AUDIOVISUAL: PROJETO REPERCUÇÕES E DEMANDAS · relação ao projeto de lei de criação da...

32
AUDIOVISUAL: PROJETO REPERCUÇÕES E DEMANDAS VALÉRIO C. BRITTOS * ([email protected]) PAOLA M. NAZÁRIO ** ([email protected]) Resumo: Este trabalho analisa o projeto de lei do audiovisual, elaborado pelo Ministério da Cultura brasileiro, em 2004, em diálogo com alguns segmentos sociais. Nesta problemática são reveladas as articulações da sociedade, do Estado, especialmente no seu papel regulador, e dos operadores televisivos. A partir daí, são discutidas a disputa entre a lógica de espaço público e de mercado, compreendendo a reação da comunicação de massa relacionada às ações regulamentadoras. Os resultados obtidos até o momento, analisando os movimentos em relação ao projeto de lei de criação da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav), marca a rendição do governo à pressão da mídia, como também a forte resistência do setor de comunicação para qualquer tipo de regulamentação governamental. Palavras-chave: Políticas de comunicação; economia política da comunicação; processos midiáticos. Abstract: This paper analises the audiovisual law project, elaborated by the Brazilian Ministry of Culture, in 2004, since conversation with several social segments. In this problematic are revealed the articulations of the society, of the State, particularly in it´s regulative role, and the televisive operators. In this way, are discussed the dispute between the public space logic and the market, comprehending the mass comunication reaction related to the State’s regulation actions. The results obtained until the moment, analysing the State´s regulative role, relating to the law project of Ancinav’s creation, mark the government’s surrender to the media´s pressure, as well as strong resistence of the communication sector to any kind of governmental regulamentation. Key words: Communication policies; political economy of communication; media processes. * Professor no Programa de Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Faculdade de Comunicação (FACOM) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). ** Bolsista de Iniciação Científica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e acadêmica em Comunicação Social – Jornalismo da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS).

Transcript of AUDIOVISUAL: PROJETO REPERCUÇÕES E DEMANDAS · relação ao projeto de lei de criação da...

AUDIOVISUAL: PROJETO REPERCUÇÕES E DEMANDAS

VALÉRIO C. BRITTOS* ([email protected])

PAOLA M. NAZÁRIO** ([email protected])

Resumo: Este trabalho analisa o projeto de lei do audiovisual, elaborado pelo Ministério da Cultura brasileiro, em

2004, em diálogo com alguns segmentos sociais. Nesta problemática são reveladas as articulações da sociedade, do Estado, especialmente no seu papel regulador, e dos operadores televisivos. A partir daí, são discutidas a disputa entre a lógica de espaço público e de mercado, compreendendo a reação da comunicação de massa relacionada às ações regulamentadoras. Os resultados obtidos até o momento, analisando os movimentos em relação ao projeto de lei de criação da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav), marca a rendição do governo à pressão da mídia, como também a forte resistência do setor de comunicação para qualquer tipo de regulamentação governamental.

Palavras-chave: Políticas de comunicação; economia política da comunicação; processos midiáticos.

Abstract: This paper analises the audiovisual law project, elaborated by the Brazilian Ministry of Culture, in

2004, since conversation with several social segments. In this problematic are revealed the articulations of the society, of the State, particularly in it´s regulative role, and the televisive operators. In this way, are discussed the dispute between the public space logic and the market, comprehending the mass comunication reaction related to the State’s regulation actions. The results obtained until the moment, analysing the State´s regulative role, relating to the law project of Ancinav’s creation, mark the government’s surrender to the media´s pressure, as well as strong resistence of the communication sector to any kind of governmental regulamentation.

Key words: Communication policies; political economy of communication; media processes.

* Professor no Programa de Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Faculdade de Comunicação (FACOM) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). ** Bolsista de Iniciação Científica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e acadêmica em Comunicação Social – Jornalismo da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS).

2

3

INTRODUÇÃO

O objetivo deste texto é apresentar e discutir criticamente os principais artigos do

projeto de lei do Audiovisual, apresentado pelo governo brasileiro para a regulamentação do

setor cinematográfico e de televisão.1 Ao mesmo tempo, é assinalada a repercussão do projeto

junto aos principais veículos de comunicação do país, que, sem orquestração, mas numa

coligação de interesses, conjuntamente posicionaram-se contra a proposta. Em meio a isso,

discutem-se temas fundamentais para a sociedade brasileira, como o controle público dos

conteúdos das indústrias de TV e cinema e as formas de incentivo a esses setores. O projeto

foi conhecido pela sociedade em cinco de agosto de 2004, quando foi divulgado pelo sítio

Tela Viva.2 A partir de então, foi discutido (pelo menos entre os atores mais interessados) e

alterado significativamente, sendo, na seqüência, enviado para o Conselho Superior de

Cinema (CSC), onde permaneceu pelo menos até o início do segundo semestre de 2005. Ante

este atraso nas definições no plano do Executivo e seus órgãos, o envio para o Congresso

Nacional foi postergado, o que repercutirá em sua votação, a qual não ocorrerá antes de 2006.

No transcorrer dessas tramitações o governo optou por retirar do projeto todos os capítulos

relativos à normatização dos conteúdos audiovisuais. Com essas modificações, o projeto

Ancinav tornou-se menos interventora e mais limitada. Ainda que essa regulamentação

econômica sirva, entre outras coisas, para garantia da concorrência de mercado, e que possa

vir a propiciar o incentivo estrutural do setor, o projeto ficou restrito a competências de

financiamento e fiscalização, ordenando as atribuições de regulamentação editorial para um

futuro projeto de Lei de Comunicação Eletrônica de Massa.

A iniciativa legal foi revisada duas vezes a partir da minuta original: a primeira no dia

30 de agosto de 2004, logo após o início da forte pressão da imprensa quanto ao projeto, onde

foram suprimidos alguns dos artigos mais polêmicos; e a segunda depois do período de

1 BRASIL. Ministério da Cultura. Minuta original do projeto pela criação da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual. Disponível em: <www.cultura.gov.br/projetoancinav>. Acesso em: 19 ago. 2004. 2 REGRAS para controle de coligação poderão ser criadas. Tela Viva News, São Paulo, 19 ago. 2004. Disponível em: <http://www.telaviva.com.br/telaviva/News.asp?ID=48476>. Acesso em: 19 ago. 2004.

4

consulta pública e debate com o CSC, no dia 11 de novembro de 2004. As modificações mais

relevantes estão em uma terceira versão, que não está disponível no sítio do Ministério da

Cultura, e foram somente apresentadas por atores interessados no projeto, através de artigos

na internet e veículos de comunicação. No presente estudo, para a análise do projeto de lei

utiliza-se do destaque dos artigos para ilustrar suas prerrogativas.

O projeto deverá substituir e ampliar os poderes da Agência Nacional de Cinema

(Ancine), criada pelo Governo Fernando Henrique Cardoso (FHC), em 2001, transformando-a

em Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav). Também redimensionará a

posição e os valores da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica e

Audiovisual Brasileira (Condecine), transformará o Conselho Superior de Cinema (CSC) em

Conselho Superior do Audiovisual (CSA), criará o Fundo Nacional para o Desenvolvimento

do Cinema e do Audiovisual Brasileiros (Funcinav) e outros mecanismos de fomento, como o

Programa de Apoio ao Desenvolvimento do Cinema Brasileiro (Prodecine), o Programa de

Apoio ao Desenvolvimento do Audiovisual Brasileiro (Prodav) e o Programa de Apoio ao

Desenvolvimento da Infra-Estrutura do Cinema e do Audiovisual (Pro-infra). No mesmo dia

de sua apresentação pública ele foi conhecido pelos membros do CSC. Através desta

proposição é possível avaliar a conduta do Governo brasileiro na questão audiovisual e, ainda,

acompanhar o comportamento midiático relativamente às tentativas de sua regulamentação,

tendo em vista a reação das empresas de comunicação.

FISCALIZAÇÃO E REGULAMENTAÇÃO

As palavras do ministro Gilberto Gil reivindicam a idéia de fiscalizar e regular o setor

audiovisual: na exposição de motivos elaborada para o projeto, o ministro ressalta que “é de

fundamental importância estabelecer, por um lado, os meios de controle e fiscalização das

atividades audiovisuais, e por outro, mecanismos que impulsionem o desenvolvimento deste

setor da sociedade brasileira, já que sua função social ultrapassa a simples informação relativa

a acontecimentos ou temas da nossa sociedade”.3

A regulamentação do audiovisual é essencial devida à abrangência do setor na

economia nacional e também por seu conteúdo contribuir fortemente na construção das

identidades, conhecimento e imaginário social dos brasileiros, já que aquilo que é midiatizado

é o que conforma a realidade social, incidindo sobre a conduta de cada cidadão e, em

decorrência, as representações e o desenvolvimento do país. Na sociedade contemporânea, há

3 BRASIL. Ministério da Cultura. Exposição de motivos do projeto pela criação da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual. Disponível em: <www.cultura.gov.br/projetoancinav/arquivos/Proposta%20Em.pdf>. Acesso em: 19 ago. 2004.

5

uma forte tendência para que a mídia torne-se o principal espaço de socialização, conforme

assinalam Braga e Calazans.4 Concordando com a ponderação dos autores, acrescenta-se que

tal papel dos meios comunicacionais é muito mais intenso no caso da televisão, cuja

funcionalidade não raro extrapola os seus próprios limites e mesmo o de outras instituições

formais, como a escola, a qual tem muito de suas atribuições subtraídas pelos sistemas

televisivos, o que contribui, por seu turno, para a crise dos modelos convencionais de

representação.

Diante do comportamento dos meios audiovisuais, os quais se cristalizam nas amarras

da globalização e trafegam pelos setores da política, economia e cultura do país, é

imprescindível uma diversidade maior de produção audiovisual, para que assim o Brasil injete

mais conteúdos no meio globalizado. Esta é uma veia para o país deixar de ser

primordialmente fonte de absorção de condutas globalizantes, as quais reduzem a diversidade,

enfraquecendo o acervo cultural nacional e ampliando a falta de identificação do povo

consigo mesmo e com sua nação.

Sendo assim, a regulamentação é um artifício criador de meios para que o brasileiro

tenha possibilidades de ver e produzir sua própria imagem. Dessa maneira, a intervenção

estatal é fundamental para estabelecer um contexto efetivamente democrático e plural.

A necessidade de regulamentar o audiovisual, em suas características econômicas e

sociais, é premente, tendo em vista sua enorme dimensão, com forte tendência à

oligopolização, já que, no cenário atual, a televisão aberta nacional é controlada

essencialmente por cinco conglomerados. Concomitantemente, o setor cinematográfico do

país cada vez mais tem sua produção em parceria com os grandes estúdios dos Estados

Unidos (EUA) ou com a Globo Filmes, braço das Organizações Globo para a área, com tudo

o que isto possa representar em termos de oligopolização da produção cultural de um país.5

Este tipo de mercado impede a livre concorrência, impossibilitando a circulação livre de

produções nacionais, através da criação de fortes barreiras à entrada.

