Atenção plena Trecho.pdf

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  • S U M R I O

    Prefcio de Jon Kabat-Zinn 7

    1. Correndo atrs da prpria cauda 10

    2. Por que nos atacamos? 21

    3. Despertando para a vida 35

    4. Apresentao do programa de oito semanas 54

    5. Semana um: acordar para o piloto automtico 62

    6. Semana dois: conscientizar-se do corpo 80

    7. Semana trs: o rato no labirinto 95

    8. Semana quatro: ir alm dos rumores 112

    9. Semana cinco: enfrentar as dificuldades 129

    10. Semana seis: prisioneiro do passado ou vivendo no presente? 146

    11. Semana sete: quando voc parou de danar? 165

    12. Semana oito: sua frentica e preciosa vida 184

    Notas 195

    Agradecimentos 206

  • 7P R E F C I O

    D E J O N K A B A T - Z I N N

    Hoje em dia, muito se fala sobre a ateno plena, conceito tambm conhecido como mindfulness. E essa uma tima notcia, pois estamos profundamente carentes de um elemento imaterial em nossa vida. s vezes temos a sensao de que o que est faltando, no fundo, somos ns prprios nossa disposio para aproveitar a existncia de forma plena, agindo como se ela realmente importasse, vivendo o ni-co momento que temos de fato: o presente. Esta uma intuio trans-formadora.

    Nesse sentido, a ateno plena pode parecer uma boa ideia, mas muito mais do que isso. Voc pode pensar Ah, sim, serei mais focado e menos crtico, e tudo ficar melhor. Por que no pensei nisso antes?. Acontece que somente pensar assim dificilmente traz mudanas obje-tivas. Para ser eficaz, a ateno plena requer um engajamento concreto. Outra maneira de explicar isso, como observam Mark Williams e Danny Penman neste livro, que a ateno plena , na verdade, uma prtica. um estilo de vida, e no apenas uma boa ideia, uma tcnica inteligente ou uma moda passageira. um conceito que data de milhares de anos e costuma ser citado como o corao da meditao budista, embora sua essncia seja universal.

    A prtica da ateno plena exerce uma influncia poderosa sobre a sade, o bem-estar e a felicidade, como atestam as evidncias mdicas e cientficas apresentadas neste livro. Porm, por ser uma prtica e no um conceito abstrato, seu cultivo um processo, que se desenrola e se aprofunda com o tempo. mais eficaz se voc a assume como um compromisso srio consigo mesmo, o que exige persistncia e dis-

  • 8ciplina, e, ao mesmo tempo, certa dose de despreocupao e leveza. Essa leveza, aliada a um envolvimento constante e profundo, uma caracterstica do treinamento da ateno plena em todas as suas dife-rentes formas.

    muito importante ter uma boa orientao ao longo desse caminho, pois muita coisa est em jogo: sua qualidade de vida, seus relaciona-mentos, seu bem-estar, seu equilbrio mental, sua felicidade e sua pos-tura diante das dificuldades. Tenho certeza de que as mos experientes de Mark Williams e Danny Penman podem gui-lo nesse processo. O programa que eles apresentam se apoia nos estudos sobre a reduo do estresse e na terapia cognitiva, ambos com base na ateno plena. Ele est organizado como um plano de oito semanas para auxiliar todos aqueles que se importam em manter a sade fsica e mental neste mun-do frentico.

    Gosto especialmente das sugestes simples que Mark e Danny ofere-cem para rompermos os hbitos e da maneira como eles revelam nossos padres de pensamento e comportamento mais inconscientes.

    Enquanto voc se coloca nas mos dos autores para ser orientado, est se colocando tambm nas prprias mos, comprometendo-se a seguir as sugestes, a se envolver nas diferentes prticas de mudanas de hbitos e a prestar ateno ao que acontece quando comea a viver o agora. Esse compromisso um ato radical de confiana e f em si mes-mo. O programa inspirador oferecido aqui, aliado a essa nova crena em sua capacidade de operar mudanas, pode ser a grande oportunidade de sua vida, uma chance de aprender a aproveitar cada momento de forma mais plena.

    Mark Williams meu colega de trabalho, coautor em alguns trabalhos e bom amigo h vrios anos. Ele um dos mais importantes pesquisa-dores do mundo no campo da ateno plena, e foi pioneiro no estudo e na divulgao de seus conceitos. Junto com John Teasdale e Zindel Segal, criou a terapia cognitiva com base na ateno plena, que tem ajudado muito na recuperao de pacientes vtimas de depresso. Tambm fun-dou o Centre for Mindfulness Research and Practice na Universidade de Bangodo e o Oxford Mindfulness Centre, dois grandes centros de

  • 9pesquisa que esto na vanguarda do uso de intervenes clnicas com base nas tcnicas de ateno plena.

    Agora, ao lado do jornalista Danny Penman, Mark apresenta este guia prtico sobre a ateno plena e seu cultivo. Espero que voc obtenha grandes benefcios ao se dedicar a este programa e aceite o convite para descobrir como se relacionar de forma mais sbia e gratificante com sua preciosa vida.

    Jon Kabat-ZinnBoston, Massachusetts

    Dezembro de 2010

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    C A P T U L O U M

    Correndo atrs da prpria cauda

    Voc consegue se lembrar da ltima vez que esteve deitado na cama lutando contra seus pensamentos? Voc queria que sua mente se acalmasse, apenas se aquietasse, para que pudesse adormecer. Mas nada funcionava. Cada vez que se forava a no pensar, seus pensamentos ex-plodiam com fora renovada. Voc dizia a si mesmo que no deveria se preocupar, mas subitamente descobria inmeras novas preocupaes. Virava de um lado para outro tentando encontrar uma posio mais con-fortvel. No adiantava. Conforme a noite avanava, sua fora progres-sivamente se exauria, e voc se sentia frgil e fracassado. Na hora que o despertador tocava, voc estava exausto, mal-humorado e destrudo.

    Ao longo do dia seguinte, voc tinha o problema oposto queria se manter acordado, mas no conseguia parar de bocejar. Esforava-se para se concentrar no trabalho, mas no conseguia. Seus olhos estavam verme-lhos e inchados. Seu corpo inteiro doa e sua mente parecia vazia. Voc fitava as pilhas de papis em sua escrivaninha, esperando que alguma coisa, qualquer coisa, lhe desse energia para enfrentar o dia de trabalho. Nas reunies, voc mal conseguia manter os olhos abertos e contribuir com algo minimamente inteligente. Voc se sentia cada vez mais ansioso e estressado.

