Ateismo Como Contraprova Da Dignidade Humana

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255 Persp. Teol. 37 (2005) 255-266 Juvenal Savian Filho O ateísmo como contraprova da dignidade humana O tema do ateísmo e o testemunho cristão – também designado, aqui, como “a questão de Deus” para o ser humano e para o cristão –, aparece, na Gaudium et Spes 1 , nos números 19-22, concluindo o primeiro capítulo da Constituição Pastoral, dedicado à reflexão sobre a dignidade humana. O capítulo I se abre com a afirmação da dignidade humana, dado o fato de homem e mulher terem sido criados à imagem e semelhança de Deus, capazes de conhecer e amar o seu criador (n. 12), para, em seguida, referir- se ao pecado, fruto do abuso de liberdade e da procura do bem fora de Deus, A QUESTÃO DE DEUS PARA O SER HUMANO E PARA O CRISTÃO: AS FORMAS CONTEMPORÂNEAS DE ATEÍSMO PRÁTICO E O TESTEMUNHO CRISTÃO 1 Tomar-se-á, aqui, como base para a reflexão sobre o ateísmo o texto dos parágrafos 19-22 da Constituição Pastoral Gaudium et Spes (GS), tanto pela extrema pertinência com que o tema é nela tratado, como pelo fato de se poder comemorar os seus quarenta anos de redação. Além disso, pode-se evocar também o centenário de nascimento de Karl Rahner, que foi um dos teólogos mais influentes na composição desse documento.

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255Persp.Teol.37(2005)255-266Juvenal Savian FilhoOatesmocomocontraprovadadignidadehumanaOtemadoatesmoeotestemunhocristotambmdesignado,aqui,comoaquestodeDeusparaoserhumanoeparaocristo,aparece,naGaudiumetSpes1,nosnmeros19-22,concluindooprimeirocaptulodaConstituioPastoral,dedicadoreflexosobreadignidadehumana.O captulo I se abre com a afirmao da dignidade humana, dado o fato dehomememulherteremsidocriadosimagemesemelhanadeDeus,capazes de conhecer e amar o seu criador (n. 12), para, em seguida, referir-se ao pecado, fruto do abuso de liberdade e da procura do bem fora de Deus,AQUESTODEDEUSPARAOSERHUMANOEPARAOCRISTO:ASFORMASCONTEMPORNEASDEATESMOPRTICOEOTESTEMUNHOCRISTO1Tomar-se-,aqui,comobaseparaareflexosobreoatesmootextodospargrafos19-22daConstituioPastoralGaudiumetSpes(GS),tantopelaextremapertinnciacomqueotemanelatratado,comopelofatodesepodercomemorarosseusquarentaanosderedao.Almdisso,pode-seevocartambmocentenriodenascimentodeKarlRahner,quefoiumdostelogosmaisinfluentesnacomposiodessedocumento.256tendo como conseqncia a produo de um corao leviano e uma divisointerna do ser humano, diviso essa que se reflete numa existncia marcadapelalutadramticaentreobemeomal,asluzeseastrevas(n.13).Emseguida, o texto opera uma ontologia do ser humano e revela-o estruturadoa partir de uma realidade dual, porm no dualista, a composio de corpoe alma, sendo o corpo o elemento do mundo, isto , o elemento material,e a alma, o elemento de transcendncia do mundo, aquele que lhe permiteescaparsmalhasdanaturezaedascondiesfsico-sociais,paranoapenas conhecer-se a si mesmo, mas tambm atingir a profundeza mesmada realidade e nela agir livremente (n. 14). Da decorrem duas afirmaes:em primeiro lugar, a dignidade da inteligncia, que, colhendo a verdade eaperfeioando-se pela sabedoria, torna o ser humano superior a tudo o queexiste (n. 15); em seguida, a dignidade da conscincia moral, aquela voz quefala ao corao do homem e o chama a fazer o bem e a evitar o mal (n. 16).Como coroamento dessa ontologia do ser humano (que comea, na verdade,j com a afirmao da sua criao imagem e semelhana de Deus), o textopassa a afirmar a liberdade como elemento essencial dignidade humana,a ponto de afirmar que a verdadeira liberdade a marca mais extraordi-nria da imagem de Deus no ser humano, extraindo da que o ser humano,emboraexpostosinvestidasdaspaixes,poderealizar-senaliberdade,contandocomoauxliodagraadivina(n.17).Porfim,otextoevocaomistrio da morte como sinal eloqente da