Auerbach, Eric - Figura

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5/16/2018 Auerbach,Eric-Figura-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/auerbach-eric-figura 1/43 Expoente da estilística e precursor da sociologia da literatura e da estética da recepção, Erich Auerbach está entre os grandes críticos do século XX. Especialista em Dante e tradutor de Vico, Auerbach é autor de uma obra ensaística de fôlego, da qual este livro reúne dois textos, p re fa ci ad os p or M od es to C ar on e. " Fi gu ra " t ra z a a ná li se d e um c onc ei to -c ha ve para toda a poesia e a retórica da Idade M éd ia c ri st ã, e nq ua nt o " Sã o F ra nc is co d e A ss is n a Comédia d e D an te " e sm iú ça , à l uz d es se m es mo c on ce it o, um dos episódios mais fortes do poema dantesco. Dois ensaios ma gi st ra is, ch ei os d a " fo rç a d e i rr ad ia çã o" h is tó ri ca qu e Auerbach tanto apreciava. I SB N 8 5- 08 -0 64 92 -6 9

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Expoente da estilística e precursor da sociologia da

literatura e da estética da recepção, Erich Auerbach está

entre os grandes críticos do século XX. Especialista em

Dante e tradutor de Vico, Auerbach é autor de uma obra

ensaística de fôlego, da qual este livro reúne dois textos,

prefaciados por Modesto Carone. "Figura" traz a análise de

um conceito-chave para toda a poesia e a retórica da Idade

Média cristã, enquanto "São Francisco de Assis na Comédia

de Dante" esmiúça, à luz desse mesmo conceito, um dos

episódios mais fortes do poema dantesco. Dois ensaios

magistrais, cheios da "força de irradiação" histórica que

Auerbach tanto apreciava.

ISBN 85-08-06492-6

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SI::RIE TEMAS

Volume 62

I,; tcratura e filologia

'j'ítulos originais:

. .Fi gur a" e S t. ' Fr anc is o f Assi si in I)antc's HCon11ncdia") inI':rich Auerbach, Scenes f rom lhe dram{{ of European l it er tl turc

( :opyright © by Clcmcns Auc rbach , 1994

Imagem da capa: d et alh e de Deposição de Cristo, de Caravaggio(Pinacoteca Vaticana, Roma)

Editor

remando P{{ixão

Editor assistente

Olacílio Nunes

Preparação de textoRen{{to Nicol{{i

Edição de artc e capa

Marcello Ar{{ujo

Proj eto gráficoCláudia Warmk

Editoração eletrônica

Antonio Ubir{{jara Domieneio

Imp re sso nas o fic in as daGráfica Palas Athena

ISBN85 08 06492 6

1997

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SUMÁRIO

PREFÁCIO

Um roteiro do conceito de figuraModesto Carone

FIGURA

SÃO FRANCISCO DE

ASSISNA COMÉDIA DE DANTE

Notas

7

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65

81

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Um roteiro do conceito

de figura

Modesto Carone

Figura é um ensaio fundamental de Erich Auerbach, o Mes

tre contemporâneo da crítica literária e da literatura comparada.

Traçar um roteiro desse conceito elaborado em minúcia pelo

Autor é uma tarefa árdua, que causa insatisfação, sobretudo porcausa das supressões e da perda de matizes, que no melhor doscasos podem ser atenuadas por notas de rodapé mais extensas

como aqui acontece - para tornar, se possível, a apresentação

menos esquemática.

A partir de uma exposição erudita das aparições do termo

em autores que vão de Terêncio a Quintiliano, passando entre

outros por Varrão, Lucrécio, OvÍdio e Plínio, nos quais "figura" comporta significados cambiantes - forma plástica, ima

gem, cópia, forma que retrata ou forma que muda -, opercurso de semântica histórica descrito pelo ensaÍsta chega à

concepção da figura de linguagem - "forma de discurso que sedesvia do seu uso normal e mais óbvio" (p. 24). Mas nos múlti

plos registros da palavra Auerbach descobre a alusão escondidaque tende a ser revelada e expandida pelos Pais da Igreja naIdade Média. Assim é que em Tertuliano "figura" indica a

representação concreta de algo que vai se realizar no futuro. A

"figura" é então algo real e histórico que anuncia outra coisa

que também é histórica e real. A noção aí incorporada torna-se

essencial para um tipo de interpretação incumbida de mostrar

que "as pessoas e acontecimentos do Velho Testamento eram

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ERICH AUERBACH

prefigurações do Novo Testamento e de sua história de redenção" (p. 28)1.

Compreende-se portanto que Adão seja concebido comofigura de Crist02 do mesmo modo que, para santo Agostinho,a Arca de Noé represente uma prefiguração da Igreja e Jacó eEsaú a figura dos dois povos: judeus e cristãos. É essa hermenêutica que institui a relação entre duas realidades, pois aquilo que a "figura" profetizava - sem deixar de ser o que era alcança no final sua realização plena (Erfüllung)3. No desenhoágil e complexo traçado por Auerbach o conceito se desdobrae adensa a cada passo, à medida que absorve novos conteúdos.Por exemplo, estabelecendo vínculos tanto com a verdade

(veritas), da qual seria uma mímese ou imitação (imitatio),

como também com historia ou littera. Vista por este ângulo,

1 A amp li açã a de senti da da Velh a Tes tamento a tra vé s das a can te cimen ta s de scr it as n a

Evange lh a ( um exempl a radic al : Ma is és é uma figura de Cri sto) .obedec ia a razões his tó

r ic as e, s egunda Aue rbach, c ambi nava "de mada natável " a prá ti ca pal ít ica cam uma fér el ig ia sa c ria tiv a. Ass im é que tr an sfo rmava a c ancepçãa j uda ic a da r ess ur re içã a de Ma i

sés em um nava sistema de profecia figural, na qual a nava Messias preenche e anula aa

mesma t empa a ab ra r ea li za da pel a seu p recurs ar : a que a Velha Tes tamento perdia

cama li vr o de uma h is tó ri a n aci an al ( a d a pava j udeu ) g anhava em a tu al id ade d ramát ic acancreta (a adventa de Crista). "Nesse sentida - afirma Auerbach - deveríamas ter em

men te um .outra fator que revelau ta da sua impar tânc ia t ãa laga a cri st andade expandiu

sepe las regiões acidentai s e setentr iana is da Medit er rânea. A interpretaçãa f igural t rans

farmau a Velha Testamenta de livra de leis e da história da pava de Israel numa série de

p re fi gur açõe s de Cri st a e da Salv açã a, ta l cama encan tramas mai s t ar de na p ro cis sã a das

profetas na t eat ro med ieval e na s re pre senta çõe s c íc li ca s d a e scult ur a med ievaL Des sa

farma e neste contexto, em que a história judaica e a caráter nacianal t inham desapareci

da, a Velha Testamenta, par exemplo , passava a ser ace it ável para as cel tas e as germâni

cas; era uma parte da religião universal da salvaçãa e um campanente necessári a da

igualmente magní fi ca e universal v isão da his tóri a a ser t ransmi tida j un ta cam a religiãa.

Em sua forma origina l, camo o livra da lei de uma nação tão estranha e remata, isso nãat er ia s id a poss ív el" (p . 45 ss .) . Depr eende- se daí que a p ro fec ia f igura l te nha su rgi do de

uma s it ua ção def in ida - a ruptu ra cam a ju da ísma e a miss ãa cr is tã en tre as gentios.2 O texto de Ter tu lia na aqu i ci ta do por Auer ba ch é a seguinte: "Pois seAdãa farnecia uma

figura de Cristo, a sona de Adãa era a marte de Cris to , e ntã o da mesma maneir a p ela f er i

d a nos fl an cas deve ria s er figurada a Ig re ja , a v erd ade ir a mãe de todas os v iva s" ( p. 28).

3 Camen tando uma pas sagem de Tert ulia na sabre a relação f igural ent re Jasué e Jesus,

Aue rbach a fi rma: "Aqui o name J osué-J es us é t ra ta do como um aconte cimen ta p rof éti

co, antec ipanda cai sas que vir iam. Ass im cama fai J osué, e nãa Moisés, que conduziu o

pava de Israel para a terra prometida da Palestina, assim a Graça de Jesus, e não a lei

judaica, conduz a ' se gunda pova' p ara a t err a pr omet id a da beat it ud e e te rn a" (p . 27).

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••

FIGURA

"figura" é o sentido literal ou o acontecimento que se refere auma realização que está encerrada no seu próprio bojo. Essarealização, por seu turno, tendo, como se disse, afinidade coma idéia de veritas, faz com que "figura" possa ser captadacomo meio-termo entre história e verdade.

O proveito que uma constelação dessa ordem oferece para

as relações entre li teratura e realidade é evidente e talvez sejatão importante para a compreensão de Mimesis, a obra magnade Auerbach, quanto a célebre "mescla de estilos" (Stilmis-

chung) pela qual o grande livro se orienta. Seja como for, ainterpretação figural, que desde o apóstolo Paulo amplia poranalogia o âmbito do texto bíblico "até o fim do mundo e avida eterna", está fundada numa alegoria, mas difere da maioria das formas conhecidas de alegorização em virtude do cará-

ter histórico dos seus termos4. Ou seja: na "figura" umacontecimento terreno é elucidado pelo outro; o primeiro significa o segundo, o segundo "realiza" o primeiro. Dessa perspectiva a História, com toda a sua força concreta, como dizAuerbach, continua sendo sempre uma figura que necessita deinterpretação. É claro que essa visão das coisas tem implicações estéticas, embora neste particular o Autor seja discreto aponto de não dizer em que medida a obra de arte pode ser

4 A re speit a da re laç ãa entre alegoria, símbolo e mito neste contexto específica, vejam-se

as palavras de Auerbach: "Aa la da da f orma a le gó ri ca que d is cut imas , h á a inda out ra s

maneir as d e r epr es ent ar uma ca is a par .ou tra que padem ser camparadas cam a prafecia

f igural ; é a casa das chamadas formas s imbóli cas .ou mít icas que sãa f reqüentemente vis

tas coma carac te rí st icas de cul turas primi tivas e que , seja coma for, sãa encantradas cans-

t an temente nes ta s. [ .. .] E ss as f arma s s imbó li ca s ou mít ic as têm certas pontos de canta ta

cam a interpretaçãa figural: as duas aspiram a interpretar e organizar a vida como umtodo; amba s sã a conceb íve is a pena s em esf er as re lig io sas ou a fin s. Mas as d ife re nça s sã a

evidentes. O símbala deve possuir pader mágica, a figura nãa; a figura, por .outro lada,

deve ser h is tóri ca , mas a símbolo nãa. É c la ro que a c ri st andade não deix a depas sui r s ím

balo s mági ca s; mas a figura nãa é um deles. O que torna de fata as duas formas cample

t amente diferentes é que a profecia f igural rel ac iana-se cam uma interpretação da história

- na verdade é, par s ua nat ure za , uma i nt er pre ta çãa te xtu al - , e nquan to a símbala é

uma in te rp ret aç ão d ire ta d a v id a e .ori gin alment e, n a maio r pa rte d as vez es, t ambém da

natureza. Assim, a interpretação figural é o produta de culturas pasteriares, bem mais

indiretas, mais complexas e mais carregadas de história do que a símbala .ou o mito"

(p.48-9).

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ERICI-I AUERBACI-I

apreendida como a figura de uma Erfüllung ainda inatingívelna realidade - o que evidentemente a aproximaria da utopia.

Ao término desse itinerário magistral, de que um mero resumo não é nem de longe capaz de dar conta, Auerbach invoca aDivina Comédia para demonstrar que são as "formas figurais"as que nela predominam e determinam a estrutura do poema. É o

ponto alto do ensaio e um exemplo privilegiado do método doensaÍsta - sem mencionar o estilo preciso que, à própria revelia,empalidece pateticamente a prosa praticada por tantos teóricos etratadistas contemporâneos. Aqui Auerbach desvenda os matizes de sentido de algumas figuras-chave da Comédia, comoCatão, VirgÍlio e até mesmo Beatriz5• O alvo da abordagem édemonstrar como elas são figuras históricas e ao mesmo temponão o são, uma vez que nesses personagens espelha-se a verdade

realizada que a epopéia traz à tona, tornando essa realizaçãomais viva e significativa do que o seu veículo histórico concreto.Isso se explica porque na análise de Auerbach o outro mundo épara Dante a verdadeira realidade, ao passo que este, à maneira

5 A re spe it o de Cat ão, V irg íl io e Bea tr iz , v ej am-s e a s págin as 55 e segui nte s do ens aio ,que vale a pena r esumi r e em parte tr an scr eve r n est e P ref ác io :

D iz Aue rbach s obr e Catão que na Comédia ele foi designado por Deus guardião naentrada do Purgatório e isso surpreende porque se trata de um pagão, inimigo de César es ui cid a que dever ia e st ar so fre ndo o s to rment os do s ét imo c ír cu lo do In fer no. O en igmaé re so lv ido , s egundo o Aut or, p ela s pa lav ra s d e Virg ílio , a o a fi rmar que Dan te p ro cu raem Catão a liberdade - " tão preciosa como tu próprio sabes, tu que por ela renunciasteà vida". Nesse sentido o Catão histórico - severo, justo e p iedoso - que deixou a vida

em nome da liberdade era uma figura e o Catão que aparece no Purgatório é " a verdadedaquela situação temporal".Quanto ao Virgílio histórico, na leitura de Auerbach, ele é ao mesmo tempo poeta e guiade Dant e por que , n a des ci da de Ené ia s aos in fe rnos , o poeta hav ia p ro fe ti za do e gl orif ic ado a paz universal sob o Império Romano, a ordem política que Dante considerava

exemplar. Mas Virgílio é também o guia porque todos os grandes poetas que vieramdepo is d el e fo ram in fl uenci ado s po r s ua obra , Dan te i nc lu siv e. "Ma is a inda, e le é um guiaporque, além de sua profecia temporal, proclamou também - na Quarta Écloga - aeterna ordem transcendente, a vinda de Cristo que iria renovar o mundo temporal, sems equer su spei ta r, n a ve rdade, do si gni fi ca do de s uas p róp ria s pa la vra s, mas de ta l modoque a pos te rid ade ir ia ex tr air i ns pir aç ão de s ua l uz. " Par a Dan te , em suma , o Vir gíli o hi stórico era uma encarnação da plenitude, capaz por isso de conduzi-Io até a porta doParaíso: "Virgílio enviou Enéias ao mundo subterrâneo à procura do conselho divino

para conhec er o de st ino do mundo r omano; e agor a Vir gíl io é convocado pe los podere scelestiais para ser o guia de uma missão não menos importante; pois não há dúvida queDante via a si próprio como encarregado de uma missão não menos importante que a deEnéias: eleito para anunciar a um mundo desajustado a ordem justa, que lhe é revelada

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~~

FIGURA

neoplatônica, existe apenas como "sombra dos futuros" (umbra

futurorum). Nessa direção, o que é afirmado sobre Catão ouVirgílio aplica-se ao todo da Divina Comédia, organizada dealto a baixo segundo uma concepção figura!. É esta que coloca oseventos narrados numa "relação vertical imediata" com a ordemdivina da plenitude e da liberdade, passível de dar consistência aum quadro poético realmente sublime gerado pela humanidade.

"Nosso propósito - declara Auerbach no final de Figura-foi mostrar como, a partir da base do seu desenvolvimentosemântico, uma palavra pode evoluir dentro de uma situação histórica e dar nascimento a estruturas que serão efetivas durantemuitos séculos."

Esta conclusão de Figura define uma das linhas mestras dotrabalho crítico de Auerbach, uma vez que, do seu ângulo pessoal de inclinação, toda a literatura do Ocidente pode ser entendida também através do conceito de "figura". É o que há meioséculo nos ensina Mimesis, onde o cortejo das figuras tem o condão de representar a realidade - aquilo que vai se realizar - naarte literária que começa em Homero e chega até Virginia Woolf.

durant e a sua cami nhada" . Mas Virg íl io n ão é e le pr ópr io , d a mesma mane ir a que per so n agen s h is tó ri co s como o Cés ar d e Shakes pea re e o Wa ll en ste in de Schi ll er . E le s s ão apr esentados em sua plena existência terrena, fazem surgir diante do leitor uma época

importante de suas vidas e procuram o sentido dessa época. Para Dante, no entanto, os ignif ic ado de c ada v id a per te nc e à hi st ór ia p rovid encia l do mundo cu jas l inhas ge rai se stã o cont id as na Revela ção. Sendo as sim, o Virg íl io d a Divina Comédia é o Virgí lio his tórico, mas por outro lado também não o é. Pois o Virgílio histórico é apenas umafigu-

ra da verdade preenchida que o poema revela e este preenchimento é mais real, maisimpor tante que afigura. "Com Dant e, ao contr ár io dos poeta s modernos, a f igura to rn as e mai s re al à med id a que é mais i nt eg ralment e in te rpr et ada e mai s in timament e i nt eg rada ao plano eterno da salvação. E, para ele, diferentemente dos antigos poetas dosmundos subte rr ân eo s, que repre sen ta vam a v id a te rre na como re al e a v id a após a mor tecomo uma sombra, a verdadeira realidade está no outro mundo, enquanto este mundo éapenas umbra futurorum - embora esta umbra seja a prefiguração da rea lidade t rans c endent e e deva mais t ar de s er p re ench id a po r el a. "

Beatriz é uma pessoa real, que de fato encontrou-se com Dante, saudou-o realmente,negou-se a saudá-Io mais tarde, zombou dele, chorou por uma amiga morta e p or seu pai

e também morr eu . Mas, c omo d iz Aue rbach , é p re cis o te r em men te que , d esde o p rimei

r o di a em que apa re ceu , a Bea tri z te rr en a fo i p ar a Dan te um mil ag re envi ado do céu, umaencarnação divina. Desse modo, como afirma o ensaio, a realidade da sua pessoa não é,

c omo no caso de Virg íl io e Catão, a lgo der iv ado dos f at os de uma t ra diç ão h ist ór ic a, mas

da própria experiência do poeta - uma experiência que lhe mostrou a terrena Beatrizcomo um milagre. Se na Vita nuova Beat ri z é uma mulher v iv a den tr o da re ali dade expe

rimentada por Dante, na Comédia ela não é um anjo, mas um ser humano abençoado

cujo corpo r ess us cit ar á no d ia do Ju íz o Fi nal .

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Figura

1. De Terêncio a Quintiliano

Originalmente, figura, da mesma raiz de fingere, figulus, fictor e

effigies, significava "forma plástica". Sua mais remota ocorrência

está em Terêncio, que, em Eunuchus (317), diz que uma jovem tem

uma nova figura oris [um formato incomum de rosto]. O seguintefragmento de Pacúvio (270-1, em Ribbeck, Scaen. Roman. poesis

fragm., 1,110) data provavelmente do mesmo período:

Barbaricam pestem subinis nostris optulit

Nova figura factam ... 1

[Apresentou contra nossas lanças uma peste

Produzida sob aspecto desconhecido]

A palavra era provavelmente desconhecida para Plauto; ele usa

duas vezes fictura (Trinummus, 365; Miles Gloriosus, 1189), mas em

ambas com um sentido mais próximo à atividade de fabricar do que

a seu resultado; nos autores que vêm depois fictura tornou-se muito

rara2. A menção de figura chama nossa atenção para uma peculiari

dade de figura: é derivada diretamente da raiz, e não, como natura e

outras palavras de terminação semelhante, do supino (Ernout

Meillet, Dictionnaire étymologique de la langue latine, 346). Houve

uma tentativa (Stolz-Schmalz, Lat. Gramm., 5. ed., 219) para expli

car este fenômeno como uma assimilação a effigies: de qualquer

modo essa formação peculiar expressa algo vivo e dinâmico, incom

pleto e lúdico, pois sem dúvida a palavra possui um som gracioso

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ERICH AUERBACH

que fascinou muitos poetas. Talvez não passe de um acidente que emnossos dois exemplos mais antigos figura apareça combinada ànova; mas mesmo que seja casual, é significativo, pois a novidade ea variação deixaram suas marcas em toda a história desta palavra.

Uma história que começa para nós com a helenização da educação romana no último século antes de Cristo. Três autores tiveram

um papel decisivo no começo deste processo: Varrão, Lucrécio eCícero. Claro, não podemos dizer exatamente o que eles aproveitaram do material mais antigo que foi perdido; mas as contribuiçõesde Lucrécio e Cícero são tão inconfundíveis e originais que não hácomo deixar de creditar-lhes uma parte considerável na criação deseu significado.

Dos três, Varrão é o menos original. Em seus escritos,figura significa às vezes "aparência externa" ou até mesmo "contorno"3 e,desse modo, começa a afastar-se de seu significado primitivo, o conceito mais estreito de forma plástica; isso parece ter sido o resultadode um processo lingüístico geral, cujas causas discutiremos maisadiante. Em Varrão esse desenvolvimento não é muito saliente. Ele

era um etimólogo, cioso da origem da palavra (jictor cum dicit fingo

figuram imponit [O artíf ice de imagens, quando diz fingo (eu modelo), põe uma figura em algo]: De lingua latina, 6, 78), e assim, quando usa a palavra em relação a criaturas vivas e objetos, há em geraluma conotação de forma plástica. O quanto essa conotação aindaera forte nessa época é algo difíci l de decidir às vezes: por exemplo,quando diz que, ao comprar escravos, devemos considerar não apenas a figura mas também as qualidades - nos cavalos, a idade; nosgalos, a capacidade de procriação; nas maçãs, o aroma (ibid., 9, 35);ou quando diz que uma estrela mudou de colorem, magnitudinem,

figuram, cursum (citado em Agostinho, De civitate Dei, 21, 8); ou

quando, em De lingua latina (5, 117), compara as estacas aforquilhadas das paliçadas com a figura da letra latina V.A palavra extrapolao campo da plástica quando ele começa a falar de formas de palavras. Como diz em De lingua latina (9, 21), extraímos nova.s formasde vasos dos gregos; mas por que as pessoas lutam contra novaspalavras, formae vocabulorum, como se fossem venenosas? Et tan-

tum inter duos sensus interesse volunt, ut oculis semper aliquas figu-

ras supellectilis novas conquirant, contra auris expertes velint esse?

[E acaso querem que haja tanta diferença entre os dois sentidos, que

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FIGURA

sempre procuram alguns novos modelos de móveis para seus olhos,porém querem também que seus ouvidos estejam livres deles?].Aqui não estamos longe da idéia de que as figuras também existempara o sentido da audição; e devemos ter em mente que Varrão nãoera - como todos os autores latinos - um especialista em filosofiacomprometido com uma terminologia exata, usando portanto figu-

ra e forma de modo alternado, no sentido geral de forma. Em termos estritos, forma significava "molde" - o francês "moule" - eestava ligada à figura como a forma vazia ao modelo plástico que saidela; mas em Varrão raramente encontramos algum vestígio dessadistinção, embora talvez haja uma exceção no fragmento citado emGélio (III, 10, 7): semen genitale fit ad capiendam figuram idoneum

[asemente geradora torna-se apta a adquirir uma forma].Como observamos, a inovação efetiva ou a ruptura com o signi

ficado original, que encontramos primeiro em Varrão, ocorre nocampo da gramática. É em Varrão que encontramos, pela primeiravez, figura empregada no sentido de uma forma gramatical, f lexionada ou derivada. Em Varrão, figura multitudinis significa a formado plural. Alia nomina quinque habent figuras (9, 52) significa:alguns substantivos têm cinco formas de declinação. Esse uso tornou-se difundido (d. Thesaurus linguae latinae, VI, s. v. figura,parte 1, III A, 2a, col. 730 e 2e, col. 734); forma também era bastante usada no mesmo sentido, a partir da época de Varrão, mas figuraparece ter sido mais popular e freqüente entre os gramáticos latinos.Como é possível que ambas aspalavras, mas particularmente figura,

cuja forma guarda a clara lembrança de sua origem, adquirissemcom tanta rapidez um significado puramente abstrato? Isso aconteceu por causa da helenização da educação romana. Os gregos, comseu vocabulário científico e retórico incomparavelmente mais rico,

tinham várias palavras para o conceito de forma: morphe, eidos,

schema, typos, plasis, para mencionar apenas as mais importantes.Na elaboração filosófica e retórica da linguagem de Platão eAristóteles, uma esfera especial era designada a cada uma destaspalavras; uma clara linha divisória era traçada particularmente entremorphe e eidos, por um lado, e schema, por outro: morphe e eidos

eram a forma ou idéia que "informa" a matéria; schema é o modelopuramente perceptivo; o exemplo clássico disto é a Metafísica deAristóteles, VII, 3, 1029a, na qual ele discute ousia (essência); aqui

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ERICH AUERBACH

morphe é definida como schema tes ideas, a forma ideal; deste modo,

Aristóteles emprega schema, em sentido puramente perceptivo, para

designar uma das categorias quali tat ivas, e também o emprega nas

combinações com megethos, kinesis e chrõma, que já encontramos

em Varrão. Era portanto natural que forma viesse a ser usada no

latim para morphe e eidos, já que originalmente transmitia a noção

de modelo; às vezes encontramos também exemplar; para schemaempregava-se geralmente figura. Mas já que na terminologia grega

erudita - gramática, retórica, lógica, matemática, astronomia

schema era amplamente empregado no sentido de "aparência exter

na", figura era sempre usada com esse objetivo em latim. Assim,

lado a lado com o significado plástico original e matizando-o, sur

gia um conceito bem mais geral de forma gramatical , retórica, lógi

ca, matemática, e mais tarde até de forma musical e coreográfica.

