Atraso psicomotor jos_e_carlos_ferreira

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DOSSIER PERTURBAÇÕES DO DESENVOLVIMENTO Rev Port Clin Geral 2004;20:703-12 703 O atraso global do desenvol- vimento psicomotor (AD- PM) é definido como um atraso significativo em vá- rias domínios do desenvolvimento como sejam a motricidade fina e/ou grossei- ra, a linguagem, a cognição, as compe- tências sociais e pessoais e as activida- des da vida diária. Qualquer destes do- mínios pode estar mais ou menos com- prometido e assim o ADPM é uma enti- dade heterogénea, não apenas na sua etiologia mas também no seu perfil fe- notípico. A prevalência é em grande me- dida desconhecida mas estimada em 1 a 3% das crianças abaixo dos cinco anos. Define-se um atraso significativo o que se situa dois desvios-padrão abaixo da média das crianças da mesma idade. Nos testes de avaliação formal de inteli- gência do tipo Wechsler (WPPSI, WISC, WAIS), mais válidos e fiáveis nas crian- ças mais velhas, adolescentes e adultos, corresponde a um QI igual ou inferior a 70. Actualmente classifica-se de atra- so mental grave os casos com QI infe- rior a 50 e atraso mental ligeiro os ca- sos com QI entre 50 e 69. A primeira fase da intervenção médica numa criança com ADPM é o seu re- conhecimento. Sem negligenciar o pa- pel dos pais e educadores, a responsa- bilidade desta identificação cabe ao médico comunitário que acompanha a saúde da criança, seja pediatra ou médico de família. Estabelecer o diag- nóstico de um atraso do desenvolvi- mento pode constituir um difícil desafio. A muito grande variação nas aquisições entre crianças normais pode tornar difí- cil a detecção de alterações subtis mas com significado. Por outro lado, o natu- ral receio dos pais em relatar as suas preocupações quanto ao desenvolvi- mento dos filhos e uma inibição do clíni- co em confrontá-los com a realidade da existência de um atraso podem condu- zir ao erro de considerar todas as altera- ções como uma variação do normal e confiar exageradamente que elas «de- sapareçam com a idade». É mais eficaz considerar a avaliação do desenvolvi- mento infantil como uma vigilância con- tínua do que um procedimento de ras- treio a ser efectuado numa consulta es- pecífica a uma determinada idade, do mesmo modo que a informação acu- mulada na evolução do peso, cresci- mento e perímetro craniano é muito mais rica do que a medição destes parâmetros numa altura isolada. Essa vigilância deve incluir a monitorização de várias áreas do desenvolvimento (motricidade grosseira e fina, lingua- gem, cognição e competências sociais). Muitas alterações do desenvolvimento infantil, como as perturbações da lin- guagem, da atenção ou da empatia pou- cas vezes são diagnosticadas antes dos três a quatro anos e as perturbações es- pecíficas da aprendizagem como a dislexia ou discalculia, só depois da ida- de escolar. No entanto, deve haver um Atraso global do desenvolvimento psicomotor *Neurologista pediátrico Hospital Egas Moniz JOSÉ CARLOS FERREIRA* INTRODUÇÃO IDENTIFICAÇÃO

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PERTURBAÇÕES DO DESENVOLVIMENTO

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Oatraso global do desenvol-vimento psicomotor (AD-PM) é definido como umatraso significativo em vá-

rias domínios do desenvolvimento comosejam a motricidade fina e/ou grossei-ra, a linguagem, a cognição, as compe-tências sociais e pessoais e as activida-des da vida diária. Qualquer destes do-mínios pode estar mais ou menos com-prometido e assim o ADPM é uma enti-dade heterogénea, não apenas na suaetiologia mas também no seu perfil fe-notípico. A prevalência é em grande me-dida desconhecida mas estimada em 1a 3% das crianças abaixo dos cinco anos.

