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Emmon Bach

Aulas Informais sobre Semântica Formal

Traduzido por

Cláudio Corrêa e Castro Gonçalves

Luiz Arthur Pagani

Luisandro Mendes de Souza

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Contents

Prefácio iii

1 Fundamentos e Começo 1

2 Mundos Su�cientes e Tempo 15

3 Nomes e Sintagmas Nominais 27

4 Quanti�cadores generalizados 41

5 Tipos de coisas 55

6 Propriedades e Questões Parecidas 67

7 Situações e Outros Mundos Menores 79

8 Estranhezas e �nalizações 93

Notas 103

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ii CONTENTS

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Prefácio

No verão de 1984, eu fui convidado a participar do Summer Institute of Linguistics, na Uni-versidade Normal de Tianjin, e ministrar uma série de seis aulas sobre os tópicos correntes emsemântica formal. Este livro é baseado nessas aulas. Embora o número de capítulos tenha au-mentado, mantive a forma e o estilo das aulas com o propósito de ajudar a apresentar os meusobjetivos de forma clara.

A semântica formal � ou melhor, a semântica de teoria de modelos � para as línguasnaturais é um campo que tem crescido rapidamente na última década e meia. Acredito que éuma área de estudo excitante que tem produzido uma ampla coleção de resultados interessantese de novas questões. Além disso, devido ao aparato formidavelmente técnico que administra, elatem permanecido como que um livro fechado para muitos linguistas e para outros interessadosno fenômeno das línguas naturais. Ao elaborar minhas aulas em Tianjin, e convertê-las nestelivro, fui guiado por três restrições a que me impus: primeiro, não pressupor nada em relaçãoaos trabalhos anteriores em semântica formal; segundo, tentei não contar mentiras; terceiro,me empenhei em minimizar formalismos esquisitos. Com estas restrições, meu objetivo eraproporcionar um embasamento em semântica de teoria de modelos e uma exempli�cação dostópicos, dos resultados e das questões abertas com as quais estudiosos em semântica formal têmlidado.

Ao invés de começar com uma possivelmente desencorajadora apresentação de um temaintrodutório, escolhi apresentar os aspectos técnicos de forma gradual, à medida que fosse ne-cessário. As três primeiras aulas representam uma apresentação relativamente condensada dasemântica de mundos possíveis tal como foi usada por Richard Montague. As aulas subsequen-tes tratam de um número de tópicos de interesse atual. Naturalmente, eu não poderia esperardar conta de todos os tópicos atualmente �vivos�1. A escolha dos tópicos é obviamente in�u-enciada pelos meus próprios interesses e pela pesquisa corrente desenvolvida no meu ambientede trabalho na Universidade de Massachusetts, em Amherst. Eu gostaria de agradecer àquelesque ajudaram a tornar esse ambiente o que ele é (tanto no passado quanto no presente), e aosmuitos colegas e amigos de outros lugares com quem eu tenho aprendido, sobretudo as minhas�relações-em-intensão� aqui, Angelika Kratzer e Barbara H. Partee. Eu também agradeço sin-ceramente a ajuda de Angelika Kratzer, de Polly Jacobson, e de dois pareceristas anônimos,que �zeram muitos comentários valiosos sobre o manuscrito. Agradeço especialmente a KathyAdamczyk, porque não somente transcreveu as �tas a partir das aulas dadas em Tianjin, masfez acréscimos que as tornaram muito mais interessantes, através de suas interpolações e adiçõeseloquentes, que infelizmente não existiam originalmente; e também a Molly Diesing, pela ajudacom a revisão e com o índice.

10 de Agosto de 1987Amherst, Massachusetts

1N.T.: Desde a sua publicação, muitos temas novos foram incorporados à semântica formal; noentanto, todos eles pressupõem algum conhecimento dos assuntos tratados neste livro.

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Aula 1

Fundamentos e Começo

A aula de hoje tem duas partes. Uma delas é uma introdução bastante geral, na qual vou falarsobre a pergunta �o que é signi�cado?� e contar um pouco da história da semântica � o estudodo signi�cado � na lingüística, tanto a recente quanto a nem tão recente assim. Depois entãovamos dar início, ainda hoje, a uma introdução mais especí�ca sobre um assunto mais técnico:o estudo da semântica de um certo ponto de vista � o da semântica da teoria de modelos. Esseé o tema geral das oito aulas.

Apesar de que aquilo que sabemos sobre semântica ser, certamente, muito menos do queaquilo que não sabemos, acredito que houve muito progresso nestes últimos 15 anos, mais oumenos. Acredito também que estamos atualmente passando por período de desenvolvimentosinteressantes, e gostaria de me ater aqui em alguns deles. Pretendo que estas aulas sejamcompletamente auto-su�cientes. Faço isto por dois motivos. O primeiro é que eu �caria contentese elas fossem acessíveis para todos os presentes, e tenho certeza que vocês têm uma formaçãomuito variada. E, ainda mais importante, é que eu acredito piamente que um especialista ouum técnico deva ser capaz de explicar o que ele ou ela está estudando para qualquer pessoa quese interesse e que se disponha a acompanhar e fazer algum esforço; além disso, essa tentativatambém é importante para mim pois me força a re�etir profundamente sobre porque estouestudando o que estudo e se isso é importante. Os especialistas podem se perder nos detalhesde seus trabalhos e esquecer porque fazem o que fazem.

Peço desculpas por desconhecer totalmente a tradição lingüística de seu país. Não há muitoslugares no mundo onde uma tradição lingüística independente tenha se desenvolvido; a China éum deles. Passei os primeiros anos da minha vida no Japão, e o que �cou comigo da infância ésu�ciente para reconhecer que a China está para o Oriente assim como Grécia e Roma estão parao Ocidente. E onde quer que encontremos registros das primeiras indagações intelectuais huma-nas, encontramos também registros de indagações sobre a linguagem. Algumas das perguntasque as pessoas já se �zeram são:

Por que há tantas línguas diferentes?

Quão diferentes e quão semelhantes são as diversas línguas?

Qual a relação entre língua e mundo?

Como as palavras podem ser tão obscuras e ainda assim admitir certo e errado?

A última pergunta é de Zhuang Z�� numa passagem de Os Capítulos Interiores.1 A passagemsuscita questões fundamentais que serão consideradas aqui. E também apresenta com muitaclareza a principal premissa da semântica. Cito: �As palavras não são apenas um sopro de ar,elas têm signi�cado.� A tarefa primordial das teorias semânticas é explicar como as palavras e

1N.T.: Não conseguimos localizar tradução deste livro para o português.

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2 AULA 1. FUNDAMENTOS E COMEÇO

as outras expressões linguísticas, como sentenças e sintagmas, podem ter signi�cados e o que sãoesses signi�cados. Acho que esse ponto (o fato de que as expressões linguísticas têm signi�cados)é bastante óbvio, e qualquer pessoa consideraria isso tão óbvio que ele ou ela acaba supondo queos linguistas (pessoas cujo trabalho é compreender a língua) consideram a semântica (o estudodo signi�cado) uma de suas preocupações principais. No entanto, não tem sido sempre assim nahistória da lingüística. Hoje vou contar um pouco desta história.

Bom, o que poderia ser um signi�cado? Mais uma vez, acho que qualquer pessoa diria queum signi�cado tem de ser algo que não faz parte da língua, exceto no caso de palavras sobrepalavras. As palavras se referem a coisas. As sentenças são sobre acontecimentos no mundo.Usamos as palavras e as sentenças para falar sobre o mundo, sobre nossos próprios sentimentos,interesses e necessidades. Mais uma vez, esse ponto parece óbvio, mas os linguistas e os �lósofosque se preocuparam com a língua nem sempre chegaram a um acordo. Voltaremos a esta questãoem vários pontos destas aulas. O ponto de vista que vou assumir aqui é o que parte de duaspremissas:

I. As línguas têm signi�cado.

II. Os signi�cados não fazem parte da língua.

O que são os signi�cados? Os signi�cados são as coisas sobre as quais as línguas falam.Aparentemente, isto é o que faz com que as palavras sejam diferentes dos cantos dos pássaros,que não são sobre nada, até onde sabemos. A semântica é o estudo dos signi�cados que umaexpressão da língua pode ter.

Até agora, usei a palavra signi�cado para algo que as expressões lingüísticas têm e a semân-tica estuda. Mas esta palavra em si mesma � a palavra signi�cado � tem muitos signi�cados,bem como o verbo correspondente signi�car. Alguns destes signi�cados diferentes podem serilustrados através de exemplos.

1. Dar estas �ores a você signi�ca que eu amo você.

2. Aquelas montanhas ali na frente signi�cam problema.

3. Ele disse que se juntaria a nós, mas a palavra dele não signi�ca nada.2

4. Quando eu digo X, signi�ca que Y .

5. Aìren signi�ca cônjuge.

Para desenvolver uma teoria cientí�ca, precisamos ter cuidado com os termos que usamos.Frequentemente temos de adotar uma terminologia especial que se afasta da língua cotidianae adquire seu signi�cado através da maneira pela qual ela é usada em nossas teorias. Vamoscombinar de continuar usando signi�cado como um termo que abrange muitos tipos diferentes derelações, mas vamos adotar uma terminologia especial para os aspectos mais especiais e técnicosde signi�cado.

Para nos concentrarmos em algumas dessas idéias mais especializadas que precisamos usar,vamos considerar os exemplos que acabamos de dar e seus respectivos signi�cados. Na sentença�dar estas �ores a você signi�ca que eu amo você�, pratico um determinado ato � eu doualgumas �ores para você � com esse ato quero expressar meus sentimentos por você � que euamo você. Assim signi�car, a palavra da língua portuguesa signi�car nesta sentença, parecedesignar uma relação entre um ato que eu pratico e algum signi�cado, intenção, sentimento ou

2N.T.: O exemplo aqui precisou ser adaptado, porque o original era He said that he would join us,

but he didn't mean that ; sua tradução literal, algo como �Ele disse que se juntaria a nós, mas ele nãotinha intenção disso�, não envolve o uso do verbo signi�car.

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atitude presumivelmente expressa pela ação. Não é esse sentido de signi�cado que me interessadiscutir aqui.

Então consideremos o exemplo: �aquelas montanhas ali na frente signi�cam problema.� Issoparece querer dizer alguma coisa como: �Se continuarmos nossa viagem, ela vai ser difícil paranós porque teremos de atravessar aquelas montanhas.� Então, neste caso, signi�car parecedesignar a relação entre alguma coisa � as montanhas � e alguma conseqüência para nós emrelação a algum motivo ou propósito. Mais uma vez, não é este sentido de signi�cado que meinteressa aqui.

Consideremos os próximos exemplos. �Ele disse que se juntaria a nós, mas a palavra delenão signi�ca nada.� Isso parece ter a ver com sinceridade. Alguém diz alguma coisa, mas eleestá mesmo querendo dizer aquilo? Isto é, ele está sendo realmente sincero no que diz? Aqui,signi�car parece designar a relação entre uma pessoa e alguma coisa que essa pessoa diz. Maisuma vez, este não é o sentido de signi�car que me interessa aqui, apesar de, adiante, haveralguns pontos nos quais levantaremos o tipo de questão suscitada por este exemplo, relacionadaàs línguas e àquilo que as pessoas fazem com elas.

O próximo exemplo � �quando eu digo X, signi�ca que Y .� � parece signi�car alguma coisado tipo: eu digo alguma coisa, há um signi�cado usual associado ao que eu digo, mas eu estoudeclarando que o que eu realmente quero expressar a você é uma outra coisa. Assim, signi�caraqui tem a ver com a relação entre uma pessoa, alguma coisa que essa pessoa diz e uma outracoisa que a pessoa quer expressar. Esse exemplo exige referência ao tipo de signi�cado que nosinteressa aqui, mas ainda não expressa completamente esse sentido.