condio humana, pois o homeme a mulher no admitem, diante da iminncia da morte, a possibilidade dodesaparecimento de si mesmos, de modo que se pode pensar na existnciade um desejo de eternidade, irredutvel matria, desejo esse que se insurgecontra a morte, ao mesmo tempo, porm, que o ser humano no sabe o quepensardiantedela,cabendoesperanacristdescortinarumnovohori-zonte, revelado por Deus, de comunho eterna com ele e os irmos (n. 18).exatamenteapsesseitinerrio,quepartedacriaodoserhumanoimagemesemelhanadeDeusechegaafirmaodaesperanacristnuma escatologia de comunho e felicidade eterna, que se insere a reflexoconciliar sobre o atesmo. A primeira pergunta que, portanto, se impe aoleitor consiste em saber as razes dessa arquitetnica textual: os nn. 12-18desenham um quadro onde esto presentes as origens e os fundamentos daexistnciahumanajuntamentecomoselementosquecaracterizamessaexistncia, para projetar, num horizonte escatolgico, a esperana crist davidaeterna.Issopareceriabastanteparasefalardadignidadehumana,como o escopo do captulo I. Ora, que razo haveria para inserir, logo apsessequadrooque,inclusive,acabadandoumcertoefeitodepanodefundo,areflexosobreoatesmo?Para responder a essa pergunta, necessrio, antes, observar: o Conclio, nocaptulo I, embora pretenda falar da dignidade humana, no fornece umadefinio direta do que seja essa dignidade. Em vez disso, delineia o quadroacimareproduzido,permitindosuporque,paracaracterizarcommenosimpropriedadeadignidadehumanacujaessncia,alis,nodeixade257estarenvoltanomistrioqueoserhumanoparasimesmo(cf.GS12,1356) , deve-se considerar esse quadro como um todo, ou seja, o quadro dodramahumanomarcadoporsuaorigemedestinaodivinas,masnomenos intensamente afetado por uma queda originria que lhe pode impe-dir sua plena realizao. , porm, mergulhado nesse mesmo drama que oser humano pode encontrar a Deus, num exerccio de liberdade que mani-festa radicalmente toda a sua dignidade, pois que nada o obrigaria a isso;ao contrrio, se h algo com aparncia de necessidade para a vida humana,essealgoserefereprisodesimesmo,aoolhardirigidoapenasparaomundo,obedinciadasmstendncias.Porm,escaparaessanecessi-dade,saindodomundoeressurgindoparaoencontrocomDeus,eisaprovamaisextraordinriadadignidadehumana.Dessa perspectiva, a concepo crist da morte que, embora no deixe dese manter envolta em mistrio, descortina um horizonte de realizao plenaalm-mundo,permiteentenderqueaadesoesperanaescatolgicatambm consiste num ato de liberdade, concomitante adeso a Cristo, querevelaoverdadeirosentidodavidaedamorte.Seassim,poder-se-iaarriscar dizer, numa palavra, que a dignidade da pessoa humana se mani-festa por sua capacidade de escapar aos condicionamentos de sua existn-cia material marcada de ambigidades, para, em meio a essa mesma exis-tncia, encontrar a Deus, fundamento e fonte de todo sentido.Combasenessaformulao,tambmparecepossvelarriscarumahiptesedeexplicao para a arquitetnica do texto: o que articula os nn. 12-18 com os nn.19-22daGSaindaoacabamentodoquadrodaontologiadoserhumanodesenhado acima, isto , trata-se de levar a acabamento o discurso sobre a dig-nidade humana, no sentido de afirmar que exercendo sua liberdade, em meioao drama da sua existncia, que homem e mulher podem dizer no a Deus.AdignidadehumanaeonoaDeusOra, afirmar isso parece algo um tanto bvio, afinal, no difcil constatarqueanegaodeDeusresultadapossibilidadedelhedizersimouno.Naverdade,umaanlisedascamadasmaisprofundasdasignifi-cao dessa afirmao bvia j bastaria para justificar a insistncia sobreela, afinal, a possibilidade de dizer no reala e pe em questo o sentidodo dizer sim: quem no pode dizer no tambm no pode dizer sim.Masoqueinteressanotar,aqui,comaconclusoaquesechegouacima, algo mais sutil, e refere-se ao fato de uma Constituio Pastoral, como a GS, inserir a reflexo sobre o atesmo num contexto de explcita