Além disso, a regulamentação social do audiovisual justifica-se porque seus conteúdos

conduzirem à história do cotidiano, para uma grande maioria da população, já que os temas

passam a ser tratados e deixam de ser a partir posição desses meios. O audiovisual atualmente

constrói uma teia de atuação permeando conceitos e valores, sendo imprescindível seu

4 Ver BRAGA, José Luiz; CALAZANS, Regina. Comunicação e educação: questões delicadas na interface. São Paulo: Hacker, 2001. 5 Para melhor conhecer o papel da Globo no cinema brasileiro, como produtora, recomenda-se o estudo de SIMIS, Anita. A Globo entra no cinema. BRITTOS, Valério; BOLAÑO, César (Orgs.). Rede Globo: 40 anos de poder e hegemonia. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2005. p. 341-355.

6

distanciamento da lógica privada, saindo da agenda pré-estabelecida por poucos atores

sociais, onde prevalecem interesses econômicos, por regra incompatível com o bem-estar

geral da sociedade.

O projeto de lei defende a regulamentação, assinalando ser este procedimento

“essencial para garantir o desenvolvimento e a preservação do patrimônio cultural e assegurar

o direito dos brasileiros de ver e produzir sua imagem, fortalecendo a diversidade cultural”,6

já que no Brasil tem-se uma sociedade múltipla, composta por diferentes expressões

simbólicas, econômicas e sociais. Mas, no entanto, a mídia tende a representar os grupos

sociais que lhe convém e da forma que lhe condiz. A apropriação privada da cultura, nesse

sentido, é incompatível com a idéia de uma sociedade democrática. O cenário a ser

construído, a partir da regulamentação, deveria estender o patrimônio cultural a todos os

grupos, já que estes são partes interessadas em manifestar-se e acompanhar as formas de

expressão de sua própria sociedade.

Segundo Márcio Pochmann, “os fatores midiáticos que reforçam a exclusão” têm

grande influência nesse debate, citando “a publicidade que enaltece os valores do consumo, a

novela da TV Globo que cristaliza as diferenças entre as classes sociais e o jornalismo que

nem sempre aborda o assunto como deveria”.7

A mídia, transformando informação social em objeto de consumo, trata o audiovisual

como um setor igual aos outros. Mas o audiovisual se trata de um produto diferenciado, o que

torna mais imprescindível a regulamentação, por sua grande influência naquilo que os

cidadãos conhecem sobre si próprios e da sociedade em que vivem. Dessa maneira não pode o

Estado ausentar-se da sua responsabilidade como instituição reguladora dos interesses

públicos, sendo talvez, o audiovisual o setor de maior importância para a construção do

conhecimento de cada cidadão.

A idéia de interesse público estava presente no artigo 43, o qual foi retirado logo na

primeira versão, cedendo às pressões da grande mídia em caracterizar este dispositivo como

ditatorial e ameaçador à livre expressão da imprensa. Este artigo referia-se a algo importante

em todo e qualquer processo de regulamentação de uma nação democrática, dizendo que:

6 BRASIL, Ministério da Cultura. Exposição de motivos do projeto pela criação da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual. Disponível em: <www.cultura.gov.br/projetoancinav/arquivos/Proposta%20Em.pdf>. Acesso em: 19 ago. 2004. 7 POCHMANN, Mario. Atlas de exclusão do Brasil: os ricos do Brasil. São Paulo: Cortez, 2004. p. 47.

7

“Compete à Ancinav a regulação e fiscalização da exploração das atividades

cinematográficas e audiovisuais pelas prestadoras de serviços de radiodifusão de som e

imagem”.8

O temor das indústrias culturais era serem fiscalizadas, na medida em que seus atos

são tão monitorados socialmente, hoje, como uma empresa de bens pesados.

Quanto à atuação do Estado no assunto audiovisual, nota-se que o Brasil

tradicionalmente não desenvolve políticas democráticas de comunicação. Ou manteve uma

política autoritária, própria do regime militar que governou o país de 1964 a 1985, quando

construiu toda uma infra-estrutura de comunicações, ao lado de financiamentos e publicidade,

canalizadas especialmente pela Globo. Ou movimentou-se reativamente a partir das dinâmicas

globalizadas e globalizantes, privilegiando a telefonia e não atualizando a legislação sobre

rádio e TV, como ocorreu no Governo FHC (1994-2002). Enquanto parte das

telecomunicações, ou seja, a telefonia, passou a ser regulamentada pela Lei Geral de

Telecomunicações (LGT), em 1997, a televisão ficou com o velho Código de

Telecomunicações, de 1962, anacrônico e defasado. Isto apesar de haver iniciativas

acadêmicas e de movimentos sociais pedindo atualização regulamentar e algum nível de

controle social sobre os conteúdos audiovisuais.

Ante a imobilidade do Ministério das Comunicações, tanto no Governo FHC, quanto

no Governo Lula, de intervir sobre estas prerrogativas, não elaborando uma lei para regular as

atividades audiovisuais,9 o Ministério da Cultura ocupou-se do vácuo e apresentou ao

Governo uma tentativa de regulamentar cinema e televisão através de uma agência, apesar de

não ter tradição neste tipo de assunto. Preparado pelo Ministério da Cultura e pela Casa Civil,

com a colaboração de outros ministérios, o novo projeto de Lei para regular o cinema e o

audiovisual foi alvo de consulta pública.

Não obstante ser um ato concebido nos marcos democráticos, o processo de consulta

pública deveria ser posterior ao debate sobre o tema com a sociedade. Como este debate, em

termos públicos, praticamente inexistiu, a participação da sociedade foi restrita, já que os

principais participantes da consulta pública foram da área de comunicação e cultura. Este

8 BRASIL. Ministério da Cultura. Minuta original do projeto pela criação da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual. Disponível em: <www.cultura.gov.br/projetoancinav>. Acesso em: 19 ago. 2004. 9 Apesar de uma Lei de Comunicação Eletrônica de Massa ter sido prometida pelo falecido ministro Sérgio Motta (Comunicações), o qual também pretendia unificar a fiscalização, outorga e regulamentação de telefonia, rádio e televisão (aberta e por assinatura) em um único organismo, a Agência Nacional de Comunicações (Anacom), que absorveria as tarefas da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). Em 2005 o Governo Lula, através da Casa Civil da Presidência da República, retomou formalmente a dinâmica de formulação de uma Lei de Comunicação Social, visando dotar a mídia de um quadro regulatório atualizado, até o final o final do mandato presidencial iniciado em janeiro de 2003.

8

debate não ocorreu nem durante o curto espaço de tempo da vigência da consulta pública,

nem no período prévio de elaboração do documento, seguindo a tradição brasileira de não

midiatizar os temas comunicacionais. No Brasil não há controle público na comunicação, nem

em outros campos sociais, com baixa participação da sociedade civil no debate cotidiano

sobre a gestão do interesse público. O fato de a sociedade ser pouco ativa, nas demandas

diárias e até em dados momentos cruciais de sua existência, pode encontrar argumentos no

restrito fornecimento de informações do campo científico-tecnológico, como salienta

Sayonara Leal: “a publicização de informações são essenciais para a formulação de um

posicionamento crítico e sua conseqüente participação nos processos decisórios que afetam o

social, o político e o econômico”. 10

Os interessados de vários setores da sociedade puderam acessar a minuta do projeto,

enviar sugestões e discutir posições através do sítio do Ministério da Cultura, entre 11 de

agosto 2004 e primeiro de outubro de 2004, período de disponibilização em consulta pública.

Aproximadamente 500 contribuições, recolhidas em consulta pública foram encaminhadas

pelo Ministério da Cultura ao Conselho Superior de Cinema.

CONSULTA E REPERCUSSÃO

Dos atores que participaram da consulta pública destacam-se roteiristas, diretores,

artistas, técnicos, produtores independentes de televisão, produtores e diretores de cinema,

setores de infra-estrutura da área audiovisual, produtoras, TVs abertas e por assinatura,

distribuidores, exibidores, intersetoriais de cinema e audiovisual, provedores/servidores de

internet, telefonia, jogos eletrônicos, associações de direito autoral, setores da publicidade,

agências de regulamentação, associações de classe, escolas de cinema e televisão,

pesquisadores, fóruns de comunicação social, centros de pesquisa, cineclubes, advogados e

instituições como o Ministério Público Federal. O processo resultou em 299 páginas com

colaborações de pessoas físicas de diversas áreas, como também da área da cultura.

No quadro 1 identifica-se a participação dos atores da consulta pública, de maneira a

melhor perceber-se a atividade de tais agentes, aparecendo as intersetoriais do cinema como o

setor mais ativo, com 24,13%. Essa instituição compreende Grupo Intersetorial de Produção,

Exibição, Distribuição, Comercialização, Infra-estrutura Técnica e Televisão, que tem como

10 LEAL, Sayonara. A imaginação de um controle público a partir do regulamento do setor de telecomunicações no Brasil: a utilização dos aparatos regulatórios da Agência Nacional de Telecomunicações pelo usuário-cidadão. In: JAMBEIRO, Othon; BOLAÑO, César; BRITTOS, Valério (Orgs.). Comunicação, informação e cultura: dinâmicas globais e estruturas de poder. Salvador: Edufba, 2004. p. 117-132. p. 119.

9

membros sindicatos e entidades empresariais, algumas importantes, como a

Associação Brasileira de Empresas de Rádio e Televisão (Abert) e a Associação das Empresas

Exibidoras e Cinematográficas Operadoras (Abraplex). Além dessas organizações, também

integram o Grupo Intersetorial o Congresso Brasileiro de Cinema e o III Catarina Festival

Documentário.

Quadro 1. Participação dos proponentes na consulta pública

Instituição Participação (%)

Jogos eletrônicos, vídeos domésticos,

produtores independentes de televisão, lista

de discussão na internet, agências de

regulação, instituição publica.

1,72

Distribuidores, TV aberta, fórum e

encontro de comunicação social, advogados. 3,44

Provedores e servidores de internet. 5,17

Associações de produtores e diretores

de cinema, cooperativas e associações de

produtoras cinematográficas, associações de

exibidores, órgão de publicidade, artistas e

técnicos.

6,89

Empresas de infra-estrutura

audiovisual, entidades de pesquisa,

documentário e preservação do audiovisual.

10,3

Televisão por assinatura. 12

Telefonia. 15,5

Direito autoral. 20,6

Intersetoriais do cinema e do

audiovisual. 24,13

10

Fonte: MINISTÉRIO DA CULTURA. Lista de proponentes. Disponível em:

<www.cultura.gov.br/projetoancinav>. Acesso em: 19 ago. 2004; cálculos da pesquisa.

