Aulas Ciencias Suzani Cassiani Revisao

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LEITURA E ESCRITA EMAULAS DE CINCIASLuz, calor e fotossntese nas mediaes escolaresMaria Jos P. M. de AlmeidaOdissa Boaventura de OliveiraSuzani Cassiani de SouzaCopyright 2007, by Maria Jos P. M. de Almeida, Odissa Boaventura de Oliveira e Suzani Cassiani de SouzaCapa e projeto grficoStudio S Diagramao & Arte VisualRevisoA. R. LimaEditorao e preparao de originaisEstdio Letras Contemporneas Conselho editorialAbel SilvaFbio BrggemannMaria de Ftima SabinoPricles PradeSrgio Cezrio dos Santos ISBN: 9785-7662-Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida, no todo ou em parte, por quaisquer meios, sem a autorizao expressa dos editores.Todos os direitos desta edioreservados aLETRAS CONTEMPORNEAS - OFICINA EDITORIAL LTDA.Rua Hermann Blumenau, 134/05Florianpolis, SC - 88.020-020www.letrascontemporaneas.com.brSuMRIOConsideraes iniciais ...........................................................................................5A estrutura do texto ..............................................................................................8PRIMEIRA PARTEAlgumas noes de apoio................................................................................... 11Consideraes sobre leitura e escrita ................................................................. 27SEGUNDA PARTE - Mediaes escolaresConsideraes sobre escrita e leitura na escola ................................................ 33Para pensar a escrita e a leitura nas cincias ..................................................... 35Episdios de ensino ............................................................................................ 44nfase na escrita: produes dos estudantes .................................................... 47Mediaes na leitura ........................................................................................... 67TERCEIRA PARTE - Fotossntese e luz Algumas atividades .............................................................................................. 77Fotossntese: a histria da construo de um conhecimento ........................... 99Bibliografia........................................................................................................141Autoras ................................................................................................................1435CONSIDERAES INICIAISCom este livro, pretendemos compartilhar com professores de Cin-cias e disciplinas afins, e tambm com formadores desses profes-soresnasuniversidades,algumasexperinciasvividascomoprofesso-rasepesquisadorasnareadeEducaoemCincias.Aoescrev-lo, buscamos repartir com nossos leitores acontecimentos e reflexes que consideramos significativos no ensino escolar dessa rea. So muitas as histrias pessoais e coletivas que possibilitaram a construo dos textos que aqui formulamos, visando sua circulao, como suporte de ativida-desescolaressemelhantessaquinarradas,oucomoinspiraopara registro e divulgao de outras relaes de ensino em sala de aula.Para redigir os textos nos apoiamos mais diretamente em alguns trabalhos j concludos: destacamos especialmente nossa convivncia no desenvolvimento de um projeto de ensino1, na redao do relatrio final desse projeto, alm da elaborao por duas das autoras, orientadas pela outra, de uma dissertao de mestrado2 e de uma tese de doutorado3. Na formulao dos textos aqui apresentados, fazemos releituras atualizadas por vivncias e ponderaes posteriores a esses trabalhos mencionados.1Projeto:ConhecimentonasCinciasNaturais:AesCulturais,umdossub-projetosdoProjeto apoiado pela FAPESP (Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo): Parceria Univer-sidade Escola Pblica. Parte das atividades deste sub-projeto foram organizadas a partir de suges-tes incorporadas do projeto: Linguagem Comum e Linguagem Formal no Ensino do Contedo Fsico, apoiado pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico)2 OLIVEIRA, Odissa B. de. Possibilidades da escrita no avano do senso comum para o saber cientfico na 8a srie do ensino fundamental. 2001. 157p. (mestrado em Educao) Faculdade de Educao, Unicamp, Campinas, SP. 3SOUZA,SuzaniC.de.Leituraefotossntese:PropostadeEnsinoNumaAbordagemCultural. 2000.241p. (doutorado em Educao) Faculdade de Educao, Unicamp, Campinas, SP.6Salientamosque,ofocotemticoprincipal,masnonico,das atividades escolares cujo funcionamento aqui analisado a noo de Energia, pensada enquanto contedo de ensino propcio constitui-o de saberes escolares pertinentes s Cincias, a partir de aspectos do saberproduzidoemdiferentescamposcientficos,comonaBiologia, na Fsica, na Qumica e em tecnologias associadas a essas disciplinas. Citamos elementos da ptica fsica e geomtrica e a fotossntese como exemplos desses aspectos. E tambm apontamos algumas das relaes de natureza social implicadas nesses saberes.Por outro lado, pensamos em atividades que envolvem a organiza-o de situaes favorveis ao dilogo em sala de aula, ao trabalho pr-tico, leitura e escrita, sendo que estas ltimas, a leitura e a escrita, so especialmente discutidas, numa perspectiva cultural na qual ensinar a ler e escrever no privilgio ou dever apenas do professor de Lngua Portuguesa, mas tambm de outras disciplinas, e entre elas, as Cincias.Muitas das atividades relatadas j haviam sido, ou foram posterior-mente, por ns trabalhadas em outras situaes e nveis de ensino, com finalidades e conseqncias semelhantes ou consideravelmente diferentes das aqui expostas. No entanto, neste livro fazemos essencialmente relei-turas do trabalho com oitavas sries do nvel fundamental em escolas p-blicas. Mas, insistimos que, como j fizemos com vrias delas, possvel adapt-las, ou mesmo reproduzi-las em outras sries/nveis e em outros tiposdeescolas.Aocoloc-lasemfuncionamentononosprendemos aoscontedosusualmentetrabalhadosnaoitavasrie.Pelocontrrio, queramos evidenciar possibilidades de transformao curricular e no di-vidir os contedos de maneira rgida de acordo com divises disciplinares que estabelecem contedos considerados de Biologia, de Fsica, e de Qu-mica, em sries especficas. Tampouco queramos trabalhar isoladamente disciplinasquetambmconstituemaschamadasCinciasdaNatureza, comoasGeocincias.Poroutrolado,noeranossaintenoeliminar as peculiaridades prprias da construo do conhecimento em cada dis-ciplina. Procuramos selecionar contedos que usualmente so trabalha-dos em diferentes aspectos conforme a disciplina que os est abordando. Entre outros exemplos, esse o caso da Energia. Tambm procuramos no negligenciar as caractersticas disciplinares em nome de uma suposta 7interdisciplinaridade. Como foco principal, procuramos evidenciar o fun-cionamento da linguagem no ensino escolar de determinados contedos, tendo em conta uma perspectiva discursiva na qual a no transparncia da linguagem e as condies de produo dos sentidos pelos estudantes, foram os pontos de partida para o trabalho e para sua anlise.Sabemos que qualquer acontecimento est associado s suas con-diesdeproduo,condiesquesoasimediatas,comoaquelas que colocamos em prtica quando organizamos uma aula, e condies scio-histricas, tais como as histrias de vida dos estudantes e do pr-prio professor. Sabemos tambm que, em condies de produo dife-rentes provavelmente seriam obtidos resultados diferentes. Por isso, em nossas narrativas procuramos ressaltar as condies que julgamos mais relevantes, sem, pretendermos ser exaustivas quanto a essas condies. Por outro lado, sabemos que, no ensino escolar, alm de condies de produoimediatas,edecondiesscio-histricasdosestudantes, estopresentespressupostosesaberestericosquesubentendema seleo e organizao das atividades.J no que concerne natureza dessas atividades, privilegiamos a anlise do funcionamento da leitura e da escrita, o que no significou trabalhar isoladamente com essas atividades.8A ESTRuTuRA DO TEXTONo seu conjunto, o livro fruto de olhares crticos para experin-cias de ensino escolar que vivenciamos. Ou seja, nele, relatamos acontecimentos envolvendo pelo menos uma de ns como professora, algumas vezes como professora da classe, e, em outras, apenas atuan-do como pesquisadora-professora com o aval da professora da classe, tambm presente, alm dos estudantes. Em sntese, apresentamos ativi-dades que funcionaram na prtica, em condies determinadas e cujo funcionamento j foi objeto de anlise.Dividimos o livro em trs partes: na primeira falamos de pressu-postos e saberes tericos que permeiam o conjunto das atividades e sua anlise, que relatamos na segunda parte, e na terceira apresentamos al-guns subsdios das atividades anteriormente analisadas. Por outro lado, embora haja uma seqncia que consideramos ser a adequada para lei-tura do livro, procuramos fazer tambm com que a leitura de cada ativi-dade no ficasse atrelada s demais atividades, ou mesmo leitura dos pressupostos e saberes tericos apresentados da primeira parte do livro.Tambm optamos por apontar as referncias bibliogrficas e even-tuais comentrios em notas de rodap, com o intuito de no provocarmos interrupes na leitura do texto, deixando para o leitor a deciso de con-sultar ou no essas notas, de acordo com o que considerar conveniente.PRIMEIRA PARTE11ALGuMAS NOES DE APOIOUma criana de hoje tem muito mais interesse e acesso a infor-maes do que h quarenta anos. Agora voc aprende em dife-rentes fontes: pela televiso, nas ruas ou pelo computador. um estmulo enorme para a humanidade, e isso s pode reverter em atividade imaginativa. (Carlos Rubia, prmio Nobel de Fsica).Se for verdade o que diz Carlos Rubia nesta epgrafe, como pensar a contribuio das Cincias no ensino escolar? Que aes de natureza cultural, relativas a contedos da Cincia, podemos provocar em aula e como refletir sobre o seu funcionamento? Foi a busca de respostas a questes como essas que nos movemos na realizao das atividades que descrevemos neste livro. No entanto, a nossa histria como educadoras no se iniciou ao re-alizarmos essas atividades. Muitos foram os apoios tericos e noes cons-trudas, a partir desses apoios, nos quais nos sustentamos para procurar compreender questes relacionadas escola e ao ensino que ali se proces-sam. E entre esses apoios, que contriburam para o prprio planejamento das atividades, destacamos alguns aos quais vamos nos referir a seguir de maneira sucinta. Posteriormente, nos deteremos com maior detalhe naque-les que constituram propriamente o nosso dispositivo analtico.Consideramos inicialmente a contribuio de alguns autores da rea de currculo, por nos propiciarem a reflexo sobre questes que, embora relacionadasaoscontedosdeensino,voalmdessescontedosna medida em que provocam a necessidade de avaliarmos a sua relevncia. Esse autor alerta, inclusive, para a possibilidade de selecionarmos conte-dos diferenciados dos usuais. Assim, noes como currculo oculto e 12tradio seletiva dos contedos, como so trabalhadas por Michael Ap-ple4 evidenciam a necessidade de planejarmos o ensino no nos restrin-gindo ao que de imediato nos parece o bvio a ser feito. Ele adverte para ofatodequeoscontedosescolaresusuaisforamselecionadosentre muitos outros possveis e outros foram simplesmente silenciados. Conse-qentemente, os contedos do ensino podem ser modificados com base em critrios plausveis de natureza poltica, filosfica ou pedaggica.Por outro lado, o trabalho de Michael Apple ao confrontar situ-aes de consenso e de conflito, tambm contribuiu para que penss-semos nessa oposio como um par dialtico consenso/conflito. Par dialtico no sentido de que um s existe por oposio ao outro, o que nos faz refletir sobre a relevncia de, mediarmos o conflito em situaes de ensino e, inclusive, procurarmos instaurar em sala de aula situaes favorveis ao debate de idias. Um outro par dialtico que contribuiu significativamente para a or-ganizao das atividades que aqui descrevemos foi pensado a partir do trabalho epistemolgico de Thomas Khun5. Esse autor mostra, referindo-se ao ensino superior, como no ensino da Cincia os resultados cientfi-cos tm tido lugar preponderante, uma vez que se pretende ensinar os paradigmas aceitos pela comunidade cientfica. Para tal, aos estudantes solicitadoquefaamgrandequantidadedeexercciossemelhantes. Dessa nfase, evidentemente, decorre a no prioridade em se ensinar os procedimentos de construo da Cincia, ou seja, seus processos, suas histrias, seus equvocos, seus conflitos, muitas vezes produzindo uma visodecincianeutra.Noentanto,aparentementedessamaneira que, os futuros cientistas apreendem os paradigmas a partir dos quais tentaro avanar na construo da Cincia. Mas, e no ensino bsico? O objetivo do ensino de cincias apenas formar cientistas? Dado que no difcil notarmos a grande quantidade de exerccios que so solicitados tambm a estudantes do ensino bsico, em disciplinas 4 APPLE, Michael W. Ideologia e currculo. Trad. por Carlos Eduardo F. de Carvalho, So Paulo: Brasiliense, 1982. 