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compilações doutrinais

VERBOJURIDICO ® 

ATIVISMO JUDICIAL

___________

António José da Ascensão Ramos

JUIZ DE DIREITO AUXILIAR NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO

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Ativismo Judicial

———

António José da Ascensão Ramos

JUIZ DE DIREITO AUXILIAR NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO

As quatro virtudes cardeais:

Justiça, prudência, coragem e temperança

1. Introdução. 2. Globalização, (neo)constitucionalismo e a sua influência no

Judiciário. 3. O Poder Judicial em Portugal: pequena perspetiva. 4. Ativismo Judicial e Judicialização da política. 5. Como equacionar estes vetores num quadro de crise económica? 6. Que tipo de juiz é exigido como guardião dos direitos do cidadão? 7. Considerações finais.

1 - Introdução

O presente trabalho, de forma sumária, tenta dar uma perspetiva de qual o papel do

Judiciário numa sociedade de austeridade, em que a compressão – ou até a supressão – dos

chamados direitos sociais levadas a cabo pelo Poder Executivo será uma das receitas para o seu

sucesso.

Igualmente se decanta que tipo de juiz se espera e qual a sua atitude perante os outros

poderes do Estado, de forma a servir os ideais constitucionais.

Faz-se ainda uma visita panorâmica pelo iter constitucional e a propensão catalisadora deste

para o aparecimento do chamado “ativismo judicial”, do qual se dá uma breve definição.

2 – Globalização, (neo)constitucionalismo e a sua influência no Judiciário

Atualmente vivemos na chamada era da globalização ou mundialização (entendida como a

interligação e a comunicação entre todos os povos), a qual trouxe uma nova visão sobre a

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sociedade e recolocou sob novos campos de conspeção as questões referentes ao Estado-nação1, às

classes e aos movimentos sociais, à cultura, à economia (com tudo o que lhe está umbilicalmente

ligado) e, como não podia deixar de ser, ao próprio Direito. Perante este cenário, surgiu a

problemática do risco na sociedade, em contraste com a relativa certeza das análises clássicas do

pensamento social centradas em espaços nacionais. A globalização não navega num tempo nem

num espaço abstrato, pois, se o que antes era vivido num País, numa determinada zona geográfica

ou num continente, não tinha reflexo, pouco influenciava, ou apenas mediatamente era sentido,

noutro País, noutra zona geográfica ou noutro continente, hoje é o oposto, pois tudo, ou quase tudo,

deixou de ser nacional e passou a ser pós-nacional.

Segundo Gregório Benfica2, «a globalização, enquanto mundialização e conexão planetária

via novas tecnologias de comunicação e informação, é irreversível. Porém, a globalização enquanto

exclusão, injustiça social e perda da soberania dos povos, é apenas uma configuração político-

económica do momento histórico em que vivemos».

Inelutavelmente, neste «novo território» surgem diversas zonas de conflito global3. Perante

tal conflitualidade urge saber qual o verdadeiro papel do judiciário. Papel que já não é, nem pode

ser, pautado pela neutralidade dos juízes, que era a marca do modelo clássico.

Uma das consequências desta globalização é o chamado «comércio entre juízes»4. Expressão

que remete para as duas facetas da mundialização do direito: é simultaneamente uma rede de

trocas, intercâmbios, e uma forma de sociabilidade nascida do desejo de estabelecer relações

sólidas, corteses e serenas, uma «dependência recíproca dos homens»5.

Tal comércio entre juízes vai-se intensificando e, impelidos pelo sentimento ou a consciência

crescente de um património democrático ou civilizacional comum, por determinados silêncios do

direito positivo, pela necessidade dos tribunais internacionais, pela construção europeia ou ainda

pela procura de garantias e de segurança para o comércio internacional, os juízes afirmam-se como

agentes de primeiro plano na mundialização do direito6.

Toda esta nova postura é incompatível com o positivismo jurídico, o qual tem como

postulados essenciais a imparcialidade, a neutralidade e a segurança jurídica, onde prevalece o

primado da lei escrita imposta pela maioria representativa.

1 A globalização é um dos agentes da atual crise do Estado-nação. Esta crise manifesta-se pela diminuição do Estado,

tanto em termos de estrutura como de funções, bem como pela perda de soberania e poder regulador face às pressões internacionais do capital. É o chamado poder dos não eleitos.

2BENFICA, Gregório, Globalização, Estado e Meio Ambiente, http://www.uneb.br/revistadafaeeba/files/2011/05/numero 16.pdf

3 HELLER, Agnes. et al. “A crise dos paradigmas em ciências sociais e os desafios para o século XXI, Rio de Janeiro, Contraponto, 1999, ao decompor o que apelidou de crise global da civilização, evidencia a existência crescente de zonas de conflito com o implemento da complexidade da vida moderna, o que deixa o homem num Estado de eterna instabilidade, uma vez que tais zonas permeiam as mais diversas esferas de vivência.

4 Expressão utilizada por ALLARD, Julie e GARAPON, Antoine, Os Juízes na Mundialização, A Nova Revolução do Direito, Instituto Piaget, pp. 15 e ss.

5 ALLARD, Julie e GARAPON, Antoine, obra citada, pag. 9. 6 ALLARD, Julie e GARAPON, Antoine, obra citada, pag. 30.

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O primado da lei escrita na ciência jurídica decorre do processo de secularização do direito

no século XVIII aliado à vontade da burguesia na inexistência de surpresas na sua invasão da esfera

jurídica individual, sendo, assim, lançados os alicerces da revolução francesa – garantia escrita de

controlo do poder, via teoria tripartida7 das funções estatais e dos direitos individuais.

A “juridicização das relações sociais”8 levou à construção de um Estado cuja estrutura

assentava na democracia e na autossubsunção à lei – Estado Democrático de Direito – onde a

tradução máxima é o princípio da legalidade. Contudo, as consequências nefastas das duas grandes

guerras mundiais, especialmente a segunda, onde foram levadas a cabo práticas degradantes da

dignidade humana e de desrespeito pelos mais elementares direitos do homem, são os elementos

embrionários do nascimento da teoria da defesa dos direitos fundamentais pelos tribunais

constitucionais9 da Europa continental, como forma de supressão de um passado recente de

horrores.

Questionou-se, então, a teoria dos três poderes, onde o culto ao legislador e o amor à lei

eram reis, já que a necessidade de efetivação dos direitos fundamentais dos cidadãos levou a um

maior controle do poder judicial sobre os restantes.

O conceito de jurisdição como simples instrumento de adequação ao caso concreto das

previsões abstratas do legislador através de um terceiro equidistante e imparcial do litígio,

provocado por quem detiver interesse - entendimento predominante há mais de dois séculos –

encontra-se desadequado com a atualidade.

Na evolução da humanidade e no renascer do novo caminho surgiram o reconhecimento dos

direitos sociais e o incremento da jurisdição constitucional na defesa dos direitos fundamentais10,

que levaram ao Estado de direito democrático-constitucional11, onde a constituição tem o papel

fulcral como centro irradiador dos valores básicos e elementares a todo o sistema jurídico.

Surge assim o chamado neoconstitucionalismo12 13, onde as constituições nacionais não se

limitam a prever os chamados direitos de primeira geração (direitos civis e políticos que não

7 O objeto de Montesquieu é o espírito das leis, ou seja, as relações entre as leis (positiva) e “diversas coisas”, tais

como o clima, as dimensões do Estado, a organização do comércio, as relações entre as classes etc. Na sua versão mais divulgada, a teoria dos poderes é conhecida como a separação dos poderes ou a equipolência, o que significa a capacidade de controlo mútuo entre executivo, legislativo e judiciário. O poder executivo seria, para o autor, exercido pelo rei, que assumiria as responsabilidades pela condução política e administrativa do Estado.

O poder legislativo, ou também poder de representação, exerceria o poder de expressar os desejos dos súbditos junto à coroa. Ambos os poderes funcionariam como freios e contrapesos para que nenhum dos lados excedesse as suas prerrogativas.

8 HESPANHA, António Manuel. Justiça e litigiosidade: história e prospetiva, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p.18.

9 A jurisdição constitucional já se vinha consolidando desde o início do século XX, através da construção doutrinária de Kelsen acerca deste novo paradigma de justiça, além da jurisprudência do Supremo Tribunal dos E.U.A.

10 O primeiro marco histórico na defesa dos direitos fundamentais ocorreu em 1215, na Inglaterra, com a chamada Magna Carta.

11Sobre a noção podemos ver GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª Edição, págs. 97/98.

12 O neoconstitucionalismo teve a sua incrementação, em grande parte, com a promulgação de constituições de cariz social e democrático, onde foram positivados princípios jurídicos, elencados direitos fundamentais e instituídas normas

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passam de direitos básicos e negativos contra os quais o poder executivo não podia avançar -

direitos que encerram o ideal de liberdade), mas essencialmente os direitos fundamentais de

segunda geração, ou seja, direitos sociais, económicos e culturais, que exigem uma postura ativa,

uma atuação positiva do Estado, de forma à sua consagração. Com eles pretendem-se atingir o

bem-estar social, encerrando estes direitos o ideal de igualdade)14 15.

Neste modelo constitucionalista vigora a centralidade e a supremacia judicial, como tal

entendida a primazia de um tribunal constitucional ou suprema corte na interpretação final e

vinculante das normas constitucionais16.

Com o culminar da segunda guerra mundial, perfilhou-se o entendimento que as

Constituições, além dos direitos de primeira e segunda geração, teriam de consagrar o ideal de

fraternidade, isto é, os chamados direitos de terceira geração: o meio ambiente ecologicamente

equilibrado; o ideal de democracia; os direitos intergeracionais de solidariedade; a resolução de

controvérsias ou litígios internacionais pelo modo pacífico, bem como o ideal da paz, tudo em

nome de uma preocupação com a manutenção da vida na Terra e com as futuras gerações.

Doutrinadores existem que defendem a existência de direitos de quarta geração17 18,

abrangendo campos como a engenharia genética19, a clonagem humana, pesquisas com células do

foro embrionário, a bioética e o biodireito20. Alguns autores defendem ainda que estamos já perante

os direitos de quinta geração21, com enfoque nos avanços tecnológicos, como as questões da

internet, que envolvem a informática.

programáticas. Assim, as constituições de Itália (1947), da Alemanha (1949), de Portugal (1976) e da Espanha (1978), marcam a rutura com o autoritarismo e consagram o compromisso desses povos com a paz, o desenvolvimento e o respeito pelos direitos humanos.