Vários foram os tons das posições apresentadas, em forma de comentários gerais e

propostas direcionadas estritamente a artigos da minuta do projeto. Ganharam destaque no

processo de consulta pública a redução das condecines, a delimitação dos artigos regulatórios

referentes ao tempo que as emissoras deveriam destinar à produção independente, a

demarcação de fronteiras de atuação da Ancinav e Anatel e o estímulo à formulação de uma

Lei Geral de Comunicação de Massa, entre muitas outras questões relevantes abordadas pela

sociedade.

Uma das propostas apresentadas em consulta pública deve ser destacada. Trata-se de

um contra-projeto assinado por nomes importantes do setor audiovisual nacional, com a

participação ativa e significativa da Rede Globo em sua elaboração.11 A proposta reduzia

enormemente as atribuições da futura Ancinav, retirando qualquer referência ao controle

sobre a televisão, anulando a taxação das salas de cinema, locação de filmes e contratação de

publicidade televisiva e eliminando a necessidade de um espaço na TV para a produção

independente. A proposição da Globo tornou a Ancinav um órgão fiscalizador das taxas e da

distribuição dos valores estipulados nos programas de apoio ao cinema e audiovisual, sem

poder de regular a exploração do mercado. Ao que tudo indica as intenções da significante

atuação da Rede Globo nesta proposta obtiveram êxito, já que no dia 13 de janeiro de 2005 o

senador Aluízio Mercadante (PT-SP) anunciou que a Ancinav terá apenas atribuições de

financiamento e fiscalização, transferindo o caráter regulador da agência para a futura Lei de

Comunicação de Massa.12

A minuta do projeto foi objeto de reportagens, artigos e editoriais na imprensa,

emissoras de rádio e televisão. Este é um dos pontos de interligação entre a condição da mídia

no mercado brasileiro e sua relação com o Estado, ante sua capacidade de pressionar,

vendendo à sociedade um construto idêntico à sua própria visão da realidade. O projeto foi

elaborado através de um processo de consulta e debate com diferentes segmentos da

sociedade civil, nos limites da democracia capitalista, com baixa participação popular e uma

cobertura midiática claramente contrária à idéia.

11 BRASIL. Ministério da Cultura. Consulta Pública. Disponível em: <http://200.198.204.70/projetoancinav/artigoseopinioes/participe.php>. Acesso em: 1 out. 2004. 12 SOUZA, Ana Paula; LÍRIO, Sérgio. A Rede Globo ganha outra. Carta Capital, São Paulo, n. 326, p. 26, 26 jan. 2005.

11

Segundo o jornal O Estado de S. Paulo,13 o Conselho Superior de Cinema, em reunião

no dia 14 de agosto de 2004, tratou da possibilidade de alterar o nome da futura agência de

Ancinav para Anav (Agência Nacional do Audiovisual), por ser o termo audiovisual amplo o

suficiente, conforme o artigo 38 do projeto: “Produto de fixação ou transmissão de imagem

com ou sem som, que tenha a finalidade de criar a impressão de movimento

independentemente dos processos de captação, dos meios utilizados para a sua veiculação,

reprodução, transmissão ou difusão do produto”.14 Tal definição vale para cinema, televisão

(por assinatura ou aberta) e rádio, não cabendo, portanto, utilizar os termos “cinema e

audiovisual” (como consta no título do projeto), pois o segundo engloba o primeiro. Quanto a

esta reunião, não foi divulgado oficialmente seu resultado, ficando pendente se a modificação

será incorporada ou não no projeto. Este problema nas definições pode acarretar problemas

em uma série de itens, como futuras decisões quanto a financiamento. Erro quanto à definição

também se encontra na LGT, que restringe telecomunicações a serviços de telefonia e

transmissão de dados (deixando de lado rádio e TV, ao contrário da tendência internacional).

No primeiro artigo do projeto encontram-se prerrogativas de todo Estado, de

intervenção nas atividades econômico-sociais, efetividade ampliada quando se refere a um

ente estatal democrático. Este artigo expõe que compete à União, através do Conselho

Superior de Cinema e do Audiovisual, organizar a exploração de atividades cinematográficas

e audiovisuais. Tornar pública a realidade social e a cultura de um povo não é privilégio

unicamente de poucas empresas, como acontece atualmente no Brasil, devendo ser planejada

pela própria sociedade. É importante salientar que os princípios colocados no projeto de lei

não são ordenamentos governamentais ou partidários, mas sim, pertencentes a toda a

sociedade brasileira. Todos os membros sociais têm direito à fruição de obras

cinematográficas e audiovisuais com finalidades educativas, artísticas e informativas, atentas

à valorização da cultura nacional e local, bem como suas peculiaridades regionais.

A preocupação com a formação de monopólio e oligopólio, nas atividades

audiovisuais, está presente nos artigos sexto e sétimo do projeto, e seu combate é motivo de

preocupação entre os proprietários de televisão, principalmente, pois trata da função social da

propriedade, como abertura da concorrência e repressão ao abuso do poder econômico por

parte dos meios. Este fator é aplicado muito bem ao formato comunicacional brasileiro, já que

o poder de veicular o patrimônio cultural está nas mãos de poucas corporações, como é o caso

13 ANCINAV deve virar só ANAV. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 17 de set. 2004. 14 BRASIL. Ministério da Cultura. Minuta original do projeto pela criação da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual. Disponível em: <www.cultura.gov.br/projetoancinav>. Acesso em: 19 ago. 2004.

12

da Rede Globo de Televisão, a qual detém a fatia predominante da audiência televisiva no

Brasil, cujos dados anuais consolidados apontam, em 2003, para 55%, no horário

compreendido entre sete e 24 horas, contra 20% do SBT e 8% da Record, respectivamente o

segundo e terceiro colocados.15

No Título I da minuta original estava prevista a substituição do Conselho Superior de

Cinema, ativo na atual agência reguladora, a Ancine, para Conselho Superior do Cinema e do

Audiovisual (CSAV), para servir à Ancinav (ou Anav). Já na segunda revisão, por

prerrogativas já tratadas referentes à nomenclatura, a denominação foi alterada para Conselho

Superior do Audiovisual (CSA), órgão imbuído de fiscalizar as atividades de regulamentação,

planejamento e aprovação de propostas de políticas públicas, assim como estabelecer o

percentuais de aplicação da verba de arrecadação do Condecine e outros fundos de

financiamento. O principal comprometimento desse conselho é a responsabilidade de

desenvolver e aplicar algum tipo de política nacional que incentive e valorize o patrimônio e a

diversidade cultural. Este conselho terá seus planejamentos executados pelo Ministério da

Cultura, mas está veiculado à Casa Civil, reiterando uma atitude política e estratégica do

Governo, já que esse órgão poderia perfeitamente pertencer ao Ministério da Cultura.

O conselho é um órgão colegiado que irá discutir a preposição e formação de políticas

para a fiscalização e atuação direta da Ancinav. Na segunda versão é estabelecido que os

membros do Conselho Diretor devam ser brasileiros natos ou naturalizados, possuidores de

elevado conceito e conhecimentos no campo de atividade da Ancinav, sendo escolhidos pelo

presidente da República, após aprovação pelo Senado Federal, nos termos da alínea f do

inciso III do art. 52 da Constituição Federal.16

O artigo 39 trata de outro ponto bastante fundamental para o desenvolvimento do

cinema e do audiovisual brasileiro: nele fica claro que as funções editoriais, de seleção e

direção da programação têm que ser exercidas em território brasileiro, tratando-se de empresa

nacional, conforme o conceito originalmente contido no artigo 171 da Constituição Federal,

hoje revogado. Segundo o projeto:

Empresa brasileira é aquela constituída sob as leis brasileiras, com sede e

administração no país, cuja maioria do capital total e votante seja de titularidade

direta e indireta de brasileiros, os quais devem exercer em território nacional, as

15 GRUPO DE MÍDIA DE SÃO PAULO. Mídia dados 2004. São Paulo, 2004. p. 159. 16 BRASIL. Ministério da Cultura. Minuta da segunda versão pela criação da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual. Disponível em: <http://200.198.204.70/projetoancinav/arquivos/MINUTA_REVISADA_PELO_COMITE_DA_SOCIEDADE_CIVIL.pdf>. Acesso em: 16 nov. 2004.

13

funções editoriais, de seleção e direção da programação. 17

Com a necessidade de adequar as novas demandas do mercado audiovisual à

sociedade, são necessárias políticas que defendam o produto nacional, já que, no Brasil, assim

como na maior parte do mundo, há um privilégio de exibição de filmes norte-americanos.

Diante disso, o indicador de ocupação de salas por produtos internacionais, no território

nacional, chega a 65%.18 Na televisão as realizações nacionais sobrepõem-se, mas, na TV

paga, há uma predominância de canais que transmitem direto dos EUA, sem

comprometimento com a cultura e o desenvolvimento social do país.

TERCEIRIZAÇÃO E RECURSOS

A produção independente, hoje tão carente de incentivos, encontrava no projeto uma

esperança de crescimento. O projeto do audiovisual estabelecia que um percentual da

programação televisiva fosse ocupado por atrações que não sejam realizadas pela própria

emissora. No Brasil, ao contrário da Europa e dos Estados Unidos, há uma tradição da própria

operadora produzir a maioria de seus programas. Com isso, há uma introjeção e pouca

circulação do conhecimento sobre o audiovisual, tanto que só mais recentemente, quando os

profissionais brasileiros passaram a circular de uma emissora para outra é que a forma de

fazer TV própria da Globo passou a ser mais conhecida das concorrentes. Mas a própria

Globo terceiriza muito pouco do que apresenta, além de conteúdos estrangeiros. A

preocupação pela produção independente está no cerne de todas as sociedades que valorizam

o acervo cultural do seu país. Importante salientar que a produção independente é algo

imprescindível para o fortalecimento do conteúdo cultural de uma sociedade, como também

para incentivar os setores econômicos envolvidos, com o crescimento da geração de

emprego.19

17 BRASIL, op. cit. 18 BRASIL, Giba Assis. Palestra concedida pelo então membro do Conselho Superior de Cinema. Porto Alegre, 27 set. 2004. 19 A importância da produção independente está alicerçada no projeto de lei 256/91, da deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ), a qual estabelece percentuais mínimos de regionalização da programação cultural, artística e jornalística e da produção terceirizada, nas emissoras de rádio e TV, regulamentando o inciso III do artigo 221 da Constituição Federal. Inicialmente a iniciativa propunha 30% de conteúdo regional por dia, entre as 7 e 24 hs, mas depois de tratativas com o Senado Federal, o percentual de 30% foi reduzido para 12%, 10% e 7%, respectivamente, de acordo com o número de televisores. O projeto engloba a exibição de uma quantidade fixa de filmes brasileiros por mês nas emissoras abertas. Para melhor debater o assunto, foi criada, no âmbito do Conselho de Comunicação Social, uma Comissão de Regionalização e Qualidade da programação. O projeto tramita desde o final de agosto de 2004 no Senado Federal, já como projeto de lei da Câmara (PLC 59/2003). Sobre o mesmo tema, a lei 8.977, de 1995 (BRASIL. TV Senado. Lei 8.977, de 6 de janeiro de 1995, que dispõe sobre o serviço de TV a Cabo e dá outras providências. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/tv/conheca/legislaçao/lei8977capi.asp>. Acesso em: 13 mar. 2005.), a chamada Lei do Cabo, dispõe que a operadora de TV a cabo, deve destinar 30% do seu conteúdo para produções audiovisuais proveniente de outros grupos. A Lei do Cabo é mais democrática, em relação as tentativas de regulamentação da

14

Mesmo diante da importância do conteúdo independente para o país, o comitê civil do

Conselho Superior de Cinema decidiu retirar do projeto o artigo 90, o qual estabelecia que

emissoras de televisão e empresas de telecomunicações deveriam firmar, com o Ministério da

Cultura e com a agência, um compromisso anual sobre a oferta de conteúdo regional e de

produção independente. Essa era a única referência que o texto da Ancinav fazia a alguma

possibilidade de política para a regionalização do conteúdo das televisões.