246p. __________. Educao e poder. Trad. por Maria Cristina Monteiro. Porto Alegre: Artes Mdicas, 1989. 201p.5 KUHN, Thomas S. A funo do dogma na investigao cientfica. In: DEUS, Jorge Dias de (Org.) A crtica da cincia. Rio de Janeiro: Zhaar editores, 1974, p.51-80.13como a Fsica, torna-se necessrio constatar que, tambm no ensino fun-damental e mdio se tem valorizado os processos de construo cientfica muito menos do que os resultados da Cincia. Dessa forma, julgamos per-tinente a reflexo sobre o par dialtico processo/produto daquilo que vamos ensinar da Cincia. Ou seja, qual a proporo em que devemos trabalhar os resultados obtidos pela Cincia e seus modos de produo?Queremos ainda lembrar a contribuio de um outro filsofo da cincia, Gaston Bachelard6, para pensarmos a organizao de atividades para o ensino de cincias. Em especial, as noes de continuidade e ruptura, como so abordadas por esse autor; ou, como preferimos ex-plicitar, o par dialtico continuidade/ruptura, que foi bastante relevante noplanejamentodasatividades,portersidoapartirdelequemelhor pudemos compreender que, na construo da Cincia, o conhecimento elaborado, de maior abstrao, supe o conhecimento inicial, mais emp-rico, o qual ser superado nos processos de produo dos conhecimen-tos cientficos. A superao, no entanto, no um simples processo de negao ou apagamento, mas sim uma efetiva transformao, cuja ori-gem se situa na reflexo continuada sobre o anteriormente conhecido.J no que concerne focalizao nos processos pelos quais passa cadaestudanteemsituaesdeensino,julgamosdegrandeinteresse pensaroprocessodeinternalizao,oureconstruointernaapar-tirdamediaosocial,externa.Aestasnoes,discutidasporLev Vygotsky7, juntamos a noo de zona de desenvolvimento proximal, comaqualesseautorevidenciaquenoensinoprecisoconsiderar as capacidades potenciais, no explicitadas pelo estudante, ajudando-o em tarefas que, posteriormente, poder realizar sozinho. E, alm dessas noes, a obra desse autor foi bastante significativa para a compreenso das possibilidades de contribuirmos para a construo de conceitos pe-los estudantes, atravs da mediao externa. E, aparentemente, na pro-duo de significados essa mediao torna-se mais e mais relevante se 6 BACHELARD, Gaston. A formao do esprito cientfico. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. 314p. __________. A filosofia do no: filosofia do novo esprito cientfico. Traduo por Joaquim Jos Moura Ramos. Lisboa: Editorial Presena, 1987.136p7 VYGOTSKY, Lev S. Pensamento e linguagem. Trad. por Jferson L. Camargo. So Paulo: Martins Fontes, 1987. 135p.14admitirmos que, no processo de ensino, qualquer que ele seja, os resul-tados nunca sero imediatos. Trata-se sempre de um processo gradual.Todasessasnoescontriburamdealgumamaneiratantopara a elaborao de atividades de ensino quanto para a anlise do seu fun-cionamento. No entanto, admitimos que a principal sustentao terica dos textos aqui apresentados foi a anlise do discurso, a partir de obras publicadas no Brasil principalmente por Eni Orlandi.Dessavertente,lembramosprimeiroofatodequealingua-gemnopodeserpensadacomosefossetransparente.Ouseja,a produo de sentidos entre interlocutores no idntica. E, entre as noes de apoio, destacamos as condies de produo, fazendo-nos pensar na importncia da constante considerao tanto das con-dies imediatas quanto das scio-histricas na anlise dos processos de produo de sentidos.Comentriossobreasnoesataquiapresentadaspodemser encontrados em um texto que analisa a compreenso do fazer pedag-gico8 a partir dessas noes e no qual os autores admitem sua possvel utilidade na anlise de outras situaes de mediao escolar, desde que se compreenda a importncia dos processos que as expectativas mtuas entre professor e alunos podem desencadear.Discurso Cientfico e Discurso Escolar:Algumas Interfaces PossveisApontamos algumas interfaces possveis entre o discurso prprio dacinciaeaquelequenelaestfocalizadoemsituaesdeensino, a partir da caracterizao das noes de discurso cientfico e discurso escolar, no mbito de concepes de linguagem que valorizam as suas condiesdeproduoedescartamapossibilidadedetransparncia na interpretao de qualquer texto, seja ele, oral, escrito ou imagtico. Nossopropsitocomessascaracterizaesecomadeterminaode possveis interfaces entre os dois discursos o de contribuir para que aqueles que pretendem ensinar aspectos do conhecimento cientfico na escola tenham em conta a vida cotidiana de quem vo ensinar.8ALMEIDA,MariaJosP.M.;SILVA,HenriqueC.Noesauxiliaresnacompreensodofazer pedaggico. Educao & Sociedade, Campinas, AnoXV, 97-105, 1994.15Fomos buscar em Agnes Heller9 elementos para situar a noo de vida cotidiana. A autora afirma que A Vida Cotidiana a vida de todo o homem. (p.17) Ele j nasce inserido na sua cotidianidade, e ningum consegue desligar-se inteiramente dela, bem como no h ningum que viva apenas na cotidianidade. Tambm fato que, a manipulao das coisas,mesmoamaiselementar,estassociadaassimilaodere-laessociais,enquantoque,segundoHeller,asformasdeelevao acima da vida cotidiana que produzem objetivaes duradouras so: a arte e a cincia. J a caracterstica dominante da vida cotidiana a espontaneidade. A autora tambm comenta que na vida cotidiana no possvel calcular com segurana cientfica a conseqncia possvel de umaao.Eaindacomrespeitocotidianidade,sustentando-nosna mesma autora, apontamos a alienao como aquilo que ocorre quando as caractersticas da cotidianidade no deixam ao indivduo a possibili-dade de explicao, de movimento, ou seja, quando ocorre um abismo entre o desenvolvimento humano geral e o desenvolvimento dos indiv-duos humanos que, ento, se tornam alienados.Consideramosqueaescola,certamente,umainstituiocom potencial para trabalhar a superao da alienao, o que, no entanto, no ocorre pelo simples fato dos indivduos a ela comparecerem, sendo de fundamental interesse a anlise das possibilidades de efetivao des-se potencial. E a aprendizagem de conhecimentos de natureza cientfica e tecnolgica, , sem dvida, um elemento de superao da alienao em relao s influncias mtuas entre cincia e sociedade e aos limites e possibilidades da cincia no que ela pode contribuir para a construo dacidadania.Apartirdessaconsiderao,procuraremosevidenciara relevncia da seleo adequada de interfaces entre o discurso prprio da cincia e aquele que nela est focalizado em situaes de ensino.A Noo de Discurso e Alguns Aportes da Anlise de DiscursoSobre a noo de discurso, para situ-la recorremos inicialmente a Michel Foucault10. O autor, referindo-se ao discurso em sua realidade 9 HELLER, Agnes. O cotidiano e a histria. 2.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.121p.10 FOUCAULT,Michel.AOrdemdodiscurso.TraduoporLauraF.deA.Sampaio4.ed.So Paulo: Edies Loyola, 1998.16materialdecoisapronunciadaouescrita,manifestainquietaocom a sua existncia transitria, que ele considera destinada a se apagar, e comumaduraoquenonospertence.ParaFoucault,osdiscursos certamente so feitos de signos; mas o que eles fazem mais do que utilizar esses signos para designar coisas. a esse mais que ele atribui o fato de serem irredutveis lngua e ao ato da fala. esse mais que preciso fazer aparecer e que preciso descrever.Quanto ao autor do discurso, segundo Foucault, ele no entendi-do (...) como o indivduo falante que pronunciou ou escreveu um texto, mas o autor como princpio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas significaes, como foco de sua coerncia.(p.26)Para refletirmos sobre os discursos cientfico e escolar, nos apoia-mosmaisdiretamentenaanlisedediscursoiniciadanaFranacom trabalhos de Michel Pcheux, linha de pensamento que no Brasil tem inmerostrabalhostraduzidoseelaborados.Nosapoiamosprincipal-mente nos trabalhos de Eni Orlandi.Nessa vertente, a linguagem, alm de suporte do pensamento e instrumento de comunicao de informaes, pensada como produto do trabalho na sociedade, ou seja, efeito de um processo histrico. E, as-sim considerada, dela no se pode esperar a transparncia. Ou seja, no se pode assumir que haja uma relao direta entre palavras e coisas.J o discurso, efeito de sentidos entre locutores, pensado simul-taneamente como estrutura e como acontecimento; um processo social cuja especificidade est em que a sua materialidade lingstica. Nele, pode-se apreender a relao entre linguagem e ideologia com a noo de sujeito como mediadora.Quanto ideologia, cabe dizer que esta o que torna possvel a relao entre palavras e coisas, ou seja, ela viabiliza a relao entre pensamento, linguagem e mundo. E assim pensada, a ideologia no iluso,nemfalsidade,nemocultamento,nemdissimulaodoreal,e tampouco viso de mundo. Segundo Orlandi11, um dos pontos fortes da anlise de discurso ter re-significado a noo de ideologia, numa defi-nio discursiva a partir da considerao da linguagem. Para a autora:11ORLANDI, Eni P. Anlise de discurso: princpios & procedimentos. Campinas: Pontes, 1999. 