    Talvez isso seja comum em sua vida. Por isso escrevemos este livro: para ajudar voc a encontrar a paz e o contentamento numa poca fre-ntica como a nossa. Ou melhor, a redescobrir a paz e o contentamen-to, pois existem profundas fontes de tranquilidade dentro de todos ns, embora estejamos confusos e cansados demais para perceber.

    Sabemos que isso verdade porque temos estudado esse assunto por

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    mais de trinta anos na Universidade de Oxford e em outras instituies ao redor do mundo. Esse trabalho descobriu o segredo da felicidade sustentada e os meios de enfrentar a ansiedade, o estresse, a exausto e at mesmo a depresso.

    Esse conhecimento era disseminado no mundo antigo e mantido at hoje em certas culturas. Mas, na cultura ocidental, muitas pessoas esqueceram como viver uma vida agradvel e alegre. E, pior, se esfor-am tanto para serem felizes que acabam desperdiando seus momentos mais importantes e destruindo a paz que vinham buscando.

    Escrevemos este livro para mostrar onde a felicidade, a paz e o con-tentamento podem ser encontrados e como voc pode redescobri-los. Ele ensina tcnicas para se libertar da ansiedade, do estresse, da infeli-cidade e da exausto. No prometemos felicidade eterna, pois sabemos que todos passam por perodos de dor e sofrimento, e seria ingnuo negar esse fato. Mas, mesmo assim, possvel ter uma alternativa luta implacvel que permeia grande parte de nossa vida.

    Nas pginas seguintes e no CD que acompanha este livro apresenta-mos uma srie de prticas simples que voc pode incorporar sua rotina. Elas so fundamentadas na terapia cognitiva com base na ateno plena (tambm conhecida pela sigla em ingls MBCT mindfulness-based cog-nitive therapy), que se originou da obra de Jon Kabat-Zinn, professor e pesquisador da Faculdade de Medicina da Universidade de Massachu-setts e que assina o prefcio. O programa foi originalmente desenvolvido por Mark Williams (coautor deste livro), John Teasdale (da Universida-de de Cambridge) e Zindel Segal (da Universidade de Toronto), com o objetivo de ajudar pessoas que sofriam de crises repetidas de depresso a superar a doena. Ficou clinicamente provado que essa prtica reduz metade o risco de reincidncia em pacientes que j tiveram as formas mais debilitantes da doena. to eficiente quanto o tratamento com antidepressivos, mas sem os efeitos colaterais. Na verdade, to eficaz que passou a ser um dos tratamentos mais recomendados pelo Instituto Nacional de Excelncia Clnica do Reino Unido.

    A tcnica da terapia cognitiva com base na ateno plena gira em tor-no de uma forma de meditao que era pouco conhecida no Ocidente

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    at recentemente. A meditao que a tcnica prope to simples que pode ser feita por qualquer pessoa. Alm de ajudar a resgatar a alegria de viver, ela tambm impede que as sensaes normais de ansiedade, estresse e tristeza se transformem em infelicidade crnica ou at mesmo depresso.

    Meditao de um minuto

    1. Sente-se ereto em uma cadeira com encosto reto. Se possvel, afaste

    um pouco as costas do encosto da cadeira para que sua coluna ver-

    tebral se sustente sozinha. Seus ps podem repousar no cho. Feche

    os olhos ou abaixe o olhar.

    2. Concentre a ateno em sua respirao enquanto o ar flui para dentro

    e para fora de seu corpo. Perceba as diferentes sensaes geradas por

    cada inspirao e expirao. Observe a respirao sem esperar que algo

    de especial acontea. No h necessidade de alterar o ritmo natural.

    3. Aps alguns instantes, talvez sua mente comece a divagar. Ao se dar

    conta disso, traga sua ateno de volta respirao, suavemente. O ato

    de perceber que sua mente se dispersou e traz-la de volta sem criticar

    a si mesmo central para a prtica da meditao da ateno plena.

    4. Sua mente poder ficar tranquila como um lago ou no. Ainda que

    voc obtenha uma sensao de absoluta paz, poder ser apenas fugaz.

    Caso se sinta irritado ou entediado, perceba que essa sensao tam-

    bm deve ser fugaz. Seja l o que acontea, permita que seja como .

    5. Aps um minuto, abra os olhos devagar e observe o aposento nova-

    mente.

    Uma meditao tpica consiste em concentrar toda a ateno na res-pirao (ver quadro Meditao de um minuto acima). Isso permite que voc observe os pensamentos surgindo em sua mente e, pouco a pouco, pare de lutar contra eles. Assim, voc comea a perceber que os pensamentos vm e vo por si prprios, e descobre que voc no seus

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    pensamentos. Voc pode observ-los enquanto aparecem de repente e enquanto desaparecem como uma bolha de sabo. Ao se dar conta dis-so, fica claro que pensamentos e sensaes (mesmo os negativos) so transitrios e que voc tem a opo de agir com base neles ou no.

    A ateno plena consiste em observar sem criticar e em ser compas-sivo consigo mesmo. Quando a infelicidade e o estresse ocupam sua cabea, em vez de lev-los para o lado pessoal, voc aprende a trat-los como se fossem apenas nuvens negras e a observ-los com curiosidade enquanto se afastam. Em essncia, a ateno plena permite que voc capte os padres dos pensamentos negativos antes que eles o lancem em uma espiral descendente. Esse o incio do processo para retomar o controle de sua vida.

    Com o tempo, a ateno plena provoca mudanas de longo prazo no estado de humor e nos nveis de felicidade e bem-estar. Estudos cientficos mostram que a prtica da ateno plena no s previne a depresso, como afeta positivamente os padres cerebrais responsveis pela ansiedade e pelo estresse do dia a dia, fazendo com que, uma vez instalada, essa con-dio se dissolva com mais facilidade. Outros estudos demonstraram que pessoas que meditam regularmente vo ao mdico com menos frequn-cia e passam menos dias no hospital quando so internadas. Alm disso, a memria melhora, a criatividade aumenta e as reaes se tornam mais rpidas (ver quadro sobre os benefcios da meditao a seguir).

    Os benefcios da meditao da ateno plena

    Estudos mostram que os meditadores regulares so mais felizes e mais

    satisfeitos do que a mdia das pessoas.1 Esses resultados tm uma im-

    portante repercusso na sade, j que as emoes positivas esto asso-

    ciadas a uma vida mais longa e saudvel.2

    A ansiedade, a depresso e a irritabilidade diminuem com sesses re-

    gulares de meditao.3 A memria melhora, as reaes se tornam mais

    rpidas e o vigor mental e fsico aumenta.4

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    Os meditadores regulares tm relacionamentos melhores e mais gra-

    tificantes.5

    Estudos feitos no mundo todo comprovam que a prtica da meditao

    reduz os principais indicadores do estresse crnico, incluindo a hiper-

    tenso.6

    A meditao eficaz tambm para reduzir o impacto de doenas gra-

    ves, como dor crnica7 e cncer,8 podendo at auxiliar no combate

    dependncia de drogas e lcool.9

    Alm disso, pesquisas indicam que a meditao fortalece o sistema

    imunolgico, ajudando a combater resfriados, gripe e outras doenas.10

    Apesar desses benefcios comprovados, muitas pessoas ainda ficam desconfiadas quando ouvem a palavra meditao. Assim, antes de avanarmos, seria bom fazer algumas consideraes e refutar alguns mitos:

    A meditao no uma religio. A ateno plena apenas um mtodo de treinamento mental. Muitas pessoas que meditam so religiosas, porm inmeros ateus e agnsticos so meditadores contumazes.

