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ATEM LE SOUFFLE

Mosteiro São Bento da Vitória

21-25 Nov 2012

deJOSEF NAdJ

direção, coreografia

e cenografia

Josef Nadjmúsica original

Alain Mahé assistência e

interpretação musical

(ao vivo)

Pascal Seixasfigurinos

Aleksandra Pešicadereços

László Dobó

interpretação

Anne -Sophie Lancelin

Josef Nadj

direção de cena

Alexandre de Monteconstrução da

cenografia

Clément Dirat Julien Fleureau direção de produção

Michel Chialvo

produção

Centre chorégraphique national d’Orléans

Jel Színházcoprodução

Festival d’Avignon

Théâtre de la Ville – CENTQUATRE (Paris)

TNSJ

apoios à criação

DRAC Centre

Région Centre

Ville d’Orléansagradecimentos

Milena Strojicevic/Quadrienal de Praga Regional Creative Atelier (Kanjiza,

Sérvia)

Kiosk (Belgrado)

com o apoio de

Société Générale

estreia 12Jul2012 Salle des Fêtes

de Saze (Festival

d’Avignon, França)

dur. aprox. 1:15M/12 anos

qua-sex 21:30

sáb+dom 16:00+21:30

eSTReIA NACIONAL

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com o impulso do sonho sobre a órbita,incubando o lume,

duas máscaras no lugar de uma,pó de planetas nos encovadosolhos,

cegos de noite, cegos de dia,cegos ao mundo,

a cápsula de papoila em ticai algures,e cala ‑se sobre uma estrela companheira,

o domínio flutuante do lutoapercebe ‑se de uma outra sombra,

eles ajudam ‑te, todos,

a pedra do coração trespassa o seu leque,não há frio,

eles ajudam ‑te, todos,

iças a vela e desapareces,

bandos de olhos atravessam o estreito,um grumo de sangue cai na trajetória,revoadas de terra animam ‑te,a tempestade no Todofaz a colheita.

paul celanIn Lichtzwang (1970).Trad. Francisco Morão Dias

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rENAN bENyAMiNA Pode falar ‑nos da génese de ATEM?

JOSEF NAdJ O primeiro momento chave dessa história é uma encomenda da Quadrienal de Praga sobre o tema da relação íntima no espetáculo. Foi a primeira vez que o festival dirigiu uma proposta concreta aos artistas: cada um deles deveria ocupar uma caixa de quatro por quatro metros e produzir aí uma forma acessível ao público durante oito horas por dia. Imaginei então uma presença possível dentro desse espaço restrito. Mandámos construir a nossa caixa, dentro da qual os espectadores podiam observar‑‑nos através de um vidro. Desafiei Anne ‑Sophie Lancelin, que interpretou a minha peça anterior, Cherry ‑Brandy [2010], a ocupar esse espaço comigo.

rb O que imaginou no interior da caixa?

JN Dentro desse dispositivo comecei por refletir e por procurar o estado de espírito mais ajustado a esse lugar tão particular. Senti necessidade de não começar no vazio total. Era necessário encontrar um elemento central entre Anne ‑Sophie e eu, criar um signo que nos fosse comum. Encontrámos uma

vara. Será que já estava ali, perto de nós, ou tivemos de a procurar? Não sei responder. Essa vara constituiu a matriz da peça: coloquei ‑a verticalmente entre Anne ‑Sophie e eu. Perguntámo ‑nos então: como fazer um gesto em direção ao outro, sabendo que existe qualquer coisa entre nós? Pergunta simples e cruel. Impercetivelmente, a vara impôs‑‑se como o resíduo da árvore do bem e do mal, mas também como o eixo do mundo. Esta interpretação resultou da vontade de nos situarmos não só num espaço concreto, como também num espaço e num tempo absolutos. Avançávamos como se fôssemos guiados por esse objeto. Desenvolveu ‑se então entre nós um diálogo gestual. Sentimos, ao viver essa situação, que tínhamos encontrado um centro de jogo possível.

rb Portanto, tudo partiu de uma vara. Contudo, o espetáculo evoca também a importância do pintor Albrecht Dürer.