100p.17O fato mesmo da interpretao, ou melhor, o fato de que no h sentido sem interpretao, atesta a presena da ideologia. No h sentido sem interpretao e, alm disso, diante de qualquer objeto simblico o homem levado a interpretar, colocando-se diante da questo: o que isto quer dizer? Nesse movimento da interpretao o sentido aparece-nos como evidncia, como se ele estivesse j sempre l. Interpreta-se e ao mesmo tempo nega-se a interpreta-o, colocando-a no grau zero. Naturaliza-se o que produzido na relao do histrico e do simblico. Por esse mecanismo ideo-lgico de apagamento da interpretao, h transposio de for-mas materiais em outras, construindo-se transparncias como se a linguagem e a histria no tivessem sua espessura, sua opaci-dade para serem interpretadas por determinaes histricas que se apresentam como imutveis, naturalizadas. Este o trabalho da ideologia:produzirevidncias,colocandoohomemnarelao imaginria com suas condies materiais de existncia. (p.45-46)A relao apontada por Orlandi entre ideologia e interpretao vai dar margem explicitao pela autora das noes de autoria, repetio, apren-dizagem e mediao. E tendo em vista subsidiar essas noes, remetemos para a caracterizao do que considerada uma formao discursiva.Quando se pensa as condies de produo de um discurso, es-tasincluemmecanismosmateriais,institucionaiseimaginrios.E,nas relaes discursivas, os mecanismos imaginrios implicam em diferentes posiesassociadasaimagensrelativastantoaossujeitosquantoaos objetos do discurso. J as posies dadas em determinadas conjunturas scio-histricas esto associadas s chamadas formaes ideolgicas. Do que decorre que, segundo Orlandi (1999), uma formao discursiva definidacomoaquiloque,emdadaformaoideolgica,determinao que pode e deve ser dito. A autora admite que o discurso se constitui em seus sentidos porque aquilo que o sujeito diz se inscreve em uma for-mao discursiva e no outra para ter um sentido e no outro. (p.43)Com essa noo de formao discursiva, compreende-se que, Or-landi12 afirme que (...) uma mesma palavra, na mesma lngua, signifique diferentemente,dependendodaposiodosujeitoemumaououtra formao discursiva.(p.12) E tambm que ela afirme a associao entre 12ORLANDI, Eni P. Parfrase e polissemia. A fluidez nos limites do simblico. Rua, Campinas, n.4, p.9-19, 1998.18autoria e repetio. Pois, como a interpretao intrnseca linguagem, o autor, instncia de formulao do discurso, interpreta necessariamente ao formul-lo. E essa interpretao est associada memria discursiva, ou seja, a outros discursos, os quais, por sua vez, podem estar associa-dosadiferentesformaesdiscursivas.Nessalinhadepensamento,a autora se refere repetio com possibilidades diferentes: a empri-ca,ousimplesexercciomnemnico;aformalassociadaatcnicas deformaodefrases;eahistrica,naqualsoproduzidosoutros dizeres, ou seja, deslizamentos em relao ao j dito.Como conseqncia, referindo-se escola, ela aponta uma possibi-lidade para a mediao escolar, supondo o que seria o ideal de apren-dizagem; (...) levar o aluno da repetio emprica histrica, com passa-gem obrigatria pela formal j que para que haja sentido preciso que a lngua se inscreva na histria. (p.14) Dessa forma, cabe escola interferir na relao do estudante com o repetvel, criando condies para que ele trabalhe sua relao com suas filiaes de sentido, com sua memria.Em sntese, para Orlandi a aprendizagem ocorre associada for-mulao do discurso, segundo o princpio de autoria, no qual o autor se liga histria de formulaes possveis, sem poder evitar a repetio enquanto simples exerccio mnemnico, associada s tcnicas de pro-duodefrasesetambmcomorealtrabalhodamemria,quando produz deslizamentos em relao ao j dito. Partindo dessas noes, o foco das preocupaes de um analista de discurso no se localiza na questo O que isto quer dizer? Centrado nas condies de produo do discurso, ele far interrogaes como: De onde fala o autor?, Em que condies tal discurso foi produzido?.Tomando como base esse conjunto de noes sobre a anlise de discurso, nos itens seguintes procuramos compreender os discursos cien-tfico e escolar e buscamos possveis interfaces entre esses discursos.O Discurso CientficoAseguintefaladePcheux13:(...)nohdiscursodacincia (nem mesmo, a rigor, discurso de uma cincia) porque todo discurso 13PCHEUX, Michel. Semntica e discurso: uma crtica afirmao do bvio. Traduo por Eni P. Orlandi et al. Campinas: Editora da Unicamp, 1988.19discursodeumsujeito(...)(p.198)parececolocaremsuspensoa temtica deste item. Mas apenas se no se levar em conta que o autor no est se referindo a um indivduo concreto. Para ele, todo o discurso funciona com relao ao que chama de forma-sujeito, ao passo que o processo de conhecimento um processo sem sujeito.(p.198)E Pcheux vai resumir suas idias a respeito desse assunto com trs pontos:-o processo de produo dos conhecimentos um processo sem sujei-to, isto , um processo do qual todo sujeito, como tal est ausente;-o processo de produo dos conhecimentos se opera atravs das to-madas de posio (demarcaes etc.) pela objetividade cientfica;-o processo de produo dos conhecimentos um corte continua-do; ele , como tal, co-extensivo s ideologias tericas, das quais elenocessadeseseparar,demodoqueabsolutamenteim-possvelencontrarumpurodiscursocientficosemligaocom alguma ideologia. (p.198)Esses pontos, cuja co-existncia pode parecer paradoxal, tomados como base de uma posio em relao ao discurso cientfico, so com-patveis com a argumentao de Orlandi14 quando afirma que os fatos so sujeitos interpretao e que a lngua, na medida em que constitu-da pela falha, pelo deslize, pela ambigidade, faz lugar para a interpre-tao. A autora tambm considera que, embora nunca se deixe de tentar faz-lo, no h como regulamentar o uso dos sentidos, e prope que se aceite essa impossibilidade ao mesmo tempo em que se reconhece a necessidade do controle. Tambm admite nesse mesmo trabalho que isso no descaracteriza a especificidade do discurso cientfico.Especificidade essa que Possenti15 atribui s regras de produo dosenunciadosdessediscurso.Oautorprocuraargumentarcontraa idiadequeodiscursocientficosecaracterizaporserumdiscurso verdadeiro. E pensando na cincia como disciplina, sustenta-se princi-palmente em Foucault para dizer que os critrios de julgamento do dis-curso cientfico so diferentes dos critrios de julgamento de discursos no cientficos. E diz tambm que, no trabalho cientfico ocorre a pro-14ORLANDI, Eni P. Leitura e discurso cientfico. Cadernos Cedes: Ensino da cincia leitura e lite-ratura, Campinas, n.41, p.25-34, 1997.15POSSENTI, Srio. Notas sobre linguagem cientfica e linguagem comum. Cadernos Cedes: Ensino da cincia leitura e literatura, Campinas, n.41, p.9-24, 1997.20gressiva eliminao do vivido pela estruturao da linguagem. Ou, em outros termos, o sistema de produo de enunciados cientficos procura eliminar a subjetividade. Ou ainda, a eliminao do individual na lingua-gem da cincia implica a estruturao e no a objetividade absoluta.J Foucault16, numa discusso sobre procedimentos de controle e de delimitao do discurso, quando se refere ao autor de um discurso como princpio de agrupamento desse discurso, faz notar que existem muitosdiscursosquecirculamsemautor.Ecomrelaoaodiscurso cientfico, ele lembra que ... a atribuio a um autor, era na Idade Mdia, indispensvel, pois era um indicador de verdade.(p.27) Ou seja, nesse perodo, uma proposio recebia seu valor cientfico do autor. Mas, ain-da segundo Foucault: ...desde o sculo XVII, esta funo no cessou de se enfraquecer, no discurso cientfico o autor s funciona para dar um nome a um teorema, um efeito, um exemplo, uma sndrome.(p.27) E ele tambm faz notar que essa no tem sido a tendncia de todos os discursos. Citando o discurso literrio, observa que com esse discurso ocorreu exatamente o oposto, ou seja:... a partir da mesma poca, a funo do autor no cessou de se reforar: todas as narrativas, todos os poemas, todos os dramas ou comdias que se deixava circular na Idade Mdia no anonimato ao menos relativo, eis que, agora, se lhes pergunta (e exigem que respondam) de onde vm, quem os escreveu; ... (p.27)As referncias sobre o discurso cientfico, que acabamos de citar, almdeevidenciaremocarterhistricodosdiscursos,ouseja,suas variaes com a sociedade em que so produzidos, tambm mostram que os produtores do discurso cientfico tm procurado, ao constitu-lo, eliminar a subjetividade, os sinais de quem o formula.No item seguinte, voltamo-nos para o discurso escolar, para em seguida refletir sobre a interface entre os discursos cientfico e escolar.Discurso EscolarIniciamos este item a partir da obra j citada, Foucault. Com rela-o educao, o autor comenta:16Op. Cit.21Sabe-sequeaeducao,emboraseja,dedireito,oinstrumento graas ao qual todo indivduo, em uma sociedade como a nossa, pode ter acesso a qualquer tipo de discurso, segue, em sua distri-buio, no que permite e no que impede, as linhas que esto mar-cadas pela distncia, pelas oposies e lutas sociais. Todo sistema de educao uma maneira poltica de manter ou de modificar a apropriao dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo. (p.43-44)Diante dessa possibilidade, de que todo o sistema de educao uma maneira poltica de manter ou de modificar a apropriao dos dis-cursos, no nos parece haver dvida quanto ao caminho a ser tomado porumeducador:abuscadosprocedimentosquepodemcontribuir com a possibilidade de transformao, ou seja, contribuir para que cada um seja capaz, a partir de sua memria de outros discursos, de modificar aquilo que interpretou quando ouviu/leu o que lhe ensinam. Ou ainda, que o ensino propicie o que Eni Orlandi chama de mediar a passagem da repetio emprica para a histrica.Enessaperspectivaquenosapropriamosdasnoesdedis-cursoautoritrioediscursopolmicoemOrlandi17,oprimeirosendo aquele que no permite a reversibilidade e o segundo como o discurso no qual, embora controlada, a polissemia d lugar s diferentes argu-mentaes dos interlocutores. Sem que, para tal, haja intercambialidade, ou seja, sem que um assuma a posio do outro.Ao falar de leituras escolares, a autora lembra que est se referin-do a posies simblicas, as posies significativas no discurso e no a posies empricas, e afirma:O que deve ser evitado justamente o que eu chamo de preten-sa intercambialidade entre aluno e professor, ou seja, o aluno no deve falar da posio-professor e o professor no pode pretender faz-lo da posio-aluno. Limite imposto pelo jogo da alteridade: no se pode falar do lugar do outro. (p.17)A posio simblica, a que Orlandi se refere, , sem dvida, um dos mltiplos aspectos intervenientes nos discursos em circulao na escola.17Op. Cit. 1998.22Uma outra autora, Alice Lopes18, ao pensar no conhecimento esco-lar, lembra que este passa por uma seleo cultural de carter ideolgico e arbitrrio, a partir de uma cultura social mais ampla, passando por pro-cessos de mediao e disciplinarizao. Cultura que ela assume como: ... todo e qualquer processo de produo de smbolos, de representa-es, de significados e, ao mesmo tempo, como prtica constituinte e constituda do/pelo tecido social ... (p.68), e sendo ... essencialmente cultivo humano, que distingue o ser humano da natureza ... (p.68)E Lopes, ainda com respeito ao conhecimento escolar, ao mesmo tempo em que evidencia a especificidade desse conhecimento, tambm faz notar que ele produzido no embate com outros conhecimentos e que a mediao, que ela chama de mediao didtica, ocorre num ... processo de constituio de uma realidade a partir de mediaes con-traditrias, de relaes complexas, no imediatas.J em Apple19, o autor se refere esfera cultural dizendo que esta ... mediada pelas atividades, contradies e relaes especficas en-tre homens e mulheres concretos, como ns mesmos medida que seocupamcomsuavidadirianasinstituiesqueorganizamessa vida.