    Voc no precisa se sentar no cho de pernas cruzadas (como nas fo-tos que provavelmente viu nas revistas e na TV), mas pode, se quiser. A maioria das pessoas se senta no cho ou em cadeiras para meditar, mas voc pode praticar a ateno plena em qualquer lugar, a qualquer momento: no nibus, no metr ou enquanto caminha.

    Praticar a ateno plena no exige muito tempo, mas preciso ter pacincia e persistncia. Muita gente nota que a meditao alivia as presses cotidianas, liberando tempo para gastar com coisas mais importantes.

    A meditao no complicada. No tem nada a ver com sucesso ou

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    fracasso. Mesmo quando sentir dificuldades para meditar, voc vai aprender algo valioso sobre o funcionamento da mente e se beneficiar psicologicamente.

    A meditao no vai entorpecer sua mente nem impedi-lo de se em-penhar para ter uma carreira brilhante. Tambm no vai obrig-lo a adotar uma postura de Poliana diante da vida. A meditao no implica aceitar o inaceitvel, mas ver o mundo com clareza para ser capaz de tomar atitudes mais sbias para mudar o que precisa ser mu-dado. A prtica da ateno plena ajuda a cultivar uma conscincia profunda e compassiva que nos permite avaliar nossas metas e en-contrar o melhor caminho para agir de acordo com nossos verdadei-ros valores.

    ENCONTRANDO A PAZ EM UM MUNDO FRENTICO

    Se voc est lendo este livro, provavelmente j se perguntou por que a paz e a felicidade sempre parecem escapar por entre os dedos. Por que a vida uma sucesso de atividades frenticas, ansiedade, estresse e exausto? Essas perguntas tambm nos intrigaram por muitos anos, e acreditamos que a cincia finalmente encontrou as respostas para elas. No entanto, por mais irnico que seja, hoje sabemos que os princpios subjacentes a essas respostas so verdades eternas, conhecidas h muito pelos povos do mundo antigo.

    Nosso estado de humor muda a todo momento. Isso normal. Mas certos padres de pensamento podem transformar uma tristeza ou um desnimo passageiro em um estado prolongado de infelicidade, ansie-dade, estresse e exausto. s vezes, um breve momento de irritao capaz de deix-lo de mau humor o dia inteiro. Descobertas cientficas recentes mostram como essas variaes emocionais podem levar in-felicidade de longo prazo, ansiedade crnica e at depresso. Mas tambm apontam o caminho para nos tornarmos pessoas mais felizes e centradas. Os estudos descobriram que:

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    Quando voc comea a se sentir triste, ansioso ou irritado, no o estado de humor que causa problemas, mas sim a maneira como voc reage a ele.

    O esforo de tentar se livrar do mau humor ou da infelicidade ou seja, tentar descobrir por que est se sentindo assim e como reagir a isso com frequncia piora ainda mais as coisas. como ficar preso em areia movedia: quanto mais voc luta para escapar, mais afunda nela.

    Quando entendemos como a mente funciona, fica claro por que temos surtos de infelicidade e estresse de tempos em tempos. Muitas ve-zes, se estamos tristes, procuramos meios de resolver o problema. Ten-tamos descobrir a causa dessa tristeza e encontrar uma soluo. Nesse processo, revivemos mgoas antigas e evocamos preocupaes futuras o que nos deixa ainda mais infelizes. Ento comeamos a nos sentir mal porque no conseguimos melhorar o astral. Logo depois nosso crtico interno entra em ao, dizendo que deveramos nos esforar mais. As-sim, nos afastamos das partes mais profundas de nosso ser e entramos num ciclo interminvel de recriminao e autojulgamento.

    Somos arrastados para essa areia movedia emocional porque nosso estado mental est diretamente ligado memria. A mente fica o tem-po todo percorrendo as lembranas para encontrar aquelas que reflitam nosso estado atual. Por exemplo, se voc se sente ameaado, na mesma hora a mente traz tona lembranas de quando voc se sentiu em perigo no passado, para poder detectar semelhanas e achar um meio de esca-par. Isso acontece de forma instantnea, sem que voc perceba. uma habilidade bsica de sobrevivncia aperfeioada por milhes de anos de evoluo. incrivelmente poderosa e quase impossvel de deter.

    O mesmo ocorre em relao infelicidade, ansiedade e ao estresse. normal sentir-se para baixo de vez em quando, mas a tristeza ocasional-mente pode desencadear uma cascata de lembranas infelizes, emoes negativas e julgamentos cruis. Em pouco tempo, voc pode comear a se martirizar com pensamentos autocrticos, como: O que h de errado comigo?, Minha vida uma droga e Eu sou um intil mesmo.

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    Esses pensamentos so incrivelmente poderosos, e uma vez que ga-nham impulso muito difcil fre-los. Um pensamento desencadeia o prximo, depois o seguinte... Logo, o pensamento original por mais fugaz que tenha sido evoca uma srie de tristezas, ansiedades e temores semelhantes, e voc se afunda no prprio pesar.

    Em certo sentido, no h nada de surpreendente nisso. O contexto exerce um efeito enorme sobre a memria. Alguns anos atrs, psiclo-gos descobriram que se mergulhadores de guas profundas memori-zassem uma lista de palavras na praia, tendiam a esquec-las quando estavam embaixo dgua, mas conseguiam relembr-las quando volta-vam terra firme. O inverso tambm funcionava: palavras memorizadas embaixo dgua eram mais facilmente esquecidas na praia e relembradas durante o mergulho. O mar e a praia eram contextos poderosos para a memria.11

    Voc pode ver esse processo acontecendo em sua mente. Alguma vez j voltou ao lugar onde mais gostava de passar as frias na infncia? Antes da visita, voc provavelmente s tinha lembranas difusas. Mas, quando chega l e percorre as ruas, absorve a paisagem, os sons e os cheiros , as lembranas voltam como uma enxurrada. Isso pode fa-zer com que se sinta empolgado, nostlgico ou emocionado. Retornar quele contexto encoraja sua mente a evocar uma srie de lembranas relacionadas ao local. Mas no so apenas lugares que desencadeiam lembranas. O mundo est cheio de desencadeadores: uma cano, uma determinada flor, o cheiro do po fresquinho...