JN A pouco e pouco, tornou ‑se ‑me evidente que o espaço que construíamos tinha a ver com as gravuras de Albrecht Dürer, um artista muito importante para mim. Tinha catorze anos quando descobri a gravura intitulada Melencolia I. Mais tarde, perguntei ‑me por que razão me fascinava tanto essa obra. Na gravura vemos um anjo, ou melhor, uma mulher alada, envergando um vestido, sentada junto a um homenzinho. As figuras encontram ‑se diante de uma casa. No espetáculo, foi como se tivéssemos decidido fazer entrar na casa essas duas personagens. Estudámos

QUAdrO ViVO

Entrevista com JOSEF NAdJ. Por rENAN bENyAMiNA.*

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cuidadosamente essa gravura muito rica em pormenores (os pregos, as correntes, uma balança, etc.), bem como as duas outras gravuras que compõem, com Melencolia I, uma trilogia: São Jerónimo na sua Cela e O Cavaleiro, a Morte e o Diabo. São obras de uma grande multiplicidade de significados. São como um jogo de charadas, de sugestões, que refletem uma visão do mundo. Transcendem as intenções do seu criador e oferecem‑‑nos a possibilidade de abrir, de desdobrar espaços sugeridos, mas não figurados.

rb Anne ‑Sophie Lancelin e você são as personagens dessa gravura. Constituem um casal?

JN Não exatamente. Somos dois seres em busca de uma harmonia que abole o tempo do aqui e agora. Dois seres que criam um tempo absoluto, onde a divisão entre masculino e feminino desaparece. Comunicamos a um nível espiritual; o corpo arde e desaparece na intensidade dessa comunicação. Desenvolvemos uma série de improvisações, imaginando, por exemplo, aonde iria aquela mulher, que circunstâncias ditaram a presença do homenzinho, como ocorreu o encontro de ambos. Assim produzimos um certo número de jogos que funcionavam como um todo.

rb O som é um elemento igualmente importante nesta peça…

JN Na primeira fase do trabalho, em Praga, senti necessidade de um ambiente sonoro. Tive vontade de

trabalhar com o compositor Alain Mahé. Compusemos um espaço sonoro sobretudo com sons da natureza – os sons dos elementos e dos nossos gestos. O ambiente, ou melhor, o interior sonoro e íntimo, foi composto a partir de sons gravados no meio natural: podem ouvir ‑se, entre outros, o som do mar, do vento, do fogo, do metal ou da cera, através dos quais flutua o som do contrabaixo de Pascal Seixas. Recolhemos esses elementos sonoros para os harmonizar, num trabalho de pesquisa a meias, como já fiz anteriormente, no domínio da dança, com Anne ‑Sophie Lancelin.

rb De onde vem o título da peça: ATEM?

JN Durante a criação do espetáculo, li textos de Celan. Ler poesia favorece esse estado poético necessário à minha pesquisa. É um alimento espiritual essencial, que ajuda à minha busca interior. Ao ler esses poemas, tive uma sensação peculiar, como se Celan os tivesse escrito enquanto assistia ao espetáculo. As suas palavras são, pois, naturalmente acolhidas por nós. A palavra Atem é tirada de um dos seus poemas – significa, em alemão, “respiração”. E impôs ‑se rapidamente como o título da peça.

rb Essa respiração é também a das velas, presentes entre os atores e o público.

JN As velas constituem a única iluminação do espetáculo. Permitem criar uma relação íntima e natural com

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o público, além de remeterem para o fogo presente na gravura Melencolia I. Trata ‑se do fogo dos alquimistas, que faz borbulhar a substância até à transformação. Com todas as ressonâncias metafóricas que isso implica para o teatro. Além disso, os olhos adaptam ‑se muito rapidamente ao bruxulear das velas, de modo que os espectadores podem ver sem dificuldade todos os pormenores cénicos. Essa luz reforça a sensação de se estar num quadro vivo, conferindo ao conjunto um aspeto muito pictórico.

rb Anteriormente, em Paso Doble [2006] e Les Corbeaux [2010, espetáculo apresentado no Teatro Carlos Alberto, em 2011], e agora em ATEM, a impressão que fica é que o Josef Nadj restringe o espaço, como que à procura de um máximo de intimidade.

JN É um reflexo de ciclos de vida e de trabalho. A minha companhia completa este ano o seu vigésimo quinto aniversário. Tenho refletido sobre o meu percurso anterior e sobre como me posso lançar a um novo grande ciclo de trabalho. Como se estivesse a meio de uma demanda. Intuitivamente, torno o espaço o mais próximo possível de mim mesmo, de modo a poder sentir a respiração dos meus desejos. Para tanto, sinto necessidade de pequenos espaços e de estar sozinho ou em diálogo com um único parceiro. Trabalho muito sobre a depuração dos meios e do texto, sobre a intensidade de momentos escolhidos que quero

tornar o mais evidentes possível. Procuro simplesmente apurar a minha linguagem.

rb Falou ‑nos de respiração e da árvore do bem e do mal: trata ‑se de uma procura de natureza mística?

