonomia colocou-se com mais

força. Partindo da premissa de apoio aos regimes e valores internacionais A diplomacia

iniciou uma revisão do comportamento tradicional brasileiro frente à região pautado

pela ideia da não-intervenção e buscou construir sua liderança na área a partir de um

equilíbrio entre integração, segurança regional, estabilidade democrática e

desenvolvimento da infraestrutura (Villa, 2004); através do estabelecimento de vínculos

fortes com os países vizinhos e atuando como mediador de situações de crise quando

chamado para tal função. Já durante o segundo mandato a diplomacia brasileira passou a

identificar os países da América do Sul mais claramente como parceiros necessários

para o fortalecimento da atuação brasileira como global player e em sua posição

negociadora em foros multilaterais, e também como um espaço para expansão do

desenvolvimento nacional. Em 2000 teve lugar a primeira reunião dos países sul-

americanos em Brasília com vistas a formar a Comunidade Sul-Americana de Nações

(CASA), onde as principais ideias discutidas foram integração econômica e

infraestrutura, junto com a perspectiva de reforço dos regimes democráticos.

Em relação ao Mercosul, os institucionalistas pragmáticos identificavam-no com

um instrumento para aumentar os ganhos do país em termos econômicos dando

prioridade para a integração comercial. Com esta perspectiva, o regionalismo aberto foi

importante de ser preservado para não obstacularizar relações com outros parceiros, e a

institucionalização do bloco não era foi vista como necessária (limitando-se a quando

potencializasse a capacidade do bloco de produzir benefícios). Ademais, a visão

favorável à abertura condicionada da economia identificava parcerias com países

industrializados como um importante elemento para estimular o comércio exterior, e o

Mercosul como um espaço para reduzir o impacto da abertura em termos mais geral. O

9 O fim do apartheid abriu caminho para relações de novo tipo entre os dois países.

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processo de negociações de formação da ALCA e o diálogo estabelecido entre o bloco e a

UE desenvolveram-se em conjunto. No âmbito interno ao Mercosul, a defesa da

democracia foi materializada na reação brasileira e argentina à crise vivida pelo governo

paraguaio, em 1996, e na criação posterior da Cláusula Democrática.

A visão brasileira da União Européia e dos países europeus durante a presidência

de Cardoso esteve ligada, por um lado, à convergência com os valores vigentes na

ordem internacional e, por outro lado, com a necessidade percebida pela diplomacia

brasileira dos Estados Unidos ter que buscar compartilhar sua gestão com potências

menores aonde uma parceria do Brasil com países europeus poderia ter um papel

importante. Desde a perspectiva brasileira, se a UE poderia ser identificada como um

bloco econômico importante e como um ator identificado com os valores internacionais

vigentes, os países europeus eram percebidos mais claramente como aliados potenciais

para a projeção externa do Brasil e para uma reforma da ordem internacional.

No que diz respeito especificamente às relações UE-Brasil, na esfera econômica

as áreas de cooperação, comércio e investimentos diretos foram consideradas mais

importantes. Em seu primeiro ano de governo, Cardoso visitou a Comissão Européia

buscando reforçar a imagem do êxito da liberalização econômica e do Plano Real. A

estabilização da economia com o novo plano econômico contribuiu para um aumento

dos investimentos diretos e da cooperação. Por outro lado, a UE, ainda nessa época, era

vista por parte dos quadros do governo brasileiro como um modelo de integração

regional a ser seguido.

No final de 1995 foi assinado um acordo marco de cooperação entre a UE e o

Mercosul cujas negociações de fato tiveram início em 1999. O acordo comportava a

liberalização comercial, cooperação econômica e diálogo político. No campo político os

espaços abertos pelo Acordo foram aproveitados e o diálogo foi levado adiante apesar

da ausência de uma institucionalização. A tônica explícita das relações políticas entre os

dois parceiros durante o período foram os valores compartilhados, defendidos nos

regimes internacionais. No campo da cooperação, as iniciativas de apoio à

institucionalização e aprofundamento do Mercosul e as orientadas para a sociedade civil

foram prioritárias.10

10 Em 1992 havia sido assinado um acordo interinstitucional entre a Comissão Europeia e o Grupo Mercado Comum do Mercosul e em 2001, ainda no governo de Cardoso, foi assinado entre os dois blocos um Memorando de Entendimento para agilizar a cooperação.

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As negociações comerciais, por seu turno, foram difíceis. Mesmo antes do

acordo entrar em vigor, a Comissão e o Mercosul acordaram em uma implementação

provisória da cooperação no campo comercial. Em 1996, as estruturas previstas no

mesmo começaram a funcionar e foram realizadas algumas rodadas de negociação

(Valle 2002, 130). Em 1999 o acordo entrou por fim em vigor dando início às

negociações, mas os passos no sentido da liberalização comercial mostraram-se difíceis

encontrando obstáculos nas posições protecionistas de setores europeus e brasileiros. No

decorrer do processo negociador, a UE não se empenhou em atender a principal área de

interesse do Mercosul de abrir seu mercado agrícola para as exportações do bloco,

enquanto que o governo brasileiro, por sua vez, não fez concessões frentes a

reivindicações europeias de abrir seu mercado para produtos de tecnologia de ponta ou

autorizar a participação de empresas estrangeiras em licitações públicas no Brasil.