    Da mesma forma, nosso humor pode agir como um contexto inter-no to poderoso quanto a visita a um lugar especial ou o som de uma msica favorita. Uma centelha de tristeza, frustrao ou ansiedade pode trazer de volta lembranas perturbadoras, e logo voc estar perdido em emoes negativas e pensamentos sombrios. Talvez voc nem saiba de onde vieram parecem ter surgido do nada. E voc pode ficar mal--humorado, irritado ou triste sem saber a causa.

    No possvel parar a torrente de lembranas, mas h maneiras de evitar o que aconteceria em seguida. Voc pode impedir que a espiral se autoalimente e desencadeie o prximo ciclo de negatividade. Pode

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    deter a sucesso de emoes destrutivas capaz de deix-lo mais infeliz, ansioso, estressado, irritado ou exausto.

    A meditao da ateno plena ensina voc a reconhecer lembranas e pensamentos prejudiciais assim que surgirem. Ela o faz se dar con-ta de que as lembranas no passam de lembranas, e que, portanto, no so reais. No so voc. Voc aprende a observar os pensamentos negativos no momento em que surgem e a v-los evaporar diante de seus olhos. Quando isso ocorre, uma sensao profunda de felicidade e paz o invade.

    Tal prtica faz a mente agir de maneira alternativa forma como ela geralmente se relaciona com o mundo. A maioria das pessoas conhe-ce apenas o lado analtico da mente, o processo de produo de pen-samentos, julgamentos, planejamento e busca por lembranas antigas para encontrar solues semelhantes. Mas a mente tambm consciente. No apenas pensamos sobre coisas: temos conscincia de que estamos pensando. No precisamos da linguagem para intermediar nossa rela-o com o mundo. Podemos experiment-lo diretamente por meio dos sentidos: somos capazes de ouvir o som dos pssaros, de sentir o per-fume das flores e de ver o sorriso da pessoa amada. Sabemos tanto com o corao quanto com a cabea. A capacidade de pensar no resume a experincia consciente. A mente maior e mais abrangente do que o pensamento.

    A meditao traz clareza mental, o que nos permite ver as coisas com uma conscincia pura e sincera. um lugar um posto privilegiado de observao do qual podemos testemunhar o nascimento de nos-sos pensamentos e sensaes. Ela desarma o gatilho que nos faz reagir de imediato. Nosso eu interior nosso lado de felicidade e paz inatas deixa de ser abafado pelo rudo da mente ruminando os problemas.

    A prtica da ateno plena nos encoraja a ser mais pacientes e com-passivos com ns mesmos, a abrir a mente e a ser persistentes. Essas qualidades nos ajudam a escapar da fora gravitacional da ansiedade, do estresse e da infelicidade, lembrando-nos de que devemos parar de tratar a tristeza e outras dificuldades como problemas que precisam ser resolvidos. No podemos nos sentir mal por falhar em resolv-los. Na

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    verdade, muitas vezes at melhor no conseguirmos encontrar solu-es, pois nossas formas habituais de resolver problemas podem acabar agravando-os.

    A prtica da ateno plena no nega o desejo natural do crebro de solucionar problemas. Ela simplesmente nos d tempo para escolher a melhor forma de resolv-los.

    A FELICIDADE AGUARDA

    A ateno plena opera em dois nveis. O primeiro e mais importan-te a essncia do programa, que consiste em uma srie de meditaes dirias simples que podem ser praticadas em qualquer lugar (embora seja mais til pratic-las em um local tranquilo em casa). Algumas du-ram apenas trs minutos, outras podem levar de vinte a trinta minutos.

    A ateno plena nos encoraja a romper com os hbitos de pensamen-to e comportamento que nos impedem de aproveitar plenamente a vida. Grande parte da autocrtica e dos julgamentos internos surge a partir da maneira como costumamos pensar e agir. Ao quebrar algumas de suas rotinas dirias, aos poucos voc dissolver alguns desses padres de pensamento negativo e se tornar mais atento e consciente. espantoso notar como a felicidade e a alegria reaparecem, mesmo fazendo apenas pequenas mudanas na sua maneira de viver.

    Romper os hbitos no complicado: basta, por exemplo, desligar a TV, pegar um caminho diferente para o trabalho e no se sentar sempre na mesma cadeira em todas as reunies. Voc pode plantar sementes e observar a germinao, cuidar do animal de estimao do seu amigo por uns dias, assistir a um filme num cinema em que nunca foi. Atitudes simples assim aliadas a uma breve meditao todos os dias realmen-te podem tornar sua vida mais alegre e gratificante.

    Voc pode praticar o programa pelo perodo que desejar, mas o ideal realiz-lo durante as oito semanas recomendadas. Ele to flexvel quanto voc quiser torn-lo, mas convm lembrar que pode levar tempo at que as prticas revelem seu pleno potencial. Por isso so chamadas

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    de prticas. Este livro foi concebido para ajud-lo e orient-lo ao longo desse caminho. E, se voc segui-lo, finalmente encontrar a paz neste mundo to agitado.

    Para comear o programa imediatamente, sugerimos que voc v dire-to para o Captulo Quatro. Caso queria saber mais sobre os estudos que revelam como nos tornamos prisioneiros dos pensamentos e comporta-mentos negativos e como a meditao pode nos libertar , os Captulos Dois e Trs lhe daro todas as informaes. Esperamos realmente que voc leia esses captulos, pois eles mostram por que a ateno plena to poderosa. Eles vo ajudar bastante em seu progresso e lhe dar a chance de conhecer a Meditao do Chocolate. Mas, caso esteja muito ansioso para comear, no h motivo para no iniciar o programa agora mesmo e ler os Captulos Dois e Trs medida que for praticando.

    No CD que acompanha o livro h oito faixas contendo as meditaes necessrias para conduzi-lo ao longo do programa. Sugerimos que voc leia sobre cada meditao no livro e depois siga as orientaes do CD para coloc-las em prtica.

  • 21

    C A P T U L O D O I S

    Por que nos atacamos?

    A parentemente, Lucy era uma representante de vendas bem-suce-dida de uma rede de lojas de roupas. Mas ela estava se sentindo paralisada. s trs da tarde, olhando pela janela do escritrio, estres-sada, exausta e totalmente indisposta, ela se perguntava:

    Por que no consigo fazer meu trabalho direito? Por que no consigo me concentrar? O que h de errado comigo? Estou to cansada! Nem consigo pensar direito...