Vamos ver agora o último exemplo: �aìren signi�ca cônjuge.� Este exemplo está intimamenterelacionado ao sentido de signi�cado com o qual pretendo começar aqui. O que eu quero dizercom isso? Você deve ter percebido que eu sublinhei a palavra aìren do chinês e a palavra cônjugedo português. Uma forma mais precisa de exprimir o que esse exemplo pretende signi�car é:a palavra aìren signi�ca a mesma coisa que a palavra cônjuge. Agora vamos nos concentrarno signi�cado de �a mesma coisa.� Aìren signi�ca uma coisa e cônjuge signi�ca essa mesmacoisa. Que coisa é essa que ambas as palavras designam? Vamos chamá-la, seja lá o que for,de denotação da expressão linguística em questão. Então, uma outra maneira de dizer a mesmacoisa é dizer que a denotação dessa palavra, aìren, é a mesma que a denotação de cônjuge. E,novamente, estamos falando de uma coisa que é não uma sensação, mas de algo que existe nomundo, seja qual for a referência destas duas palavras. Mas, na verdade, isto não é tudo. Oproblema é que sem referência a uma língua, não sabemos exatamente o que são estas expressõesmencionadas. Pode haver uma língua na qual a palavra aìren signi�ca um certo tipo de �ore outra ainda na qual cônjuge signi�ca jornal ou algo assim. Então, para ser bem especí�co,precisamos dizer alguma coisa como: A denotação de aìren em uma certa língua (o chinês) éa mesma que a denotação de cônjuge em português. Logo, quando falamos sobre denotaçõesde expressões, nós pressupomos que sabemos que há uma certa língua na qual esta expressão éusada.

Assim, acabei de dar um rápido panorama sobre a minha concepção de semântica, ou pelomenos de uma parte importante da semântica. Vamos re�etir, agora, sobre o que esta concepçãode semântica precisa para funcionar. Evidentemente, este programa tem duas partes. Primeiro,precisamos mostrar como atribuir denotações a todos os elementos básicos (ou lexicais) da língua� seja o chinês, o português, ou qualquer outra. E depois precisamos mostrar como reunir asdenotações das expressões simples, palavras como cônjuge e aìren, e mostrar como as denotaçõesdas expressões complexas podem ser formadas a partir das denotações destas expressões simples.E assim por diante.

Eis um exemplo do que precisamos fazer. Suponhamos que João denota um certo indivíduo� eu mesmo, por exemplo, ou qualquer pessoa cujo nome seja João. Suponhamos ainda queandar denota um certo conjunto (ou coleção) de indivíduos � o conjunto dos que andam.Para poder dizer o que João anda signi�ca, vamos querer de dizer algo como: constitui uma

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4 AULA 1. FUNDAMENTOS E COMEÇO

asseveração verdadeira dizer que o indivíduo denotado por João é um elemento do conjuntode indivíduos que andam. Este é um exemplo bem simples de como vamos querer tratar osigni�cado das expressões complexas mediante a combinação dos signi�cados ou denotações dasexpressões que fazem parte delas, à medida que construímos expressões cada vez mais complexasna nossa sintaxe.

Então, até agora, precisamos aparentemente de dois tipos de coisa para falar sobre as de-notações das expressões de uma língua. Precisamos ser capazes de falar sobre indivíduos, terum conjunto de indivíduos denotado por palavras como os nomes próprios. João é um dessesindíviduos. E precisamos ser capazes de falar sobre conjuntos ou coleções de indivíduos. Conse-quentemente, ao dar este exemplo do que é uma denotação, como parte da resposta à pergunta�o que é signi�cado?�, �z uma certa escolha. Esta escolha é a de que as denotações são algo comoas coisas no mundo; não fazem parte da língua, mas sim do mundo � pessoas, mesas, copos,livros e assim por diante. Este é o principal tipo de teoria sobre a qual vou falar aqui. Masé importante saber que outros tipos de respostas podem ser dadas, e inclusive já foram dadas.Uma delas é a que diz que os signi�cados são objetos mentais de algum tipo, coisas dentro daminha cabeça, conceitos ou pensamentos. Então a resposta que eu escolhi é controversa. Nemtodos vão concordar com esta escolha.

Eu gostaria de deixar esta polêmica de lado por enquanto e nas próximas aulas simplesmentepresumir que uma maneira interessante de falar sobre os signi�cados é falar sobre as denotaçõescomo se fossem coisas, conjuntos de coisas e assim por diante. Em aulas posteriores, vou voltara rever outros tipos de respostas que podem ser dadas à pergunta �o que é signi�cado?� ecomparar as diferentes teorias com as diferentes respostas a essa pergunta.

Antes de começarmos a olhar mais aprofundadamente para uma teoria semântica, queriagastar alguns minutos na história recente da teoria lingüística nos Estados Unidos e na Europa.O ano de 1957 foi importante na Linguística. Este foi o ano em que Noam Chomsky publicou seupequeno livro Estruturas Sintáticas.3 Este livro teve um profundo impacto na teoria linguística,não só nos Estados Unidos mas em muitas outras partes do mundo. Na minha opinião, aconcepção mais importante e também a mais difícil de ser compreendida pelos linguistas quetinham trabalhado nas tradições anteriores foi a idéia de gramática gerativa.

O que é uma gramática gerativa? Espera-se que ela seja uma declaração explícita de quaissão as classes das expressões lingüísticas que existem em uma língua e que tipo de estruturaselas apresentam. Esta noção é importante para nós porque o tipo de semântica na qual eu querome concentrar pressupõe a existência de uma gramática explícita deste tipo. Por isso, querogastar algum tempo re�etindo sobre o que é esse tipo de gramática e o que ela faz. A coisamais importante de se lembrar, e também a mais difícil a se acostumar inicialmente, é a idéiade que, de fato, a gramática diz explicitamente o que há na língua. Esta é a idéia básica deuma gramática gerativa. Um exemplo nos ajudará a tornar esta idéia mais concreta. Dada umagramática gerativa de uma língua, você deveria conseguir construir vários tipos de expressõesnesta língua por meios completamente mecânicos, sem conhecer antecipadamente nada sobrea língua. Então quero apresentar uma pequena gramática para uma pequena língua arti�cialque vai ser importante à medida que progredirmos. E gostaria de desenvolvê-la para ilustrar oassunto sobre o qual estamos re�etindo.

Vou chamar esta língua de CP (uma abreviação de cálculo de predicados). O CP tem muitostipos de expressões. Ela tem o que vou chamar de termos, e eles são de duas espécies:

1. variáveis, que terão a forma: x, y, z, . . . (as últimas letras do alfabeto latino);

2. constantes individuais, que são escolhidas dentre as letas a, b, c, . . . (as primeiras letras doalfabeto latino); e

3N.T.: Este livro foi traduzido para o português em 2015, por Gabriel de Ávila Othero e Sérgio deMoura Menuzzi, publicado pela Editora Vozes.

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3. há ainda outras expressões: duas espécies de predicados, que vamos chamar de predicadosde um lugar, que são expressões como Correr, Caminhar, Feliz, Calma. . .

(Você pode achar que isso é português mas não é. Para os nossos propósitos, por enquanto,pense nelas simplesmente como símbolos desprovidos de signi�cados que pertencem a estasdiferentes classes de expressões.) E temos também predicados de dois lugares. Estes serãopalavras que novamente parecem ser do português, mas não são:

Amar, Beijar, Apreciar, Ver . . .

Estes são os únicos tipos de expressões básicas ou, se você preferir, expressões lexicais dalíngua. Eu incluí aqui as reticências porque dá para imaginar que existem muitas outras, massó precisamos de alguns exemplos de cada tipo. As outras expressões da nossa língua precisamser construídas por regras que apresento agora, para mostrar a você como elaborar algumasexpressões mais complexas. Então, vamos criar mais uma classe de expressões, que vou chamarde fórmulas. Eis as regras para construir fórmulas:

R1. Se P é um predicado de um lugar e T é um termo, então P (T ) é uma fórmula.

Isso signi�ca que se eu escolher algo que seja um termo, um x, ou um y, ou um a, ou umb, e escolher algo que seja um predicado de um lugar, eu posso construir uma fórmula juntandoo primeiro símbolo � digamos que Correr � a um segundo símbolo � um termo como a �em parêntesis depois: então, Correr(a) seria uma fórmula de acordo com essa primeira regra.É provável que você já tenha advinhado qual é a segunda regra:

R2. Se R é um predicado de dois lugares, e X e T são termos, então R(X,T ) é uma fórmula.

Assim, agora podemos escrever coisas como V er(a, b).Esta é apenas a sintaxe da língua. Neste ponto, ainda não há semântica para esta língua.

Mas dada essa gramática, já podemos dizer que certas expressões que pertencem a certas classesna gramática, porque dissemos explicitamente o que essas classes são. Então, sabemos, porexemplo, que a expressão x é um termo, e que b também é um termo. E sabemos ainda queestas são fórmulas na língua:

Correr(x), Apreciar(c, y), Calmo(c) e Amar(x, y)

Apesar de não sabermos o que elas signi�cam, nós já temos uma gramática gerativa bemsimples para esta língua CP. Tudo o que precisamos para gerar alguns exemplos desta língua éser capaz de reconhecer os símbolos ou sinais, e veri�car se eles pertencem às devidas categoriasou classes que estão descritas na gramática.

A gramática que acabei de fornecer � para uma língua muito simples � segue a formaque lógicos como Carnap e Tarski usaram para de�nir a sintaxe das línguas formais da lógicasimbólica e de outros sistemas arti�ciais. Ela é um exemplo do que alguns chamam de �sistemaformal.� Uma maneira de caracterizar o que Chomsky fez é dizer que ele propôs uma tese ouhipótese sobre as línguas naturais: que uma língua natural, uma língua como o chinês ou oportuguês, pode ser descrita como um sistema formal. Vou chamar isto de �Tese de Chomsky�de 1957. A maneira de Chomsky construir uma gramática era bem diferente da maneira comoapresentei esta língua. Mas um sistema simples como o que eu apresentei é su�ciente para come-çarmos. Numa próxima aula, voltarei à questão sobre que tipo de gramática é mais apropriadapara uma língua natural como o português ou o chinês.

A língua CP até agora não é muito interessante porque só podemos formar sentenças muitosimples. Não podemos fazer nada muito complicado, e há muitas coisas que não podemosexpressar nessa língua, então quero acrescentar mais duas regras para fórmulas. A primeiranova regra diz:

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6 AULA 1. FUNDAMENTOS E COMEÇO

R3. Se F é uma fórmula, então −F também é.

a quarta regra diz:

R4. Se F e G são fórmulas, então (F & G) e (F ∨G) também são.

Estas regras nos dizem que podemos fazer fórmulas mais complicadas a partir das simples.Nós podemos pegar uma fórmula e depois outra, e juntá-las com um sinal no meio delas, co-locando tudo entre parênteses, de forma que teremos uma outra fórmula nova. Podemos pegaresta fórmula e colocar o sinal �−� na frente ela, e termos outra fórmula. Então agora podemosformar com a nossa gramática sentenças tão longas quanto quisermos.

As gramáticas para as línguas naturais devem ter essa capacidade pois não há, em nenhumalíngua, uma sentença que seja a mais longa. Se você me der uma sentença bem longa emportuguês, sempre posso acrescentar mais alguma coisa para torná-la uma sentença ainda maislonga e complexa. Com estas regras, então, não só temos a possibilidade de formar sentençasbem curtas, mas agora podemos também formar sentenças da extensão que quisermos graças aumas poucas regras a mais.

Estamos re�etindo sobre uma língua bem simples, a língua CP. E, até agora, nos restringimosà sintaxe desta língua. Sintaxe é o estudo de uma língua do ponto de vista puramente formalsem dar atenção ao signi�cado. Se fôssemos falar de uma língua natural, ainda teríamos muitoa dizer sobre ela a partir deste ponto de vista estritamente formal. Alguns linguistas do nossoséculo4 parecem sugerir que isto é tudo o que há para ser dito, que a única coisa importantesobre uma língua é a rede de relações e contrastes formais que existem na língua. Nos EstadosUnidos, alguns dos linguistas mais in�uentes antes de Chomsky parecem aceitar esta idéia. Umdeles foi Leonard Bloom�eld, outro foi Zellig Harris, que foi professor de Chomsky. Claro queeles reconheciam que as palavras têm signi�cados, mas eles pareciam pensar que o estudo dosigni�cado não podia ser feito de uma forma precisa e cientí�ca. Neste aspecto, eles concordavamcom muitos �lósofos e lógicos que diziam que as línguas naturais são tão vagas e ambíguas quenão podem ser descritas da mesma forma que as línguas arti�ciais, como o CP.