De todo modo, havia expectativas por parte do governo de Cardoso de que essas

negociações poderiam levar, no médio prazo, a um acordo de associação comercial. A

organização da primeira cúpula entre os países da UE, América Latina e Caribe no Rio

de Janeiro, em 1999, favorecia o desenvolvimento dessas expectativas. Por outro lado, o

fato da possibilidade de avanço desse acordo ter sido identificada pelo governo

brasileiro como uma alternativa às negociações comerciais com os Estados Unidos,

serviu como elemento impulsionador do interesse brasileiro em aproximar-se da UE.

Para uma diplomacia interessada em dificultar os avanços das negociações para a

formação da ALCA, o diálogo com a UE aparecia como um instrumento importante.

Paralelamente ao diálogo nos marcos do Mercosul, a diplomacia presidencial de

Cardoso apostou em uma aproximação maior com países europeus com base em uma

suposta visão de mundo partilhada e em um conjunto de princípios que seriam

basicamente a defesa da democracia, as preocupações com a paz regional e

internacional, a construção de um mecanismo de integração como forma de

relacionamento com os países vizinhos, e a identidade cultural originária do passado

histórico. A diplomacia presidencial foi ativa buscando uma aproximação com líderes

europeus e com vistas a se construir uma aliança sobre princípios de atuação

internacional acompanhada de uma reforma da ordem internacional dentro dos regimes

internacionais vigentes. A expectativa de receber apoio de países europeus para a

candidatura brasileira a membro permanente do Conselho de Segurança das Nações

Unidas foi importante para a diplomacia brasileira. A assinatura por parte do Brasil do

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Tratado de Não-Proliferação e do Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis

buscava, entre outras, criar confiança dos europeus em uma projeção internacional do

país. As relações com Portugal e com os países da Comunidade de Países de Língua

Portuguesa também foram incentivadas. As expectativas, nesses casos, foram orientadas

para países europeus e não para a UE em seu coletivo.

No entanto, esses esforços não tiveram resultados concretos; segundo Ayllón

Pino e Saraiva (2010), poder-se-ia mencionar uma estranha combinação de expectativa

e frustração. Na dimensão comercial UE-Mercosul, terminava o governo de Cardoso

sem avanços nas negociações. A busca de maior aproximação do Brasil em termos

individuais com a UE levada adiante através da diplomacia presidencial de Cardoso

limitou-se à interação do presidente como acadêmico com seus pares europeus defensores

de uma terceira via para o desenvolvimento da economia e da sociedade capitalista.

Embora fosse um momento aonde a opção brasileira de apoio aos regimes internacionais

poderia ter fortalecido uma aliança estratégica UE-Brasil em termos de ações conjuntas

frente a problemas da política internacional e da política sul-americana, a prioridade

européia orientou-se para o interregionalismo. A UE apostou durante esses anos no

diálogo do bloco com o Mercosul.

Novas visões da inserção internacional do país

A eleição de Lula à presidência trouxe uma mudança importante no Itamaraty. A

ascensão do governo de Lula, por outro lado, reforçou a atuação da corrente

autonomista; o grupo consolidou-se como principal formulador da política externa

brasileira desde então. Seu traço mais marcante é a defesa de uma projeção mais

autônoma e proativa do Brasil na política internacional. Dentro desta perspectiva eles

defendem uma reforma da dinâmica das instituições internacionais no sentido de criar

espaços de atuação para o país. Nos marcos de um comportamento segundo Lima,

baseado em um revisionismo soft da ordem internacional,11 os autonomistas têm

preocupações de caráter político-estratégico, no que se refere ao embate Norte/Sul, e

buscam uma aproximação com outros países considerados emergentes que teriam

11 Exposto por Maria Regina Soares de Lima, sobre “As bases conceituais da Política Externa Brasileira”, op.cit.

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características comuns com o Brasil. A construção da liderança regional e a ascensão

para a posição de potência global são seus objetivos principais.12

Em grande medida, os autonomistas são tributários do desenvolvimentismo no

campo econômico. São a favor de um modelo que incentiva o desenvolvimento com um

estado forte ativamente envolvido na política industrial e mais comprometido com a

projeção externa das indústrias nacionais. Eles identificam a integração como um

instrumento de acesso a mercados externos, como mecanismo de fortalecimento do país

nas negociações econômicas internacionais.

A ascensão de Lula trouxe, porém, uma variante no processo de formulação e

implementação da política externa. O grupo dos autonomistas coexistiu com um grupo

mais recente com suas proposições próprias no campo de política externa que não havia

tido vínculos anteriores com a diplomacia mas que, durante o governo de Lula e no

processo de inclusão de uma maior número de atores no processo de formulação da

política externa, conseguiu estabelecer um diálogo com o Itamaraty e exercer alguma

influência nas decisões de política externa.13 Sua origem está em acadêmicos e

lideranças políticas sobretudo do Partido dos Trabalhadores (PT). O partido

tradicionalmente teria uma faceta internacionalista e seu programa de governo, em

2003, destacava também a contribuição do país para a diminuição das tensões

internacionais e para a construção de um mundo mais equilibrado.

Diferentemente da tradição de concentração na formulação de política externa no

Itamaraty, o presidente Lula convocou a Marco Aurélio Garcia, então secretário de

Relações Internacionais do PT, para prestar-lhe assessoria, abrindo com isto espaços

para influência deste grupo no processo de formulação. Prioritariamente, as

preocupações deste grupo orientar-se-iam para o processo de integração regional e

defenderiam uma disposição brasileira de arcar em maior medida com os custos da

integração na América do Sul.