    Lucy vinha se punindo com esses pensamentos autocrticos constan-temente. Mais cedo, naquele dia, ela tivera uma conversa longa e ansiosa com a professora do jardim de infncia sobre sua filha, Emily, que an-dava chorando quando era deixada na escola. Depois, telefonou para o bombeiro para saber por que no tinha ido consertar a descarga que-brada em sua casa. Agora fitava uma planilha, sentindo-se sem energia e mastigando um muffin de chocolate no lugar do almoo.

    As exigncias e tenses na vida de Lucy estavam piorando gradual-mente nos ltimos meses. O trabalho se tornava cada vez mais estres-sante e comeava a se estender at bem depois do horrio do expediente. As noites haviam se tornado insones, os dias, mais sonolentos. Seu cor-po comeou a doer. A vida perdeu a alegria. Seguir em frente era uma luta. Ela j havia se sentido assim antes, mas sempre fora uma situao temporria. Jamais imaginara que aquilo poderia se tornar um aspecto permanente de sua vida.

    Ela vivia se perguntando: O que aconteceu com a minha vida? Por que

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    me sinto to exausta? Eu deveria estar feliz. Eu costumava ser feliz. Para onde foi minha alegria?

    A vida de Lucy girava em torno de excesso de trabalho, infelicidade, insatisfao e estresse. Ela fora privada de sua energia mental e fsica e se sentia perdida. Queria voltar a ser feliz e estar em paz consigo mesma, mas no tinha ideia de como chegar l. Sua frustrao no era grave a ponto de justificar uma ida ao mdico, mas era suficiente para solapar o seu prazer de viver. Ela no vivia, apenas sobrevivia.

    A histria de Lucy no um caso isolado. Ela uma das milhes de pessoas que no esto deprimidas nem ansiosas na acepo mdica mas tambm no so felizes de verdade. O humor de todos ns passa por altos e baixos. s vezes nosso estado de esprito muda de uma hora para outra, sem nem sabermos por qu: num momento estamos felizes, contentes e despreocupados, ento algo sutil acontece e comeamos a ficar estressados. Pensamos em nossas dificuldades, em todas as coisas que precisamos fazer, na falta de tempo para resolver tudo. O ritmo das exigncias cada vez mais implacvel. Nesse estado, ficamos cansados o tempo todo, de forma que nem uma boa noite de sono nos revigora. E nos perguntamos: Como isso foi acontecer? Por que ficamos assim? Talvez no tenha havido nenhuma grande mudana em nossa vida: no perdemos um amigo, no nos endividamos de forma descontrolada. Nada mudou, mas de alguma forma a alegria desapareceu, sendo subs-tituda por uma espcie de aflio generalizada.

    Na maior parte do tempo, as pessoas conseguem escapar dessa espiral descendente. Esses perodos difceis costumam passar. No entanto, s vezes podem perdurar e nos levar para o fundo do poo. No caso de Lucy, a tristeza e a frustrao duraram meses, sem qualquer razo apa-rente. Nas situaes mais graves, a pessoa pode ser acometida por uma crise sria de ansiedade ou de depresso clnica (ver quadro a seguir).

  • 23

    Infelicidade, estresse e depresso

    A depresso vem cobrando um alto preo no mundo moderno. Acre-

    dita-se que 10% da populao deve ficar clinicamente deprimida nos

    prximos doze meses. E a tendncia que a situao se agrave. A Or-

    ganizao Mundial da Sade1 estima que a depresso ser o segundo

    pior problema de sade global em 2020. Pense nisto por um momento:

    a depresso causar mais danos do que doenas cardacas, artrite e

    alguns tipos de cncer em menos de uma dcada.

    A doena costumava ser tpica da meia-idade. Agora, no entanto, ata-

    ca a maioria das pessoas pela primeira vez por volta dos 25 anos. E

    um nmero substancial de indivduos sofre seus primeiros efeitos ain-

    da na adolescncia.2 O problema pode persistir: cerca de 15% a 39%

    das vtimas continuam deprimidas aps um ano. Aproximadamente 20%

    permanecem deprimidas por dois anos ou mais que a definio de

    depresso crnica.3 Porm o mais assustador que a depresso tende a

    retornar. Se voc esteve deprimido uma vez, as chances de recada so

    de 50%, ainda que voc tenha se recuperado de forma plena.

    Apesar de a depresso estar causando tantos estragos, sua prima

    a ansiedade crnica tambm vem se tornando perturbadoramente

    comum, com nveis mdios em crianas e jovens atingindo um patamar

    que seria considerado clnico na dcada de 1950.4 No preciso mui-

    ta imaginao para concluir que, em poucas dcadas, a infelicidade, a

    depresso e a ansiedade tero se tornado a condio humana normal,

    tomando o lugar da felicidade e do contentamento.

    Embora perodos persistentes de aflio e exausto geralmente pare-am surgir do nada, existem processos ocorrendo no fundo da mente que s se tornaram conhecidos na dcada de 1990. E essa descoberta trouxe a percepo de que podemos nos libertar das preocupaes, da infelicidade, da ansiedade, do estresse, da exausto e at da depresso.

  • 24

    NOSSA MENTE ATRIBULADA

    Se voc perguntasse a Lucy como estava se sentindo naquela tarde, ela teria dito que estava exausta ou tensa. primeira vista, essas sen-saes parecem afirmaes factuais, mas se olhasse para dentro de si mesma com mais ateno, Lucy teria percebido que no havia algo es-pecfico que pudesse ser rotulado de exausto ou tenso. Ambas as emoes eram, na verdade, feixes de pensamentos, sentimentos, sensa-es fsicas e impulsos (como o desejo de gritar ou de sair correndo da sala). As emoes so assim: uma cor de fundo criada quando a mente funde pensamentos, sentimentos, impulsos e sensaes fsicas para evo-car um tema norteador ou estado mental geral (ver diagrama O que compe uma emoo? na pgina seguinte). Todos os elementos que formam as emoes interagem entre si e podem intensificar o estado de humor geral. uma dana intricada, cheia de ligaes sutis que s agora comeamos a entender.

    Tomemos os pensamentos como exemplo. Algumas dcadas atrs, acreditava-se que os pensamentos conseguiam mudar nosso estado de esprito e nossas emoes, mas a partir dos anos 1980 descobriu--se que o contrrio tambm pode acontecer: nosso estado de esprito pode mudar nossos pensamentos. Na prtica, isso significa que mesmo os momentos passageiros de tristeza podem acabar se autoalimentando para criar pensamentos negativos, definindo a maneira como voc v e interpreta o mundo. Assim como um cu nublado pode faz-lo se sen-tir melanclico, uma pequena irritao pode trazer tona lembranas ruins, aprofundando ainda mais seu nervosismo. O mesmo vale para outras emoes: se voc se sente estressado, esse estado pode criar ainda mais estresse. Isso tambm acontece com a ansiedade, o medo, a raiva, e com emoes positivas como amor, felicidade, compaixo e empatia.