A defesa pela manutenção e expansão do emprego e da mão de obra nacional está em

pauta no projeto, pois prevê que haja autorização para a produção de obra cinematográfica

estrangeira e que serviços de dublagem ou legendagem sejam executados em laboratórios do

país, como se encontra na redação do art. 50. Por ele, também toda adaptação de obra

cinematográfica e videofonográfica publicitária deve ser realizada por empresa brasileira que

contenha registro de acordo com o regulamento da Ancinav. Além da repercussão econômica

da medida, ela contribuirá para eliminar muitas dublagens dessincronizadas e distantes da

interpretação naturalista, própria da televisão, em especial a do Brasil.

A questão cultural passa pelo fortalecimento do acervo do país, no que se refere à

produção de materiais simbólicos, acesso e fruição dessa riqueza. Relativamente à

preocupação com o desenvolvimento econômico, a meta é atingir a sustentabilidade do

audiovisual brasileiro, o que depende do predomínio do conteúdo nacional no mercado

interno e de melhores condições para sua produção, distribuição e exibição. Diante disso, a lei

pela criação da Ancinav se ocupa, entre outras atividades, da aplicação dos incentivos fiscais,

como o Condecine, o Funcinav e os Programas de Apoio, quais sejam, o Pro-infra, o

Prodecine e o Prodav.

Da versão original para a última revisão do projeto houve modificações consideráveis

nas taxações criadas originalmente. Anteriormente a Contribuição para o Desenvolvimento da

Indústria Cinematográfica e Audiovisual Brasileira (Condecine) teria como fontes geradoras

recursos essencialmente oriundos da verba de 4% sobre a receita publicitária bruta das

emissoras de TV, da taxação de filmes estrangeiros lançados no Brasil e da cobrança sobre a

bilheteria das salas de cinema. Segundo o texto, a Condecine incidiria “sobre toda contratação

de publicidade de prestadoras de serviços de radiodifusão de sons ou imagens ou de serviços

de telecomunicações que explorem a atividade audiovisual, mesmo no caso de permutas”.20

TV aberta, pois estipula canais básicos, como para os legislativos municipais, estaduais e federais, além de educativos e comunitários. BRITTOS, Valério Cruz. Recepção e TV a Cabo: a força da cultura local. 2. ed. São Leopoldo: Ed. UNISINOS, 2000. 20 BRASIL. Ministério da Cultura. Minuta original do projeto pela criação da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual. Disponível em: <www.cultura.gov.br/projetoancinav>. Acesso em: 19 ago. 2004.

15

Na versão atual foi retirado o inciso que previa cobrança de Condecine sobre a venda

de ingresso das salas de cinema e a taxa sobre os lançamentos de filmes estrangeiros foi

reduzida em 93% (de 600 mil para 40 mil reais). Além disso, houve uma diminuição de 9%

para 5% do Condecine sobre venda ou cessão para a locação de obras cinematográficas e

videográficas dirigidas ao mercado de vídeo doméstico, dado que tem referência no artigo 66.

A taxa cobrada sobre o espaço publicitário na TV, que anteriormente era de 4%, na versão

atual passou para 3%. Além destas reduções, uma colocação importante nas versões anteriores

foi retirada: um dos pontos para incentivar a produção nacional previa que a televisão aberta

deveria destinar três minutos diários à veiculação de programas de filmes nacionais.

Importante salientar a relevância da taxação sobre os filmes estrangeiros, já que

Homem-Aranha, um grande sucesso do cinema americano, rendeu R$ 6 milhões em exibição

no Brasil e pagou somente R$ 3 mil. Pela iniciativa Ancinav, a produtora norte-americana

pagaria R$ 600 mil na versão original e 40 mil na última versão apresentada, como já

explicado. Diante desses fatos, o governo providenciou novas soluções para arrecadação de

verbas, com a incidência de 2% sobre a comercialização de aparelhos eletrodomésticos, como

digital vídeo disc (DVD), videocassete, aparelhos televisores e monitores de computador que

transmitam conteúdo audiovisual. O objetivo das taxações é abrir espaço na mídia audiovisual

para a realização da cinematografia brasileira, já que “na TV, 90% dos filmes são americanos

e apenas 1% das nossas cidades mostram a produção nacional nas salas de cinema”.21

Em 2005, os cinemas têm que exibir durante 35 dias por ano produções nacionais,

sendo sete dias de filmes de longa-metragem por sala de exibição, aumentando

gradativamente os dias de veiculação e os títulos dos filmes, na medida em que amplia o

número de salas de cada grupo empresarial. Esse percentual obrigatório de apresentação do

filme nacional nas salas de cinema consta do decreto 5.328 de 30 de dezembro de 2004,

assinado pelo presidente da República, estipulando, em oito artigos, uma cota de telas para as

empresas proprietárias, locatárias, espaço ou locais de exibição pública comercial de filmes

cinematográfico.22

O produto de arrecadação da Condecine será destinado ao Fundo Nacional para o

Desenvolvimento do Cinema e do Audiovisual Brasileiro (Funcinav) e aos programas de

apoio, Pro-infra, Prodecine e Prodav. O Funcinav tem o objetivo de financiar as ações de

21 NOSSA, Leonencio. Criação da Ancinav é discutida no Senado. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 18 ago. 2004. Disponível em: <http://estadao.com.br/divirtase/noticia/2004/ago/18/276.htm>. Acesso em: 23 ago.2004. 22 BRASIL. Presidência da República, Casa Civil. Decreto n. 5.328, de 30 dez. 2004, que fixa o número de dias para a exibição de obras audiovisuais cinematográficas brasileiras no ano de 2005 e dá outras providências. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-

16

fiscalização das atividades cinematográficas e audiovisuais estabelecidas no projeto, além de

incentivá-las através da capacitação de recursos humanos e aprimoramento da infra-estrutura

de serviços. Instituído no capítulo II, o fundo será administrado pelo Ministério da Cultura,

diferente da versão original, na qual essa competência cabia ao Conselho Gestor nomeado

pelo Poder Executivo. Os financiadores serão o Banco Nacional de Desenvolvimento

Econômico e Social (BNDES) e a Financiadora de Projetos (FINEP).

Os recursos do Funcinav, segundo o projeto, serão recolhidos do produto de

arrecadação do Condecine, do fornecimento de créditos adicionais e especiais consignados no

Orçamento-Geral da União e do pagamento de multas e taxas estipuladas no projeto, além de

outras fontes de recursos destinadas para incentivos de programas de apoio às atividades

cinematográficas e audiovisuais. Três programas são criados para esta tarefa: o Programa de

Apoio ao Desenvolvimento do Audiovisual Brasileiro (Prodav) destina-se a incentivar os

projetos de produção, distribuição, programação, exibição e comercialização de produções

audiovisuais brasileiras; o Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Infra-Estrutura do

Cinema e do Audiovisual (Pro-infra) tem o objetivo de incentivar a ampliação e modernização

dos serviços de bens de capital de empresas brasileiras que atendam às necessidades

tecnológicas das produções audiovisuais nacionais; e o Prodecine centra-se em projetos de

produção independente, atuando sobre sua distribuição, comercialização e exibição.

Há de se fazer uma crítica ao projeto, por centrar-se principalmente no

desenvolvimento do setor cinematográfico, quando, na verdade, o país tem uma diversidade

considerável de outros tipos de mídias audiovisuais, os quais também necessitam de

regulamentação e incentivos. Um dos setores que fazem parte dessa diversidade é a TV

pública, atualmente com uma enorme dificuldade de sustentação, ante a crise das máquinas

estatais e as políticas neoliberais de desoneração de setores importantes do empresariado,

recaindo na limitação de recursos do Estado. Se a televisão pública é o formato televisivo que

mais se aproxima da idéia de diversidade e pluralismo, deve receber recursos públicos e do

próprio mercado para sobreviver, para que não tenha que lotear sua grade de programação em

troca de publicidade, o que a descaracterizaria e a afastaria ainda mais da idéia de

multiculturalismo.

O processo de regulamentação que está sendo abordado aqui se trata, portanto, de um

ambiente de desafios para o Estado brasileiro. Um desafio é manter a capacidade produtiva do

audiovisual, fortalecendo a economia, para que essa seja capaz de produzir e retrabalhar a

2006/2004/Decreto/D5328.htm>. Acesso em: 15 jan. 2004.

17

imagem nacional, gerar empregos e divisas. Outro é a revisão da legislação do setor,

tornando-a suficientemente flexível para acompanhar o surgimento de novos serviços e a

evolução tecnológica, assim como acompanhar a considerável diversidade econômico-cultural

da nação brasileira. Nesse sentido, o projeto de lei em questão deveria aproximar a

transmissão audiovisual a residências (a televisão) das telecomunicações, em termos de marco

legal, de forma a uniformizar a legislação, naquilo que é possível, e evitar disparates entre

serviços cada vez mais próximos e convergentes.

MÍDIA E POSICIONAMENTO

É relevante analisar o comportamento midiático quanto ao projeto de lei do

audiovisual. Nesse processo, foi estudada brevemente a cobertura dada à proposta pela grande

mídia brasileira, isto é, jornal impresso, revista e televisão. Tanto a TV quanto os jornais

impressos cobriram exaustivamente o projeto, sempre acentuando que a agência poderia

intervir no conteúdo editorial das emissoras, visto como uma ameaça à liberdade de

expressão. Na sexta feira dia cinco de agosto de 2004, um dia após a divulgação da minuta, o

Jornal Nacional dedicou vários minutos ao ataque à proposta do Ministério da Cultura.23

Levando em consideração que a TV Globo destina 60,5%24 da sua programação

principalmente às telenovelas, minisséries e programas de auditório, estes produtos, além de

constituírem o eixo central de um conjunto de estratégias de máxima rentabilidade, é uma

maneira da empresa legitimar-se junto à opinião pública.