Define-se um atraso significativo oque se situa dois desvios-padrão abaixoda média das crianças da mesma idade.Nos testes de avaliação formal de inteli-gência do tipo Wechsler (WPPSI, WISC,WAIS), mais válidos e fiáveis nas crian-ças mais velhas, adolescentes e adultos,corresponde a um QI igual ou inferiora 70. Actualmente classifica-se de atra-so mental grave os casos com QI infe-rior a 50 e atraso mental ligeiro os ca-sos com QI entre 50 e 69.

A primeira fase da intervenção médicanuma criança com ADPM é o seu re-conhecimento. Sem negligenciar o pa-pel dos pais e educadores, a responsa-bilidade desta identificação cabe ao

médico comunitário que acompanha asaúde da criança, seja pediatra oumédico de família. Estabelecer o diag-nóstico de um atraso do desenvolvi-mento pode constituir um difícil desafio.A muito grande variação nas aquisiçõesentre crianças normais pode tornar difí-cil a detecção de alterações subtis mascom significado. Por outro lado, o natu-ral receio dos pais em relatar as suaspreocupações quanto ao desenvolvi-mento dos filhos e uma inibição do clíni-co em confrontá-los com a realidade daexistência de um atraso podem condu-zir ao erro de considerar todas as altera-ções como uma variação do normal econfiar exageradamente que elas «de-sapareçam com a idade». É mais eficazconsiderar a avaliação do desenvolvi-mento infantil como uma vigilância con-tínua do que um procedimento de ras-treio a ser efectuado numa consulta es-pecífica a uma determinada idade, domesmo modo que a informação acu-mulada na evolução do peso, cresci-mento e perímetro craniano é muitomais rica do que a medição destesparâmetros numa altura isolada. Essavigilância deve incluir a monitorizaçãode várias áreas do desenvolvimento(motricidade grosseira e fina, lingua-gem, cognição e competências sociais).Muitas alterações do desenvolvimentoinfantil, como as perturbações da lin-guagem, da atenção ou da empatia pou-cas vezes são diagnosticadas antes dostrês a quatro anos e as perturbações es-pecíficas da aprendizagem como adislexia ou discalculia, só depois da ida-de escolar. No entanto, deve haver um

Atraso global do desenvolvimento psicomotor

*Neurologista pediátricoHospital Egas Moniz

JOSÉ CARLOS FERREIRA*

EDITORIAISINTRODUÇÃO

EDITORIAISIDENTIFICAÇÃO

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esforço para identificar as perturbaçõesmais graves e globais numa idade pre-coce. Embora a maioria das criançaspequenas com ADPM não esteja asso-ciada a uma entidade causal específicacurável ou mesmo tratável, mesmo naausência de uma explicação etiológicadefinitiva, a identificação precoce aju-da as crianças e as famílias a encontra-rem o equilíbrio justo de expectativas ede estimulação adequada.

Sem ser exaustivo, o Quadro I for-nece algumas indicações dos parâme-tros que podem servir como sinais dealarme de um desenvolvimento que nãose está a processar dentro dos limitesda que é considerada a norma para aidade da criança. Deve ter-se sempreem linha de conta a variação individualnormal, mas a média das crianças semproblemas atinge os estádios do desen-volvimento citados bem antes da idadereferida na tabela.

Estabelecida a existência de um atrasoglobal do desenvolvimento da criança,é necessária uma avaliação e caracteri-zação detalhadas.

Nesta avaliação clínica deve ter-seem conta dois níveis, igualmente de-terminantes para o acompanhamentoclínico e terapêutica subsequentes.

Um é o diagnóstico etiológico, quepode implicar ou não o recurso a váriostipos de avaliações e exames comple-mentares; o outro é o diagnóstico des-critivo, ou seja, a caracterização dosvários aspectos do quadro clínico.

De facto, para uma determinadacriança, pode ser tanto ou mais im-portante o diagnóstico detalhado dosseus défices e limitações das suas com-petências e potencialidades, como o daetiologia que lhes deu origem.