referncia dignidade humana, como que afirmando, por conseguinte, que a possibi-lidadedoatesmoinscreve-senouniversodoselementosquecompema258dignidade da pessoa humana. Essa ltima frase est formulada, aqui, propo-sitalmente, com um grau elevado de generalidade, porque ela requer esclare-cimentos que sero feitos no momento oportuno, mas o que importa dizer, porenquanto, que tanto mais seremos capazes de perceber a importncia dessaconcluso quanto mais tivermos em mente a novidade da viso apresentadapela Igreja, na GS, sobre o atesmo, afinal, a tese da teologia neoescolstica, quemarcou em grande parte o esprito eclesistico nos anos pr-conciliares, asso-ciavaatesmoeculpamoral,negandoapossibilidadedeumatesmosemculpa,alongoprazoeparaumainteligncianormalmenteevoluda2.Na GS, ao contrrio, a Igreja no apenas se afasta dessa viso mope, como aindarelativiza a culpa dos ateus (... culpae expertes non sunt n. 19, 1375) e faz osprprios crentes partilharem dessa culpa (attamen et ipsi credentes quamdam de hocresponsabilitatem saepe ferunt ibidem). muito significativo, nesse sentido, queela, a Igreja, pretenda considerar em profundidade as causas do atesmo e levara srio as questes levantadas por ele (cf. n. 21, 1379). preciso notar que aprpriapossibilidadedesalvaoestendidaatodos,naGS,inclusiveaosateus, por um modo conhecido somente de Deus (cf. n. 22, 1389).Com essa atitude, pode-se dizer que a GS mantm certa continuidade como pensamento de Pio IX3 e com a declarao do Santo Ofcio de 08 de agostode19494,apartirdosquaissededuzcertootimismosalvficoqueame-niza a dureza do axioma extra Ecclesiam nulla salus, nenhuma salvao forada Igreja, medida que recorre a uma ignorncia invencvel e sem culpaou a uma disposio interior que poderia significar j uma pertena Igreja,mesmo que isso no se tenha dado historicamente. Entretanto, como indicaKarl Rahner5, a GS trata explicitamente dos ateus e leva ao ultrapassamentode algumas interpretaes antigas desse otimismo salvfico, as quais re-corriamanalogiacomocasodascrianasmortassemBatismo,paraexplicar que os ateus, se fossem salvos, receberiam uma salvao natural,masnoasalvaosobrenatural.OatesmoEssasobservaespermitem,pois,conheceralgumasdascamadasmaisprofundasdosentidodareflexosobreoatesmoapresentadapelaGS.2Cf.K.RAHNER,AdoutrinadoVaticanoIIsobreoatesmo.Tentativadeumainterpretao,Conciliumn.3(1967)10.3Cf.PIOXI.EncyclicaQuantoconficiamurmoerore.In:H.DENZINGER,A.SCHNMETZER,A.Enchiridionsymbolorumdefinitionumetdeclarationumderebusfideietmorum.32ed.Barcelona:Herder,1963,n.2865.4Cf.EpistolaSanctiOfficiiadarchiepiscopumBostoniensem.In:H.DENZINGER,A.SCHNMETZER,op.cit.,nn.3866-3873.5Cf.K.RAHNER,op.cit.,p.13.259Entretanto, uma pergunta ainda pode ser levantada: que tipo de relao sepodeestabelecerentreatesmoedignidadehumana?Oconcliopassouafalardoatesmonocontextodareflexosobreadignidadeapenasparadizer que ele resulta de um ato de liberdade ou h algo mais sutil que subjazmetodologiaconciliar?Seforvlidaaprimeiraopo,entotemosdeconsideraroatesmocomoumadaslatnciasquecompemadignidadehumana? Seria prprio da dignidade humana poder negar a Deus? Antes,porm, de responder a essa questo, convm retomar os elementos essenci-aisdareflexoconciliarsobreoatesmo.OConclioiniciaareflexosobreoatesmorelembrandoseupressupostoessencial, o de afirmar Deus como fundamento de toda existncia. Em lin-guagem religiosa, para falar do caso do ser humano, ele existe, foi criadoeviveporqueDeusoama(n.19,1373).Emseguida,passaafalarque,atualmente, so muitos os que no consideram essa relao ntima e vital comDeusouarejeitamexplicitamente.Ora,dadoessepressuposto,poderamosincluir na extenso de um conceito como atesmo toda desconsiderao ourejeio de Deus como fundamento, mas o Conclio mais prudente e declara,no 1374, que a palavra atesmo designa fenmenos muito diversos, inibin-do, assim, toda tentativa redutora