13 “Por esse movimento, as Constituições, outrora observadas como repositórios de divisão de competências e de definição de programas genéricos a entes públicos, foram sendo alçadas a um novo patamar, qual seja, o de documentos vinculantes dos poderes públicos, dotados de efetividade e de aplicabilidade inclusive em relação a particulares. A Constituição, havida como um sistema de princípios e regras aberto aos influxos da realidade, passa a uma situação de onipresença na ordem jurídica, evocando um esforço constante dos tribunais para sua concretização. Nesse cenário, os princípios assumem um valor extraordinário, granjeando densificação nas mais diversas situações jurídicas. Dentre eles, ostenta peculiar importância o princípio da dignidade humana, tomado como pedra angular de todo o sistema.” – LUIZ ALBERTO DAVID ARAÚJO E VIDAL SERRANO NUNES JÚNIOR, Curso de Direito Constitucional, 15ª edição, Editora Verbatim, págs 27/28, acessível em http://pt.scribd.com/doc/56295048/Curso-de-Direito-Constitucional-Trecho-Do-Livro.

14Igualdade material e não formal, levando-se em consideração que a pessoa humana enquanto ser social, por viver em comunidade, tem direito à promoção, à comunicação e à cultura.

15 Sobre a teoria dos direitos humanos a partir das várias gerações de direitos, teremos em conta a escrita do filósofo italiano BOBBIO, Norberto, A Era dos Direitos, Rio de Janeiro, Editora Campus, 2004.

16 BARROSO, Luís Roberto, em Revista Jurídica da Presidência, nº 96, Brasília, Vol. 12, Fev/Mai, 2010, ISSN 1808-2807, p. 6.

17A quarta geração de direitos é caracterizada pela pesquisa biológica e científica, pela defesa do património genético, pelo avanço tecnológico, pelo direito à democracia, à informação e ao pluralismo. E por tratar de princípios tão valiosos como a vida, é necessário ainda enfocar a questão da ética e da moralidade.

18 Sobre estes direitos, cfr. BONAVIDES, Paulo, Curso de Direito Constitucional. 19ª Edição, São Paulo, Editora Malheiros, 2006, p. 571-572.

19 Cfr. BOBBIO, Norberto, obra citada, p.6. 20 BONAVIDES, Paulo, in obra citada, p. 571-572, defende que tais direitos estão marcados pela era da globalização

política, relacionados com a democracia, com a informação e com o pluralismo. 21 ZIMMERMANN, Augusto, Curso de Direito Constitucional, 2.ª ed. rev.ampl. e atual., Rio de Janeiro, Lumen

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Podemos, pois, afirmar como o fazem Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes

Júnior22, que

O neoconstitucionalismo nasce, assim, marcado por uma primazia da aplicação direta da

Constituição, orientada especialmente por princípios, e fundado em uma forte atividade judicial,

que faz da efetividade dos direitos fundamentais sua principal razão de ser. Inocêncio Mártires

Coelho, em síntese feliz, caracteriza o neoconstitucionalismo a partir dos seguintes pontos:

“a) mais Constituição do que leis; b) mais juízes do que legisladores; c) mais princípios do

que regras; d) mais ponderação do que subsunção; e)mais concretização do que interpretação”.

O neoconstitucionalismo adota, portanto, o caráter de mecanismo ou técnica de efetividade

do texto constitucional, especialmente dos direitos fundamentais, o que naturalmente destaca a

importância do Judiciário no contexto da relação com os demais poderes.

No contexto destas duas realidades – (neo)constitucionalismo e globalização – surge aquilo a

que podemos chamar constitucionalismo no mundo globalizado, no qual, segundo Gomes

Canotilho,

«Existe uma Constituição mundial que é a carta dos Direitos do Homem. Ela protege o

cidadão contra o poder do Estado, define os direitos fundamentais das pessoas e consagra a

democracia como o regime ideal. As civilizações dialogam entre si. Há países que não têm

Constituição. Usam em seu lugar livros religiosos. É bom que haja uma Constituição dos homens,

mas a Constituição não é uma Bíblia, assim como a Bíblia não pode servir de Constituição para

povo algum.»23

Tudo isto trouxe um novo desempenho da atividade judicial e a um maior protagonismo do

Judiciário24. Para João Paulo Dias e Jorge Almeida25 tal protagonismo deve-se a

Juris, 2002, fala em realidade virtual englobando o desenvolvimento da internet.

22 LUIZ ALBERTO DAVID ARAÚJO E VIDAL SERRANO NUNES JÚNIOR, obra citada, pág. 28. 23 Em entrevista concedida à revista Brasileira Consultor Jurídico, acessível em http://www.conjur.com.br/2009-

out25/fimde-entrevista-jose-joaquim-gomes-canotilho-constitucionalista-portugues. 24 O caso Marbury versus Madison, de 1803, nos Estados Unidos é considerado a certidão de nascimento da

jurisprudência constitucional no sentido material do termo, já que ali foi reconhecido um controle judicial das normas. O segundo grande passo foi a Constituição da Áustria, de 1920, elaborada com a ajuda de Hans Kelsen. A ideia da jurisprudência constitucional já foi desenvolvida pelo grande jurista austro-alemão. Depois da Segunda Guerra Mundial, a jurisdição constitucional estendeu-se pelo mundo inteiro. A jurisdição constitucional é um instrumento subtil, detalhado e refinado da democratização de uma sociedade, desde que ela se comprometa com a tutela dos interesses da minoria (Entrevista do professor Peter Heberle, ao Consultor Jurídico, acessível em http://www.conjur.com.br/2011-mai29/entrevista-peter-haberle-constitucionalista-alemao).

Ente nós, a Constituição de 1911, veio consagrar expressamente, pela primeira vez, o princípio do controlo jurisdicional da constitucionalidade das leis. Segundo o artigo 63º dessa Constituição, «o Poder Judicial, desde que, nos feitos submetidos a julgamento, qualquer das partes impugnar a validade da lei ou dos diplomas emanados do poder executivo ou das corporações com autoridade pública, que tiverem sido invocados, apreciará a sua legitimidade constitucional ou conformidade com a Constituição e princípios nela consagrados». Perfilhava-se, assim, um sistema difuso ou não concentrado de fiscalização de constitucionalidade das leis, confiado à generalidade dos tribunais ordinários no quadro dos casos concretos que houvessem de decidir, por influência da Constituição norte-americana e da Constituição brasileira de 1891.

A Constituição de 1933, expressão normativa do regime do «Estado Novo», não aboliu por completo o princípio da fiscalização judicial da constitucionalidade das leis.

O texto que entrou em vigor em 11 de Abril de 1933 continuava a estabelecer, no seu artigo 122º, que «nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar leis, decretos ou quaisquer outros diplomas que infrinjam o

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«um duplo falhanço dos regimes na sua forma de Estado-Providência: por um lado, a

existência de uma maior perceção, por parte da opinião pública, da falta de transparência do seu

funcionamento; por outro, a perda de eficiência, de proteção social e da garantia dos direitos

proporcionados pelo próprio Estado (Santos, 1996, 1999). Verificamos, neste processo, a

transferência da legitimidade do Estado, por via dos poderes legislativo e executivo, para o poder

judicial, o que só por si constitui um fator de polémica e atrito, não apenas na sociedade em geral,

mas também entre os corpos profissionais dos vários poderes em conflito. Isto sobretudo quando os

tribunais parecem querer assumir um papel progressista, de defesa dos direitos dos cidadãos, e de

fiscalização da atuação dos atores estatais, apesar de terem sido das instituições mais conservadoras

ao longo dos séculos, resistindo às mudanças e perpetuando rituais anacrónicos e elitistas».

Os Tribunais são chamados, com cada vez maior frequência, a resolver questões onde se

debatem e discutem problemas relacionados com os direitos fundamentais26, assumindo um papel

ativo na apreciação e controlo das políticas públicas dos restantes poderes. Esta atuação

interventiva do Poder Judicial na assunção da defesa dos cidadãos leva muitas das vezes a um

clima de tensão com os restantes poderes que vêm no Judiciário uma forma de controlo da sua

atuação, uma interferência indesejável.

Assim sendo,

«[A]o assistir-se, em países como Portugal, a uma retração do Estado-Providência (ainda que

no nosso caso esta retração se verifique antes de termos atingido os níveis de proteção social de

outros países), dadas as dificuldades orçamentais constantes, verificamos, concomitantemente, uma

apetência para a remodelação do poder judicial, de modo a garantir que um crescimento das tensões

sociais não seja acompanhado por um aumento dos conflitos judicializados provocados pela

crescente desintegração e desregulamentação social. Aparentemente, os tribunais asseguram, assim,

uma função de despolitização dos conflitos sociais. No entanto, verifica-se antes uma politização

da justiça que levará, mais tarde, à judicialização da política?

disposto nesta Constituição ou ofendam os princípios nela consignados». No entanto, por força dos §§ 1º e 2º restringia-se a extensão do princípio, já que se atribuía em exclusivo à Assembleia Nacional, composta por deputados indicados pelo partido único, a apreciação da constitucionalidade formal e orgânica das regras de direito emanadas dos órgãos de soberania. Caso viesse a ser decretada a inconstitucionalidade de normas por este órgão parlamentar, por sua iniciativa ou do Governo, a mesma Assembleia Nacional tinha o poder de determinar os efeitos da inconstitucionalidade, sem ofensa, porém, das situações criadas pelos casos julgados.

A revisão constitucional de 1971 manteve o sistema primitivo, prevendo-se no § 1º do artigo 123º a possibilidade de a lei concentrar em algum ou alguns tribunais a competência para a apreciação da inconstitucionalidade de normas, nos casos não reservados à Assembleia Nacional, podendo então conferir às decisões desses tribunais força obrigatória geral.

25 DIAS, João Paulo e ALMEIDA, Jorge, A influência das condições organizativas para a independência do poder judicial em Portugal, Oficina do CES nº 281, agosto de 2007, págs 3 e 4.

26 Para o Professor José Gomes Canotilho “(...) os direitos fundamentais em sentido próprio são, essencialmente direitos ao homem individual, livre e, por certo, direito que ele tem frente ao Estado, decorrendo o caráter absoluto da pretensão, cujo exercício não depende de previsão em legislação infraconstitucional, cercando-se o direito de diversas garantias com força constitucional, objetivando-se sua imutabilidade jurídica e política. (...) direitos do particular perante o Estado, essencialmente direito de autonomia e direitos de defesa" – CANOTILHO, José Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5º ed. Editora Livraria Almedina, 2002.