Diagnóstico descritivoA necessidade de uma avaliação des-

critiva a mais completa possível decorreda grande heterogeneidade dos quadrosclínicos que globalmente denominamosatraso do desenvolvimento. A variedadede parâmetros cognitivos e de proces-sos neuropsicológicos que podem estarperturbados numa determinada crian-ça, contribuindo para um mau desem-penho nos testes de avaliação global, émuito grande. Processos complexos en-volvidos em funções tão diversas comoa atenção, a memória de curto prazo, o«armazenamento» na memória de lon-ga duração (aprendizagem), a recupera-ção a partir desta, os processos per-ceptivos nos vários canais e a vários ní-veis de complexidade, a elaborada teiade funções envolvidas no processamen-to receptivo e produtor da linguagem,as programações motoras mais oumenos voluntárias ou automáticas, pa-ra dar apenas exemplos, encontram-seafectados em grau variável e essa va-riabilidade deve ser conhecida se qui-sermos ter uma acção baseada em fun-damentos sólidos.

O diagnóstico descritivo deve, tantoquanto possível, incluir quatro dimen-sões:As capacidades cognitivas e do comportamento adaptativo As escalas de avaliação do desenvolvi-mento são úteis no esclarecimento maisdetalhado das capacidades da criançanas várias áreas referidas acima. Semcair na tentação de preciosismos nu-méricos minuciosos, sem significadoreal na prática clínica, uma quantifica-ção aproximada pode ser vantajosapara servir de comparação no tempo;

Os factores etiológicos e da patologiaorgânica associadaO diagnóstico etiológico é só em parteindependente do diagnóstico descriti-vo. Em alguns casos, o facto de se teruma etiologia específica influencia omodo de apoiar a criança e traz elemen-tos de previsão e prognóstico relevantes.Também a co-existência de patologia

EDITORIAISDIAGNÓSTICO CLÍNICO

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QUADRO I

SINAIS DE ALARME DE ATRASO DE DESENVOLVIMENTO PSICOMOTOR

Área e Idade Sinal de alarmeMOTRICIDADE GROSSEIRA4 1/2 meses Não puxa para se sentar, com a cabeça alinhada com o corpo5 meses Não rebola9 meses Não fica sentado sem apoio10 meses Não fica de pé com apoio15 meses Não anda sem apoio2 anos Não sobe ou desce escadas2 1/2 anos Não salta3 anos Não pedala no triciclo4 1/2 anos Não salta «ao pé-coxinho»5 anos Não é capaz de andar pé-ante-pé numa linha recta MOTRICIDADE FINA3 1/2 meses Persistência do reflexo de preensão4-5 meses Não segura a roca; não junta as mãos na linha média8 meses Não transfere os objectos de uma mão para a outra10-11 meses Ausência de pinça dedos-polegar15 meses Não põe ou tira de uma caixa20 meses Não tira meias ou luvas sem ajuda2 anos Não faz torre de 5 cubos ou não rabisca2 1/2 anos Não volta a página de um livro3 anos Não faz torre de 8 cubos ou não esboça uma linha recta4 anos Não faz torre de 10 cubos ou não copia um círculo4 1/2 anos Não copia uma cruz 5 anos Não constrói uma escada com cubos ou não imita um quadradoLINGUAGEM5-6 meses Não palra8-9 meses Não diz «da» ou «ba»10-11 meses Não diz «dada» ou «baba»16 meses Não produz palavras únicas2 anos Não faz frases de 2 palavras2 1/2 anos Não usa pelo menos um pronome pessoal3 1/2 anos Não fala de modo inteligível4 anos Não compreende preposições5 anos Não utiliza a sintaxe correcta em frases curtasCOGNIÇÃO2-3 meses Não faz sentir necessidades6-7 meses Não procura o objecto caído8-9 meses Não se interessa por fazer «cu-cu»12 meses Não procura o objecto escondido12-15 meses Não aponta15-18 meses Não se interessa por jogos de causa e efeito2 anos Não categoriza semelhanças (por ex. animais, veículos)3/5 anos Não sabe nome próprio e apelido4 anos Não sabe escolher entre a maior e a menor de 2 linhas

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associada, seja do foro neurológico ousensorial, como um défice auditivo ouvisual, uma dificuldade motora acresci-da por paralisia cerebral, seja de outrosistema, como uma cardiopatia congé-nita, uma malformação gastrintestinal,urológica ou músculo-esquelética, podeser fundamental na caracterização dasituação da criança.