Mas o sentido plástico original não foi inteiramente perdido, já que

typos ("impressão") e plasis, plasma ("forma plástica") eram muitas

vezes vertidos por figura como o radical fig- sugeria. A partir do

significado de typos desenvolveu-se o uso da figura como "selo

impresso", uma metáfora com uma história venerável desde

Aristóteles (De memoria et reminiscentia, 450a, 31: he kinesis ense

mainetai hoion typon tina tou aisthematos [movimento implica uma

certa impressão da coisa sentida], passando por Agostinho (Epist.,

162,4 [Patrologia latina, XXXIII, col . 706J e Isidoro (Differentiae,

1,528 [Patrologia latina, LXXXIII, col. 63J, até Dante (come figura

in cera si suggella [como selo na cera se estampaJ, Purg., 10,45, ou

Par., 27, 52)4. Contudo, não foi tão-somente o sentido plástico de

typos, mas também a sua tendência para o universal, para o legal e

exemplar (d. a combinação com nomikõs, Aristóteles, Política, lI,

7, 1341b, 31), que exerceu uma influência sobre figura, e isto por

sua vez ajudou a apagar a linha divisória já pálida com forma. Aconexão com palavras como plasis aumentou a tendência de figura

- que provavelmente já está presente desde o início, mas só se

desenvolveu lentamente - de expandir-se na direção de "estátua",

"imagem", "retrato", de usurpar o domínio de statua e até de

imago, effigies, species, simulacrum [imagem, efígie, figura, simula

croJ. Deste modo, embora possamos dizer em geral que no uso lati

no figura ocupa o lugar de schema, isto não exaure o poder da pala

vra, apotestas verbi: figura é mais ampla, algumas vezes mais plás-

16

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FIGURA

tica, em qualquer caso mais dinâmica e luminosa do que schema.

Claro, schema em grego é mais dinâmica do que o uso que fazemos

dessa palavra; em Aristóteles, por exemplo, a mímica, especialmen

te a dos atores, é chamada de schemata; o significado de forma dinâ

mica não é de modo algum estranho a schema; mas figura desenvol

veu este elemento de movimento e transformação muito mais5•

Lucrécio usa figura no sentido filosófico grego, mas de modoextremamente individual, livre e significativo. Ele começa com o

conceito geral de "figura", que ocorre em cada nuance possível da

figura plástica modelada pelo homem (manibus tractata f igura, 4,

230) até o delineamento puramente geométrico (2, 778; 4, 503); ele

transpõe o termo da esfera plástica e visual para a audit iva, quando

(em 4, 556) fala da figura verborum [a figura das palavras]6. A

importante transição da forma para sua imitação, do modelo para a

cópia, pode ser mais bem observada no trecho que se refere à seme

lhança das crianças com seus pais, à mistura das sementes e à here

ditariedade; às crianças que são utriusque figurae [que têm a figura

de um e outro J, parecendo-se com o pai e a mãe, freqüentem ente

espelhando proavorum figuras [afisionomia dos ancestraisJ, e assim

por diante: inde Venus varias producit sorte figuras [então Vênus dá

à luz fisionomias de variado tipoJ (4, 1223). Constatamos aqui que

só figura pode servir para esse jogo entre modelo e cópia; forma e

imago também estão solidamente ligados a um ou a outro dos dois

significados; figura é mais concreta e dinâmica do que forma.

Também aqui, claro, como em relação aos poetas mais tardios, não

devemos nos esquecer de que figura fornecia uma bela sílaba final,

em todas as suas inflexões, para um hexâmetro7. Uma variante espe

cial do significado "cópia" ocorre na doutrina de Lucrécio sobre as

estruturas que se desgarram das coisas como películas (membranas)

e flutuam no ar, sua doutrina democritiana das "imagens de filme"(Diels), ou eidola, que ele toma em sentido materialista. A essas

chama simulacra, imagines, effigies e, às vezes, figurae; por conse

qüência, é em Lucrécio que encontramos pela primeira vez a pala

vra empregada no sentido de "visão de sonho", "imagem da fanta

sia", "fantasma".

Estas variantes tinham grande vital idade e gozaram de uma car

reira significativa; "modelo", "cópia", "ficção", "visão de sonho"

todos estes significados ligaram-se à figura. Mas foi em outra esfera

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ERICH AUERBACH

que Lucrécio desenvolveu um uso mais engenhoso da palavra.

Como se sabe, ele professava a cosmogonia de Demócrito e

Epicuro, de acordo com a qual o mundo é feito de átomos. Ele

chama os átomos de primordia, principia, corpuscula, elementa,

semina [primórdios, princípios, corpúsculos, elementos, sementes]

e, em sentido muito geral, também os chamou corpora, quorum con-

cursus motus ordo positura figuraS [corpos cuja reunião, movimento, ordem, posição, forma] (1, 685, e 2, 1021) faz nascer as coisas do

mundo. Embora pequenos, os átomos são materiais e produzidos:

têm formatos infinitamente diversos; e é por isso que ele os chama

com freqüência "formas", figurae, e que reciprocamente se possa

traduzir figurae, como Diels fez, por "átomos"9. Os numerosos

átomos estão em movimento constante; movem-se no vazio, combi

nam-se e repelem uns aos outros: uma dança de figuras. Este uso da

palavra não parece ter continuado depois de Lucrécio; o Thesaurus

cita apenàs um único outro exemplo deste uso em Claudiano

(Rufinum 1, 17), no fim do século IV. Nessa pequena esfera, a cria

ção mais original de Lucrécio não exerceu influência; mas não há

dúvida de que, de todos os autores que estudei em relação à figura,

foi Lucrécio que fez a contribuição mais bri lhante, embora não seja

a mais importante do ponto de vista histórico.

No uso freqüente e extremamente flexível da palavra por

Cícero, cada variação do conceito de forma, que possivelmente

poderia ter sido sugerida por sua atividade política, propagandísti

ca, jurídica e filosófica, parece estar representada; e seu uso da pala

vra revela sua natureza agradável, volátil e vacilante. Muitas vezes

ele a aplica ao homem, aqui e ali em tons de pathos. Em Pro S. Roscio

(63), escreve: portentum atque monstrum certissimum est , esse ali-

quem humana specie etf igura, qui tantum immanitate bestias vice-

ri t, ut .. . [Com toda certeza é aberrante e monstruoso que existaalguém com forma e aparência humanas que tenha a tal ponto supe

rado as feras em atrocidades, que . ..] . E, emPro Q. Roscio (20), taci-

ta corporis figura [o silencioso aspecto de um corpo] é a aparência

silenciosa que por si só revela o patife. Os membros, os órgãos

internos, os animais, os utensílios, as estrelas, em suma, todas as coi

sas perceptíveis têm figura, do mesmo modo que os deuses e o uni

verso como um todo. O sentido de "aparência" e até mesmo de

"semelhança" contido na palavra grega schema emerge claramente

18

FIGURA

quando ele diz que o tirano possui apenas figura hominis [a aparên

ciade homem] e que asconcepções imateriais de Deus são sem figu-

ra e sensus [sem aparência e percepção]. As distinções claras entre

figura e forma são raras (por exemplo, De natura deorum I, 90; d.nota 7 deste ensaio) e não estão confinadas ao reino visual; Cícero

fala de figura vocis [tipo de voz],figura negotii [tipos de atividade]

e, com freqüência, de f igurae dicendi [figuras do discurso].Naturalmente asformas geométricas e estereométricas também pos

suem uma figura. No entanto, figura no sentido de cópia ou imagem

é pouco desenvolvida em Cícero. Em De natura deorum (I, 71), sem

dúvida, diz que Cotta, um dos participantes do diálogo, poderia

entender mais facilmente as palavras quasi corpus [como se fossem

um corpo] dos deuses, si in cereisfingeretur aut fictilibus figuris [se

fosse moldado em figuras de cera ou de barro], e, em De divinatio-

ne (1, 23), fala da figura de uma rocha que parece um pequeno Pano

Mas isso não é suficiente, pois a figura de que está falando é a de

barro ou pedra, não do que está representado 10.Cícero usa a pala

vra imagines para a schemata de Demócrito e Lucrécio, que emana

do corpo (a corporibus enim solidis et a certisfiguris vult jluere ima-

gines Democritus [Demócrito pretende que imagens fluam de cor

pos sólidos e de figuras precisas] De divinatione, 2, 137)11, e, em

Cícero, as imagens dos deuses são geralmente chamadas signa,

nuncafigurae. Como exemplo podemos citar a piada maliciosa con

tra Verres (2,2, 89): Verres planejava roubar uma estátua valiosa de

um deus numa cidade siciliana, mas apaixonou-se pela esposa do

proprietário: contemnere etiam signum illud Himerae jam videba-

tur quod eum multo magis figura et lineamenta hospitae delectabant

[ já parecia até desprezar aquela estátua de Himera porque a aparên

cia e os traços da hospedeira o deleitavam muito mais]12. Não há

sinal de inovações tão ousadas quanto as de Lucrécio. A contribuição de Cícero consist iu principalmente em introduzir a palavra com

o sentido de forma perceptível na linguagem culta. Usou-a sobretu

do em suas obras retóricas e filosóficas, empregando-a com fre

qüência no seu ensaio sobre a natureza dos deuses. Nestas obras

tentou forjar o que hoje chamaríamos de um conceito totalizante de

forma. Não é apenas por causa de sua conhecida preocupação com

períodos oratórios bem construídos que ele raramente se contenta

com figura apenas, já que em geral acumula várias palavras afins

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. il

I

ERICH AUERBACH

com o objetivo de expressar um todo: forma etfigura, conformatio

quaedam et f igura totius oris et corporis, habitus etf igura, humana

species etfigura, vis etfigura [forma e aparência, uma certa confor

mação e aparência de todo rosto e corpo, postura e aparência, o

aspecto humano e a aparência, a força e a aparência], e muitas outras

do mesmo tipo. Sua luta por uma visão globalizante do mundo

fenomenal é inequívoca, e deve ter comunicado algo dela ao leitorromano. Mas falta-lhe o talento adequado para tanto, e sua ati tude

eclética fazia com que fosse impossível para ele elaborar e formular

uma idéia art iculada de forma; seu conceito permaneceu nebuloso.

Devemos contentar-nos com a riqueza e o equilíbrio de suas pala

vras. Mas o mais importante para o desenvolvimento subseqüentede figura é outra coisa: é em Cícero e no autor de Ad H erennium

que ela aparece pela primeira vez como um termo técnico da retóri

ca, substituindo o schemata ou charakteres lexeos, os três níveis do

estilo, que, em Ad H erennium (4, 8, 11), são designados como figu-

ra gravis, mediocris e extenuata [esti lo grave, médio e frágil] , e em

De oratore (3, 199 e 212) como plena, mediocris e tenuis [plena,média e tênue]. No entanto, Cícero (como Emil Vetter, autor do

artigo "Figura" no Thesaurus lingua latinae, observa claramente

[VI, 1. pte., col. 731, 11. 80 s.]) ainda não usa a palavra como um

termo técnico para as circunlocuções ornamentais que chamamos

"figuras do discurso". Ainda que as conheça e descreva muito bem,

ele não as chama figurae, como os escritores posteriores, mas

ainda pleonasticamente - formae et lumina orationis [formas e

ornamentos do discurso]. Emprega a expressão figura dicendi, ou

com mais freqüência forma etfigura dicendi, não num sentido estri

tamente técnico, mas tão-somente para denotar um modo de elo

qüência, quer em sentido geral , quando deseja dizer que há inume

ráveis espécies de eloqüência (De oratore, 3, 34), quer individual

mente, quando diz que Curio suam quandam expressit quasi for-

mam figuram que dicendi [expressou-o como se fosse uma forma e

um tipo de discurso próprios dele], ibid., 2, 98). Os estudantes das

escolas de retórica, onde os tratados de Cícero sobre a eloqüência

tornaram-se logo um cânone, acostumaram-se a essa combinação.

Assim, lá pelo fim da era republicana,figura estava firmemen

te arraigada na linguagem da filosofia e no discurso culto, e

durante o primeiro século do Império suas possibilidades conti-

20

FIGURA

nuaram a desenvolver-se. Como se pode imaginar muito bem,

eram os poetas que estavam mais interessados nos matizes do sig

nificado entre modelo e cópia, nas formas variáveis e na seme

lhança ilusória que habitam os sonhos. Catulo (Attis, 62) tem uma

passagem bem característica: Quod enim genus figurae est ego

quod nom obierim ? [que espécie de figura já não tive?].

Propércio13 escreve: (3, 24, 5)mixtam te varia laudavi saepe figu-ra [muito louvei a ti, composta de figuras variadas], ou (4, 2, 21)

opportuna meast cunctis natura figuris [minha natureza pode

assumir todas as figuras]. E falando, na magnífica conclusão de

seu Panegyricus ad Messalam, do poder da morte em mudar as

formas humanas, emprega as palavras mutata figura [tendo sido

mudada minha figura]; e Virgílio (Eneida, 10,641), ao descrever o

fantasma de Enéias que aparece para Turnus, escreve morte obita

qualis fama est volitare figuras [como é fama que, depois da

morte, essas figuras voli tam]. Mas a fonte mais rica para figura no

sentido de uma forma mutável é Ovídio, claro. Por certo ele usa

forma livremente no mesmo sentido da métrica quando requerum dissílabo; mas na maior parte das vezes emprega figura. Ele

possui um estoque impressionante de combinações sob seu

comando: figuram mutare, variare, vertere, retinere, inducere,

sumere, deponere, perdere [mudar, variar, trocar, manter, tomar,

assumir, largar, perder a forma de]. Vamos mostrar uma pequena

coleção de exemplos que irá dar uma idéia das inúmeras maneiras

em que ele usa a palavra:

...tellus...partimque figuras/ rettullit antiquas [...a terra ... em

parte retomou suas formas antigas] (Metamorfoses, 1, 436);

...se mentitis superos celassefiguris [...os deuses se ocultaram

em formas mentirosas] (ibid., 5, 326);

sunt quibus in plures ius est transire figuras [há aqueles que

têm o privilégio de assumir muitas formas] (ibid., 8, 730);

...artijicem simulatoremque figurael Morphea [Morfeu, o

artífice e imitador da figura (humana)] (ibid., 11,634);

ex aliis alias reparat natura figuras [anatureza recria as for

mas umas a partir das outras] (ibid. , 15,253);

animam ... in varias doceo migrare figuras [mostro que a

alma migra para diferentes formas] (ibid., 15, 172);

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ERICH AUERBACH

lympha figuras/ datque capitque novas [a água dá e recebe

novas formas] (ibid., 15,308).

Há também um belo exemplo da marca da impressão do selo:

Utque novis facilis signatur cerafiguris

Nec manet utfuerat necformas servat easdem,Sed tamen ipsa eadem est .. .

[E assim como a cera dúctil é marcada com novas figuras

e não permanece como tinha sido nem conserva as mesmas

formas,

embora ela seja a mesma. . .] ( ibid., 15, 169 ss. ).

Além disso, figura já aparece diretamente em Ovídio como

"cópia", no Fasti por exemplo (9, 278): globus immensi parva figu-

ra poli [mn globo, pequena cópia do céu imenso] ou em H eroides

(14, 97) e em Ex Ponto (2, 8, 64); no sentido de "letra", que já fora

dado por Varrão, ducere consuescat multas manus una figuras [Que

uma única mão se acostume a produzir muitos esti los] (Ars amoris,

3,493); f inalmente, como "posição" na arte de amar: Venerem iun-

gunt per mille figuras [fazem amor em mil posições] (Ars, 2, 679).

Em todo Ovídio, figura é móvel, mutável, multiforme e ilusória. A

palavra também é usada habilmente por Manilio, o autor de

Astronomica, que, ao lado dos significados já referidos, irá empregá

Ia (tal como signum e forma) no sentido de "constelação". Já em

Lucano e Estácio, aparece com o sentido de visão de sonho.

Em Vitrúvio, o arquiteto, encontramos algo muito diferente

desses significados e daqueles que iremos encontrar nos retóricos.

Em seus escritos, figura é a forma plástica e arquitetônica, ou de

certo modo a reprodução de tal forma, o plano do arquiteto; aquinão há traço de ilusão ou de transformação; em sua linguagem,figu

rata smilitudine (7, 5, 1) não significa "de modo dissimulado", mas

"criar uma semelhança". Muitas vezes figura significa "planta arqui

tetônica" (modice picta operisfuturi figura, plano brevemente traça

do da obra a ser construída, 1, 2, 2) e universae figurae species ou

summa figuratio significa a forma geral de uma construção ou de um

homem (ele compara freqüentemente os dois do ponto de vista da

simetria). Apesar do eventual uso matemático da palavra, figura

22

: ~;

FIGURA

(assim como fingere) tem um significado definitivamente plástico

para ele e para os outros escritores técnicos do mesmo período;

assim, em Festo (98), crustulum cymbi figura14 [um pequeno bolo

em forma de barco], em Celso, venter reddit mollia, figurata [o ven

tre produz figurações moles] (2, 5, 5), em Columella, ficos compri-

munt in figuram stel larum jloscularumque [espremem figos até

tomarem a forma de estrelas e pequenas flores] (12, 15, 5). Atémesmo nesse detalhe, Plínio, o Velho, que pertencia a uma classe

social e cultural diferente, é uma fonte bem mais rica; em sua obra,

cada nuance dos conceitos de forma e espécie está representada. A

transição de forma para retrato pode ser vista claramente no memo

rável começo do seu trigésimo quinto livro, no qual deplora o declí

nio do retrato na pintura: Imaginum quidem pictura, qua maxime

similes im aevum propagantur figura e [A pintura de quadros com a

qual sepropagam no tempo imagens muitíssimo fiéis]; e mais adian

te, quando fala dos livros ilustrados com retratos, uma técnica

inventada por Varrão: imaginum amorem jlagrasse quondam testes

sunt... et Marcus Varro... insertis... septingentorum illustrium ... ima-

ginibus: non passus intercidere figuras, aut vetustatem aevi contra

homines valere, inventor muneris etiam diis invidiosi, quando

immortalitatem non solum dedit, verum etiam in omnes terras misit,

ut praesentes esse ubique credi possent [O fato de que outrora havia

uma paixão por imagens é atestado por . .. e também por Marco

Varrão... que inseriu imagens de setecentas pessoas ilustres: não

admitindo que as figuras desaparecessem ou que o tempo passado

prevalecesse sobre homens, foi inventor de um recurso invejável até

aos deuses, uma vez que não só deu aos retratados a imortalidade,

mas também enviou-a a todos os lugares, para que se pudesse crer

que aquelas pessoas estivessem presentes em toda parte].

A literatura jurídica do século I traz alguns poucos trechos emque figura significa "forma externa vazia" ou "semelhança". No

Digesto, 28, 5, 70, encontramos: non solum figuras sed vim quoque

condicionis continere (Próculo ) [conter não só a forma mas também

a força do acordo] e, no Digesto, 50, 16, 116: Mihi Labeo videtur

verborum figuram sequi, Proculus mentem [Labeão parece-me

seguir a forma das palavras e Próculo, a intenção] Qavoleno).

Do ponto de vista de seu futuro destino, a coisa mais importan

te que aconteceu à figura no século I foi o refinamento do conceito

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111

II

ERICH AUERBACH

de figura retórica. O resultado chegou até nós através do nono livro

de Quinti liano. A idéia é mais antiga, é grega; e, como já vimos, fora

expressa em latim por Cícero; mas Cícero ainda não usava a palavra

figura, e,além disso, a técnica da figura de linguagem parece ter sido

muito mais refinada após sua época, durante as infindáveis discus

sões sobre questões retóricas. Quando a palavra foi usada pela pri

meira vez neste sentido é algo que não pode ser determinado comexatidão; provavelmente logo após Cícero, como podemos deduzir,

do título de um livro (De figuris sententiarum), do Aneu Comuto

mencionado por Gélio (9, 10,5), assim como das observações e alu

sões, quer de Sênecal5, quer de Plínio, o Moço. O desenvolvimento

era natural , já que o termo grego era schema. De maneira geral deve

se admitir que o uso técnico da palavra desenvolvera-se anterior

mente, e de modo mais rico do que pode ser mostrado pelas fontes

que chegaram até nós; que, por exemplo, as figuras do silogismo (as

schemata syllogismou, surgidas com o próprio Aristóteles) devem

ter sido mencionadas em latim bem antes de Boécio ou do pseudo

agostiniano Livro das categorias.

Na última seção do livro oitavo e no livro nono da Institutio

oratoria, Quinti liano fornece um relato detalhado da teoria dos tro

pas e das figuras. Este exame, que parece conter uma crítica abran

gente das obras e opiniões anteriores, tornou-se a obra fundamental

sobre esse tema, e todos os esforços subseqüentes foram baseados

nela. Quintiliano distingue os tropas das figuras; o tropa é um con

ceito mais restrito, referindo-se ao uso das palavras e frases num

sentido que não é literal; a figura, por outro lado, é uma forma de

discurso que se desvia do seu uso normal e mais óbvio. O objetivo

da figura não é, como em todos os tropas, substituir palavras por

outras palavras; asfiguras podem ser formadas com palavras empre

gadas em sentido próprio e na ordem adequada. Basicamente tododiscurso é uma ordenação, uma figura, mas a palavra é usada apenas

para aquelas ordenações que são particularmente desenvolvidas com

um sentido poético ou retórico. Desse modo, ele distingue entre

modos de discurso simples (carens figuris, aschematistos [sem figu

ras]) e figurados (figuratus, eschematismenos). A distinção entre

tropa e figura apresenta dificuldades. O próprio Quinti liano hesita

muitas vezes ante a classificação de um recurso de linguagem em um

ou outro modo; no uso subseqüente, figura é geralmente considera-

24

FIGURA

da como o conceito mais alto, abrangendo o tropa, de modo que

qualquer forma de expressão não-literal ou indireta passa a ser clas

sificada como linguagem figurada. Como tropas, Quintiliano

nomeia e indica a metáfora, a sinédoque (mucronem pro gladio;pup-

pin pro navi [lâmina por espada, popa por navio], a metonímia

(Marte por guerra; Virgílio pela obra de Virgílio) , a antonomásia

(Pelida por Aquiles) e muitas outras; divide as figuras nas que envolvem conteúdos e nas que envolvem palavras (figurae sententiarum e

verborum). Enumera assim as figurae sententiarum: a pergunta

retórica respondia pelo próprio orador; os vários meios de antecipar

as objeções (prolepses); a simulação de uma confidência para atrair

os juízes ou o público; a prosopopéia, em que se põem palavras na

boca de outras pessoas, como na de um adversário, ou de personifi

cações, como a pátria; a apóstrofe solene; a ornamentação de uma

narrativa com detalhes concretos, evidentia ou illustratio; as várias

formas de ironia; a aposiopese ou obticentia ou interruptio, na qual

"engolimos" uma parte da frase; o arrependimento fingido sobre

algo que se disse, e muitos outros exemplos; mas a figura que era

considerada a mais importante e que parecia merecer o nome de

figura acima de todas as outras era a alusão velada em suas diversasformas. Os oradores romanos desenvolveram uma técnica refinada

de expressar ou insinuar algo sem dizê-Ia; na maioria dos casos algo

que, por razões políticas ou táticas, ou apenas por uma questão de

efeito, preferiam manter em segredo ou não explicitado. Quintiliano

discorre sobre a importância atribuída ao treino nessa técnica pelasescolas de retórica e conta-nos como os oradores inventavam casos

especiais, controversiae figuratae [controvérsias simuladas], para

aperfeiçoarem-se e distinguirem-se nessa prática. Por fim, menciona

como "figuras de palavras" os solecismos intencionais, as repetições

retóricas, as antíteses, as semelhanças fonéticas, as omissões de palavras, o assíndeto, o clímax etc.

Sua exposição de tropas e figuras, da qual demos os exemplos

mais essenciais, vem acompanhada por uma abundância de exem

plos e estudos detalhados das diferentes formas de uso, assim como

da diferença existente entre elas; isso ocupa uma grande parte dos

livros oitavo e nono. O sistema que ele construiu era muito elabo

rado; ainda que, para um retórica, Quintil iano fosse relativamente

livre em seu pensamento e nada inclinado às sutilezas excessivas que

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II

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ERICH AUERBACH

eram permitidas pelo espíri to da época. A arte das alusões, das insinuações e das circunlocuções veladas, calculadas para ornar umafrase ou torná-Ia eficiente ou mordaz, alcançou uma versatil idade eperfeição que nos impressionam como algo estranho, quando nãoabsurdo. Esses recursos de linguagem eram chamados figurae. AIdade Média e o Renascimento, como sesabe, ainda atribuíam gran

de importância à ciência das figuras de linguagem. Para os teóricosdo estilo dos séculos XII e XIII, o Ad Herennium16 era a principalfonte de sabedoria.

É o que temos a dizer sobre a palavra figura na antiguidadepagã; umas poucas extensões gramaticais, retóricas e lógicas derivamautomaticamente dos significados já estabelecidos, e algumas delasjá foram mencionadas por outros escritores17, 18. Mas o significadoque os Padres da Igreja deram à palavra, baseados no desenvolvimento que descrevemos nas páginas anteriores, teve uma altaimportância histórica.

2. Figura na profecia fenomenal dos Padres da Igreja

O estranho e novo significado de figura no mundo cristão podeser encontrado pela primeira vez em Tertuliano, que o usa com freqüência. Para que se possa esclarecer seu significado é preciso discutir algumas passagens. Em seu polêmico Adversus Marcionem (3,

16),Tertuliano fala de Osée, filho de Nun, a quem Moisés (de acordo com Números 13:16) chamou Josué:

...et incipit vocari Jesus... Hanc prius dicimus figuram futuro-

rum fuisse. Nam quia Jesus Christus secundum populum,

quod sumus nos, nati in saeculi desertis, introducturus erat in

terram promissionis, melle et lacte manantem, id est vitae

aeternae possessionem, qua nihil dulcius; idque nom per

Moysen, id est, nom per legis disciplinam, sedper Jesum, id

est per evangelii gratiam provenire habebat (termo do latimvulgar para" estava para acontecer"), circumcisis nobis petri-

na acie, id est Christi praeceptis; Petra enim Christus; ideo is

vir, qui in huius sacramenti imagines parabatur, etiam nomi-

nis dominici inauguratus estfigura, Jesus cognominatus.