Podemos, pois, dizer que os direitos fundamentais são os direitos ligados à liberdade e à igualdade, positivados no ordenamento jurídico-constitucional e que brotam da própria condição humana, solidificando-se através do princípio da dignidade da pessoa humana.

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Deste modo, a justiça, segundo Pedro Bacelar de Vasconcelos (1998: 79), "converte-se em

parâmetro de avaliação do desempenho dos órgãos de soberania, critério de ponderação dos

resultados alcançados e, por fim, em condição essencial da legitimação substantiva do próprio

Estado de Direito", além de funcionar como o último patamar de recurso e de esperança dos

cidadãos, não só na resolução dos conflitos mas, também, na fiscalização dos outros poderes

estatais e na defesa e promoção dos novos direitos de terceira geração, como sejam, os direitos de

cidadania, os direitos à qualidade de vida e ao ambiente, os direitos dos consumidores, os direitos

das minorias étnicas ou sexuais, etc. "A atenção crítica a que estão atualmente sujeitos é o resultado

do novo papel conferido aos tribunais como instrumentos fundamentais para uma boa governação e

para um desenvolvimento baseado no Direito" (cf. Santos, 1999: 51).»27

Quando se aborda a questão da criação do direito pelos juízes, usualmente convoca-se a

oposição entre os países de tradição romano-germânica e os países de common law. Nos primeiros,

os magistrados dever-se-iam limitar ao papel de autómatos aplicadores mecânicos da lei, ao passo

que, nos segundos, os juízes, enquanto oráculos do direito, teriam toda a liberdade o modificar.

No entanto, esta divisão não corresponde perfeitamente à realidade existente. Conforme

refere Guy Canivet (Primeiro Presidente da Cour de Cassation francesa)28:

O debate sobre o poder dos juízes encontra-se em numerosos Estados. Os argumentos

trocados são, frequentemente, próximos. Mesmo as críticas e as invetivas expressas num país

fazem lembrar frequentemente aquelas ouvidas noutro país.

Por exemplo, os juízes do Supremo Tribunal dos Estados Unidos têm, em casos recentes,

invocado a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem ou, de maneira menos

nítida, o direito em vigor em Estados da Europa ocidental, bem entendido que a título de autoridade

simplesmente persuasiva. Esta atitude do Supremo Tribunal dos Estados Unidos provocou reações

de uma violência incrível, havendo alguns cidadãos americanos que viram nisso um ato de traição

justificativo da remoção dos juízes.

Tais críticas lembram outras, expressas relativamente a determinadas decisões tomadas pelo

Conselho Constitucional, pela Cour de Cassation, pela Cour de Strasbourg ou pela de Luxembourg

em que foi afastada uma lei votada por um parlamento democraticamente eleito, críticas em que os

juízes eram instados a escolher entre manterem-se magistrados mas cessando de criar direito e

continuar a criar direito mas deixando de ser magistrados e apresentarem-se vitoriosamente a

eleições parlamentares. Em cada caso, em cada país, está em causa a legitimidade do poder dos

juízes de se oporem à lei, ou mesmo de, por vezes, simplesmente completá-la. A crítica pode

incidir sobre esse ponto principal ou, de maneira mais indireta, sobre a técnica interpretativa

empregue pelos juízes na decisão criticada, técnica interpretativa tida, na ocasião, como muito

27 DIAS, João Paulo e ALMEIDA, Jorge, obra citada, pag.5. 28 CANIVET, Guy, Activisme judiciaire et prudence interpretative, Introduction générale, em

http://www.courdecassation.fr/institution_1/autres_publications_discours_2039/publications_2201/prudence_interpretative_9936.html

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pouco ortodoxa. Esta controvérsia sobre a legitimidade tem incontestavelmente por objeto uma

questão que toca no que o direito constitucional tem de menos contingente.

É, sem dúvida, por isso que esta questão se coloca em numerosos países, e que os

argumentos esgrimidos aí são frequentemente idênticos – ou transponíveis de um país para outro –

mesmo que as práticas difiram de uma jurisdição para outra – ainda que, nesse ponto também os

contrastes sejam menos pronunciados do que o que frequentemente se diz.

Entre nós essas críticas também não deixam de estar presentes. Assim, no que concerne ao

Tribunal Constitucional, António de Araújo e Pedro Coutinho Magalhães29 referem o seguinte:

Esta instituição já foi descrita, por exemplo, como «uma espécie de Conselho da Revolução

partidário»30, «uma bizantinice do nosso sistema constitucional»31 ou uma «força de legitimação de

medidas que desvalorizam […] direitos sociais e garantias dos cidadãos»32. Altos responsáveis

governativos não hesitaram em classificar as decisões do TC como «um obstáculo […] no caminho

do desenvolvimento do país»33 ou como «juízos que extravasam nitidamente considerações

técnico-jurídicas para se inserirem, de facto, em matéria política»34. Comentários como estes foram

sempre mais frequentes quando o Tribunal fazia uso dos seus poderes de fiscalização abstrata de

diplomas da Assembleia da República e do governo. Com efeito, nesse domínio, o Tribunal tem

exercido, na verdadeira aceção da palavra, uma ação decisiva sobre algumas das opções e medidas

políticas fundamentais tomadas em Portugal em áreas como a regulação do mercado de trabalho, o

financiamento do ensino superior, a abertura de setores económicos à iniciativa privada, a

descentralização administrativa, as autonomias regionais, o funcionamento e organização do poder

judicial e a despenalização do aborto, apenas para dar alguns exemplos. Não por acaso, no livro As

Reformas da Década, onde faz o balanço da atividade dos três governos que chefiou, Cavaco Silva

aponta o envio ao Tribunal pelo Presidente da República de diplomas situados no domínio das

reformas estruturais e as «interpretações restritivas de normas constitucionais» feitas pelas «forças

de bloqueio» como dois dos entraves fundamentais colocados ao seu governo entre 1986 e 199535.

Todas estas críticas fazem recordar o mais recente episódio resultante do Acórdão do

Tribunal Constitucional nº 353/2012, de 05/07/201236, o qual mereceu violentas reações, entre as

quais sobressaem: "Têm consciência os senhores juízes do Tribunal Constitucional que ao

29 ARAÚJO, António e MAGALHÃES, Pedro Coutinho, A justiça constitucional: uma instituição contra as

maiorias?, Análise Social, vol. XXXV (154-155), 2000, 207/208. 30 Comunicado da Juventude Centrista cit. in «PS e PSD aplaudem e oposição critica decisão do TC», in Diário de

Notícias de 14-10-1983, p. 3. 31 Alberto João Jardim, «Como vai este ‘país’», in O Diabo de 17-8-1994, p. 3. 32 Vital Moreira, «Nos dez anos do Tribunal Constitucional», in Expresso de 19-6-1993, p. A8. 33 Aníbal Cavaco Silva, cit. in «Juízes do TC irritados com Cavaco», in Expresso de 4--6-1988, p. 3. 34 José Manuel Durão Barroso, entrevista ao Expresso de 25-7-1992, p. A2. 35 Aníbal Cavaco Silva, As Reformas da Década, Venda Nova, Bertrand, 1995, pp. 14-16. 36 Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do princípio da igualdade, consagrado no

artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, das normas constantes dos artigos 21.º e 25.º, da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro (Orçamento do Estado para 2012).

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tomarem esta decisão nesta altura, neste contexto e desta forma estão em termos práticos a

assumir poderes orçamentais, com todas as implicações daí resultantes?", "Será que os

senhores juízes do Tribunal Constitucional, que também são um órgão do Estado, têm consciência

que o Estado português assumiu compromissos internacionais por escrito e que esta decisão pode

pôr em causa o cumprimento desses compromissos?"37, “(…) não há explicações tardias que

consigam disfarçar a ligeireza e inconsistência da decisão.”38 Ou, “Podem saber muito de

Constituição, mas não se preocupam com a mais elementar justiça. Apesar das falácias e erros

(…)”39. Também o chamado poder económico não deixou de criticar esta decisão40.

3. O Poder Judicial em Portugal: pequena perspetiva

Em Portugal o poder judicial na era do autoritarismo teve um papel muito débil face à

discricionariedade governamental e policial do regime ditatorial em vigor até 25 abril de 1974,

onde a ordem jurídica procurava fornecer uma validação sistemática e coerente das violações do

rule of law na base de normas positivas, fossem elas regulamentos menores, decretos

governamentais ou mesmo disposições constitucionais41.

Com a queda do regime ditatorial através do golpe militar de 25 de Abril de 1974, criou-se

um conflito entre uma legitimidade democrática e uma legitimidade revolucionária42.

Os temas de uma justiça e direito alternativos estiveram especialmente em voga nos

anos imediatos à "Revolução dos Cravos". A instauração da democracia e a denúncia da anterior

ditadura originaram uma profunda crise de legitimidade das instituições e do direito anteriores, que

a opinião pública classificava frequentemente de "fascistas". Entendia-se que as decisões sociais e

políticas deveriam ser tomadas, não "nos gabinetes", pelos "burocratas", mas "pelas bases",

"perante o povo”.

No domínio do direito e da justiça, isso teve consequências diretas, abrindo uma época de

grande riqueza de experiências alternativas, quer no domínio da regulação, quer no da resolução de

conflitos.

Exigia-se uma nova forma de justiça que garantisse, por um lado, a participação popular e,

por outro, a prevalência de um novo espírito de justiça dirigido pelos ideais da revolução, que

infundisse um novo espírito e que fosse mais criativa na apreciação dos casos concretos, mais

37 Nuno Magalhães, líder parlamentar do CDS – in

http://www.dn.pt/politica/interior.aspx?content_id=2652624&page=-1 38 Luís Marques Mendes, in o jornal “POVO LIVRE”, nº 1746, de \8 de julho de 2012. 39 João César das Neves, in o jornal “POVO LIVRE”, nº1746, de \8 de julho de 2012. 40 “Fernando Ulrich presidente do BPI afirmou em entrevista à TVI24 que a decisão do Tribunal Constitucional em

chumbar os cortes de subsídios de férias e de Natal aos funcionários públicos e pensionistas é altamente negativa para os interesses de Portugal”. – Noticia no jornal «Expresso», de 21/07/2012.