Um �lósofo que não concordou com esse ponto de vista foi Richard Montague. Em seus tex-tos sobre línguas naturais, que foram escritos no �m dos anos 60 e início dos anos 70, Montaguea�rmou que as línguas naturais podem ser tratadas da mesma maneira que as línguas arti�ciaisformais dos lógicos. Podemos estabelecer esta como uma segunda tese. Já falei antes um poucoda tese de Chomsky. Esta eu gostaria de chamar de a �Tese de Montague�: as línguas naturaispodem ser descritas como sistemas formais interpretados. Relembrando, eu disse que a tese deChomsky dizia que as línguas naturais podem ser descritas como sistemas formais. Montagueacrescentou a ela a idéia de que as línguas naturais podem ser descritas como sistemas formaisinterpretados. Montague herdou da tradição lógica, da tradição �losó�ca, os métodos da semân-tica de teoria de modelos. Esta é a perspectiva que mencionei. A semântica atribui às sentençase às outras expressões interpretações que são coisas diferentes da língua; especi�camente, atri-buem às sentenças interpretações que dizem se elas são verdadeiras ou falsas. Em geral, paradeterminar se uma sentença é verdadeira ou falsa, duas coisas são necessárias: (1) você devesaber o que a sentença signi�ca e (2) você deve comparar esta sentença a alguma situação nomundo real e ver se ela correponde ao signi�cado da sentença.

(Aliás, podemos ver agora que o termo semântica formal, que aparece no título geral destasaulas, é bastante enganador. O mais importante em relação à semântica de teoria de modelos éque ela não trata apenas das relações entre as expressões de alguma língua (ou algumas línguas),mas das relações entre a língua e as coisas além da língua. A maneira como a palavra formal éusada no termo semântica formal deve ser entendida com um sentido semelhante ao de explícitoou preciso. Outra nota sobre este título: informal deve ser entendido como: sem uso excessivo

4N.T.: Lembremos que as aulas e sua transcrição em livro ocorreram ainda no século passado.

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de formalismos estranhos. Uma questão que espero que vocês venham a valorizar é que se podeser bastante preciso usando uma língua comum. Um formalismo só se justi�ca quando ele ampliaa perspicuidade e o entendimento; ele não é um �m em si mesmo.)

Agora quero retomar nossa língua simples, o CP, e mostrar como podemos dar uma inter-pretação a esta língua dizendo o que os diferentes tipos de expressão denotam. O que tínhamosantes era a sintaxe. Agora eu vou dizer alguma coisa sobre a semântica desta língua, algo sobreas denotações dos diferentes tipos de expressão. E o que eu vou dizer é: os termos denotamindivíduos, os predicados de um lugar denotam conjuntos de indivíduos, os predicados de doislugares denotam conjuntos de pares de indivíduos e as fórmulas denotam o que vou chamar devalores de verdade. Vamos escrever 1 para o Verdadeiro e 0 para o Falso.

(Você pode achar que a idéia de supor que a denotação de um predicado seja um conjuntonão é muito intuitiva. Talvez Caminhar devesse signi�car alguma coisa como a propriedadede andar. Se você acha isso, você não está sozinho. Em aulas posteriores, vou voltar a estaidéia. O que estamos observando aqui é uma teoria padrão sobre as denotações de uma línguadesenvolvida por lógicos e matemáticos que gostam de usar a teoria dos conjuntos como umaferramenta básica. Ela é uma bela teoria e já está bem compreendida, e esta é só uma parte deseu apelo. Mas ela tem algumas desvantagens, como veremos. Poderíamos dizer o mesmo sobrevalores de verdade como denotações de fórmulas.)

É muito importante entender o que estou dizendo. O que estou falando aqui é que supomosque os diferentes tipos de expressões da língua se referem a estas coisas no mundo ou nummodelo para a língua. Então, pense em uma determinada constante individual como tendo umapessoa ou uma xícara ou uma mesa como seu valor semântico ou denotação. Dada uma língua,ela me permite falar sobre um mundo de indivíduos e de conjuntos de indivíduos e de pares deindivíduos.

Agora, antes de dizer exatamente como tudo isso funciona, precisamos pensar um pouconos dois tipos de termos: as variáveis e as constantes individuais. Eu disse que ambas denotamindivíduos, mas elas fazem isso de modo bastante distinto, e vou precisar gastar algum tempinhoexplicando isso. A coisa mais fácil é pensar nas constantes individuais como nomes próprios emuma língua. Então, essas constantes individuais em línguas como o CP, funcionam como Emmon,Cláudio, Arthur ou Luisandro, supondo que podemos dar nomes a muitos tipos diferentes decoisas. Portanto, elas sempre representam alguma coisa ou algum indivíduo em particular. (Porenquanto, suponha que as constantes � diferentemente de nomes próprios nas línguas naturais� sempre selecionam uma única coisa à qual ela se refere. Consequentemente, vocês poderiampensar em cada nome como se incluísse uma espécie de Número de Identi�cação Universal.)

E as variáveis? Aqui precisamos dizer que aquilo que as variáveis denotam depende de algochamado atribuição de valores às variáveis. Uma variável é como um pronome. Então, nestalíngua, as variáveis funcionam exatamente como as palavras ele ou ela, numa língua naturalcomo o português.5 Em relação a uma sentença de uma língua natural, como �ela é sábia�,como vamos saber se é falsa ou verdadeira? Bem, nós não podemos determinar seu valor deverdade a não ser que saibamos quem o pronome ela designa. Logo, parte de uma interpretaçãoé uma atribuição de valores às variáveis. E estas atribuições vão sempre indicar algum indivíduopara qualquer variável que usarmos, de modo que as constantes funcionam como nomes e asvariáveis funcionam tal qual as vairáveis em matemática.6 Uma fórmula como Correr(x) nãopode ser julgada nem verdadeira nem falsa a não ser que saibamos a que indivíduo esta variável

5N.T.: No texto original, há ainda menção ao pronome neutro it, do inglês, para o qual não existeum correspondente direto em português; �isto�, por exemplo, não é um pronome pessoal.

6N.T.: as letras x, y e z são usadas em matemática de duas maneiras distintas: como variáveis, quandoprecisamos variar um valor numa determinada posição de uma equação para veri�carmos o resultadodesta variação, ou como incógnitas, quando não conhecemos o valor de uma determinada posição numaequação. Portanto, as variáveis do CP são exatamente como as variáveis da nossa tradição matemática,e não como as incógnitas.

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8 AULA 1. FUNDAMENTOS E COMEÇO

se refere. Por isto, além do que já mencionamos, devemos ter uma atribuição de valores ousigni�cados para as variáveis. Constantes individuais denotam indivíduos tal qual os nomespróprios. Variáveis denotam indivíduos sob uma atribuição de valores para as variáveis.

Você deve ter reparado que esta língua ainda é extremamente limitada pois não dispomosde uma maneira para fazer generalizações. Só podemos dizer coisas como: �João corre�, �Mariacorre� ou �Ele está feliz�. Não podemos dizer coisas como: �Alguém está feliz� ou �Todos estãotristes� etc. Além disso, dizer que estas palavras denotam um indivíduo em particular, comofazem nossas constantes, não faria o menor sentido. Quem são alguém e todos? Não há expressõesde generalização nesta língua, e tornamos a precisar de outras duas coisas para poder dizeralgo deste modo mais generalizado. De novo, vou apresentar primeiro a sintaxe destas novasexpressões e depois descrever seus signi�cados. Então, à de�nição das fórmulas, acrescento umaquinta regra:

R5. Se x é uma variável e F é uma fórmula, então

∀xF é uma fórmula; e

∃xF é uma fórmula.

Elas corresponderão a generalizações que dizem:

Todo x é um Fe

Algum x é um F .

Na primeira formula, se nós pensarmos onde a variável x aparece nela, o que fazemos é umaasseveração genérica sobre todas as coisas, sobre todo indivíduo daquela interpretação. Paraa segunda, o que fazemos são asseverações que correspondem a sentenças do português como�alguém corre.� Então, a primeira corresponde a uma asseveração universal e a segunda a uma

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sentença existencial em lógica. Acabei então de descrever os tipos de denotações que todasas expressões desta língua têm. Os termos denotam indivíduos. Se eles são constantes, elessão semelhantes aos nomes e denotam indivíduos especí�cos. Se eles são variáveis, como ospronomes, eles denotam indivíduos através de uma determinada atribuição de valores a estasvariáveis. Os predicados denotam conjuntos se eles são de um lugar. Eles denotam conjuntosde pares de indivíduos, como João e Maria, se eles são predicados de dois lugares. Vocês devempensar nestes pares como pares ordenados: Maria e (depois) João é um par ordenado diferentede João e Maria. E todas as fórmulas denotam valores de verdade: 1 para o verdadeiro e 0 parao falso.

Mas para apresentar a semântica desta língua, ainda tenho que dizer alguma coisa sobrequais denotações atribuímos às fórmulas a partir das denotações de suas partes mais simples.Consequentemente, o que eu tenho de fazer é dar uma de�nição do que é ser uma fórmulaverdadeira nesse sistema. Acho que seria melhor, para a apresentação desta de�nição de verdade,não dar nenhuma de�nição precisa, que precisaria ser escrita no quadro e que pareceria bemcomplicada; ao invés disso, pre�ro oferecer alguns exemplos e ver como é que poderíamos de�niras denotações de expressões nesta língua. Vamos começar com alguns exemplos simples deexpressões como:

Correr(a)

Queremos determinar quando uma fórmula como Correr(a) é verdadeira e quando ela éfalsa. Por um lado, nós temos a língua CP, por outro, nós temos o mundo ou modelo, e nósqueremos perguntar sobre a fórmula: Quando vamos dizer que essa fórmula é verdadeira? Bem,o valor semântico, a denotação da fórmula vai ser igula a 1 (Verdadeiro) só no caso do indivíduodenotado por a estar no conjunto denotado por Correr. Então, quando a fórmula Correr(a)seria verdadeira? Bem temos que olhar para o mundo:

Encontramos neste mundo o indivíduo que a deve denotar. Encontramos também muitosoutros indivíduos que estão correndo. Há muitas outras coisas no mundo � árvores, panelas etc.� mas se o indivíduo denotado por a for membro do conjunto de pessoas que estão correndo,então dizemos que a fórmula é verdadeira. Como é que de�niríamos as condições de verdadepara Amar(a, b)? Ora, vamos olhar para o mundo novamente. Nós temos de encontrar algumindivíduo denotado por b e digamos que novamente achemos o mesmo indivíduo para a. Agoratemos de olhar para pares de coisas no modelo ao invés de olhar coisas únicas. Vamos assumirque temos agora três entidades em nossa interpretação: A, B e C, e que de alguma maneira nósachamos o conjunto de pares que está na denotação de Amar. Não faz parte da semântica saber

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10 AULA 1. FUNDAMENTOS E COMEÇO

como isso acontece, de alguma forma sabemos que A ama B. Vamos contar uma estória triste:A ama B. B ama C, e C ama A. Então é assim que é o nosso mundo � nós temos um conjuntode pares � A+B; B+C; C+A� e depois nos perguntamos sobre esta fórmula: é verdadeira?Ora, ela é verdadeira de acordo com este mundo porque neste mundo nós dissemos que A, defato, ama B, logo a fórmula é verdadeira. Mas e a fórmula Amar(b, a)? De acordo com o queeu acabei de dizer, esta fórmula é falsa. Pois, infelizmente B não ama A. B ama C. Para sermais explícito, diríamos: essa fórmula é verdadeira se, e somente se, o par de indivíduos A e Bestiver no conjunto de pares que são a denotação de Amar no modelo. E isso nos dá um pontode partida para a de�nição de Verdadeiro e Falso com respeito a um certo mundo ou modelo.Observe o seguinte o que eu acabei de dizer: estou supondo que a especi�cação da interpretaçãodá a informação completa sobre todos os indivíduos, conjuntos etc. dos quais nós precisamospara chegar à denotação das fórmulas da língua que interpretamos. É só com relação a essacompreensão que nós podemos concluir, por exemplo, que B não ama A. Nas próximas aulasvamos lidar com situações menos idealizadas, onde podemos ter apenas informações incompletas.

(Neste exemplo, assumi uma convenção geral que tentarei seguir: não posso estar apresen-tando coisas reais em um modelo, por isso às vezes desenho �guras. Mas as �guras também nãosão totalmente convevientes, por isso usei letras maiúsculas, como A, B e C, para corresponderàs coisas denotadas pelas constantes de nossa língua: A para a coisa que a denota, e assim pordiante.)

E agora, como �cam os outros jeitos de formar as fórmulas? Você deve estar lembrado queuma das regras dizia que, se temos uma fórmula, podemos formar outra colocando o sinal �−�na frente:

−Amar(b, a)

Este sinal correponde a não ou negação. Quando é que queremos que essa fórmula seja ver-dadeira? Queremos que ela seja verdadeira se e somente se a fórmula sem a negação for falsa.Então, podemos dizer:

A denotação de −Amar(b, a) = 1 (é verdadeira)sse

a denotação de Amar(b, a) = 0 (é falsa)

(normalmente, sse é usado como abreviação de se e somente se.)E a fórmula:

(Correr(a) & Amar(a, b))?