26

FIGURA

[ .. .e pela primeira vez ele é chamado Jesus.. . esta, observamos em primeiro lugar, foi a imagem das coisas que viriam aacontecer, pois Jesus Cristo ia introduzir um segundo povo,que somos nós, nascidos nos desertos deste mundo, na terraprometida, da qual emanam o mel e o leite, isto é, na posseda vida eterna, da qual nada existe de mais doce; e isto tinha

de acontecer não por meio da lei de Moisés, isto é, por meioda disciplina da Lei, mas por meio de Jesus, isto é, por meioda graça do evangelho, nossa circuncisão sendo realizadapor uma faca de pedra, isto é, depois de termos sido circuncidados por uma pedra de cortar, isto é, segundo os preceitos de Cristo, pois Cristo é a pedra. Por isso, este homem,que era preparado como imagem deste sacramento, foi consagrado em figura com o nome do Senhor e, assim, chamado Jesus.]'

Aqui o nome Josué-Jesus é tratado como um acontecimentoprofético, antecipando coisas que viriam 19. Assim como foi Josué, enão Moisés, que conduziu o povo de Israel para a terra prometidada Palestina, assim a Graça de Jesus, e não a lei judaica, conduz o"segundo povo" para a terra prometida da beatitude eterna. Ohomem que apareceu como a anunciação profética deste mistérioainda oculto, qui in huius sacramenti imagines parabatur, foi apresentado sob a figura no nome divino. Deste modo, o nome JosuéJesus é uma profecia fenomenal ou prefiguração do futuro Salvador;figura é algo real e histórico que anuncia alguma outra coisa quetambém é real e histórica. A relação entre os dois eventos é revelada por um acordo ou similaridade. Assim, por exemplo, dizTertuliano em Adversus Marcionem (5, 7): Quare Pascha Christus,

si non Pascha figura Christi per similitudinem sanguinis salutaris et

pecoris Christi? [Como Cristo é Páscoa, a não ser se Páscoa for aimagem de Cristo pela semelhança do sangue salvador e do rebanhode Cristo?]. Muitas vezes, vagas similaridades na estrutura dosacontecimentos ou em circunstâncias relacionadas com eles bastam

para tornar a figura reconhecível; para descobri-Io, temos de estardeterminados a interpretar de um certo modo. Por exemplo, quando (ibid. , 3,17, ou Adversus Iuadeos, 14) os dois bodes sacrificadosno LevÍtico 16:7ss. são interpretados como figuras da primeira e da

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segunda vindas de Cristo; ou quando, emDe anima, 43 (d. tambémDe monogamia, 5) Eva, como figura Ecclesiae, é desenvolvida a par

tir de Adão como f igura Christi: Si enim Adam de Christo f iguram

dabat, somnus Adae mors erat Christi dormituri in mortem, ut de

iniuria (ferida) perinde lateris eius vera mater viventium figuraretur

ecclesia20 [Pois se Adão fornecia uma figura de Cristo, o sono de

Adão era a morte de Cristo, então da mesma maneira pela ferida nosflancos deveria ser figurada a Igreja, a verdadeira mãe de todos os

vivos]'

Mais adiante veremos como foi que surgiu o desejo de interpre

tar dessa maneira. Esse tipo de interpretação tinha como objetivo

mostrar que todas as pessoas e acontecimentos do Velho Testa

mento eram prefigurações do Novo Testamento e de sua histó

ria de redenção. Vale a pena observar que Tertuliano negou expres

samente que a validade literal e histórica do Velho Testamento

pudesse ser diminuída pela interpretação figura!. Ele era decidida

mente hostil ao espiritualismo e recusava considerar o Velho

Testamento como mera alegoria; para ele, seu significado era total

mente literal e real, pois, até onde havia profecia figural, a figura

possuía tanta realidade histórica quanto aquilo que profetizava. A

figura profética, em seu entendimento, era um fato histórico concre

to, preenchida por fatos históricos concretos. Por esse motivo,

Tertuliano usa o termo f iguram implere (Adversus Marcionem, 4,

40:figuram sanguinis sui salutaris implere [preencher a figura de seu

sangue salvador] ou confirmare (De fuga in persecutione, XI:

Christo confirmante figuras suas [Cristo confirmando suas figuras]).

Daqui em diante iremos nos referir aos dois acontecimentos como

figura e preenchimento.Como se sabe, Tertuliano era um realista convicto. Para ele,

figura, no simples sentido de "forma", faz parte da substância, e, emAdversus Marcionem (5, 20), irá compará-Ia à carne. Um pouco

antes desse trecho (4, 40), dissera a propósito do pão na Eucarist ia:

Corpus illum suum fecit "Hoc est corpus meum" dicendo,

"ide est, f igura corporis mei". Figura autem non fuisset, nisi

veritatis esset corpus. Ceterum vacua res, quod est phantas-

ma, f iguram capere non posset . Aut si propterea panem cor-

pus sibi f inxit, quia corporis carebat veri tate, ergo panem

28

FIGURA

debuit tradere pro nobis. Faciebat ad vanitatem Marcionis,

utpanis crucifigeretur. Cur autem panem corpus suum appel-

lat, et non magis peponem, quem Marcion cordis loco

habuit? Non intelligens veterem fuisse istam figuram corpo-

ris Christi, dicentis per Ieremiam [11:19]: Adversus me cogi-

taverunt cogitatum dicentes, Venite, coniiciamus lignum in

panem eius, scilicet crucem in corpus eius.[Ele transformou-o em seu corpo, dizendo: "Este é meu

corpo, isto é, a figura de meu corpo". Pois não teria havido

figura se não houvesse um corpo de verdade. De resto, uma

coisa vazia, que é um fantasma, não pode assumir uma figu

ra. E, portanto, se figurou que seu corpo era pão porque

carecia da verdade do corpo, então deveria nos ter oferecido

o pão. Satisfaria a futilidade de Marcião de que o pão fosse

crucificado. Mas por que chamar "pão" seu corpo e não

"melão", que é o que Marcião tinha no lugar de coração? Ele

não percebeu que era antiga esta figura do corpo de Cristo,

que disse por meio de Jeremias (11:19): "Tramaram tramas

contra mim, dizendo: 'Vinde, lancemos madeira em seu

pão"', ou seja, a cruz em seu corpo. ].

Estas frases poderosas - na seguinte, com ênfase nada menor, o

vinho,figura sanguinis [figura do sangue], é representado como pro-

batio carnis [provação da carne]21 - mostram claramente como

ambos os termos eram considerados concretamente na interpreta

ção figural de Tertuliano; em qualquer caso, o único fator espiri tual

é a cómpreensão, intellectus spiritualis, que reconhece a figura no

preenchimento. Os profetas, afirma em De resurrectione carnis

(19 ss. ), não falavam apenas através de imagens; pois, se o tivessem

feito, seríamos incapazes de reconhecer as imagens; boa parte doque disseram deve ser tomado literalmente, assim como no Novo

Testamento: nec omnia umbrae, sed et corpora; ut in ipsum quoque

Dominum insigniora quaeque luce clarius praedicantur; nam et

virgo concepit in utero, non figurate; et peperit Emanuelem nobis-

cumJesum Christum, non oblique [nem tudo são sombras, mas tam

bém corpos, de modo que mesmo sobre o próprio Senhor fazem-se

certas predições mais claras do que o dia, pois também a Virgem

concebeu em seu útero, não de forma figurada, e gerou, não de

29

:" ~

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ERICH AUERBACH

forma oblíqua, a Emanuel, "Deus conosco", Jesus Cristo]. E atacaresolutamente aqueles que, diante da ressurreição dos mortos, distorcem com um "significado imaginário" (in imaginariam significa

tionem distorquent) o que fora claramente proclamado. São muitosos trechos desse teor, em que combate as tendências espiritualizantes de grupos de sua época. Seu realismo fica ainda mais claro quan

do trata da relação entre figura e preenchimento, concedendo, ora auma, ora a outro, um nível mais alto de concretude histórica. Em

Adversus Marcionem (4, 40), por exemplo, an ipse erat, qui . . . tam

quam ovis coram tendente sic os non aperturus, f iguram sanguinis

sui salutaris implere concupiscebat? [Acaso não era ele mesmo ... que,sem abrir a boca - tal como a ovelha diante do tosquiador - desejava ardentemente preencher a figura de seu sangue salvador?], afigura do servo de Deus como um carneiro parece ser um merosÍmile; em outro trecho, a Lei como um todo é justaposta a Cristocomo seUpreenchimento (ibid., 5, 19: de umbra transfertur ad cor

pus, id est, de figuris ad veritatem [Transfere-se da sombra para o

corpo, isto é, das figuras para a verdade]). Pode parecer que, no primeiro caso, o sÍmile e, no segundo, a abstração façam com que afigura perca uma certa força de realidade. No entanto não faltamexemplos em que a figura possui a mais alta concretude. Em De

baptismo (5), onde a piscina de Betesda aparece como uma figura dobatismo, encontramos a frase: figura ista medicinae corporalis spiri

talem medicinam canebat, eaforma qua semper carnalia infiguram

sipiritalium antecedunt [Esta figura da medicina corporal decantavaa medicina espiritual, segundo aquela regra pela qual as coisas carnais aparecem sempre antes na figura de coisas espirituais]. Mastanto a piscina de Betesda quanto o batismo são concretamentereais, e tudo o que há de espiritual neles é a interpretação ou o efeito; pois o batismo, como Tertuliano apressa-se em acrescentar (ibid.,7), também é uma ação carnal: sic et in nobis carnaliter currit unctio,

sed spiri taliter proficit; quomodo et ipsius baptismi carnalis actus,

quod in aqua mergimur, spiritalis effectus, quod delictis liberamur

[Assim também em nós a unção age carnalmente, mas é útil espiritualmente; do mesmo modo, o ato do próprio batismo é carnal, umavez que somos mergulhados em água, mas espiri tual é o efeito, umavez que somos libertados dos delitos]. Esses exemplos nos dão osentimento de que, até mesmo nos dois primeiros casos, Tertuliano

30

FIGURA

tinha em mente não só um cordeiro metafórico, mas também real;não só a lei de modo abstrato, mas também a era da lei como umaera histórica.

Às vezes duas frases estão relacionadas entre si como figura epreenchimento, como em De fuga in persecutione, 11: certe quidem

bonus pastor animam pro pecoribus ponit; ut Moyses, non Domino

adhuc Christo revelato, etiam in sefigurato, ait: Siperdis hunc populum, inquit, et me pariter cum eo disperde (Êxodo 32:32). Ceterum,

Christo confirmante figuras suas, malus pastor est .. . Ooão 10:12).

[Decerto o bom pastor dá sua vida pelo rebanho, assim comoMoisés - quando Cristo Senhor não tinha sido ainda revelado,ainda que nele prefigurado - disse: "se destruíres teu povo", disseele, "com ele destróis igualmente a mim por inteiro] (Êxodo 32:32).

E Cristo, confirmando estas figuras, disse: é mau pastor ... Ooão10:12)]. As duas frases são acontecimentos históricos; no entanto,mais do que as frases, são Moisés e Cristo que se relacionam comofigura e preenchiment022. O preenchimento é constantemente

designado como veritas, como se viu em exemplo anterior, e a figura, por sua vez, como umbra ou imago: mas tanto sombra quantoverdade são abstratas apenas em referência ao significado, a princípio ocultado para ser revelado em seguida; são concretas em referência às coisas ou pessoas que aparecem como veículos do significado. Moisés não setorna menos histórico e real porque é umbra oufigura de Cristo; e Cristo, o preenchimento, não é uma idéia abstrata, mas uma realidade histórica. As figuras históricas reais devem serinterpretadas espiritualmente (spiritaliter interpretari), mas a interpretação aponta para um preenchimento carnal e, por conseguinte,histórico (carnaliter adimpleri: De resurrectione, 20) - pois a verdade fez-se carne ou história.

A partir do século IV; o uso da palavra figura e o método deinterpretação a ela ligado estão plenamente desenvolvidos em quasetodos os escri tores lat inos da Igreja23. Às vezes até mesmo a alegoria comum era denominada como figura, uma prática que maistarde se tornou usual; em Divinae institutiones (2, 10), Lactânciointerpreta sul e norte como f igurae vitae et mortis [figuras da vidae da morte] , dia e noite como féverdadeira e falsa; mas logo a noçãocristã de prefiguração e preenchimento se impõe: etiam in hoc

praescius futurorum Deus fecit, ut ex iis, et verae religionis, etfalsa-

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ERICI-! AUERBACH

rum superstitionum imago quaedam ostenderetur [etambém quanto a isto, presciente das coisas futuras, Deus fez que delas se exibisse uma imagem tanto da verdadeira religião quanto das falsassuperstições]. Assim figura aparece freqüentemente no sentido de"significado mais profundo em relação a coisas futuras": os sofrimentos de Jesus non fuerunt inania, sed habuerunt figuram et sig-

nificationem [não foram vãos, mas tiveram forma e significação], e,dentro desse contexto, ele fala das obras divinas em geral quorum

vis etpotentia valebat quidem inpraesens, sed declarabat aliquid in

futurum [cuja força e poder vigoravam no presente, mas anunciavam algo para o futuro]. Esta concepção domina igualmente a suaescatologia, que, segundo uma especulação muito comum na época,interpretava os seis dias da Criação como seis milênios, cujo fim seaproximava; o reino milenar era iminente (ibid., 7, 14): saepe dixi-

mus, minora et exigua magnorum figuras etpraemonstrationes esse;

ut hunc diem nostrum qui ortu solis occasuque finitur, diei magni

speciem gerere, quem circuitus annorum mille determinat. Eodem

modo figuratio terreni hominis caelestis populi praeferebat in poste-

rum fictionem24 [Com freqüência dissemos que coisas menores epequenas são figuras e indicações prévias das coisas grandes. Assimcomo este dia de hoje, que é limitado pelo nascer e pôr do sol, temsemelhança com o grande dia, que o ciclo de mil anos determina,assim também a figuração do homem terreno antecipava a parábola do povo celeste no futuro].

Na maior parte dos autores do mesmo período, a interpretaçãofigural e seus exemplos mais famosos são moeda corrente2S, bemcomo a contraposição entre figura e veritas. Mas encontramos àsvezes um modo de interpretação mais espiritualista e alegórico,como nos comentários de Orígenes à Bíblia. Rufino, o tradutor

latino de Orígenes (Patrologia graeca, 12,209; o original grego perdeu-se), num trecho a propósito do sacrifício de Isaac - que é porsua vez um dos mais famosos exemplos do tipo realista de interpretação figural -, diz o seguinte: Sicut in Domino corporeum nihil

est, etiam tu in his omnibus corporeum nihil sentias: sed in spiritu

generes etiam tu filium Isaac, cum habere coeperisfructum spiritus,

gaudium, pacem [Assim como no Senhor não há nada corpóreo, tutambém em todas as coisas nada corpóreo sintas; mas que, em espírito, tu mesmo geres teu filho Isaac, quando começares a possuir o

32

FIGURA

fruto do espírito, a alegria, a paz]. Orígenes, por sua vez, está longede ser tão abstratamente alegórico quanto, por exemplo, Filo; emseus escritos, os acontecimentos do Velho Testamento parecemvivos, tendo uma relação imediata com o leitor e sua vida real; ainda

assim, em sua bela explicação da jornada dos trê~ dias no Êxodo,por exemplo (loc. cit., p. 313 ss.), as considerações místicas e morais

parecem ofuscar o elemento estritamente históric026. A diferençaentre a interpretação mais histórica e realística de Tertuliano e a

visão ética e alegórica de Orígenes reflete um conflito corrente, queconhecemos através de outras fontes do cristianismo primitivo:uma facção lutava para transformar os acontecimentos do NovoTestamento, e mais ainda do Velho Testamento, em acontecimentospuramente espirituais , "espiritualizando" seu caráter histórico - aoutra queria preservar a plena historicidade das Escrituras ao ladode seu significado mais profundo. No Ocidente, esta última tendência foi vitoriosa, embora os espiritualistas tenham mantido sempre uma certa influência, como se pode verificar pelo avanço da

doutrina dos significados múltiplos da Escritura; pois, se os adeptos dessa doutrina reconhecem o sentido literal ou histórico, procuram desligá-Io da conexão igualmente real com a prefiguração,construindo outras interpretações puramente abstratas ao lado dainterpretação figural ou em seu lugar. Santo Agostinho exerceu umpapel decisivo no compromisso entre as suas doutrinas. De modo

geral, ele favoreceu uma interpretação viva, figural, pois seu pensamento era bastante histórico e concreto para se contentar com umaalegoria puramente abstrata.

Toda a tradição clássica fazia-se muito viva em Santo

Agostinho, e seu uso da palavra figura é mais uma comprovaçãodesse aspecto. Em seus escritos, vamos encontrá-Ia exprimindo a

noção geral de forma em todas as suas variantes tradicionais,designando estática e dinâmica, contorno e corpo; é aplicada aomundo, à natureza como um todo e ao objeto em particular; aolado de forma, color e assim por diante, representa a aparênciaexterna (Epist., 120, 10, ou 146, 3) ou pode significar o aspectovariável em oposição à essência imperecível. É neste último sentido que interpreta I , Cor. 7:31: Peracto quippe iudicio tunc essedesi-

net hoc coelum et haec terra, quando incipiet esse coelum novum et

terra nova. Mutatione namque rerum non omni modo interitu

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ERICH AUERBACH

transibi t hic mundus. Unde et apostolus dici t: praeterit enim figu-

ra huius mundi, volo vos sine soll icitudine esse. Figura enim prae-

terit, non natura [Terminado o julgamento, então este céu e esta

terra deixarão de existir e começarão a existir um novo céu e uma

nova terra. Mas este mundo sofrerá apenas transformação, não

destruição total. Por isso, o apóstolo disse: pois a forma deste

mundo passa, e quero que não vos preocupeis. Passa a forma, nãoa natureza] (De civitate Dei, 20, 14). Figura surge também como

um ídolo, uma imagem de sonho ou uma visão, uma forma mate

mática; quase nenhuma de suas variantes está faltando. Mas na

maioria das vezes aparece com o sentido de prefiguração.

Agostinho adotou explicitamente a interpretação figural do Velho

Testamento e recomendou enfaticamente seu emprego em sermões

e missões (por exemplo, De catechizandis rudibus, IH, 6), desen

volvendo esse método. Todo o seu repertório de interpretações

chegou até nós através de sua obra: a arca de Noé é praefiguratio

ecclesiae [a prefiguração da Igreja] (De civitate Dei, 15, 27); de

várias maneiras diferentes, Moisés é figura Christi (por exemplo,

De civi tate Dei, 10, 8, ou 18, 11); o sacerdotium de Aarão é umbra

et f igura aeterni sacerdoti i [a sombra e o simulacro do eterno

sacerdote] (ibid., 17, 6); Hagar, a escrava, é uma figura do Velho

Testamento, da terrenajerusalem, e Sara, do Novo Testamento, da

superna jerusalem civitas Dei [a celestial Jerusalém, cidade de

Deus] (ibid. , 16,31; 17,3; Expos. ad GaIatas, 40); Jacó e Esáufigu

ram praebuerunt duorum populorum in Christianis et Iudeis [pre

figuraram dois povos, os judeus e os cristãos] (De civi tate Dei, 16,

42); o rei daJudéia (Christi) figuram prophetica unctione gestabant

( ibid., 17,4) [por meio da unção profética traziam a si a prefigura

ção do Cristo]. Estes são apenas alguns exemplos; todo o Velho

Testamento, ou pelo menos seus personagens e acontecimentosmais importantes, é interpretado figuralmente; até mesmo onde

significados secretos são encontrados, como por exemplo na ora

ção de graças de Ana (I Samuel2:1-10), em De civ., 17,4, a inter

pretação não é apenas alegórica mas também figural; o canto de

graças de Ana pelo nascimento de seu filho Samuel é explicado

como uma figura para a transformação do antigo reino terrestre e

do antigo sacerdócio no novo reino celeste e no novo sacerdócio;

ela própria transforma -se em figura ecclesiae.

34

il11

ti'ª.

liIli!

FIGURA

Agostinho rejeitou enfaticamente a interpretação alegórica das

Sagradas Escrituras, bem como a noção de que o Velho Testamento

era uma espécie de livro hermético que só se tornava inteligível quan

do nos desembaraçávamos de seu significado histórico literal e de sua

interpretação vulgar. Sustentou que cada crente poderia penetrar em

seu conteúdo sublime. Em De trinitate (11, 2) escreve: ...sancta scrip-

turaparvulis congruens nullius generis rerum verba vitavit, ex quibus

quasi gradatim ad divina atque sublimia noster intellectus velut nutri-

tus assurgeret [a Santa Escritura, adaptando-se a crianças, não evitou

palavras de nenhum gênero de coisas, a partir das quais nosso intelec

to, como que gradativamente alimentado, ergueu-se até aquelas divi

nas e sublimes]. Mais uma vez, referindo-se de modo mais direto ao

problema das figuras: Ante omnia, fratres, hoc in nomine Domini et

admonemus, et praecipimus, ut quando auditis exponi sacramentum

scripturae narrantis quae gesta sunt, prius illud quod lectum est creda-

tis sic gestum, quomodo lectum est;ne substrato fundamento rei ges-

tae, quasi in aere quaeratis aedificare (Serm., 2, 6)27[Antes de tudo,

irmãos, em nome do Senhor advertimos e recomendamos que, quan

do ouvirdes expor-se o sacramento da escritura a narrar as ações queforam realizadas, creiais que foi realizado aquilo que se lê, para que,

subvertido o fundamento da ação realizada, não vénhais a erguer um

edifício como que no ar]. Ele postulava - e isso se tomou parte da

tradição - que o Velho Testamento estava consti tuído de pura pro

fecia fenomenal e enfatizava mais do que os outros certas passagens

das epístolas paulinas, que iremos comentar mais adiante. O cumpri

mento da lei, quas tamquam umbras futuri saeculi nunc respuunt

Christiani, id tenentes, quod per illas umbras figurate promittebatur

[que os cristãos agora descartam como sombras do século futuro,

possuindo eles aquilo que, por meio daquelas sombras, era figurada

mente prometido], e os mistérios, quae habuerunt promissivas figuras[que tinham figuras de promessa], são a letra da Escri tura, precisa

mente no sentido em que sua indubitável realidade histórica e carnal

tinha sido, também historicamente, revelada e interpretada espiritual

mente pelo preenchimento cristão - e, como logo veremos, substi

tuída por uma promessa nova, mais completa e mais clara. Em conse

qüência, um cristão deve seguir non ad legem operum, ex qua nemo

iustificatur, sed ad legem fidei, ex qua iustus vivit [não a lei das obras,

pela qual ninguém é absolvido, mas a lei da fé,pela qual o justo vive]

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ERICH AUERBACH

(De spzrztu et l ittera, XlV, 23). Os judeus do Velho Testamento,

quando adhuc sacrificium verum, quod fideles norunt, in figuris

praenuntiabatur, celebrabant figuram futurae rei; multi scientes, sed

plures ignorantes [quando ainda era prenunciado o verdadeiro sacri

fício que os fiéis conhecem, celebravam a prefiguração da realidade

futura. Sábios havia muitos; ignorantes, porém, havia mais] (Enarr.

in Psalm., 39, 12); enquanto os judeus que vieram depois, e aqui ele

toca num tema que estaria presente em todas as polêmicas subse

qüentes contra os judeus28, recusam-se, em sua cegueira empederni

da, a reconhecê-Io: Non enim frustra Dominus ait Judaeis: si crede-

retis Moysi, crederetis et mihi; de me enim ille scripsit [Pois não foi à

toa que o Senhor disse aos Judeus: "se acreditásseis em Moisés, acre

ditaríeis também em mim; foi de mim que ele escreveu] Goão, 5,46);

carnaliter quippe accipiendo legem, et eius promissa terrena rerum

coelestium figuras esse nescientes [pois eles aceitavam esta lei carnal

mente, ignorando que as promessas terrenas eram figuras das coisas

celestes] (De civ., 20, 28). Mas o preenchimento "celestial" não é

completo e, em conseqüência, como acontece em certos escritores

anteriores e mais claramente em Agostinho, o confronto entre osdois pólos, o da figura e o do preenchimento, é às vezes substituído

por um desenvolvimento em três estágios: a Lei ou a história dos

judeus como uma figura profética do surgimento de Cristo; a encar

nação como preenchimento desta figura e ao mesmo tempo como

uma nova promessa do fim do mundo e do Juízo Final; e, por últi

mo, a ocorrência futura destes acontecimentos como o preenchimen

to derradeiro. Em Serm., 4, 8, lemos: Vetus enim Testamentum est

promissio figurata, novum Testamentum est promissio spiritualiter

intellecta [O Velho Testamento é uma promessa figurada, o Novo é

uma promessa compreendida pelo espírito], e de modo ainda mais

claro em Contra Faustinum, 4, 2: Temporalium quidem rerum pro-missiones Testamento Veteri contineri, et ideo Vetus Testamentum

appellari nemo nostrum ambigit; et quod aeternae vitae promissio

regnumque coelorum ad Novum pertinet Testamentum: sed in il lis

temporalibus figuras fuisse futurorum quae implerentur in nobis, in

quos finis saeculorum obvenit, non suspicio mea, sed apostolicus intel-

lectus est , dicente Paulo, cum de talibus loqueretur: Haec omnia ...