(p.13) s escolas, pensadas entre essas instituies, ele associa o controle da seguinte maneira:O controle das escolas, do conhecimento e da vida diria pode ser,emaissutil,poiscompreendeatmesmocircunstncias aparentemente inconseqentes. O controle investido nos princ-pios constitutivos, cdigos e, especialmente, na conscincia e nas prticas do senso comum subjacentes a nossa vida, assim como pela diviso e manipulao econmica direta. (p.13-14)E no desenvolvimento de suas idias, o autor gera uma reflexo sobre o conhecimento que efetivamente trabalhado na escola, sobre quem selecionou esse conhecimento, sobre a possibilidade de ser outro e no esse o conhecimento selecionado, sobre o que justifica sua orga-nizao de uma e no de outra maneira, sobre o grupo social a que o conhecimento dirigido, sobre o que e o que no tornado acessvel 18LOPES, Alice Casemiro. L. Conhecimento escolar: cincia e cotidiano. Rio de Janeiro: Editora da UERJ, 1999. 236p.19Op.Cit., 1982.23aos estudantes. Apple lembra tambm que, valores sociais e econmicos j esto embutidos no projeto das instituies em que trabalhamos, no ... corpus formal do conhecimento escolar que preservamos em nos-sos currculos, nas nossas maneiras de ensinar, e em nossos princpios, padreseformasdeavaliao.(p.19)Eemdecorrncia,paraesse autor: ... uma vez que esses valores agora agem atravs de ns qua-se sempre inconscientemente, a questo no est em como se manter acima da escolha. Est, antes, em quais so os valores que se devem, fundamentalmente escolher. (p.19) E para concluir nosso recorte de al-gumas idias de Michael Apple, introduzimos aqui a afirmao que esse autor atribui a Raymond Williams: A educao no um produto como po ou papel, mas sim deve ser vista como uma seleo e organizao de todo conhecimento social disponvel em uma determinada poca. (p.30) Seleo e organizao essas que acarretam opes sociais e ide-olgicas conscientes e inconscientes.Em sntese, para fechar este item, gostaramos de assinalar que, o conjunto de comentrios aqui registrados sobre o discurso escolar teve a finalidade de caracterizar a abrangncia, especificidade e carter poltico dos discursos formulados a partir dela e, ou, em circulao na escola.Noitemseguinte,parapensarmosodiscursoescolarrelativo cincia,procuraremosteremcontaestascaractersticasdosdiscursos escolares e tambm a sntese anterior sobre o discurso cientfico.Discurso Escolar Relativo CinciaCom os subsdios dos itens anteriores, relativos ao discurso cien-tfico e ao discurso escolar, voltamos-nos agora para um discurso espe-cfico, aquele que, em situaes escolarizadas, relativo cincia. Para tal, assumimos a noo de cultura citada no item anterior, numa pers-pectiva de mediao cultural, noo que aqui particularizamos para as prticas de sala de aula. No entanto, o ttulo deste item exige que se faa uma retificao: a de que, na verdade, no se pode falar genericamente da cincia; sendo que cada cincia particular possui as suas caractersticas prprias e os seus modos de produo. O que no impede que diferentes cincias sejam se-melhantes em alguns aspectos, e que sejam pensados objetivos a serem al-canados como conseqncia do ensino escolar relativo a esses aspectos.24Assim, neste texto, admitimos que o ensino, das diferentes cin-cias, pode ser pensado com objetivos bastante variados, tais como, con-tribuir para que os estudantes: internalizem conceitos e leis previamen-te selecionados; adquiram modos de raciocinar, habilidades e atitudes pertinentes aos procedimentos de produo da cincia cujos contedos esto sendo ensinados; reconheam as condies sociais em que deter-minadasleiseconceitosforamproduzidos;compreendammodosde produo da cincia em questo; sejam crticos em relao a aplicaes e implicaes sociais dos produtos que as diferentes cincias propiciam; se sintam cada vez mais includos no seu tempo e melhorem a prpria auto-estimapelainseronomundoqueoconhecimentopropicia.E esses objetivos no so mutuamente excludentes, sendo que, cada um deles pode estar mais ou menos associado ao ensino desta ou daquela cincia, ou tpico dentro dela.Por outro lado, se fato que a mediao cultural relativa s dife-rentes cincias no se restringe s prticas escolares, a escola indubita-velmente a instituio que melhor se presta organizao de mediaes culturais sistemticas, caso se queira pensar na maioria da populao. Da a pertinncia de se buscar interfaces possveis entre os discursos cientfico e escolar, o que aqui chamamos de discurso escolar relativo cincia. Com o propsito de encontrar interfaces, buscamos a contribui-odeGastonBachelard20.Referindo-seaosconhecimentoscientfico e comum, o autor diz que o mesmo fato no tem o mesmo valor epis-temolgiconosdoisconhecimentos,pois,paraele,arupturaentreo conhecimento comum e o cientfico to ntida que eles no poderiam ter a mesma filosofia. Segundo Bachelard:(...) O empirismo a filosofia que convm ao conhecimento co-mum. O empirismo encontra a as suas razes, as suas provas, o seu desenvolvimento. Pelo contrrio, o conhecimento cientfico so-lidrio do racionalismo e, quer se queira quer no, o racionalismo est ligado cincia, o racionalismo conhece uma atividade dial-tica que impe uma extenso constante dos mtodos. (p.260)20 BACHELARD,Gaston.Omaterialismoracional.Trad.porJooGama.Lisboa:Edies70, 1990. 261p.25J, referindo-se ao ensino, Bachelard21 diz que ... o ato de en-sinar no se destaca to facilmente quanto se cr, da conscincia de saber ... (p.19), e, na mesma obra, com relao ao formalismo, to co-mumente usado no ensino das chamadas cincias da natureza, s quais ele dedica essencialmente sua obra, o autor aponta que: O hbito da razopodeconverter-seemobstculodarazo.Oformalismopode, por exemplo, degenerar num automatismo do racional, e a razo tornar-se como que ausente de sua organizao (p.21)J, entre os vrios autores que buscaram a epistemologia de Gas-ton Bachelard para pensar o ensino escolar, George Snyders22 (1978) um dos que, aparentemente, mais se deteve no par dialtico continui-dade-ruptura, par este coerente com a epistemologia bachelardiana. E o fez para explicitar um processo em que uma ruptura na continuidade com o saber cotidiano possibilita o salto do emprico para o abstrato. Referindo-se a Bachelard, o autor afirma que:(...) desde que se considere um daqueles exemplos simples que o autor gosta de evocar, percebe-se que essas rupturas encontram, finalmente, uma continuidade mais profunda com a experincia do aluno. (...) Por isso mesmo, para descrever a funo do profes-sor e depois de ter consagrado tantas pginas necessidade das rupturas, Bachelard depara, vrias vezes, com termos como discu-tir...retificar... por em ordem, que so precisamente as expresses de uma continuidade reencontrada. (p.355-356)A articulao das noes explicitadas nos itens anteriores, tendo em vista diferenciar os discursos cientfico e escolar e o apoio nas idias deGastonBachelardpossibilitaencontrarinterfacesentreessesdois discursos, como afirma Almeida23 ao dizer que:(...) se, por um lado, h uma ruptura entre os conhecimentos coti-diano e cientfico, para que esta ocorra no se pode dispensar um processodecontinuidade.Casocontrrio,seapagadooraciona-lismodocenteemnomedoracionalismocientfico,quebra-sea 21BACHELARD, Gaston. O racionalismo aplicado. Trad. por Nathanael C. Caixeiro. Rio de janeiro: Zahar Editores, 1977. 244p.22SNYDERS, Georges. Para onde vo as pedagogias no diretivas? Trad por Ruth Delgado. 2a ed. Lisboa: Moraes Editores, 1978. 374p.23 ALMEIDA,MariaJosP.M..Discursosdacinciaedaescola:ideologiaeleituraspossveis. Campinas: Mercado de Letras, 2004. 127p.26possibilidade de mediao apoiada na intersubjetividade, ou seja, embora a ruptura com o cotidiano seja uma necessidade na apro-priao do conhecimento cientfico, esta no pode ocorrer precipi-tadamente, num processo no qual, efetivamente, os mecanismos da racionalidade no sejam ativados, ou sejam apenas colocados pelos estudantes em funcionamento de maneira insignificante. (p.61)Acrescentamos aqui que, colocadas em funcionamento as racio-nalidades dos estudantes e do professor, na mediao que este procura fazer do conhecimento cientfico, os discursos assim constitudos j no remetem exclusivamente ao conhecimento cientfico, pois neste conhe-cimento, ao menos no que concerne s cincias da natureza, como co-mentamos anteriormente, a tendncia de se evitar a subjetividade.Assim,assubjetividadesmanifestadaspelosinterlocutoresem aula,comamediaodeconhecimentopeloprofessor,fazcomque, necessariamente, ocorra uma diferenciao entre o conhecimento cien-tficoeoqueestamoschamandodeconhecimentoescolarrelativo cincia. Este ltimo mantendo interfaces com o primeiro, inclusive na busca de rompimento com aspectos do saber cotidiano num processo de continuidade que visa chegar ruptura atravs da mediao docente, possibilitando aos estudantes alcanarem objetivos como os que enun-ciamos no item anterior.27CONSIDERAES SOBRE LEITuRA E ESCRITAParansextremamentedifcilpensarobjetivamenteemletra-mento ou em seu oposto, a comunicao oral apenas por palavra falada, a oralidade. Na sociedade ocidental moderna, o analfa-betismo de fato uma severa deficincia. O mundo moderno inconcebvel sem a palavra escrita, o analfabeto excludo. Anal-fabetismo, numa cultura to dependente da sabedoria acumulada em livros, equivale a atraso e barbrie. Para a maioria das pessoas que lem com toda a facilidade, a aplicao e os usos da escrita parecem bvios e inevitveis, de modo que difcil imaginar um mundo onde no sejam centrais. (Rosalind Thomas)Com o olhar de quem se prope a compreender a oralidade e o le-tramento na Grcia antiga a autora24 dessa epgrafe nos alerta para o fato de que, se considerarmos letramento como a capacidade de ler e escrever, fica a pergunta: ler e escrever o qu? Os exemplos da autora incluem passagens curtas de textos escritos ou preencher formulrios, ou ainda compreender livros. E aqui cabe a pergunta: que livros? Cer-tamente no se l ou escreve tudo da mesma maneira, ou seja, existem muitos graus de habilidades e contextos de leitura e de escrita. preciso considerar o que est sendo lido ou escrito, alm de se ter em conta que a prpria valorizao social do letramento tem sido diferenciada em diferentes sociedades. A autora, inclusive, se refere ao fato de que ler e escrever so processos distintos.Alguns trechos da literatura de fico tambm evidenciam a rele-vncia que a nossa cultura d escrita e leitura e podem nos ajudar 24THOMAS, Rosalind. Letramento e oralidade na grcia antiga. Trad. por Raul Fiker. So Paulo: Odysseus, 2005, 274p.28acompreendersuasdimenses.Vejamos,porexemplo,comoJorge LuisBorges25iniciouumaaulaparaaqualhaviasidoconvidadona Universidade de Belgrado:Dos diversos instrumentos utilizados pelo homem, o mais espe-tacular,semdvida,olivro.Osdemaissoextensesdeseu corpo. O microscpio, o telescpio so extenses de sua viso; o telefone a extenso de sua voz; em seguida temos o arado e a espada, extenses de seu brao. O livro, porm, outra coisa: o livro uma extenso da memria e da imaginao. (p.13)O autor no s enaltece o livro dessa maneira, como, no prefcio desse mesmo livro no qual escreveu o texto citado, afirma no poder imaginar a sua vida sem esse instrumento o livro.JoprmioNobeldeliteratura,JosSaramago,manifestauma posio bastante interessante sobre escrita e oralidade atravs da fala de um de seus personagens26:Escrevo a mesma coisa de duas maneiras diferentes, para ver se numa delas acerto melhor: est dito, e, contudo, no basta. No exato,porm,quenotenhamosfaladomuito.Masescrever (aiestoqueeujaprendi)umaescolha,talcomopintar. Escolhem-sepalavras,frases,partesdedilogos,comoseesco-lhem cores ou se determina a extenso e a direo das linhas. O contorno desenhado de um rosto pode ser interrompido sem que o rosto deixe de o ser: no h perigo de que a matria contida nesse limite arbitrrio se esvaia pela abertura. Pela mesma razo, ao escrever, se abandona o que escrita no serve, ainda que as palavras tenham cumprido, na ocasio de serem ditas, o seu pri-meiro dever de utilidade: o essencial fica preservado nessa outra linha interrompida que escrever. (p.264)Se tivermos em conta a posio contida nessa fala, fica bem pre-sente a diferenciao entre a escrita e a oralidade nos significados do que se diz/escreve. E, num outro livro27, tambm atravs da fala de seus personagens, no caso, dois dialogando, Saramago introduz a questo da interpretao diferencial de pessoa para pessoa.25BORGES, Jorge L. Cinco vises pessoais. Trad. por Maria Rosinda R da Silva. Braslia: Editora da Universidade de Braslia, 4 ed., 2002. 