(O `e' comercial � & � correponde à palavra e.) Gostaríamos de dizer que esta fórmula todaé verdadeira se, e somente se, a primeira parte for verdadeira e a segunda parte também. Demodo que a fórmula

(Correr(a) & Amar(a, b))

é verdadeira só no caso de cada uma de suas partes serem ambas verdadeiras. Então, ela éverdadeira ou não? É verdadeira. Eu disse antes: a é um dos corredores, (a, b) é um dospares que estão na denotação de Amar;7 portanto, já que a primeira e a segunda fórmula sãoverdadeiras, a expressão toda é verdadeira. E é isto que se assume que as denotações de taisfórmulas sejam.

Para encerrar estes casos mais simples: como �ca esta fórmula?

7N.T.: O autor está tomando aqui uma liberdade bastante comum, usando a constante individual nolugar da própria denotação; ou seja, quem pertence propriamente ao conjunto dos que amam é o par(A,B), e não (a, b) � que são as constantes, e não os indivíduos em si.

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(Correr(a) ∨Amar(a, b))

Bem, esta fórmula vai ser verdadeira só no caso de uma das fórmulas componentes ser verdadeira.Assim, o sinal & é como e e o sinal ∨ é como ou. E esta última fórmula vai ser verdadeirasó no caso de (se e somente se) ou a primeira parte ser verdadeira ou a segunda parte serverdadeira ou ambas serem verdadeiras. Então, novamente, dado nosso modelo, esta fórmulaé verdadeira? Ela denota 1 neste modelo? Sim, porque ambas as partes são verdadeiras. Elatambém seria verdadeira se apenas uma das partes fosse falsa. Contanto que uma de suas partesseja verdadeira, o conjunto todo será verdadeiro. Ela só seria falsa se ambos os lados da disjunçãofossem falsos.

A única coisa que falta para completar a semântica para a língua CP é descrever as denotaçõesde fórmulas como

∀xCorrer(x)e

∃xAmar(x, a).

Aqui precisamos pensar um pouco sobre as atribuições de valores às variáveis. E, em cada caso,queremos dizer se a expressão toda é verdadeira com base apenas na parte sem o quanti�cador,para cada caso, e precismos dizer isso em termos de atribuições de valores às variáveis. Toda afórmula (1) vai ser verdadeira se e somente se (2) � aquilo que obtemos quando tiramos a parte∀x � é verdadeira em toda as atribuições de valores às vairáveis, isto é, independentemente dovalor que considerarmos que x denote:

A denotação de (1) ∀xCorrer(x) = 1sse

a denotação de (2) Correr(x) = 1 para toda atribuição de valores às variáveis.

Para este exemplo, esta asseveração é correta. Algumas complicações surgem do fato de nãosabermos se há outras variáveis na fórmula ou não, se não conhecemos a estrutura da fórmulainterna; mas para esta fórmula em particular, que apresenta apenas uma única variável relevantex nela, esta explicação funciona (voltarei a este ponto na próxima aula). Você já deve ter advi-nhado o que vai acontecer com a outra fórmula, a sentença existencial. Novamente, precisamosdizer quais são as condições de verdade para a fórmula como um todo com base na verdade dafórmula interna, aquilo que obtemos quando tiramos o ∃x. É preciso dizer o que a expressãointeira vai denotar com base na denotação da segunda parte e para isto diremos o seguinte:

A denotação de ∃xCorrer(x) = 1sse

a denotação de Correr(x) = 1 em alguma das atribuições de valores às variáveis.

Assim, no primeiro caso, não importa como atribuirmos os valores, precisamos ter sempre umafórmula verdadeira. Consideremos a variável x. Uma atribuição diria que x denota uma certapessoa. Outra atribuição diria que x denota outra pessoa. Outra atribuição diria que x denotauma coisa. Em relação ao quanti�cador universal: se, para toda a atribuição de valores a x, afórmula for verdadeira, então a coisa toda é verdadeira. Em relação ao quanti�cador existencial:se, em alguma atribuição � pelo menos uma atribuição � de valores para as variáveis, a fórmulafor verdadeira, então a coisa toda é verdadeira.

Esta é, de uma forma bem ligeira, a teoria da quanti�cação. Se foi a primeira vez que vocêescutou uma explicação deste tipo e a compreendeu, você tem motivos para sentir muito orgulho,porque levou muito tempo para os lógicos desenvolverem esta teoria da quanti�cação em todasua complexidade. Se foi a primeira vez que você escutou e você acha que ainda não entendeu

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12 AULA 1. FUNDAMENTOS E COMEÇO

completamente � se você acha que precisa pensar um pouco mais a respeito dela e lidar maiscom ela para compreendê-la � você está plenamente justi�cado. Ela é complexa e eu estouapresentando-a de uma maneira muito apressada. Eu não quero falar muito sobre os detalhestécnicos formais. Quero dar a vocês uma idéia geral para que possamos falar dos assuntos geraisque são o foco destas aulas.

O que acabei de apresentar aaqui é uma versão bastante restrita do chamado cálculo depredicados, que é um sistema lógico formal, e ofereci a vocês um exemplo de interpretação. Aforma como �zemos isto exempli�ca a abordagem geral da interpretação através da teoria demodelos. Falei sobre um mundo ou modelo e sobre uma língua, e sobre a relação entre esta línguae o mundo, em termos de denotação ou signi�cados de expressões do cálculo de predicados ouCP.

Vou chamar o conjunto de objetos � ou seja lá o que for que tivermos no modelo � deestrutura de modelo. Nós vimos um exemplo de uma estrutura de modelo para uma língua emparticular. Uma das questões recorrentes, e talvez a mais importante destas aulas, é: que tipode estrutura de modelos são mais apropriadas e esclarecedoras para o estudo da semântica daslínguas naturais? Ou seja, não para línguas como CP, o cálculo de predicados, mas línguascomo o português, o inglês, o chinês, o russo, o tailandês e outras. Que tipos de estruturade modelo nós precisamos se quisermos explicar a semântica das línguas naturais através dateoria de modelos? Vamos estudar vários tipos de estruturas de modelo para línguas naturais earti�ciais.

Antes de parar, eu gostaria de gastar alguns minutos falando sobre coisas que encontramosnas línguas naturais, mas com as quais o CP não é capaz de lidar. O cálculo de predicados PC éum sistema demasiadamente simples, e a estrutura de modelo para ele também é muito simplespara se adequar às línguas naturais. Deixem-me mostrar a vocês alguns exemplos de como o CPé diferente de uma língua como o chinês, ou uma língua como o português, mostrando os tiposde coisas de que não dispomos no CP.

Nas classes de palavras do CP, só temos três diferentes tipos de expressões � bom, talvezquatro. Temos os termos (as constantes individuais e as variáveis), os predicados de dois tipos,e então temos coisas como e e ou, os parênteses, o quanti�cador universal, e o quanti�cadorexistencial, mas temos apenas um número bem pequeno de tipos de expressão ou de classesgramaticais no CP. Para uma língua natural, isso não basta. Precisamos de mais tipos deexpressões. Por exemplo, tome uma sentença como �João corre lentamente.� O que é lentamente?Temos apenas predicados e termos individuais. Podemos dizer coisas como �João corre�, mas nãopodemos dizer coisas como �João corre lentamente�. Imagine, alternativamente, uma sentença doportuguês como �Maria correu� em oposição a �Maria corre�. Em português, é claro, precisamosfazer uma opção explícita pelo tempo verbal, e �Maria correu� não signi�ca o mesmo que �Mariacorre�. O CP não tem nada que se assemelhe ao tempo verbal das línguas naturais.

Imagine ainda uma sentença como �Maria pode correr�. No CP, só podemos lidar comsentenças como �Maria corre� ou �Maria não corre�. O que signi�ca dizer que �Maria podecorrer� ou �É possível que Maria vá correr�? Não há nada que corresponda aos auxiliares ou aosmodos, como o subjuntivo, palavras como pode, deve, tem de etc. E o CP não tem expressõesdeste tipo. As línguas naturais têm. Precisamos descobrir como disponibilizar um sistema destetipo, através da teoria de modelos, para uma língua natural. Também não temos como expressaros condicionais. Sentenças como �Quando chove, alaga o quintal�, ou �Se amanhã �zer um diabonito, nós iremos à praia� e assim por diante. Nós ainda não temos nenhuma maneira derelacionar as sentenças com se e quando. É fácil inserir isto no CP. Na próxima vez, mostrareia vocês como fazer isso.

Além disso, ainda não temos nada nesta língua que corresponda àquilo que precisamospara interpretar sentenças como �eu moro aqui�. Podemos até dizer �João mora em Tianjin�.Poderíamos considerar morar em como um predicado, e também João e ainda T , ou alguma

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outra coisa para Tianjin,8 mas não podemos dizer nada nessa língua como �eu moro aqui�. Então,o que �eu moro aqui� signi�ca? Eu signi�ca eu, mas só se eu estiver falando. Se você disser �eumoro aqui�, aí eu vai signi�car outra pessoa. Esta língua não tem como lidar com expressõesdeterminadas pelo contexto. O mesmo acontece com aqui : o que aqui signi�ca? Se eu estouaqui, nesta sala, aqui pode se referir a esta sala. Mas se uma outra pessoa dizer esta sentençaem outra cidade, em outra sala, aqui nesta outra sentença quer dizer uma outra coisa. Entãoprecisamos pensar em palavras que dependem de contexto como eu, aqui, agora e assim pordiante.

Nesta língua, não há nenhuma maneira de fazer sentenças complexas como �Nós vamostentar agradar você�. Trata-se de uma situação na qual uma sentença é, de alguma forma, umacomponente de outra sentença, sem que isso seja feito em termos de e, ou, não etc. Tudo ése restringe apenas à asseveração: João corre. Maria mora em Tianjin. Marcos ama Sandra.E assim por diante. Nesta língua, não há como fazer perguntas. �Quem mora naquela casa?�Também não há como pedir coisas no CP. Uma língua como o CP, portanto, está restrita apenasa fazer asseverações sobre as coisas, sendo impossível fazer perguntas ou pedidos, tais como �porfavor, você pode me dizer as horas?� etc.

Dentre as coisas novas sobre as quais estaremos re�etindo a seguir, a mais importante éo fato de que, em nossa interpretação do CP, pensamos apenas em um mundo ou modelo.E, à medida que progredimos, será proveitoso lembrar que podemos ter toda uma classe demodelos diferentes, e pensar no valor de verdade das sentenças em modelos diferentes. De modoque poderemos pensar em diferentes maneiras pelas quais o mundo poderia se constituir, aoinvés de nos limitarmos a um único modelo. E isto introduz a noção de mundo possível, queé simplesmente um outro jeito das coisas estarem dispostas, sem ser necessariamente o jeitocomo as coisas estão. Precisamos deste aréscimo em nossa teoria para lidar com sentençascomo �Maria talvez caminhe no parque�. Quando é verdadeiro dizer que talvez Maria caminheno parque? Uma maneira de se responder a essa pergunta é dizer, �Maria talvez caminhe noparque� é verdadeira neste mundo se houver algum mundo possível, algum jeito alternativo dascoisas estarem dispostas, tal que Maria de fato caminhe no parque. Assim podemos explicaras modalidades em termos de diferentes maneiras como as coisas poderiam ser no mundo. Esseserá o assunto da próxima aula.

8N.T.: Parece que o plano discursivo �cou um pouco prejudicado neste trecho; seria mais adequadoalgo como `morar em é um predicado que se aplica a j (a denotação de João) e a t (ou alguma outracoisa que represente a denotação de Tianjin'.

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14 AULA 1. FUNDAMENTOS E COMEÇO

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Aula 2

Mundos Su�cientes e Tempo

O que eu gostaria de fazer hoje, antes de qualquer coisa, é dedicar algum tempo à revisão departe do que eu falei da última vez, especialmente os detalhes mais técnicos. Depois, eu gostariade abordar um assunto que eu apenas introduzi na minha primeira aula, a saber, a idéia demundos possíveis.

Na primeira aula tentei dar um reposta à seguinte pergunta: O que é a semântica de teoriade modelos? Apresentei a idéia de que as línguas naturais podem ser tratadas como sistemasformais de acordo com o que chamei de Tese de Chomsky, e acrescentei a isso a idéia de que aslínguas naturais podem ser tratadas como sistemas formais interpretados (Tese de Montague).Este foi o primeiro passo na resposta à pergunta sobre a natureza da semântica de teoria demodelos. Em seguida, dei o exemplo de uma língua arti�cial simples, o CP. Falei sobre a sintaxee sobre a semântica desta língua. A questão que estou querendo levantar em todas as aulas é:Que tipo de estrutura de modelos é apropriada ou adequada para as línguas naturais?