Esta disposição teve influencia, entre os autonomistas do Itamaraty, na medida

em que contribuiu para o Brasil ter um papel mais proativo na cooperação com países

vizinhos e países do continente Africano. Em caso de diferenças, porém, o papel do

12 Junto com a corrente autonomista do Itamaraty, o governo de Lula foi influenciado em sua política externa para a região por pensadores de cunho nacionalista que identificam o Brasil como o país mais importante ao sul do Equador e capaz de influenciar os demais por ter atributos especiais como população, geografia, economia, etc. 13 Para maiores informações sobre o tema ver Briceño Ruiz e Saraiva (2010).

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presidente Lula como articulador das duas visões foi importante. Sua forte diplomacia

presidencial e sua participação no processo de formulação da política externa garantiram

os canais de expressão dos pensadores oriundos de seu partido.

Este ponto de vista pode ser visto também em outras agências

governamentais.14 O desenvolvimento da cooperação sul-sul nos marcos da diplomacia

brasileira aumentou a presença de outros ministérios como o da Saúde, de Ciência e

Tecnologia e de Educação na formulação da política de cooperação internacional, assim

como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) ganhou

maior presença em financiamentos externos.15 Por outro lado, durante o período o

interesse e o debate sobre política externa na sociedade civil em geral e, mais

especificamente, na mídia, cresceram progressivamente.

Os autonomistas no centro do processo de formulação da política externa,

articulados às influências do partido do presidente e do próprio presidente,

interromperam a continuidade no que diz respeito à visão de mundo e as estratégias

implementadas levando o país a um movimento claro de fortalecimento de sua presença

internacional como global player.

Ascensão do Brasil no cenário internacional

As novidades em política externa, porém, não se colocaram a partir de uma

ruptura e foram sendo sentidas pouco a pouco no decorrer dos dois mandatos. Vigevani

e Cepaluni (2007, 282) defendem a existência “mudança de tonalidade e de ênfase em

sua política externa (ajustes), buscando novas formas de inserção internacional para o

país (mudanças de programa)”. Embora haja havido continuidade nas crenças e na

utilização da política externa como instrumento para conseguir insumos para o

desenvolvimento, os autonomistas trouxeram uma descontinuidade na visão de mundo e

nas estratégicas adotadas, orientando o comportamento externo brasileiro para a

valorização da autonomia das ações externas do país; para o reforço do universalismo

através da cooperação sul-sul e das instâncias multilaterais; e para o fortalecimento o

papel proativo do Brasil na política internacional.

Na esfera da política internacional, o governo de Lula encontrou um cenário

internacional favorável a esse sucesso. A conjuntura internacional globalizada e um 14 Este grupo é identificado por Malamud e Castro (2007) como progressistas. 15 Sobre a participação de novos atores na política externa brasileira, ver Hirst, Soares de Lima e Pinheiro (2010).

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sistema internacional multipolarizado com maior participação de novos atores após o

11/Setembro, abriram novos caminhos para a projeção internacional do Brasil. A crise

financeira de 2008 abateu sobretudo sobre as economias centrais abrindo espaços para

maior destaque no campo econômico para os chamados emergentes, que não foram

afetados na mesma medida pela crise. Na América do Sul, a ascensão de novos governos

antiliberais e com projetos de refundação do próprio regime político desde o início dos

anos 2000 reduziu os alinhamentos de países vizinhos com os Estados Unidos

ampliando a autonomia do comportamento brasileiro na região.

A ascensão da corrente autonomista diminuiu a convicção nos regimes

internacionais, que foi substituída por um comportamento ativo com vistas a modificá-

los em favor dos países do Sul ou em benefício próprio. A liderança regional e a

ascensão como potência de corte globalista através de uma reorganização das

instituições internacionais a partir de padrões mais inclusivos foram objetivos claros.

Com vistas a implementar este projeto, a diplomacia brasileira atuou em diversos

campos e com diferentes tipos de parcerias. Na dimensão multilateral, o governo de Lula

adotou uma estratégia proativa assumindo uma atuação forte na Organização Mundial do

Comércio (OMC), através de ação conjunta com outros países em desenvolvimento. O

primeiro G-20, formado por países do Sul, tornou-se um instrumento importante na

estratégia brasileira. Conseguiu vincular o desfecho da Rodada de Doha às negociações

agrícolas. O Fórum IBSA (Índia, Brasil e África do Sul) foi criado, com vistas a debater

questões relacionadas à ordem internacional, às Nações Unidas e à tecnologia – estes

países foram identificados pela diplomacia brasileira como principais parceiros do

Brasil em um esforço de eventual reformulação da ordem internacional.

A classificação do Brasil como parte dos BRICS e a consolidação do grupo

como mecanismo de articulação diplomática abriu espaços para a diplomacia brasileira

buscar sintonia de comportamento com outros países emergentes no qual, além dos

temas tratados no Fórum IBSA, houve tentativas de se ordenar os fluxos de capitais.

Nesse processo, a China consolidou sua posição de principal país parceiro comercial

brasileiro. Nos dois casos, caminharam juntas as aspirações revisionistas tanto políticas

quanto econômicas, aonde outros países emergentes seriam vistos pelos formuladores

da política externa como “iguais” e, portanto, como os principais parceiros da estratégia

brasileira em uma ordem em transformação.

