Aula acerca de nominalização em Tupí

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1 Nominalizações em Tenetehára (Tupí-Guaraní) 1 Ricardo Campos Castro 2 1 A língua Tenetehára é falada no nordeste do Brasil por dois povos indígenas: os Tembé e os Guajajára. De acordo com Rodrigues (1984/1985), essa língua pertence ao Ramo IV da família linguística Tupí-Guaraní, do Tronco Tupí. 2 Ricardo Campos Castro é doutorando no Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail para contato: [email protected].

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Aula acerca de nominalização em Tupí

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    Nominalizaes em Tenetehra (Tup-Guaran)1

    Ricardo Campos Castro2

    1 A lngua Tenetehra falada no nordeste do Brasil por dois povos indgenas: os Temb e os Guajajra. De acordo com Rodrigues (1984/1985), essa lngua pertence ao Ramo IV da famlia lingustica Tup-Guaran, do Tronco Tup. 2 Ricardo Campos Castro doutorando no Programa de Ps-Graduao em Estudos Lingusticos da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail para contato: [email protected].

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    1. TRONCO, FAMLIA E RAMO

    Conforme nos revela Rodrigues (84-85), existem cerca de 180 lnguas indgenas brasileiras.

    Neste conjunto, as diferenas e semelhanas entre estas lnguas revelam procedncias comuns e

    variaes advindas ao longo do tempo.

    Na totalidade das lnguas indgenas brasileiras, verificam-se dois grandes troncos - o Tupi e o

    Macro-J - e 19 famlias lingusticas que no oferecem percentuais de afinidades que bastem para que

    possam ser reunidas em troncos. Consoante Duarte (2007, p.21), a lngua Tenetehra est inserida no

    tronco lingustico Tup e pertence famlia lingustica Tup-Guaran, conforme o diagrama a seguir:

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    2. PRINCIPAIS PROCESSOS DE FORMAO DE PALAVRAS EM PORTUGUS3

    Segundo Laroca (2005, p. 72), os principais e mais produtivos processos de formao de palavras so a derivao e a composio. A derivao, segundo a autora, pode ser prefixal, sufixal ou parassinttica, conforme a seguir:

    DERIVAO PREFIXAL PREFIXO + PALAVRA-BASE (1) superfaturar, ps-guerra, anti-aids DERIVAO SUFIXAL SUFIXO + PALAVRA-BASE (2) fraudador, funkeiro, besteirol

    DERIVAO PARASSINTTICA PREFIXO +PALAVRA-BASE + SUFIXO (3) empobrecer, engordar, engavetar

    3Para estabelecer a distino entre derivao e flexo fao uso da definio dada por Cmara Jr. em seu livro Estrutura da Lngua Portuguesa: ... o gramtico latino Varro (116 a.C. 26 a.C.) distinguia entre o processo de derivatio voluntaria, que cria novas palavras, e a derivatio naturalis, para indicar modalidades especficas de uma dada palavra. (CMARA JR., 1970: 81).

    Pode-se depreender que a derivatio voluntria representa bem a derivao e a derivatio naturalis, a flexo. Via de regra, a derivao assistemtica, aberta e no obrigatria; enquanto que a flexo sistemtica, fechada, obrigatria e possui congruncia. A derivao o surgimento de uma nova palavra que nos remete a uma dada realidade. A flexo a formao de novos modos de dizer a mesma palavra. No vocbulo ferreiro podemos observar claramente a formao de uma nova palavra a partir de ferro atravs do processo de derivao. O mesmo ocorre em garota em que temos uma nova palavra a partir de garoto atravs da derivao. A flexo consiste fundamentalmente no morfema aditivo sufixal acrescido de radical, enquanto a derivao consiste no acrscimo ao radical de um sufixo lexical ou derivacional: casa (casa + s) flexo de plural; casinha (casa + inha) derivao.

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    Consoante Baslio (1991, p. 26), a derivao um processo de formao de palavras que se caracteriza pela juno de um afixo a uma base. O vocbulo criado por meio desse processo uma palavra derivada, como em livreiro (livro + eiro), lavvel (lava + vel), reler (re + ler). A base de uma forma derivada, em geral, uma forma livre, como verbos, substantivos, adjetivos e advrbios.