41 COUTINHO, Pedro, Democratização e Independência Judicial em Portugal, Análise Social, Vol.XXX ( 130) (1º), pp 53-61.

42 Sobre esta fase revolucionária, cfr. COUTINHO, Pedro, obra citada, pp. 61-67.

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ANTÓNIO ASCENSÃO RAMOS ATIVISMO JUDICIAL : 11

liberta em relação à lei e mais conforme com a nova ordem de valores (democrática e

socializante) estabelecida pela Revolução, ao fim e ao cabo, um «uso alternativo de direito».

«O exemplo mais conhecido de tentativa de um "uso alternativo do direito", em que o

juiz invertia a legalidade estabelecida em homenagem aos valores jurídicos revolucionários,

foi o do "caso do juiz Dengucho". Este magistrado, então juiz na Marinha Grande, zona de

fortes tradições anarcocomunistas, tentou introduzir uma prática de justiça menos distante da

vida, mais comprometida com as realidades quotidianas e mais aberta à consideração dos

projetos de mudança social estabelecidos pela revolução. Reunia, com a câmara, as comissões

de trabalhadores e as comissões de moradores, oferecendo a colaboração do tribunal na

resolução de assuntos de interesse geral; criou no tribunal um comité de apoio à reforma

agrária e, depois da promulgação da Constituição de 1976, começou a indeferir in limine as

ações de despejo, considerando-as contrárias à garantia do direito à habitação consagrado na

Constituição»43.

A aprovação da Constituição da República Portuguesa de 1976 veio dar ao Judiciário uma

outro rosto com a inclusão na mesma da sua independência e dos direitos fundamentais que já

tivemos oportunidade de mencionar. A partir desse momento o Judiciário passou a ter uma maior

área interventiva no panorama jurídico/social, desempenhando um papel crucial na defesa dos

cidadãos e dos seus interesses basilares.

4. Ativismo Judicial e Judicialização da política

Nunca existiu uma definição única e aceite de “ativismo judicial”, tendo a expressão sempre

incorporado uma variedade significados. Nessa medida, alguns autores têm sugerido que

atualmente «ativismo judicial» é um conceito praticamente vazio44.

A expressão «ativismo judicial» terá sido utilizada pela primeira vez por Arthur Schlesinger

num artigo publicado na revista Fortune, em janeiro de 1947, sobre a Supreme Court Norte

Americana (Presidida por Earl Warren entre 1954 e 1969), em que analisava a postura dos juízes

(Justices), classificando a de uns como ativistas (Justices Black, Douglas, Murphy e Rutlege) e a de

outros como autocontida (Justices Frankfurt, Jackson e Burten). Os restantes membros (Justice

Reed e Chief Justice Vinson) constituíam o grupo dos moderados. Para o mencionado

jornalista/historiador, o ativismo judicial verifica-se quando o juiz se considera no dever de

interpretar a Constituição no sentido de garantir direitos que ela já prevê, como, por exemplo,

direitos sociais ou económicos45.

Ao longo do período presidido por Earl Warren,

43 HESPANHA, António Manuel e VENTURA, André, Cultura Jurídica no período do “Estado Novo”, Prisma

Jurídico, São Paulo, v. 7, n. 1, P: 149-161, jan./jun. 2008. 44 BARNETT, Randy E., Is the Rehnquist Court an "Activist" Court? The Commerce Clause Cases, 73 U. Colo. L.

Rev. 1275, 1275-76 (2002); WESTEN, Peter, The Empty Idea of Equality, 95 Harv. L. Rev. 537 (1982). 45 KMIEC, Keenan D., 2004. The Origin and Current Meanings of “Judicial Activism, 92 California Law Review

1441-77.

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VERBOJURIDICO ATIVISMO JUDICIAL : 12

ocorreu uma revolução profunda e silenciosa em relação a inúmeras práticas políticas nos

Estados Unidos, conduzida por uma jurisprudência progressista em matéria de direitos

fundamentais. Todas essas transformações foram efetivadas sem qualquer ato do Congresso ou

decreto presidencial. A partir daí, por força de uma intensa reação conservadora, a expressão

ativismo judicial assumiu, nos Estados Unidos, uma conotação negativa, depreciativa, equiparada

ao exercício impróprio do poder judicial. Todavia, depurada dessa crítica ideológica – até porque

pode ser progressista ou conservadora – a ideia de ativismo judicial está associada a uma

participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais,

com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes. Em muitas situações, sequer

há confronto, mas mera ocupação de espaços vazios46.

Para Randy E. Barnett 47: “Normalmente, no entanto, “ativismo judicial” é empregado para

criticar uma prática judicial que deve ser evitada pelos juízes e que merece a oposição do público”.

Keenan D. Kmiec48 afirma que não se trata de um conceito monolítico e aponta cinco

sentidos em que o termo tem sido empregado no debate americano, no geral com uma conotação

negativa: a) declaração de inconstitucionalidade de atos de outros Poderes que não sejam

claramente inconstitucionais; b) ignorar precedentes aplicáveis; c) legislação pelo Judiciário; d)

distanciamento das metodologias de interpretação normalmente aplicadas e aceitas; e e)

julgamentos em função dos resultados.

Para Luiz Flávio Gomes,

o "ativismo judicial" (que retrataria uma espécie de intromissão indevida do Judiciário na

função legislativa, ou seja, ocorre ativismo judicial quando o juiz "cria" uma norma nova,

usurpando a tarefa do legislador, quando o juiz inventa uma norma não contemplada nem na lei,

nem dos tratados, nem na Constituição).

É preciso distinguir duas espécies de ativismo judicial: há o ativismo judicial inovador

(criação, ex novo, pelo juiz de uma norma, de um direito) e há o ativismo judicial revelador

(criação pelo juiz de uma norma, de uma regra ou de um direito, a partir dos valores e princípios

constitucionais ou a partir de uma regra lacunosa). Neste último caso o juiz chega a inovar o

ordenamento jurídico, mas não no sentido de criar uma norma nova, sim, no sentido de

complementar o entendimento de um princípio ou de um valor constitucional ou de uma regra

lacunosa49.

46 BARROSO, Luís Roberto, Revista Jurídica da Presidência, nº 96, Brasília, Vol. 12, Fev/Mai 2010 ISSN 1808-

2807, pp. 8-9. 47 BARNETT, Randy E., “Constitututional clichés”, Capital University Law Review 36:493, 2007, p. 495. 48“The origin and current meanings of ‘judicial activism”, California Law Review 92:1441, 2004, p. 1463 e s. 49GOMES, Luiz Flávio, O STF está assumindo um ativismo judicial sem precedentes?, Revista Jus Navigandi,

acessível em http://jus.com.br/revista/texto/12921/o-stf-esta-assumindo-um-ativismo-judicial-sem-precedentes.

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ANTÓNIO ASCENSÃO RAMOS ATIVISMO JUDICIAL : 13

Já para Luiz Roberto Barroso50

A ideia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do

Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de

atuação dos outros dois poderes. A postura ativista se manifesta por meio de diferentes condutas,

que incluem: (i) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em

seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário; (ii) a declaração de

inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos

rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição; (iii) a imposição de condutas ou de

abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas.

Não devemos, no entanto, confundir ativismo judicial com judicialização51 da política.

Luiz Flávio Gomes menciona que52

A judicialização nada mais expressa que o acesso ao judiciário, que é permitido a todos,

contra qualquer tipo de lesão ou ameaça a um direito. É fenômeno que decorre do nosso modelo de

Estado e de Direito.

Se a Constituição prevê um determinado direito e ela é interpretada no sentido de que esse

direito seja garantido, para nós, isso não é ativismo judicial, sim, judicialização do direito

considerado. O ativismo judicial vai muito além disso: ocorre quando o juiz inventa uma norma,

quando cria um direito não contemplado de modo explícito em qualquer lugar, quando inova o

ordenamento jurídico”.

Judicialização, segundo Luís Roberto Barroso53

significa que questões relevantes do ponto de vista político, social ou moral estão sendo

decididas, em caráter final, pelo Poder Judiciário. Trata-se, como intuitivo, de uma transferência

de poder para as instituições judiciais, em detrimento das instâncias políticas tradicionais, que

são o Legislativo e o Executivo.

Essa expansão da jurisdição e do discurso jurídico constitui uma mudança drástica no modo

de se pensar e de se praticar o direito no mundo romano-germânico. Fruto da conjugação de

50 BARROSO, Luiz Roberto, Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática, Revista nº 04 da

Ordem dos Advogados do Brasil, disponível em http://www.oab.org.br/oabeditora/users/revista/1235066670174218181901.pdf.

51 “A judicialização decorre, sobretudo, de dois fatores: o modelo de constitucionalização abrangente e analítica adotado; e o sistema de controle de constitucionalidade vigente entre nós, que combina a matriz americana – em que todo juiz e tribunal pode pronunciar a invalidade de uma norma no caso concreto – e a matriz europeia, que admite ações diretas ajuizáveis perante a corte constitucional. Nesse segundo caso, a validade constitucional de leis e atos normativos é discutida em tese, perante o Supremo Tribunal Federal, fora de uma situação concreta de litígio. Essa fórmula foi maximizada no sistema brasileiro pela admissão de uma variedade de ações diretas e pela previsão constitucional de amplo direito de propositura. Nesse contexto, a judicialização constitui um fato inelutável, uma circunstância decorrente do desenho institucional vigente, e não uma opção política do Judiciário. Juízes e tribunais, uma vez provocados pela via processual adequada, não têm a alternativa de se pronunciarem ou não sobre a questão. Todavia, o modo como venham a exercer essa competência é que vai determinar a existência ou não de ativismo judicial “ (BARROSO, Luís Roberto, Revista Jurídica da Presidência, nº 96, Brasília, Vol. 12, Fev/Mai 2010 ISSN 1808-2807, pp. 8).

52 GOMES, Luiz Flávio, O STF está assumindo um ativismo judicial sem precedentes?, Revista Jus Navigandi, acessível em http://jus.com.br/revista/texto/12921/o-stf-esta-assumindo-um-ativismo-judicial-sem-precedentes.

53 BARROSO, Luís Roberto, Revista Jurídica da Presidência, nº 96, Brasília, Vol. 12, Fev/Mai 2010 ISSN 1808-2807, pp. 6-7.