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13

O ativismo no sentido de maior presença internacional cresceu de forma

significativa com a participação proativa do Brasil em foros multilaterais como o

convite reiterado para participar junto com outros países emergentes de reuniões do G-7

+ Rússia, e no exemplo do novo Grupo dos 20, formado com vistas a combater a crise

financeira internacional.

Em termos políticos, a maior meta da diplomacia brasileira foi a reforma da

ONU e, no seu bojo, a aceitação do Brasil como membro permanente do Conselho de

Segurança. A estratégia adotada neste campo foi a de aproximação com países que

tivessem o mesmo objetivo, como no caso da Índia, África do Sul, Alemanha e Japão.

Outra estratégica foi a de buscar apoio dentre os membros permanentes atuais. O

insucesso deste projeto incentivou a diplomacia brasileira a atuar em diferentes fóruns

multilaterais como as negociações sobre a mudança do clima (através do BASIC) e a

questão energética. Lula muniu-se de forte diplomacia presidencial para projetar a

imagem do Brasil em outros cenários, como no Oriente Médio.

Foi clara a importância dada aos parceiros menores e aos esforços de incluí-los

em uma estratégia mais global. Através da cooperação sul-sul, o governo brasileiro

reforçou seus laços bilaterais com países sul-americanos e africanos. Se com parceiros

emergentes de outros continentes foram incrementados o intercâmbio tecnológico, as

ações conjuntas nos foros multilaterais e a ideia clássica da não-intervenção , em relação

a parceiros da região e países africanos a prioridade foi dada à cooperação técnica e

financeira e à “não-indiferença”.16 Estes países foram receptores de empresas brasileiras

das áreas de empreendimentos de construção e petróleo. Houve um reforço importante

da presença brasileira na África, assim como foram criados mecanismos de contato

como as cúpulas América do Sul-África e América do Sul-Oriente Médio. Desses

parceiros, a diplomacia brasileira esperou o apoio a suas iniciativas internacionais.

No que diz respeito aos Estados Unidos, o governo brasileiro manteve diferenças

em relação às normas do comércio internacional, e mais particularmente, no que diz

respeito aos processos de integração nas Américas. Na esfera regional, obstacularizou

definitivamente as negociações para a formação da ALCA. Por um lado, a participação

mais autônoma do Brasil criou novas áreas de atrito com os Estados Unidos, mas que

foram tratadas com baixo perfil.

16 Termo cunhado pelo chanceler Celso Amorim para justificar o envolvimento brasileiro em questões internas de outros países da região sem abandonar formalmente as bases da não-intervenção.

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14

Em relação à América do Sul veio à tona o debate sobre o binômio liderança

regional/projeção global. Trata-se de duas estratégias complementares, mas que

poderiam existir de forma independente. A ausência de uma política externa do governo

de Obama para a região abriu espaços de atuação para a diplomacia brasileira e a

construção da liderança brasileira na América do Sul vem sendo marcada pelo segundo

tipo de cooperação sul-sul assinalado acima, dentro dos padrões de soft power. O

governo brasileiro vem buscando articular um processo de cooperação/integração

regional de baixa institucionalidade com o bilateralismo, e a Unasul veio a ser um

mecanismo que atende a objetivo. Seria um canal através do qual a diplomacia brasileira

vem atuando com vistas a construir posições comuns com os países vizinhos frente a

situações de crise, buscando sempre ocupar o papel principal em seu interior.

Progressivamente, o governo brasileiro vem também aceitando a perspectiva do país

exercer o papel de paymaster na região, bancando alguns dos custos de um processo de

integração. A cooperação com vistas ao desenvolvimento de alguns setores vem sendo

implementada com países vizinhos através do financiamento de obras de infraestrutura e

da cooperação técnica e o BNDES passou a dar financiamentos para obras de

infraestrutura em outros países sul-americanos, conduzidas por empresas brasileiras.

Nos marcos do projeto de revisão da ordem internacional, a integração brasileira

com a região vem sendo identificada com o caminho para melhor inserção externa, que

possibilitaria a realização do potencial brasileiro de formação de um bloco capaz de

exercer maior influência internacional.

O Mercosul, por fim, deixou de ter um papel importante em uma estratégia mais

global e pode ser visto dentro da perspectiva sul-americana. O fortalecimento da

economia brasileira e a projeção do país no cenário internacional trouxeram para a

diplomacia brasileira novas áreas de atuação que não foram acompanhadas pela Argentina.

A diplomacia brasileira vem atuando em diferentes fóruns multilaterais sem nenhuma

articulação com o país vizinho. No entanto, o processo de integração com os vizinhos ao

sul seguiu sendo uma política de estado. Se a integração comercial enfrentou obstáculos, o

bloco experimentou uma reconfiguração de seu perfil. A cooperação entre diferentes

ministérios (educação, cultura energia, trabalho) cresceu, e a criação Parlamento do

Mercosul deu um novo estímulo à institucionalização do processo de integração. E,

sobretudo, manter a Argentina dentro de laços de cooperação seria importante para o

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projeto brasileiro; o renascimento de uma rivalidade entre os países seria corrosivo para a

liderança brasileira na região, e dificultaria também a projeção global do país.