73p.26SARAMAGO, Jos. Manual de pintura e caligrafia. So Paulo: Companhia das Letras, 1992. 277p.27SARAMAGO, Jos. A caverna. So Paulo: Companhia das Letras, 2000. 350p.29Vivi, olhei, li, senti, Que faz a o ler, Lendo, fica-se a saber quase tudo, Eu tambm leio, Algo portanto sabers, Agora j no estou to certa, ters ento de ler doutra maneira, Como, No serve a mesma para todos, cada um inventa a sua, a que lhe for prpria, h quem leve a vida inteira a ler sem nunca ter conseguido ir mais alm da leitura, ficam pegados pgina, no percebem que as pa-lavras so apenas pedras postas a atravessar a corrente de um rio, se esto ali para que possamos chegar outra margem, a outra margem que importa, A no ser, qu, A no ser que esses tais rios no tenham duas margens, mas muitas, que cada pessoa que l seja, ela, a sua prpria margem, e que seja sua e apenas sua, a margem a que ter de chegar, (p.77)E com o historiador Roger Chartier28, citando Michel de Certeau que de maneira sinttica julgamos poder colocar a questo da diferen-ciao das leituras, e tambm da escrita.A leitura sempre apropriao, inveno, produo de significa-dos. Segundo a bela imagem de Michel de Certeau, o leitor um caadorquepercorreterrasalheias.Apreendidopelaleitura,o texto no tem de modo algum ou ao menos totalmente o sen-tido que lhe atribui seu autor, seu editor ou seus comentadores. Toda histria da leitura supe, em seu princpio, esta liberdade do leitor que desloca e subverte aquilo que o livro lhe pretende im-por. Mas esta liberdade leitora no jamais absoluta. Ela cercada por limitaes derivadas das capacidades, convenes e hbitos quecaracterizam,emsuasdiferenas,asprticasdeleitura.Os gestos mudam segundo os tempos e lugares, os objetos lidos e as razes de ler. Novas atitudes so inventadas, outras se extinguem. Doroloantigoaocdexmedieval,dolivroimpressoaotexto eletrnico,vriasrupturasmaioresdividemalongahistriadas maneiras de ler. Elas colocam em jogo a relao entre o corpo e o livro, os possveis usos da escrita e as categorias intelectuais que asseguram sua compreenso. (p.77)28CHARTIER, Roger. A aventura do livro do leitor ao navegador. Trad. por Reginaldo C. C. de Moraes. So Paulo: Editora da UNESP e Imprensa Oficial, 1998. 159p. SEGUNDA PARTEMEDIAES ESCOLARES33CONSIDERAES SOBRE ESCRITA E LEITuRA NA ESCOLAEntre as possibilidades da escrita, citamos algumas: a comunicao, a expresso de sentimentos, o relato de fatos histricos, a transcrio ereflexodevivnciascotidianas,aproduodeconhecimentosem diferentes reas. Narrativas, poesias, contos, romances, crnicas, crticas, biografias, cartas e bilhetes, so apenas alguns dos gneros possveis.Como justificar que algum no tenha acesso a esse universo de possibilidades? Como se forma um escritor? A quem cabe estimular essa habilidade? E de que forma? Qual o papel da escola nessa formao?No ensino escolar as atividades que envolvem a escrita algumas vezes envolvem apenas o exerccio mecnico de reproduo de idias sem que ocorra propriamente elaborao e reflexo pelos estudantes. Isso ocorre, entre outras situaes, quando eles: respondem perguntas de um questionrio que exigem apenas a mera transcrio de um texto base; preenchem lacunas em exerccios propostos para reforar o con-tedo; copiam da lousa snteses colocadas pelo professor. Quanto ela-borao associada escrita, quase sempre so pedidas apenas redaes, pelo professor de lngua portuguesa.J os Parmetros Curriculares Nacionais PCNs29 das cincias natu-rais do ensino fundamental nos 3 e 4 ciclos mencionam que a apren-dizagem da escrita, no se restringe apenas rea de lngua portuguesa 29BRASIL, Secretaria de Educao Fundamental. Parmetros Curriculares Nacionais Ensino Fun-damental/Cincias Naturais. Braslia, MEC/SEF, 1998, 138p. Em 31/08/2007, http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/ciencian.pdf34e do sugestes de vrias atividades ao longo do documento, inclusive nas questes relacionadas leitura. Essa ateno tambm dada no 1 e 2 ciclos, quanto organizao e registro de informaes por intermdio de desenhos, quadros, esquemas, listas e pequenos textos. E tambm os parmetros para o ensino mdio referentes s cincias da natureza, ma-temtica e suas tecnologias do bastante nfase a questes de linguagem. Assim, no que se refere a recomendaes includas nos parmetros, as vriasinstnciasreconhecemaimportnciadaleituraedaescrita.No entanto os PCNs so apenas sugestes, de carter bastante genrico. 35PARA PENSAR A ESCRITA E A LEITuRA NAS CINCIASPensamosnaescritavisandocompreenderseufuncionamentono ensino da cincia, tendo em vista a possibilidade de prop-la como uma atividade que pudesse contribuir para a constituio e expresso de pensamentos no ensino escolar. No pretendamos formar escritores em aulas de cincias, mas acreditvamos que ao estimular a escrita pod-amos estar caminhando na direo do prazer e da valorizao do ato de escrever, envolvendo nesses objetivos: intenes relacionadas autoria e autonomia dos estudantes.Para Olson30:... a escrita uma forma particular de representao e, como prin-cpio geral, uma representao nunca equivale coisa representa-da. Se assim, pensar nas representaes escritas como transpa-rentes ou neutras um erro grave. (p.78-79)Outro ponto de interesse levantado por Olson em sua obra refere-se histria da leitura. Para ele, a escrita no determina completamente a leitura, porque num determinado enunciado, apesar das palavras serem as mesmas, cada um l de maneira diferente, isto , sua prpria manei-ra. Com isso, pode-se concluir que a escrita representa parte do sentido, seria iluso pens-la como modelo da fala, pois uma frase falada em tom irnico escrita da mesma forma que a frase dita num tom srio. A forma grfica, portanto, no determina completamente a interpretao.30OLSON, David. O mundo no papel: as implicaes sociais e cognitivas da leitura e da escrita. So Paulo: tica, 1997.36Nesse sentido, buscamos algo diferente que pudesse proporcionar ao aluno maior satisfao ao escrever, principalmente por no haver a necessidadedereproduzirfielmenteaspalavrascorretasenicasdo professor ou do material didtico, mas permitindo a manifestao mais livre do pensamento. Esperamos com isso, contribuir para a demarcao de uma outra maneira de encarar o papel da escrita na escola e princi-palmente no ensino das cincias.Para fugirmos dos trabalhos intuitivos e aleatrios envolvendo a escrita, julgamos necessrio um dispositivo analtico coerente com nos-sas preocupaes e para isso recorremos Anlise de Discurso a partir de aportes encontrados principalmente em textos de Eni Orlandi. Ten-do em conta que nesta vertente a escrita no apenas um instrumento, maslugardeconstituioderelaessociais,noplanejamentoque organizamosparatrabalharcomosestudantes,concebemosaescrita comoumaatividadequepodecriarcondiesparaare-significao dos sujeitos, neste caso do estudante.Nos estudos realizados, apesar do foco ser o ensino, no nos limi-tamos s metodologias de trabalho, pois julgamos que tal confinamento pode expressar a idia de que os problemas do ensino e da aprendi-zagem se limitam a questes metodolgicas. Nossa opo valoriza as-pectos como as condies de produo, que permeiam a elaborao da escrita e sua anlise no trabalho com determinados contedos.Nas aulas ministradas, foram requisitadas produes de textos es-critos durante ou ao final das unidades estudadas. Parte desse material foi analisado, com o objetivo de identificarmos princpios de autoria na escrita.Procuramosidentificardeslocamentosnoprocessodepensa-mento dos estudantes e notar as contribuies do fato de lhes ter sido solicitado que escrevessem de maneira mais livre do que as respostas cobradas quando eles realizam provas na escola.Como subsdio para elaborao e anlise das atividades, recor-remos a um texto de Eni Orlandi em que a autora trabalha a idia de autoria, a sua obra Interpretao31. Nesse sentido, buscamos indcios da passagem da repetio emprica, quando o estudante exercita a 31ORLANDI, Eni. Interpretao; autoria, leitura e efeitos do trabalho simblico. Petrpolis: Vozes, 1996. 150p.37memria para dizer apenas aquilo que o professor ou o livro j havia dito (num mero exerccio mnemnico), para a repetio histrica, ou seja, quando h incorporao de sentido prprio do aluno memria constitutiva,isto,oalunopassaaassumirodiscursocomoseu,a autoria. Entre essas duas repeties h uma intermediria, a repetio formal, na qual o estudante explicita as mesmas idias vistas nas au-las, mas com uma outra roupagem, ou seja, repete o que foi dito com outras palavras. Este ltimo tipo de repetio, segunda a autora, a mais comum em situaes escolares.Associado noo de repetio usamos na anlise dos textos es-critospelosestudantesoduploconceitodecontinuidadeeruptura, baseado no trabalho de Gaston Bachelard e comentado na primeira par-te deste livro. Essa noo nos possibilita admitir, na continuidade, um certomovimentodopensamentodumarepresentaoanterior,rumo superao de um obstculo, quando o estudante rompe com aquela representao e se apropria de uma nova concepo.Num outro texto de Orlandi32, buscamos argumentos favorveis ao uso da escrita. Para essa autora, na cultura ocidental praticamente no existe oralidade; s vezes pensamos estar na oralidade, como no caso de uma missa, do jornal de televiso, de uma aula expositiva, mas na verdade so casos de oralizao da escrita. E segundo Orlandi:A escrita, numa sociedade de escrita, no s instrumento, ela estruturante. Isso significa que ela lugar de constituio de relaessociais,isto,derelaesquedoumaconfigurao especficaformaosocialeaosseusmembros.Aformada sociedadeestassimdiretamenterelacionadacomaexistncia ou a ausncia da escrita. (p.7-8)Sendo a anlise do discurso inscrita num quadro em que se arti-cula o lingstico com o social, mobilizando questes referentes cons-tituiodosujeitoedosentidoetambmtendoemvistaqueesto em jogo de maneira ampla as condies de produo dos enunciados, levamos em considerao essas condies para adentrar nas categorias 32ORLANDI, Eni Reflexes sobre a escrita, educao indgena e sociedade. Escritos. Campinas: LABEURB, n.5, 1999, p.7-22.38que permeiam os textos produzidos. A repetio ou parfrase, e a multi-plicidade dos sentidos ou polissemia, constituem o eixo estruturante do funcionamento da linguagem.A proposta da anlise do discurso considerar a relao da lin-guagem com a exterioridade, as condies de produo, isto , o falan-te, o ouvinte, o contexto da enunciao, e o contexto histrico-social, o ideolgico. Assim, ocorre o deslocamento das noes de social e de ideologia, sendo o social representado por relaes imaginrias que fun-cionam no discurso, ou seja, a imagem que se faz de um professor, de um aluno, de uma me etc. J a ideologia est representada no interdis-curso que so os discursos j produzidos que o sujeito tem na memria, mas que esto esquecidos dando a iluso de que o sujeito origem de seudiscurso.Oefeitoideolgicoaparecenaatividadeinterpretativa, pois quando o sujeito fala, para ele como se os sentidos estivessem nas palavras, apagam-se nesse momento as condies de produo e a exterioridade que as constituem. No texto citado de 1996, Orlandi afirma que...,naideologianohocultaodesentidos(contedos),mas apagamento do processo de sua constituio.