[Pois nenhum de nós duvida que o Velho Testamento contém pro

messas de coisas temporais e que, por isso, é chamado Velho

36

FIGURA

Testamento, e que a promessa de vida eterna e do reino dos céus per

tence ao Novo Testamento; mas que naquelas coisas temporais

houve prefigurações de coisas futuras que seriam preenchidas em

nós, a quem o fim dos séculos se aproxima, não é suspeita minha,

mas interpretação apostólica, como em Paulo, que diz, ao falar de tal

assunto: tudo isto . ..] . E neste momento Agostinho cita I Cor. 10:6 e

11. Embora aqui o preenchimento derradeiro seja visto como iminente, é claro que Agostinho tem em mente duas promessas, uma

oculta e aparentemente temporal no Velho Testamento, outra clara

mente expressa e supratemporal no Evangelho. Isto confere à dou

trina do significado quádruplo da Escritura um caráter bem mais rea

lístico, concreto e histórico, pois três dos quatro significados torna

ram-se concretos, históricos e inter-relacionados, enquanto só um

permanece puramente ético e alegórico. Como Agostinho explica em

De genesi ad litteram, 1, 1: In libris autem omnibus sanctis intueri

oportet, quase ibi aeterna intimentur [Em todos os livros santos é

preciso olhar que coisas lá revelam-se eternas], isto é: o fim do

mundo e a vida eterna na interpretação analógica; quae futura prae-

nuntientum [que prenunciam fatos futuros], ou seja, a interpretação

figural em sentido estrito: no Velho Testamento, as prefigurações da

vinda de Cristo; quae agenda praecipiantur vel moneantur [que

ordenem ou aconselhem o que se deve fazer] , ou seja, o sentido ético.

Embora Agostinho rejeite o espiri tualismo abstrato alegórico e

desenvolva sua interpretação do Velho Testamento com base na rea

lidade histórica concreta, conserva no entanto um idealismo que

transfere o acontecimento concreto, completamente preservado

enquanto tal, para fora do tempo, e o transpõe para o plano da eter

nidade. Tais idéias estavam implícitas na noção da encarnação do

Verbo; a interpretação figural da história abriu caminho para que

elas se manifestassem logo. Quando Tertuliano, por exemplo, diz(Adversus Marcionem, 3, 5) que, em Isaías 50:6, dorsum meum posui

in flagella (na Vulgata, corpus me um dedi percutientibus) [ofereci as

costas às chicotadas (Vulgata: dei meu corpo aos flageladores)], o

futuro é representado figuralmente pelos acontecimentos passados,

acrescenta que, para Deus, não há differentia temporis [diferença de

tempo]. Mas nenhum dos precursores de Agostinho chegou a

desenvolver essa idéia de modo tão profundo e integral quanto o

próprio Agostinho. Aqui e ali ele enfatiza a oposição sentida por

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ERICH AUERBACH

Tertuliano apenas com o emprego do pretérito perfeito na narrativa;em De civ., 17, 8, por exemplo: Scriptura sancta etiam de rebus ges-

t is prophetans quodammodo in eo figuram delineat futurorum [ASanta Escritura, profetizando também sobre as ações realizadas, decerto modo delineia lá uma prefiguração das coisas futuras]; ou emrelação a uma discrepância entre o Salmo 113, In exitu, e a narrati

va correspondente no Êxodo (Enarr. in Psalm., 113, 1): ne arbitre-mini nobis narrari praeterita, sedpotius futura praedici ... ut id, quod

infine saeculorum manifestandum reservabatur, figuris rerum atque

verborum praecurrentibus nuntiaretur [não julgueis que sejam fatospassados o que está sendo narrado, mas, ao contrário, que sejamfatos futuros o que está sendo predito ... de modo que aquilo queestava reservado para ser manifesto no fim dos tempos já era anunciado, por meio de figuras de objetos e de palavras, aos que nos precederam]. Talvez a visão de Agostinho acerca do caráter eterno dasfiguras possa ser melhor apreciada numa passagem que não se refere explicitamente à interpretação figural: Quid enim estpraescientia,

nisi scientia futurorum? Quid actem futurum est Deo qui omnia

supergreditur tempora? Si enim scientia Dei res ipsas habet, non sunt

ei futurae, sed praesentes; acper hoc non jam praescientia, sed tan-

tum scientia dicipotest [O que é a previsão, senão o conhecimentodo futuro? O que é o futuro para Deus, que atravessa todos os tempos? Se, pois, o conhecimento de Deus contém estas coisas, para Eleelas não são futuras, mas presentes; por isso, já não pode ser nomeada previsão, mas apenas conhecimento] (De div. quaest. ad

Simplicianum, II, qu. 2, n. 2).A interpretação figural foi de grande uso prático para as missões

do século IV e seguintes; foi constantemente empregada em sermõese na instrução religiosa, muitas vezes, claro, misturada com inter

pretações puramente éticas e alegóricas. A Formulae spiritalis intel-

ligentiae29 do bispo Euquério de Lyon (começo do século V), educado em Lérins, é um manual de interpretação figural e ética; noséculo VI temos o Instituta regularia divinae legis de Junílio,Quaestor sacri palatii (Patrologia latina, vol. 68, cols. 15 ss.), que éuma tradução de uma obra grega influenciada pela escola deAntióquia; em seu primeiro capítulo encontramos a seguinte doutrina: Veteris Testamenti intentio est Novum figuris praenuntiationi-

busque monstrare; Novi autem ad aeternae beatitudinis gloriam

38

FIGURA

humanas mentes accendere [A intenção do Velho Testamento édemonstrar o Novo por meio de figuras e profecias; e a intenção doNovo é despertar as mentes dos homens para a glória da felicidadeeterna]. Um exemplo prático de como a interpretação figural foiusada na educação dos novos convertidos é fornecido pela explicação do sacrifício pascal no segundo sermão do bispo Gaudêncio de

Brescia (Patrologia latina, 20, col. 855), que nos dá talvez umaexpressão inconsciente da perspectiva figural quando afirma que afigura (anterior no tempo) não é veritas, mas imita tio veritatis.

Encontramos interpretações figurais muito estranhas e forçadas,misturadas a alegorias abstratas, éticas. Mas a visão básica de que oVelho Testamento, tanto no seu todo quanto em seus detalhes maisimportantes, é uma prefiguração histórica concreta do Evangelhotornou-se uma tradição firmemente enraizada.

Agora vamos voltar à nossa investigação semântica e indagarcomo os Padres da Igreja chegaram ao novo sentido de figura. Osprimeiros trabalhos da literatura cristã foram escritos em grego, e apalavra mais freqüentemente usada neles como "prefiguração" - naEpístola de Barnabas, por exemplo - é typos. Isto nos conduz àpresunção - que deve ter surgido para o leitor a partir de algumasde nossas citações, os trechos de Lactâncio, por exemplo - de quefigura passou diretamente de seu significado geral de "formação" ou"forma" para seu novo significado; e de fato seu uso pelos mais antigos escritores eclesiásticos parece indicar que tenha sido mesmoassim. Quando escrevem que as pessoas ou os acontecimentos doVelho Testamento figuram Christi (ecclesiae, baptismi etc.) gerunt

ou gestant [produzem, prefazem uma figura de Cristo], que o povojudeu em todas as coisas figuram nostram portat [traz nossa figura],que a Sagrada Escritura figuram delineat futurorum [delineia a

figura das coisas por vir], figura nestas frases pode ser traduzidasimplesmente por "forma". Mas aí a idéia de schema, tal como foimoldada pela poesia e oratória pré-cristãs - a imagem retórica oucircunlocução que oculta, transforma e até engana -, entra em ação.A oposição entre figura e veritas, a interpretação (exponere) e arevelação (aperire, revelare)3° de figuras, a equação de figura comumbra, de sub figura com sub umbra (por exemplo, ciborum [do alimento], ou, num sentido mais geral, legis [da lei], a noção de umafigura sob a qual alguma outra coisa futura, verdadeira, jaz oculta)

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ERICE AUERBACE

- tudo isto mostra que o velho sentido da imagem retórica sobre

viveu, embora tivesse se transferido do mundo puramente nomina

lista das escolas de oratória e dos mitos meio brincalhões de Ovídio

para um domínio tanto real quanto espiritual, por conseguinte,

autêntico, significativo e existencial. A distinção entre figuras de

palavras e figuras de substância que encontramos em Quinti liano é

resumida na distinção entre figura verborum e figurae rerum, palavras e acontecimentos proféticos ou profecias fenomenais.

Sobre esta nova base, a palavra ampliou consideravelmente o

alcance de sua significação. Encontramos figura como" o significa

do mais profundo" em Sedúlio por exemplo (ista res habet egregiam

figuram [este fato tem um significado notável], Carm. pasch., 5, 384 s.)

e em Lactâncio; como "engano" ou "forma enganosa" (Filástr io 61,

Liber de Haeresibus, Patrologia latina, vol. 12, col. 1176) (sub figu

ra confessionis christianae [sob a figura da fé cristã] , significando

"alegando ser cristãos"), ou Sulpício Severo, De vita beati Martini,

21, 1 (Patralogia latina, vol. 20, col. 172), que diz que o Demônio

sive [se]in diversas figuras spiritalis nequitiae transtulisset [transfor

mou-se em diversas formas de perversidade espiritual], ou Leo, o

Grande, Epist. 98, 3 (Patralogia latina, 54, 955: lupum pastorali pelle

nudantes, qua prius quoque figura tantummodo convincebatur

obtectus [Despindo o lobo da sua pele de ovelha, com a qual pouco

antes ele se mostrava disfarçado]; como "uma forma enganosa de

falar" ou "vazia" ou "subterfúgio" (per tot f iguras ludimur [por

meio de tantas figuras sofremos zombaria], Prudêncio,

Peristephanon, 2, 315, ou Rufino, Apologia adversus Hieronymus, 2,

22: qualibus (Ambrosium) figuris laceret [com quais figuras ator

mentou Ambrósio]; ou simplesmente como "discurso" ou "pala

vra" (te... incauta violare figura [magoar-te com uma expressão des

cuidada], Paulinus de Nola, Carmina, 11, 12); e finalmente emvariações do novo significado que mal permitem uma tradução

apropriada: no canto De actibus apostolorum do subdiácono Arator

do século VI (Patrologia latina, 68, cols. 83ss.), encontramos os ver

sos: tamen illafigura, qua sine nulla vetus (i. e., Veteris Testamenti)

subsisti t l it tera, demun hac melius novitate manet [porém aquela

figura, sem a qual nenhuma letra do Velho Testamento subsiste, pre

cisamente no Novo permanece de forma mais eficaz] ('éBk. 2, el.

361-3); e, por esta mesma época, uma passagem nos escritos do

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FIGURA

bispo Avito de Viena (Poema, 5, 1.284, MG Auct. ant., VI, 2)31, na

qual ele fala do ]uízo Final; assim como Deus, ao matar os primo

gênitos no Egito, poupou as casas marcadas com sangue, possa Ele

também reconhecer e poupar os fiéis pelo signo da Eucaristia: Tu

cognosce tuam salvanda inplebe figuram [Tu reconheces tua própria

figura no povo que deve ser salvo].

Ao lado da contraposição entre figura e preenchimento ou verdade, aparece uma outra, entre figura e historia; historia ou littera é

o sentido literal ou o acontecimento relatado;figura é o próprio sig

nificado literal ou acontecimento referido ao preenchimento nele

oculto, e este preenchimento é veritas, de modo que figura torna-se

o termo do meio entre littera-historia e veritas. Nesta conexão, é

equivalente a spiritus ou intellectus spiritalis, algumas vezes substi

tuído por figuralitas, como na seguinte passagem de Continentia

Vergiliana de Fulgêncio (90, 1): sub figuralitate historiae plenum

hominis monstravimus statum [sob a figuração da história mostra

mos a situação completa do homem]. Naturalmente figura e histo

ria podem ser usados de modo permutável (ab historia in mysterium

surgere [de história nascer para o mistério]), diz Gregório, o Grande

(Ezequiel. 1,6,3), e,além disso, tanto historiare quanto figurare sig

nificam "representar em imagens", "ilustrar"; a primeira, no entan

to, apenas no sentido literal, mas a segunda também no sentido de

"interpretar alegoricamente"32.

Figura não é a única palavra latina usada como prefiguração

histórica; encontramos com freqüência o termo grego allegoria e,

ainda com maior freqüência, typus; allegoria em geral refere-se a

qualquer significado profundo, e não apenas à profecia fenomenal,

mas o limite é fluido, pois figura e figuraliter constantemente

estendem-se para além da profecia figural. Tertuliano usa allegoria

quase como sinônimo de figura, embora com menos freqüência, eem Arnóbio (Adversus nationes, 5, 32; Patrologia latina, vol. 53,

col. 1147) encontramos historia como oposto de allegoria; allegoria

também beneficiou-se da autoridade de Gal. 4: 24. Mas allegoria

não podia ser usada como sinônimo de figura em todos os contex

tos, pois não tinha a mesma implicação de "forma"; não se podia

escrever que Adam est allegoria Christ i [Adão é uma alegoria de

cristo]. Quanto a typus, a única razão por que perdeu terreno para

figura foi por ser uma palavra estrangeira. Mas esta consideração

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ERICH AUERBACH

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não pode ser negligenciada, pois, para qualquer um que falasse

latim (ou mais tarde uma língua românica),figura evocava mais ou

menos conscientemente todas as noções envolvidas em sua história,

enquanto typus permanecia um signo importado, sem vida. Quanto

às palavras lat inas que eram ou pelo menos podiam ser empregadas

como prefiguração em lugar de figura, temos as seguintes: amba-

ges, effigies, exemplum, imago, similitudo, species e umbra.Ambages foi eliminada por ser pejorativa demais; effigies, no senti

do de "cópia", era muito limitada e, mesmo em comparação com

imago, parece ter desenvolvido pouco poder de expansão; as outras

substituíam o sentido de "profecia figural" de várias maneiras, mas

sem satisfazê-Io plenamente. Todas eram usadas ocasionalmente,

mas as mais freqüentes eram imago e umbra. Imagines, no absolu

to e sem genitivo, era empregada para as estátuas dos ancestrais nas

casas romanas; no uso cristão converteu-se nas pinturas e estátuas

dos santos, de modo que o seu significado desenvolveu-se numa

direção diferente; no entanto, de acordo com a Vulgata, os homens

foram feitos ad imaginem Dei [à imagem de Deus] e, em conse

qüência, imago era a única que competia com figura, mas apenas

nos trechos em que o contexto tornava o significado "imagem"

idêntico a "prefiguração". Umbra foi empregada principalmente

em alguns poucos trechos das epístolas paulinas (Col. 2:17; Heb.

8:5 e 10:1); ocorre com freqüência, mas muito mais como uma

variação metafórica de figura do que como uma designação direta.

Nenhuma dessas palavras, em qualquer aspecto, combinava os ele

mentos do conceito de modo tão integral quanto figura: o princí

pio formativo, criativo, a mudança da essência que permanece, os

matizes de significado entre cópia e arquétipo. Por todos esses

motivos, não é surpreendente que figura passasse a ser usada de

modo amplo e constante com essa finalidade.

3. Origem e análise da interpretação figural

Na última seção, deixamos de lado a pura discussão semântica

para fazer uma série de digressões, já que a idéia expressa pela pala

vra figura, tal como é usada pelos Padres da Igreja, precisava ser

explicada. Torna-se portanto necessário investigar as origens dessa

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idéia de maneira bem detalhada, para dist ingui-Ia de idéias com ela

relacionadas e também com o objetivo de examinar o seu destinohistórico e sua influência.

Os Padres da Igreja justif icam com freqüência a interpretação

figural baseados em certas passagens dos primeiros escritos cristãos,

sobretudo das epístolas paulinas33. A mais importante é I Cor. 10:6

e 11, onde os judeus no deserto são denominados typoi hemõn[figuras de nós mesmos] e onde está escrito que tauta de typikos

synebainem ekeinois [estas coisas lhe aconteciam como figuras].

Uma outra passagem freqüentemente citada é Gal. 4:21-31, em que

Paulo explica aos recém-batizados gálatas, que sob a influência do

judaísmo queriam ser cincuncisados, a diferença entre a lei e a graça,

a velha e a nova aliança, servidão e liberdade, através do exemplo de

Hagar-Ismael e de Sara-Isaac, l igando a narrativa no Gênesis aIs.

54:1 e interpretando-a em termos de profecia figural. Há ainda

outros trechos, entre os quais Col. 2:16 s., dizendo que as leis da

dieta judaica e os dias sagrados judaicos são apenas a sombra das

coisas futuras, já que o corpo é Cristo; Rom. 5:12 ss. e I Cor. 15:21,

onde Adão aparece como o typos do futuro Cristo e a graça é opos

ta à lei; II Cor. 3:14, que fala do véu (kalymnos) que cobre a

Escritura quando os judeus a lêem; e finalmente Heb. 9:11 ss., em

que o sacrifício do sangue de Cristo é representado como o preen

chimento do sacrifício do grão-sacerdote no Velho Testamento.

Certos trechos nos Atos (por exemplo, 8:32) mostram que a

interpretação figural desempenhou um papel importante na missão

cristã desde o seu começo. Parece natural que os novos judeu-cris

tãos procurassem prefigurações e confirmações de Jesus no Velho

Testamento e incorporassem na tradição as interpretações assim

obtidas; especialmente porque havia uma noção corrente entre eles

de que o Messias seria um segundo Moisés, de que sua redençãodeveria ser um segundo êxodo do Egito, no qual os milagres do pri

meiro seriam repetidos34. Isto não requeria maiores explicações.

Mas um exame dos trechos citados acima, part icularmente quando

considerados em relação com o conjunto da pregação de Paulo,

mostra que, em Paulo, essas concepções judaicas combinavam-se

com uma hostilidade declarada às idéias dos judeu-cristãos e que é

esta ati tude que lhes dá uma significação especial . Essas passagens

das epístolas paulinas que contêm interpretações figurais foram

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quase todas escritas durante a penosa luta de Paulo no interesse desua missão entre os gentios; muitas eram respostas aos ataques eperseguições dos judeu-cristãos; quase todas procuravam eliminardo Velho Testamento seu caráter normativo e mostrar que nele tudoé apenas uma sombra das coisas futuras. Toda sua interpretaçãofigural estava subordinada ao tema básico da doutrina paulina da

graça contra a lei, da fé contra as obras: a velha lei é anulada; ela ésombra e typos; a obediência a ela tornou-se inútil e até perniciosatendo em vista o sacrifício de Cristo; um cristão não é justificadopor suas obras em obediência à lei, mas pela fé; em seu sentido legal,judeu e hebraico, o Velho Testamento é a letra que mata, enquantoos novos cristãos são servos da nova aliança, do espírito que dá avida. Esta era a doutrina de Paulo, e os antigos fariseus e discípulosde Gamaliel procuravam ansiosamente no Velho Testamento os trechos que confirmassem essa doutrina. O Velho Testamento, em seutodo, deixou de ser para ele um livro da lei e da história de Israelpara tornar-se, de modo integral, uma promessa e uma prefiguraçãode Cristo, um livro em que não há nenhum significado definitivo,mas tão-somente profético, e que só fora preenchido agora, no qualtudo está escrito "para nossa salvação" (I Cor. 9:10, d. Rom. 15:4) eonde justamente os acontecimentos mais importantes e sagrados, asleis e os sacrifícios são formas provisórias e prefigurações de Cristoe do Evangelho: etenim Pascha nostrum immolatus est Christi [poisem nossa Páscoa Cristo foi imolado] (I Cor. 5:7)35.

Seu pensamento, que combinava de modo notável a prática polít ica com uma fé poética criativa, transformou a concepção judaicada ressurreição de Moisés em um novo sistema de profecia figural ,no qual o novo Messias preenche e anula ao mesmo tempo a obrarealizada pelo seu precursor. Desta maneira, o que o Velho

Testamento perdia como livro de uma história nacional, ganhava ematualidade dramática concreta. Paulo não formulou uma interpretação sistemática do Velho Testamento, mas aspoucas passagens sobreo Êxodo, Adão e Cristo, Hagar e Sara etc. mostram de forma suficiente qual era a sua concepção. As controvérsias acerca do VelhoTestamento no período seguinte deram continuidade à sua concepção e interpretação; de fato, a influência dos judeu-cristãos, com suafidelidade à lei, logo diminuiu, dando lugar a uma nova oposiçãoexercida por aqueles que desejavam ou excluir o Velho Testamento,

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FIGURA

ou então interpretá-Io apenas abstrata e alegoricamente. A conseqüência dessa ati tude seria certamente fazer com que a cristandadeperdesse sua concepção de uma história providencial, com sua concretude intrínseca, e também, sem dúvida nenhuma, algo de seuimenso poder persuasivo. O método figural provou de novo o seuvalor na luta contra aqueles que desprezavam o Velho Testamento e

tentavam despojá-Io de seu significado.Nesse sentido, deveríamos ter em mente um outro fator querevelou toda sua importância tão logo a cristandade expandiu-sepelas regiões ocidentais e setentrionais do Mediterrâneo. A interpretação figural transformou o Velho Testamento de livro de leis e dahistória do povo de Israel numa série de prefigurações de Cristo eda Salvação, tal como encontramos mais tarde na procissão dos profetas no teatro medieval e nas representações cíclicas da esculturamedieval. Dessa forma e neste contexto, em que a história judaica eo caráter nacional tinham desaparecido, o Velho Testamento, porexemplo, passava a ser aceitável para os celtas e os germânicos; erauma parte da religião universal da salvação e um componente necessário da igualmente magnífica e universal visão da história a sertransmitida junto com a religião. Em sua forma original, como olivro da lei de uma nação tão estranha e remota, isso não teria sido

possível. Naturalmente, esta é uma compreensão a posteriori, já queestava bem longe das cogitações dos primeiros pregadores entre osgentios e dos Padres da Igreja. O problema não surgiu no períodoinicial, pois os primeiros pagãos convertidos viviam entre os judeusda Diáspora e, por causa da influência importante dos judeus e dareceptividade do mundo heleníst ico dessa época à experiência religiosa, já estavam familiarizados com a história e a religião judaicas.Mas o fato de que só possamos discernir esta situação em retrospec

to não diminui a importância desta consideração. Só muito maistarde, provavelmente só depois da Reforma, os europeus começaram a ver o Velho Testamento como história e lei judaicas; para ospovos recém-convertidos impôs-se, em primeiro lugar, como figura

rerum ou profecia fenomenal, como uma prefiguração de Cristo,dando-lhes uma concepção básica da história, que deriva sua forçade coação de sua união insuperável com a fé e que, por quase milanos, havia de permanecer como a única visão aceita da história.

Conseqüentemente, a atitude encarnada na interpretação figural

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ERICH AUERBACH

tornou-se um dos elementos essenciais da representação cristã da

realidade, da história e do mundo concreto em geral . Esta conside

ração nos conduz à segunda tarefa que nos impusemos logo no

começo deste capítulo, ou seja, definir a interpretação figural com

maior profundidade e distingui-Ia de outras formas correlatas de

interpretação.

A interpretação figural estabelece uma conexão entre dois acon

tecimentos ou duas pessoas, em que o primeiro significa não apenas

a si mesmo mas também ao segundo, enquanto o segundo abrange

ou preenche o primeiro. Os dois pólos da figura estão separados no

tempo, mas ambos, sendo acontecimentos ou figuras reais, estão

dentro do tempo, dentro da corrente da vida histórica. Só a com

preensão das duas pessoas ou acontecimentos é um ato espiritual,

mas este ato espiritual lida com acontecimentos concretos, sejam

estes passados, presentes ou futuros, e não com conceitos ou abstra

ções; estes últimos são secundários, já que promessa e preenchimen

to são acontecimentos históricos reais que ou já aconteceram na

encarnação do Verbo, ou ainda acontecerão na segunda vinda. Éclaro que os elementos puramente espirituais entram na concepçãodo preenchimento derradeiro, já que "meu reino não é deste

mundo"; ainda assim será um reino real, não uma abstração imate

rial; apenas afigura, não a natura deste mundo, passará e a carne res

suscitará. Como na interpretação figural uma coisa está no lugar de

outra, jáque uma coisa representa e significa a outra, a interpretação

figural é "alegórica" no sentido mais amplo. Mas difere da maior

parte das formas alegóricas conhecidas tanto pela historicidade do

signo quanto pelo que significa. A maior parte das alegorias que

encontramos na literatura ou na arte representa uma virtude (por

exemplo, sabedoria), uma paixão (ciúme), uma instituição (justiça)

ou, no máximo, uma síntese muito geral de um fenômeno histórico(a paz, a pátria) - nunca um acontecimento definido em sua plena

historicidade. Tais são as alegorias da antiguidade tardia e da Idade

Média, estendendo-se grosso modo da Psychomachia36 de Prudêncio

até Alain de Lille e o Roman de ia rase. Encontramos algo muito

similar (ou diametralmente oposto, se preferirem) na interpretação

alegórica dos acontecimentos históricos37, que eram geralmente

interpretados como ilustrações obscuras de doutrinas filosóficas.