Os aspectos comportamentais, psicológi-cos e emocionais e as condições ambien-tais e do enquadramento sócio-familiarPara além do nível de desenvolvimentopsicomotor, o modo como a criança vivee aprende é influenciado por aspectospsicológicos, afectivos e comportamen-tais e pelo ambiente sócio-económico efamiliar onde se enquadra. Não existediferença maior entre a terapia e reabi-litação de duas crianças com um déficecognitivo equivalente, sendo uma cal-ma, disponível e interessada e outrapermanentemente irritável, angustiadae agressiva ou entre a que provém deum meio desestruturado e sem recur-sos económicos e afectivos da que estábem apoiada por uma família interes-sada e empenhada no melhor bem-es-tar e interesse da criança.

Diagnóstico etiológicoAs causas possíveis de atraso global do

desenvolvimento psicomotor são varia-das. O Quadro II dá uma ideia da fre-quência relativa dos grandes grupos diag-nósticos. Apesar do desenvolvimentotécnico-científico, existe ainda um impor-tante número de casos em que o diag-nóstico etiológico fica por determinar.

O primeiro passo, fundamental, dodiagnóstico etiológico, é a distinção en-tre uma lesão estática e uma encefa-lopatia progressiva. Na prática clínicaesta questão põe-se desta forma: trata-

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QUADRO I

SINAIS DE ALARME DE ATRASO DE DESENVOLVIMENTO PSICOMOTOR (continuação)

Área e Idade Sinal de alarme4 1/2 anos Não sabe contar5 anos Não sabe as cores nem qualquer letra5 1/2 anos Não sabe o seu próprio aniversário ou a moradaPSICOSSOCIAL3 meses Não tem sorriso social6-8 meses Não ri numa situação apropriada10 meses Não estranha1 ano Não se consola, não aceita «mimos»2 anos Agride sem provocação; sem contacto ocular nem interacção com crianças e adulto3-5 anos Não brinca com as outras crianças; desafia a obediência

QUADRO II

CAUSAS POSSÍVEIS DE ATRASO GLOBAL DO DESENVOLVIMENTO PSICOMOTOR

Categorias diagnósticas %Anomalias cromossómicas 11,6X-frágil 3,3Síndromes de anomalias múltiplas conhecidos 15,8Síndromes neurocutâneos 2,5Doenças neurometabólicas 2,5Tóxicos/teratogénicos 0,8Encefalopatia hipoxico-isquémica 2,5Infecções 0,8Síndromes epilépticos 8,3Malformações cerebrais 3,2Síndromes de anomalias múltiplas

indeterminados 29,1Etiologia desconhecida 19,1

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-se de um atraso na aquisição dos mar-cos normais do desenvolvimento ou,pelo contrário, verificou-se uma regres-são, com perda de aquisições? Em al-guns casos, numa determinada fase deuma doença progressiva pode haver al-gumas aquisições cognitivas, mas seestas aquisições se mantêm ao longo dotempo, por muito lentas que sejam,mais frequentemente se trata de umalesão estática pré- ou pós-natal. Pelocontrário, a perda de capacidades pre-viamente alcançadas é sempre indi-cadora de uma perturbação evolutiva.