Este é um assunto ao qual vou voltar sempre. Antes de continuar, devemos observar queesta pergunta pressupõe um certo tipo de resposta porque estou escrevendo aqui �língua natural�como se todas as línguas naturais se comportassem da mesma forma com respeito ao tipo deestrutura de modelos que elas exigem. Esta é uma questão muito importante e gigantesca.Não podemos meramente assumir que isto esteja correto. Mas espera-se que, como na sintaxe,onde tentamos desenvolver uma teoria geral da gramática universal no âmbito da qual podemosdar conta da unidade e da diversidade das línguas naturais, na semântica, também procuramosuma teoria universal no âmbito da qual possamos entender línguas naturais como o chinês, oportuguês, o aramaico, o hindu, e assim por diante. Portanto, a pretenção geral da investigaçãoé a mesma das outras partes da lingüística teórica. Por conseguinte, esta formulação trazembutida um certo objetivo, ou uma certa presunção, ou uma certa hipótese sobre todas aslínguas naturais: especi�camente, que podemos encontrar uma resposta para esta pergunta queseja tão universal e geral quanto à que a teoria da sintaxe universal nos oferece para dar contadas semelhanças e diferenças entre diversas línguas naturais como o português, o chinês etc.Para ilustrar estes dois pontos, falei rapidamente de uma língua formal que chamei de CP. O CPé parte do que é chamado, em lógica, de cálculo de predicados. Vimos uma sintaxe bem simplespara esta língua, e depois interpretamos a sintaxe dizendo que tipo de estrutura de modelos énecessária para intepretar o CP.

No �nalzinho da aula, comecei a fazer a seguinte pergunta: A estrutura de modelos queencontramos para o CP também é adequada para as línguas naturais? E sugeri que não. Vamoscontinuar a rever este sistema simples para tentar entender o que temos de fazer para queum sistema deste tipo nos permita atingir teorias cada vez mais adequadas para as línguasnaturais. Por que estamos nos observando o CP? Bem, primeiramente, o CP é uma línguamuito importante e precisa ser conhecida por quem tem interesse em lógica. Muito se sabesobre a sintaxe e a semântica de sistemas simples como estes. Os lógicos e os matemáticosgostam desta língua. Eles a utilizam continuamente. Ela tem algumas propriedades bastante

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16 AULA 2. MUNDOS SUFICIENTES E TEMPO

convenientes. Ela é a língua mais importante para um ramo da matemática conhecido comoteoria de modelos. Consequentemente, é importante compreender que não se trata simplesmentede um modelo arbitrário que eu escolhi mas, para aqueles que desejam continuar a estudar lógicacomo uma parte do processo de compreensão das línguas naturais, sua importância está em simesma.

Agora, a primeira coisa que preciso dizer é que o CP que eu apresentei é só uma parte docálculo de predicados. A única coisa que me obriga a dizer que esta é uma parte do cálculo depredicados é que nós nos restringimos aos predicados de um e de dois lugares. Recordemos dafórmula simples:

Correr(x) e Amar(a, b).

O cálculo de predicados como um sistema completo permite acrescentar predicados de quantoslugares você quiser. Por exemplo, ele tem algo correspondente a palavras da língua portuguesacomo dar : A dá B a C; logo podemos ter relações de três lugares. Podemos ter relações dequatro lugares em predicados: A compra B de C por D. Esta restrição não é essencial para osnossos propósitos. Assim, é só neste sentido que estamos falando de uma subparte do cálculo depredicados. Todas as coisas importantes já estão lá.

Deixe-me delinear rapidamente, sem entrar em detalhes, o que já temos em nossa versãodo fragmento do cálculo de predicados. Vimos os seguintes tipos de expressões: termos, issoé constantes e variáveis individuais. O motivo pelo qual devemos dizer variáveis e constantesindividuais vai �car mais claro depois, quando virmos sistemas mais ricos, do tipo que precisamospara que possamos lidar com as línguas naturais. Em seguida, vimos predicados, de um e dedois lugares. E como acabei de dizer, a partir daí, um cálculo de predicados completo aindateria predicados com quantos lugares você quisesse � já que é um sistema lógico. Temostambém uma de�nição de fórmula. Elas foram introduzidas através da descrição dos modosde combinação entre os predicados e os termos, como nos exemplos acima, e ainda tínhamosmaneiras de construir disjunções (ou), conjunções (e) e negações (não). Além disso, tínhamosos quanti�cadores (o universal e o existencial) que estou escrevendo assim:

∀x e ∃x.

Esta é a sintaxe do CP: termos � dois tipos; predicados � dois tipos; fórmulas � fórmulassimples formadas por predicados e termos, e fórmulas mais complexas formadas com os quanti-�cadores, a negação e os conectivos. E, lembre-se, quando usamos um dos dois conectivos (& e∨), colocamos parênteses em volta da fórmula para que �que claro o que está sendo conectado.Deixe-me ilustrar porque isto é importante. Suponhamos que estabelecemos que p, q e r sãofórmulas. Há uma diferença crucial entre dizer

((p & q) ∨ r)

e dizer

(p & (q ∨ r)).

(Elas têm condições de verdade diferentes, como vocês mesmos podem veri�car.) Por isso é queprecisamos dos parênteses ao redor de nossas fórmulas complexas. (Se você ler outros livros delógica, você vai encontrar uma diversidade de símbolos para as coisas que introduzi aqui.)

Outra pequena nota de rodapé sobre um sistema deste tipo: apresentei quase todos osconectivos que são tipicamente usados no cálculo de predicados e no cálculo de signi�cados desentença (ou cálculo proposicional). É possível, quando se é um lógico interessado em coisasdeste tipo, tomar só algumas dessas coisas como primitivas e de�nir todas as outras. Não foi,contudo, o que �z; já que este não é um curso de lógica. Geralmente, você pode encontrar uma

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de�nição de cálculo de predicados que só tem esses símbolos como primitivos: &, − e ∃; ou ∨,− e ∃. E ainda existem de�nições que podem usar outras combinações.

Falei também sobre uma interpretação ou uma semântica. Chamo isso de interpretaçãopadrão para uma língua como o CP. O que é uma interpretação? Bem, já falei um pouco sobreisso; mas vou tornar a repetir. Uma interpretação, no sentido da teoria semântica de teoriade modelos, é uma forma de atribuir denotações de uma determinada estrutura de modelos àsexpressões de uma língua. Então uma interpretação de uma língua tem duas partes. A primeiraé o que chamei de estrutura de modelo, que é constituída apenas pelos objetos necessários parase interpretar a língua. Na interpretação padrão do cálculo de predicados, são necessários doistipos de objetos, porque trata-se de um sistema extremamente simples. Tudo o que você precisaé de um conjunto de indivíduos, que vou chamar de E,1 e um conjunto de valores de verdade.Não existe uma maneira padrão para designar este último conjunto, mas ele é simplesmente umconjunto que eu escrevo como 1 e 0. Consequentemente, dois valores de verdade e um conjuntode indivíduos constitui a estrutura de modelos padrão para o cálculo de predicados.

Da última vez, também disse alguma coisa sobre a forma como estas coisas estão relacio-nadas às expressões através da interpretação. Esta é a segunda coisa da qual precisamos: umaforma de atribuir elementos da estrutura de modelos às expressões da língua. Como você poderecordar, quando estamos diante de termos, estes termos estão ligados diretamente ao conjuntode indivíduos se eles são constantes, ou estão ligados indiretamente ao conjunto de indivíduosde acordo com uma atribuição de valores às variáveis.

Vimos que podemos usar uma certa estrutura de modelos para de�nir a maneira como inter-pretamos os predicados. Predicados de um lugar são simplesmente interpretados como conjuntosde indivíduos. Então, uma parte do conjunto de indivíduos deve ser a intepretação de um predi-cado como Correr; ou seja, são os indivíduos que correm. Mas na intepretação dos predicadosde dois lugares, precisamos não de indivíduos simplesmente, mas de pares de indivíduos: umapessoa que ama outra pessoa; ou seja, um par ordenado. E se fôssemos continuar, além de pares(duplas de indivíduos), ainda precisaríamos de trios, quartetos, e assim por diante. Mas comoeu disse, só precisaremos pensar nos predicados de um e de dois lugares.

Então, o que é uma interpretação? Uma interpretação, até agora, precisa de três coisas.Primeiro, precisa de uma certa estrutura de modelos � vamos chamar esta estrutura de modelosde M1. M1 vai ser a primeira estrutura de modelos que vamos ver. M1 é a estrutura demodelos de uma interpretação padrão do cálculo de predicados. Além disso, duas coisas sãonecessárias: primeiro, um conjunto (chamado de G) de atribuições de valores às variáveis, eprecisamos também de uma função de avaliação, que vou chamar de D. A função (mapeamentoou procedimento) de avaliação é uma maneira de tomar uma expressão e dizer que signi�cadoou denotação ela deve ter dentro desta estrutura de modelos. Consequentemente, estas trêscoisas são parte da interpretação padrão do cálculo de predicados: uma determinada estruturade modelos, uma determinada atribuição de valores às variáveis e uma função de avaliação. Eisum resumo de uma estrutura de interpretação:

〈M1, D,G〉.

O que D signi�ca? D é só uma maneira mais abreviada de se dizer `isto denota aquilo'.Então, se eu digo, como disse da última vez, que o predicado Correr denota um conjunto deindivíduos, uma maneira mais abreviada de dizer isto é:

D(Correr) = o conjunto de indivíduos que correm.

Ou podemos dizer coisas como:

1N.T.: O uso de E para representar o conjunto de indivíduos se deve ao fato de que se empregatambém a expressão �entidade� como alternativa para �indivíduo� (nos textos de Montague, por exemplo,a preferência era por �entidade�).

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18 AULA 2. MUNDOS SUFICIENTES E TEMPO

D(m) = algum indivíduo do modelo; Murilo, digamos.

Portanto, repetindo, a função de avaliação é apenas uma maneira de atribuir elementos domodelo às expressões da língua.

Agora quero gastar um tempo para falar sobre a atribuição de valores às variáveis, porqueeste é um ponto bastante intrincado, sobre o qual deveremos ser claros; isto vai nos ajudar aentender o que estamos fazendo.

Como é que a atribuição de valores às variáveis se encaixa aqui? Para a interpretação dossímbolos das constantes não precisamos nos referir às atribuições. Mas para a interpretação defórmulas que contêm variáveis, as funções de atribuição são cruciais. Precisamos delas para aschamadas fórmulas (ou sentenças) abertas, primeiro porque sem uma atribuição não sabemos oque fazer com uma fórmula como Correr(x). Aqui vamos dizer que esta fórmula é verdadeiranuma determinada atribuição g de valores às variáveis � ou seja, ela denota 1 � apenas quandoo que se atribui a x através de g pertence ao conjunto das entidades que correm. Escrevemoso nome deste indivíduo assim: g(x). Então, quando estou falando da função de denotação D,em geral, estou falando da denotação com respeito a algum g no conjunto de atribuições G, quepode ser escrito como Dg.

Já que de�nimos a verdade das fórmulas com quanti�cadores existenciais ou universais combase na fórmula aberta que sobra depois de removemos o quanti�cador (∀x ou ∃x, por exemplo),as atribuições são uma parte muito crucial na de�nição de verdade em nossa teoria. Dizendoisto de uma forma mais cuidadosa, precisamos observar se a fórmula com a qual estamos lidandotem outras variáveis livres, além da variável ligada pelo quanti�cador. Assim, uma descriçãocompleta da de�nição de verdade para o quanti�cador universal tem de ser dada da seguinteforma:

∀xF denota 1 numa atribuição g sse F denota 1 em toda atribuição g′, que éexatamente como g, exceto possivelmente pelo valor que g′ atribui a x.

Deixa eu explicar como isso funciona.Se x é a única variável livre em F � por exemplo, se a fórmula é Correr(x) � então

não teríamos de nos preocupar com a parte da de�nição que fala sobre atribuições semelhantesàquelas com as quais começamos (a parte que diz �que é exatamente como. . . �). Mas suponhamque não seja; suponham que temos uma fórmula como V er(x, y). Então o motivo da complicaçãona descrição vem à tona: queremos justamente pensar sobre as atribuições que têm os mesmosvalores atribuídos a y. E precisamos fazer com que elas sejam diferentes para o caso especial dex: a parte da declaração que diz �exceto possivelmente� cuida disto. Isto é o su�ciente para asatribuições.