Diante de fortíssima pressão por parte dos organismos midiáticos, o Ministério da

Cultura modificou os três artigos mais polêmicos do projeto, reapresentando-o três semanas

depois do lançamento da primeira versão. O artigo oitavo, que tratava do poder público poder

impor limites à participação estrangeira no capital das exploradoras de atividades

cinematográficas e audiovisuais, foi totalmente suprimido. O artigo primeiro reverteu seu

texto, retirando expressões como planejar e administrar as atividades cinematográficas e

audiovisuais. Já o mais polêmico, o artigo 43, teve eliminado o propósito de regular as linhas

editoriais e a direção dos produtos audiovisuais.

A atuação da mídia neste processo é um bom momento para a reflexão sobre a relação

deste campo com o Estado, afastando visões que os projetam como áreas de total

independência. Se tradicionalmente o campo comunicacional tem sido influenciado pelo

político, ao mesmo tempo em que o econômico serve de substrato para sua manutenção, mais

23 JORNAL NACIONAL. Rede Globo. Rio de Janeiro. Telejornal apresentado às 20h30min, 5 ago. 2004. 24 NAZÁRIO, Paola Madeira. Pesquisa de recepção em Comunicação: uma análise do programa de auditório Luciano Huck. 2003. Monografia (Graduação em Comunicação Social – Publicidade de Propaganda) – Ciências

18

recentemente a mídia tem produzido uma contra-tendência, de influenciar a totalidade social

com suas regras de procedimento, bem como – o que é mais grave – manipular a informação

publicizada, reverter e modificar decisões governamentais (na construção dos relatos ou no

plano efetivo dos atos administrativos).

Fazendo um mapeamento nos principais meios de comunicação do Brasil, encontra-se

a opinião contrária ao projeto de lei como unânime, por parte das empresas de comunicação.

Na edição e 18 de agosto de 2004 da revista Veja – a quarta maior em número de tiragem do

mundo, com 1,1 milhões de exemplares –,25 destaca-se uma reportagem com tom bastante

coloquial, afastada de um jornalismo documental, embasada principalmente em testemunhos e

opiniões unicamente dos opositores da iniciativa e sem estar pautada na análise rigorosa do

conteúdo do projeto de lei. Em uma matéria de 12 páginas, manchetada como Fantasma do

autoritarismo, a revista utiliza-se de testemunhos dos atores como Miguel Falabela e Cristiane

Torloni, da cantora Zélia Duncam, do apresentador de televisão Fausto Silva e dos autores de

telenovelas Benedito Ruy Barbosa e Maria de Adelaide Amaral, além de empresários de

televisão e alguns poucos deputados e senadores.26 A reportagem faz-se em torno de

depoimentos repetitivos de que o projeto é ditatorial. Palavras como stalinista, cercear a

liberdade de imprensa e soviets denominam a atuação do Governo Lula e do ministro

Gilberto Gil.

O Jornal da Band, por sua vez, lançou em editorial do dia seis de agosto de 2004 as

seguintes opiniões: “instrumento de censura é um projeto do governo que pretende pura e

simplesmente comandar como um sistema de marionetes todos os movimentos de informação

cultural do país, um tributo a Stalin e seus horrores contra a difusão necessária da

informação”.27 O editorial de duração de 1 minuto e 7 segundos ilustra bem a intenção da

mídia em assustar a sociedade em relação às medidas do governo. O impacto foi ainda maior

porque naquele dia o agressivo editorial substituiu a tradicional escalada. A escalada no

telejornal é utilizada, segundo Guilherme Rezende, para transmitir frases de impacto sobre

assuntos do telejornal, sendo lidas pelos locutores de forma dinâmica mesmo antes dos

cumprimentos de “boa noite” dada aos telespectadores, tendo como principal objetivo

despertar o interesse dos receptores para que fiquem atentos à notícia que se seguirá.28

O Jornal da Cultura do dia 14 de agosto foi o único noticioso televisivo que tratou o

da Comunicação, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo. 25 JOUGUET, Katianne. Seriedade com o público. Canal da Imprensa, São Paulo, n. 31, 27 maio 2005. Disponível em: <http://www.canaldaimprensa.com.br/foco/trint1/foco4.htm>. Acesso em: 29 jun. 2005. 26 GASPAR, Malu. O fantasma do autoritarismo.Veja, São Paulo, n. 1867, p. 40-51, 18 ago. 2004. 27 JORNAL DA BAND. TV Band. São Paulo. Telejornal apresentado às 19h20min, 6 ago. 2004.

19

assunto com um pouco mais de objetividade (embora se saiba que tal qualidade nunca se

manifesta por completo): abriu o espaço de um bloco inteiro do programa para expor a idéia

que o projeto pretende regulamentar as ações do cinema e do audiovisual.29 Na ocasião, foi

informado que o objetivo do governo era investir mais recursos nas produções nacionais.

Além disso, a emissora abriu espaço para o ministro Gilberto Gil apresentar suas posições,

algo que não foi seguido em outros veículos, pois a maioria deles não destinou espaço para a

argumentação dos agentes que são a favor do projeto. A TV Cultura também ofereceu espaço

à discussão no programa Roda Viva do dia 16 de agosto de 2004, para que o secretário

executivo do Ministério da Cultura, Juca Ferreira, expusesse suas prerrogativas.30 Nesse

episódio, a Cultura comportou-se como uma emissora pública, cujo telejornalismo é marcado

pelo compromisso público, privilegiando a informação e apresentando o debate livre de

idéias. Mesmo tendo seu orçamento bancado principalmente pelo Governo do Estado de São

Paulo, comandado pelo PSDB, maior partido opositor do Governo atualmente, a emissora

Cultura foi fiel aos preceitos do jornalismo público e divulgou as iniciativas de

regulamentação do audiovisual a partir dos princípios de independência, colocando a missão

de utilidade pública como primeira motivação, já que o jornalismo se desenvolve no âmbito

do espaço público.

Nos meios impressos as respostas ao projeto de lei foram mais unânimes ainda.

Tomando como exemplo do jornal Zero Hora a edição do dia 12 de agosto de 2004,

identifica-se que foram salientados (além do mais, com cores pouco usuais e formatação

diferenciada) os pontos polêmicos do projeto e as opiniões contrárias a ele.31 A matéria traz as

principais alterações da primeira revisão do projeto, salientando que as taxas cobradas sobre

as bilheterias e exibição de filmes terão por fim o aumento do valor do ingresso para os

espectadores, opinião que é apresentada pela distribuidora multinacional Columbia. A matéria

do jornal Zero Hora também trata em parte da importância da regulamentação para o setor

audiovisual, mas também traz opiniões, como o do presidente da Associação Gaúcha de

Emissoras de Rádio e Televisão (Agert), afirmando que o anteprojeto atenta, entre outras

questões, contra princípios de liberdade de expressão. Em uma segunda página da matéria são

colocados trechos do pronunciamento de Gilberto Gil fazendo uma crítica à cobertura dos

meios de comunicação quanto ao projeto, além de trazer um quadro colorido salientando os

artigos polêmicos do projeto e as opiniões contra esse. Em suma, mesmo parecendo uma

28 REZENDE, Guilherme. Telejornalismo no Brasil: um perfil editorial. São Paulo: Summus, 2000. 29 JORNAL DA CULTURA. TV Cultura. São Paulo. Telejornal apresentado às 21h, 14 ago. 2004. 30 RODA VIVA. TV Cultura. São Paulo. Programa de entrevista apresentado às 22h30min, 14 ago. 2004.

20

matéria mais equilibrada, percebe-se que as opiniões contra o projeto obtiveram maior ênfase.

A lei do audiovisual é assunto também da revista Carta Capital, que na sua edição de

18 de agosto de 2004 trouxe na capa a manchete O poder da mídia.32 A revista Carta Capital

realizou uma matéria de título Na TV, tática de guerra, da qual seis páginas foram dedicadas

ao assunto do projeto de Lei Ancinav, trazendo um conteúdo bastante diferenciado da grande

maioria dos veículos citados nesta pesquisa. O projeto Ancinav é citado como uma tentativa

de regular o setor audiovisual e corrigir distorções, além de causar grandes repercussões por

serem medidas que afetam tanto os grandes grupos de televisão quanto de multinacionais

ligadas a Hollywood.

Carta Capital ainda argumenta que a proposta estava sendo discutida há um ano e

meio, mas só naquele momento a mídia havia resolvido dar atenção ao assunto. No seu

conteúdo percebe-se a intenção da revista em criticar a cobertura dada ao debate,

principalmente pela Rede Globo. A revista analisa a reação da mídia como um receio à

intervenção na programação da televisão e das novas taxas sobre o faturamento publicitário da

TV. O modo como a emissora tratou o episódio ajuda a dimensionar a importância que as

Organizações Globo dão à Ancinav, sempre se referindo ao projeto como uma ameaça à

liberdade de expressão. Arnaldo Jabor acusa o governo de “tentar controlar a realidade ao seu

redor, controlar o mundo” e Cacá Diegues diz que os valores éticos e sociais do cinema e da

televisão ficam à mercê do governo, segundo a revista. Mas pergunta-se onde estão estes

valores na televisão e na indústria cinematográfica, já que a TV fomenta o individualismo,

mostra uma realidade que não é da maioria dos seus telespectadores, não incentiva a cultura

nacional (na medida em que privilegia a veiculação de produtos internacionais populares,

mesmo que produzidos no Brasil)33 e dedica uma parcela mínima da sua grade de

programação para o desenvolvimento da cidadania, educação e bem estar social.

Simplesmente percebe-se que as empresas midiáticas não querem se submeter a qualquer tipo

de intervenção, para que possam melhor articular os seus interesses de lucro e hegemonia

social.

A revista acredita que o setor cinematográfico dividiu-se em dois grupos que se

manifestaram contra o projeto: em um estão os donos de salas de exibição, por se sentirem

incomodados com as novas taxas que teriam que pagar, e em outro os distribuidores de títulos

31 RODRIGUES, Ernesto. Ministério da cultura sob fogo cerrado. Zero Hora, Porto Alegre, 12 ago. 2004. 32 WEBER, Luiz Alberto. O poder da mídia. Carta Capital, São Paulo, n. 304, p. 24-34, 18 ago. 2004. Nas próximas páginas esta matéria será abordada sem fazer nova citação a todo momento. 33 Para ampliar a visão acerca dos bens internacionais populares, ver ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasilira: cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo: Brasiliense, 1988.