Visão brasileira da Europa

Neste contexto, a percepção brasileira da UE experimentou uma inflexão.

No campo comercial, as negociações para a assinatura de um acordo de

associação UE-Mercosul foram interrompidas no final de 2004 e vinculadas às

negociações da Rodada de Doha. Foram retomadas somente no final do mandato de

Lula em função da disposição positiva da presidência espanhola do bloco. Com a

sombra dos limites da margem de manobra negociadora da Comissão, a UE seguiu sem

atender à principal área de interesse do Mercosul -abrir seu mercado agrícola- enquanto ao

Brasil seguiu não lhe interessando atender a reivindicações europeias em alguns setores de

produtos industrializados e no setor de serviços e licitações. A política econômica

neodesenvolvimentista do governo de Kirchner colocou barreiras protecionistas que

obstacularizaram ainda mais o avanço das negociações.

A interrupção nas negociações trouxe em seu bojo um esvaziamento das

expectativas da assinatura de um acordo de associação entre os dois blocos e, desde a

perspectiva brasileira, a China foi crescendo seu papel como comprador de suas

exportações de produtos agrícolas. Como complemento, nos marcos da OMC as

posições defendidas pela UE e pelo Brasil em relação ao ordenamento do comércio

internacional foram divergentes. Mas relações econômicas da UE com Brasil, porém,

seguiram intensas: a UE –se considerada em seu conjunto- seguiu sendo o maior

parceiro comercial e investidor no país. Para a UE, em 2009 o Brasil foi décimo

parceiro comercial (Grugel e Guijarro 2011, 46).

Em termos políticos, a diplomacia brasileira manteve a busca de uma

aproximação com países europeus nos marcos do projeto brasileiro de global player,

aonde uma aliança com os Estados Unidos não seria cogitada.17 Por um lado, a EU e

seus países-membros seriam identificados pela diplomacia brasileira como aliados

importantes em uma revisão da ordem internacional liderada pelos Estados Unidos. Para

os países europeus, por seu turno, haveria coincidência de valores com o Brasil em

17 De acordo com Ayllón Pino (2006), a Europa veria o governo brasileiro como um “strategic ally in

order to stop the hegemonic unilaterlism of the US”. Fonseca Jr. (2005, 7), embaixador de carreira, chama a atenção para a sintonia entre a Europa e os países latino-americanos na defesa do multilateralismo e assinala a distância que se coloca entre os últimos e os Estados Unidos.

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temas como desenvolvimento, democracia e paz internacional; no que diz respeito à

defesa do multilateralismo na política internacional; e o Brasil seria uma potência civil,

sem armas nucleares (Gratius 2011, 4). No entanto, nem sempre convergem as

percepções que cada lado tem desses temas nem da melhor estratégia para alcançar estes

objetivos gerais.18 E o grande diferencial de poder que marcou historicamente as

relações entre ambos foi reduzido em função da ascensão brasileira na política

internacional (Ayllón Pino e Saraiva 2011, 59).

Este movimento dos dois atores apresentou resultados como a participação

brasileira em reuniões com europeus com vistas a discutir temas referentes às

negociações econômicas internacionais. Em 2007, foi coroada com a assinatura do

acordo de parceria estratégica UE-Brasil (instrumento utilizado pela UE para, entre

outras, administrar as relações com os países emergentes), fora do âmbito do Mercosul.

A parceira estratégica proposta pela UE inclui formalmente o reforço do

multilateralismo e a busca de ações conjuntas em temas de direitos humanos, pobreza,

questões ambientais, energia, Mercosul e estabilidade na América Latina. Como razões

de fundo para esta iniciativa, pode-se apontar o papel ativo do Brasil em temas

internacionais com destaque à Rodada de Doha; a busca por parte da UE de parcerias

com países emergentes; e ao estancamento do diálogo político UE-Mercosul em função

da incorporação da Venezuela ao bloco. Desde a perspectiva do acordo entre a UE e o

Mercosul, quando a parceria estratégica foi assinada as negociações estavam ainda em

curso, embora no momento estivessem interrompidas e os objetivos iniciais ainda longe

de serem atingidos; e implicou em um esvaziamento das relações interregionais nos

campos do diálogo político e da cooperação.

Os resultados da parceria estratégica, porém, até o final do governo de Lula foram

limitados. As cúpulas anuais previstas conseguiram o estabelecimento de compromissos de

maior cooperação nos campos de energia alternativa e mudança climática (Gratius 2011,

2). Meio ambiente, porém, é um tema difícil de ser administrado pelo governo brasileiro,

uma vez que este enfrenta uma oposição interna grande a concessões nessa área.19 A

18 Pereira (2011) ressalta que durante o governo de Cardoso, a diplomacia brasileira enfatizava a democracia como fonte de nova projeção internacional do Brasil e padrão do qual os países não deveria sair enquanto que, durante o governo de Lula, a ideia de democratização das relações internacionais ganha mais espaço nos discursos diplomáticos. 19 Importante destacar que, apesar dos compromissos anunciados pelo governo de Lula nas negociações internacionais, existe nos marcos da política doméstica e nos quadros do governo visões muito divergentes sobre como tratar a questão da mudança climática e de preservação do meio ambiente. Nesse

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17

retomada das negociações comerciais em 2010 também foram favorecidas pela parceria

EU-Brasil. Pelos formuladores de política externa, a parceria com os europeus foi vista

como instrumento capaz de trazer benefícios em termos de prestígio e reconhecimento

internacionais, assim como um canal importante para a aproximação do Brasil com

países europeus. No entanto, encontrou um limite: para a diplomacia brasileira, as

possibilidades e limites do diálogo com o serviço exterior europeu ordenado a partir do

Tratado de Lisboa não são ainda claras. No campo da cooperação internacional, em 2008

foi assinado entre o Brasil e a UE o Plano de Ação Conjunto para implementação de

iniciativas triangulares em países da CPLP.