(p.66) Devido dimenso imaginriaexisteailusodequelinguagem,pensamento,emundo relacionam-se termo a termo, o que produz o efeito ilusrio de que a linguagem e os sentidos so transparentes, dando a impresso de que atravessandoaspalavrassechegaaosseuscontedos,ignorandoos deslizamentos e equivocidades prprias linguagem humana.Assim, para a anlise do discurso, a lngua no abstrata, ou seja, ideologicamente neutra, nem apenas um cdigo; ela no transparente enemtotalmenteautnoma.Destemodotrabalhandocomarelao sujeito-linguagem-histriaessa disciplina admite que a lngua tem sua materialidade - a histria e o corpo simblico. Assim tambm a histria no transparente, pois os fatos reclamam sentido, sendo este tambm um produto do deslizamento daqueles. Muito menos o sujeito trans-parente, pois afetado pelo inconsciente. Portanto a tarefa da anlise do discurso compreender como o simblico faz sentido, como ocorre seu funcionamento numa dada situao.Assim, o sentido no dado a priori, mas constitudo no discurso e considerado em relao a..., pois, as palavras mudam de sentido confor-39me a posio de quem as emprega, isto , tomam sentido em referncia s formaes ideolgicas. Por exemplo, um operrio dizendo do lugar de empregado diferente de um operrio que fala da posio do patro. As posies assumidas no discurso, e no o lugar social, determinam a interpretao. E, a interpretao acontece, mesmo sem que se perceba, j que a linguagem no transparente. Em outras palavras, dizer um fato no o prprio fato, pois se fosse, significaria apagar o espao da inter-pretao. A linguagem opaca e incompleta, no havendo sentido em si, naquilo que foi dito, pois a interpretao desloca sentidos, desconstruin-do os efeitos do j dito em direo a uma outra significao.Ainda remetendo mesma obra de Orlandi, o dizer aberto, no tem comeo nem fim, pois, o sentido est em curso, embora os senti-dos paream se fechar e serem evidentes. E mesmo a reflexo sobre o silncio permite compreender a incompletude, como algo que no se fecha, e que tambm constitutiva da linguagem. Ou ainda: pelo dis-curso que melhor se compreende a relao entre linguagem/pensamen-to/mundo, porque o discurso uma das instncias materiais (concretas) dessa relao.(p.12) Orlandi tambm coloca a autoria como algo que a escola deve procurar desenvolver. Para ela a posio-autor se faz na constituiodainterpretao,poisoautornopodedizercoisasque no tenham sentido, o que mostra sua relao com o interdiscurso. E, alm de fazer sentido, este deve ser para um interlocutor determinado, que faz parte de suas formaes imaginrias.Assim, ao procurarmos explicitar os mecanismos de funcionamento do discurso, estamos atentando para a construo de significados prprios dentro de uma trama de outros textos, falas, conceitos e definies.De um texto de outro autor, Maingueneau33, registramos o aspecto do lugar de onde se fala e, portanto, de onde se escreve, o que determi-na a identidade de cada indivduo, sendo que este tambm ao enunciar garante sua autoridade institucional. Esta posio de onde fala o sujeito seria o lugar encenado no discurso, sendo a encenao uma das formas do real o qual s acessado atravs do discurso.33 MAINGUENEAU,Dominique.Novastendnciasemanlisedediscurso.TraduoporFreda Indursky. Campinas: Pontes, 1989, p. 29-51.40Outra idia discutida por esse autor a do gnero do discurso, ou seja, dilogo, editorial, cientfico, manifesto, dirio, carta, panfleto etc., que relacionado ao lugar e poca da enunciao, implica em pensar nas condies da enunciao e no estatuto assumido pelo enunciador. Desta forma o gnero mais um elemento que legitima o lugar enunciativo.Segundo esse autor, os enunciados esto associados a certos g-nerosdediscurso,queimplicamemcondiesdediferentesordens, que para a anlise do discurso constituem coeres, e:... os gneros encaixam-se freqentemente uns nos outros. ... se h gnero a partir do momento que vrios textos se submetem a um conjunto de coeres comuns e que os gneros variam segun-do os lugares e as pocas, compreender-se- facilmente que a lista dos gneros, seja por definio, indeterminada. (p.35)Ainda segundo Maingueneau, para a anlise do discurso, as for-maesimaginrias,ouseja,asimagensprojetadasnodiscurso,so perceptveisaoselevaremcontaqueaescolhadeumgneropara desenvolver a escrita est relacionada ao lugar enunciativo, poca de enunciao e s condies de comunicao.Nas atividades realizadas com os estudantes valorizamos a escolha por parte do aluno de um dos seguintes gneros: carta, dirio, pequenas estrias ou relato. E, ao trazermos as colocaes de Maingueneau para interpretar os discursos presentes no ensino tornam-se presentes elemen-tos como a posio do enunciador, espao e tempo do discurso, a voz, o tom e o gnero deste, que possibilitam entender aspectos que permeiam aes e discurso dos estudantes e dos professores. Por exemplo, nota-mos a importncia de estar dando voz ao aluno atravs das mais variadas formas participativas, ou seja, em avaliaes diferenciadas, debates, se-minrios, trabalhos em grupos, problematizaes, entre outras.E continuando com aportes tericos que nos auxiliam a pensar aescritaealeituranascincias,nosreferimosagoraaAlanChal-mers34numaanliseepistemolgicasobreaproduodacincia, enfoca o ato de ver:34CHALMERS, Alan F, O que a cincia afinal? Traduo por Raul Fiker. So Paulo: Brasilien-se,1993. 225p. 41Dois observadores normais vendo o mesmo objeto do mesmo lugar sob as mesmas circunstncias fsicas no tm necessariamente expe-rinciasvisuaisidnticas,mesmoconsiderando-sequeasimagens em suas respectivas retinas possam ser virtualmente idnticas. (p.48)Emoutraspalavras,quandopensamosnoobservador,apesar dosestmulosfsicosseremosmesmos,ocontatoperceptivonoo , pois depende da histria de vida, do conhecimento atual e das ex-pectativas de cada um, que certamente no so as mesmas. Portanto o que vemos no depende s dos rgos da viso, constitudo em nossas mentes, dependendo da interpretao de cada um. como se o presente, o passado e o futuro se fundissem em cada indivduo, que, apesar de construdo socialmente, nico e, por isso, suas interpreta-es podem ser diferenciadas.Mesmo numa dada cultura e num dado momento histrico-cultu-ral, a leitura de um poema, a observao de um quadro ou ouvir uma msica podem ser interpretados de formas diferenciadas. Isso no quer dizer que nossas interpretaes nada tm a ver com o que vivenciamos. Seassimfosse,acomunicaoentreaspessoasseriaimpossvel.H, portanto, o fato dos sentidos terem sua histria, havendo, dessa forma, uma sedimentao desses sentidos, que depende das condies de pro-duo da linguagem, sem que esses sentidos sejam totalmente estveis, conforme explicita Eni Orlandi35Essas condies de produo da linguagem esto no cerne da cons-truo dos sentidos. A criana nasce num mundo formado pelos adultos, e ela vai aprendendo a se apropriar da cultura. Essa apropriao no mecnica, o sujeito atua e interage com o meio. Segundo Vigotsky36:Os significados das palavras evoluem... a palavra primeiramente uma generalizao do tipo mais primitivo; medida que o inte-lecto se desenvolve, substituda por generalizaes de um tipo cada vez mais elevado... (p. 71)O fato parece ser bastante bvio quando pensamos em palavras como manga, que tanto pode se referir manga de uma camisa e/ou 35ORLANDI, Eni P. Discurso e leitura. Campinas: Cortez, 1988. 118p.36VYGOTSKY, Lev S. Pensamento e Linguagem. So Paulo: Editora Martins Fontes, 1987. 135p.42a uma fruta. O que gostaramos de ressaltar que essa ambigidade da palavra manga um exemplo de equvoco37, que prprio e consti-tutivo da lngua, passvel de existir em todas as palavras. Dessa forma, podemos afirmar que todos os textos esto sujeitos a esses equvocos, a gestos de interpretao dos sujeitos, e isso que produz o sentido.MichelPcheux38nosremeteaosequvocos,nocomoenga-nos, mas sim como possibilidades de deslocamentos de sentidos que as palavras proporcionam por ser prprio da natureza da linguagem a construo de diferentes sentidos, isto , a polissemia.Dessepontodevista,necessriodizerdainevitabilidadeda existncia das metforas, pois elas fazem parte do jogo da lngua. Sen-do assim, por causa delas que a polissemia existe. E nos diferencia-mos uns dos outros quando nos filiamos a redes de sentidos em nossa memria discursiva. Nesse caminho, dependendo do contexto, esses sentidos podem funcionardeformadiferenciada,poisdependemdessasinteraes com o meio. Diferentemente de um dicionrio, com o significado lexi-cal da palavra, os sentidos podem ser construdos pelas pessoas com incurses em outros contextos. Portanto, a interpretao de um texto (oral, escrito, imagtico, corporal, entre outros), depende das intera-es das pessoas com esse texto. Em sntese, na perspectiva da anlise de discurso, o discurso efeito de sentidos entre interlocutores, e toda leitura constitui-se como interpretao e no somente decodificao. Ou seja, diferentes leituras de um mesmo texto podem ter sentidos diferentes. Ou ainda, os senti-dos no esto dados, para serem apenas decodificados, mas so cons-trudos no ato do discurso.Umaoutranoodegranderelevnciaparasepensaraes-critaealeituraaderetrica.Enoqueserefereaessanoo, interessa-nos a contribuio do que ocorre em sala de aula nas ma-nifestaesdosestudantes,eacreditamosqueessacontribuio 37Equvoco no sentido de Pcheux, no como um engano, mas sim com as possibilidades de deslocamento de sentidos.38PCHUX, Michel. O discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. por Eni P. Orlandi. Campinas: Pontes, 1993. 68p.43explicitada por Isabel Martins39 quando a autora nos remete para a seguinte noo de retrica: Retrica significa a articulao de diferentes modos de comunica-o como linguagem, imagens, gestos, etc, de forma a produzir re-latos que objetivam instigar o interlocutor a considerar uma nova viso de mundo. Esta noo de retrica inclui, portanto, anlises do papel da argumentao e de processos atravs dos quais o co-nhecimento comunicado, ensinado e legitimado. (p.24)39MARTINS, Isabel. Retrica, cincia e ensino de cincias. In ALMEIDA, Maria Jos P.M. e SILVA, HenriqueC.(orgs.)TextosdepalestrasesessestemticasIIIencontrolinguagens,leiturase ensino da cincia. FE/UNICAMP. 