  • 25

    O que compe uma emoo?

    ImpulsosEscapar, se encolher na cama, cobrir a cabea

    com o cobertor

    SentimentosTenso, contrariado

    Sensaes fsicasOmbros tensos, frio na

    barriga

    PensamentosNo estou chegando a lugar algum com isso

    Emoes so feixes de pensamentos, sentimentos, sensaes fsicas e impulsos para agir. Da prxima vez que experimentar emoes agradveis ou desagradveis, voc vai poder avaliar o que est acontecendo e observar a interao dos diferentes aspectos do feixe.

    Mas no so apenas pensamentos e estados de nimo que se alimen-tam mutuamente e destroem o bem-estar o corpo tambm se envolve nesse processo. Isso acontece porque a mente no existe de forma isolada. Ela uma parte fundamental do corpo, e ambos compartilham informa-es emocionais entre si o tempo todo. Na verdade, grande parte do que o corpo sente influenciado pelos pensamentos e pelas emoes, e tudo o que pensamos influenciado pelo que est ocorrendo no corpo. Pesquisas recentes mostram que nossa perspectiva de vida pode ser alterada por mnimas mudanas corporais: atitudes sutis como fechar a cara, sorrir ou corrigir a postura podem ter um impacto enorme em nosso estado de esprito e em nossos pensamentos (ver quadro a seguir).

  • 26

    Humor deprimido, corpo deprimido

    Voc j observou como o mau humor afeta o seu corpo? J reparou que

    o desnimo influencia a maneira como, por exemplo, voc anda?

    O psiclogo Johannes Michalak5 e outros pesquisadores da Univer-

    sidade do Ruhr, em Bochum, Alemanha, usaram um sistema ptico de

    captura de movimentos para ver como pessoas deprimidas e no depri-

    midas diferem ao caminhar. Para o estudo, convidaram voluntrios para

    andar pelo laboratrio, escolhendo livremente a velocidade e o estilo da

    caminhada. Os movimentos foram rastreados de forma tridimensional,

    usando mais de quarenta pequenas marcas reflexivas afixadas ao corpo

    deles.

    Os pesquisadores descobriram que os deprimidos caminhavam mais

    devagar, balanando menos os braos. A parte superior do corpo deles

    no subia e descia muito, mas tendia a balanar de um lado para outro.

    Alm disso, constataram que os voluntrios deprimidos andavam com a

    postura curvada, inclinada para a frente.

    claro que a m postura no apenas o resultado de estar deprimido.

    Faa o teste: sente-se por alguns instantes com os ombros cados e a ca-

    bea baixa, e observe como est se sentindo. Se perceber que seu humor

    piorou, sente-se ereto, com a cabea e o pescoo equilibrados sobre os

    ombros, e veja a diferena.

    Para compreender melhor o poder da interao entre o corpo e o es-tado de humor, os psiclogos Fritz Strack, Leonard Martin e Sabine Stepper6 pediram a um grupo de pessoas que assistisse a desenhos ani-mados e depois avaliasse quo engraados eram. Alguns voluntrios tiveram que colocar um lpis entre os lbios, sendo forados a franzi--los e fazer uma cara triste. Outros assistiram aos desenhos com o lpis entre os dentes, simulando um sorriso. Os resultados foram impres-sionantes: aqueles forados a sorrir acharam os desenhos bem mais engraados do que aqueles obrigados a fechar a cara. Todos sabemos

  • 27

    que sorrir demonstra que estamos felizes, mas, convenhamos: sur-preendente descobrir que o ato de sorrir pode ele prprio torn-lo feliz. Esse um exemplo perfeito de como so estreitos os vnculos entre a mente e o corpo.

    Sorrir tambm contagioso. Quando voc v algum sorrindo, quase inevitavelmente sorri de volta. Pense nisto: o simples ato de sorrir pode deix-lo contente (ainda que seja um sorriso forado). E, se voc sorrir, os outros sorriro de volta, o que refora sua felicidade. um crculo virtuoso.

    Mas tambm existe um crculo vicioso, que atua na direo oposta. Ao pressentirmos uma ameaa, ficamos tensos, prontos para lutar ou fugir. Essa reao de luta ou fuga no consciente: controlada por uma das partes mais primitivas do crebro e, por isso, ele pode ser um pouco simplista na maneira de interpretar o perigo. O crebro no faz distino entre uma ameaa externa (como um tigre) e uma interna (como uma lembrana incmoda ou uma preocupao futura), tratan-do as duas como um perigo equivalente. Quando uma ameaa detecta-da seja real ou imaginria , o corpo fica tenso e se prepara para entrar em ao. Isso pode se manifestar de vrias formas, como rosto franzido, frio na barriga ou tenso nos ombros. A mente l a reao do corpo e entende que est diante de uma ameaa (lembra como uma cara amar-rada pode faz-lo se sentir triste?), o que faz o corpo tensionar ainda mais. O crculo vicioso comeou.

    Na prtica, isso significa que, se voc est se sentindo um pouco es-tressado ou vulnervel, uma pequena mudana emocional pode acabar arruinando seu dia ou at mesmo lan-lo num perodo prolongado de insatisfao ou preocupao. Essas mudanas costumam surgir do nada, deixando-o sem energia e se perguntando por que est to infeliz.

    Oliver Burkeman, colunista do jornal The Guardian, descobriu isso sozinho e escreveu sobre como pequenas sensaes corporais se retroa-limentavam para lan-lo em uma espiral emocional descendente:

    Geralmente sou feliz, mas de vez em quando sou atingido por um estado de infelicidade e ansiedade que se intensifica muito r-

  • 28

    pido. Nos piores dias, sou capaz de passar horas perdido em di-vagaes angustiantes, refletindo sobre as grandes mudanas que preciso fazer em minha vida. De repente, percebo que me esqueci de almoar. Como um sanduche de atum e o mau humor desapa-rece. No entanto, minha primeira reao sensao ruim nunca pensar que estou com fome. Aparentemente, meu crebro prefere se chatear com reflexes sobre a falta de sentido da existncia a me direcionar at a geladeira.

    Como Oliver Burkeman constatou em sua prpria experincia, quase sempre essas divagaes angustiantes se desfazem rpido. Algo atrai nosso olhar e nos faz sorrir um amigo telefona, encontramos um bom filme passando na TV, tomamos uma deliciosa xcara de chocolate quente ou decidimos ir para a cama cedo. Em geral, toda vez que somos atingidos pelos turbilhes da vida, algo de bom acontece para restabe-lecer o equilbrio. Mas nem sempre assim. s vezes o peso de nossa histria entra em ao e adiciona uma carga emocional extra, j que nossas lembranas tm um impacto poderoso em nossos pensamentos, sentimentos, impulsos e, em ltima anlise, em nosso corpo.