Na exegese bíblica, esse método alegórico competiu por muito

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I

FIGURA

tempo com a interpretação figural; era o método de Fil038 e da esco

la catequética de Alexandria, que estava sob sua influência. Tinha

suas raízes numa tradição bem mais antiga. Várias escolas filosóficas

haviam interpretado os mitos gregos, particularmente Homero e

Hesíodo, como exposições veladas de seus próprios sistemas físico

cosmológicos. E várias influências posteriores, não mais puramente

racionalistas mas sobretudo místicas e religiosas, também estavamem andamento. Todas as numerosas seitas e doutrinas ocultas da

antiguidade tardia cult ivaram a interpretação alegórica de mitos,

sinais e textos, e, em suas interpretações, os aspectos físicos e cos

mológicos deram gradualmente lugar aos éticos e místicos. O pró

prio Filo, que mantendo ligação com a tradição judaica construiu

sua filosofia como um comentário sobre a Escritura, interpretou osvários acontecimentos da Bíblia como fases no desenvolvimento da

alma e de sua relação com o mundo inteligível; no destino de Israel

como um todo e dos protagonistas da história judaica, viu uma ale

goria do movimento da alma pecadora em busca da salvação, sua

queda, esperança e redenção final. Esta forma de interpretação cla

ramente espiritual e extra-histórica exerceu uma grande influênciana antiguidade tardia, em parte por ser simplesmente a mais respei

tável manifestação de um imenso movimento espiritualista centrado

em Alexandria; não apenas textos e acontecimentos, mas também

fenômenos naturais, estrelas, animais, pedras, eram despojados de

sua realidade concreta e interpretados, alegórica ou oportunamente,

de modo figural. O método espiritualista-ético-alegórico foi adota

do pela escola catequética de Alexandria e encontrou em Orígenes

seu maior expoente cristão. Como sabemos, continuou na Idade

Média lado a lado com o método figural. Mas, apesar da existência

de numerosas formas híbridas, é muito diferente da interpretação

figural. Ele também transforma o Velho Testamento; também nele alei e a história de Israel perdem seu caráter nacional e popular; mas

vai substituí-Ias por um sistema místico ou ético no qual o texto

perde bem mais sua historicidade concreta do que no sistema figu

ral. Esse tipo de exame manteve por muito tempo sua posição; na

doutrina do significado quádruplo da Escritura, determinava inte

gralmente um dos quatro significados, o ético, e contribuía parcial

mente para outro, o alegórico. Embora não possa oferecer nenhuma

prova estri ta, acredito que, de forma isolada, isto é, sem a sustenta-

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ção do método figural, o alegorismo teria exercido pouca influênciasobre os povos recém-convertidos. Há algo acadêmico, indireto, eaté mesmo abstruso nele, exceto quando é tocado pelo vigor da inspiração de algum místico notável. Por sua origem e natureza, estavalimitado a um círculo relativamente pequeno de intelectuais e iniciados aos quais proporcionava prazer e alimentava. A profecia figuralfenomenal, no entanto, surgira de uma situação histórica definida: aruptura com o judaísmo e a missão cristã entre os gentios. Cumprirauma função histórica. Sua visão firmemente integral e teleológica dahistória e da ordem providencial do mundo dava-lhe o poder deapossar-se da imaginação e dos mais Íntimos sentimentos das naçõesconvertidas. Seu sucesso abriu o caminho para escolas menos concretas de alegorismo, como a dos alexandrinos. Mas ainda que estee outros métodos de interpretação espiritualista possam ser bemmais antigos do que o método figural criado pelos apóstolos e pelosPadres da Igreja, são inequivocamente formas mais tardias, enquanto a interpretação figural com sua viva historicidade, embora algoprimitiva ou arcaica, foi certamente um começo cheio de frescor e

um renascimento dos poderes criativos dos homens.Ao lado da forma alegórica que discutimos, há ainda outras

maneiras de representar uma coisa por outra que podem ser comparadas com a profecia figural; é o caso das chamadas formas simbólicas ou mÍticas que são freqüentem ente vistas como características deculturas primitivas e que, seja como for, são encontradas constantemente nestas. Nos últimos anos, veio à luz uma quantidade considerável de material relativo a essas formas, mas o processo de organização e seleção deste material está ainda numa fase tão inicial quesó podemos falar a esse respeito com cautela. Estas formas foramreconhecidas e descritas pela primeira vez por Vico. Seu traço carac

terístico é que a coisa representada deve ser sempre algo muitoimportante e sagrado para aqueles a quem se dirige, algo que afetade modo total suas vidas e seu pensamento, não apenas como aquilo que se expressa ou é imitado pelo signo ou símbolo, mas comoalgo que está presente e contido nele. Assim, o próprio símbolo éalgo que pode agir e sobre o qual também se pode agir; agir sobre osímbolo é visto como equivalente a agir sobre a coisa simbolizada e,como conseqüência, poderes mágicos são atribuídos aos símbolos.Essas formas simbólicas ou mÍticas ainda exist iam na antiguidade,

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FIGURA

nas regiões do Mediterrâneo, mas já tinham perdido, em sua maioria, a força mágica e estavam diluídas na alegoria. Em nossa culturamoderna sobreviveram como vestígios que podem ser identificadosnos símbolos da justiça, na heráldica e nos emblemas nacionais. Poroutro lado, como se pode observar, tanto na antiguidade tardiacomo nos dias de hoje, novas idéias de alcance universal continuamcriando símbolos que agem como realidades mágicas. Essas formassimbólicas ou mÍticas têm certos pontos de contato com a interpretação figural; as duas aspiram a interpretar e organizar a vida comoum todo; ambas são concebíveis apenas em esferas religiosas ouafins. Mas as diferenças são evidentes. O símbolo deve possuirpoder mágico, a figura não; a figura, por outro lado, deve ser histórica, mas o símbolo não. É claro que a cristandade não deixa de possuir símbolos mágicos; mas a figura não é um deles39. O que tornade fato as duas formas completamente diferentes é que a profeciafigural relaciona-se com uma interpretação da história - na verdade é, por sua natureza, uma interpretação textual -, enquanto osímbolo é uma interpretação direta da vida e originalmente, na

maior parte das vezes, também da natureza. Assim, a interpretaçãofigural é o produto de culturas posteriores, bem mais indiretas, maiscomplexas e mais carregadas de história do que o símbolo ou omito. Na verdade, deste ponto de vista, contém algo extremamenteantigo: uma grande cultura precisa ter alcançado seu ponto culminante e, na verdade, já mostrar sinais de envelhecimento para queuma tradição interpretativa possa produzir um fenômeno da ordemda profecia figural.

Estas duas comparações, com a alegoria de um lado e com asformas mÍtico-simbólicas do outro, mostram a profecia figural sobuma dupla luz: jovem e recém-nascida enquanto interpretação

certa de sua finalidade, criadora e concreta - da história universal;infinitamente velha enquanto interpretação de um texto venerável,carregada de uma história de centenas de anos. Sua vitalidade juvenil dava-lhe um poder persuasivo quase inaudito, com o qual conquistou não apenas as culturas tardias do Mediterrâneo, mas também os povos relativamente jovens do norte e do oeste; o que nelaera antigo deu ao pensamento desses povos e à sua compreensão dahistória uma qualidade peculiarmente enigmática, que tentaremoselucidar agora. A profecia figural implica a interpretação de um

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acontecimento mundano através de um outro; o primeiro significao segundo, o segundo preenche o primeiro. Ambos permanecemacontecimentos históricos; ainda assim, vistos deste ângulo, contêmalgo de provisório e incompleto; um remete ao outro e juntosapontam para algo no futuro, algo que está para vir, que será oac'ontecimento real, verdadeiro, definitivo. Isso não é verdade ape

nas em relação à prefiguração do Velho Testamento, que apontapara a encarnação e a proclamação do evangelho, mas também paraaqueles acontecimentos recentes, pois eles também não são opreenchimento derradeiro, mas trazem em simesmos uma promessa do fim dos tempos e do verdadeiro reino de Deus. Desse modo,a história, com toda a sua força concreta, permanece para sempreuma figura encoberta, requerendo uma interpretação. Sob esseaspecto, a história de qualquer época não possui a auto-suficiênciaprática que, tanto do ponto de vista do homem primitivo quantodo da ciência moderna, reside no fato consumado; ao contrário,

toda história permanece aberta e questionável, aponta para algoainda oculto, e o caráter provisório dos acontecimentos na interpretação figural é fundamentalmente diferente do caráter provisório dos acontecimentos na visão moderna do desenvolvimento his

tórico. Na visão moderna, o acontecimento provisório é tratadocomo um momento dentro de um processo horizontal indivisível;no sistema figural , a interpretação sempre vem de cima; os acontecimentos são considerados não em sua relação indivisível com umoutro, mas separados individualmente, cada um deles em relaçãocom uma terceira coisa que, apesar de prometida, ainda não se tornou presente. Enquanto na visão moderna o acontecimento é sempre auto-suficiente e garantido, embora a interpretação seja fundamentalmente incompleta, na interpretação figural o fato está subor

dinado a uma interpretação que já está plenamente garantida desdeo começo: o acontecimento passa a ser definido segundo um modelo ideal que é um protótipo situado no futuro e, por conseguinte,apenas prometido. Esse modelo situado no futuro e imitado pelasfiguras (lembremo-nos do termo imitatio veritatis [imitação da verdade]) evoca noções platônicas. Isto nos conduz para mais longeainda. Pois cada modelo futuro, embora incompleto como história,já está preenchido por Deus e já existe eternamente em Sua providência. As figuras com as quais Ele o encobriu e a encarnação com

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FIGURA

a qual Ele revelou seu significado são profecias de algo que sempreexistiu, mas que permanecerá velado aos homens até o dia em quevejam a revela ta facie do Salvador, tanto com os sentidos quantocom o espírito. Não só as figuras são provisórias, como são também a forma provisória de algo eterno e atemporal; apontam não sópara o futuro concreto, mas também para algo que sempre existiu e

existirá; apontam para algo que necessita de interpretação, que naverdade será preenchido no futuro concreto, mas que já está presente, preenchido pela providência divina, que não conhece diferenças de tempo. Esta dimensão eterna já está figurada nelas, que,desse modo, são ao mesmo tempo uma realidade fragmentária provisória e uma realidade eterna velada. Esse aspecto transpareceinteiramente no sacramento do sacrifício, a Última Ceia, a pascha

nostrum, que é figura Christi40.

Esse sacramento, que é tanto figura quanto símbolo, e que possui uma longa existência histórica - já que foi estabelecido pela primeira vez na velha aliança -, dá-nos a mais pura imagem do aspecto concretamente presente, velado e provisório, assim como doaspecto eterno e supratemporal contido nas figuras.

4. Arte figural na Idade Média

A interpretação figural ou, em definição mais completa, a visãofigural da história exerceu uma ampla e profunda influência durante a Idade Média, estendendo-a para além desse período. Isto nãoescapou à atenção dos estudiosos. Não apenas obras teológicassobre a história da hermenêutica, mas também estudos sobre a história da arte e da literatura depararam, durante suas investigações,

com as concepções figurais e as estudaram. Isto vale sobretudo paraa história da arte no campo da iconografia medieval e para a história da literatura no campo do teatro religioso da Idade Média. Masa natureza especial do problema parece não ter sido reconhecida; aestrutura fenomenal ou figural ou tipológica não foi diferenciadacom clareza de outras formas alegóricas ou simbólicas.Encontramos um esboço dessa ati tude na dissertação instrutiva deT. C. Goode sobre El sacrificio de Ia misa de Gonzalo de Berceo(Washington, 1933); embora não enfrente as questões fundamentais,

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ERICH AUERBACH

H. Pflaum mostra um claro entendimento da situação em seu Die

religiose Disputation in der europdischen Dichtung des Mittelalters

[A questão religiosa na poesia européia da Idade Média] (GenebraFlorença, 1935). Recentemente (in Romania, LXIII), sua compreensão segura da palavra figura capacitou-o a dar uma interpretaçãocorreta de alguns versos do francês arcaico, que não tinham sido

compreendidos pelo editor, e a restaurar o texto. Talvez outrosexemplos me escapem41, mas não creio que haja qualquer tratamento sistemático do assunto. Uma investigação desse tipo parece-meindispensável para uma compreensão da mistura de espiritualidadee senso de realidade que caracteriza a Idade Média européia e queparece ser tão desconcertante para nós42. Na maior parte dos paíseseuropeus, a interpretação figural permaneceu ativa até o séculoXVIII; encontramos seus traços não apenas em Bossuet, como já erade se esperar, mas muitos anos depois nos autores religiosos citadospor Groethuysen em Les origines de Ia France bourgeoise43. Umclaro conhecimento de seu caráter e de sua diferença diante de formas correlatas mas diversamente estruturadas poderia aguçar e

aprofundar de modo geral nossa compreensão dos documentos daantiguidade tardia e da Idade Média, solucionando muitos enigmas.Será que os temas de recorrência tão freqüente nos sarcófagos e nascatacumbas dos primeiros cristãos não são figuras da Ressurreição?Ou, para citar um exemplo da grande obra de Mâle, a lenda de santaMaria Egipcíaca, cujas representações do museu de Toulouse eledescreve (op. cit., p. 240 ss.), não seria uma figura do povo de Israelsaindo do Egito, podendo portanto ser interpretada exatamentecomo o salmo In exitu Israel de Aegypto foi geralmente interpretado na Idade Média?

Mas as interpretações individualizadas não esgotam a impor

tância do método figura!. Nenhum estudioso da Idade Média podedeixar de ver como ele fornece a base geral da interpretação medie~vaI da história e penetra freqüentemente na visão medieval da real idade cotidiana. O analogismo que invade cada uma das esferas dopensamento medieval está estreitamente ligado à estrutura figural;na interpretação da Trindade, que se estende aproximadamente doDe Trinitate de Agostinho até são Tomás, I, q. 45, art. 7, o própriohomem, como imagem de Deus, assume a característica de umafigura Trinitatis. Para mim não está bem claro até que ponto as

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FIGURA

idéias estéticas estavam determinadas pelas concepções figurais até que ponto a obra de arte era vista como a figura de um preenchimento ainda inatingível na realidade. A questão da imitação danatureza na arte levantava pouco interesse teórico na Idade Média;mas, por outro lado, o máximo de atenção era dado à noção de queo artista, como uma espécie de figura do Deus Criador, realizavaum arquétipo do que estava vivo em seu espírit044. Como vemos,estas são idéias de origem neoplatônica. Mas a questão permanece:até que ponto este arquétipo e a obra de arte que produzia eramvistos como figuras para uma realidade e uma verdade preenchidasem Deus? Não descobri nenhuma resposta conclusiva nos textosque pude consultar e me faltam as mais importantes obras da literatura especializada. Mas gostaria de citar algumas que se encontram à mão por acaso e que apontam de algum modo para a direção que tenho em mente. Num artigo sobre a representação de tonsmusicais nos capitéis da abadia de Cluny (Deutsche

Vierteljahrsschrift, 7, p. 264), L. Schrade cita uma explicação dapalavra imitare de Remigius de Auxerre: scilicet persequi, quia

veram musicam non potest humana musica imitari [isto é, seguir,porque a música do homem não pode imitar a música verdadeira].Trata-se de algo provavelmente baseado na noção de que o trabalho do artista é uma imitação ou, pelo menos, uma pálida figuraçãode uma realidade verdadeira e igualmente sensível (a música doscoros celestiais) . No Purgatório, Dante celebra as obras de artecriadas por Deus, representando exemplos de virtudes e vícios, porsua verdade sensível perfeitamente preenchida, diante das quais aarte humana e até mesmo a natureza empalidece (Purg; 10 e 12); suainvocação de ApoIo (Par., 1) inclui os versos:

o divina virtu, se mi tiprest itanto che l 'ombra dei beato regno

segnata nel mio capo io manifesti

[Ó divina virtude, em minha menteo beato reino assinou seu desenho

qual sombra, e se me dás que o represente r.

':'Tradução de Haroldo de Campos, in Seis cantos do Paraíso. São Paulo,Fon tana /Ins ti tuto Nacional de Cul tu ra , 1976 (N.T. ).

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ERICH AUERBACH

Aqui sua poesia se define como uma umbra da verdade gravadaem sua mente, e a sua teoria da inspiração inclui às vezes expressõesque podem ser explicadas nesse mesmo sentido. Mas tudo isso sãoapenas sugestões; um estudo que procurasse explicar as relaçõesentre os elementos figurais e neoplatônicos na estética medievalteria que partir de bases mais amplas. Ainda assim, creio que essas

observações são suficientes para mostrar a necessidade de distinguira estrutura figural de outras formas de imagens. Grosso modo, podese dizer que o método figural na Europa remete às influências cristãs, enquanto o método alegórico deriva de antigas fontes pagãs, etambém que o primeiro se aplica sobretudo ao material cristão,enquanto o outro, ao material mais antigo. Também não estaremosindo longe demais ao dizer que a visão figural é predominantemente cristã-medieval, enquanto a visão alegórica, cujo modelo são osautores pagãos ou não inteiramente cristãos da antiguidade tardia,tende a aparecer onde influências antigas, pagãs ou fortemente seculares são dominantes. Mas essas observações são demasiadamente

gerais e imprecisas, pois a massa de fenômenos que reflete um entre

cruzamento de diferentes culturas durante cerca de mil anos nãopermite classificações tão simplificadas. Desde muito cedo o material pagão e profano foi também interpretado figuralmente;Gregório de Tours, por exemplo, usa a lenda dos sete adormecidoscomo uma figura para Ressurreição; a ressurreição de Lázaro dentreos mortos e o resgate de Jonas do ventre da baleia eram tambéminterpretados geralmente nesse sentido. Na Alta Idade Média, aSibila, Virgílio, as personagens da Eneida e até mesmo as do ciclo delendas bretãs (por exemplo, Galahad em busca do Santo Graal) eramassimilados pela interpretação figural, e, acima de tudo, surgia todotipo de mistura entre formas figurais, alegóricas e simbólicas. Todas

essas formas, aplicadas tanto ao material clássico quanto ao cristão,estão presentes na obra que encerra e resume a Idade Média: aDivina Comédia. Mas agora devo mostrar que são as formas figurais que dominam e determinam toda a estrutura do poema.

Ao pé da montanha do Purgatório, Dante e Virgíl io encontramum homem de aspecto venerável, cujo rosto está iluminado por quatro estrelas, significando as quatro virtudes cardeais. Ele os interrogaseveramente sobre a legitimidade da jornada que empreendiam, e,pela resposta respeitosa de Virgílio - depois de dizer a Dante que se

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FIGURA

ajoelhasse diante daquele homem -, sabemos que é Catão de Útica.Depois de explicar-lhe sua missão divina, Virgílio diz (Purg., 1, 70-5):

Or tipiaccia gradir Ia sua venuta;

libertà va cercando, che e szcara,

come sachiper lei vita rif iuta.

Tu il sai, che non ti fu per lei amara

in Utica Ia morte, ave lasciasti

Ia vesta che aI gran dzsarà szchiara.

[Assim vê, merece boa acolhidaquem liberdade busca, que é tão cara,como sabe a quem custou a vida.

Tu bem sabes, a quem não foi amargaa morte em Útica, lá deixaste

a veste que no fim será tão clara. ]

Virgílio prossegue, pedindo a Catão que o ajude em nome damemória de Márcia, que fora sua esposa. Catão recusa o pedido coma mesma severidade; mas como esse é o desejo da donna deI ciel

(Beatriz), é o que basta; e ordena que, antes da ascensão, Virgíliolave do rosto de Dante as manchas do inferno e que ele seja cingidocom junco. Catão aparece de novo no fim do segundo canto, ondecensura duramente as almas recém-chegadas ao pé da montanha, asquais, caídas no esquecimento, estão ouvindo o canto de Cassela,advertindo-as de que continuassem a jornada.

Catão de Út ica foi designado por Deus guardião da entrada do

Purgatório: um pagão, um inimigo de César e um suicida. Isto é surpreendente, e seus primeiros comentadores, como Benvenuto deImola, registraram seu espanto. Dante menciona apenas uns poucospagãos que foram libertados do Inferno por Cristo; entre eles estáum inimigo de César - cujos aliados, assassinos de César, juntaram-se a Judas nas mandíbulas de Lúcifer -, um suicida que nãodeveria ser menos culpado do que todos aqueles "que cometeramviolência contra sipróprios" e que, por esse pecado, sofrem os maisterríveis tormentos no sétimo círculo do Inferno. O enigma é resol-

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vido pelas palavras de Virgílio, ao afirmar que Dante procura aliberdade, tão preciosa como tu próprio sabes, tu que por ela renunciaste à vida. A história de Catão é retirada de seu contexto terreno

polít ico, tal como ashistórias de Isaac, Jacó etc. também foram retiradas de seus contextos pelos exegetas patrísticos do VelhoTestamento e convertidas em figura futurorum. Catão é uma figura,ou melhor, o Catão terreno, que renunciou à vida em nome da liberdade, era uma figura, e o Catão que agora aparece no Purgatório é afigura revelada ou preenchida, a verdade daquela situação temporal.A liberdade terreno-política pela qual morreu era apenas umaumbra futurorum: uma prefiguração da liberdade cristã de queagora foi designado guardião e em nome da qual resiste a toda a tentação terrena; a liberdade cristã ante os impulsos do mal, que conduz ao verdadeiro autodomínio, aquela liberdade em nome de cujaconquista Dante é cingido com os juncos da humildade, até que, noalto da montanha, ele possa conquistá-Ia de fato e seja coroado porVirgílio como senhor de si mesmo. A escolha voluntária da mortepor Catão para libertar-se da servidão política é mostrada como

uma figura para a eterna liberdade dos filhos de Deus, em nome daqual todas as coisas terrenas devem ser rejeitadas, para que a almaliberte-se da servidão do pecado. A escolha de Catão para este papel,feita por Dante, deixa-se explicar pela posição "acima dos partidos"assumida por Catão, de acordo com os autores romanos que o elevaram a um modelo de virtude, justiça, piedade e amor pela liberdade. Dante descobriu também que ele era louvado por Cícero,Virgílio, Lucano, Sêneca e Valério Máximo; em particular, o verso deVirgílio secretosque pios his dantem iura Catonem [e os justos à

parte e Catão lhes ditando as leis] (Eneida, 8, 670), vindo comovinha de um poeta do Império, deve tê-Io impressionado muito. Sua

admiração por Catão transparece em várias passagens do Convivia,e, no seu De monarchia (2, 5), faz uma citação de Cícero45, dizendoque a morte voluntária de Catão deveria ser julgada por um prismaespecial e ligando-a a exemplos de virtude polít ica dos romanos, à

qual Dante atribuía tanta importância; nessa passagem, Dante tentamostrar que o domínio romano é legitimado pela virtude romana econtribuía para ajustiça e a liberdade de toda a humanidade. O capítulo contém esta frase: Romanum imperium defonte nascitur pieta-

tis [O Império Romano nasceu da fonte da justiça]46.

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FIGURA

Dante acreditava numa harmonia preestabelecida entre a história cristã da salvação e a monarquia secular romana; não nos surpreende, portanto, que aplique a interpretação figural a um romanopagão - em geral , extrai seus símbolos, alegorias e figuras dos doismundos sem fazer qualquer dist inção. Não há dúvida de que Catãoé uma figura; não uma alegoria, como aspersonagens do Roman de

Ia rase, mas uma figura que se tornou a verdade. A Comédia é umavisão que considera e proclama a verdade figural como já preenchida; caracteriza-se precisamente por realizar, inteiramente dentro doespíri to da interpretação figural, a l igação da verdade revelada pelavisão com os acontecimentos terrenos, históricos. O caráter deCatão como um homem severo, justo e piedoso, que, num momento importante de seu próprio destino e da história providencial domundo, coloca a liberdade acima da vida, é mantido na plenitude desua força pessoal e histórica; não se transforma numa alegoria daliberdade; não, Catão de Útica permanece como um indivíduoúnico, tal como Dante o via; mas é alçado acima de sua provisóriacondição humana, na qual considerava a liberdade política como o

bem supremo (assim como os judeus dedicavam-se à estrita obediência à Lei), e transposto para uma condição de preenchimento,não mais voltado para os deveres mundanos de virtude cívica oulegal, mas para o ben dell'inteUeto, o mais alto bem, a liberdade daalma imortal diante de Deus.

Vamos tentar fazer a mesma demonstração diante de um casobem mais difícil. Virgílio foi considerado por quase todos os comentadores como uma alegoria da razão - a razão natural, humana, queconduz à justa ordem terrena, ou seja, na visão de Dante, à monarquia secular. Os comentadores mais antigos não faziam objeção auma interpretação puramente alegórica, pois não sentiam, como

sentimos hoje em dia, que a alegoria era incompatível com a autêntica poesia. Muitos críticos modernos opuseram-se a esta idéia,sublinhando a qualidade pessoal, humana, do Virgílio de Dante;mesmo assim foram incapazes ou de negar que ele "significava alguma coisa", ou de encontrar uma relação satisfatória entre este significado e a realidade humana. Recentemente (e não apenas em relação a Virgílio) um grupo de escritores (L. Valli e Mandonnet, porexemplo) retomou o aspecto puramente alegórico ou simbólico etentou rejeitar a realidade histórica como "posit ivista" ou "român-

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t ica". Mas de fato não pode haver escolha entre o significado histórico e o oculto; ambos estão presentes. A estrutura figural preservao acontecimento histórico ao interpretá-Io como revelação; e devepreservá-Io para poder interpretá-Io.