21

estrangeiros, cineastas e produtores em geral.

A reportagem também dedica seu espaço a opiniões como as de Tonio Venture, diretor

de cinema e um dos principais líderes da política cinematográfica em São Paulo, salientando

que a Ancinav é uma oportunidade do Estado retomar suas responsabilidades como regulador

do mercado. A página 29 é quase toda dedicada às ponderações de Venturine, contendo um

destaque de fonte e cor dizendo “Criou-se um clima de paranóia que é falso”.34

Na mesma edição a revista traz um panorama das posições de vários agentes do setor e

da maioria das emissoras de TV. Neste panorama é encontrada a opinião do executivo

Antônio Telles, vice-presidente da Rede Bandeirantes, dizendo que o governo tenta impor

uma estrutura reguladora muito firme, mas que os radiodifusores não podem aceitar tentativas

de censura. Já na opinião de Dênis Munhoz, executivo da rede de televisão Record,

pertencente à Igreja Universal, é “impossível qualquer emissora arcar com a taxa de 4% sobre

o faturamento publicitário sendo que as emissoras estão trabalhando no vermelho”, deixando

claro sua posição de que a responsabilidade de investir no cinema é do governo e que as

estações de TV não têm nada a ver com isso.35 O SBT informou, através de porta voz, que é

prematuro manifestar-se. O mais interessante é a que a revista deu espaço para seus

defensores argumentarem a favor do projeto, a exemplo do ministro da Cultura, Gilberto Gil,

que, além de defender a proposição, acusou pessoas e os meios de comunicação de não serem

conhecedores da proposta na íntegra. Também ressaltou que a mídia dá uma visão errada dos

fatos e confunde regulação com controle. Segundo a revista, o bombardeio midiático fez

esticar as discussões do projeto ainda por 60 dias.

Um exemplo de como as emissoras de televisão não querem nenhum tipo de regulação

é que na mesma semana da apresentação do projeto Ancinav o Ministério da Justiça se reuniu

com as principais redes de TV do país na tentativa de que assinassem um termo de

compromisso que garantisse o fim da exibição de programas de violência e sexo em horários

inadequados, mas elas alegaram que as suas obrigações já estavam estipuladas na

Constituição.36

A revista Carta Capital teve uma das coberturas mais democráticas do meio impresso

brasileiro, tentou esclarecer o clima de horror estipulado por outros meios e deu espaço a

atores que saíram em defesa da Ancinav, também deixando clara a opinião de que é

importantíssimo uma regulamentação do audiovisual brasileiro. A revista tem uma linha

34 WEBER, Luiz Alberto, op. cit. 35 Ibid. 36 CASTRO, Daniel. Governo vai negociar pacto antibaixaria. Folha de S. Paulo, São Paulo, 30 jul. 2004.

22

editorial diferenciada das outras revistas semanais de informação, como a Veja, Isto É e

Época, tradicionalmente adotando uma postura dissonante da grande mídia, sendo crítica em

relação a muitas práticas sociais e não endossando o discurso dominante. Sendo assim, a

postura dela, quanto ao caso Ancinav, vem ao encontro de toda uma prática da publicação,

quando aborda os fenômenos sociais, inclusive a mídia, que tem uma abordagem particular da

revista.

Estas são somente algumas das manifestações da grande mídia no período analisado,

desde a divulgação do projeto de lei do audiovisual, do dia 5 ao fim do mês de agosto de

2004. Com quase unanimidade (com exceções da revista Carta Capital e da TV Cultura), os

meios impressos, como jornais e revistas, tiveram opinião taxativa contra a regulamentação

mais rigorosa do audiovisual do país. Tal posicionamento suscita o questionamento, porque

tamanha negação à proposta? Seria devido ao interesse dos meios de comunicação em relação

à manutenção da autonomia quase total do poder, sabendo-se que a mídia é o único poder que

edita muitas de suas próprias leis, ao mesmo tempo em que prega a condição de não se

submeter à legislação própria?

LIBERDADE E REGIÃO

A premissa do equilíbrio foi suprimida no debate sobre a criação da Ancinav.

Advogar o princípio de liberdade de expressão para atacar o projeto não é um argumento

consistente, partindo da mídia, é claro, já que esta defende seus próprios interesses, o que, ao

fim, representa os interesses das elites dominantes. Isso tudo num quadro em que cerca de 80

deputados federais são donos de canais de televisão e rádio, a maioria associada a grandes

grupos empresariais.37

Para os donos dos meios de comunicação, o que está em jogo não é a tão comentada

liberdade de expressão ou de imprensa, mas sim os seus interesses de lucro, advindo a

relutância em aceitar qualquer tipo de controle social sobre os meios da movimentação

econômica que seus negócios representam – 1% do Produto Interno Bruto (PIB).38

A produção e circulação midiática é ferramenta fundamental para o entendimento

social. Dessa maneira não pode estar concentrada em poucas organizações. O setor

audiovisual não é igual aos outros, pois não se limita a produzir bens destinados a serem

vendidos e consumidos no mercado, como os do setor agrícola, por exemplo. Trata-se de um

setor cultural, cujo produto tem uma influência fundamental para naquilo que a sociedade

37 SOUZA, Ana Paula; LÍRIO, Sérgio. A Rede Globo ganha outra. Carta Capital, São Paulo, n. 326, p. 28, 26 jan. 2005. 38 RODRIGUES, Ernesto, op. cit.

23

conhece e acredita.

Há, então, uma autonomia relativa do campo comunicacional, dada pela subsunção

parcial no capitalismo e responsabilidade que tem pelo êxito de muitos dos objetivos sociais

do campo econômico-político, já que os processos midiáticos atualmente surgem da ligação

da estrutura econômica e da formação cultural, com ênfase na manutenção do sistema.

Qualquer histeria coletiva jornalística sobre a possibilidade de intervenção nos conteúdos de

forma a haver censura é descabida, porque logo já no seu início o artigo segundo do projeto

deixa bem claro que a manifestação do pensamento, criação, expressão e informação não

sofrerão qualquer censura de natureza política, ideológica e artística. Além de tudo, a

Constituição brasileira, em vários artigos, salvaguarda a liberdade de criação.

Os conceitos abordados nesse texto ganham força nos projetos de regulamentação do

audiovisual já aprovados por outros governos, como é o caso do Projeto de Lei de

Responsabilidade Social em Rádio e Televisão da Venezuela, lançado pelo Governo Hugo

Chávez. A comparação é pertinente, não só porque o projeto venezuelano também é novo,

mas porque Chávez e Lula são amigos e têm uma base de esquerda em comum, que tem sido

a sustentação do governo do primeiro, enquanto o segundo mantém-se no poder a partir de

uma coalizão de centro e centro-direita. As afinidades reproduzem-se nos processos

regulatórios das duas nações. O Governo de Chávez também sofre represália por parte dos

meios de comunicação e dos partidos opositores, os quais contam com apoio principalmente

da imprensa privada, da organização de direitos humanos Human Watch e da Associação

Interamericana de Imprensa. Os argumentos utilizados por essas organizações para desbancar

o projeto de lei se assemelham aos levantados no Brasil, embasados no cerceamento da

liberdade de expressão. Com isso, a grande mídia colaborou sensivelmente na demora para a

aprovação desse projeto, o qual foi sancionado, depois de debate e modificação pela

Assembléia Nacional, e publicada pelo Executivo para sua publicação no dia sete de

dezembro de 2004.

O governo venezuelano justifica a lei, entre outros argumentos, sob o argumento de

que a imprensa privada apoiou a tentativa de golpe de Estado contra Chávez em abril de 2002,

deixando de transmitir a notícia do retorno do presidente ao governo.

A Lei do Audiovisual venezuelana distingue-se da brasileira por ser centrada

unicamente nos processos radiofônicos e televisivos. O projeto de lei venezuelano atribui

responsabilidades sociais aos serviços de radiodifusão, “equilibrando os direitos, deveres e

interesses desses, a fim de produzir a justiça social e contribuir a favor da cidadania, da

democracia, dos direitos humanos, da educação, do desenvolvimento social e econômico do

24

país”, conforme artigo primeiro.39

As metas do projeto têm como diretrizes, controle, supervisão e classificação de

horários e tipos de programas, definindo faixa de horários e tipos de atrações assistidas por

crianças e adolescentes, assim como promovendo uma maior interação entre receptores e

programadores.

Quanto à produção independente, o projeto do Governo Chávez destina 60% da

programação de TV a realizações nacionais e, desta fatia, 60% são destinados a conteúdo

terceirizado, enquanto que nas rádios 40% da programação musical será venezuelana e 10%

de intérpretes e compositores latino-americanos. Além disso, é criado um fundo para

democratizar e pluralizar os projetos de produção nacional de rádio e televisão.40 Além de ter

artigos que garantam a difusão de produções nacionais independentes e o fomento da indústria

audiovisual nacional, o projeto também tem uma consideração aos deficientes auditivos, para

quem, segundo a lei, teria que ser destinado um espaço maior na grade de programação.

Todos estes preceitos tratados na Lei de Responsabilidade Social em Rádio e

Televisão do Governo venezuelano deveriam estar presentes no projeto pela criação da

Ancinav, já que a intenção do texto legal daquele país também é regulamentar o audiovisual e

tornar mais democráticos os meios de radiodifusão.

Destaca-se nesse processo a aprovação dos artigos de 16 a 20, que tratam da criação de

um canal 100% destinado a produções nacionais independentes, com predomínio de

programas educacionais custeados pelo governo.

O artigo 17 refere-se à garantia para a seleção e recepção responsável dos programas,

estipulando que os prestadores de serviço de radiodifusão devem publicar ao menos

semanalmente e com antecipação, através de meios massivos de comunicação impressa, os

guias de programação, além de estabelecer a obrigação de anunciar no início de qualquer

programa a advertência sobre a presença de elementos classificados na lei. O projeto de lei

classifica os programas quanto à linguagem, saúde, sexo e violência, para cada classificação

havendo uma variação de tipos de produtos. Por exemplo, nos programas de segmentos de

sexo tem-se os de tipos “A”, A1”, “B”, ‘B1”, “C” e “D”, sendo os de tipo “D” aqueles de

práticas sexuais que mostram os genitais e violam o direito à vida, à saúde e à integridade

pessoal, dentre outras ações prejudiciais à conduta humana.

O artigo 18 assegura o direito de quem se sentir lesado com alguma ação vinda da

programação que afete a vida privada. A defensoria do povo e as pessoas em geral estão

39 VENEZUELA. Ley da Assamblea Nacional. Caracas, 2004. 40 VENEZUELA, op. cit.

25

legitimadas a exercer uma ação de protesto para garantir o direito a réplica por informações

consideradas falsas. A ação tramitará pelo procedimento de amparo constitucional, tendo que

haver retratação por parte das emissoras de radiodifusão, caso seja comprovada a infração.