Uma área importante aonde houve convergência de valores e interesses foi a

América do Sul. Durante o período do governo de Lula a presença do Brasil na região

cresceu muito, tanto em termos de cooperação técnica e investimentos, quanto enquanto

um poder aglutinador em termos políticos. A UNASUL representou para o governo

brasileiro um mecanismo que ressalta a dimensão política da política brasileira para a

região, e através do qual a diplomacia vem atuando articulada com os países vizinhos

frente a situações difíceis. Nesse contexto, tanto a UE quanto o Brasil defenderiam, nos

maços do continente, o multilateralismo, a defesa dos regimes democráticos e da coesão

social, a luta contra a pobreza. Desde a perspectiva européia, o Brasil passou a ser visto

como possível líder dos países sul-americanos capaz de frear as iniciativas de Chávez e

contribuir para maior estabilidade na região (Gratius 2008, 116). Segundo Ayllón Pino e

Saraiva (2011, 59), haveria um interesse europeu, mais dissimulado, de fortalecer o

Brasil em contraposição ao socialismo bolivariano; de impulsionar a liderança brasileira

para apoiar a “via brasileira para o desenvolvimento latino-americano que conciliasse

mercado e Estado, gerando crescimento e promovendo a inclusão social”.

No entanto, as possíveis convergências mencionadas não apresentaram

resultados relevantes. No que diz respeito à América do Sul, embora houvesse

convergência de expectativas, para o governo brasileiro uma atuação conjunta na região

não seria nem necessária nem desejável. O Brasil vem atuando com margens de

autonomia com seus vizinhos e uma aliança tácita com a EU poderia despertar

desconfianças e prejudicar a construção de sua liderança na região. Durante o governo

de Lula, a corrente vinculada ao PT mencionada anteriormente que exerceu influência

caso, pensando no “two level games”, de Putnam (1988), o governo brasileiro que teria um winset estreito para negociações internacionais.

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sobre a política externa –sobretudo orientada para a América do Sul- buscou aproximar-

se dos governos antiliberais da região.

Nos marcos do multilateralismo internacional as convergências também foram

fáceis. Se por um lado os países europeus seriam identificados como aliados

importantes em uma revisão das instituições internacionais, por outro lado foram

visíveis as dificuldades de aproximação em temas importantes. Gratius (2011, 4) chama

a atenção para os votos diferentes nas Nações Unidas tanto sobre o acordo com o

governo iraniano sobre a questão nuclear, em 2010, quanto no que diz respeito à

ampliação do Conselho de Segurança. Houve divergências também no Fundo Monetário

Internacional, aonde o Brasil pressionou para ampliar sua cota de participação, em

aliança com os BRICS. No que diz respeito à implementação eventual de um processo

de desarmamento nuclear, a diplomacia brasileira vem adotando uma posição diferente

das preferências da França e do Reino Unido (países nuclearizados da EU). Em temas

relativos à defesa dos direitos humanos, durante o governo de Lula, a questão foi

preterida em nome de outras prioridades de parcerias com parceiros emergentes.

A projeção brasileira no cenário internacional foi pautada pelas crenças na

autonomia e no universalismo e a diplomacia brasileira buscou projetar o país no

cenário internacional com o perfil de uma liderança individual dos países do sul. Se

houve coincidências quanto à defesa do multilateralismo, os países europeus

mostraram-se mais satisfeitos com as instituições internacionais. Os esforços de revisão

das instituições internacionais encontraram convergência com outros países emergentes.

Por fim, as relações com países europeus em termos bilaterais foram importantes

(embora não prioritárias), com destaque para os casos da Alemanha, França, Espanha e

Portugal. Esses países foram percebidos como aliados para uma inserção mais favorável

do Brasil no cenário internacional e para o reforço de sua posição como player global,

assim como fornecedores potenciais de tecnologias de ponta e investimentos. A relação

econômica com a Alemanha tem sido importante, assim como a cooperação nas áreas

ambiental e de ciência e tecnologia. Com a França teve destaque a cooperação na área

de transferência de tecnologia na área militar. As relações com a Espanha foram

pautadas pelos investimentos espanhóis no setor de serviços e pelas atuações nos

marcos da comunidade iberoamericana. Com Portugal os laços culturais e a atuação

conjunta na CPLP foram as duas esferas principais de interação.