JN Diria antes que é uma investigação sobre o sagrado. Uma reflexão global sobre a nossa existência, sobre as nossas relações humanas mediadas pelas leis do universo. Já falámos aqui de alquimia: o teatro é um lugar de transformação, onde se põem à prova as nossas capacidades psíquicas e físicas. Daí extraímos uma substância que tem a ver com a energia do jogo, com a qual criamos novas formas, novos modos de ser. Não é o resultado de um conceito ou de um trabalho cerebral, mas sim de uma sucessão de experiências físicas e espirituais. A cada espetáculo, reinvocamos esse estado obtido através das experiências. A magia do espetáculo nunca produz exatamente a mesma coisa: os nossos corpos transportam a experiência de cada travessia.

* In ATEM le souffle: [Programa]. Avignon: 66e Festival d’Avignon, 2012.Trad. rui Pires Cabral

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Na Melencolia I de Dürer, escreveu Walter Benjamin, “os instrumentos da vida ativa estão espalhados pelo chão como objeto de uma estéril cogitação”. Para o melancólico, as coisas são enigmáticas, incoerentes, cada uma vive isolada em si mesma, privadas de um verdadeiro significado, porque ele não as vê com essa afetividade, essa vontade, essa intimidade que lhes infunde calor e torna familiares, amigas das mãos que as tocam e fazem trabalhar, elementos da vida, como as estações em cuja constante sucessão é possível instalarmo ‑nos em harmonia, enquanto para o melancólico tal não passa de vão esmorecimento e dissipação.

A melancolia não é apenas depressão psíquica ou tristeza retorcida e doentiamente acalentada. A fugacidade e a imperfeição da nossa vida fazem dela uma corda fundamental do espírito, até daqueles que gostariam de se assemelhar mais ao rabino David de Lelov (que, na hora da morte, disse: “Rio ‑me de Deus, porque aceitei o seu mundo como é”) do que aos monges propícios ao demónio do meio ‑dia. Nenhuma

vida e nenhuma poesia podem ignorar a melancolia, a caducidade do tempo que passa, essa coisa que falta sempre em toda a felicidade e em todo o amor, até no que é feliz, a decomposição das coisas e dos sentimentos, inclusive os mais puros, o desencanto, a mudança incessante e o perecimento. Tal falta pode ser vivida não necessariamente com voluptuosidade masoquista, mas com um sentido forte – clássico, antigo – da inevitável distância que há entre o coração e o mundo, do mesmo modo que para o teólogo Romano Guardini a melancolia é o sentido de uma insuficiência terrena que pode levar a Deus. Não há encanto sem conhecimento e não há conhecimento sem melancolia. Há um século, um cultor da fisiognomonia, ao descrever a belíssima boca de Cléo de Mérode, grande atriz e grande amante, notava que, com o passar dos anos, em torno daquela boca se havia esboçado um halo de melancolia. Talvez assim fosse ainda mais bela.

* Excertos de “Melancolía y Modernidad” (2007). In Alfabetos: Ensayos de Literatura. Barcelona: Anagrama, 2010. p. 62, 64.

“NÃO HÁ ENCANTO SEM CONHECiMENTO E NÃO HÁ CONHECiMENTO SEM MELANCOLiA”

claudio magris*

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São quatro metros por quatro, com três metros de profundidade. Dois corpos. Dois seres estranhos, aparentemente distantes, que se atraem, se retraem, iluminados pela luz ténue de duas velas, num universo sonoro límpido e circular.

Não é teatro de câmara. Será, talvez, algo muito próximo de um teatro de bolso. De um teatro de marionetas, inventado em caixa de cartão, habitado por corpos desarticulados, desenhados, suspensos, onde se inscrevem formas singulares, contornos, sombras, movimentos que contrariam o tempo, que o estendem, o dilatam, para que a minúcia possa ser, finalmente, a arte de percorrer o espaço. É obra de artesãos experimentados. De alquimistas de emoções. De sábios visionários. De Poetas.