de compreenso que no leve em conta acomplexidade de fenmenos como: (a) a mera e gratuita negao de Deus; (b)a reputao como impossvel o falar de Deus; (c) a afirmao de que a idiade Deus no faz sentido; (d) a recusa de uma verdade absoluta6; (e) a exaltaodoserhumanoqueassociaafaumafraqueza;(f)anegaodeumDeusfabricado pela prpria imaginao dos ditos ateus, mas que nada tem que vercom o Deus do Evangelho; (g) o indiferentismo; (h) a revolta contra o mal nomundo,argumentousadoparanegaraexistnciadeumDeusbom;(i)arevolta contra o endeusamento de determinados bens humanos; (j) o contextomoderno, que dificulta o acesso a Deus.Essas diferentes indicaes provam a dificuldade em se falar do atesmo esoelasquetambmparecemestarnabasedaafirmaonuanadaarespeitodaculpadosateus(n.19,1375):claroquenodeixadeterculpa quem, contrariando sua prpria conscincia, afasta voluntariamenteDeusdocoraoeprocuraevitarasquestesreligiosas.7.Ora,osfiistambm podem ter alguma responsabilidade nisso, afinal, podem ter negli-genciado a educao da f e a exposio da doutrina, e podem ter cometidofalhas graves, tanto morais como sociais, acabando por obscurecer a verda-deira face de Deus e da religio. Com base nisso, o Conclio afirma: Consi-6Comessasduasltimasatitudes(c)e(d),oConcliotinhapossivelmentenohorizonteumacertamentalidadepositivistaelogicista,quecomeavaasefortalecernaEuropaenosEstadosUnidos,segundoaqualsomenteosenunciadosdecinciaseriamdotadosdesignificaoepassveisdereceberumvalordeverdade.7TraduodeFranciscoCato.In:VATICANOII.Mensagens,discursos,documentos.Trad.deFranciscoCato.SoPaulo:Paulinas,1998,p.483.TodasascitaesdoVaticanoIIfeitasnessetextosoextradasdessaedio,salvoquandohouveroutrafonteexplcita.260derado,pois,noseuconjunto,oatesmonoummalderaiz,masumaconseqncia de causas muito adversas, inclusive da reao crtica, at certoponto justificvel, contra a religio, e at mesmo, em certas regies, contraocristianismo.(n.19,1375)8.Nota-se,pois,quemuitasdasmanifestaesdeatesmoresultamdeumadificuldade para crer (veja-se a questo do mal) ou de uma iluso cientificistaou mesmo de um indiferentismo aptico, mas dificilmente essas formas deatesmo implicam uma refutao consciente de Deus como fundamento daexistncia. Haveria, porm, uma forma que parece tocar justamente na ques-to do fundamento e recusa qualquer tipo de dependncia existencial, sejaontolgicasejamoral.Essatendncia,quepoderamoschamardeexistencialista, pretende que a liberdade seja um fim em si mesma e queo ser humano o nico artfice de sua prpria histria. A esse atesmo siste-mtico,quenotoisentodeculpacomoparecemseraquelasformasdeatesmo elencadas no n. 19, a GS dedica um nmero especfico, o n. 20, 1376,em que ela trata ainda de uma outra forma de atesmo sistemtico, que tambmsepoderiachamardeinspiraoexistencialistaporextrairoabsolutodeDeusdaraizdaexistncia,emboranonegueaexistnciadeumoutroabsoluto no campo da prtica, o absoluto da sociedade igualitria, pois, paraessa forma de atesmo, a libertao humana consiste em sua libertao econ-mica e social. A religio, entretanto, segundo essa tendncia, deve ser banidado horizonte humano, porque aponta para uma vida aps a morte, desviandoa ateno do homem e desfocando-a da histria para o cu: tratar-se-ia, por-tanto,deummeiodealienao(cf.n.20,1377)9.DuasformasfundamentaisdeatesmoPara entender o que a Constituio Pastoral escreveu at aqui, parece neces-sriodestacarduasfrases,umadonmero19,eoutradonmero20.Nonmero19,apshaverrelativizadoaculpadosateus,dizotextoqueconsiderado no seu conjunto, o atesmo no um mal de raiz (Atheismusenim, integre consideratus, non est quid originarium... cf. 1375), mas, apsfalar das tendncias do atesmo sistemtico, declara o texto: E pensam queisto[aafirmaodequeohomemoartficedesuaprpriahistria]incompatvel com o reconhecimento de um Senhor, autor e fim de todas ascoisas;ouque,pelomenos,tornatalafirmaoplenamentesuprflua(1376)10. Essas duas afirmaes parecem operar uma diviso na classificao8Idem,ibidem.9Nosepodenegarareminiscnciamarxistadessareferncia,principalmentequan-dootextomencionaumachegadaaopoderacompanhadadaperseguioreligioedoensinodoatesmoaosjovens.10VATICANOII.GaudiumetSpes.Traduoportuguesa.SoPaulo:Paulinas,1966,p.26.