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Legado e expectativas

O governo de Dilma Rousseff, iniciado em 2011, apesar de ser em termos

políticos uma continuidade do governo anterior, traz sempre novas expectativas e

interrogações. No entanto, vem significando a manutenção das estratégias de política

externa do governo anterior: a trajetória revisionista frente às instituições internacionais,

a atuação como representante dos países do Sul e a liderança regional. Referências à

continuidade vêm sendo recorrentes no discurso diplomático. Os autonomistas, em

termos gerais, mantiveram sua predominância dentro do Itamaraty, embora dando lugar

a gerações mais jovens com uma visão de mundo mais globalizada. A estratégia

econômica de traços desenvolvimentista vem sendo aprofundada. E a ampliação do

número de agências de governo que participam das ações de política externa –como nos

casos da cooperação técnica e investimentos- garante maior estabilidade à política. O

diálogo entre ações empresariais e o governo que existe atualmente no cenário externo

também contribui para a continuidade.20

Mas sua trajetória mostrou inflexões no que diz respeito ao processo de

formulação de política externa e ajustes em sua implementação. Hermann (1990)

defende a existência em alguns casos de modificações na política externa a nível

somente de “mudança de tonalidade e de ênfase”, que não chegam necessariamente a

alterar a forma de inserção internacional do país. No caso do governo de Rousseff,

embora haja continuidade na utilização da política externa como instrumento para

conseguir insumos para o desenvolvimento, assim como na visão de mundo e na

estratégia de inserção externa revisionista seguida durante o governo de Lula, há ajustes

de ênfase e de estilo que abrem novas expectativas dos parceiros externos.

No que diz respeito à formulação da política externa, existiu um movimento do

Itamaraty recuperar a centralidade, em detrimento do grupo aqui identificado como

vinculado ao PT. A diplomacia presidencial se reduziu, assim como o papel da

presidência como elemento equilibrador de diferentes visões de política externa que

aconteceu durante o governo anterior. Isto reduz o espaço para maior intercâmbio de

posições e percepções. No interior da corrente autonomista, por seu turno, os grupos

que ascenderam a cargos decisórios têm menos resistência a uma identificação com o

Ocidente o e dariam preferência a um comportamento mais pragmático frente a temas

20 O artigo de Mônica Hirst, Maria Regina Soares de Lima e Letícia Pinheiro traz reflexões importantes sobre os novos padrões e atores da política externa brasileira.

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polêmicos que marcam a política internacional. Esta mudança foi identificada por

artigos de imprensa, e houve um debate público sobre as possíveis descontinuidades.

O novo cenário, porém, não consolidou estas expectativas e, no que diz respeito

à União Europeia, não levou a um avanço no perfil da parceria estratégica entre ambos.

A estratégia orientada para um revisionismo soft das instituições internacionais foi

sendo mantida, assim como a perspectiva de parcerias com outros países emergentes.

Nesse campo existem poucas expectativas de modificação no que diz respeito ao papel

da Europa na política externa brasileira.

No campo das ações nos fóruns globais, os ajustes da política externa se fizeram

sentir na defesa dos direitos humanos. O voto brasileiro a favor de investigações de

denúncia de violações destes direitos no Irã e aponta para a nova preferência do governo

de Rousseff. No entanto, essa mudança não foi suficiente para alinhar o posicionamento

brasileiro às preferências europeias em temas de destaque da política internacional. Em

relação à posição predominante entre os países europeus no que diz respeito aos

enfrentamentos internos na Líbia e na Síria, a posição brasileira manteve os princípios

da não-intervenção e da solução pacífica de controvérsias, tão consolidadas no

Itamaraty.21 A utilização do princípio da “responsabilidade de proteger” vem sendo

questionada pela diplomacia brasileira destacando uma outra dimensão da ação: a

“responsabilidade ao proteger”. No que diz respeito à formação do Estado palestino, as

percepções e, consequentemente, as escolhas, também não foram coincidentes.

No que diz respeito à América do Sul embora não haja havido posições

diferentes adotadas claramente, já é possível identificar a sua perda de importância no

espectro da nova política externa brasileira. Na medida em que lideranças políticas

simpáticas a governos antiliberais perdem capacidade de influir sobre o comportamento

externo do país, as ações brasileiras na região vão assumindo um caráter mais

pragmático e de mais baixo perfil. A prioridade da construção de uma liderança na

região cede espaço para a construção de outro tipo de liderança mais ampliado, aonde a

diplomacia brasileira concentra seus esforços na construção de uma liderança brasileira

em um cenário maior – entre países sul-americanos e também africanos, de menos

recursos. No entanto, o processo de articulação entre países sul-americanos, e os

vínculos bilaterais brasileiros com países vizinhos através da cooperação técnica e 21 Em discurso feito na assembleia geral das Nações Unidas em setembro/2011 Dilma Rousseff ressaltou que: “Muito se fala sobre a responsabilidade de proteger; pouco se fala sobre a responsabilidade ao proteger”. Ou união ou derrota, O Globo, Set./22/2011, p.3.

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financeira estão estabelecidos e ramificados por diferentes esferas governamentais

dando um caráter de mais longo prazo para as políticas brasileiras para a região. Com

menos vigor, os avanços no campo da integração regional conseguidos no período de

Lula estão tendo continuidade.

A coincidência de expectativas e preferências que se configurou entre o Brasil e

a UE durante o governo de Lula em relação à região (embora sem se traduzir em algum

tipo de ação articulada), vem tendo continuidade. A expectativa europeia de que o novo

governo diminua o apoio aos governos antiliberais vem sendo contrabalançada pelo

fortalecimento da presença do Itamaraty no processo de formulação de política externa

com seus princípios tradicionais de não-intervenção.