2000, p.23-30.44EPISDIOS DE ENSINOTodos os episdios de ensino que apresentamos a seguir ocorreram em classes de oitava srie do ensino fundamental em escolas pblicas.Mostramos neste item algumas situaes, ocorridas em sala de aula, que evidenciam mediaes da professora. Acreditarmos que mediaes desse tipo contribuem para os deslocamentos que podem ocorrer com os estudantes em situaes de ensino. Algumas aulas foram filmadas e issonospossibilitouaextraodosepisdiosqueaquicomentamos, nos quais nos referimos professora como P e aos alunos como A.Episdios I - A professora busca incentivar a participao dos alunos durante a explicao dos contedos ou correo de exerccios.P:A planta trabalha com a faixa de luz visvel. Ela vai usar essa faixa para fazer a transformao. Cada cor que forma a luz branca tem um com-primento de onda diferente. O que mesmo comprimento de onda?A: a medida de uma onda que faz assim (aluno faz movimentos on-dulatrios).................P:Eu quero saber em que condies eu posso ver uma camisa vermelha?.A1:Dona,naclaridade,temqueterumacamisavermelha(gesticula apontando para um aluno que est de blusa vermelha)A2: Luz vermelha e camisa brancaP: Ento se tivermos uma luz vermelha que cor tem que ser a camisa?A1: BrancaA2: Vermelha.Vrios alunos confirmam que, nos dois casos a camisa ser vermelha.45Episdio II - A professora d nfase s falas dos alunos, repetindo-as para que todos possam ouvi-las e vai avanando na formulao de questes:P:Quando colocamos esterco no solo o que acontece com ele?A:DecomposioP:Veja, o Hugo disse que ele vai se decompor. E o que isso?A:Vai atacar fungo e bactrias e desmancharP:T, fungos e bactrias vo atacar e devolver os componentes para o solo. E quais so eles?A:Hidrognio, nitrognioP:Entoessatransformaodefezesemhidrognioenitrognio (fenmeno) fsico ou qumico?Episdios III - Professora manifesta preocupao com a adequao da linguagem utilizada pelos alunos em suas falas:A:A lente convergente pode concentrar toda a luz solarP:Toda a luz solar?A:Bem, toda no aquela que passar pela lente.......................P:Vocs disseram que a luz se afasta da normal. E o que isso significa para algum que no sabe nada sobre fsica?A: dificil n?! Fica melhor dizer que a luz se espalha.......................P:O que vai acontecer com a semente depois de enterrada?A:Vai crescer.P:Se a semente crescer, ficar uma semente desse tamanho (gesticula fazendo um crculo com os braos). Qual o termo mais adequado?A:Vai germinarEpisdioIV-Professoraretomanasexplicaestrechosdosvdeos assistidos ou dos textos lidos pelos estudantes:P:Bem, para responder essa questo (O que aconteceria se a luz emi-tida pelo sol fosse verde? E os alunos responderam que enxergariam todos os objetos da cor verde) vamos lembrar um pouco do que j estudamos. Por que a gente consegue ver todas as cores, ento? Ele de camisa azul, ela de vermelho, ele de verdeA:Por causa da luz, ela est refletindo e as cores vem.P:O que acontece com essas cores que vem? O que o vdeo mostrou sobre isso?.A:Elas se juntam, se tornam branca.46P:T e no vdeo quais eram as cores de carto que o menino do vdeo segurava?A:Vermelha, azul e verdeP:E quando a luz branca incidia no carto vermelho que cor o menino ficava?A:Vermelho. Professora repete a pergunta com as outras cores e alu-nos respondem.P:Ento agora vamos pensar nas folhas das plantas, como vocs leram no texto. As cores esto chegando na folha, ela absorve todas as co-res menos o verde. E se a luz do sol fosse verde, elas fariam fotossn-tese? Tudo seria verde como vocs disseram, mas o que aconteceria s plantas?A1: As plantas iriam morrer, porque elas no teriam luz para fazer a fo-tossntese.A2: No, a cor da luz no altera em nada a plantaP:Quem concorda com o Hugo? E com o Eduardo?47NFASE NA ESCRITA: PRODuES DOS ESTuDANTES40As anlises apresentadas neste item referem-se a respostas escritas fornecidas por estudantes de oitava srie do ensino fundamental e tomam por base um questionrio inicial no qual lhes foi pergun-tadooqueeraaluz.Nessasanlisesprocuramoselementosque relacionassemaescritacomdeslocamentosnosenunciadosdos alunos. E para isso, apoiamo-nos: na possibilidade de autoria, enten-dida como repetio emprica, formal ou histrica; no duplo conceito continuidade-ruptura e em noes sobre gnero e retrica, conforme j nos referimos a essas noes.Entre as atividades desenvolvidas ao longo de um ano, destaca-mos quatro solicitaes aos estudantes, as quais sero aqui focaliza-das seqencialmente. A primeira delas foi a resposta a uma questo formulada em situao de avaliao do tipo prova (I). As produes escritas pelos estudantes constaram de respostas a uma questo for-mulada em situao de prova dois meses aps o incio das aulas. A questo pedia que os estudantes montassem um pequeno texto refe-renteluzusandoasnoesdereflexo,refrao,onda,partcula, lentes, espelhos e instrumentos pticos. A segunda produo refere-se a uma situao problemtica, e as outrasduascontemplaramexposiesdeconhecimentossolicitadas apsotrabalhocomdeterminadossub-temasestudados.Quantoao 40Exemplos pensados principalmente a partir do estudo citado na nota 2.48gnero das solicitaes, alm da prova que constituiu a primeira solicita-o, nas outras trs foi pedido aos estudantes que escrevessem na forma de carta, ou dirio, ou relato ou conto.O segundo texto (II) foi de trabalho realizado dois meses aps o primeiro. Os alunos produziram o texto a partir da seguinte situao:Imagine que voc um dos ltimos sobreviventes do planeta e precisa procurar outro lugar para viver, pois devido s inmeras explo-ses atmicas durante a 3 Guerra Mundial, o mundo se tornou inabit-vel. O cenrio catico e desolador, pois o planeta est arrasado. Apesar disso, voc est embarcando numa espaonave, indo para um pequeno planeta que pode ser repovoado, pois encontra algumas condies pa-recidascomonossoex-planetaTerra,taiscomotemperaturaegua lquida (metade de sua superfcie recoberta por gua).Alm dessas caractersticas, o novo planeta no possui nenhum tipo de ser vivo. Devido presena de gases em sua atmosfera, a luz do sol chega como se tivesse atravessado um prisma que decompe a luz branca, refratando os diferentes comprimentos de onda em diferen-tes regies da superfcie. Desses gases presentes na atmosfera no h a presena do oxignio.O problema que voc precisa decidir qual a bagagem necess-ria, pois h um limite de peso e espao para a carga da espaonave (1 tonelada ou 1000 quilogramas).A sua responsabilidade muito grande porque dependem de voc o futuro da espcie humana, j que a deciso do que preciso levar importantssima!!!!!! Alm de seus objetos pessoais voc deve levar coisas que possam colaborar para o repovoamento de um planeta.Diante deste cenrio imaginrio, escreva um texto num estilo que voc vai escolher levando em conta seus conhecimentos. Voc dever utilizarsuaimaginaoecriatividadeepodercontarsuahistriade diferentes formas escrevendo: uma carta a um amigo ou um artigo de jornal ou um dirio de bordo ou um relato de sua aventura ou ainda uma pequena estria (conto).Noterceirotexto(III),elaboradojnosegundosemestredo anoletivo,trsmesesapsosegundo,foramsolicitadasnoesa respeito de luz. Foi solicitado que os estudantes utilizassem conceitos revisados em aula, redigindo uma carta, ou um dirio, ou um conto, 49ou um artigo de jornal, ou um relato ou ainda outro gnero que eles preferissem, a critrio de cada um.Otexto(IV)foiproduzidopelosestudantesdoismesesdepois, comcaractersticassemelhantesaotextoIII,massobreocontedo Energia Trmica.Aanlisedasproduesdosestudantesmostrouqueaolongo doanoelasforamtornando-secadavezmaislongas,epuderamser identificados alguns deslocamentos qualitativos nas manifestaes sobre aspectos dos contedos de cincias trabalhados em aula.No incio as produes eram bastante restritas, mas com a realiza-o de vrios textos os estudantes aparentemente foram ganhando segu-rana e ficando mais vontade para expressarem seus conhecimentos. Alguns alunos criaram pequenas estrias muito interessantes e a maioria optou pela carta. Talvez devido ao fato da professora ter apresentado um exemplo quando pediu o texto II. Tambm possvel que fosse o gnero mais conhecido dos alunos.Uma aluna que aqui ser chamada de Fabiana chamou a aten-o da professora pela criatividade e pelos deslocamentos nos con-ceitos estudados. No primeiro texto produzido por essa aluna numa situao de avaliao tipo prova, foram expostos trs conceitos (re-flexo, refrao, teoria sobre onda), sendo que apesar de estarem em um nico pargrafo, ela no estabeleceu ligao entre eles. Definiu reflexoerefraodaformacomohaviavisualizadonaaulacom atividades prticas, escrevendo: reflexo pode ser feita assim: um feixe de luz bate em um es-pelho e volta para o lugar onde o espelho est apontando refle-tindo uma imagem. Refrao: o feixe de luz passa por um vidro ou gua, mudando a sua direo. Onda um feixe de luz que viaja pelos espaos.A nosso ver, aqui, j ocorreu uma repetio formal, j que ela exer-cita a memria para dizer aquilo que havia visualizado, no h desliza-mento de sentidos, no entanto elabora uma definio bastante prpria em sualinguagem.Podemosobservarainflunciaexercidapelasimagens observadas no manuseio com um dispositivo simples, a que chamamos 50de projetor de fendas41, com o qual os estudantes puderam incidir feixes de luz em diferentes tipos de lentes, espelhos e prisma, podendo observar a reflexo e a refrao dos feixes luminosos. Tambm se apia nos esque-mas grficos representados na lousa pela professora, como os seguintes:No terceiro e quarto textos, a aluna apresentou uma notvel su-perao de seu estgio anterior, operando todos os conceitos propostos almdearticul-loscoerentemente.Somou-seaistoaformaliterria de exposio de seus conhecimentos sobre energia luminosa e energia trmica. Apesar de ser possvel reconhecermos certa repetio emprica no que escreveu, podemos notar tambm a repetio histrica, pois ela produziu nestes textos deslizamentos de sentidos e situaes, aparente-mente com efeitos metafricos em sua apropriao do saber cientfico. Repetio histrica que pode ser reconhecida quando notamos que Fa-biana incorpora sentido prprio memria constitutiva, isto , ela con-seguiu esquecer quem disse e passou a assumir o discurso como seu.Exemplificando: quando escreve Estou meio confusa sobre o que sou, as pessoas me definem como onda ou partcula, no sei o que est certo, h um posicionamento prprio da aluna sobre a ambigidade do que havia sido trabalhado sobre a luz; tambm quando usa a definio contidanumtextolidoLuzcomunicaocomorestodouniverso; sinais luminosos que viajam no vcuo em linha reta com velocidade de 300.000 km/s. Essa mais uma de minhas definies, mostra o acrs-cimo do entendimento de mais uma forma para se caracterizar a luz in-41Uma caixa de alumnio com formato de caixa de sapato, com uma lmpada de filamento reto dentro e uma fenda de tamanho varivel para sada da luz.51cluindo sua velocidade; h assim o reconhecimento da potencialidade de desdobramentos dos conceitos. Dessa forma, Fabiana sugere em seu tex-to ter passado por uma ruptura com relao noo de luz, uma vez que inicialmente estava presa apenas aos conceitos de reflexo e refrao.Tais deslizamentos podem ser observados na medida em que ela se integra ao que est contando, quando, por exemplo, se refere a ela mesma como se fosse a luz e o calor. No terceiro texto se autodenomina Luz da Silva, que tem dvida sobre sua identidade, onda ou partcula, sobre o que pode acontecer a ela, Eu posso ser refletida ou Tambm pode ocorrer comigo um tipo de refrao. No caso do conceito de calor, no quarto texto, ela se assume como Calor Roberto, escrevendo em seu dirio