A matéria dos artigos 19 e 20 são de suma importância para o desenvolvimento da

verdadeira missão das empresas radiodifusoras, dizendo respeito à administração pública e à

responsabilidade social do rádio e da TV, o que não está em pauta no projeto Ancinav. Esses

artigos tratam da necessidade de desenvolver e executar políticas para promover a educação

crítica dos meios em programas direcionados a crianças e adolescentes, estando estipulado

que a Comissão Nacional de Telecomunicações criará um Diretório de Responsabilidade

Social, o qual servirá como unidade de apoio. Este diretório será composto por um

representante dos seguintes organismos ou setores: órgão com competência em matérias que

tratem de educação e cultura, ministério para assuntos ligados à saúde, Instituto Nacional da

Mulher (INAMUJER), Conselho Nacional da Criança e do Adolescente (CNDNA), pesquisa

universitária em comunicação, receptores dos programas de radiodifusão, emissoras de rádio e

canais de TV (nos dois últimos casos, um da área privada e outro da pública). A produção

independente e os trabalhadores do rádio e da televisão também terão direito à representação,

assim como um representante dos povos indígenas e um de organização vinculada à cultura.

Este conselho será destinado a realizar todos os atos necessários para garantir o cumprimento

das sanções ligadas à responsabilidade social dos meios de comunicação. Estes artigos carregam uma importância fundamental, já que como, diz Benevides, a

institucionalização de práticas participativas permite ao cidadão um interesse maior pelos

assuntos que lhe dizem respeito, podendo a socialização da informação formar a cidadania

integral, já que a democracia só é completa com a representação política e a participação

direta do cidadão.41

Neste panorama de leis de regulamentação da América Latina, ressalta-se que a

Argentina tem seus meios de comunicação legalizados pela lei nº 22.285, de 1980, e o decreto

n. 286, de 1981, provenientes do regime militar presente no país entre as décadas de 70 e 80

do século XX. Na lei 22.285 é declarado que os serviços de radiodifusão são de interesse

público e que os programas veiculados devem ser de cunho educacional e cultural, sendo

privilegiadas as produções nacionais, assim como as dublagens, com proteção dos direitos

autorais. Quando se fala em concessões de televisão, a Argentina tem uma licença estipulada

em 15 anos. O órgão responsável pela liberação desta concessão é o Comité Federal de

41 BENEVIDES, Maria V. de M. A cidadania ativa: referendo, plebiscito e iniciativa popular. São Paulo: Ática, 1991.

26

Radiodifusión (Confer).

Na Argentina há um alto índice de assinantes de televisão via cabo (57%), 37

emissoras de TV aberta e 1400 operadoras de sistemas televisivos por assinatura.42 Dos 65

canais disponíveis via cabo, 28 têm programas relacionados com a América Latina, mesmo

sendo produzidos fora do continente. Assim como no Brasil, na Argentina pode-se acumular

propriedades de mídia, inclusive cruzada, sendo o caso dos grupos comunicacionais mais

importantes do país, os quais detêm concessões de rádio, televisão e jornal, como Grupo

Clarín, Atlântida, Eunerkian, La Nación e Crônica. Até 1989 a Argentina mantinha em sua

legislação uma lei contra a concentração de meios de comunicação: os que detinham

concessão para mídia impressa não podiam adquirir concessão para TV e vice-versa, mas,

com a sanção da lei n. 23.696, de 19 de agosto de 1980, que retira o artigo 45 da Lei

22.285/80, os empresários poderam acumular outorgas, gerando, assim, um grande mercado

oligopólico.

A lei de n. 22.285/80 é considerada pela sociedade e por outros setores atuantes da

Argentina como carente de revisão. Esta lei exclui a sociedade civil em suas concessões, o

que não é de se estranhar, já que o que está em vigência na Argentina é uma lei própria do

regime militar sofrido pelo país. A partir do governo Meném houve a formulação da Lei

Dromi de Reforma do Estado, que acarretou na privatização da maioria dos canais de

televisão e emissoras de rádio, colaborando, assim, com a sedimentação dos oligopólios

audiovisuais criados na Argentina.43

Em resumo, a Argentina apresenta hoje uma multiplicação de rádios comunitárias sem

regulamentação, há disseminação de TV a cabo sem licitação pública e forte presença de

conglomerados de mídia com capitais argentinos e estrangeiros.

Em agosto de 1996 o Senado e a Câmara da Argentina analisaram o projeto de Lei de

Telecomunicação e Radiodifusão, o qual sofreu dura crítica, por não ter sido debatido com a

sociedade civil e trabalhadores da imprensa. Diante dessa e de outras dificuldades, o projeto

não entrou em vigor e a Argentina continua sob regência de uma lei afastada do interesse

público.

No Uruguai três decretos foram criados depois da Lei 8.390, de 1928. O último foi o

decreto-lei 350, de 1986, o qual estipula serem as concessões para a televisão atribuições do

Poder Executivo, para exploração por entidades públicas e privadas, sem prazo estabelecido.

A influência militar está presente nas leis formuladas no país, já que, a partir do decreto lei de

42 JAMBEIRO, Othon. Regulando a TV: uma visão comparativa no Mercosul. Salvador: Edufba, 2000. p. 66. 43 JAMBEIRO, Othon, op. cit., p. 64.

27

1984, a autorização para o funcionamento das emissoras, a política de privatização e a

distribuição de freqüência são atribuições do Ministério da Defesa.44

Em 1985, com a implantação da democracia, o governo tentou modificar as leis

audiovisuais que estavam em vigência no país, mas, no entanto, o projeto não obteve a

maioria no Congresso. O que foi aprovado, no período, foi mais um decreto que devolveu as

competências da Dirección Nacional de Comunicacciones em Telecomunicações à

Administración Nacional de Teléfonos (Antel), e essas são as únicas movimentações do

governo uruguaio para a regulamentação do audiovisual aberto até os dias de hoje.

Outras modificações dizem respeito aos serviços de TV por assinatura. O decreto n°

349, de 1990, regulamenta as atividades da transmissão via cabo, de forma vaga, já que essas

operações não são consideradas de interesse público, mas só de serviço público. Também não

há diferença entre designações dos proprietários dessas redes, quais sejam dos operadores,

provedores e produtores de programações.

A tendência ao oligopólio também está presente no país uruguaio, já que a empresa

Equital A. S. controla quase todo o mercado a cabo do interior. Os requisitos exigidos para a

exploração desses serviços a cabo são puramente econômicos, não havendo exigências quanto

à qualidade da programação, visando a educação e o interesse público.

Em concorrência com as redes privadas, em 1963 foi instalado um canal estatal ligado

ao Serviço Oficial de Difusão, Rádio, Televisão y Espetáculos (SODRE), o qual transmite

para praticamente para todo território nacional e sofre fortes pressões para não receber

incentivos publicitários por parte das organizações privadas, tentando criar, assim, uma

barreira à entrada para a ação governamental. Além de caracterizar-se como fraco competidor,

no que se refere à grade de programação, comparado às redes privadas, já que, por pressão

dos empresários privados, sofre da falta de incentivos, o Sodré está sob a supervisão do

Ministério da Educação e Cultura, encontrando-se isolado dentro de um modelo privatizado.

A partir de um acordo entre as três principais emissoras de televisão do país, foi

constituída uma rede privada, a Red Uruguaya de Televisión S.A (Rutsa). Este acordo

comercial, caracterizando um oligopólio, resultou em 19 canais do interior, os quais recebem

a programação das emissoras da capital, tornando o sistema cada vez mais homogêneo e

fracamente centrado na cultura nacional. Na fronteira leste e noroeste do Uruguai a

programação mais presente é a brasileira, sendo transmitida em quase metade dos domicílios

dessa região. Este fator está interligado com o fato da TV uruguaia ter 72% da sua

44 Ibid., p. 113.

28

programação de produções internacionais, oriundas dos EUA, Argentina e Brasil, o que retira

espaço para o fortalecimento da cultura nacional.45

As concessões para a TV uruguaia, assim como as brasileiras, são atribuídas a diversos

membros de uma mesma família, gerando uma centralização de capital, que, através de

alianças com o governo, expandiram o setor. Sendo assim, o sistema televisivo do Uruguai

tem grandes semelhanças com o brasileiro, já que no seu início foi favorecido de maneira a

enquadrá-lo fortemente no mercado, através de verbas e incentivos de um governo ditatorial,

modelo mantido com o governo democrático. Os grupos que dominam o cenário televisivo,

naquele país, por ordem econômica, são: Scheck, Fontaina De Feo, Romary Salvo, Pardo

Santayana, O Grupo Moon, TyC Sport.46

CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS

A informação que caracteriza a sociedade contemporânea está cercada pela ação dos

oligopólios e seus interesses comerciais. Diante desse fato, a necessidade de políticas públicas

é ainda maior, a fim de que possa ser criado espaço para conteúdos midiáticos alternativos,

promovendo novas formas de diálogo na sociedade. Segundo Norman Solomon, “uma mídia

democrática deve ser aberta à diversidade, seu poder deve ser disperso e seu acesso a ela

democratizado”, sendo a “liberdade de imprensa” “limitada pelo capital e a tendência dos

meios de massa [...] homogeneizar o consumo”.47

O projeto de lei de criação da Ancinav não apresenta algo que defenda um partido, um

regime político ou mesmo um dado sistema de idéias, nem propõe o cerceamento da liberdade

de expressão, e sim, trata da soberania nacional, da diversidade e da valorização do

patrimônio cultural brasileiro, assim como da função social da propriedade. Está na

Constituição que a propriedade tem uma função social, não devendo soberanamente se impor

sobre tudo. A Lei Magna também tece considerações sobre o monopólio e o oligopólio dos

meios de comunicação social, liberdade, iniciativa e livre concorrência. Para caracterizar este

projeto como ditador é preciso primeiro tratar a própria Constituição do país como ditadora.

A televisão (o meio audiovisual predominante) assume uma importância crucial neste

contexto. Para a grande maioria, trata-se da fonte principal de informação, de lazer e de

cultura, determinante da forma como o mundo é visto. Completamente plausível é a

regulamentação de conteúdos audiovisuais, já que neste panorama o Brasil permanece até

agora de posse de uma cinematografia importante e de uma economia do audiovisual

45 Ibid., p. 118. 46 Ibid., p. 120. 47 PODER disperso e acesso descentralizado. IHU On Line, São Leopoldo, n. 99, p. 24, 3 maio 2004.

29

consolidada, embora trate estes assuntos ainda em segundo plano. Atualmente faz-se

necessário dar tratamento estratégico ao cinema pelo Estado.