Não é um espaço vago, mas um espaço vazio, onde a memória funciona como instrumento poético. É sabido o lugar fundamental que a pintura e a poesia ocupam na vida e na obra de Josef Nadj. Para este espectáculo, o coreógrafo e artista plástico recorre a Albrecht Dürer e a Paul Celan, que lhe permitem

“Há aqui um segredo, que se retrai, subtraindo ‑se para sempre à exaustão hermenêutica”jacques derrida – Schibboleth pour Paul Celan

construir uma paisagem, “um quadro vivo” depurado, intenso e preciso. Neste espaço exíguo vai sendo criada uma “imensidão íntima” que se estende ao espectador – essa “imensidão” de que fala Bachelard, essa “categoria filosófica do sonho” que “está ligada a uma espécie de expansão do ser que a vida trava, que a prudência pára, mas que a solidão retoma”.1 Os corpos aparecem e desaparecem, evocam o nascimento e a morte, afastam ‑se e reúnem ‑se “num tempo absoluto onde a divisão entre o masculino e o feminino desaparece”.2 É precisamente deste equilíbrio dinâmico que surge o movimento e a mutação, sempre subtil, sempre lenta: os corpos vão reconhecendo um espaço de gavetas e de nichos invisíveis, explorando todas as possibilidades tácteis – usam os pés, a cabeça, as mãos, o corpo na sua totalidade, trocam de lugar, ocupam as superfícies, reinventam ‑nas, compõem imagens de uma plasticidade intrigante, como se de um sonho ou de uma alucinação se tratasse.

A importância do “Vazio” e o seu tratamento permitem ‑me, talvez, aproximar este “quadro vivo” da pintura chinesa onde, como refere François Cheng,3 “o Vazio não é uma presença inerte, é percorrido por sopros que ligam o mundo visível a um mundo invisível”. De acordo com o pensamento chinês sobre a arte pictórica, o conjunto estruturado de um quadro deve ser entendido como um corpo vivo onde a Montanha e a Água representam os dois pólos da paisagem, cuja aproximação é condicionada precisamente pelos “sopros” do Vazio. Se estivéssemos perante uma pintura chinesa, Josef Nadj

A ArTE dA CONTEMPLAÇÃOalexandra moreira da silva*

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e Anne ‑Sophie Lancelin representariam, respectivamente, a Montanha e a Água que, graças ao sopro – à respiração – que o Vazio acolhe, abandonam gradualmente a sua oposição rígida e estática para se encontrarem, se fundirem e encarnarem a lei dinâmica do real. No pensamento chinês, pintar a Montanha e a Água significa fazer o retrato espiritual do homem, o seu ritmo, as suas iniciativas, os seus tormentos, as suas contradições, os seus medos, os seus desejos secretos, o seu desejo de infinito. Mas nem por isso o quadro deixa de ser percebido como “um corpo vivo”: fala ‑se da “ossatura (rochedos), das artérias (cursos de água), dos músculos (árvores), da respiração (nuvens)”4 da paisagem. Da mesma forma, em ATEM, os objectos

em cena fazem parte de um todo, de um “corpo vivo” em busca de uma qualquer síntese unificadora. Como refere Josef Nadj: “Nós somos dois seres à procura de uma harmonia que permite abolir o tempo, o aqui e agora. […] É num nível espiritual que comunicamos, o corpo queima e desaparece na intensidade desta comunicação”. O corpo queimado, desaparecido, parece sugerir a fusão, a transformação interna que elimina os opostos – a divisão masculino/feminino – com vista à sempre utópica mas incansavelmente procurada unidade original. Nadj parece, de facto, recorrer constantemente a técnicas da pintura chinesa como a “abertura ‑fechamento”, que permite a organização contrastiva do espaço, “a subida ‑descida” que convoca

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a sequência rítmica da paisagem, o “vazio ‑cheio”, o “visível ‑invisível”… Por outro lado, simbolicamente, o princípio da dualidade presente no binómio “Montanha ‑Água” permite pensar o real em termos de uma permanente interacção – algo que é igualmente constante nos espectáculos de Josef Nadj: circula ‑se entre o alto e o baixo, o vertical e o horizontal, o compacto e o fluído, o opaco e o transparente, a imobilidade e o movimento – ou ainda a dança e o teatro, a performance e a pintura, a música e as artes circenses… Como explica François Jullien, na pintura chinesa “a paisagem não é concebida como um fragmento de um determinado espaço submetido à autoridade do olhar e delimitado pelo seu horizonte; a paisagem põe em relação a globalidade funcional dos elementos que se opõem […] e é a totalidade deste dinamismo que, independentemente da escala, o pincel terá de agarrar”.5