A anamnese e o exame objectivo po-dem pôr-nos imediatamente na pistade uma etiologia específica. A existên-cia, por exemplo, de antecedentes fa-miliares de atraso do desenvolvimentoou de consanguinidade dos pais, podeindicar uma etiologia genética. A co-existência de paralisia cerebral ou ou-tras alterações do exame neurológico,pode indicar a ocorrência de uma lesãopré ou perinatal. Manchas acrómicasou hipermelânicas podem ser o indíciode uma síndrome neurocutânea comoa esclerose tuberosa ou a neurofibro-matose tipo 1, respectivamente. Numnúmero não negligenciável de criançascom ADPM, podem encontrar-se peque-nas dismorfias ou malformações minor(na face, nos pavilhões auriculares, naimplantação do cabelo, nas mãos e pés,nos genitais) que no seu conjunto ca-racterizem um determinado síndromegenético ou indiciem uma perturbaçãode anomalias múltiplas que pode in-cluir o atraso do desenvolvimento.

Do mesmo modo, a associação a umabaixa estatura, de organomegalias, dedoença ou malformação em outrosórgãos ou sistemas (visual, cardiovas-cular, gastrintestinal, renal, osteoarti-cular) pode ser reveladora de uma pato-logia específica em que esteja tambémenvolvido o sistema nervoso central ecomo tal, ser causa de ADPM. Esteaspecto do exame objectivo global é fun-damental no processo diagnóstico, tão

ou mais importante como o exame neu-rológico.

O processo diagnóstico de umacriança com regressão do desenvolvi-mento, em que se põe a hipótese deuma doença neurometabólicas ouneurodegenerativa é orientado por umconjunto de factores, de que se realçam:a idade de aparecimento dos sintomas,o padrão de envolvimento relativo docórtex cerebral (epilepsia, regressãocognitiva), da substância cinzenta sub-cortical (sintomas extrapiramidais), docerebelo (ataxia), da substância branca(regressão cognitiva de instalação maistardia, sinais e sintomas das vias lon-gas de aparecimento mais precoce), oenvolvimento paralelo do sistemanervoso periférico, a associação de en-volvimento de um ou vários sistemasextra-neurológicos.

A urgência em chegar a um diagnós-tico preciso, aliada à especificidadedeste diagnóstico diferencial, exige queestas crianças sejam precocementeorientadas para uma consulta especiali-zada de neurologia pediátrica.

Quando a história pessoal ou familiarou o exame objectivo fornecerem umaorientação para o diagnóstico, podemestar indicados alguns exames ou in-vestigações complementares para oconfirmarem dependendo do caso es-pecífico.

Mesmo quando isso não sucede, al-guns exames também são necessários.Então quais exames e quando os pedirnuma criança com ADPM?

O cariotipoUm exame cromossómico feito pelasmais modernas técnicas de citogenéti-ca deve ser obtido em todas as criançasem que exista um fenotipo característi-co (de síndrome de Down, síndrome de

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EXAMES COMPLEMENTARES

DE DIAGNÓSTICO

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Turner, de Klinefelter) ou outras dis-morfias indiciadoras, sempre que hajaantecedentes familiares de ADPM semdiagnóstico. Está igualmente indicadoem todas as crianças com atraso do de-senvolvimento não explicado que no fimda anamnese e da observação nãodemonstrem quaisquer pistas diagnós-ticas.

O estudo para X-frágilO rastreio molecular para a mutação doX-frágil está indicado em crianças comantecedentes familiares de ADPM, so-bretudo nos homens da via materna ese tiverem um fenotipo sugestivo, comoa face longa com uma mandíbula proe-minente, uma macrocefalia relativa,pavilhões auriculares grandes e/ou des-colados, macrorquidia e um padrão decomportamento que pode incluir algu-ma hiperactividade e défice de empatia.

Outros estudos genéticosOutras investigações genéticas especí-ficas são reservadas para casos em queexista a suspeita clínica do respectivodiagnóstico. Por exemplo, numa criançacom atraso grave, sobretudo da lingua-gem, aloirada, braquicefálica, atáxica,com epilepsia e bem disposta deve rea-lizar-se um estudo para a síndrome deAngelman. Noutra com antecedentes dehipotonia e má progressão ponderal noprimeiro ano de vida, por dificuldadesalimentares ou com hipogenitalismoque evolui para uma hiperfagia e obesi-dade a partir dos três anos, deve procu-rar-se a síndrome de Prader-Willi. Nu-ma menina autista, que sofreu uma de-saceleração do perímetro craniano no fi-nal do primeiro ano e tem umaincapacidade na utilização pragmáticadas mãos, deve pesquisar-se a mutaçãoespecífica da síndrome de Rett. Quan-do exista um atraso maior nas com-petências visuo-espaciais do que na lin-guagem, numa criança exagerada-mente sociável, com bochechas grandese descaídas, lábio inferior proeminente,