    Vamos voltar ao exemplo de Lucy. Embora se descreva como uma pessoa ambiciosa e relativamente bem-sucedida, ela tem conscin-cia de que algo fundamental est faltando em sua vida. Ela conquistou quase tudo o que queria, por isso acha estranho que no se sinta feliz, contente e em paz consigo mesma. Constantemente repete a frase Eu deveria estar feliz, como se dizer isso fosse suficiente para expulsar a tristeza.

    Os surtos de infelicidade de Lucy comearam na adolescncia. Seus pais se separaram quando ela tinha 17 anos e a casa da famlia precisou ser vendida, forando seus pais a se mudarem para locais no muito adequados. Lucy surpreendeu a todos por segurar a barra. claro que no incio ficou arrasada com o divrcio, mas logo aprendeu a tirar o foco dos problemas se empenhando nos estudos. Essa foi sua tbua de salvao. Tirou boas notas, entrou na faculdade e se formou com uma qualificao satisfatria. Seu primeiro emprego foi como trainee numa

  • 29

    loja de roupas. Ao longo dos anos, foi subindo na hierarquia da empresa, at chegar a chefe de uma pequena equipe de representantes de vendas.

    Aos poucos, o trabalho dominou a vida de Lucy, deixando-a cada vez mais sem tempo para si mesma. Aconteceu to lentamente que ela mal percebeu que deixava sua vida de lado. Ocorreram coisas boas tambm, claro, como o casamento com Tom e o nascimento das duas filhas. Ela adorava sua famlia, mas no conseguia se livrar da sensao de que apenas algumas pessoas tinham direito de viver de forma plena. Sua impresso era de estar caminhando em areia movedia.

    Essa areia movedia era sua rotina, seu estresse, seus padres de pen-samentos e seus sentimentos do passado. Embora por fora Lucy pare-cesse uma pessoa de sucesso, por dentro ela morria de medo do fracas-so. Esse medo fazia com que qualquer mau humor passageiro desenca-deasse lembranas dolorosas, enquanto seu crtico interno dizia que era vergonhoso exibir tais fraquezas. Sensaes vagas de insegurana aca-bavam despertando uma sucesso de sentimentos negativos do passado que pareciam bem reais e rapidamente assumiam vida prpria, ativando outra onda de emoes nocivas.

    Como Lucy atestar, raro experimentarmos a tenso ou a tristeza isoladamente raiva, irritabilidade, amargura, cimes e dio s vezes esto ligados em um novelo intricado. Esses sentimentos podem at ser dirigidos aos outros, mas na maioria das vezes so voltados para ns mesmos, ainda que no percebamos. Ao longo da vida, esses emaranha-dos emocionais podem se tornar mais associados aos pensamentos, aos sentimentos, s sensaes fsicas e aos comportamentos. assim que o passado consegue ter um efeito to difuso no presente. Se ativamos uma chave emocional, as outras so ativadas em seguida (o mesmo ocor-re com as sensaes fsicas, como a dor). Tudo isso pode desencadear padres de pensamento, comportamento e sentimentos que sabemos que so nocivos, mas que simplesmente no conseguimos evitar. E que, quando combinados, so capazes de transformar qualquer contratempo em uma tempestade emocional.

    Aos poucos, o acionamento repetitivo de pensamentos e humores ne-gativos comea a abrir sulcos na mente. Com o tempo, esses sulcos se

  • 30

    tornam mais profundos, fazendo com que os pensamentos negativos, a autocrtica, a melancolia e o medo se instalem com mais facilidade e se dissipem com mais esforo. A consequncia disso que os perodos prolongados de fragilidade podem ser desencadeados por coisas cada vez mais banais, como uma chateao momentnea ou uma baixa de energia to banais que s vezes nem as reconhecemos. Com frequn-cia, os pensamentos negativos aparecem disfarados de perguntas duras que fazemos a ns mesmos: Por que estou to infeliz? O que est aconte-cendo comigo? Onde ser que errei? Onde isso vai acabar?

    Os vnculos estreitos entre os diversos aspectos da emoo, que o tem-po todo recorrem ao passado, podem explicar por que um sentimento passageiro pode ter um efeito significativo sobre o estado de humor. s vezes esses sentimentos chegam e partem to rpido quanto uma rajada de vento. Outras vezes, no entanto, o estresse, a fadiga e o mau humor ficam grudados como adesivos em nossa mente, e nada parece ser capaz de arranc-los dali. A impresso que se tem que justamente isso que est ocorrendo: a mente ativada para entrar em alerta mximo, mas depois no consegue ser desativada, como deveria acontecer.

    Uma boa forma de ilustrar esse processo comparar a maneira como humanos e animais reagem diante do perigo. Tente se lembrar do lti-mo documentrio sobre a vida selvagem a que assistiu na TV. Deve ter aparecido um rebanho de gazelas sendo caado por um leopardo na savana africana. Aterrorizados, os animais correram feito loucos at que o leopardo capturou um deles ou desistiu da caada naquele dia. Uma vez passado o perigo, as gazelas voltaram a pastar tranquilamente. Algo no crebro delas foi acionado quando avistaram o leopardo e depois desativado quando a ameaa se dissipou.

    Mas a mente humana diferente, sobretudo quando se trata de amea-as intangveis capazes de desencadear ansiedade, estresse, preocupa-o ou irritabilidade. Quando nos preocupamos ou tememos alguma coisa seja ela real ou imaginria nossas reaes de luta ou fuga (ver p. 27) entram em ao. Mas a algo mais ocorre: a mente comea a percor-rer nossas lembranas em busca de algo que explique por que nos sen-timos daquele jeito. Assim, se nos sentimos tensos ou em perigo, nossa

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    mente desenterra memrias de ocasies passadas em que nos sentimos ameaados e depois cria cenrios do que poder ocorrer no futuro se no conseguirmos explicar o que est acontecendo agora. O resultado que os sinais de alerta do crebro so ativados no apenas pelo perigo atual, mas por ameaas passadas e preocupaes futuras. Tal processo se d de forma instantnea, sem que percebamos.

    Estudos recentes feitos a partir de tomografias do crebro confirmam que pessoas que sentem dificuldade de viver o presente e tm rotinas muito agitadas possuem uma amgdala cerebral (a parte primitiva do crebro envolvida no instinto de luta ou fuga) em alerta mximo o tempo todo.7 Assim, quando trazemos tona lembranas de ameaas e perdas antigas e as juntamos ao perigo atual, nosso mecanismo de luta ou fuga no desativado quando a ameaa passa. Ao contrrio das gazelas, no paramos de correr.