A primeira resposta possível para a pergunta principal que estamos fazendo pode ser esta:M1 é um modelo viável para a semântica das línguas naturais. M1 não foi concebido como umaestrutura de modelos para as línguas naturais, mas sim para uma língua formal muito simples emuito importante, e uma das nossas primeiras perguntas vai ser: Quão adequado é esse modelocomo estrutura de modelos para uma língua natural? E vamos perguntar isso repetidamente arespeito das diferentes estruturas de modelos que estudarmos.

O que eu gostaria de fazer no restante da seção de hoje é elaborar um pouco mais o que eumencionei na última vez e tentar clarear a noção de mundo possível que surge quando começamosa perguntar sobre a adequação de um sistema deste tipo para as línguas naturais. Antes disso,porém, deixa eu dar alguns esclarecimentos sobre o que exatamente estamos fazendo aqui. Eudisse que a tarefa de uma semântica de teoria de modelos é fornecer uma maneira de associarexpressões da língua com denotação e, em particular, dar uma teoria da verdade para aquelalíngua. Temos que ser bem claros sobre uma coisa � estamos engajados numa lógica para

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a linguística, mas não estamos engajados na ciência genericamente. Não faz parte de nossatarefa sermos capaz de dizer quando determinadas asseverações são verdadeiras ou falsas emrelação ao mundo real. Não cabe à lingüística dizer se é a teoria da relatividade de Einsteinou a teoria mecânica de Newton que a teoria correta sobre o mundo. Não cabe à semânticadeterminar quando é verdade que eu sou inteligente ou burro ou outra coisas desse tipo. Estamospreocupados aqui com a forma da verdade, não sobre como descobrimos se uma algo é verdadeiro;não estamos preocupados com uma teoria do conhecimento � em outras palavras, com a maneirade dedscobrir a verdade; estamos preocupados meramente com a estrutura da teoria da verdadeque começa dizendo algo como: Dado que isto é verdade, então aquilo também é verdade. Nãoestamos preocupados com a pergunta das perguntas (ainda que muito importante): Como éque sabemos que algo é verdadeiro? Em �loso�a, isso é chamado de teoria do conhecimento, ouepistemologia; caso contrário, alguém poderia dizer que isto é meramente ciência, ou seja, comosabemos o que é verdadeiro no mundo. Estamos preocupados com a estrutura da intepretaçãoao invés de sua fundamentação.

Vamos agora continuar com a pergunta �Quão adequado é este retrato para as línguas na-turais?� Uma coisa que eu disse da última vez é que as línguas naturais parecem ter muitosoutros tipos diferentes de palavras do que as que temos até aqui. Temos não só coisas que separecem com predicados � isto é, verbos de variados tipos � além de pronomes, nomes e coisasque desse tipo, mas também temos muitos outros tipos de expressões em uma língua natural,que não parecem ter contrapartes no cálculo de predicados. Vou abordar essa questão maisaprofundadamente, mas não agora. Mencionei rapidamente, na última vez, que advérbios comovagarosamente não existem num sistema deste tipo. As preposições também não existem nestesistema. Da próxima vez � mal vamos chegar a tocar nisto hoje � vou perguntar, em relação adeterminadas partes do discurso, como as línguas naturais podem construir expressões comple-xas que correspondem às expressões complexas em uma língua deste tipo. Há duas diferençasgramaticais, por assim dizer, entre o CP e as línguas naturais. Primeiro, há muito mais tiposde palavras e expressões nas línguas naturais do que no CP. Isso é uma questão sintática: noentanto, é também uma questão semântica porque queremos saber os signi�cados corresponden-tes para estes diferentes tipos de expressões. Segundo, no cálculo de predicados encontramosapenas predicados muito simples, como Correr, Amar, V er, e assim por diante. Sabemos quenas línguas naturais podemos ter sintagmas muito complexos que correspondem a predicadossimples como Correr, e precisamos gastar algum tempo re�etindo sobre isso.

Quero me concentrar agora numa mudança fundamental que acontece quando começamos aperguntar sobre diferentes tipos de sentenças. Suponham que temos sentenças como estas:

1. Maria pode falar português.

2. João poderia lavar os pratos.

3. Necessariamente, 2 + 2 = 4.

Percebam que estas sentenças têm algumas palavras que parecem não se encaixar nas cate-gorias encontradas no CP: ou um advérbio (necessariamente) ou palavras que concebemos comoverbos auxiliares, em português. Imagino que no chinês também hajam classes de palavras destetipo, que de algum modo estão relacionadas ao signi�cado da sentença como um todo, mas quenão parecem ser sentenças com as quais possamos lidar adequadamente na interpretação padrãodo cálculo de predicados. Por quê? Como sugeri da última vez, é porque não se encontra nadanesta estrutura de modelos, ou na função de avaliação, ou na atribuição, que nos permita falarsobre as diferentes circunstâncias possíveis, as diferentes disposições possíveis que as coisas po-deriam assumir. Em outras palavras, a interpretação padrão do cálculo de predicados presumeum certo modelo �xo que não muda. O que se dá sempre é a interpretação da língua conside-drada em um único modelo �xo, um único conjunto �xo de indivíduos, dois valores de verdadee assim por diante, sendo esta toda a intepretação. Mas parece que, em uma sentença como 3,

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20 AULA 2. MUNDOS SUFICIENTES E TEMPO

estamos dizendo uma coisa mais ampla do que isso. Não estamos dizendo apenas que no mundoreal, num único modelo no qual estamos usando para interpretar a língua, 2 + 2 = 4. O quesigni�ca dizer que �Necessariamente, 2 + 2 = 4�? Bem, uma resposta foi dada pelos lógicos quedesenvolveram vários sistemas chamados de lógicas modais, numa tentativa de compreender emsistemas lógicos o que signi�cam termos como verdade lógica, necessariamente verdade e outros.As primeiras interpretações de sistemas de lógica modal foram desenvolvidas nos anos 60 porvários lógicos, mas provavelmente o mais conhecido dentre eles tenha sido Saul Kripke. Ele usoua noção de mundo possível para compreender o que sentenças como 3 signi�cam. Quero gastaro restante da sessão de hoje com esta idéia. O assunto principal de hoje, então, são os mundospossíveis.

A partir de agora, vou falar de um certo tipo de semântica de teoria de modelos que fazuso da noção de mundos possíveis. A semântica de mundos possíveis é uma certa subteoria,um certo tipo de semântica de teoria de modelos que não deve ser identi�cada com a semânticade teoria de modelos em si. Digo isto porque muito frequentemente na literatura vocês vãoler asseverações sobre a semântica de teoria de modelos que cometem este erro de achar que asemântica de mundos possíveis é o único tipo de semântica de teoria de modelos que existe. Elaé só um dos tipos de semântica de teoria de modelos, e talvez seja o mais bem compreendido eo mais bem desenvolvido, mas certamente não é o único que existe. Na semana que vem, vamosver alguns tipos diferentes de sistemas que de modo algum são sistemas de semântica de mundospossíveis. Mas a interpretação que Richard Montague deu para o inglês, em seus artigos maisimportantes sobre a semântica do inglês, de fato usava a semântica de mundos possíveis.

Vamos imaginar agora que tenhamos estendido nosso CP para incluir expressões do tipo quesupomos corresponder a palavras como necessariamente. Então queremos dizer: O que signi�ca�Necessariamente, F �? � na qual F é uma fórmula. Ou, mais concretamente, precisamos dizer:Sob que condições diríamos que �Necessariamente, 2 + 2 = 4� é verdadeira? A resposta quevocês devem estar esperando, devido à forma geral de nossas explicações até agora, precisa dizerem que condições F ou �2 + 2 = 4� são verdadeiras:

Necessariamente, F = 1 sse ? F = 1

Observem que esta é a técnica geral para tentar lidar com expressões complexas nesta língua.Discutimos um signi�cado para ∀xF em termos da interpretação da parte mais simples, sem oquanti�cador. Aqui estamos fazendo a pergunta: O que precisamos dizer sobre a verdade de�Necessariamente, F � em relação à verdade de �F �?

A resposta é que �Necessariamente, F � é verdadeira se e somente se, em todo mundo possível,F for verdadeira. Contudo, não podemos dizer isto com o aparato do sistema que temos nainterpretação padrão do cálculo de predicados. Por que não podemos dizer isto? Porque naestrutura de modelos só temos indivíduos e valores de verdade. Não podemos falar sobre asdiferentes formas que o mundo poderia assumir. E a semântica de mundos possíveis apenasacrescenta a esta interpretação padrão um novo conjunto de elementos. O novo conjunto deelementos é um conjunto de mundos possíveis. A nova estrutura de modelos tem, novamente,um conjunto de indivíduos, novamente, um conjunto de valores de verdade e agora acrescentamosum novo conjunto de coisas P ,2 um conjunto de mundos possíveis:

M1: E{0, 1}

M2′: E{0, 1}P

(As chaves são usadas para delimitar conjuntos, assim {0, 1} signi�ca o conjunto que consistede 0 e de 1. Chamo este novo modelo de M2′ porque em breve vamos fazer umas revisões e

2N.T.: Vamos usar aqui P para representar o conjunto de mundos possíveis, porque oM já representaum conjunto de modelos.

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eu quero reservar o nome M2 para a versão revisada.) Agora vamos dar mais um exemplo ever se podemos adivinhar qual será a resposta dada à nova possibilidade de falar sobre mundospossíveis. Suponha que quiséssemos entender uma sentença como esta:

4. É possível que esteja chovendo em Pequim.

Queremos dizer quando é verdadeiro dizer que possivelmente esteja chovendo em Pequim.Nossa sugestão será bem parecida com o que dissemos sobre o exemplo 3. A sentença 4 éverdadeira só no caso de, em algum mundo possível, ser realmente verdade nesse mundo queestá chovendo em Pequim. Então um mundo possível não é assim tão misterioso. É simplesmenteuma maneira de pensar sobre outras formas que o mundo poderia ter, diferentemente do que eleé na realidade.

Deixa eu dar outro exemplo. Suponham que estamos sentados depois do jantar na casa dealguém � um de nós se chamava João e alguém diz a seguinte sentença: �Bem, João podialavar os pratos.� Em que condições podemos dizer que isso é verdade nessa situação. Bem,poderíamos dizer que é verdade nessa situação, ou mundo, se há algum mundo possível no qual�João está lavando os pratos� seja verdadeira. E o que dizer de �Maria pode falar português�? Nãodevemos nos preocupar muito, por enquanto, sobre a compreensão exata destas coisas, porquehá muitas questões difíceis e complicadas sobre o que uma palavra como pode signi�ca em umalíngua natural como o português. Mas, seguindo o mesmo estilo de apresentação, suponham queestou vendo aqui alguém cujo nome é Maria e digo �Maria pode falar português�. Talvez nesseexato momento Maria esteja dormindo ou lendo um livro ou falando com alguém em uma outralíngua, quem sabe o chinês. O que eu estaria dizendo de acordo com essa maneira de explicarmodalidade, de explicar idéias modais como pode e deve e precisa e assim por diante, seria maisou menos como dizer: �Maria pode falar português� é verdadeira se há algum mundo possívelno qual Maria de fato fale português ou esteja falando português naquele momento.

Vocês devem ter percebido aqui um paralelo bastante elegante entre a língua simples CP,com sua estrutura de modelosM1, e a nova estrutura de modelosM2′ (e as línguas para as quaisela é concebida). O CP tem dois tipos de quanti�cação sobre indivíduos, que correspondem atodos e a algum. Nosso novo tipo de estrutura tem os mesmos dois tipos de quanti�cação, masagora para mundos e não indivíduos.

Para a primeira resposta à pergunta fundamental (�Que tipo de estrutura é adequada paraa língua natural?�), buscamos a interpretação simples do cálculo de predicados. O que estoucomeçando a fazer agora é demonstrar que esta estrutura de modelos, este sistema de interpreta-ção, não é adequado para as línguas naturais e vou tentar mostrar algumas maneiras através dasquais podemos enriquecer este tipo de interpretação para chegar a um sistema que é adequado àslínguas naturais. O primeiro acréscimo nos faz dizer: Vamos olhar para um sistema ligeiramentemais complicado, ligeiramente mais rico do que a interpretação padrão, acrescentando a ele umconjunto de coisas chamadas mundos possíveis.

Deixe-me dar um outro tipo de exemplo. Suponham que temos uma sentença assim:

5. João não deveria caminhar no parque.

Nós queremos entender o que a sentença 5 signi�ca com base no signi�cado da sentença 6.