O ataque à idéia de criação de uma agência reguladora do cinema e do audiovisual

como um todo se deve ao interesse econômico das difusoras de conteúdos. Iniciativas como a

taxação de quatro por cento das atividades publicitárias, a destinação de três minutos da

programação televisiva para a propaganda de lançamento de produtos audiovisuais brasileiros,

a tributação de 10% da arrecadação das bilheterias de cinema e a regulamentação à entrada de

produto internacional no país são fontes de indignação por parte dos detentores dos meios de

comunicação. Estes são os verdadeiros motivos e não qualquer tolhimento à livre expressão

do pensar. A forte pressão por parte das indústrias culturais permitiu detectar o quanto a

grande mídia interfere nas decisões governamentais, visto que o governo recuou nas

proposições expostas.

O projeto original não dispunha da produção dos conteúdos midiáticos e sim da sua

fiscalização. Atualmente este processo está sendo conduzido por lógicas privadas, o que foi

proposto é que esta responsabilidade regida pelas empresas passasse a ser fiscalizada por uma

agência, assim como em outras atividades econômicas. Por que motivo as empresas

comunicacionais, que são detentoras de uma movimentação econômica considerável no país,

e agem diretamente sobre sociabilidades, reivindicações, identidades e agendas sociais, seriam

regidas por suas próprias regras? Fundamental é a regulamentação destes conteúdos, já que,

além de ser uma atividade econômica, reflete sobre a identificação cultural da sociedade, a

forma de viver e a autoconfiança de um povo. As atividades mencionadas no projeto não

pretendem atacar setor social algum, até porque é proposta a interação entre diversos agentes

que atuam no círculo do audiovisual.

O maior problema destacado no projeto é não deixar clara a idéia de beneficiar o

audiovisual como um todo, atingindo as TVs públicas e comunitárias, por exemplo. A

proposição está muito centrada nas atividades cinematográficas, quando se tem uma

diversidade de outras produções. Na atualidade é cada vez mais difícil separar integralmente o

que é cinema, o que é televisão e o que são as novas mídias, pois suportes e indústrias

interligam-se e formam um todo, que é o sistema audiovisual. Para o fortalecimento da

cidadania, é necessária a criação de regras para o teor dos conteúdos veiculados no

audiovisual, pois são eles que criam identificação e movimentam hábitos de consumo e de

conduta social, não se sustentando a supressão de vários artigos que atacavam esta

problemática.

Quando este projeto foi lançado à sociedade civil houve uma cortina de fumaça feita

30

pela grande mídia, sendo caracterizado praticamente como uma ação de golpe de Estado, com

a utilização de expressões como fascismo e stalinismo. A intenção foi convencer a população

de que o governo pretendia acabar com a liberdade de expressão, de informação, de imprensa

e de empresa. A regulamentação é imprescindível para modificar o relacionamento do

produtor, distribuidor e exibidor, colaborando na relação das atividades cinematográficas e

audiovisuais com a sociedade brasileira.

Em uma última análise vieram as modificações mais importantes, absorvendo as

reivindicações da mídia, diminuindo percentuais e taxas e retirando responsabilidades do setor

midiático, distanciando-se totalmente das intenções iniciais. Isso caracteriza um retrocesso,

pois a idéia de criação de uma agência regulamentadora do audiovisual cedeu a pressões e não

concretizou seus objetivos.

Segundo o secretário do Audiovisual do Ministério da Cultura, Orlando Sena, os

conselheiros consideram a possibilidade de criar um fundo especial para o desenvolvimento

da infra-estrutura técnica do cinema e da televisão, tendo uma necessidade maior na área

cinematográfica, devido à decaída na produção dos anos 1990 a 1995.48 Mesmo que o cinema

tenha tido uma defasagem imensa na sua produção no decorrer dos anos, mais uma vez

identifica-se um privilégio, em termos de incentivos, à atividade cinematográfica, deixando de

lado a televisão, cuja força social é incomparável com qualquer outra mídia. Uma solução

mais apropriada passa por benefícios que conectem a televisão alternativa e o cinema

independente.

Esta intenção, de regulação e de fiscalização, é o realmente esperado de uma sociedade

democrática e pluralista, ações que abram espaço para a participação do todo social. Percebe-

se, diante destas argumentações, que o objetivo na criação da Ancinav é o interesse público,

aliando o desenvolvimento do audiovisual brasileiro com independência e eficiência, visto

que as implicações políticas, econômicas e sociais do poder adquirido pela mídia na sociedade

contemporânea são uma força determinante nos rumos da história pública e privada do Brasil.

REFERÊNCIAS

ANCINAV deve virar só ANAV. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 17 de set. 2004.

BENEVIDES, Maria V. de M. A cidadania ativa: referendo, plebiscito e iniciativa popular. São Paulo: Ática, 1991.

BRAGA, José Luiz; CALAZANS, Regina. Comunicação e educação: questões delicadas na interface. São Paulo: Hacker, 2001.

48 BRASIL. Ministério da Cultura. Conselho Superior do Cinema fará reunião nos dias 19, 20 e 21. Disponível em: <http://200.198.204.70/projetoancinav/materia.materia.php?codigo=88>. Acesso em: 8 jun. 2005.

31

BRASIL, Giba Assis. Palestra concedida pelo então membro do Conselho Superior de Cinema. Porto Alegre, 27 set. 2004.

BRASIL. Ministério da Cultura. Conselho Superior do Cinema fará reunião nos dias 19, 20 e 21. Disponível em: <http://200.198.204.70/projetoancinav/materia.materia.php?codigo=88>. Acesso em: 8 jun. 2005.

BRASIL. Ministério da Cultura. Consulta Pública. Disponível em: <http://200.198.204.70/projetoancinav/artigoseopinioes/participe.php>. Acesso em: 1 out. 2004.

BRASIL. Ministério da Cultura. Exposição de motivos do projeto pela criação da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual. Disponível em: <www.cultura.gov.br/projetoancinav/arquivos/Proposta%20Em.pdf>. Acesso em: 19 ago. 2004.

BRASIL. Ministério da Cultura. Minuta da segunda versão pela criação da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual. Disponível em: <http://200.198.204.70/projetoancinav/arquivos/MINUTA_REVISADA_PELO_COMITE_DA_SOCIEDADE_CIVIL.pdf>. Acesso em: 16 nov. 2004.

BRASIL. Ministério da Cultura. Minuta original do projeto pela criação da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual. Disponível em: <www.cultura.gov.br/projetoancinav>. Acesso em: 19 ago. 2004.

BRASIL. Presidência da República, Casa Civil. Decreto n. 5.328, de 30 dez. 2004, que fixa o número de dias para a exibição de obras audiovisuais cinematográficas brasileiras no ano de 2005 e dá outras providências. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Decreto/D5328.htm>. Acesso em: 15 jan. 2004.

BRASIL. TV Senado. Lei 8.977, de 6 de janeiro de 1995, que dispõe sobre o serviço de TV a Cabo e dá outras providências. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/tv/conheca/legislaçao/lei8977capi.asp>. Acesso em: 15 set. 2004.

BRITTOS, Valério; BOLAÑO, César (Orgs.). Rede Globo: 40 anos de poder e hegemonia. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2005. p. 341-355.

CASTRO, Daniel. Governo vai negociar pacto antibaixaria. Folha de S. Paulo, São Paulo, 30 jul. 2004.

GASPAR, Malu. O fantasma do autoritarismo. Veja, São Paulo, n. 1867, p. 40-51, 18 ago. 2004.

GRUPO DE MÍDIA DE SÃO PAULO. Mídia dados 2004. São Paulo, 2004.

JAMBEIRO, Othon. Regulando a TV: uma visão comparativa no Mercosul. Salvador: Edufba, 2000. p. 66.

JORNAL DA BAND. TV Band. São Paulo. Telejornal apresentado às 19h20min, 6 ago. 2004.

JORNAL DA CULTURA. TV Cultura. São Paulo. Telejornal apresentado às 21h, 14 ago. 2004.

JORNAL NACIONAL. Rede Globo. Rio de Janeiro. Telejornal apresentado às 20h30min, 5 ago. 2004.

32

JOUGUET, Katianne. Seriedade com o público. Canal da Imprensa, São Paulo, n. 31, 27 maio 2005. Disponível em: <http://www.canaldaimprensa.com.br/foco/trint1/foco4.htm>. Acesso em: 29 jun. 2005.

WEBER, Luiz Alberto. O poder da mídia. Carta Capital, São Paulo, n. 304, p. 24-34, 18 ago. 2004.

LEAL, Sayonara. A imaginação de um controle público a partir do regulamento do setor de telecomunicações no Brasil: a utilização dos aparatos regulatórios da Agência Nacional de Telecomunicações pelo usuário-cidadão. In: JAMBEIRO, Othon; BOLAÑO, César; BRITTOS, Valério (Orgs.). Comunicação, informação e cultura: dinâmicas globais e estruturas de poder. Salvador: Edufba, 2004.

NAZÁRIO, Paola Madeira. Pesquisa de recepção em Comunicação: uma análise do programa de auditório Luciano Huck. 2003. Monografia (Graduação em Comunicação Social – Publicidade de Propaganda) – Ciências da Comunicação, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo.

NOSSA, Leonencio. Criação da Ancinav é discutida no Senado. O Estado de S. Paulo, são Paulo, 18 ago. 2004. Disponível em: <http://estadao.com.br/divirtase/noticia/2004/ago/18/276.htm>. Acesso em: 23 ago.2004.

ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo: Brasiliense, 1988.

POCHMANN, Mario. Atlas de exclusão do Brasil: os ricos do Brasil. São Paulo: Cortez, 2004.

PODER disperso e acesso descentralizado. IHU On Line, São Leopoldo, n. 99, p. 24, 3 maio 2004.

REGRAS para controle de coligação poderão ser criadas. Tela Viva News, São Paulo, 19 ago. 2004. Disponível em: <http://www.telaviva.com.br/telaviva/News.asp?ID=48476>. Acesso em: 19 ago. 2004.

REZENDE, Guilherme. Telejornalismo no Brasil: um perfil editorial. São Paulo: Summus, 2000.

RODA VIVA. TV Cultura. São Paulo. Programa de entrevista apresentado às 22h30min, 14 ago. 2004.

RODRIGUES, Ernesto. Ministério da cultura sob fogo cerrado. Zero Hora, Porto Alegre, 12 ago. 2004.

SOUZA, Ana Paula; LÍRIO, Sérgio. A Rede Globo ganha outra. Carta Capital, São Paulo, n. 326, p. 26, 26 jan. 2005.

SOUZA, Ana Paula; LÍRIO, Sérgio. A Rede Globo ganha outra. Carta Capital, São Paulo, n. 326, p. 28, 26 jan. 2005.

VENEZUELA. Ley da Assamblea Nacional. Caracas, 2004.