    Ento, a forma como reagimos pode transformar emoes tempor-rias e no problemticas em dores persistentes e incmodas. Em suma, a mente pode acabar agravando a situao. Isso vale para muitos outros sentimentos do dia a dia. Eis um exemplo:

    Enquanto est lendo este livro, veja se consegue perceber qualquer sinal de fadiga em seu corpo. Passe um momento observando-o a fun-do. Depois que tiver se conscientizado de seu cansao, faa a si mesmo as seguintes perguntas: Por que estou me sentindo to exausto? O que fiz de errado? O que essa sensao revela sobre mim? O que acontecer se eu no conseguir me livrar dessa fadiga?

    Reflita sobre essas questes por um tempo. Deixe-as ecoar em sua mente. Por que estou to cansado? O que aconteceu comigo? O que vou fazer se permanecer assim?

    Como se sente agora? Provavelmente pior. Acontece com todo mun-do, porque aliado a essas perguntas existe um desejo de se livrar da fadi-ga e de descobrir suas causas e consequncias.8 O impulso de explicar e expulsar a exausto deixou voc mais exausto.

    O mesmo vale para uma srie de sentimentos, como a infelicidade, a ansiedade e o estresse. Quando estamos infelizes, natural tentarmos descobrir a razo por nos sentirmos assim e procurarmos um meio de

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    resolver esse problema. Mas tenso, infelicidade ou exausto no so problemas que possam ser resolvidos. So emoes. Refletem estados da mente e do corpo. Como tais, no podem ser resolvidas apenas sentidas. Se voc as percebeu e abandonou a tendncia de explic-las ou resolv-las, ter mais chances de v-las desaparecer sozinhas, como a nvoa numa manh de primavera.

    Isso lhe soa estranho? Deixe-me explicar melhor. Quando voc tenta resolver o problema da infelicidade (ou de qual-

    quer outra emoo negativa), mobiliza uma das ferramentas mais poderosas da mente: o pensamento crtico racional. Funciona assim: voc se v num lugar (infeliz) e sabe onde deseja estar (feliz). Sua mente analisa o hiato entre os dois polos e tenta descobrir a melhor forma de transp-lo. Para isso, usa seu modo Atuante (assim chamado porque eficiente para resolver problemas e realizar tarefas), que reduz progres-sivamente o hiato entre onde voc est e onde deseja chegar. Ele faz isso fragmentando o problema, resolvendo cada uma das partes e depois ve-rificando se isso o ajudou a se aproximar de seu objetivo. Esse processo instantneo e nem nos damos conta dele. uma forma incrivelmente poderosa de resolver problemas: assim que nos orientamos nas cidades desconhecidas, dirigimos carros e organizamos cronogramas de traba-lho frenticos. Numa escala maior, foi como os povos antigos constru-ram pirmides e navegaram pelo mundo em veleiros primitivos.

    Parece perfeitamente natural, portanto, aplicar essa abordagem para resolver o problema da infelicidade. Mas, na verdade, a pior coisa que se pode fazer, pois requer que voc se concentre no hiato entre como est e como gostaria de estar. Ento voc faz perguntas como: O que h de errado comigo? Onde foi que errei? Por que cometo sempre os mesmos erros? Esses questionamentos, alm de duros e autodestrutivos, exigem que a mente fornea indcios para explicar seu descontentamento. E a mente de fato brilhante em fornecer tais indcios.

    Imagine-se passeando num belo parque em um dia de primavera. Voc est feliz, mas, por alguma razo desconhecida, uma centelha de tristeza surge em sua mente. Pode ser por causa da fome, j que voc no almo-ou, ou talvez porque voc tenha se lembrado sem querer de alguma coisa

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    incmoda. Aps alguns minutos, voc comea a se sentir um pouco aba-tido. Assim que percebe seu desnimo, pensa: O dia est lindo. O parque maravilhoso. Gostaria de me sentir mais contente do que estou agora.

    Repita: Gostaria de me sentir mais contente.Como se sente depois disso? Provavelmente, ainda mais triste. Voc

    se concentrou no hiato entre como se sente e como quer se sentir. E concentrar-se no hiato o realou. A mente v a distncia entre os dois estados como um problema a ser resolvido. Essa abordagem desastro-sa quando se trata das emoes, devido interligao complexa entre pensamentos, emoes e sensaes fsicas. Todos se alimentam mutua-mente e podem conduzir sua mente em direes perturbadoras. Em pouco tempo, voc se v sufocado pelos prprios pensamentos. Voc comea a analisar demais a situao, a remoer o sentimento, a se culpar por no se sentir feliz.

    Seu estado de nimo piora. Seu corpo fica tenso, seu rosto se franze e o desnimo se instala. Algumas dores podem surgir. Essas sensaes realimentam sua mente, que se sente mais ameaada. Seu astral pode cair a tal ponto que voc deixa de aproveitar o passeio no parque e no presta mais ateno na beleza do dia.

    Claro que ningum fica remoendo os problemas porque acredita que uma forma nociva de pensar. As pessoas acreditam que, preocupando--se o suficiente com sua infelicidade, acabaro encontrando uma solu-o para ela. Mas as pesquisas provam o oposto: na verdade, remoer pensamentos reduz nossa capacidade de solucionar problemas, e um artifcio absolutamente intil para lidar com dificuldades emocionais.

    Os sinais so claros: remoer pensamentos o problema, no a soluo.

    ESCAPANDO DO CRCULO VICIOSO

    No d para deter o fluxo de lembranas infelizes, monlogos inter-nos negativos e outras formas de pensamento prejudiciais mas voc

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    pode evitar o que acontece a seguir. Como j dissemos, voc pode im-pedir que o crculo vicioso se autoalimente e desencadeie a prxima es-piral de pensamentos negativos. E pode fazer isso experimentando um jeito novo de se relacionar consigo mesmo e com o mundo. Se voc para e reflete por um momento, a mente no apenas pensa: ela tem conscin-cia de que est pensando. Essa forma de pura conscincia permite que voc veja o mundo de outra maneira, de um ponto de vista distanciado, sem sofrer a interferncia de seus pensamentos, sentimentos e emoes. como estar numa montanha alta um ponto de observao da qual voc pode ver tudo por quilmetros a sua volta.

    A pura conscincia transcende o pensamento. Permite que voc cale a mente tagarela e iniba seus impulsos e emoes reativas. Possibilita que voc olhe para o mundo com os olhos abertos. E quando faz isso, a sensao de contentamento reaparece em sua vida.

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