6. João não caminha no parque.

O que signi�ca dizer �João não deveria caminhar no parque� nesse mundo? O que estou di-zendo sugere que a resposta está numa re�exão sobre outros mundos possíveis. A sentença 5é verdadeira se, em todos os �mundos do dever� (todos os mundos que deveriam existir), Joãonão caminha no parque. Na verdade, talvez João esteja caminhando no parque. Gostaríamosde dizer, bom, é verdade que João está caminhando no parque, mas em algum outro tipo de

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22 AULA 2. MUNDOS SUFICIENTES E TEMPO

circunstância, mais explicitamente, o tipo de circunstância que deveria existir, João não estácaminhando no parque; portanto, estes mundos possíveis estão relacionados à compreensão deestados alternativos que as coisas poderiam assumir. E isto é tudo o que a expressão mundospossíveis signi�ca.

Vou acrescentar mais uma coisa ao nosso tipo de estrutura de modelos, e então teremos tudoo que é preciso para a teoria semântica de Montague para o inglês. O que eu quero acrescentarserve para lidar com a interpretação de sentenças como:

7. Maria está caminhando no parque.

Suponham que consideremos diferentes versões da mesma sentença que resultam da variação daparte temporal/aspectual da sentença, mantendo todo o resto constante:

8. Maria caminhou no parque.

9. Maria tinha caminhado no parque.

10. Maria vai caminhar no parque.

11. Maria vai ter caminhado no parque.

Muitos de vocês são professores de inglês, e uma das coisas que vocês têm de ensinar aos seus alu-nos é como funciona o sistema temporal do inglês, que, tanto quanto eu saiba, é bem diferente dochinês. Em uma teoria adequada para as línguas naturais, precisamos lidar com variações destetipo, e parece que não temos nada na nossa estrutura de modelos para lidar com as diferençasda expressão do tempo. Mas, de certo modo, já temos; porque a noção de mundo possível por simesma poderia incluir a idéia de um mesmo mundo em tempos diferentes. Assim, poderíamossimplesmente tomar o conjunto de mundos possíveis e pensar em um certo ordenamento tempo-ral e usar esta noção também para compreender o sistema temporal. Nós dizemos que �Mariacaminhou no parque� é verdadeira em um certo mundo se há um mundo anterior � um mundoque está ordenado anteriormente em relação ao mundo presente � e neste mundo anterior, �Ma-ria caminha no parque� é verdadeira. Então, num certo sentido, a noção de mundo possível játraz nela própria a possibilidade de se falar sobre as relações temporais. Mas é conveniente,e foi isso que Montague fez em seu fragmento, acrescentar um conjunto diferente de coisas �um conjunto de tempos � à nossa estrutura de modelos, junto com um certo ordenamento doselementos deste novo conjunto. Então temos um conjunto de mundos e agora um conjunto detempos. Vamos ver como isto pode funcionar para lidar com a expressão do tempo.

Queremos entender o que uma sentença como �Maria vai caminhar� signi�ca, considerando-acomo o futuro simples do português brasileiro. Para isto, queremos tirar o auxiliar de futuro vaida sentença, de forma que sobra apenas a sentença simples �Maria caminha�, no tempo presente,e queremos dizer qual é o signi�cado da primeira frase, quando ela vai ser verdadeira em termosde quais são as condições para a segunda sentença ser verdadeira:

12. Maria vai caminhar no parque.

13. Maria caminha no parque.

Agora vocês já devem ter adivinhado qual vai ser a resposta. A sentença 12 vai ser verdadeiraem um certo tempo t, se e somente se houver um outro tempo posterior t′, no qual a sentença 13é verdadeira. O que signi�ca posterior? Signi�ca que t′ é um tempo depois de agora. De modoque nossa estrutura de modelos contém não só um conjunto de mundos possíveis, mas tambémum conjunto de tempos com algum tipo de ordenamento para eles. E acho que vocês podemver como podemos prosseguir estudando a verdade de �Maria tinha caminhado� e �Maria vai tercaminhado�.

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A introdução destas mudanças fundamentais na estrutura de modelos que estamos usandopara interpretar as línguas naturais causa uma mudança signi�cativa nas nossas idéias sobre oque seja o signi�cado. Falando sobre como M1 pode ser usado para interpretar o CP, dissemosque o signi�cado de nossas expressões poderia ser concebido através de indivíduos e conjun-tos, conjuntos de pares e assim por diante. Com a introdução de mundos possíveis e tempos,acrescentamos implicitamente à nossa tentativa de entender o que é o signi�cado uma coisacrucialmente diferente. Já que uma interpretação agora é dada em relação a um mundo (ou aum mundo e a um tempo), precisamos ter signi�cados que sejam capazes de olhar para mundose tempos diferentes, e de encontrar os tipos de coisas que nós tínhamos em M1: indivíduos,conjuntos, conjuntos de pares e assim por diante. Vou retomar este ponto em aulas futuras,porque esta é uma parte muito signi�cativa da teoria semântica que estamos vendo.

Em pouco tempo, terei apresentado a vocês a noção básica de mundos possíveis e de tempoque correspondem a dois ramos muito bem desenvolvidos da lógica chamados de lógica modale lógica temporal. Richard Montague, que estou seguindo aqui, conhecia estes dois sistemasde lógica ou famílias de sistemas de lógica muito bem, e ele os usou para interpretar o inglês.Então, esta é a verdadeira resposta de Montague à pergunta �O que precisamos para umaestrutura de modelos adequada para uma língua natural?� E Montague disse que isto é omínimo que precisamos. Assim, a resposta de Montague para a pergunta �O que precisamospara uma estrutura de modelos adequada para uma língua natural?� foi: este tipo de estruturade modelos que apresentamos � junto com uma função de avaliação e um conjunto de atribuiçõespara as variáveis � e isto difere da estrutura de modelos padrão para a da interpretação padrãodo cálculo de predicados tão somente na inclusão destas duas novas coisas: um conjunto demundos possíveis e um conjunto de tempos. Se vocês forem consultar o artigo mais conhecidode Montague, o que é chamado abreviadamente de PTQ, vocês vão constatar que apresenteiaqui exatamente o que Montague disse neste texto básico.

(Montague escreveu três textos básicos sobre a interpretação das línguas naturais. O PTQé o mais conhecido. Se vocês forem consultar a introdução à semântica de Montague, escritapor Dowty, Wall & Peters [5], vocês vão constatar que o livro inteiro se dedica a explicar o PTQem inglês comum (!). O PTQ tem só pouco mais de vinte páginas. Neste curso, cobri muitorapidamente, mais ou menos os primeiros três capítulos e um pouco dos capítulos posteriores dolivro de Dowty, Wall & Peters.)

Para resumir, nossa estrutura de modelos, revisada para distinguir entre mundos e tempos,tem o seguinte aspecto:

M2 = E: um conjunto de indivíduosP : um conjunto de mundos possíveisT : um conjunto de tempos,

com uma relação de ordenamento R entre eles{1, 0}: o conjunto de valores de verdade

Logo, uma interpretação, sob esta ótica, é composta por uma estrutura de modelosM2, uma fun-ção de interpretação D e um conjunto G de atribuições de valores para as variáveis: 〈M2, D,G〉.

Gostaria de acrescentar duas notas de rodapé ao quadro que acabei de apresentar para aestrutura de modelos que Montague usou no PTQ. O primeiro tem a ver com a estrutura dostempos no modelo, o segundo com alguns outros aspectos dos mundos possíveis e da modalidade.Deixe-me ressaltar, porém, que o que eu já disse exaure completamente o que é preciso nestaestrutura de modelos. Vamos ver, nas poucas aulas que ainda teremos, que muita coisa já podeser feita em relação à interpretação das línguas naturais dentro deste sistema.

O conjunto T de tempos (chamado de J no PTQ) é apresentado por Montague sem qualquerexplicação. Não sabemos se ele deve ser um conjunto de instantes sem dimensão, ou de intervaloscom alguma �densidade�, embora outros textos de Montague sugiram que se trate do primeiro.Muito se tem discutido sobre esta questão desde que o PTQ apareceu, e ainda vou voltar a este

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24 AULA 2. MUNDOS SUFICIENTES E TEMPO

assunto numa das próximas aulas. A relação R (como no PTQ) é o que se chama de ordenamentosimples; isto é, um ordenamento que é transitivo, re�exivo e anti-simétrico:

transitivo: se t acontece �antes de� t′ e t′ acontece �antes de� t′′, então t acontece �antes de� t′′;

re�exivo: todo tempo t acontece �antes de� (ou simultaneamente a) si mesmo;

anti-simétrico: se t acontece �antes de� t′ e vice-versa, então t e t′ são iguais.

(Escrevi �antes de� porque precisamos imaginar que isto signi�que, na verdade, �antes de ousimultaneamente a� como a notação de Montague sugere.3)

Sobre os mundos, antes de qualquer coisa, a con�guração de M2 é a mais simples possível.Vocês podem ir de um mundo para outro sem nenhuma restrição. É comum, porém, se usarabordagens mais re�nadas, nas quais não só os tempos, mas também os mundos apresentamdeterminados tipos de relações entre eles � as chamadas relações de acessibilidade. Nestessistemas, que se têm mostrado muito profícuos para a re�exão sobre a semântica das sentençascondicionais, a de�nição de necessidade e outras de�nições semelhantes são modi�cadas de modoa fazer referência a mundos �acessíveis� a partir daquele em que se começou. Diferentes formas deexpressar estas relações levam a diferentes sistemas de lógica modal. Em segundo lugar, o sistemaé bastante claro e simples de uma outra forma: presume-se que há uma só forma de necessidade,possibilidade e assim por diante. Numa perspectiva mais ampla, isto não pareceria muito certo.As expressões modais às vezes parecem estar se referindo à modalidade lógica, outras vezes àsobrigações morais ou às volições, outras às possibilidades físicas etc. Por exemplo, se eu disser�Vocês não podem fazer isso!�, posso estar tentando dizer a vocês uma dentre uma série decoisas dependendo do contexto (se vocês estiverem tentando fazer uma trissecção num ângulo,construir uma máquina de movimento perpétuo, aprender uma nova língua em uma semana,tratar desrespeitosamente uma pessoa de idade e assim por diante). Consequentemente, umamaneira mais re�nada e adequada de lidar com a modalidade das línguas naturais é considerarestes tipos de diferenças. (Uma dica sobre como usar esse tipo de concepção já apareceu quandofalei sobre �mundos do dever�.)

Prometi que, nestas aulas, veríamos alguns tópicos com os quais a atual pesquisa semânticase preocupa e, por enquanto, parece que só me concentrei em aspectos técnicos complicados.Sendo assim, eu gostaria de terminar esta aula com uma breve apresentação de algumas ques-tões essenciais que suscitadas pelo aparato que apresentei até agora. Eles não são novos, mascontinuam a preocupar linguistas e �lósofos, e acho que eles são interessantes.

Indivíduos e Mundos. Suponham que vocês estão em um mundo e queiram ir para outro,para interpretar, por exemplo, uma sentença condicional como esta:

14. Se Cecília Meireles tivesse nascido homem, ela provelmente não teria sido um poeta tãoimportante.

Para entender esta sentença, temos de localizar um determinado indivíduo neste outro mundocomo sendo Cecília Meireles. Ela é exatamente o mesmo indivíduo neste outro mundo? Percebaque, em português, ainda usamos ela para designá-la (lo?). Montague seguiu esta linha, que foimais veementemente defendida por Kripke [8]. Outro ponto de vista (mais vigorosamente defen-dido por Lewis [10], por exemplo), é que cada mundo vem equipado com seu próprio conjuntode indivíduos e que, para entender uma sentença como 14, temos de recorrer à contraparte daCecília Meireles neste outro mundo contrafactual.

Os condicionais são apenas um exemplo do que vou chamar de contexto criador-de-mundo.Outros exemplos incluem não só os modais (como já vimos), mas expressões que marcam sonho,imaginação, desejo, tentativa e assim por diante. Tudo isso traz à tona assuntos que concernem

3N.T.: Muitas vezes, essa relação é representada como �, ou mais simplesmente como ≤.

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à identi�cação intermundos (o que David Kaplan � creio � chamou de �linhagens sucessórias in-termundos�). Um problema interessante que surge quando discutimos problemas de identi�caçãointermundos é ilustrado por uma sentença como esta:

15. Se eu fosse dois, eu seria muito mais feliz.

Como Lewis notou, se insistimos numa real identidade intermundos, então temos de encarar oproblema de como uma coisa pode ser duas!