    J o processo de composio caracterizado pela unio de duas bases como, por exemplo, guarda-chuva (guarda + chuva) e sociolingustico (scio + lingustico). A diferena mais determinante entre derivao e composio consiste em que a derivao realizada quando utilizamos uma base mais um afixo, enquanto a composio feita com a juno de dois elementos estveis. Conforme Baslio (1991, p. 30), outra diferena observvel que a derivao cria generalidades e existe uma previsibilidade, pois que h uma significao que no ser, via de regra, alterada. Tambm na derivao o lexema criado, semanticamente, bastante prximo do item do qual ele oriundo, conforme se v nos seguintes exemplos. (4) feijo(ada) (5) camaro(ada) (6) dent(ista)

    Por sua vez, na composio imprevisvel o resultado, uma vez que esta estratgia de formao de palavras est subordinada a propriedades especficas de cada ocorrncia, o que depende das especificidades que se fizerem necessrias. Adicionalmente, observa-se que, na composio, temos formas desligadas do significado estrito de seus componentes, ou seja, configuraes nas quais no se pode inferir o elemento a partir do nome que o especifica. Mais precisamente, cada radical pertencente nova palavra criada na composio possui uma semntica que, de forma geral, no recuperada no novo item criado, conforme sugerem os exemplos a seguir: (7) guarda-vestido (8) olho-de-sogra (9) louva-a-deus

    Tomando por base essas consideraes iniciais sobre o processo de formao de palavras, concluo que, enquanto a derivao se d no componente morfolgico da gramtica, a composio parece se realizar sintaticamente4. Conforme mostrarei mais adiante, h um processo morfolgico na lngua Tenetehra que sinaliza para o fato de que a derivao pode dar-se no s no componente morfossinttico, mas tambm no componente sinttico da gramtica. Nesta lngua, existe um processo de nominalizao que se d por meio do acrscimo do sufixo {-har} a uma base simples ou a constituintes complexos, podendo ocorrer, nestes ltimos casos, nominalizaes de PPs.

    3. DERIVAO EM PORTUGUS E EM TENETEHRA

    3.1 DERIVAO EM PORTUGUS

    muito comum encontrarmos na lngua Portuguesa a formao de nominalizaes a partir de verbos transitivos (ativos), de verbos inergativos, de inacusativos e de adjetivos, conforme ilustram os exemplos abaixo.

    4 Para Baslio (1991, p. 33), "composio um processo de formao de palavras que utiliza estruturas sintticas para fins lexicais". Por exemplo, em porta-bandeira, o segundo elemento funciona como objeto direto do primeiro.

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    (a) DERIVAO5 DE NOMES AGENTIVOS A PARTIR DE VERBOS TRANSITIVOS ATIVOS (10) O matador foi condenado. (matar) (11) Os atiradores esto com seus dias contados. (atirar) (12) Aqueles compradores receberam um prmio no sorteio. (comprar)

    (b) DERIVAO DE NOMES AGENTIVOS A PARTIR DE VERBOS INERGATIVOS (13) O cantor foi aclamado. (cantar) (14) O corredor treinou por toda vida. (correr) (15) O homem era um falador. (falar)

    (c) DERIVAO DE NOMES EVENTIVOS A PARTIR DE VERBOS INACUSATIVOS (16) A ida dos ndios para a cidade. (ir) (17) A queda da bolsa de valores. (cair) (18) O nascimento da criana trouxe uma grande alegria. (nascer)

    (d) DERIVAO DE NOMES ABSTRATOS A PARTIR DE ADJETIVOS (19) A beleza fundamental. (belo) (20) O sentimento de amor uma grandeza do ser humano. (grande) (21) O pai a fortaleza da criana. (forte)

    Semelhantemente ao que acontece nos dados do portugus acima, encontra-se, na lngua Tenetehra, nominalizaes a partir de adjetivos, de nomes, de verbos e at mesmo de advrbios, envolvendo o sufixo {-har}. Tal sufixo, geralmente, fornece a acepo [+AGENTIVA], quando o item a que se junta um verbo transitivo ativo, o qual, em geral, denota uma ao. Nas prximas sees, apresento os dados relevantes de cada nominalizao.

    3.2. DERIVAO EM TENETEHRA - SUFIXO NOMINALIZADOR {-har}

    De acordo com Castro (2007), nota-se que, via de regra, a lngua Tenetehra disponibiliza o sufixo nominalizador {-har}, o qual, de modo geral, afixa-se a verbos transitivos. Essa nominalizao resultar em um sintagma nominal que denota o agente da predicao no nominalizada.