Aos olhos de Dante, o Virgílio histórico é ao mesmo tempopoeta e guia. Ele é poeta e guia porque, na descida aos infernos do

justo Enéias, profetiza e glorifica a paz universal sob o ImpérioRomano, a ordem polít ica que Dante considera exemplar, a terrena

Jerusalem47; e porque, em seu poema, a fundação de Roma, sítiopredestinado do poder secular e espiritual, é celebrada à luz de suafutura missão. Acima de tudo ele é poeta e guia porque todos osgrandes poetas que vieram depois dele foram inflamados e influenciados por sua obra; Dante não só vai expressá-Io em seu próprionome, mas introduz um segundo poeta, Estácio, para proclamar amesma coisa ainda mais enfaticamente; no encontro com Sordello, etambém talvez no verso altamente controvertido sobre Guido

Cavalcanti (Ini, 10,63), o mesmo tema é explorado. Mais ainda, eleé um guia porque, além de sua profecia temporal, proclamou também - na Quarta Écloga - a eterna ordem transcendente, a vindade Cristo que iria renovar o mundo temporal, sem sequer suspeitar,na verdade, do significado de suas próprias palavras, mas de talmodo que a posteridade iria extrair inspiração de sua luz. Virgílio, opoeta, era um guia porque havia descrito o reino dos mortos - portanto conhecia bem o caminho. Mas também como homem e como

romano ele estava destinado a ser um guia, não apenas porque eraum mestre do discurso eloqüente e da sabedoria elevada, mas porque também possuía as qualidades que tornam o homem capaz deguiar e liderar, as qualidades que caracterizam seu herói Enéias eRoma em geral: iustitia e pietas. Para Dante, o Virgílio histórico

encarnava esta plenitude de perfeição terrena e era capaz, portanto,de guiá-Io até o limiar da visão da perfeição eterna e divina; oVirgílio histórico era, para ele, uma figura do poeta-profeta-guia,agora preenchido no outro mundo. O Virgílio histórico é "preenchido" pelo habitante do limbo, o companheiro dos grandes poetasda antiguidade, que, ao chamado de Beatriz, assume a tarefa de guiarDante. Como romano e como poeta, Virgílio enviou Enéias aomundo subterrâneo à procura do conselho divino para conhecer odestino do mundo romano; e agora Virgílio é convocado pelos

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FIGURA

poderes celestiais para ser o guia de uma missão não menos importante; pois não há dúvida que Dante via a si próprio como encarregado de uma missão não menos importante que a de Enéias: eleitopara anunciar a um mundo desajustado a ordem justa, que lhe érevelada durante a sua caminhada. Virgíl io é escolhido para revelare interpretar para ele a verdadeira ordem terrena, cujas leis são exe

cutadas no outro mundo, e cuja essência é preenchida no outromundo, e ao mesmo tempo para dirigi-Io até sua meta, a comunidade celestial dos eleitos, que ele anunciou em sua poesia - mas nãoainda até o interior do reino de Deus, pois o significado de seu presságio não lhe foi revelado durante sua vida terrena, e, sem esta iluminação, morreu como um infiel. Assim sendo, Deus não permiteque Dante entre em seu reino com a ajuda de Virgílio; Virgílio sópode levá-Io até o limiar do reino, até aquele limite que sua justa enobre poesia foi capaz de discernir. "Primeiro" - diz Estácio aVirgílio - "tu me mostraste o caminho para o Parnaso para que eubebesse em suas fontes, e depois me iluminaste até Deus. Fostecomo um destes que anda pela noite, levando a luz atrás de si

mesmo, sem poder aproveitar-se dela, mas instruindo a quem osegue... Através de ti, tornei-me poeta, por tua causa, um cristão"48.E assim como o terreno Virgílio conduziu Estácio à salvação, agora,como uma figura preenchida, conduz Dante: pois também Danterecebeu dele o belo estilo de sua poesia, através dele salvou-se dadanação eterna e seguiu o caminho da salvação; e assim como outrora havia iluminado Estácio, sem que ele próprio visse a luz que trazia e proclamava, também agora conduz Dante até o limiar da luz,que ele conhece mas não pôde alcançar.

Desse modo, Virgílio não é a alegoria de um atributo, virtude,capacidade, poder ou instituição histórica. Não é nem a razão, nem

a poesia, nem o Império. É o próprio Virgílio. Mas não é ele próprioda mesma maneira daquelas personagens históricas que mais tardeos poetas retratariam dentro de sua situação histórica, como, porexemplo, o César de Shakespeare e o Wallenstein de Schiller . Estespoetas mostram suas personagens históricas em sua plena existênciaterrena; fazem surgir diante de nossos olhos uma época importantede suas vidas e procuram o sentido dessa própria época. Para Danteo significado de cada vida pertence à história providencial domundo, cujas linhas gerais estão contidas na Revelação que foi dada

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a todos os cristãos e que ele interpreta na visão da Comédia. Assim,

Virgílio, na Divina Comédia, é o Virgílio histórico, mas, por outro

lado, também não o é; pois o Virgílio histórico é apenas uma figura

da verdade preenchida que o poema revela, e este preenchimento é

mais real, mais importante que a figura. Com Dante, ao contrário

dos poetas modernos, a figura torna-se mais real à medida que é

mais integralmente interpretada e mais intimamente integrada aoplano eterno da salvação. E, para ele, diferentemente dos antigos

poetas dos mundos subterrâneos, que representavam a vida terrena

como real e avida após a morte como uma sombra, a verdadeira rea

lidade está no outro mundo, enquanto este mundo é apenas umbra

futurorum - embora esta umbra seja a prefiguração da realidade

transcendente e deva mais tarde ser preenchida por ela.

Pois o que dissemos aqui sobre Catão e Virgílio aplica-se à

Comédia como um todo. Está inteiramente baseada nesta concepção

figura!. Em meu estudo sobre Dante como poeta do mundo terreno

(1929)", procurei mostrar como ele na Comédia empenhou-se "em

conceber todo o mundo histórico-terreno [...] como já submetido ao

juízo final deDeus e,por conseguinte, colocado no lugar que lhe está

assinalado pelo julgamento divino, em representá-lo como um

mundo que jáfoi julgado [.. .] e,ao fazê-lo, não destrói nem enfraque

ce a natureza terrena de suas personagens, mas capta toda a intensidade de suas individualidades histórico-terrenas e identifica-as com

o destino eterno das coisas" (p. 108). Nessa época faltava-me uma

sólida base histórica para sustentar esta visão, que já se encontra em

Hegel e que é a base de minha interpretação da Divina Comédia;

trata-se de algo mais sugerido do que formulado nos capítulos intro

dutórios do livro. Acredito que agora possuo esta base histórica;

trata-se precisamente da interpretação figural da realidade que,

embora em constante conflito com as tendências puramente espiritualistas e neoplatônicas, era a visão dominante na Idade Média euro

péia: a idéia de que a vida terrena é inteiramente real , com aquela rea

lidade da carne em que o Logos penetrou, mas que, com toda a sua

realidade, é apenas umbra e figura da verdade autêntica, futura e

eterna, a realidade real que desvenda e preserva a figura. Desse

' Dante como poeta do mundo terreno (Dante aIsDichter der irdischen Welt).

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FIGURA

modo, o acontecimento terreno individual não é visto como uma

realidade definitiva, auto-suficiente, nem como um elo na cadeia de

um desenvolvimento em que acontecimentos isolados ou combina

<Jw de acontecimentos geram novos acontecimentos, mas visto prin

cipalmente em sua ligação vertical imediata com uma ordem divina

<] ue o abarca, a qual no futuro será a realidade concreta; assim, o

;lContecimento terreno é uma profecia ou figura de uma parte da reaIidade divina total que será revelada no futuro" Mas esta realidade

11;10 é apenas futura; já está presente na visão de Deus e no outro

Inundo, o que quer dizer que, na transcendência, a realidade revela

(h c verdadeira está sempre ou atemporalmente presente. A obra de

I>ante é a tentativa de dar uma visão poética e ao mesmo tempo sis

tcm;'\ ticado mundo sob esse aspecto. A graça divina vem em auxílio

do homem ameaçado pela confusão e pela desgraça terrenas - esta é

,\ moldura da visão. Desde o começo de sua juventude, Dante fora

iavorecido por uma graça especial, já que estava destinado a uma

I.lrd;l especial; desde cedo fora um privilegiado a ver a revelação

( 'I lcarllada num ser vivo, Beatriz - e aqui também, como ocorre fre

qii('lltclllcnte, a estrutura figural e o neoplatonismo estão interligados. I)urante toda sua vida, de modo disfarçado, ela o favoreceu sau

d.lll(loo com os olhos e a boca; e, ao morrer, distinguiu-o de modo

Illisl('l'ioso e silencios049. Quando ele se desvia do caminho justo, a

I.decida Bcatriz, que para ele era a revelação encarnada, indica a única

s.dva(;;IOpossível para ele; indiretamente, ela é o seu guia até tornar

se seu guia direto para o Paraíso; é ela que lhe mostra a ordem des

v('ll(hda, a verdade sobre as figuras terrenas. O que ele vê e aprende

11( ) ,S tr(~sreinos é a realidade verdadeira, concreta, na qual afigura ter

1( 'l laesui contida e interpretada; ao ver a verdade preenchida ainda

vivo, ele próprio salva-se, ao mesmo tempo que se torna capaz de

di/,er ao mundo o que vira e de guiá-lo para o caminho certo.A compreensão do caráter figural da Comédia não se constitui

I1UIll método universal que nos permite interpretar cada uma de suas

passagens controvertidas; mas é possível derivar dele certos princí

pios de interpretação. Podemos ter certeza de que cada uma das per

sonagens históricas ou míticas existentes no poema deve significar

algo intimamente ligado ao que Dante sabia acerca de sua existência

histórica ou mítica, e que esta relação é entre preenchimento e figu

ra; devemos ter sempre o cuidado de não negar também sua existên-

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ERrCI-! AUERBACI-!

cia histórico-terrena, de não nos confinarmos a uma interpretação

abstrata, alegórica. Isto aplica-se particularmente em relação aBeatriz. O realismo romântico do século XIX enfatizou ao máximo

a Beatriz humana, com sua tendência a fazer da Vita nuova uma

espécie de novela sentimental . Depois veio a reação; a nova tendên

cia é eliminá-Ia completamente, dissolvê-Ia num aglomerado de

conceitos teológicos cada vez mais sutis . Mas tais escolhas não que

rem dizer nada. Para Dante, o significado li teral ou a realidade his

tórica de uma figura não apresenta nenhuma contradição com seu

significado mais profundo, pois representa necessariamente a sua

"figuração"; a realidade histórica não é anulada, mas confirmada e

preenchida pelo significado mais profundo. A Beatriz da Vita nuova

é uma pessoa real; ela realmente encontrou-se com Dante, saudou

o realmente, realmente negou-se a saudá-lo mais tarde, zombou

dele, chorou por uma amiga morta e por seu pai, e de fato morreu.

Naturalmente esta realidade é a realidade da experiência de Dante

pois um poeta constrói e transforma os acontecimentos de sua vida

em sua consciência, e só podemos dar conta daquilo que vive em sua

consciência, e não da realidade exterior. É preciso também ter emmente que, desde o primeiro dia em que apareceu, a Beatriz terrena

foi para Dante um milagre enviado do céu, uma encarnação da ver

dade divina. Desse modo, a realidade de sua pessoa terrena não é,

como no caso de Virgílio e Catão, algo derivado dos fatos de uma

tradição histórica, mas da própria experiência de Dante: uma expe

riência que lhe mostrou a terrena Beatriz como um milagreso. Mas

uma encarnação, um miIagre são acontecimentos reais; os milagres

acontecem na terra, e a encarnação é carne. A estranheza da visão

medieval da realidade não permitiu que os estudiosos modernos

fossem capazes de distinguir entre figuração e alegoria, e levou a

maior parte deles a perceber apenas a alegoriaS1. Até um crítico teológico tão agudo como Mandonnet (op. cit., p. 218-9) considera

apenas duas possibilidades: ou Beatriz é uma mera alegoria (e esta é

a sua opinião), ou é Iapetite Bice Portinari, uma noção que ele ridi

culariza. Além de uma incompreensão da realidade poética que um

julgamento como esse revela, é surpreendente verif icar um abismo

tão grande entre realidade e significado. Será que a terrena

] erusalem não possui realidade histórica porque é uma figura aeter-

naeJ erusalem?

62

FIGURA

Na Vita nuova, portanto, Beatriz é uma mulher viva dentro da

realidade da experiência de Dante - e na Comédia ela não é

nenhum intellectus separatus, nenhum anjo, mas um ser humano

abençoado cujo corpo ressuscitará no dia do Juízo Final. Não há de

fato nenhum conceito dogmático que possa defini-Ia integralmente;

certos acontecimentos na Vita nuova não podem ajustar-se a nenhu

ma alegoria, e quanto à Comédia há ainda o problema adicional de

traçar uma distinção exata entre Beatriz e as várias outras persona

gens do Paradiso, tais como os apóstolos-examinadores e são

Bernardo. Tampouco o caráter especial de sua relação com Dante

pode ser entendido de modo satisfatório a partir desse ponto de

vista. A maior parte dos comentadores antigos interpretou Beatriz

teologicamente; outros mais recentes procuraram formulações de

maior sutileza, mas isto os conduziu a exageros e equívocos: até

Mandonnet, que aplica a Beatriz a noção extremamente ampla de

ordre surnaturel, derivada do contraste com Virgíl io, enreda-se em

subdivisões de sutileza pedante, comete errosS2 e força seus concei

tos. O papel atr ibuído por Dante a ela torna-se perfeitamente claro

através de suas ações e dos epítetos ligados a ela. EIa é uma figura(Jioou encarnação da revelação (Inj, 2, 76): solaper cui l'umana spe-

zic cccede ogni contento da quel ciel, che ha minor li cerchi sui [aque

lapor quem a espécie humana excede o que está contido naquele céu

que tem os círculos menores]; (Purg., 6, 45): che lume fia tra il vero

(' l'intelletto [cuja luz arde entre o verdadeiro e o intelecto] que a

graça divina, por amor (Inf, 2, 76) , envia ao homem para sua salva

(,;;lO e que o guia até a visio Dei. Mandonnet esquece de dizer que ela

é exatamente uma encarnação da revelação divina, e não, pura e sim

plesmente, da revelação, embora cite as passagens pertinentes da

Vita nuova e de santo Tomás de Aquino, bem como a invocação

mencionada acima, O Donna di virtu, solaper cui etc. Não podemosnos dirigir à "ordem sobrenatural" como tal , mas apenas à sua reve

lação encarnada, aquela parte do plano divino de salvação que é pre

cisamente o milagre pelo qual os homens se elevam acima de outras

criaturas terrestres. Beatriz é a encarnação, ela é figura ou idolo

Christi (seus olhos refletem sua natureza dupIa, Purg., 31, 126) e

portanto não se esgota nestas explicações; sua relação com Dante

não pode ser inteiramente explicada por considerações dogmáticas.

Nossas observações procuram apenas mostrar que a interpretação

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ERICH AUERBACH

teológica, embora sempre útil e indispensável, não nos obriga a

abandonar a realidade histórica de Beatriz - pelo contrário.

Desta maneira concluímos nosso presente estudo da figura.

Nosso propósito foi mostrar como, a partir da base do seu desen

volvimento semântico, uma palavra pode evoluir dentro de uma

situação histórica e dar nascimento a estruturas que serão efetivas

durante muitos séculos. A situação histórica que levou são Paulo apregar entre os gentios desenvolveu a interpretação figural e prepa

rou-a para a influência que iria exercer na antiguidade tardia e naIdade Média.

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São Francisco de Assis na

Comédia de Dante

Há poucas passagens no Paradiso tão conhecidas e admiradas

como o canto décimo primeiro; isto não chega a surpreender, pois o

seu tema é são Francisco de Assis, e os versos têm uma beleza excep

cional. Ainda assim, a admiração por este canto não é assim tão sim

ples de explicar. Francisco foi uma das figuras mais marcantes da

Idade Média. Todo o século XIII, que compreende a juventude de

I)an1.e, roi impregnado por sua personalidade. Nenhum outro estilo de vida, voz ou comportamento dessa época repercutiu sobre nós

COlll1<1I1talareza. Sua personalidade sobressai em virtude de seus

IllllilOScontrastes. Sua piedade, ao mesmo tempo solitária e popu

lar, scu caráter, ao mesmo tempo doce e austero, e seu comporta

Im'nto, ao mesmo tempo humilde e áspero, tornaram-se inesquecí

vcis. Lenda, poesia e pintura apossaram-se dele e, muito tempo após

sua morte, todo frade mendicante na rua parecia carregar dentro de

si algo de seu mestre e multiplicar a sua presença, Sua personalida

de contribuiu sem dúvida alguma para despertar e aprofundar o sen

timento da originalidade e singularidade do indivíduo, sentimento

esse cujo grande monumento é exatamente a Comédia de Dante.Desse encontro entre Dante e são Francisco, isto é, da entrada de

Francisco na Comédia, deveríamos esperar um daqueles momentos

mais luminosos da representação da vida concreta de que a Comédia

é tão rica. Na já meio lendária biografia de Francisco, Dante encon

trou amplo material para retratar esse encontro. Mas, estranhamen

te, o encontro não acontece.

Quase todas as personagens da Comédia são apresentadas de

modo direto. Dante vai encontrá-Ias no lugar designado a cada uma

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ERICI-! AUERBACI-!

delas pela justiça de Deus, e aí desenvolve-se um encontro diretoatravés de perguntas e respostas. Com são Francisco é diferente. Éverdade que Dante só vai encontrá-lo lá pelo fim do poema, no seuassento na rosa branca en'tre os santos do Novo Testamento; mas

não fala com ele e, nas outras passagens em que é mencionado, nãoaparece em pessoa; até na mais importante e detalhada dessas passagens, o décimo primeiro canto do Paradiso, Franciso não fala; são os

outros que falam sobre ele. Por mais surpreendente que isso pareça,a moldura e a forma do relato são ainda mais estranhas.

Dante e Beatriz estão no céu do Sol, cercados por um grupo desantos que dançam e interrompem sua dança para se apresentarcomo os Padres e Doutores da Igreja. Um deles, santo Tomás deAquino, identifica-se e define a si próprio e a seus companheiros;depois, todos começam a dançar de novo. Dante, no entanto, nãoentendeu o significado de algumas palavras de Tomás: "Eu era umaovelha do rebanho de Domingos, onde se encontra bom pasto senão se desvia". Dante sente falta de uma explicação sobre o verso u'

ben s'impingua, se no si vaneggia (e também sobre uma passagem

relativa a Salomão). Tomás, que como todos os santos goza da visãodireta da luz eterna, de modo que nada no pensamento de Danteconstitui segredo para ele, satisfaz o desejo não formulado de umaexplicação de suas palavras. Mais uma vez o canto e a dança sãointerrompidos para que Tomás, ajudado por Boaventura, possacomentar suas próprias palavras. O comentário estende-se por trêscantos. No primeiro, o canto undécimo de que falamos, Tomásconta a vida de são Francisco e acrescenta um lamento sobre o declÍ

nio de sua própria ordem, a dos dominicanos; no décimo segundo,ao contrário, o franciscano Boaventura conta a vida de Domingos econclui com uma censura aos franciscanos; o décimo terceiro canto

contém, de novo pela boca de Tomás, o comentário sobre a afirmação relativa ao rei Salomão já mencionada. Dos dois cantos sobre asordens mendicantes, Dante e o leitor aprendem que ambas foramfundadas com o mesmo propósito, que se complementam e que, emambas as ordens, a vida de seu fundador foi igualmente perfeita, e adecadência de seus seguidores, igualmente detestável; que, portanto,em cada uma delas os homens triunfam quando seguem o exemplode seu fundador e não se desviam. Os dois cantos formam um

comentário didático, bem integrado na moldura da interpretação

66

FIGURA

d.\IIl l' sca da história, com fortes trechos polêmicos dirigidos não,Ipcllas contra as duas ordens, mas também contra o papado e o(lero em geral. A vida de Francisco também pertence a esse comenLírio. Assim sendo, está integrada a um comentário, de cerca de cemvcrsos, sobre uma oração subordinada que se resume a um verso, eque certamente adquiriria maior clareza se fosse apresentada concisamente. Aqui está, portanto, a moldura: Tomás, o grande doutor da

Igreja, comenta copiosamente uma de suas próprias formulações.Tal procedimento corresponde ao caráter de Tomás; mas será adequado a uma apresentação da biografia de são Francisco? De acordo com a nossa maneira moderna de pensar, não. Foi através docstudo de sLlasmotivações que aprendemos a compreender o método Illcdieval dos comentários. Sabemos que ele deriva do peculiarSiStl'III;\de ensino da época. Descobrimos também que da folhagem('III ;\r; lldl:ub de comentários e paráfrases brota às vezes uma flori ll('s lH'LHb que a árvore que a sustenta, isto é, o texto, não parecia1)1Olll('tl'l";e, com freqüência, o texto está completamente soterradopdo (,oll lcI1Llrio. Na verdade, trata-se de um fenômeno que não se

1(,,,1 rillge;l literatura; basta pensar nas muitas iniciais das iluminuras,IW; Illl li tas seqüências litúrgicas. Mas aqui, quando Dante narra avid.1de silo Francisco, será que não podia encontrar uma moldura1I1('IIOScadêmica, menos escolástica?

Além disso, a biografia narrada por Tomás contém apenas umap;lIle mínima daqueles encantadores e irresistÍveis detalhes concrelos preservados pela lenda franciscana. Na verdade ele conta apenaso essencial de acordo com a tradição - o nascimento, a construçãode sua obra, a morte -, mas não acrescenta nenhuma das histórias

pessoais que dão vida ao quadro. Até os elementos essenciais sãomostrados de uma forma documentária, em ordem cronológica:

nascimento, voto de pobreza, fundação da ordem, a ratif icação pelopapa Inocêncio, a segunda ratif icação por Honório, a missão juntoaos sarracenos, a estigmatização, a morte. Até aspinturas murais deAssis contam mais do que isso e de uma maneira bem mais alegre,bem mais anedótica - para não mencionar outros tratamentos literários da lenda. E podemos ainda acrescentar mais: em Dante, alémda moldura externa do comentário de que faz parte, a biografia também possui um leitmotiv interno e um outro alegórico. A vida desão Francisco é representada como um casamento com uma mulher

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ERICH AUERBACH

alegórica, a Pobreza. Sabemos naturalmente que esse era um dos

temas da lenda franciscana; mas era mesmo necessário fazer dele o

tema dominante? Como especialistas em arte e literatura medievais,

fomos aprendendo pouco a pouco e sempre laboriosamente que,

para certos grupos no contexto da espiritualidade medieval, a alego

ria significava algo mais real do que significa hoje para nós; na ale

goria, as pessoas viam uma realização concreta do pensamento, um

enriquecimento das possibilidades de expressão. Mas isso não impe

de que um de seus mais ardentes e perspicazes intérpretes moder

nos, Huizinga, possa chamá-Ia, com um leve desprezo, "as parasitas

da estufa da antiguidade tardia". Apesar de todo o nosso conheci

mento de seu significado, não podemos mais sentir espontaneamen

te a sua poesia. E eis que Dante, capaz de fazer tantas pessoas fala

rem diretamente, nos dá a personalidade mais viva do período ante

rior ao seu, Francisco de Assis, coberto com asvestes de uma narra

tiva alegórica. O que quase todos os poetas tardios fizeram, o que

ele próprio fizera tantas vezes, a arte na qual era o mestre maior, a

de modelar as pessoas através de suas próprias palavras e gestos da

maneira mais concreta e pessoal, aqui ele deixa de lado. Tomás, odoutor da Igreja, narra o casamento do santo com a Pobreza para

que Dante possa compreender o significado da frase em que diz que

um homem encontra um bom pasto no rebanho de Domingos senão se desvia.

Se pensarmos nos famosos poemas alegóricos da antiguidade

tardia e da Idade Média, nas obras de Claudiano ou de Prudêncio,

de Alain de Lille ou Jean de Meun, há certamente muito pouco em

comum entre elas e a biografia de Francisco na Comédia. Estas

obras convocam exércitos inteiros de personagens alegóricas, des

crevem suas personalidades, suas roupas, suas moradias, fazem com

que discutam e lutem umas com asoutras. Em algumas dessas obrasaparece Paupertas, mas sempre como um vício ou companheira do

vício. Dante introduz aqui uma única figura alegórica, a Pobreza, e

vai l igá-Ia a uma personalidade histórica, isto é, real , concreta. Criá

algo inteiramente diferente; lança a alegoria dentro da vida real, vai

juntá-Ia intimamente a uma situação histórica. Claro, esta não é uma

invenção de Dante; ele herdou-a junto com o tema da tradição fran

ciscana, onde, desde o começo, o casamento com a Pobreza aparece

como uma atitude típica do santo. Logo após sua morte surgiu um

68

FIGURA

tratado com o título Sacrum commercium Beati Francisci cum

Domina Paupertate1, e ecos do tema são encontrados com freqüên

cia,por exemplo, nos poemas de Jacopone da Todi. Mas trata-se de

algo que não foi completamente desenvolvido, dispersando-se emmuitas anedotas didáticas e isoladas. O Sacrum commercium não

contém nada de biográfico e consiste, essencialmente, num escrito

doutrinário, no qual a Pobreza faz um longo discurso. Da mesma

maneira, asimagens na Igreja Menor em Assis, que já foram atribuí

das a Giotto, mostram o casamento sem nenhuma referência biográ

fica. Cristo une o santo e a Pobreza encovada, velha e esfarrapada,

enquanto de cada lado várias alas do coro dos anjôs participam da

cerimônia. Nada disso possui qualquer relação direta com a vida

real do santo; este será o assunto de um outro ciclo de pinturas. Mas

Dante, ao contrário, irá combinar os dois; l iga a festa de casamento

com a cena cheia de impacto, estridente mesmo, no mercado de

Assis, onde Francisco renuncia publicamente à sua herança e devol

ve suas roupas ao pai. A renúncia à herança e às roupas, que consti

tui em todas as outras versões o próprio centro do episódio, não é

explicitamente mencionada por Dante; só surge intimamente ligadaao casamento alegórico. Aqui Francisco rompe com seu pai por

causa do amorpor uma mulher, uma mulher que ninguém deseja,

que todos rejeitam como se fosse a própria morte; diante do olhar

de todos, do olhar do bispo, do olhar de seu pai, ele une-se a ela.