(ColeoAvozdopapa).261dasformasdeatesmo:aquelasquenochegamaconstituirumateoriasobre o fundamento da existncia, mas reduzem-se a uma negao prticadaexistnciadeDeus,eaquelasqueprocuramatacarapossibilidadedecompreenso do real como dependente de um fundamento absoluto. claroque, para o Conclio, trata-se de uma iluso querer conceber o homem e omundocomoautnomos,eesseatesmodetipoexistencialistaparecetantomaisgravequantomaisseesforaporapresentarumdiscursoqueafasteapossibilidadedeumfundamentoabsolutoparaaexistncia.Aqui cabe uma distino: no dizer da Igreja, as formas de atesmo elencadasno n. 19 referem-se a um atesmo que contraria a conscincia dos indivduosque se proclamam ateus, isto , eles seguem sua conscincia, aquela mesmacujadignidadeaIgrejaexaltavanon.16,mas,porcircunstnciasmuitodiversas, acabam por proclamar-se ateus. Ao seguir, porm, sua conscincia,essaspessoasditasatiasnodeixamdemanter-sefiisaDeuscomofundamentodetodaexistncia,detodoatodeconhecimentoedetodaescolhadavontade.Aodizer,non.19,queapessoahumanaexiste,foicriadaeviveporqueDeusaama(1373),aGSdeclaraessefundamentoabsolutodoatodeexistir,deconheceredequerer.Assim,descobrindo,nofundo da conscincia, uma lei que ele no estabeleceu (cf. GS n. 16), julgando-a vlida e seguindo-a, o homem, ainda que de maneira pr-crtica, ou seja, deforma irrefletida, acaba por confirmar o Ser absoluto de Deus como fundamen-to. Em outras palavras, embora alguns ateus neguem verbalmente a existnciade Deus, seus atos, entretanto, mostram-se radicados no absoluto de Deus.O segundo tipo de atesmo, porm aquele ao qual se dedica o nmero 20daGS(astendnciasexistencialistasdohumanismoateuedomarxis-mo),mostra-semaisarticuladoenquantoformadenegaodeDeusporquepretendeatingirexatamenteessadimensoprofundaemquesesitua o fundamento absoluto do Ser: so explicaes que recusam qualquersentido absoluto para a existncia e que, na contrapartida, apelam mesmoparaumcarterabsurdodaexistncia.Essasinterpretaespretendemque sua fala chegue essncia mesma do existir e, por isso, toque naquiloque a religio e a metafsica atribuem a Deus no seu dizer, no h Deus,no h fundamento; o homem e o mundo se fazem, criando suas prpriaspossibilidades.O que pretendem os padres conciliares, porm, insistir em outra direo:o homem, como ser finito, possui fundamentalmente dois atos que o carac-terizam, o ato de conhecer e o ato de fazer escolhas morais (o querer). Porser esprito, ele manifesta a fora de estender-se acima do mundo, de cujanaturezaeletambmparticipa,porsercorpo(cf.GS,n.14);ditodeoutramaneira, o homem, como corpo, entra no mundo e tem acesso realidadeacessvel sua experincia imediata (a realidade sensvel), mas, como esp-rito, o homem pode transcender o mundo e interrogar-se sobre o ser, sobreo que que faz a existncia ser como ela e no diferentemente. Mas, se o262homem pode interrogar-se sobre o ser, ento o ser pode ser conhecido docontrrio,aperguntasobreoserseriaimpossvel,quando,narealidade,conforme atesta a experincia humana, ela no s no impossvel, comoimplicajalgumaformadeconhecimentoquelhepermiteimpor-seaomenos como pergunta. Se assim, ento ser e verdadeiro (isto , ser ecognoscibilidade) so intercambiveis e o ser como tal, no limite, ser-em-si, ou seja, autoconscincia, de onde poder-se dizer que o ser e o homem soorientadosumparaooutro.Comooserumarealidadeindivisvel,oconhecimento de um determinado objeto comporta o conhecimento do serem sua totalidade. Assim, se o homem se pe a pergunta sobre o ser, issoumsinaldequeelenopossuitodooser,mas,sendoumespritonomundo, ou