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circunstâncias diversas, o fenômeno é mundial, alcançando até mesmo países que tradicionalmente

seguiram o modelo inglês – a chamada democracia ao estilo de Westminster –, com soberania

parlamentar e ausência de controle de constitucionalidade. Exemplos numerosos e inequívocos de

judicialização ilustram a fluidez da fronteira entre política e justiça no mundo contemporâneo,

documentando que nem sempre é nítida a linha que divide a criação e a interpretação do direito. Os

precedentes podem ser encontrados em países diversos e distantes entre si, como Canadá, Estados

Unidos, Israel, Turquia, Hungria e Coreia, dentre muitos outros54.

No lado oposto ao ativismo está aquilo a que se chama autocontenção judicial (judicial self-

restraint)55. Trata-se de uma postura pela qual o Judiciário procura reduzir a sua interferência nas

ações dos outros Poderes. Por essa linha, juízes e tribunais evitam aplicar diretamente a

Constituição a situações que não estejam no seu âmbito de incidência expressa, aguardando a

pronúncia do legislador ordinário; utilizam critérios rígidos e conservadores para a declaração de

inconstitucionalidade de leis e atos normativos; e abstêm-se de interferir na definição das políticas

públicas.

Luís Norberto Barroso56 refere que a principal diferença metodológica,

entre as duas posições está em que, em princípio, o ativismo judicial legitimamente exercido

procura extrair o máximo das potencialidades do texto constitucional, inclusive e especialmente

construindo regras específicas de conduta a partir de enunciados vagos (princípios, conceitos

jurídicos indeterminados). Por sua vez, a autocontenção se caracteriza justamente por abrir mais

espaço à atuação dos Poderes políticos, tendo por nota fundamental a forte deferência em relação às

ações e omissões desses últimos.

Em termos gerais, podemos afirmar, na peugada de António Cortês57, que os tribunais

decidem com alguma frequência para além da lei, e, algumas vezes, contra o teor expresso da

norma legal, criando, assim Direito.

Este caráter criativo do poder jurisdicional é geralmente reconhecido, sendo que no espaço

jurídico anglo-americano fala-se em Judge-made law; no espaço jurídico germânico fala-se em

Richterrecht e na prática jurídica comunitária europeia ganha projeção a ideia de um “direito

judicial”. Os tribunais criam Direito, apoiando-se em premissas translegais.

54 Segundo este autor existem causas de naturezas diversas que justificam a judicialização. A primeira delas é o

reconhecimento da importância de um Judiciário forte e independente, como elemento essencial para as democracias modernas. A segunda causa envolve certa desilusão com a política majoritária, em razão da crise de representatividade e de funcionalidade dos parlamentos em geral. A terceira resulta de que atores políticos, muitas vezes, preferem que o Judiciário seja a instância decisória de certas questões polémicas, em relação às quais exista desacordo moral razoável na sociedade (Revista Jurídica da Presidência, nº 96, Brasília, Vol. 12, Fev/Mai 2010 ISSN 1808-2807, p.7.)

55 Um dos maiores defensores deste tipo de atuação foi o Juiz norte- Americano Oliver Wendell Holmes. Em termo de anedota conta-se que Holmes, amante do judicial self-restraint, cansado da retórica de um jovem advogado, que insistia em que a Corte desconsiderasse o que expressamente dispunha a lei e “fizesse justiça”, teria interrompido a oratória do inexperiente jurista para adverti-lo de que “This is a court of law, young man, not a court of justice”.

56 BARROSO, Luís Roberto, obra citada, p. 10. 57 CORTÊS, António, Jurisprudência dos princípios, Ensaio Sobre os Fundamentos da Decisão Judicial, pp. 120-

121.

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ANTÓNIO ASCENSÃO RAMOS ATIVISMO JUDICIAL : 15

Há culturas jurídicas onde os tribunais são mais ativistas. Tradicionalmente, na América os

juízes são mais intervencionistas do que os juízes europeus. Os EUA foram o primeiro país do

mundo a ter fiscalização da constitucionalidade das leis por um poder judicial, apesar de a

Constituição a não prever. Mas a tendência nos tribunais na Europa nas últimas décadas vai no

sentido de um maior intervencionismo. É o que tem acontecido com os Tribunais Constitucionais

de alguns países, como por exemplo, Alemanha, Itália e até Portugal e de uma forma mais

acentuada, com o Tribunal da Justiça das Comunidades Europeias58.

No mundo inteiro, os juízes estão sujeitos às leis, aos tratados e às Constituições, mas quem

verdadeiramente determina o que as leis, os tratados e as Constituições dizem são os próprios

juízes.

O poder judicial, tal como os restantes poderes, tem limites. Deve-se, pois, partir do

princípio necessário de que todo o poder tem de estar limitado pelo poder. A separação de

poderes59, a participação política e o equilíbrio institucional são elementos fundamentais do Estado

de Direito. Os poderes do Estado surgem institucional, funcional e pessoalmente separados, de

acordo com modelos de coordenação, interdependência e controlo recíproco (checks and balances).

Quer as normas, quer as decisões deverão resultar de processos participados e equitativos

que potenciem a sua justiça e correção. O poder judicial, no âmbito da intervenção na esfera dos

outros dois poderes do Estado, é por tendência um poder de controlo crítico negativo, um poder de

impedir. Mais do que um poder em si, os tribunais devem ser, em face dos outros poderes, um

«contrapoder»60.

O ativismo, entendido como “[...] uma postura a ser adotada pelo magistrado que o leve ao

reconhecimento da sua atividade como elemento fundamental para o eficaz e efetivo exercício da

58 A partir dos anos 60 foi-se consolidando a ideia de que este tribunal não decide apenas segundo o quadro

normativo traçado pelos Tratados, mas também segundo “princípios gerais de direito que decorrem da tradição jurídica comum dos Estados-membros, incluindo-se, aqui, a tradição formada em torno da ideia de Estado de Direito (rule of law) e os “direitos fundamentais”, também entendidos como “princípios gerais de direito” (CORTÊS, António, obra citada, p. 217). Sobre a atuação e papel ativista do TJUE e respetivas críticas, cfr. MARINHO, Helena Gaspar, CLS/TJUE – Indeterminação do Direito e Ativismo Judicial, trabalho contido na obra Teoria da Argumentação e Neo-Constitucionalismo – Um conjunto de perspetivas, Almedina 2011, pp 57 a 77.

59 Nas palavras de Paulo Bonavides o poder é um «elemento essencial constitutivo do Estado, o poder representa sumariamente aquela energia básica que anima a existência de uma comunidade humana num determinado território, conservando-a unida, coesa e solidária».

Refere ainda aquele autor que poder do Estado na pessoa de seu titular é indivisível: a divisão só se faz quanto ao exercício do poder, quanto às formas básicas de atividade estatal.

Distribuem-se através de três tipos fundamentais para efeito desse mesmo exercício as múltiplas funções do Estado uno: a função legislativa, a função judiciária e a função executiva, que são cometidas a órgãos ou pessoas distintas, com o propósito de evitar a concentração de seu exercício numa única pessoa.

Estamos, assim, perante «tão-somente divisão do objeto, das tarefas, dos trabalhos e assuntos pertinentes à ação do Estado, em suma, na boa linguagem jurídica, divisão de competência e não do poder do Estado propriamente dito» - Ciência Politica, 10ª edição (revista e atualizada), 9ª tiragem, item 7, consultável em http://unifra.br/professores/14104/Paulo%20Bonavides-Ciencia%20Politica%5B1%5D.pdf.

60 NEVES, Castanheira, Da Jurisdição no atual Estado de Direito, Ab uno ad omnes – 75 Anos da Coimbra Editora, p. 225.

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VERBOJURIDICO ATIVISMO JUDICIAL : 16

atividade jurisdicional”61, tem sido objeto de resistências em face da possível ofensa ao princípio da

separação de poderes. No entanto, como refere V. Alec Stone Sweet62

A visão prevalecente nas democracias parlamentares tradicionais de ser necessário evitar um

“governo de juízes”, reservando ao Judiciário apenas uma atuação como legislador negativo, já não

corresponde à prática política atual. Tal compreensão da separação de Poderes encontra-se em

“crise profunda” na Europa continental.

5. Como equacionar estes vetores num quadro de crise económica?

A Constituição da República Portuguesa consagra no artigo 80º, nº 1, alínea a), um princípio

fundamental da organização económico-social: o da subordinação do poder económico ao poder

político democrático. No entanto, constatamos que nesta era de crise e de austeridade é o poder

político democraticamente eleito quem, bastas vezes, está sujeito ao poder económico. É este

quem, em variadas situações, indica e exige as políticas a praticar, impondo políticas que o

beneficiam e protegem em detrimento dos cidadãos. Olhemos para as novas regras ou reformas do

direito do trabalho, com a redução das indemnizações pelo despedimento, com a flexibilidade de

horários, com as restrições à negociação coletiva, com a redução dos salários. Olhemos ainda para

os cortes nas pensões, para a tributação do acesso à saúde, em contradição com a proteção dos

interesses da atividade bancária. Enfim, para um sem número de medidas restritivas dos direitos

sociais. O que antes eram direitos passaram a ser meras expectativas, tudo em nome da crise e da

austeridade.

Investe-se na austeridade e corta-se nos direitos sociais. O chamado estado social está em

agonia e, com as medidas que estão em curso, não tarda assistirmos à sua morte.

O Estado de austeridade não necessita de trocas entre a questão social e as questões da lei e

da ordem quando afirma que não existem medidas alternativas de combate à crise a não ser aquelas

que consistem numa transferência dos seus custos para a sociedade. Põe, assim, termo à

ambivalência associada à avaliação dos mecanismos de proteção social, uniformizando sob o signo

da austeridade um rol de medidas da nova ordem social: impostos; cortes salariais; cortes nas

pensões e subsídios; reforma no sistema de saúde; flexibilização negativa ao direito do trabalho,

etc63.

A pretensa legitimação destas políticas de austeridade assenta na transmissão aos cidadãos

de que, sem elas, caímos no abismo, ficamos no caos por muito e longos anos. Elas veiculam para a

sociedade as políticas do medo, da insegurança, da incerteza e do caos como forma da sua

61 DELGADO, José Augusto, Ativismo Judicial: o papel político do poder judiciário na sociedade contemporânea.

JAYME, Fernando Gonzaga; FARIA, Juliana Cordeiro de; LAUAR, Maira Terra. Processo civil novas tendências: homenagem ao professor Humberto Theodoro Júnior. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 319.

62 SWEET, Alec Stone, Governing with judges: constitutional politics in Europe, 2000, p. 35-36 e 130. 63 FERREIRA, António Casimiro, Sociedade da Austeridade e Direito do Trabalho de Exceção, Vida Económica, p.

37.