Aqui o significado particular e o significado universal do incidente

encontram-se representados com um relevo muito maior do que se

fossem revelados através da simples renúncia aos bens particulares.

Ele recusa os bens de seu pai e liberta-se dele, não porque não dese

je possuir coisa alguma, mas sim porque deseja uma outra coisa e

luta para possuí-Ia. Ele o faz em nome do amor, em nome de um

desejo, algo que involuntariamente irá despertar lembranças deoutras situações semelhantes em que os jovens abandonaram suas

famílias por causa de uma mulher ruim que acendeu seus desejos.

Sem nenhuma mostra de vergonha, diante do olhar de todos,

Francisco une seu destino a uma mulher desprezada por todos, e a

reminiscência de mulheres ruins torna-se, como veremos, cada vez

mais vívida à medida que o tema se desenvolve. Trata-se portanto de

um casamento estranho, repulsivo de acordo com os padrões vigen

tes, da cerimônia de uma união degradante, seguida pela luta contra

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seu próprio pai, de modo público, estridente, e por esta mesmarazão mais cheia de significado do que a devolução das roupas, aqual não suscita aquele contraste entre a abjeção e a santidade comoo faz o casamento com uma mulher desprezada. Aqui irrompe umaoutra lembrança, a Dele que uma vez celebrou um casamento assim,Dele que desposou uma mulher desprezada, abandonada, a pobrehumanidade rejeitada, a filha de Sião. Também Ele, por sua livrevontade, recusou sua herança para dedicar seu amor a uma mulherabandonada. A concepção de que a vida e o destino de Franciscoguardam certa correspondência com a vida de Cristo, o tema da imitação ou conformidade, foi sempre cultivada amorosamente pelatradição franciscana. A biografia de Boaventura é dominada por essaconcepção, também presente na pintura, sobretudo na Igreja Menorde Assis, onde cinco incidentes da vida de Cristo estão colocados do

lado oposto a outros cinco que correspondem à vida de Francisco.A conformidade aparece também em muitos pormenores, tais comono número de discípulos, na vida comunitária com eles, nos váriosmilagres e, acima de tudo, na estigmatização. Dante não desenvol

veu o tema de modo detalhado, na verdade ele não dá detalhes; masde maneira consciente uniu-o ao casamento místico, captando-o nãoatravés de ocorrências isoladas, mas em seu todo e em sua essência;

embora de um modo que o tornasse mais diretamente claro para oleitor medieval do que para o moderno.

A biografia que Tomás de Aquino nos relata começa com umadescrição da topografia de Assis. "Desta ladeira", e Tomás continua,"um sol surgiu para o mundo, brilhando como o sol terreno quando se levanta. Quem fala deste lugar não deveria chamá-lo Assis,mas Oriente". Este jogo de palavras serve para enfatizar a comparação entre o nascimento de Francisco e o nascer do sol; mas sol

oriens, oriens ex alto é uma concepção medieval do Cristo muitodifundida (segundo Lucas 1, 78 e várias passagens que contêm osímbolo da luz em João )2; este símbolo está baseado em mitos maisantigos do que o cristianismo, firmemente enraizados nas regiões doMediterrâneo, sempre em ligação com um casamento místico. ParaDante, o nascimento do Senhor, o casamento do Cordeiro e a visão

de VirgÍlio na Quarta Écloga, que para ele e seus contemporâneosera uma profecia do Cristo, estavam misturados com a figura doSol-Criança como o Salvador do mundo a quem se destina o casa-

70

FIGURA

mento místico. Não há dúvida portanto de que, através da comparação com o sol nascente, seguida diretamente pelo casamento místico como a primeira confirmação do poder solar do santo, Dantequis fazer soar também a nota do tema da conformidade ou imitação de Cristo e desenvolvê-Ia integralmente. A metáfora do sol nascente é uma introdução cheia de alegria com a qual a amargura docasamento, feio e repulsivo, compõe um contraste marcante. O contraste vinha sendo preparado, e não creio que fosse por acaso. Otema do casamento místico já fora introduzido duas vezes antes, deforma breve, quer com um estilo gracioso, quer com um esti lo solene e sublime, em ambas com toda aquela beleza encantadora de queDante é capaz. Da primeira vez, aparece como uma imagem no sÍmiIc da dança dos santos como sinos que anunciam a manhã, no fim doCanto 10 (versos 139-46):

Indi come orologio, che ne chiami

nell ' ora che Ia sposa di Dia surge

a mattinar 10 sposo perche l'ami,

che l'una parte l 'altra tira ed urge,tin tin sanando com SEdolce nota,

che il ben disposto spirto d'amor turge;

COSEid'io Ia gloriosa rotamoverSl ...

[Assim como no relógio que nos chama,na hora em que a esposa de Deus acordae canta matmas para o ser que ama,ficam se tocando uma à outra corda,tin tin soando com uma tão doce nota,

que o bom espíri to de amor transborda;

foi assim que eu vi a gloriosa rodamover-se ...]

Aqui o tema é indicado apenas por um símile, mas torna-se concreto por sua alegria encantadora, por sua dolcezza; aqui, como notrecho seguinte, o noivo é Cristo, e a Igreja, isto é, a cristandade, é anoiva. Na segunda vez, um pouco antes do começo da Vita

Francisci, é mais dramático, mais profundo e significativo: refere-sediretamente ao casamento da Cruz. No começo de seu comentário,

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ERICH AUERBACH

Tomás quer elucidar para Dante o propósito da Providência. Dois

líderes, ele diz (Francisco e Domingos), foram enviados pela

Providência para que a Igreja caminhasse ao encontro de Cristo

com passos mais seguros e autênticos; e o texto nos diz por que

motivo (Par., 11,31-4):

perà che andasse ver Iasuo diletto

Iasposa di colui, ch'ad alte grida

disposà lei cal sangue benedetto,

in sé sicura ed anca alui piu fida . ..

[porém que buscasse ver o seu amado

a esposa, aquela que com dor tocante

ele desposou com sangue abençoado,

de si segura e nele mais confiante ...]

Isto não é mais encantador, é solene e exaltado; toda a história

do mundo depois de Cristo está, para Dante, contida na imagem do

noivo que vai ao encontro de sua bem-amada. Aqui também o tom

alegre, a paixão cheia de júbilo dos noivos é muito forte; claro, aamargura da agonia deste casamento na Cruz é indicada; com um

grito alto, através do sangue sagrado, é consumada; mas agora "ter

minou", e o triunfo de Cristo foi conquistado.

As duas passagens, uma graciosa, a outra solene-sublime, ambas

repletas da alegria nupcial, afirmam-se como prenúncios, tal como o

nascimento do sol, em agudo contraste estético com o casamento

cujo surgimento preparam. De modo estridente, com a discórdia da

luta contra o pai, com as rimas duras guerra e morte, a cerimônia

começa. Mas, acima de tudo, está a noiva: ela nem sequer é nomea

da ou descrita, mas tal é sua força que ninguém abre a porta do pra

zer para ela - assim como também para a morte (Ia morte). Parecenos absolutamente imprescindível interpretar a abertura da porta do

prazer em seu sentido próprio como o ato sexual e, desse modo,

"porta" como a entrada para o corpo feminino. A outra explicação,

preferida por muitos comentadores, de que se trata de uma referên

cia à porta da casa, proibindo a entrada da pobreza ou da morte,

pode ser pertinente em muitos trechos onde se diz que ninguém

abre a porta quando a morte ou a pobreza estão batendo; no entan

to, não se ajusta de modo algum ao contexto nupcial e não consegue

72

FIGURA

explicar de modo convincente porta dei piacere; além disso, se não a

quisesse designar expressamente, sem dúvida Dante teria evitado

sugerir uma interpretação sexual; pois ela irá corresponder perfeita

mente à impressão concreta de repulsa amarga evocada nessa passa

gem. Por conseguinte, ninguém deseja a mulher que Francisco esco

lheu, ela é desprezada, rejeitada, passou séculos à espera de um

amante - um dos comentadores antigos, Jacopo della Lana, subli

nha que ele nunca disse para ninguém -, mas Francisco, o sol nas

cente do monte Subasio, une-se abertamente a esta mulher cujo

nome ainda não foi dito, mas cujo retrato deve despertar no leitor a

imagem de uma prostituta velha, desprezível, horrorosa, mas aindasedenta de amor. Daí em diante ele irá amá-Ia cada vez mais. Há

mais de mil anos ela foi privada de seu primeiro marido (Cristo,

embora Ele não seja nomeado), e a partir daí viveu menosprezada e

abandonada até que Francisco apareceu. Tudo foi inúti l para ela, de

nada lhe valeu ter dado uma tranqüila segurança a seu companhei

ro, o pescador Amiclas (segundo Lucano), durante uma visita de

César; nem ter, forte e corajosa, subido à Cruz com Cristo e, como

a própria Maria, ter permanecido aos pés da Cruz. Agora, claro, jásabemos quem ela é, e Tomás diz seu nome: mas a sublime e herói

ca figura da Paupertas ainda não está livre de um ressaibo amargo e

grotesco. Que uma mulher tenha subido à Cruz com Cristo é, em si

mesma, uma concepção bizarra3; mais bizarra ainda é a aplicação da

alegoria para mostrar como foram conquistados os primeiros discí

pulos. No entanto, seja como for que se interpretem os versos 76-8,

algo obscuros sintaticamente, o sentido geral é bastante claro: aamorosa harmonia do casamento entre Francisco e a Pobreza susci

ta em outros o desejo de participar desta felicidade; primeiro,

Bernardo (de Quintavalle) t ira seus sapatos e começa a "correr atrás

daquela paz, e, enquanto corria, parecia a ele próprio que ainda iamuito devagar"; depois, Egídio e Silvestre tiram seus sapatos e

seguem o jovem marido; de tanto que a noiva tinha agradado a eles!

A visão grotesca e horrível da união sexual com uma mulher des

prezada, que sechama pobreza ou morte e que revela o significado de

seu nome pela sua aparência, acrescenta-se uma imagem que, para o

gosto estético posterior, seria imprópria a ponto de parecer intolerá

vel: a adesão piedosa e extática dos primeiros discípulos é mostrada

como uma perseguição amorosa à esposa de um outro. Na Idade

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ERICIi AUERBACIi

Média cristã, no início do século XlV, tais imagens eram tão eloqüen

tes como são hoje em dia, mas seu efeito era diferente. O aspecto con

creto, intenso e plástico compreendido nas imagens eróticas - correr

atrás de uma mulher, unir-se sexualmente a ela - não era considera

do algo inconveniente, mas um símbolo de fervor. Para o gosto pos

terior, naturalmente, a combinação de esferas tão diferentes, a mistu

ra do que vai até a indignidade física com a mais alta dignidade espi

ritual, é dificilmente tolerável até mesmo hoje em dia, em que há umatendência a se admirar as extremas misturas de esti lo na arte moder

na; mesmo num poeta tão venerado como Dante raramente estas pas

sagens são entendidas em seu significado pleno. A maior parte dos lei

tores nem asregistra nem as relê. Claro, seria um equívoco ainda pior

lê-Ias sob a ótica de um anarquismo extremado tal como existe hoje

em dia, e por razões muito sérias; Dante é sem dúvida muitas vezes

"expressionista" até o mais alto grau, mas este expressionismo surge

de uma herança complexa; sabe o que quer exprimir e o exprime.

O modelo para um estilo em que a mais elevada grandeza com

bina-se com a mais baixa degradação, do ponto de vista deste

mundo, era a história de Cristo, e isto nos leva de volta ao texto.Francisco, o imitador de Cristo, vive agora com sua amada e seus

companheiros, todos vestindo as sandálias da humildade. Como sua

.amada, ele é de origem humilde e alérgico à aparência exterior; mas

isso não o torna frágil. Pelo contrário, parece um rei quando revela

ao papa sua "firme intenção", ou seja, a fundação da ordem mendi

cante; porque ele, como Cristo, é o mais pobre e o mais desprezado

entre os pobres, mas ao mesmo tempo é um rei. E já que na primei

ra parte da Vita a humildade ocupa o primeiro plano, é na segunda

parte, que aborda a ratif icação papal, a missão entre os sarracenos,

sua estigmatização e morte, que seu triunfo e transfiguração vêm

enfatizados. Como um rei, ele expõe ao papa o seu plano e obtém

sua aprovação; o grupo de frades menores vai crescendo, pronto a

seguir aquele cuja vida deveria ser cantada na glória celestial; o

Espírito Santo coroa suas obras através do papa Honório; e depois

de ter procurado em vão o martírio entre os infiéis, recebe do pró

prio Cristo, em sua pátria entre o Tibre e o Amo, a última chancela

que confirma sua imitação: as chagas. Quando Deus decide recom

pensá-Io com a morte e a glória eterna por sua humildade, ele reco

menda sua amada ao amor sincero de seus irmãos, que são seus legí-

74

1'1<:111(1\

timos herdeiros; e de seu seio, no seio da Pobreza, sua alma glorio

sa sobe para retornar a seu reino; para o corpo, ele não deseja outro

túmulo a não ser o próprio seio da Pobreza. A conclusão vem num

crescendo de força rítmica e retórica até o momento da denúncia

contra os dominicanos mais recentes; Tomás exorta seu ouvintc,

Dante, a medir a grandeza de Francisco comparada à de outro líder,

Domingos, fundador da ordem à qual o próprio Tomás pertenceu:

Pensa oramai qual lu colui . ..

Sem dúvida a Pobreza é uma alegoria. Ainda assim, os detalhes

concretos de uma vida de pobreza - tal como o Sacrum commer-

cium enumera - não teriam provocado um impacto tão genuíno

quanto a descrição, sucinta mas impressionantemente elaborada, das

núpcias com uma mulher velha, horrenda e desprezada. A amargu

ra e o caráter física e moralmente repulsivo de tal união mostram,

com intensidade sensível , a grandeza de uma resolução santa; revc

Iam também a verdade antitética de que só o amor é capaz de tomaruma decisão dessa natureZa. No Sacrum commercium celebra-se

uma festa durante a qual ficamos sabendo que os irmãos menoresusam apenas a metade de uma vasilha de barro para lavar as mãos,

não têm com que enxugá-Ias, molham o pão só com água, comem

no apenas com ervas do mato, não têm sal para usar nas ervas e

nenhuma faca para limpá-Ias ou para cortar o pão. Não podemos

deixar de sentir um certo desgosto diante dessa descrição, dessa enu·

meração; seu efeito é de pedantismo, mesquinhez, de excessivo aca··

nhamento. Algo bem diferente ocorre quando se narra um simples

ato dramático de pobreza voluntária, como se encontra com fre··

qüência na lenda dos santos; por exemplo, a cena em Greccio em

que ele vê pela janela os irmãos comendo numa mesa bem ornamen

tada; toma emprestado o chapéu e o bastão de um mendigo, aproxima-se da porta rogando caridade e,como um pobre peregrino, pede

comida; quando os irmãos, atônitos, o reconhecem e lhe dão o prato

desejado, senta-se com eles sobre as cinzas e diz: modo sedeo utfra-

ter minor. A cepa expressa com beleza o peculiar efeito emocional

de seu comportamento, mas não o sentido completo de sua vida.

Para completar esse quadro, seriam necessárias muitas histórias

semelhantes, cada uma delas contribuindo com um detalhe para for

mar o todo; a tradição lendária e biográfica cumpriu essa tarefa, mas

75

,(~

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ERICH AUERBACH

não há lugar para ela na Comédia. Acima de tudo, este não era seu

intento. Todos conheciam a lenda com suas histórias; mais ainda,

Francisco de Assis era, desde muito tempo, uma figura claramente

definida na consciência de todos os seus contemporâneos.

Constituía um caso bem diferente de muitas outras personagens,

menos conhecidas ou mais discutidas, que aparecem na Comédia;

Dante enfrentava aqui um tema formado por um modelo claramen

te delineado, e sua tarefa era apresentá-Io de modo a abarcar o sig

nificado de Francisco em sua máxima amplitude. A personalidade

real do santo tinha de ser preservada, não com o objetivo de expô

Ia, mas sim de integrá-Ia a uma ordem em que aquela personalidade

fora colocada pela Providência; a realidade pessoal do santo tinha de

estar subordinada à sua missão, t inha de brilhar através de sua mis

são. Por esta razão, Dante não descreveu um encontro no qual o

santo pudesse revelar-se ou expressar-se de modo íntimo; em vez

disso, escreve uma Vita, a vida de um santo. Dante não podia expri

mir como opinião própria a grande importância que atribuía à ativi

dade dos dois fundadores das ordens mendicantes. Irá apresentá-Ia

através de dois grandes doutores da Igreja, Tomás e Boaventura,ambos produtos dessas ordens. Nas duas Vitae a personalidade está

subordinada à missão para a qual foi chamada. Na parte sobre

Domingos, de sabedoria angelical, cuja missão era pregar e ensinar,

e cuja personalidade não podia ser comparada com o seráfico e

ardente Francisco em popularidade, a biografia individual passa, de

maneira mais marcante ainda, para o segundo plano e é substi tuída

por uma série de imagens: o esposo da fé, o jardineiro de Cristo, o

vinhateiro no vinhedo, o combatente pela semeadura da Sagrada

Escritura, a torrente sobre os campos dos heréticos, a roda no carro

de combate da Igreja. Todos estes símbolos referem-se à missão. A

Vita Francisci está muito mais perto da vida, mas também encontrase subordinada à missão; aqui só temos uma imagem desenvolvida,

a do casamento com a Pobreza, que fixa o modelo da vida e ao

mesmo tempo vai colocá-Ia sob o signo da missão. A missão, por

tanto, é o fator decisivo também na biografia de Francisco; o realis

mo da vida deve estar subordinado a ela, e a alegoria da Pobreza

contribui para esse objetivo. Ela consegue combinar a missão do

santo com a atmosfera peculiar de sua personalidade, mostrando-a

com a máxima intensidade, mas sempre sob o signo da missão; exa-

76

FIGURA

tamente como ocorria na vida pessoal de Francisco. Seu forte e apai

xonado realismo pessoal não se deixava levar pelo devaneio (vaneg-

giava), mas concentrava-se inteiramente em sua missão.

"Francisco", diz Deus ao santo num Auto da Paixão alemão4, "toma

o amargo como doce, e recusa a ti próprio para que possas me reco

nhecer". Toma o amargo como doce ... Há algo mais amargo do que

a união com uma mulher assim? Mas Francisco tomou-a, como

Dante mostra, como uma coisa doce. Todas as coisas amargas são

abraçadas nessa união, tudo o que poderia ser considerado como

amargo r e autodesprezo está contido nela, junto com o amor que é

mais forte que toda amargura, mais doce que a doçura e tem a aprovação de Cristo.

Sim, certamente Paupertas é uma alegoria; mas não é apresenta

da e muito menos descrita como tal; nada ficamos sabendo sobre sua

aparência, sobre suas roupas, como em todas as alegorias; no come

ço, nem sequer sabemos seu nome. Sabemos apenas que Francisco

ama uma mulher contra a vontade de todos e que se une a ela; sua

aparência só é transmitida de maneira indireta, mas com tanta força

que se torna evidente, pois todo mundo a evita como se fosse a própria morte, e, abandonada e desprezada, ela teve de esperar muito

tempo por um amante.

Ela também não fala, como o faz a Pobreza no Sacrum commer-

cium ou as figuras alegóricas da Necessidade, da Obrigação, da

Preocupação e da Miséria no último ato da segunda parte do Fausto

de Goethe; ela é apenas a amada muda do santo, mais intimamente

ligada a ele do que a Preocupação a Fausto. O tom didático da ale

goria penetra desse modo em nossa consciência, não como uma

lição didática, mas como um acontecimento real. Como mulher de

Francisco, a Pobreza tem existência concreta; mas, como Cristo foi

seu primeiro marido, sua realidade concreta torna-se parte do grande esquema da história do mundo, do plano dogmático. Paupertas

liga Francisco a Cristo, estabelece o papel de Francisco como imita-

tor Christi. Dos três motivos que, em nosso texto, apontam para a

imitação - Sol oriens, casamento místico, estigmatização -, o

segundo, o casamento místico, é de longe o mais importante a esse

respeito, pois os outros dois e toda a ati tude de Francisco desenvol

vem-se a partir dele. Na condição de segundo marido da Pobreza,ele é o sucessor ou imitador de Cristo.

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ERICI-! AUERBACI-I

Suceder ou imitar a Cristo é, para todos os cristãos, uma metanit idamente traçada, como se pode constatar em muitos trechos doNovo Testamento. No primeiro século da Igreja militante, o testemunho dado pelo sangue dos mártires mostrava que a sucessãodevia ser realizada não apenas moralmente, pela obediência aosmandamentos e pela imitação das virtudes, mas integralmente, através de softimentos iguais ou de um martírio semelhante. Mesmo

após esse período, a tentativa de seguir integralmente os passos deCristo, de imitar seu destino, ainda era objeto de uma procura esforçada; de tal modo que até a morte de um herói numa batalha contraos infiéis era interpretada como uma forma de sucessão. No misticismo do século XII, ao que tudo indica, sobretudo através deBernard de Clairvaux e de seus discípulos cistercienses, desenvolveu-se um sentimento extático que procurava alcançar uma imitaçãointegral do Salvador através de uma absorção no sofrimento deCristo, portanto de uma maneira essencialmente contemplativa, naqual a experiência interior da Paixão, unio mystiea passionalis, eraconsiderada o mais alto estágio da absorção contemplativa. Até esse

ponto, são Francisco de Assis era um continuador da mística passional cisterciense, pois, em sua natureza, na verdade no mais Íntimo desua natureza, a experiência da Paixão aparece como o ultimo sigilto;

mas o caminho escolhido era muito mais ativo e próximo da vida. Asucessão baseia-se, em primeiro lugar, não na contemplação, mas napobreza e na humildade, na imitação dos pobres e na vida humildede Cristo. Francisco contribuiu para a espiritualidade mística dasucessão, dando-lhe uma base que deriva diretamente da Escritura,uma prática direta e imediatamente fundada na vida; a imitação efet iva da pobreza e da humildade de Cristo. Essa renovação concretada sucessão integral foi o motivo por que Francisco foi reconhecidopor seus contemporâneos como merecedor de receber a estigmatização: ninguém conseguira reformar a idéia da sucessão integral tãoprofundamente quanto ele.

Agora podemos entender claramente por que Dante não podiaapresentar a realidade da figura do santo de modo mais simples ouimediato do que através do casamento místico, a base de sua imita-

tio Christi. Esse procedimento colocava Francisco no esquema dahistória do mundo, ao qual, na visão de Dante, ele pertencia: umesquema que, nesse período, permanecia bem vivo. Para o período

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FIGURA

medieval, e até bem mais tarde no mundo moderno, um acontecimento significativo ou uma figura significativa era "significativo"no sentido literário; significava preenchimento de um plano, preenchimento de algo preestabelecido, repetindo a confirmação de algono passado e profetizando algo que viria. Num ensaio anteriorsobre a figura, tentei mostrar como a chamada interpretação tipológica do Velho Testamento, na qual os eventos são interpretados

como profecias práticas da efetivação do Novo Testamento, em part icular da encarnação e da morte sacrificial de Cristo, criou um novo

sistema de interpretação da história e da realidade que dominou aIdade Média e influenciou decisivamente Dante. Devo remeter o lei

tor a este ensaioS, e só posso adiantar aqui que a interpretação figurativa estabelece uma relação entre dois acontecimentos, ambos his

tóricos, na qual um deles se torna significativo não apenas em simesmo mas também para o outro, que, por sua vez, enfatiza e completa o primeiro. Nos exemplos clássicos, o segundo é sempre aencarnação de Cristo e dos acontecimentos ligados à encarnaçãoque levaram à libertação e ao renas cimento do homem; e o todo é

uma interpretação sintética da história do mundo pré-cristão, tendocm vista a encarnação de Cristo. A imitação integral, com a quallidamos a propósito do casamento místico de Francisco com aPobreza, é uma figura recorrente; repete certos temas característicosda vida de Cristo, renova-os e revivifica-os aos olhos de todos, ao

mesmo tempo que renova a missão de Cristo como o bom pastorque o rebanho deve seguir . 10 fui degli agni delta santa greggia ehe

Domenico mena per eammino [Eu fui uma das ovelhas da santa igreja que Domingos soube guiar pelo caminho], diz Tomás, e Franciscoé designado como um patriarca. A figura e a imitação juntas perfazem a imagem de uma visão teleológica da história cujo centro é acncarnação de Cristo; isto define os limites entre a velha e a novaaliança; lembremo-nos de que o número de eleitos em ambas asalianças, tal como são apresentados na rosa branca no EmpÍreo deDante, será exatamente o mesmo no fim dos tempos, e de que, dolado na Nova Aliança, só uns poucos assentos ainda não foram ocupados - o fim do mundo não está longe. Mas, entre os eleitos daNova Aliança, Francisco ocupa um lugar especial na rosa branca, dolado oposto aos grandes patriarcas da Velha Aliança, e, assim comoestes foram precursores, também ele, o esposo estigmatizado da

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ERICH AUERBACH

Pobreza, é o que mais se destaca entre os últimos seguidores de

Cristo como o escolhido para guiar o rebanho pelo caminho certo e

ajudar a Noiva de Cristo, a fim de que ela possa chegar até o seu

amado com passos firmes e seguros.