seja, sendo tambm matria, ele est impedido de identificar-secom o ser, embora seja pela mesma matria que ele entra em contato com omundo externo.Da ser possvel concluir que o esprito coextensivo com a totalidade doser, e que em tudo o que pensamos tambm pensamos a questo do ser: emtudooqueconhecemosouqueremostambmconhecemosouqueremos,implicitamente, o ser. O conhecimento de objetos exteriores seria, assim, adimenso explcita do conhecimento, mas h, a, uma dimenso implcita,que o conhecimento do ser. Para usar declaradamente a linguagem de KarlRahner, o conhecimento de objetos (tudo aquilo que considerado exterior conscincia) um conhecimento categorial, enquanto o conhecimento queosujeitodoconhecimentotemdeseuatodeconhecer(e,portanto,desimesmo, enquanto cognoscente) um conhecimento transcendental.Com base nesse esclarecimento, podemos ver que todo ato de conhecimentoe toda escolha moral implicam conhecimento do ser e escolha do ser; impli-cam,portanto,algumconhecimentodeDeusealgumaescolhaporDeus:comoseresfinitos,nopoderamosserofundamentodenossaprpriaexistnciaedenossoprprioquerer,ambosabertostotalidadedoreal.Masnemsempretemosconscinciadessadimensoimplcitadenossosatosdeconheceredesejar,assimcomoquandoagimosepensamoscomlgica, no cotidiano, mas nem por isso temos conscincia da lgica silogsticadeAristtelesoudalgicacontempornea.Assim,podemosconheceredesejar,visandosempreoobjetodeconhecimentoededesejo,massemtrazerconscinciaofundamentodenossoatodeconhecerededesejar,o que, porm, no anula a bipolaridade existente entre o sujeito que conheceoudeseja(equepodeconhecer-sepormeiodeseuato)eoseuatodeconhecer ou desejar.No caso das duas formas de atesmo, parece possvel compreender a distin-o operada pelo Conclio: aquelas formas reunidas no n. 19 seguem natu-ralmente uma lgica transcendental, negando porm a existncia de Deusno mbito do conhecimento categorial, ou seja, a existncia concreta dessasatitudesditasatiasremete,porsuasconfiguraes,aumfundamentoabsoluto, mesmo que os seus representantes no se ponham a pensar sobre263isso (possuem, portanto, algum conhecimento e algum desejo de Deus), masnegam a existncia de Deus no nvel das afirmaes, no nvel do objeto deconhecimento, da moral, do objeto de desejo etc. Como diz a GS, as razesdessa negao podem ser variadas, e inclusive a civilizao moderna difi-culta a crena expressa em Deus (n. 19, 1374) tais razes, muitas vezes,no passam de equvocos, mas nunca chegam a constituir um mal de raiz.J aquelas formas reunidas no n. 20 (ditas de carter mais existencialista)so to mais graves quanto mais tentam negar essa dimenso transcendentaldaexistncia,paraencontrar,deliberadamente,outraformadeexplic-la,semrecursoaqualquerformadeabsoluto.Trata-sedeumatentativadenegao no apenas no nvel do discurso sobre Deus (como seria o caso daprimeira forma) ou no nvel da interpretao que se d para o fundamentodaexistncia,masdeumatentativaemliberdade(implicando,portanto,conscincia e vontade) de negar a existncia mesma desse fundamento; nolimite, a tentativa em liberdade de atingir o prprio Deus como fundamento.Para falar em termos de culpa e responsabilidade, pode-se entender que oConclio tenha relativizado a culpa do atesmo e desabonado a antiga tesesegundoaqualnohpossibilidadedehaversemculpaumatesmopositivo, a longo prazo e para uma inteligncia normalmente desenvolvida.Assim, a culpa da primeira forma de atesmo indicada acima bem menordo que a da segunda. Dessa perspectiva, parece mesmo possvel dizer que,arigor,asegundaformaimplicarianaimpossibilidadedesalvao,dadoo fechamento deliberado a Deus.AtesmoedignidadehumanaTem-se, agora, condio de retomar a pergunta feita acima, sobre o porqude o Conclio abordar o tema do atesmo logo em seguida quele quadro queretratava o drama da existncia humana, drama esse que se apresenta