    No exemplo (22a), figura o verbo transitivo zapo fazer que seleciona dois argumentos nucleares, a saber: o DP sujeito awa o homem e o DP objeto wyrapar o arco. Aps a sufixao do morfema {-har} em (22b), o verbo transitivo passa a se comportar como sintagma nominal, o qual semanticamente se refere ao sujeito agente do predicado transitivo inicial. Curiosamente, o DP objeto wyrapar passa a exercer a funo de complemento da predicao nominalizada, conforme abaixo. (22a) u-zapo awa wyrapar 3-fazer homem arco O homem fez o arco (22b) wyrapar i-zapo-har arco 3-fazer-NOML Aquele que faz arco (= O fabricante de arco)

    5 Apesar de Baslio (1991) dizer que o nome mais apropriado para derivaes em que h mudana na classe de palavras seja converso, opto por conservar o nome derivao devido ampla utilizao do termo na literatura tcnica.

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    No dado em (23a), ocorre o predicado transitivo zapi atirar que seleciona dois argumentos nucleares: o DP sujeito awa o homem e o DP objeto zwruhu ona. J em (23b), esse predicado recebe o morfema {-har}, cuja funo a de nominalizar o predicado verbal. Nessa linha de investigao, o novo sintagma nominal, semanticamente, refere-se ao sujeito agente do verbo transitivo original. Finalmente, o DP objeto zwruhu, em (23b), passa a exerce a funo de complemento da predicao nominalizada, assim como pode ser visto abaixo. (23a) u-zapi awa zwruhu 3-atirar homem ona O homem atirou na ona (23b) zwruhu i-zapi-har ona 3-atirar-NOML Aquele que atira na ona (= O atirador de ona)

    Com o intuito de confirmar a anlise acima, forneo mais um dado. Em (24a), ocorre o verbo transitivo zuka matar, o qual seleciona dois argumentos nucleares: o DP sujeito awa o homem e o DP objeto zwruhu ona. Depois da sufixao do nominalizador {-har} em (24b), o verbo transitivo passa a exibir comportamento de um sintagma nominal, que semanticamente se refere ao sujeito agente do predicado transitivo inicial. Adicionalmente, o DP objeto zwruhu, em (24b), exerce a funo de complemento da predicao nominalizada, como indicam os seguintes dados: (24a) u-zuka awa zwruhu 3-matar homem ona O homem matou a ona (24b) zwruhu i-zuka-har ona 3-matar-NOML Aquele que mata ona (= O matador de ona)

    Portanto, os verbos transitivos podem ser nominalizados por meio do sufixo {-har}. Caso um verbo inacusativo, por sua vez, seja submetido sufixao do morfema {-har}, o resultado ser uma construo agramatical, conforme os exemplos arrolados a seguir. Nos exemplos em (25a) e (26a), figuram os verbos inacusativos pok explodir e katu ser bom, nessa ordem; que selecionam os DPs sujeitos awaxi o milho e mg a manga, respectivamente. J os exemplos (25b) e (26b) so agramaticais porque o morfema {-har} no possui a propriedade morfossinttica de nominalizar verbos inacusativos, de acordo com os exemplos que se seguem: (25a) o-pok awaxi 3-explodir milho O milho explodiu (25b) *awaxi i-pok-(h)ar milho 3-explodir-NOML O milho, aquilo que explode

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    (26a) i-katu mg 3-bom manga A manga boa (26b) *mg i-katu-har manga 3-bom-NOML A manga, aquela que boa

    Para que os predicados inacusativos sejam nominalizados, a lngua em anlise disponibiliza outro morfema, a saber: o sufixo nominalizador {-mae}. Assim sendo, a funo desse morfema nominalizar verbos inacusativos. O sintagma nominal resultante dessa nominalizao tem como funo se referir ao nico argumento da predicao inacusativa, conforme os exemplos a seguir. Veja que, aps a sufixao do morfema {-mae}, em (25c) e (26c), os verbos inacusativos passam a se comportar como sintagma nominal. Descritivamente, esse sintagma refere-se ao sujeito afetado ou estativo do predicado inicial. (25c) awaxi o-pok-mae milho 3-explodir-NOML O milho, aquilo que explode (26c) mg i-katu-mae manga 3-bom-NOML A manga, aquela que boa

    Em suma, analisando os exemplos apresentados at o presente momento, proponho que o morfema {-har} necessariamente introduz uma acepo agentiva, uma vez que apenas os predicados verbais cujos sujeitos sejam agentes podem receber esse sufixo. Caso o predicado tenha um sujeito com a funo semntica de afetado, como (25a), ou de estativo, como (26a), outro morfema nominalizador deve ser acionado, a saber: {-mae}.