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ANTÓNIO ASCENSÃO RAMOS ATIVISMO JUDICIAL : 17

aceitação. No entanto, estas políticas não passam da longa manus do poder económico e dos seus

interesses, pois quem efetivamente manda e governa são os “não eleitos”64. Por outro lado,

constatamos que as medidas de austeridade não são suportadas, nem aplicadas, de forma igualitária

e equitativa por todos os cidadãos. Elas impendem mais sobre uns do que sobre outros, existindo

determinadas classes sociais mais sacrificadas65. Também se faz uma distinção entre trabalhador do

setor privado e do setor público, como se uns fossem mais responsáveis pela crise do que os outros.

“Os mais ricos que paguem a crise” é um chavão fora de moda, pois quem mais é sacrificado é

quem menos riqueza possui66.

O poder dos não eleitos e a sua influência na esfera de atuação do poder dos eleitos (aquele

que deriva da legitimidade democrática através das eleições) trazem uma nova perspetiva e desafio

ao direito, questionando-se desde logo se aqueles poderes não põem em causa o Estado de Direito e

se não se estará a evoluir (ou, melhor, a retroceder) para uma nova separação dos poderes. Pode,

assim, afirmar-se que o questionamento do Estado de Direito é o que resulta da autossuspensão da

soberania pela soberania, e de um direito que se coloca fora da lei através dele próprio, de modo a

que a articulação entre aqueles dois poderes resulte em reformas orientadas pelo princípio da

incerteza e pela indeterminação. Isto faz com que o poder governativo se encontre livre para fixar o

regime de exceção da soberania e do direito67.

Cria-se, pois, uma nova “classe executiva” organizacional com influência na criação do

direito (principalmente no direito de exceção), em conflito com a democracia representativa e com

repulsa pelo controle recíproco dos chamados três poderes estatais.

Perante este novo circunstancialismo da era da austeridade, o Judiciário assume um papel

fulcral na defesa do Estado de Direito e na separação entre o que é e o que não é conforme à

Constituição, devendo e sabendo estar incólume às pressões político-partidárias que

indubitavelmente irá sofrer. Diariamente irá ser desafiado para resolver situações difíceis onde a

fronteira entre o que é e não é constitucional será trazido à colação68.

Os Tribunais são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome

do povo, incumbindo-lhes assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos

cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos

64 Sobre o tema, cfr. FERREIRA, António Casimiro, obra citada, pp. 65 a 68. 65 Políticas que contribuíram para o declínio da classe média e que seguramente, mantendo-se, levarão à sua extinção.

Sobre este tema ver ESTANQUE, Elísio, A Classe Média: Ascensão e Declínio, Fundação Francisco Manuel dos Santos, janeiro de 2012.

66 Com interesse para a matéria, ver ainda o estudo divulgado pela Comissão Europeia com o título The distributional effects of austerity measures: a comparison of six EU countries – http://www.socialsituation.eu/research-notes/SSO2011%20RN2%20Austerity%20measures_final.pdf.

67 FERREIRA, António Casimiro, obra citada, pag. 70. 68 João Paulo Ramos afirma que «o papel dos juízes torna-se o de garante dos direitos fundamentais e do respeito

pelos princípios e valores constitucionais. No fundo os juízes devem procurar sempre o respeito pelo texto constitucional, mesmo que este implique a não aplicação das leis provenientes do poder legislativo legítimo, as quais poderão suscitar a questão da constitucionalidade, dada a forma como as questões da interpretação e conformação constitucionais se colocam» (“ O Neoconstitucionalismo p.155 – RAMOS, João Paulo, Teoria da Argumentação Jurídica e Neo-Constitucionalismo, Um conjunto de perspetivas, Almedina, 2011).

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e privados, sendo certo que “[N]o feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar

normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados” (arts. 202.º e

204º da CRP) .

Se assim é, não se podem alhear da vida, seja ela social, política ou cultural, sendo o seu

papel fundamental defender a Constituição e os seus princípios jurídicos. E, perante a aplicação

pelo poder governamental de novas políticas públicas, nomeadamente no campo dos direitos

sociais, os Tribunais haverão (ou deverão) de recriar uma nova visão constitucional e atentar,

através da respetiva interpretação, se a aplicação dessas políticas tem por substrato uma alteração

das circunstâncias que determinem a invocação da excecionalidade para a legitimação da

austeridade.

É por isso que, talvez num futuro relativamente próximo, se possam deslegitimar

determinadas políticas públicas governamentais que, apesar de serem fruto de um governo eleito de

forma democrática pelo voto popular, e, portanto, com legitimidade, pelo menos no plano formal,

para as implementarem, as fazem contra aquilo que prometeram nas campanhas eleitorais e que

constituíam os seus programas, num (des)compromisso sócio-eleitoral com o eleitorado (uma

espécie de contrato social). Nestes casos a sua legitimação está posta em causa, pois, como refere

Paulo Pereira da Cunha69

«(…) só um reto agir, uma vez no poder, confere legitimação. Um poder legítimo é assim o

que tem sobretudo legitimação pelo seu reto agir. E tal sucede tanto mais quanto, nos nossos dias,

muitos são, no nosso quadrante cultural, os governos eleitos de acordo com as normas

constitucionais. Legítimos no plano formal, precisam de confirmar a sua legitimidade pela sua

prática: designadamente, desde logo, cumprindo as suas promessas eleitorais.»

Faleceria ao Judiciário legitimidade para, em nome da Constituição e dos seus princípios,

declarar inconstitucional um feixe normativo criador de medidas de exceção e de austeridade,

contrário às promessas eleitorais, sem que supervenientemente existissem ou fossem dadas

justificadas, adequadas e necessárias razões ou fundamentos capazes de sustentarem essa alteração

de atitude e comportamentos políticos? A resposta talvez seja dada um dia e quem sabe, se nesse

dia, esse juiz ou juízes serão apelidados de ativistas ou tão só de defensores e guardiães da

Constituição e dos direitos dos cidadãos.

Sempre haverá quem defenda que não é ao Judiciário quem incumbe zelar pelo compromisso

dos governantes com o eleitorado. Para isso, dirão, existem atos eleitorais onde os cidadãos podem

“castigar” as medidas e políticas tomadas pelo governo e o não cumprimento ou desrespeito pelas

promessas eleitorais. Não deixa de ter bastante peso este ponto de vista. Mas também não deixa de

ser verdade que cada vez mais vivemos numa sociedade em que os seus membros se alheiam da

cidadania, são pouco ou nada esclarecidos, são facilmente influenciados e acreditam com facilidade

69 CUNHA, Paulo Pereira da, Direito Constitucional Geral, Quis Juris, 2006, pág. 119.

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em promessas. Vota-se em representantes que se não conhecem e pouco importa conhecer70.

No entanto, todo o desrespeito por um princípio/norma constitucional dará legitimidade ao

Judiciário para afastar a aplicação de normas eivadas desse vício. Mais do que um ativismo judicial

deveremos falar na judicialização da política, e sem receio. É certo que, quando se fiscaliza

preventivamente uma determinada lei, quando se decide se determinada norma é ou não conforme

à Constituição, os Tribunais estão a interagir com as políticas públicas. Mas decidir se determinada

norma é ou não constitucional é, afinal, um dever do Judiciário (arts. 204º e 277º, nº 1 da CRP).

Orlando Afonso71 salienta que

“a democracia já não é sinónimo de poder dos eleitos, sem partilha desse mesmo poder. Ela

pressupõe o respeito pelo pluralismo (e pelas minorias), uma participação mais direta dos cidadãos

nas escolhas coletivas e a garantia dos direitos e das liberdades. A democracia deixou de se esgotar

na democracia representativa para passar a uma conceção de democracia alargada da qual o estado

é seu elemento constitutivo”, referindo ainda que “o poder judicial é a chave mestra da condição e

da realização do estado de direito. O sistema normativo não se tornará efetivo se não for

jurisdicionalmente sancionado e os direitos fundamentais não estarão protegidos se não existir um

juiz que assegure a sua proteção. Enquanto o Estado legal assentava na figura do “representante”

em nome da primazia da “ vontade real” e o Estado providência na do “enarca”, em nome das

exigências da “razão, o Estado de Direito coloca na frente a figura do “juiz” dando a primazia à

“ética”. Investido no papel de “guardião de valores”, o juiz está encarregado de os defender quer

contra a vontade, por vezes, caprichosa das maiorias quer contra o império das razões instrumentais

e económicas, apenas desejosas de eficácia.”

6. Que tipo de juiz é exigido como guardião dos direitos do cidadão?

Na defesa dos princípios fundamentais, qual o papel dos juízes? Deverão os mesmos ter uma

participação mais ativa ou devem-se pautar pela neutralidade? Uma maior atividade participativa

do judiciário não poderá implicar uma imiscuição nos restantes poderes do Estado? Essa atividade

promove a democracia consagrando de forma mais efetiva os direitos fundamentais, ou, pelo

contrário, favorece o surgimento de uma juristocracia violadora das tutelas e garantias

constitucionais?

As respostas variam conforme o interlocutor. Certamente que para um político uma maior

intervenção dos juízes na sociedade será vista como uma ingerência intolerável na sua esfera de

ação e poder. Para alguns deles (e não só), o medo será tanto que não os inibe de chamar à colação

o perigo do reino da judicatura ou uma república de juízes. Haverá, na defesa do clientelismo

partidário e no de interesses económicos instalados, que deslegitimar o poder judicial, com

70 Como escreveu Eduardo Galeano (Las palabras andantes – pág. 61): “La libertad de elección te permite elegir la

salsa con que serás comido.” 71 AFONSO, Orlando, Poder Judicial, Independência In Dependência, Almedina, 2004, págs. 51/52.

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fundamentos muitas das vezes populistas, mas que por detrás está uma realidade opaca, não

apreensível pela maioria dos cidadãos72. No entanto, os cidadãos vêem os Tribunais e os seus juízes

como a última instância na defesa intransigente dos seus direitos fundamentais ou básicos, exigindo

dos mesmos uma justiça social e efectiva, mesmo que actuem contra os representantes das maiorias

(desviantes do seu compromisso social e político) ou contra o poder instalado. Exigem, assim, um

poder judicial activo que defenda os seus direitos e não um poder judicial passivo ou amorfo

subserviente ao poder instalado e cego à realidade social e económica e aos princípios

fundamentais de direito reguladores de um Estado Democrático Constitucional. Não querem um

juiz cego, apenas servidor da lei, mas um juiz que garanta a defesa dos seus direitos,

nomeadamente através do controlo que ele pode exercer sobre a própria lei.