comoaocasioprivilegiadaparasemanifestaradignidadedapessoahumana,aqual,semcoaointernaouexterna,podechegaraDeus.Nosetratadedizerqueessaarquitetnicasedeveaofatodeoatesmoresultardaspossibilidadesdeescolhainerentesdignidade,pois,ento,criar-se-iaoproblemadeexplicarcomopodefazerpartedadignidadehumana a possibilidade de negar o seu prprio fundamento, que Deus: seDeus fez a obra da criao para que a criatura o ame e se realize nele, comoseria possvel que a dignidade da criatura se constitusse da possibilidadede dizer no a ele? evidente que uma postura atesta resulta do mesmomovimento livre que pode resultar na comunho com Deus, mas trata-se deverqueanegaodeDeusnopodeconsistirnumadaslatnciasdadignidade; pelo contrrio, ela representa um obstculo plena consecuoemanifestaodessadignidade,poisqueinviabilizaacomunhocom264Deus. assim que o tema do atesmo se articula com o tema da dignidadehumana. Alis, a frase que opera a passagem do nmero 18 ao nmero 19da GS afirma explicitamente: A expresso mxima da dignidade humana a vocao comunho com Deus. O mistrio da morte, dessa perspectiva,ganha novo significado, e revela sua relao direta com o mistrio da pr-priavidapresentedohomem,fornecendo-lheumsentidonovo,emboraalgumas formas de atesmo, passando ao longe do sentido escatolgico daexistncia,acusemdealienaoessetipodepensamento.Assim,nosedevepensarsimplesmentequedadignidadehumanaonegaraDeus.Nohdvidadeque,emconscinciaeexercendosuadignidade, o homem um ser que pode negar a Deus, mas a negao, emsi, no pode ser considerada algo bom. Alm disso, as prprias razes doatesmo,muitasvezes,podemsercircunstanciais,e,quandooso,noafetam aquele conhecimento implcito do ser, presente em todo ato espiritu-al. O atesmo pode nascer de uma incompreenso daquele quadro desenha-do pela GS, nos nn. 12-18, para declarar a dignidade humana, mas, ento,nota-se que no se trata, necessariamente, de uma negao de Deus comofundamento, e sim, possivelmente, de uma negao da mensagem religiosaexplcita. No limite, o atesmo pode nascer de uma incompreenso do quesignifica Deus. O ateu nem sempre se d conta de que h dois nveis nofalar de Deus: um primeiro, em que se aponta para uma realidade fundamen-tal, atemtica, silenciosa; um segundo, em que se empregam expresses parafalardaquelarealidadefundamental,comosesetratassedeumarealidadeobjetivada. Na linguagem de Rahner, o conhecimento de Deus permanece aobjetivao, sob a forma de conceitos e frases, da referncia do esprito ao serabsoluto, desde sempre dada pela transcendentalidade espiritual do homem11.Assim,anegaodoateupodesituar-senonveldaexpresso,nopropri-amentenofundamento.Daagravidadedoatesmoqueprocuraatacaraessnciamesmadaexistncia,paraalmdasuaexpressolingstica.Cristo,aIgrejaeoatesmoO n. 21 da GS trata, ento, da relao entre a Igreja e o atesmo, afirmando,fundamentalmente, que o reconhecimento de Deus , precisamente, o funda-mento da mxima dignidade humana ( 1380). O teor dessa afirmao podeser vislumbrado a partir das distines operadas acima, mas vale lembrarque a Igreja, ao diz-lo, est convencida de uma verdade antropolgica, ade que somente Deus pode esclarecer o mistrio que o ser humano parasi mesmo, principalmente levando em conta os limites de sua percepo, ou,sesequiser,afinitudedoconhecimentohumano(1381e1384).11K.RAHNER,op.cit.,p.18.265Dessaperspectiva,nodizerdospadresconciliares,oremdiodoatesmodevevirdaIgreja,acomunidadedosquecrem,pormeiodaexposioadequada da doutrina e pela prtica da vida que se espera dos fiis. Numcontexto de dilogo com o atesmo (cf. 1379 e 1383), a Igreja deve deixar-se conduzir pelo Esprito Santo, a fim de tornar visveis Deus Pai e seu Filhoencarnado ( 1382), inclusive convidando os prprios ateus a tambm con-siderarem,decoraoaberto,oEvangelhodeCristo(1383).Nesse dinamismo, Cristo se apresenta como o acontecimento mais propcioparaaconduodahumanidadesuamximadignidade.elequeilu-minaasrazesdomistriohumanoemanifestaaossereshumanosoqueoserhumanoeasublimidadedasuavocao(1385).Seohomemcontm