Todas essas relações eram reconhecidas imediatamente pelo lei

tor medieval, pois este vivia em meio a elas; as apresentações das

repetições profetizadas e realizadas eram tão familiares para ele

quanto a concepção de desenvolvimento histórico para um leitor

moderno; até a aparição do Anticristo era considerada uma repeti

ção exata, mas enganadora, da aparição de Cristo. Perdemos a com

preensão espontânea dessa concepção da história; somos obrigados

a reconstruí-Ia pela pesquisa. Mas ela guiou a inspiração de Dante e

ainda podemos sentir o seu brilho; apesar de nossa antipatia pela

alegoria, a realidade viva do décimo primeiro canto do Paradiso nos

atinge; uma realidade viva que só vive aqui, no verso do poeta.

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Notas

FIGURA

1 Como P. Friedlaender me informa, a barbarica pestis é provavelmente o ferimento cau

sado por um raio, pelo qual Odisseu foi mortalmente atingido; subinis é duvidoso.

[Como o é também minha tradução.]

2 Na antiguidade tardia (Chalcidius, Isidore) e na Idade Média ressurge num jogo de

palavras com pictura. Cf. E. R. Curtius em Zei tschri ft f ür romanische Phi lo logie, 58

(1938),45.

3 Muitas definições posteriores seguiram esta direção. Cf. Thesaurus linguae latinae, VI,

1ª parte, col. 722,I, 54.

4

Em Aristóteles (e em Platão) typoi significa "em geral", "em linhas amplas", "em regra".Suafrase pachulos kai IY/I{)i(f:t ica a Nicômaco, 1094b,20), ou Kath ' hol ou l echth en ka i

typoi, foi transmitida por Ireneu (2, 76) e Boécio (Topicorum Aristoteles interpretatio, 1,

1 [Patrologia latina, LXIV, col. 911]) para o francês e para o italiano, d. Godefroy, s. v.

f igural : I l convient que /,( /wmiáe de procéder en ces te oeuvre soi t grosse e t f igurele. Ou

s.v. f ig ur almen t: Car I a t n, /I Iiá e dep roduyre / Ne s epeut monstr er n e deduy re/ Par e ff ect ,

si non seulement/ Grossetneril el }iguraulment (Greban). Em italiano a compreensão da

combinação sommaritltt/ellle /' .fi'guralmente parece ter sido perdida desde cedo; d. osexemplos em Tommaseo-Ikllini. f )izionario delta lingua italiana (1869), lI, 1"parte, p.

789,s.v.figura 18.

5Schema tem significados qUt·n,!oaparecem ou que não persistem em figura, como, por

exemplo, o significado de "l'Ilnslituição".

6 Cf. Também a moduiaçi\o ,k tons ,'m 2,412-3:per chordas organic i quae mobil ibus dig i

tis expergefacta figuram Ios h,lrpislas que com dedos ligeiros tocam e modulam ascordas].

7 Deste modo, forma apan''' '' ~eralnll'llte onde são necessárias duas sílabas. Mesmo em

Lucrécio, a relação entn' asduas palavras é sobretudo vaga e oscilante. Há passagens, no

entanto, particularmellt'· "111.11l'1'l'cio,'111que os dois conceitos são nitidamente distin

tos; quando, por exemplo, de lab dos elementos primordiais: "quare ... necessest/ natura

quoniam constant neql4e};'('/IIIIIIIIIII .111111/ I4nil4sad cer tam formam primordia rerum/ dis

simili inter se ql4adam v{)/iltlrt· .fi'glll'tI." (2, 377-80) [Efoi assim que bem no princípio das

coisas, que existem C0l110elas ,~, \opor natureza e não por terem sido feitas pela mão

segundo a forma definida dt' 11111nico padr,\o, algumas delas tomaram formas diferentes

ao voarem.] Como as /ilrltltli ,1/'/'(/tll'/' .fi'glll'tltn em 4, 69, trata-se da clara expressão da

relação bem conhecida ,'nlre 1II{)11'!u-' s('!Jl'tna, que Ernoult-Meillet, lococit., sugere com

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ERICH AUERBACH

Iaconfiguration du moule (aconf iguração do molde). Cf. Cícero, De natura deorum, I , 90.

8 As três últimas palavras (como Munro indicou) refletem a fórmula de Demócrito e

Leucipo: rysmos, trope, diathige (d. Diels, Fragmente der Versokratiker 2 ,4" ed., p . 22 ).

Aristóteles emprega schêma ao explicar rysmos (Metafísica, 985b, 16 e 1042b, 11; Física,

188a , 24) . Lucr éc io t raduz iu a pal av ra por figura.

9 Alguns t re chos : 2 , 385 , 514 , 679 , 682 ; 3 , 190 ,246 ; 6 , 770.

10 A t ransi ção de "figura do mater ia l" para "figura do objeto reproduzido" foi efetuada

de mane ira bas tante g radual, começando pel os poe ta s. Cf. ( al ém de Lucrécio ) Ca tu lo , 64,

50 e 64, 265; Propércio, 2, 6, 33. Em Veleio Patérculo, 1, 11, 4, Expressa similitudine

figurarum significa "semelhante a um retrato".

11 Cf. também Ad familiares, 15, 16. Por outro lado, Quintiliano, 10,2, 15: illasEpicuri

figuras... [aquelas f iguras de Epicuro . .. ].

12 Mais tarde figura torna-se bem freqüente no sentido de "imagem divina" - e, nos

autores cristãos, de "ídolo" - ou a imagem numa moeda.

13 Em Propércio e também em Ovídio, figurae ("formas") significa às vezes "espécie",

"maneir a" , em oposição a "c la ss e", "t ipo"; é a mesma evol ução de species-espece.

14 Ligado a massas, d. t ambém Marcial , 14,222, 1;Festo, 129,ficta quaedam exfarina in

hominum figuras [coisas feitas de massa com formas de homens]; e Petrônio, 33, 6, ova

exfarina figurata [ ovos model ados com mas sa ]. O cozi nheir o de mas sa s er a fr eqüent e

ment e v is to e empregado como um esculto r e decorado r, uma at itude reviv ida em épocas

posteriores, particularmente no Renascimento e nos períodos barroco e rococó; d.Goethe, Wilhelm Meisters Lehrjahre [A aprendizagem de Wilhelm Meister ], l ivro 3,capí

tu lo 7 , e a nota de Cre izenach sob re e st e tr echo naJubi laumsausgabe [ ed ição de j ubi leu],

vo l. 17, p . 344 .

15 Em Epist., 65, 7, Sêneca t em um tr echo si gni fi ca ti vo nou tro s en ti do, onde figura vale

como arquétipo, idéia , forma, mas no sentido neoplatônico do modelo interno das for

mas na mente do artista. Neste trecho ele também compara, o que depois se tornou tão

fr eqüen te, o a rti sta e o Cr iador : o e scult or , di z Sêneca , pode encon tra r o mode lo (exem

plar) de seu trabalho em si mesmo ou fora; pode ser fornecido a ele por seus olhos ou por

sua mente; e Deus tem dentro dele todos os exemplaria das coisas: plenus hisfiguris est

quas Plato ideas appellat immortales [ el e es tá chei o daque las f igura s que P lat ão chama

idéias imortais]. Cf. Dürer: "Pois um bom pintor está interiormente cheio de figuras

(voller Figur)"; d. E. Panofsky, Idea (1924), p. 70.

16 Ver Faral, Les artspoétiques du 12eme et du 13eme siecle ( Pa ris , 1924), p . 48 e t s eqs. e

99 et. seqs.

17Uma va riant e d igna de not a ocor re em Amiano Marcelino, que usa apa lavr a em rel ação

à t opogra fia dos campos de bata lha. Cf . Thesaurus linguae latinae, VI, 1ª par te , 726, 37 ss.

18 Em Sedúlio, Carmen Paschale,5, 101-2, há um trecho em que figura dificilmente podesignificar outra coisa a não ser "rosto", como no francês moderno: "Namque per hos

colaphoscaput estsanabile nostrum;l Haec sputaper Dominium nostram laverefiguram."

[ Poi s nos sa cabeça pode ser curada por e st es golpes; / Es te cuspe lavou nosso rost o napes

soa do Senhor.]/ Já que o poeta falara antes de spuere em faciem [cuspir no rosto] e

colaphispulsare caput [ dobrando a cabeça com gol pes ], o s ignif ic ado de " rosto" não pode

ser posto em dúvida; ainda assim, é possível que Sedúlio tenha sido levado a escolher o

termo mais geral de figura pela necessidade de um trissílabo com uma sílaba longa no

meio para que pudesse concluir o verso. De qualquer modo, é o único exemplo antigo

certo que se conhece do uso em latim de figura como "rosto" . A presunção de Jeanneret ,

em La langue destablettes d'exécration latines (Neuchâtel, 1818) , p. 108, de que figura na

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I

FIGURA

tableta minturniana de execração signi fique "rosto" não tem fundamento, sees tiver mot i

vada apenas pela jus taposição com membra e colorem, que é mui to f reqüen te . No senti

do de "forma" pertence aos atributos (ou partes) gerais do corpo, com os quais a

maldição começa: seguem-se então os atr ibutos especiais . A alegação de Jeanneret é tam

bém rej ei tada por Wartburg em FEW, ad v.figura, 9.A questão permanece i rresolúvel em

re lação a um f ragmen to de Labér io : figura humana inimico (nimio) ardore ignescitur,

Ribbeck, 2 , p . 343 .

19 Na Septuaginta, Josué já é chamado Jesus, que é uma contração de Josué. Cf. as ilus

tr ações do Pergaminho de Josué do Va tic ano, que é consider ado uma cóp ia se te cen ti sta

de um original do século IV. A única parte acessível para mim no momento é uma pági

na em Mittelatlerlicher Buchmalerei de K. P lis te r (Muni que , 1922), r ep res ent ando a fun

dação das doze pedra s Gosué , 4 , 20-1; no texto e na insc riç ão Josué é chamado Iesous ho

tou Naue Uesus (o filho) de Naun], traz um halo e, de modo direto, vem sugerido como

Cristo. Mais tarde, asalusões à "figura" deJosué são freqüentes; d. Hildeberto de Tours ,

Sermones de diversis,XXIII, Patrologia latina, vol . 171, cols. 842 ss.

20 Figuraretur s ignifi ca aqui , ao mesmo t empo, "se ria f ormado" e " se ri a fi gur ado", es te

último pelo sangue e pela água, a Ceia do Senhor e o batismo. A justaposição das duas

chagas no f lanco fo i durante muit o tempo um t ema import ant e. Cf . Burdach, Vorspiel, I,

1 (1925), p. 162 e 212; Dante , Par., 13,37 ss.

21Ita et nunc sanguinem suum in vino consecravit qui tunc vinum in sanguinefiguravit

[a ss im e le consagrou seu sangue com vinho repre sentando o v inho como sangue ].

22Moisés é em ge ral uma f iguração de Cr is to , por exemplo , na t raves si a do mar Vermel ho

ou na transformação da água salgada na doce água do batismo. Mas isto não impede que

el e, no p rime ir o exemplo, r ep res en te a le i em contr ad ição com sua fi gu ração de Cri st o.

23 Cf. Hilário de Poitiers, Tractatus mysteriorum, 1(Corp. Vi nd. , vol. 65, p . 3 ), ci tado em

Labriolle, History and literature of Christianity (London e New York , 1924), p. 243 .

24 Cf. Hilariano, De cursu temporum, Patrologia latina, 13 , col. 173 , 2 : sabbati aeterni

imaginem et figuram tenet sabbatus temporalis [o sabá temporal é uma imagem e uma

figura do sabá eterno] .

25 A profund idade com que o háb it o da i nt er pre ta ção seenra iza ra pode se r v is ta na in te r

pretação meio zombeteira dos dons na correspondência de são Jerônimo (Carta 44,

Selected letters of St.jerome, M. F. A. Wright [London e New York, 1933], p. 176-7).

26 São Je rônimo a taca Orí genes por is to , d izendo que el e é allegoricus semper interpres et

historiaefugiens veritatem ... nossimplicem et veram sequamur historiam ne quibusdam

nubilus atque praestigiis involvamur [sempre um exegeta alegórico, afastando-se da ver

dade hi st ór ic a .. .mas quant o a nós pr ef erimos s impl esmente segui r a h is tó ria ve rdadei ra e

não nos envolvermos com fantasmas e charlatanismo] Geremiam 27,3,4; Patrologia lati

na, 24, col . 849). Sobre a relação dos alexandrinos, par ticularmente Orígenes, com a inter

pretação figural, d. A. Freiherr von Ungern-Sternberg, Der traditionelle Alttestamentl.

Schriftbeweis ... (Ha lle , 1913) , p . 154 s s. Na pági na 160 e le d iz de Or ígenes: "Ele não per

tence ao reali smo bíblico da prova nas escri turas" .

27 Cf. também De civ., 15, 27; i bi d., 20 , 21 (Ad . I sa iam, 65 ,17 s s.) .

28 A. Rüs tow chama minha a tenção pa ra a segui nt e e stro fe de uma peça carnava le sca de

Hans Folz (por volta de 1500): "Hür jud, somerck dir und verstee/ Dass alle Geschicht

der altern Ee/ Und aller Propheten Red gemein/ Einfigur der neuen Eeistallein." [Ouve,

judeu, tome nota e compreenda que toda a história da antiga aliança e todos os ditos dos

Profetas são apenas uma f igura da nova aliança '] '

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ERICH AUERBACH

29 COrpoVind., vol . 31, c f. Lab ri oll e, op. c ir ., p . 424 .

30 Além disso, claro, encontramos claudere [ fechar , cance la r] , na reminiscênc ia de Isa ías

22:22 e Apoca li pse 3 :7 . Cf. numa época pos te rio r Ped ro Lombar do , Commentarium dos

Salmos, 146,6 (Patrologia latina, vol . 191, col . 1276) : clausa Dei, "o que Deus c ance lou

pel a obscur id ade da exp re ssão" , e provoclus.

31 C itado de acordo com Patrologia latina, 59, col . 360.

32 Cf. Du Cange e Dante, Purg., 10, 73, e 12,22; Alain de Lille, De planctu naturae,

Patrologia latina, 210 , 438 ; mui to s t re chos podem ser encontr ados. Amyot d iz em Thém.,

52: La parole de l'homme ressemble proprement à une tapisserie historiée etfigurée [a

p ala vr a do homem par ece na ver dade uma t apeç ar ia h ist ori ad a e fi gu rada ]'33 Suges tões de profecia f igural não fal tam nos Evangelhos Sinópti cos; veja- se , por exem

plo, quando Jesus se compara a Jonas, Mat., 12:39 ss., Luc. 11:29 ss. Em são João

poderí amos menciona r 5 :46. Mas, p ert o dos tr echo s das Epís tol as, n ão pass am de débei s

sugestões.

34 Is to me f oi a pontado por R . Bul tmann; a li te rat ura e spec ia li za da não e st á à minha dis

posi ção no momen to . Cf. , e nt re out ro s tr echo s, Deuteronômio 18:15;João 1:45; 6:14; 6:26ss.; Atos 3:22.

35 Sedúlio, Eleg., 1,87: Pellitur umbra die, Christo veniente figura [A sombr a é expu lsa

pe lo d ia, a f igura , pe la v inda de Cris to] .

36 Embora P rudênc io par eç a não r econhe ce r a in te rp re taç ão fi gu ra l, e xemp los dela o co r

rem em seu Dittochaeon (ver Prudêncio, ed. H . J. T homson, 2 V. [London e Cambr idge

(Mas s. ), 1 949-53] . v .2 , p . 346 sS.

37 I sto in clu i o s a conte cimen to s l endá rio s e mís ti cos t ant o quanto o s a conte cimen to s

e st ri tamen te h is tó ric os . Que o mat er ia l a se r in ter pre tado s eja re alment e h is tó ric o ou apena s pass e por t al n ão é re le vante para nos so obje tivo.

38 Cf. Emile Bréhier, Les idéesphilosophiques de Philon d'Alexandrie, 2" ed. (Pari s, 1925) ,

p. 35 sS.

39 Há muitas formas intermediárias combinando a figura e o símbolo; principalmente a

Euca ris ti a n a qua l Cris to é senti do como e st ando concr et amen te p re sente e s e con sid era

a cruz como a árvore da vida, arbor vitae crucifixae, que des empenhou um pape l s igni

ficativo compreendendo grossomodo o poema do século IV "De cruce" , d. Labriolle, op.c it. , p . 318 , a té o f ra nc is cano "es pi rit ua l" Ube rti no de Cas ale ou Dan te e Out ro s.

40 Na oração correspondendo ao Quam oblationem da missa romana de nossos dias, o

livro De sacramentis ( sécul o IV) t ra z o segu in te t ex to : Facnobis hanc oblationem ascrip

tam, ratam, rationabilem, acceptabilem, quod figura est corporis et sanguinis Christi.

Qui pridie... [ Fa zei por nós e st a o fe re nda cons ag rada , a pr ovada , r azoável e a ce itá ve l, que

é uma figura do corpo e do sangue de Cristo. Que um dia antes de seu sofrimento ... ].

Ver dom F. Chabrol em Liturgia: encyclopédie populaire des conaissancesliturgiques, ed.

r. Aigrain (Paris, 1930), p. 543. Cf. também um texto bem mais tardio, o Rhythmus ad

Sanctam Eucharistiam (século XIII): "Adoro te devote, latens dei tas / Quae sub h is

figuris vere latitas" [Hum ildemente te adoro, divindade escondida, que além destas

f igura s e stá s v el ad a par a mim] e mai s adi an te : "Jesu quem velatum nunc adspicio,! Oro

fiat illud quod tam sitio,! Ut te revelata cernensfacie/ Visu sim beatus tuae gloriae."

Uesus que a ss im velado i re i v er c hegar o momen to que ta nt o an se io , quando mos tr ando

a fa ce encobe rt a me s at is far ás com t ua p le na g ra ça .] ( Trad. J . M . Nea le , Collected Hymns[ London, 1914 ], p . 63. ).

41 Muit as a lus õe s podem se r encon tra da s em Gil son, Les idées et leslettres, esp. p. 68 sS.

84

FIGURA

e 155 ss. Em seu artigo, "Le moyen âge et l'histoire" (in L'esprit de Iaphilosophie médú:

vale, Par is , 1932 ) e le s e re fe re ao e lement o f igu ra l n a fi lo so fi a med ieval d a h is tó ri a, mas

sem grande ênfase, já que sua principal preocupação era revelar as raízes medievais de

concepçõe s moder na s. C f. também, em r ela ção ao d rama r eli gi os o a lemão , T .Weber , J)i,.

Praefigurationen in geistlichen Drama Deutschlands, Marburg Dissertation 1909 e l. .

Wolff, "Die Verschmelzung des Dargestellten mit der Gegenwartswirklichkeit im

deutschen geistlichen D rama des Mittelalters" , Deutsche Vierteljahrsschirft j/fr

Literaturwissenschajt und Geistesgeschichte, 7, p. 267 ss. Sob re o s el emen to s f igur ais no

retrato de Carlos Magno na Chanson de Roland, d. conhe ci do a rti go de A. Pauph il et em

Romania, LIX, esp. p. 183 sS.

42 Naturalmente há numerosas análises do significado quádruplo das Escrituras, que

entretanto não mostram o que me parece indispensável. É natural que a teologia

med ieval , ao d ife ren ci ar a s v ár ia s f orma s de a le go ria ( po r exemplo , Ped ro Comest or no

prólogo de sua Historia scholastica), não atr ibuí sse nenhuma impor tânc ia fundamental ,

mas apenas uma espécie de interesse técnico, a estas distinções. Mas até mesmo um mo

derno teólogo tão proeminente como o padre dominicano Mandonnet, que traça um

resumo da história do simbolismo em seu Dante le théologien (Pari s, 1935, p . 163 ss.), v['

o conheciment o des tas di sti nções como um mero i ns trumen to t écn ic o para a compre en

s ão de t ex to s e não le va em cont a as di fer en te s concepçõe s da r ea lid ade aí imp lic adas .

43 A essa altura naturalmente os fundamentos da interpretação figural já tinham sido

des tr uídos ; at é mesmo mui to s e cl es iás ti co s não a compr eendem mai s. Como Émil e Má le

nos diz (L'art religieux de 12eme siecleen France, 3"ed., 1928, p . 391), Montfaucon inter

p ret ou as f il eir as d e fi gur as do Velho Tes tament o nas l ate ra is d e ce rto s pórt ic os como re is

merovíngios. Numa carta de Leibniz para Burnett (1696, edição Gerhardt, III, 306)

encontramos o seguinte: "O Sr. Mercurius van Helmont acreditava que a alma de Jesus

Cristo era a de Adão e que o novo Adão, reparando o que o primeiro arruinara, era ()

mesmo per sonagem pagando sua vel ha dí vid a. Acho que f az emos bem em nos ab st ermosda tarefa de refutar t ai s idé ias".

44 Falando do arquiteto, santo Tomás diz quasi idea (Quodlibetales, IV, 1, 1). O.Panofsky, Idea (Le ipzig, 1924) , p . 20 ss. e nota, p. 85; d. t ambém a c it ação de Sênec a emnos sa nota 15 .

45 Ver Z ingar el li , Dan te , 3ª e d. , 1931 , p . 1029 s s. , e a l it era tur a c ita da na not a.

46 Cf. J. Balogh em Deutsches Dante-Jahrbuch, 10, 1928 , p . 202 .

47 Por essa razão Dante, Purgo 32, 102, descreve quelle Roma onde Cristo e Romano

[aquela Roma onde Cristo é romano] como a realização do reino de Deus.

48 Purg., 22, 69-73, ed. Temple Class ics. O fa to de que , n a I dade Méd ia , V irg íli o apar eç af reqüentemente ent re os profe tas de Cri sto já foi mui tas vezes discutido detalhadamente,

desde Comparetti. Uma certa quantidade de material novo pode ser encontrada IlO

volume comemorativo, Virgilio nel medio evo, dos Studi medievali (N.5.V., 1932); dcvo

mencionar de manei ra espec ia l lan nova progenies caelodimittitur alto de K. S tre cker, p.

167, em que se pode encontrar uma bibliografia e algum material sobre a estrutura

f igu ra l; a lém d is so , E . Mâ le , Virgile dans l 'art du moyen âge, p. 253, particularmente

prancha 1;e Luigi Sut tina , L'effigie di Virgilio nella Cattedrale di Zamorra, p. 342.

49 As palavras mi converrebbe esserelaudatore di me medesimo [me convi ria s er um lou

vador de mim mesmo ], Vita nuova (ed. Temple Classics, p. 109) 29, são uma alusão a 2

Cor. : 12, 1. Cf. Grandgent em Romania, 31,14 , e o coment ári o de Scher ill o.

50 Is to é indi cado pe lo t ít ulo do li vr o, por s ua p rimei ra f orma de desi gná- Ia como la glo-

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ERICH AUERBACH

5/16/2018 Auerbach, Eric - Figura - slidepdf.com

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r iosa donna de Ia mia mente [a gloriosa senhora da minha mente] pelo misticismo donome, a significação trinitária de número nove, pelos efeitos que emanam dela etc. etc.Àsvezes ela surge como uma figura Christi; basta considerar a interpretação de sua apariçãopor trás de Monna Vanna (24); os acontecimentos que acompanham a visão de sua morte(23); eclipse, terremoto, os hosanas dos anjos; e o efeito de sua aparição emPurg., 30. Cf.Galahad na "Queste del Saint Graal", Gilson, Les idées et les lettres, p. 71.51 Para evitar mal-entendidos devemos mencionar aqui que Dante e seus contemporâneosdenominavam o significado figural "alegoria", enquanto referiam-se ao que é aquichamado alegoria como significado "ético" ou "tropológico". O leitor irá certamenteentender por que neste estudo histórico aderimos à terminologia criada e estimada pelosPadres da Igreja.52 Ele nega que ela sorria alguma vez apesar de Purg., 31, 133 5S. e 32, no começo. Suasobservações sobre Beatriz podem ser encontradas na op. cit., p. 212 ss.

SÃO FRANCISCO DE ASSIS NA COMÉDIA DE DANTE

1 A edição moderna de P.Eduardus Alenconiensis emAnaleeta Ord. Min. Capo(1900).

2 Os escritos de Fr. Dolger que se ocupam desse assunto não se encontram infelizmenteà minha disposição no momento. Cf. o Commentary de Pietro AJighieri (Florença, 1845),p. 626 ss. que cita Gregório, o Grande, sobre Jó 1,3.3 Foi talvez um sentimento diante do paradoxo de uma ofensa ao bom gosto o que levou

muitos copistas e editores a escreverem pianse emvez de salse ou pelo menos preferir essaleitura? Parece-me equivocada, pois enfraquece o contraste entre Maria e Paupertas. OTestocritieo traz pianse, a edição Oxford, salse.O único manuscrito antigo à minha disposição, o famoso ms. Frankfurt na reprodução da Sociedade Dantesca Alemã, trazpianse com certeza.

4 Franzisee, nimm die bit teren Ding für die süssen und versehmdh dieh selber, dass du

mieh bekennen magst. Citado da coleção de Severin Rüttgers, Der Heiligen leben und

Leiden (Leipzig, 1922).O trecho baseia-se numa frase do testamento do santo: Et reee-

dente me ab ipsi s [os leprosos], id quod videbatur miehi amarum, conversum fuit miehi

in duleedinum animi et corporis. [E, destacando-se dele, aquilo que aparecia para mimcomo amargo converteu-se para mim em doçura de alma e de corpo.] . Analekten zur

Gesehiehte desFranciscusv. A., ed. H. Boehmer (Tübingen e Leipzig, 1940),p. 36).5Ver p. 13-64 neste volume.

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