por vezes com cardiopatia congénita ouhipocalcémia, pode estar indicado o es-tudo para a síndrome de Williams. Emoutras crianças com cardiopatia con-génita ou hipocalcémia, ou aplana-mento da região malar, fendas palpe-brais pequenas, mandíbula pequena,voz nasalada, pode estar indicado o es-tudo específico para a síndrome velo-cardio-facial.

A neuroimagemSe o diagnóstico etiológico tiver sido es-tabelecido directamente pela anamnesee observação e confirmado pelos meiosapropriados a cada caso, pode dispen-sar-se um exame imagiológico do encé-falo. Na maioria das outras crianças es-te é recomendado como parte da avalia-ção diagnostica do ADPM. A probabili-dade da imagiologia ser informativa,aumenta se estiverem presentes sinaisneurológicos focais, estigmas de umadoença neurocutânea ou uma microce-falia. Por outro lado, na ausência dequaisquer sinais, essa probabilidade ébaixa, sobretudo se o atraso for ligeiro.Quando se toma a decisão de realizarum exame de imagem para investigarum atraso, a ressonância magnética ésuperior à TAC na detecção de lesões se-quelares de pequena dimensão, altera-ções da substância branca e pequenasmalformações cerebrais, devendo as-sim ser preferida, quando disponível.

Os estudos metabólicosAs análises para pesquisa de erros ina-tos do metabolismo (como aminoáci-dos, ácidos orgânicos, lactato e amónia)trazem informação útil em apenas cer-ca de 1% das crianças com ADPM está-tico, não progressivo. Como tal, mesmoconsiderando a possibilidade (real masdiminuta) de conduzirem ao diagnósti-co de uma doença tratável, não estão in-dicados como investigações de primeiralinha. Em algumas crianças, no entan-to, a presença de certos sinais ou sin-tomas, pode aumentar a probabilidade

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de se tornarem úteis os estudos me-tabólicos (Quadro IV).

O EEGUm exame electroencefalográfico deveser obtido nas crianças com ADPM emque haja qualquer sugestão da exis-tência de crises epilépticas. Deve aindaser obtido se houver regressão do de-senvolvimento ou uma clara flutuaçãonas capacidades psicomotoras. Nosrestantes casos, não existe evidênciaque apoie a indicação para um EEG.

O chumboEmbora o chumbo seja um dos maisclaros tóxicos para o sistema nervosocentral, a sua pesquisa pode limitar-seàs raras crianças com alto risco de ex-posição ambiental a esse elemento.

As hormonas tiroideiasA quase total universalidade do diag-nóstico precoce neonatal reduziu muito

a importância de se explorar a funçãotiroideia nas crianças com ADPM. Estanão deve porém ser esquecida em cri-anças que não tenham realizado o ras-treio ou que evidenciem estigmas dedisfunção tiroideia.

Observações especializadas Na maioria das crianças com ADPMexiste vantagem na realização de umrastreio oftalmológico. Por outro lado,em casos específicos pode haver neces-sidade de uma avaliação por outras es-pecialidades, como endocrinologia oucardiologia pediátricas

Em resumo, a investigação etiológicade uma criança com ADPM, pode es-quematizar-se em quatro fases, que po-dem não se processar necessariamentepor ordem sequencial.

Em todo o caso, a primeira fase cons-titui sempre a investigação clínica bási-ca, aplicável a todas as crianças e queinclui uma anamnese pré-, peri- e pós--natal detalhada, os antecedentes fa-miliares e árvore genealógica e o examefísico com especial destaque para a so-matometria, o exame neurológico, a pelee a procura de dismorfias e malforma-ções. Eventualmente, devem ainda sersubmetidas a uma avaliação oftalmo-lógica e audiológica.