que est furioso porque o confundem com sua amiga temperatura, Querido dirio, estou muito bravo com as pessoas. Por que todo mundo pensa que eu e a minha amiga temperatura somos iguais? e tambm ao se diferenciar do calor sensvel: Calor Sensvel, aquele meu primo chato, que o calor que provoca aumento de temperatura em um corpo.Cabe destacar que no comentamos sobre calor sensvel nas au-las. possvel que a aluna tenha se sentido estimulada a buscar informa-es em outras fontes para articular sua estria. Vemos o apoio (texto, vdeooupessoa)comouminstrumentoquepormaisqueinfluencie no sentido de levar o aluno simples cpia acaba funcionando como umrecursoparaqueocorraefetivaaprendizagem.Cabe-nostambm reconhecer que a cpia pode ser estimulada pelo modo e pelo tipo de cobrana que se faz do que foi lido. Se os estudantes acreditarem que o que se espera deles uma reproduo bem prxima de um texto lido, provavelmente iro copiar o texto.Por outro lado, fato que textos como os escritos por Fabiana, e que consideramos como repetio histrica, podem aparentar proximi-dade com o obstculo animista, apontado por Bachelard, uma vez que descreve fenmenos fsicos foram antropomorfizados, isto , caracteri-zados por sentimentos, atitudes, preocupaes prprias do humano. No entanto, ao mesmo tempo, a aluna demonstra conhecimento suficiente para articular conceitos cientficos no interior de uma trama subjetiva. Sua escrita no deixa dvida sobre um suposto animismo ingnuo, pois demonstra uma clara e intencional utilizao da antropomorfizao da 52natureza com objetivos claros de funcionar como suporte da exposio desuacompreensodosconceitoscientficos.Estamosdiantedeum caso evidente de promoo de deslizamento de sentido, para a qual o gnero de escrita solicitado certamente contribuiu.ConformeafirmaMaingueneau(1989),aescolhadeumgnero para desenvolver a escrita est relacionado ao lugar enunciativo, po-ca de enunciao e s condies de comunicao. No caso de Fabiana, acartaoudirioconstituram-seemumapropostabastantepositiva para que ela expusesse seus conhecimentos, possibilitando-lhe assumir-se como autora. Ao enunciar-se como a luz ou como o calor a aluna assumeumaposioemqueelaseauto-define,podendoportanto, referir-secomoosujeitoemquesto,umavezquenosdoistextos diz minha pessoa. O que no tinha acontecido na questo da prova em seu primeiro texto, no qual ela foi cobrada a falar sobre a luz, ape-nasumreferenteestudadoanteriormente.Aindacomrelaoaesse assunto, em entrevista posterior Fabiana afirmou que os gneros mais comumente trabalhados pela escola, do tipo redao e dissertao, no a estimulavam, dada a seriedade e o formalismo de sua estrutura. Sentia que sua criatividade era refreada, levando-a ao julgamento de que no seria capaz de fazer algo de boa qualidade. A escolha dos gneros carta, dirio e estria, parece ter desbloqueado, segundo suas palavras, seu interesseehabilidade,possibilitando-lheescreverlivremente,oque, aparentementelheproporcionouafacilidadedeexporoscontedos estudados durante o curso, inclusive englobando diferentes gneros, ao embutir o dilogo numa carta ou dirio. Estes dois ltimos textos, vistos pela tica do teatro, como aponta-do por Maingueneau assemelham-se mais representao de um papel, o que possibilita deslizar mais livremente pelas palavras e at remeter a aspectos poticos como por exemplo, Luz comunicao com o resto douniverso,ouquandodescontraidamentedizquesedesmancha toda ao atravessar um prisma. AcreditamosqueagrandediferenaentreostextosI,IIIeIV deva-se, em parte, considerao do destinatrio. Enquanto no texto I ela escreve para a professora que espera a resposta certa, repetida da mesma maneira como foi ensinada, nos textos III e IV ela joga com um 53destinatriogenrico,tantoqueacartaIIIelainiciacomAosmeus novos amigos, que no caso poderiam ser os prprios alunos, seus co-legas, para quem ela procurar se apresentar e se definir. J no texto IV ela escreve para ela mesma, uma vez que se trata de um dirio em que osujeito-calorestexpondosuaira,dadaaconfusoqueaspessoas fazem entre ele e sua amiga temperatura.Entretanto, apesar de seus textos serem de bastante criativos, no podemos descartar a importncia dela tambm se adaptar escrita com linguagem mais formal, e pelo que notamos nos textos aqui apresenta-dos, no est descartada uma possvel tendncia dessa aluna cristalizar sua produo de textos, na maneira de envolver os conceitos estuda-dos, colocando-os como sujeitos da trama traada. O reconhecimento do mrito dos textos pela professora tambm um fator que poderia contribuir para essa cristalizao.No entanto, bastante relevante notarmos os avanos de Fabiana naexplicitaoconceitual.Issoficoubemmarcanteaocompararmos seustextosIIIeIVcomoII,estesobrefotossntese,noqualdesen-volveu um dirio apontando para sua dvida quanto ao que levar para repovoaronovoplanetaquenoteriaoxignio.Nessetextodecidiu acertadamente por levar pessoas para reproduzirem, plantas que servi-riam de alimento e de produtoras desse gs, e minhoca para fertilizar o solo, alm de gua potvel. Sem dvida, ela reproduziu as noes estudadas em classe para uma situao hipottica. Entretanto, apesar de dizer o que seria funda-mental para garantir a vida num local dessa natureza, Fabiana no d explicaes conceituais, o que possvel observar nestas frases: leva-ria algumas espcies de plantas que iriam purificar o ar para ns seres humanos conseguirmos sobreviver. S que essas plantas seriam plantas que dessem para ns comermos. E algumas coisas j industrializadas. Seu discurso apresenta pouco distanciamento em relao ao que seria uma repetio emprica, o que no acontece nos textos posteriores, po-dendo estes ser considerados um sensvel avano. Sem dvida, haveria ainda o que trabalhar com Fabiana, mas tambm h o conforto da afirmao de Bachelard de que a superao total dos obs-tculos nunca definitiva, eles esto sempre presentes e exigem constante 54trabalho no sentido de super-los. Afinal, a linguagem comum j traz con-sigo obstculos inconscientes, mas como super-los se no nos servirmos dessa linguagem num processo de continuidade rumo superao?Pensando nas condies de produo do discurso, mais especifi-camente no contexto socio-histrico-ideolgico, lembramos que Fabia-na morava num bairro de periferia, e possivelmente isso contribua para que em seu imaginrio se visse com dificuldade em expor suas idias, caracterstica que pudemos confirmar em entrevista quando ela afirmou quenoimaginavaqueaprofessora,pudessegostartantoedivulgar seutrabalhoparaoscolegaseinclusivenumcongresso42.Suapouca auto-estima ficou patente quando disse que no se considerava capaz de fazer algo de tal nvel. Vale ainda acrescentar que, na entrevista, foi a prpria aluna quem exps as possveis causas de seu sucesso, ou seja, a escolha acertada do gnero que permitiu seu desbloqueio. O mais importante a possibili-dade de transformao de simples repeties empricas em repeties histricas, aparentemente facilitada pela liberdade em escolher o gnero de escrita. E fato que, os deslocamentos nos textos de Fabiana eviden-ciaram sensvel avano rumo ao saber cientfico, j que ela conseguiu articular vrios conceitos, como ao reconhecer os impasses nos modelos a respeito da luz e na diferenciao entre calor e temperatura.Ainda procurando evidncias quanto manifestao de obstculos, que essa aluna visivelmente demonstrou seno superao, avanos em di-reo ao pensamento cientfico, pois inicialmente no questionrio inicial, aplicadoparalevantamentodeconhecimentosprviosdosestudantes, Fabiana comentou que a luz acontece quando a energia eltrica permite iluminar os ambientes ao acender as lmpadas em nossas casas. Estamos diantedeumaconcepopragmticadosfenmenos,umavezquea preocupaoemdefinirpermanecenombitodesuautilidadepelos seres humanos. No questionrio final ela escreveu: Luz, sinal luminoso que viaja pelo espao atravs de ondas ou partculas. Se ainda h inade-quao, ela de outra natureza, concluso a que chegamos no tanto por esta ltima formulao, mas por toda a produo da estudante.42 Aprofessora-pesquisadoracontoualunanessaentrevistaquetinhaincludosuasfalasno trabalho apresentado num Encontro de Pesquisa em Ensino de Fsica. 55Uma outra aluna, Ndia, apresentou um outro percurso que apre-sentamos a seguir. Seu texto II relativo fotossntese uma carta e tem como destinatrio seu neto. Nela descreve a luta pela sobrevivncia em um novo planeta, Marte, na cidade Araxido, no ano 2040. Ela comen-ta que levou animais e vegetais para a alimentao, sendo os ltimos necessrios tambm para resolver o problema da ausncia de oxignio. Em sua bagagem havia inclusive minhocas para a fertilizao do solo. interessante que Ndia lembrou-se de pousar na regio iluminada pelas cores azul e vermelha para que as plantas pudessem realizar com mais facilidade a fotossntese. Notamos, assim que, apesar de no se estender em maiores explicaes, esta aluna demonstrou a internalizao de co-nhecimentos cientficos na situao fictcia.Tambm na mesma carta, evidenciou sua posio de autora ao es-crever: E como a histria minha..., deixou tambm transparecer uma representao de cincia como algo positivo e a crena no cientista como solucionador dos problemas enfrentados, tendo a expectativa de que ele desenvolvesse as tecnologias em uso atualmente. Notamos isso na frase: dentre os 4 passageiros um era cientista e ele descobriria o petrleo, a clonagem, etc.. Por outro lado, nada indica que para ela a cincia tivesse relao com a situao de guerra pensada para o exerccio proposto.Por outro lado no Texto I, que havia sido solicitado em uma das questes da prova, ela no apresentou conexo entre frases referentes a diferentes fenmenos. Ndia apresentou seu entendimento a respei-to de reflexo, refrao, ondas, partculas, espelhos e lentes, em no-es como: reflexo quando a luz bate num ponto e volta ao lugar que foi incidida;refrao quando a luz bate em um meio diferente e sofre um desvio. Essas frases evidenciam a reproduo dos esque-mas que haviam sido apresentados pela professora em aula. Trata-se de uma repetio formal, pois a aluna apenas representou com suas palavras os esquemas visualizados. Pode tambm tratar-se apenas de uma repetio emprica, uma vez que certamente a professora enun-ciou definies dos fenmenos quando fez os esquemas na lousa, e a aluna pode ter anotado e memorizado.JnotextoIIIreferenteaomesmocontedo,maspodendoser escrito em forma de carta, dirio, etc., ela optou pelo gnero relatrio, 56intitulando-o de Luz: O fenmeno contraditrio e esplndido. poss-vel que ao se referir luz como fenmeno contraditrio Ndia estivesse pensando no que havia sido apresentado sobre a luz enquanto onda e partcula. Alm disso, ela procurou explicar a reflexo pelo modelo cor-puscular ao relacionar as partculas com bolas de tnis e tambm procu-rou explicar o que uma onda por meio de movimento na gua. Nessas explicaes notamos a possvel interdiscursividade com um vdeo que havia sido apresentado em aula e no qual mostrado o movimento de uma bola de tnis e uma bacia de gua que o locutor associa luz.Ndia tambm utilizou um desenho, para complementar suas pa-lavras. Consideramos aqui a ocorrncia de repetio formal, j que ela expressou uma imagem visual muito prxima ao que havia visualizado.No texto de Ndia tambm pudemos notar um deslizamento de sentido no uso do termo forma. Inicialmente ela disse