A defesa desses interesses dos cidadãos, a defesa dos direitos fundamentais e básicos,

sustentáculo duma sociedade democrática, enfim, a defesa intransigente da Constituição, que tipo

de juiz exige?

Na procura da resposta a esta questão, deveremos atentar, em primeiro lugar, que qualquer

dos poderes do Estado deve actuar de acordo com o princípio da legalidade, não podendo o

Judiciário fugir a esta realidade jurídico-constitucional73.

“A legalidade nos sistemas políticos exprime basicamente a observância das leis, isto é, o

procedimento da autoridade em consonância estrita com o direito estabelecido. Ou em outras

palavras traduz a noção de que todo poder estatal deverá actuar sempre de conformidade com as

regras jurídicas vigentes. Em suma, a acomodação do poder que se exerce ao direito que o regula.

Nessa acepção ampla, o funcionamento do regime e a autoridade investida nos governantes

devem reger-se segundo as linhas-mestras traçadas na Constituição, cujos preceitos são a base

sobre a qual assenta tanto o exercício do poder como a competência dos órgãos estatais.

A legalidade supõe por conseguinte o livre e desembaraçado mecanismo das instituições e

dos actos da autoridade, movendo-se em consonância com os preceitos jurídicos vigentes ou

72 Orlando Afonso na intervenção referida na nota anterior, pág. 6, escreve que «quando os demais poderes (sejam

eles o político, o económico, o mediático ou qualquer outro…) não conseguem controlar legitimamente o poder judicial, deslegitimam-no. E é mais fácil a deslegitimação que o controlo direto da independência porque a esse opõem-se razões de ordem interna (maxime constitucionais sempre difíceis de ultrapassar) ou razões de ordem externa (resoluções e recomendações de órgãos supra nacionais) que suscitam alguma contenção na matéria.

A deslegitimação, tal como a calúnia (na ópera de Rossini – O barbeiro de Sevilha) começa por ser “uma aragem, uma brisa assaz subtil que se introduz subrepticiamente, pouco a pouco, muito devagar aqui e além de tal forma que o tom inicial vai crescendo, vai aumentando, vai-se transformando num tremendo temporal que nas cabeças e nos cérebros, como um tiro de canhão, produz uma explosão um contínuo ribombar”.

E é esta deslegitimação que de alguns anos para cá se tem estado a fazer de forma a preparar as modificações necessárias ao controlo da magistratura e dos Tribunais. Numa primeira fase começou-se por falar nos atrasos da justiça; numa segunda juntou-se ao problema dos atrasos a excessiva juventude dos juízes; numa terceira acrescentou-se a impreparação e a incompetência, procurando-se ao mesmo tempo lançar a ideia de serem os juízes uma casta de privilegiados em roda livre, repletos de poderes apenas preocupados com a defesa dos seus interesses corporativos.

É evidente que todo este discurso deslegitimador conduziu ao desprestígio da função judicial e dos juízes em particular preparando o terreno para as novas conceções neo-liberais de justiça. É preciso que os tribunais não sejam um entrave aos interesses económicos em presença e sobretudo não ponham em causa o respeito pelo direito dos mais fortes».

73 Cfr. Artigo 3º da CRP.

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respeitando rigorosamente a hierarquia das normas, que vão dos regulamentos, decretos e leis

ordinárias até a lei máxima e superior, que é a Constituição.

O poder legal representa por consequência o poder em harmonia com os princípios jurídicos,

que servem de esteio à ordem estatal”74.

O juiz não pode, nem deve, tomar uma decisão escondendo-se da sociedade, tapando os

olhos à realidade esquivando-se num gabinete75. Mas, antes de mais, na decisão deve atentar no

Direito constituído pela lei e essencialmente pelos seus princípios76.

Os princípios do Direito são as ideias fundamentais que justificam, ou permitem justificar,

um ou mais preceitos oficialmente aprovados, uma série de decisões dos tribunais ou, até, o sistema

jurídico na sua totalidade.

São essas ideias fundamentais que constituem o Direito na sua dimensão racional, ética e

axiológica que permitem afirmar que o Direito não se reduz a um mero somatório de leis ou fontes

de direito em sentido técnico-jurídico77.

Quem queira dar solução justa e acertada aos problemas jurídicos, não se poderá restringir a

decidir segundo as normas oficialmente aprovadas e as regras do precedente vigentes. Deverá,

ainda, identificar, densificar e ponderar os princípios do Direito78.

A palavra «justiça» pode e deve ser tomada no sentido amplo de “correcção ética, axiológica

ou racional”. Decide “com justiça” quem decide simultaneamente com racionalidade prática e com

correcção ética ou axiológica. Conforme referia Aristóteles79

“ Ir ao juiz é ir à justiça, pois pode dizer-se que o juiz ideal é a justiça personificada”.

O ideal de justiça é parte integrante do Direito80.

A existência ou a ausência de uma norma legal expressa não é nunca suficiente para

legitimar uma decisão ético-juridicamente injustificada. A frase “A decisão é injusta, mas é o que a

lei quer” ou «O resultado é injusto, mas, como não há lei aplicável, tem de se decidir dessa

forma»81, são frases que nunca deveriam ser pronunciadas82.

74 BONAVIDES, Paulo, Ciência Politica, item 8, ponto 1. 75 Como diz DINAMARCO, Cândido Rangel, Instituições de Direito Processual Civil, Vol. I, p. 224-225, o “juiz

mudo tem também algo de Pilatos e, por temor ou vaidade, afasta-se do compromisso de fazer justiça” 76 Conforme refere António Cortês, obra citada, p. 103, ao ler a Constituição os tribunais deverão ter uma atitude

crítica procurando o Direito constitucional para além do texto da Constituição, ou como diz Dworkin, o “ Direito para além do Direito”.

77 CORTÊS, António, obra citada, pág. 10. 78 CORTÊS, António, obra citada, pág. 12. 79 Aristóteles, Ética a Nicómaco, 1132a. 80 CORTÊS, António, obra citada, pág. 16. 81 Fikenstscher, Methoden des Rechts, IV, p. 234. 82 CORTÊS, António, obra citada, pág. 19

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O Juiz não pode decidir apenas com base na lei, tem de o fazer com base em princípios83. E

nunca uma decisão pode ser injusta, pois, mesmo que esteja de acordo com a lei, não está de acordo

com o Direito84.

O professor Manuel de Andrade85 dizia que

«os homens não podem viver sem leis. Se com elas não desapareceu do mundo a injustiça e

a insegurança, sem elas esses males tornariam proporções de todo incompatíveis. Por isso as leis

de há muito que existem e ninguém pensa em suprimi-las, e desde Sócrates se considera virtude

obedecer-lhes, em princípio, mesmo quando nos desagradam ou até quando, injustificadamente,

nos vulneram ou de todo nos sacrificam».

Acrescentamos, no entanto, que essa obediência à lei é àquela que está conforme os

parâmetros constitucionais e respectivos princípios jurídicos. É aquela lei que não põe em causa a

Dignidade da Pessoa Humana.

O Judiciário tem de ser o guardião da defesa dos princípios, ainda que não escritos, que

sustentam o Estado Democrático de Direito. O Juiz tem que tomar consciência do conteúdo e

impacto social - mais do que nunca - das suas decisões, devendo ser ousado no papel de

revalorização da função jurisdicional de forma a levar a bom porto a realização da justiça neste

contexto das crises86.

No entanto, na defesa da efectividade constitucional, não nos podemos olvidar que a

aplicação da norma jurídica aos casos conflituantes acarreta a necessidade de uma interpretação e

decisão de acordo com os textos normativo-constitucionais. Só assim ela será justa e de acordo com

o Direito87.

Num Estado de direito democrático-constitucional, alicerçado numa lei fundamental

comprometida com a dignidade humana, a actividade interpretativa deve, pois, conter-se dentro dos

limites impostos pela constituição e pelos princípios jurídicos e nunca fora deles, sob pena de

entramos no campo da livre criação do direito.

83 Segundo CORTÊS, António, obra citada, p. 29, constituem exemplos de princípios do Direito as ideias de

“justiça”, “dignidade humana”, “racionalidade das decisões de poder”,” igualdade”, “proporcionalidade”, “tutela da confiança”, “segurança efectiva”, “justa indemnização”, “ponderação da materialidade subjacente”, “equilíbrio contratual”,”processo equitativo” ou “Estado de Direito”.

84 NEVES, Castanheira, «O papel do jurista no nosso tempo, in Boletim da Fac. Direito da Univ. Coimbra, Vol. XLIV, 1968», págs. 133 e 134.35, define lei injusta como “toda a norma legal positiva que não realize ou não permita realizar concretamente a ideia de Direito”.

85 ANDRADE, Manuel, “Sentido e Valor da Jurisprudência”, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, XLVIII, 1972, pag. 289.

86 Juiz Desembargador António Martins na qualidade de Presidente da ASJP no discurso de encerramento do 9º Congresso dos Juízes Portugueses.

87 O Direito não é apenas mais do que a lei em sentido estrito, é também mais do que a Constituição. Pois também a Constituição é uma lei: é a “lei fundamental” da comunidade política. CORTÊS, António, obra citada, pág. 103.

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As decisões judiciais que não consideram as normas jurídicas e façam uma interpretação88

desconforme com os princípios e garantias constitucionais, externa aos valores aceites e partilhados

pela comunidade, e que imponham argumentos de autoridade, sejam eles provenientes das

convicções pessoais do aplicador, de comandos emergentes da mera interpretação pessoal ou

ideológica, não passam de decisões ilegítimas.

Conforme refere o ministro do Supremo Tribunal Federal Paulo Brossard de Souza Pinto

«Quando alguém se arroga o direito de afrontar a lei em nome de opiniões pessoais, politicas

ou filosóficas, abre ensejo a que os seus direitos fundamentais sejam igualmente violados.»

Também segundo António Cortês89

O tribunal tem frequentemente um papel fundamental na descoberta da melhor solução

jurídica, mas essa descoberta deverá sempre fazer-se no quadro de uma série de vinculações legais,

constitucionais, dogmáticas e jurisprudenciais que, em si mesmas, não dependem da opinião do

tribunal.