Talvez seja precisamente esta “globalidade funcional dos elementos que se opõem”, esta concepção de paisagem, que exige do espectador uma outra atitude, uma disponibilidade para a contemplação. É precisamente este mesmo olhar obsessivamente contemplativo sobre o ser humano e sobre o mundo que permite a Josef Nadj aproximar ‑se – eu diria cada vez mais – de um teatro depurado, de um teatro das origens. As imagens que este espectáculo nos propõe parecem vir, como um sopro, de uma memória longínqua, de um qualquer exílio interior, sonhado ou inventado, produzindo no espectador um fascínio e ao mesmo tempo um impacto sensorial – como desejava Artaud – ou, se preferirmos, uma

revelação, uma “epifania individual”, nas palavras do italiano Romeo Castellucci, que ultrapassa sistematicamente a razão e o simples acto comunicativo.

Co ‑produzido pelo TNSJ, e depois de se ter estreado no Festival de Avignon no passado mês de Julho, ATEM le souffle chega agora ao Porto, ao Mosteiro de São Bento da Vitória, espaço vazio, ideal para fazermos ecoar as palavras de Josef Nadj: “O palco oferece uma possibilidade de nos voltarmos a ligar a estes espaços sagrados, a todos estes sítios naturais, estes lugares de culto, estes templos e monumentos espalhados por todo o lado, em todo o mundo […] e que remontam aos tempos em que os homens tentavam captar as leis da organização do universo para viverem em harmonia, em comunhão com a natureza e com os seres”.6 Novamente Artaud?… ATEM…

* Investigadora em estudos teatrais, tradutora e docente da Faculdade de Letras da Universidade do Porto

1 Gaston Bachelard, “L’imensité intime”, La Poétique de l’espace, Paris, PUF, 1957, p. 169.2 Josef Nadj, entrevista a Renan Benyamina, Festival de Avignon, Fevereiro de 2012.3 François Cheng, Vide et Plein, le langage pictural chinois, Paris, Seuil, 1991, p. 47.4 Ibidem, p. 112.5 François Jullien, La grande image n’a pas de forme, à partir des Arts de peindre de la Chine Ancienne, p. 184.6 Josef Nadj, citado por Myriam Bloedé, in Les Tombeaux de Josef Nadj, L’Oeil d’Or, 2006, p. 169.

Texto escrito de acordo com a antiga ortografia.

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Pintor em duo com Miquel Barceló em Paso

Doble (2006), homem ‑pincel em Les Corbeaux

(2010), traficante de culturas e de literatura

em Asobu (2006), Les Philosophes (2001),

Cherry -Brandy (2010) e diversas outras peças,

Josef Nadj (n. 1957) é um artista alimentado

por múltiplas fontes. Tendo por principais

instrumentos o seu corpo e a sua intuição, à

maneira de um artesão, Nadj transforma essa

matéria movente em objetos coreográficos

singulares. desenhador desde os 15 anos, o

diretor do Centre chorégraphique national

d’Orléans aborda o espaço cénico como uma

página em branco, sobre a qual traça sinais

precisos, esfuma ou acentua os negros e faz

surgir fulgurantes pinceladas de cor.

O imaginário de Josef Nadj é igualmente

marcado pela região onde nasceu e cresceu –

a Voivódina, na antiga Jugoslávia (atual Sérvia) –,

cujas paisagens e mitologias atravessam todos

os seus espetáculos. A sua formação nas áreas

da mímica, da música, do teatro e da dança

contemporânea permitiram ‑lhe desenvolver

um estilo absolutamente inconfundível, entre

o lirismo, o desenho e a teatralidade. Presença

regular no Festival de Avignon desde 1992, Josef

Nadj tem apresentado as suas criações em

múltiplos festivais e teatros internacionais, como

o Festival Internacional de Teatro Tchékhov ou

a Quadrienal de Praga. No TNSJ, apresentou,

em 2011, Les Corbeaux, no âmbito do festival

Odisseia: Teatro do Mundo.

Musique et de danse de Paris, onde concluiu

a sua formação superior como bailarina em

2006. No mesmo ano, integrou a Compagnie

de l’entre ‑deux de daniel dobbels para uma

reposição de Cette première lumière; a curta‑

‑metragem L’Ange aux traits tirés; os espetáculos

L’insensible déchirure, L’épanchement d’Echo,

Danser, de peur…; e o solo Parfois, la colère

tombe. em 2008, integrou a companhia de

Thomas Lebrun, participando em Constellation

consternée e La Jeune fille et la Mort. No ano

seguinte, interpretou o solo La Griffe de Christine

Gérard. Posteriormente, colaborou com Josef

Nadj, participando no espetáculo Cherry -Brandy

e nos duos Árny -kép e ATEM le souffle.