a referncia ilimitada do esprito ao Ser, Cristo quem lhe revela oSer em plenitude, permitindo-lhe exprimir em palavras e aes a f que seradica naquela abertura transcendental. Pelo mistrio da salvao, oferecen-do-se ao Pai num gesto de amor, Cristo tornou possvel humanidade umavida nova, a vida no Esprito, verdadeira salvao ( 1387-1390). Ao afir-mar isso, o Conclio declara a amplitude infinita do mistrio da salvao deCristo,que,nolimite,poder-se-iadizerqueseconfundecomoprpriomistrio de Deus: a graa da vida nova no vale apenas para os fiis, mastodos os homens de boa vontade, em cujos coraes atua a graa, de maneirainvisvel ( 1389). certo que no se pode reduzir a presena da graa nontimo do indivduo a uma compreenso simplista que a associe inteiramen-te quela abertura irrestrita do esprito ao Ser, mas essa abertura nos permitevislumbrar, de algum modo, o teor de uma afirmao como essa, feita peloConclio.OmistriopascaldeCristo,oconjuntodesuavida,morteeressurreio, atinge a todos os seres humanos, no Esprito Santo, ou seja, oEsprito oferece a todos a possibilidade de se associarem ao mistrio pascal,demaneiraconhecidasomenteporDeus(1389).Aqui se toca num ponto muito importante, pois, ao falar do testemunho doscristoseaodeclararsuaconvicodequeohomemnopresadodesespero, mas destinatrio de uma mensagem de vida nova, no Esprito deCristo, a Igreja aponta para uma relao profunda entre testemunho e vidano Esprito, vida prtica e santidade, ou seja, permite entender que a melhormaneira de dialogar com o atesmo o testemunho de uma vida em Deus,acompanhada de um ensino adequado da doutrina. Se assim, pode-se pen-sar no papel fundamental de um anncio mistaggico do mistrio de Deus,isto,numannciofundamentadonumaexperinciapessoal,que,porsuavez,seconstituaemocasioparaqueumaexperinciasemelhantesednavida daquele que recebe o anncio. Isso certamente mais convincente do queum discurso apologtico ou catequtico que pretenda incutir argumentos ra-cionaisnoouvinte,semelhanadeprovasdaexistnciadeDeus.Oidealdetestemunhopareceestarnumtipodevidaque,enraizadanaprtica da caridade, consiga tornar visvel a presena de Deus, de modo a266levarointerlocutoraperceberessapresena,certamenteauxiliadopelalinguagemreligiosadarevelao,masindoafundoechegandoquelapresena mais ntima a ns do que ns mesmos, o Deus que fica no silncio,anterior a toda tematizao conceitual, firme porque fundamento.ConclusoPara concluir, parece vlido pensar no porqu da pertinncia do ttulo dessareflexo: se se trata de abordar o tema do atesmo e o testemunho cristo,porquecham-ladeaquestodeDeus?Ora, se h algo certo em meio a todo esse itinerrio, ele se refere ao modovariado como se pode falar de Deus. Assim, por exemplo, um ateu, ao negara existncia de Deus, pode ou no estar pensando precisamente em Deus.E, esclarecido o desdobramento proposital, h o Deus da interioridade oDeus do silncio e o Deus da linguagem, nem sempre distinguidos pelosprprios fiis. Assim, ao dizer que Deus o fundamento de todas as coisase a nica soluo para o enigma da existncia humana, a Igreja pressupecertauniformidadenaconcepodeDeus.Ora,sehumatarefaaqueareflexo sobre o atesmo obriga os fiis, essa tarefa consiste em interrogar-seconstantementesobreoquequesepensaquandodedizDeus.JuvenalSavianFilhoBacharelemTeologia,Mestre(2000)edoutoremFilosofiacomateseAmetafsicadoseremBocio(UniversidadedeSoPaulo,2005).FoiestagiriodoCentredHistoiredesSciencesetdesPhilosophiesArabesetMdivalesdoCentreNationaledeRecherchesScientifiquesUniversitdeParisVII(Paris),denovembrode2004ajulhode2005.Publicou:OtoquedoInefvel:apontamentossobreaexperinciadeDeusemEdithStein,Bauru:EDUSC,2000;Escritos(OpusculaSacra)deBocio:traduo,estudosenotasdeJuvenalSavianFilho,SoPaulo:MartinsFontes,2005.Endereo: RuaFranciscoSampaio,65817205-050JaSP