No que diz respeito às negociações do acordo de associação comercial entre

Mercosul e União Europeia, tanto a reforma na Política Agrícola Comum prevista para

2013 pode trazer novidades, quanto a crise financeira que atravessa os países europeus

pode dificultar futuros entendimentos. A pior expectativa é que o acordo não se

confirme, enquanto as melhores previsões orientam-se para um acordo politicamente

conveniente com um perfil muito genérico e marcado sobretudo pelas exceções.

Existe, no entanto, uma área na qual se abrem perspectivas interessantes: a

cooperação internacional. Como em outros casos, é uma área aonde existe convergência

de princípios e diferenças nas estratégias. A cooperação ao desenvolvimento

implementada pela UE e seus países membros inscreve-se nos marcos da Organização

de Cooperação e Desenvolvimento Econômico, através do Comitê de Ajuda ao

Desenvolvimento, enquanto a política brasileira de cooperação apresenta-se como

alternativa, e atendendo ao que a diplomacia brasileira denomina de cooperação sul-sul,

isenta formalmente de condicionalidades. D a gestão do presidente Lula a cooperação

sul-sul cresceu muito, orientada basicamente para países da África e de menos recursos

da América do Sul. O Brasil vem se tornando um doador com a participação de diversos

ministérios e atores de diferentes agências governamentais, coordenados pela Agência

Brasileira de Cooperação. As principais áreas de cooperação são saúde, infraestrutura,

cooperação técnica com destaque para o campo da agricultura, temas de energia.

Nesse marco, tem se desenvolvido desde o segundo mandato do governo de

Lula, algumas iniciativas de cooperação triangular.22 Alguns países europeus

22 Cooperação triangular é aqui entendida como um a cooperação entre um país com mais recursos provedor de cooperação, um país de renda média também provedor de cooperação e um país de

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demonstraram interesse em projetos de cooperação triangular com países emergentes,

desde um viés instrumental, em função das possibilidades tanto de aprender com

experiências dos países do sul quanto de atrair países do sul para os princípios da

eficácia da ajuda (Ayllón Pino, 2011). Para os países emergentes, a cooperação

triangular amplia os recursos de uma iniciativa de cooperação, assim como a

visibilidade internacional das ações do país. Além do Plano de Ação Conjunta Brasil-

UE, O Brasil já implementou iniciativas de cooperação triangular nos últimos em países

africanos anos com Alemanha, Itália, Reino Unido, França e Espanha. No entanto,

existem posições divergentes dentre os formuladores da política externa brasileira sobre

a eficácia deste tipo de cooperação trilateral e o governo brasileirotem buscado

descolar-se do perfil da cooperação Norte-Sul.

Conclusão

No que diz respeito à Europa, durante o governo Cardoso houve um esforço de

aproximação do governo Cardoso com países da UE no campo político. No entanto, a

UE demonstrou preferência pelas relações interregionais como os diálogos UE-Mercosul,

UE-Grupo do Rio e UE-América Latina e Caribe. Um foro privilegiado UE-Brasil não

prosperou. Na esfera econômica, até o final do governo, foram realizadas diversas

rodadas de negociação dedicadas ao acordo de associação inter-regional, mas sem êxito.

Diferente da política externa da administração de Cardoso, o governo de Lula foi

marcado pelos padrões da corrente autonomista no campo diplomático. Com esta

orientação,, atuou de forma assertiva estratégias para aumentar a autonomia das ações

externas brasileiras, reforçou o universalismo através de iniciativas de cooperação com

países do Sul em fóruns multilaterais, reforçou a liderança brasileira na América do Sul e

reforçou o papel proativo do Brasil na política internacional.

A aproximação entre a UE e o Brasil durante o governo de Lula foi uma

iniciativa decorrente tanto do novo ativismo brasileiro na esfera internacional quanto de

sue crescente papel como poder regional. A nova tendência europeia no sentido de

assinar acordos bilaterais com países da região abriu possibilidades para este tipo de

parceria. A perspectiva de consolidação de uma liderança brasileira sobre uma América

do Sul marcada por governos antiliberais reforçou o interesse europeu de aproximação

desenvolvimento menor em termos relativos que seja receptor da cooperação. (Gómez Galán, Ayllon Pino e Albarrán Calvo, 2011).

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com o país. No entanto, o tipo de liderança brasileira buscada pela diplomacia brasileira

é de caráter individual, e o papel do país como um global player está fortemente

fundamentado nas ideias de autonomia e universalismo que marcam o pensamento do

Itamaraty. A visão da diplomacia brasileira da UE é complexa: por um lado, a

dimensão das negociações comerciais são conflitivas enquanto, por outro lado, o país

mantém vínculos estreitos com países da União. Em questões de caráter político

referentes a valores e instituições multilaterais internacionais não houve muitas

coincidências nas preferências em termos de estratégias, embora houvesse coincidência

quanto à defesa desses temas.

O novo governo de Dilma Rousseff não trouxe muitas novidades em relação ao

comportamento do governo anterior no que diz respeito ao lugar da UE e seus países

membros nos marcos da política externa brasileira. A visão brasileira da União não vem

coincidindo com as iniciativas europeias para contribuir para o multilateralismo e para a

difusão de normas. São parceiros com os quais o Brasil tem coincidências de princípios,

assim como motivações para buscar uma aproximação, mas que não são prioritários e

em relação aos quais a diplomacia brasileira mantém diferenças no que diz respeito a

estratégias de ação e percepções da ordem internacional vigente.

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