Nasceu em 1985, em Lille. Ainda em criança,

iniciou ‑se na dança e na viola. Prosseguiu os

seus estudos em dança contemporânea no

Conservatoire National de Région de Lille e

depois no Conservatoire National Supérieur de

Músico e compositor, nasceu em 1958, em

Morlaix, Bretanha. Saxofonista tenor, estudou

jazz e música improvisada no Institut Art

Culture Perception, em Paris, e na classe de

composição de música eletroacústica de

Christian Villeneuve, no Conservatoire National

de Région de Nantes. entre 1983 e 1991, tocou

em diversas formações de música improvisada

e compôs Bohème de chic. Participou em ateliês

de música eletrónica e informática no Groupe

de Musique electroacoustique d’Albi, bem como

em workshops da Université de la Radiophonie

d’Arles e da Académie d’Été do Ircam (Institut

de Recherche et Coordination Acoustique/

Musique). Criador de música experimental,

pela qual tem recebido inúmeros prémios e

distinções, é também coautor de diversas

criações teatrais. entre o seu trabalho, conta ‑se a

música original de múltiplos filmes e espetáculos

de dança. É membro do Forum Ircam.

JOSEF NAdJ

ANNE ‑SOPHiE LANCELiN

ALAiN MAHÉ

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Músico e compositor, nasceu em Orléans, em

1969. Oriundo de uma família de raízes rurais,

para a qual a palavra “cultura” diz mais respeito

ao trabalho do campo do que ao teatro, Pascal

Seixas inicia no final da década de 80 um

longo percurso pelo mundo das artes. Viagens

e encontros abrem ‑lhe o caminho para os

universos de Jack Kerouac, Jim Jarmusch, Led

Zeppelin, Bouvier… Autodidata, apropria ‑se,

aos 30 anos, de um contrabaixo e desenvolve

projetos pessoais que se situam a meio caminho

entre as músicas tradicionais e o jazz, e o

conduzem, no espaço de 12 anos, a realizar mais

de 700 concertos em toda a europa, Ásia e

América do Sul. Na primavera de 2012, a convite

do compositor Alain Mahé, integra a equipa de

ATEM le souffle, conjugando assim amizade,

curiosidade, aventura humana e criadora numa

respiração comum.

PASCAL SEiXAS

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ficha técnica tnsj

coordenação de produção

Maria João Teixeiraassistência de produção

Mónica Rochadireção de palco

Rui Simãodireção de cena

Ricardo Silvamaquinaria

Carlos Barbosa, Joel Santos luz

Filipe Pinheiro, Abílio Vinhas,

António Pedra, José Rodrigues,

Nuno Gonçalvessom

Joel Azevedo, António Bica

apoios

APOIOS À DIVULGAÇÃO

agradecimentos tnsj

Renan Benyamina

Polícia de Segurança Pública

Mr. Piano/Pianos Rui Macedo

O Centre chorégraphique national

d’Orléans é financiado pelas

seguintes instituições: Ministère de

la Culture et de la Communication

– dGCA – dRAC Centre;

Région Centre; Ville d’Orléans;

département du Loiret.

Centre chorégraphique national d’Orléans37 rue du Bourdon Blanc

CS 42348

45023 Orléans cedex

T +33 2 38 62 41 00

www.josefnadj.com

[email protected]

Teatro Nacional São JoãoPraça da Batalha

4000 ‑102 Porto

T 22 340 19 00

Teatro Carlos AlbertoRua das Oliveiras, 43

4050 ‑449 Porto

T 22 340 19 00

Mosteiro de São Bento da VitóriaRua de São Bento da Vitória

4050 ‑543 Porto

T 22 340 19 00

www.tnsj.pt

[email protected]

EDIÇÃO

Departamento de Edições do TNSJcoordenação Pedro Sobradocapa e modelo gráfico

Joana Monteiropaginação

João Guedesfotografia

Marcel van DintherNadja La Ganza (p. 11)

Séverine Charrier (p. 7)

impressão

Multitema

Não é permitido filmar, gravar ou fotografar durante o espetáculo. O uso de telemóveis ou relógios com sinal sonoro é incómodo, tanto para os intérpretes como para os espectadores.

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