O Ministro Celso de Mello90 sobre o que é função do juiz nos tempos atuais refere o

seguinte:

" (…) o Poder Judiciário constitui o instrumento concretizador das liberdades civis, das

franquias constitucionais e dos direitos fundamentais assegurados pelos tratados e convenções

internacionais subscritos pelo Brasil. Essa alta missão, que foi confiada aos juízes e Tribunais,

qualifica-se como uma das mais expressivas funções políticas do Poder Judiciário."

"O Juiz, no plano de nossa organização institucional, representa o órgão estatal incumbido de

concretizar as liberdades públicas proclamadas pela declaração constitucional de direitos e

reconhecidas pelos atos e convenções internacionais fundados no direito das gentes. Assiste, desse

modo, ao Magistrado, o dever de atuar como instrumento da Constituição - e garante de sua

supremacia - na defesa incondicional e na garantia real das liberdades fundamentais da pessoa

humana, conferindo, ainda, efetividade aos direitos fundados em tratados internacionais de que o

Brasil seja parte. Essa é a missão socialmente mais importante e politicamente mais sensível que se

impõe aos magistrados, em geral, e a esta Suprema Corte, em particular."

"É dever dos órgãos do Poder Público - e notadamente dos juízes e Tribunais - respeitar e

promover a efetivação dos direitos garantidos pelas Constituições dos Estados nacionais e

assegurados pelas declarações internacionais, em ordem a permitir a prática de um

constitucionalismo democrático aberto ao processo de crescente internacionalização dos direitos

básicos da pessoa humana."

88 Um dos princípios da interpretação é o chamado princípio da máxima efectividade, ou princípio da eficiência ou

princípio da interpretação efectiva, segundo o qual a uma norma constitucional deves ser atribuído o sentido que a maior eficácia lhe dê (cf. CANOTILHO, José Gomes, Direito constitucional. 6. Ed., Almedina, 1995, p. 227).

89 CORTÊS, António, obra citada. P. 126. 90HABEAS CORPUS 87.558-8 TOCANTIS, acessível em

http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/HC87585VISTACM.pdf

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"O respeito e a observância das liberdades públicas impõem-se ao Estado como obrigação

indeclinável, que se justifica pela necessária submissão do Poder Público aos direitos fundamentais

da pessoa humana."

O senhor do direito agora, é o juiz, é a máxima autoridade na sua aplicação. Mas um juiz que

julgue e decida com moderação, equilíbrio, prudência e razoabilidade. Só assim será um bom Juiz.

Há uma anedota onde se pergunta «qual a diferença entre um juiz e Deus». A resposta é que

«este último sabe que não é juiz». Tirando o cómico da resposta, a verdade é que, infelizmente,

existem juízes que pensam ser Deus91. Estes, em tom de graça, poder-se-ão apelar de «ativistas

metafísicos».

A função da Jurisprudência92 está em interpretar o Direito aplicando a sabedoria dos

magistrados aos conflitos sociais, de forma a humanizar as leis.

Conforme refere Gomes Canotilho93,

« (…) o Judiciário deve esforçar-se por compreender que a norma está sempre ligada ao

problema concreto. Assim, apesar dos formalismos jurídicos, há que se captar as dimensões

fundamentais do problema, até porque algumas dessas dimensões radicam na consciência profunda

da comunidade. A minha posição é, portanto, que os juízes não são órgãos de transformação social,

mas, em alguns casos, eles apontam um caminho importante de concretização da constituição.»

A atitude global do juiz na decisão pode ter cariz ativo ou passivo. O peso e a importância

que se dá a determinadas razões, regras ou princípios, pode depender, em última análise, da forma

de pensar do juiz e do seu sentido de justiça. Daí a importância histórica que sempre se deu às

qualidades dos juízes (resumidas nas quatro virtudes éticas: justiça, prudência, coragem e

temperança94.

A distinção entre ativismo e contenção judicial pode fazer-se tendo em atenção a atitude

tendencial do tribunal em face dos seguintes problemas: escolha dos meios de interpretação,

vinculação ao precedente, utilização do método da ponderação de bens ou interesses, rigor na

apreciação de pressupostos processuais e apreciação mais ou menos audaz da constitucionalidade95.

91 Vejamos o que uma juíza da Vara do Trabalho de Santa Rita (Brasil), nos autos do Nº 01718. 2007.027.13.00-6,

que pode ser acedida em http://www.oab.org.br/util/print/11774?print=Noticia, escreveu: “A liberdade de decisão e a consciência interior situam o juiz dentro do mundo, em um lugar especial que o converte em um ser absoluto e incomparavelmente superior a qualquer outro ser material. A autonomia de que goza, quanto à formação de seu pensamento e de suas decisões, lhe confere, ademais, uma dignidade especialíssima. Ele é alguém em frente aos demais e em frente à natureza; é, portanto, um sujeito capaz, por si mesmo, de perceber, julgar e resolver acerca de si em relação com tudo o que o rodeia.

Pode chegar à autoformação de sua própria vida e, de modo apreciável, pode influir, por sua conduta, nos acontecimentos que lhe são exteriores.

Nenhuma coerção de fora pode alcançar sua interioridade com bastante força para violar esse reduto íntimo e inviolável que reside dentro dele."

92 Originária do latim jus (direito) + prudentia (sabedoria). 93Em entrevista dada ao Portal Justributário, acessível em

http://unieducar.org.br/entrevista/ENTREVISTA_CANOTILHO[1].pdf 94 CORTÊS, António, obra citada. P. 292. 95 BARAK, Ahron, The Judge in a Democracy, p. 263 e ss.

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No entanto, o núcleo emerge da relevância que se concede aos princípios do Direito em face das

fontes de direito em sentido técnico-jurídico. Os princípios colocam os tribunais no dilema:

«ativismo v. contenção».

Os tribunais, enquanto fórum dos princípios, deverão ter uma atitude jurisprudencial,

devendo agir não só com justiça, mas também com prudência e com temperança.

Enquanto o passivismo judiciário tem a tendência de reduzir o Direito à soma das fontes

herdadas do passado, o ativismo pode levar a uma diluição das fontes e princípios de direito nos

objetivos próprios de outras práticas (pragmatismo e perda de autonomia do direito)96. É por isso

que os tribunais deverão manter um justo equilíbrio, recusando o excesso seja de ativismo seja de

passividade. Os tribunais deverão ter sentido de “integridade constitucional” e garantir o Direito

enquanto ordem de validade, sem o reduzir à política.

Conforme refere António Cortês97,

É verdade que os tribunais possuem uma dimensão “política”, que são uma peça essencial

dos sistemas constitucionais de “justiça política”. Mas o seu papel, no quadro político-

constitucional, é um papel muito específico. A sua função tem a nobreza, mas também a

moderação, que são inerentes á ideia constitucional de “administração da justiça”.

Mas, além do campo constitucional, podemos e devemos ter um juiz ativo no campo

processual, quer no âmbito do processo civil (artigo 265º n.º 3 do C.P.C.98), quer no do processo

penal (artigo 340º do C.P.P.99), onde o juiz tem o poder-dever de ordenar oficiosamente todas as

diligências necessárias à descoberta da verdade. No entanto, a sua ação é limitada, no processo

civil, pelo princípio do dispositivo (artigo 264º do CPC) e, no processo penal, há autores que

sustentam que sofre uma tripla limitação, derivada da concorrência dos princípios da acusação, da

legalidade dos meios de prova, e da exclusão do conhecimento privado do Juiz100. Tais limitações

podem constituir obstáculo processual a que a verdade judicial possa não exaurir a verdade

material.

Existem ainda diversos princípios que afastam o juiz de um mero espectador do Direito.

Assim, temos o princípio bagatelar ou da insignificância que, no campo penal101, poderá afastar a

ilicitude de pequenos furtos de coisas sem valor ou de valor diminuto ou insignificante, como por

exemplo, um alfinete, um botão, um chocolate.

96 Como paradigma desse ativismo temos o caso do Juiz Celso Dengucho que já tivemos oportunidade de

exemplificar. 97 CORTÊS, António , obra citada, p. 294. 98 Artigo 265º n.º 3 do C.P.C.: “Incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências

necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.”. 99 Artigo 340º n.º 1 do C.P.P.: “O tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de

prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.”. 100 Cfr. DIAS, J. Figueiredo, Direito Processual Penal, lições policopiadas coligidas por Mª João Antunes, págs. 132-

133. 101 O artigo 9º, nº 1 do Código de Processo Penal, dispõe que “Os tribunais judiciais administram a justiça penal de

acordo com a lei e o direito”.

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Também o princípio da adequação social terá o seu campo de aplicação na área penal e

laboral (principalmente na apreciação de justa causa para o despedimento em certas situações

limite) e o mesmo poderá suceder com o instituto do abuso de direito102.

E, por último, não resistimos em terminar com um notável texto do Conselheiro Orlando

Afonso103:

É errado pensar que o princípio segundo o qual o juiz está sujeito "apenas à lei" seja o

retorno ao ideal iluminista e mais tarde jacobino do "juiz boca da lei". A constituição não

condena o juiz a um serviço passivo da vontade do legislador, coloca-o, antes, numa posição

extraordinária e difícil de conseguir fazer viver o direito segundo os princípios que ela coloca

acima da lei e segundo as necessidades da sociedade.

A lei é apenas uma parte do direito e da vida. Mudando constantemente a lei não se muda,

ipso facto, o direito e muito menos a vida.

7 - Considerações finais

Em termos de conclusão, diremos que os tempos atuais, dadas as suas especificidades, a

atuação de um Judiciário ativo e guardião na defesa dos interesses do cidadão e na defesa dos

princípios fundamentais constitucionais. Um Judiciário que respeite os outros poderes do Estado,

que tenha sentido de “integridade constitucional” e garanta o Direito enquanto ordem de validade,

sem o reduzir à política.

Na justiça, prudência, coragem e temperança está o bom juiz e a decisão justa.

ANTÓNIO JOSÉ DA ASCENSÃO RAMOS Juiz Auxiliar no Tribunal da Relação

——————————————————— Novembro de 2012 | verbojuridico.net

102 Tenhamos em conta a sentença proferida pelo Tribunal judicial de Portalegre, no âmbito de um processo de

inventário, sobre a entrega do imóvel ao credor, numa situação de crédito bancário hipotecário, tendo determinado que liquidação da dívida apenas com a devolução da casa à instituição bancária, acessível em http://www.inverbis.pt/2012/ficheiros/doc/tribunalportalegre_creditohipotecario.pdf.

103 In Correio da Manhã de 05/03/2011, Correio da Justiça, “Juiz boca da lei?”