A partir dos dados da investigaçãoclínica básica obtêm-se logo três gruposde crianças:

Aquelas em que suspeita de umadoença progressiva, seja metabólica oudegenerativa, por haver regressão dodesenvolvimento ou antecedentes fa-miliares de uma dessas doenças, devemser orientadas rapidamente para umaconsulta especializada de neurologiapediátrica, para uma investigação etio-lógica específica;

As que aparentem um ADPM estáti-co, cuja causa provável seja logo apa-

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EDITORIAISCONCLUSÃO E RECOMENDAÇÕES

QUADRO III

CAUSAS DE ATRASO MENTAL «NÃO PROGRESSIVO»

Alterações cromossómicas• Trissomia 21• X-frágil• OutrosSíndromes congénitos específicos e associações de

anomalias congénitasSíndromes neurocutâneos• Esclerose tuberosa• NeurofibromatoseMalformações cerebraisLesões sequelares pré-natais• Infecções intra-uterinas (grupo TORCH)• Teratogéneos (fármacos, diabetes,

hiperfenilalaninemia)• Lesões vascularesEncefalopatia hipoxico-isquémica perinatalLesões sequelares pós-natais• Infecciosas• Vasculares• TraumáticasDesconhecido, idiopático ou familiar

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rente pela evolução, antecedentes ouobservação, devem realizar exames es-pecíficos (cromossómicos, genéticos,imagiológicos ou outros) para a respec-tiva patologia (por ex. trissomia 21, sín-drome do X-frágil, síndromes neuro-cutâneos ou outras doenças genéticas);

As crianças que aparentem igual-mente um ADPM estático, mas não apre-sentem qualquer pista diagnóstica apóscompletarem a investigação clínica bási-ca, devem ainda assim realizar um exa-me citogenético e eventualmente umapesquisa de X-frágil. Poderá ainda estarindicado nesta fase um exame imagio-lógico encefálico, sobretudo se houver si-nais neurológicos, história de problemasperinatais ou alteração da forma ou di-mensões do crânio cranianas.

A consultadoria ou referência a umaconsulta de neurologia pediátrica e/oude genética clínica com experiência nes-ta área pode ser útil em caso de dúvida.

Em casos já seleccionados pode es-tar indicada uma investigação metabóli-ca (Quadro IV). O mesmo se poderá apli-

car ao electroencefalograma, ao dosea-mento do chumbo ou a estudos en-docrinológicos.

Um número considerável de crian-ças, depois de todo o processo diagnós-tico julgado adequado caso a caso – quepode ter incluído apenas a primeira fasede investigação básica clínica ou, pelocontrário, uma longa lista de investiga-ções – fica ainda sem um diagnósticoetiológico definido. Estas, como todas asoutras, devem ser sinalizadas e orienta-das para obterem as medidas pedagógi-cas e de reabilitação apropriadas ao seugrau e tipo de limitação que são habi-tualmente independentes da etiologia.No entanto, devem manter-se umacompanhamento clínico activo, já queuma determinada patologia pode nãoser evidente numa determinada idadee tornar-se clara com a evolução e/oucom o desenvolvimento do conheci-mento técnico ou científico.

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Endereço para correspondênciaAvenida das Túlipas 36 E1495-159 Algés

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QUADRO IV

ELEMENTOS PARA UMA EVENTUAL INVESTIGAÇÃO METABÓLICA

Baixa estaturaDoença recorrenteEpilepsiaAtaxiaRegressão DPMHipotoniaFacies grosseiroAlterações oftalmológicasPerturbação recorrente HepatoesplenomegaliaAcidose láctica HiperuricémiaHiperamoniemiaHipocolesterolemiaAlterações estruturais do cabeloSurdezAlterações esqueléticasAlterações cutâneas

EDITORIAISBIBLIOGRAFIA