    O morfema {-har}, alm de nominalizar verbos, ainda afixa-se a advrbios. O resultado desse processo introduz a entidade pertencente ao lugar, como em (27b), ou ao algo que porta determinada caracterstica, como em (28b), ou ainda a relao do indivduo ao tempo como em (29b). Adicionalmente, nessas construes de nominalizao de advrbios, diferente do que ocorre nos verbos, no h uma acepo agentiva relacionada com o sintagma nominal resultante, conforme abaixo. (27a) ywate alto l em cima (27b) ywate-har alto-NOML Aquele que do alto (= O celeste)

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    (28a) mewe devagar devagar (28b) mewe-har devagar-NOML Aquele que (anda) devagar (= O lerdo) (29a) kwehe passado Faz tempo (29b) kwehe-har passado-NOML Aquele que do passado (= Os antigos)

    O curioso que esse morfema ainda capaz de nominalizar estruturas complexas, a saber: os sintagmas posposicionais. O resultado desse processo uma estrutura mais articulada que se comporta como um nome. Veja que, no exemplo (30a), figura o sintagma posposicional he py rehe do meu p. Adicionalmente, em (30b), o morfema {-har} adjungido a essa estrutura, resultando no sintagma nominal he py rehehar aquilo que do meu p. A estrutura sintagmtica final um complexo nominalizado que se refere entidade relacionada ao lugar indicado pelo sintagma posposicional inicial, de acordo com os seguintes exemplos. (30a) he -py r-ehe meu C-p C-de Do meu p (30b) he -py r-ehe-har meu C-p C-de-NOML Aquilo que do meu p (= Meu calado)

    Nessa linha de investigao, no exemplo (31a), ocorre o sintagma posposicional ywy r-upi pela terra. Por outro lado, em (31b), o sintagma posposicional recebe o morfema {-har}, cuja funo a de nominalizar a estrutura, resultando no sintagma nominal ywy r-upi-har aquilo que (anda) pela terra. Finalmente, a estrutura sintagmtica final passa a ser um complexo nominalizado que se refere entidade relacionada ao lugar indicado pelo sintagma posposicional inicial, conforme se pode notar por meio dos seguintes dados: (31a) ywy r-upi terra C-por Pela terra (31b) ywy r-upi-har terra C-por-NOML Aquilo que (anda) pela terra (= O terrestre)

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    Veja que, no exemplo (32a), figura o sintagma posposicional kaa -pe para o mato. Adicionalmente, em (32b), o morfema {-har} adjungido a essa estrutura, resultando no sintagma nominal kaa -pe-har aquilo que (vai) para o mato. A estrutura sintagmtica final um complexo nominalizado que se refere entidade relacionada ao lugar indicado pelo sintagma posposicional inicial, conforme se segue. (32a) kaa -pe mato C-para Para o mato (32b) kaa -pe-har mato C-para-NOML Aquilo que (vai) para o mato (= Selvagem)

    De modo geral, em termos semnticos, a nova estrutura denota uma unidade lingustica que pertence ao lugar indicado pelo sintagma posposicional no nominalizado. Observe ainda que este processo morfossinttico e semntico paralelo nominalizao de advrbios. O fato inusitado que, nos exemplos de (30) a (32), h a possibilidade de o sufixo {-har} nominalizar constituintes complexos (i.e. sintagmas posposicionais), diferentemente do que ocorre nos exemplos de (22) a (30), em que a nominalizao se d a partir de lexemas simples.

    4. Consideraes Finais

    Como pde ser visto, parece ser razovel a comparao dos processos de formao de palavras entre o portugus e o Tenetehra. Por exemplo, o sufixo agentivo {-(d)or} em portugus parece ter uma acepo comparvel ao afixo {-har} em Tenetehra. Alm disso, foi demonstrado que o sufixo {-har} deriva palavras por meio de bases simples e por meio de sintagmas complexos. Como resultado da anlise, proponho que h sim palavras sintticas nas lnguas naturais.

    Referncias Bibliogrficas BASLIO, Margarida (1991). Teoria Lexical. Editora tica, Rio de Janeiro.

    CASTRO, Ricardo Campos (2007). Interface morfologia e sintaxe em Tenetehra. Dissertao de Mestrado em Lingustica. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais.

    CAMARA Jr., Joaquim Mattoso (1970). Estrutura da lngua portuguesa. Ed. Vozes. Petrpolis, RJ. DUARTE, Fbio Bonfim (2007). Estudos de morfossintaxe Tenetehra. Faculdade de Letras. Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte MG Brasil. LAROCA, Maria Nazar de Carvalho (1995). Manual de morfologia do portugus. 4 Edio, revisada e ampliada, Campinas, SP: Pontes, Juiz de Fora MG, UFJF. RODRIGUES, Aryon DallIgna. Relaes Internas na famlia lingstica Tupi-Guarani. In: Revista de Antropologia, n. 19, p. 33-53, 1984/1985.