Mundos e Tempos. Na estrutura de modelos M2, do PTQ, o conjunto de tempos é com-pletamente independente do conjunto de mundos. Isto signi�ca que sempre podemos pular demundo em mundo, ou ir e voltar no tempo, carregando nossos relógios, de forma a saber se oque está acontencendo em qualquer mundo no qual estivermos está temporalmente coordenadoao que está acontencendo em todos os outros mundos. Será que isto é possível? Observe que,se a teoria da relatividade estiver correta, não poderiamos fazer isto nem mesmo num únicomundo: o nosso próprio. As pessoas dão respostas diferentes para perguntas como esta. Algunsdizem: A língua natural foi desenvolvida ou evoluiu num mundo confortavelmente local, ondenão temos de nos preocupar com sutilezas deste tipo. Outros (como eu) dizem: Mas nós usamosas línguas naturais para pensar sobre coisas como estas, para desenvolver teorias sobre física eassim por diante.

Assuntos como estes ilustram um problema conceitual importante: Qual é o estatuto dosconceitos que usamos em nossas teorias? Estaríamos fazendo a�rmações sobre o mundo? Sobrea maneira como entendemos o mundo quando usamos as línguas? Ou o quê? Apesar de nãoter resposta nenhuma para estas perguntas, acho que elas são importantes, e voltarei a elasocasionalmente.

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26 AULA 2. MUNDOS SUFICIENTES E TEMPO

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Aula 3

Nomes e Sintagmas Nominais

O título da aula de hoje foi tomado de um artigo que eu publiquei há já alguns anos. O textofoi escrito quando as vigorosas interações entre linguistas, �lósofos e lógicos estavam apenascomeçando. Neste texto, eu contestei que a estrutura lógica básica das línguas naturais fossesemelhante à das línguas arti�ciais da lógica, de autores como Tarski, Carnap, Reichenbach eoutros; ou seja, basicamente, o tipo de estrutura que vimos aqui com o nome de CP. Atualmente,eu acredito que este ponto de vista é inadequado. Provavelmente, isso foi fruto da minha igno-rância sobre quão ricos são os recursos da lógica moderna. Hoje nós vamos ver em detalhe comoum certo lógico, Richard Montague, resolveu alguns dos complicados problemas que aparecemquando você tenta dar uma explicação precisa e detalhada da sintaxe e da semântica de umalíngua natural como o português. Mas antes de passar a isso, eu gostaria de falar de modo geralsobre alguns assuntos que aparecem quando se tenta dar uma interpretação precisa das línguasnaturais.

O primeiro assunto é a ambiguidade. A língua CP não apresenta qualquer ambiguidade.Dada qualquer fórmula bem formada na língua, é possível mostrar que há uma única interpre-tação que pode ser atribuída à expressão (ignorando por enquanto a questão das atribuiçõespossíveis de valores às variáveis). As línguas naturais não são assim. Muitas expressões � tal-vez, a maioria delas � podem ter muitas interpretações diferentes. Estas ambiguidades podemse manifestar de várias maneiras.

Em primeiro lugar, palavras individuais que têm signi�cados bem diferentes podem soarexatamente da mesma maneira (ou parecerem exatamente a mesma em suas formas escritas).Veja essa senteça:

1. João sentou perto da mangueira.

Como é que poderíamos designar um valor de verdade (relativo a um mundo e a um tempo)para esta sentença? A palavra mangueira tem dois signi�cados bastante diferentes um do outro:um tipo de árvore frutífera e um objeto que nos auxilia a regar plantas e a lavar chão oucarro. Dizendo de outro modo, existem duas palavras � mangueira1 e mangueira2 � que sãopronunciadas (e escritas) da mesma maneira. Assim, um dos tipos de ambiguidade vem do fatode exisitirem muitos homônimos nas línguas naturais em geral: elementos lexicais diferentes quetêm o mesmo som (ou a mesma gra�a). Vamos chamar este tipo de ambiguidade de ambiguidadelexical. (É difícil decidir quando nós temos duas palavras diferentes e quando temos uma sópalavra usada em sentidos diferentes, como em Eu estou morrendo, O carro morreu, e assim pordiante).1

[Digressão sobre a Natureza Fundamental dos Itens Linguísticos. É fácil se confundir sobrequais são as unidades linguísticas ou expressões com as quais temos de lidar quando queremos

1N.T.: Em português, a questão ainda é mais delicada do que em inglês, porque este tem menosmorfologia �exional do que aquele.

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28 AULA 3. NOMES E SINTAGMAS NOMINAIS

tratar um língua precisamente. Precisamos lembrar frequentemente os alunos iniciantes queeles não devem identi�car as palavras com as suas formas escritas. Como linguistas, nos acos-tumamos com a natureza prioritária da fala (ou dos sinais, nas línguas dos surdos-mudos) aopensarmos sobre a língua. Mas temos nossas próprias armadilhas. Não podemos identi�car aforma fonológica de uma expressão com a expressão em si. O linguista suísso Ferdinand de Saus-sure foi muito claro sobre isso: a melhor maneira de conceber um signo linguístico é como umarelação entre som e signi�cado. Em termos mais modernos, podemos pensar em uma expressãolinguística como um feixe de representações: fonológica, sintática, semântica, morfológica e tal-vez mais. Para ajudar a manter com clareza essa idéia fundamental, frequentemente eu associouma expressão com um número arbitrário, o que pode ser concebido como um endereço numdispositivo computacional. Então, a palavra do português que escrevemos como peixe �ca iden-ti�cada com, digamos, A237. Daí nós dizemos que A237 tem uma determinada representaçãofonológica, um determinado feixe de propriedades sintáticas, uma determinada interpretação erepresentação semântica, e assim por diante. De certa maneira, a escrita chinesa modela essetipo de idéia de forma mais precisa � pelo menos em casos idealizados � que o sistema silábicoou o alfabético como os do �nlandês e do japonês. Uma parte do caracter chinês muitas vezesestá relacionada com o signi�cado do item, outra com o aspecto fonológico (�fonético�) do item.]

Mas mesmo quando temos palavras não ambíguas, ou quando �xamos um signi�cado parapalavras ambíguas, ainda assim há casos em que as mesmas palavras dispostas da mesma maneiraparecem expressar diferentes signi�cados e exigem diferentes explicações sobre suas condiçõesde verdade. Consideremos um exemplo que terá alguma importância para um dos pontos maisimportantes desta aula de hoje:

2. Todas as crianças estavam perturbando um tigre.

Falantes de português concordam que esta frase é ambígua. Nós podemos enxergar clara-mente essa ambiguidade se considerarmos duas situações: em uma, para cada criança conside-rada, há pelo menos um tigre que aquela criança esteja perturbando, mas não pode haver umúnico tigre que todas as crianças estivessem perturbando; na outra, há pelo menos um tigre quetodas as crianças estão perturbando. (Estou ignorando e vou continuar a ignorar hoje os temposverbais.) Usando uma língua como o CP, podemos mostrar essas duas interpretações como sesegue:

2'. ∀x∃yPerturbar(x, y).

2�. ∃y∀xPerturbar(x, y).

(Por simplicidade, estas fórmulas ignoram o fato de estarmos falando sobre crianças e ti-gres; assim, no �m das contas, elas querem dizer alguma coisa como a sentença �Tudo estavaperturbando algo�.) Vamos chamar esse tipo de ambiguidade de ambiguidade estrutural.2

O que este exemplo mostra é que não podemos chegar a uma semântica de teoria de modelosadequada para o português apenas através de uma função avaliativa como D, da aula passada.

2N.T.: Em alguns manuais de semântica, é possível encontrar este exemplo classi�cado como �am-biguidade estritamente semântica� (já que ele não se deve nem a uma ambiguidade lexical, nem a umaambiguidade sintática), junto com �todo rapaz quer matar seu pai e casar com sua mãe� (`cada rapaz quermatar seu próprio pai e casar com sua própria mãe', ou `há alguém (identi�cado extralinguisticamente)cujo pai todo rapaz quer matar e com cuja mãe todo rapaz quer se casar'); um exemplo de ambiguidadedevida à estrutura sintática seria o clássico �a mulher viu o homem com os binóculos� (em que podemosidenti�car duas funções sintáticas diferentes para �com os binóculos�: ou como adjunto adnominal de �ohomem�, ou como adjunto adverbial de �viu o homem� (cada uma correspondendo a uma interpretaçãodiferente: na primeira, o homem visto pela mulher está com os binóculos; na segunda, os binóculos sãousados pela mulher para ver o homem).

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Uma função é um pareamento que deve nos dar um único valor para cada argumento que lhe éfornecido. Como podemos resolver este problema?

Aqui parece haver só duas possibilidades. Uma é desistir da idéia de uma função que criauma única denotação para as expressões das línguas naturais. Em geral, o outro jeito é o maisseguido: trata-se de montar algum tipo de representação de diferentes signi�cados ou estruturas;isto é, apresenta-se um nível de representação onde estas diferenças são explicitadas e de�ni-sea função D para esta língua, que deve então ser relacionada à nossa língua original (português,chinês) de alguma maneira. Uma representação como esta às vezes é chamada de forma lógicada língua, mas eu devo alertar que este termo é usado de diversas maneiras. Vamos seguir porenquanto este segundo caminho, mas numa próxima aula vamos retomar a outra opção.

A outra questão geral que eu quero abordar é a da composicionalidade. A idéia aqui (frequen-temente atribuída a Gottlob Frege) é que deve ser possível descobrir os signi�cados (em nossaterminologia, as denotações) das expressões complexas com base nos signi�cados (denotações)das expressões mais simples das quais elas são construídas e na forma que elas são combinadas.Nossa amostra da semântica para o CP seguiu este princípio da composicionalidade como vocêsmesmos podem ver. Ainda há muito a dizer sobre isso, mas vou deixar isso para uma das pales-tras posteriores. Por enquanto, vamos apenas ressaltar um tipo de paradoxo que surge quandopensamos sobre a ambiguidade e a composicionalidade.

É um fato relativo ao uso das línguas naturais que normalmente nós não notamos ambigui-dades até que elas nos sejam apontadas ou que experimentemos uma falha de comunicação. Aresposta mais comum à pergunta sobre porque isso é assim é: em geral, o contexto (tanto olinguístico quanto o fatual) nos informa sobre como nós devemos entender as expressões poten-cialmente ambíguas. Mas isso signi�ca que o signi�cado do todo não é uma parte do signi�cadodas partes! Para obter o signi�cado das partes, nós temos de entender o sgni�cado do todo e atéde contextos maiores onde esse todo está sendo usado. Novamente, há perguntas muito difíceisde serem abordadas aqui, mas eu ainda não vou abordá-las. Por enquanto, eu só peço que vocêscomecem a pensar sobre elas. (Zhuang Zi pensou sobre elas quando perguntou: �Como é que aspalavras podem ser tão obscuras e ainda admitir o certo e o errado?�)

Permitam que eu apresente os principais tópicos da discussão de hoje comparando a estruturado CP, nossa língua simples inicial, com os tipos de sistemas que nós estamos acostumados naslínguas naturais. É comum tanto nas gramáticas tradicionais quanto nas modernas se distinguirvários tipos de palavras ou expressões � no jargão moderno elas são chamadas de categorias,na terminologia antiga partes do discurso. O que encontramos no CP?

Vimos que o CP tem dois tipos principais de expressões simples e um tipo de expressãocomplexa. Aquelas são chamadas de Predicados (de vários subtipos) e de Termos (de doistipos). O tipo de uma expressão complexa é a Fórmula, que se divide em simples (ou atômicas)e complexas. Mas há outras expressões na língua que até agora não apresentam suas própriascategorias; elas são introduzidas apenas através das regras: −, ∨, &, ∀, ∃, (, ).

Agora vamos comparar o CP a uma língua natural como o português. Em primeiro lugar,as línguas naturais têm muito mais categorias: nomes, sintagmas nominais, verbos, sintagmasverbais, adjetivos, sintagmas adjetivais, artigos, demonstrativos, advérbios, preposições e pospo-sições, sentenças, e para cada uma destas categorias e de outras que eu não mencionei existemvários subtipos, sem falar em todos os a�xos gramaticais, partículas e assim por diante.

Os manuais típicos de lógica que tentam facilitar a compreensão da estrutura lógica daslínguas naturais (ou tentam ajudar o aluno a entender sistemas lógicos fazendo referência àslínguas naturais) frequentemente fazem correlações como as seguintes:

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30 AULA 3. NOMES E SINTAGMAS NOMINAIS

LÓGICA LÍNGUAFórmula SentençaPredicado Verbo

NomeAdjetivo

TermoConstante Nome PróprioVariável Pronome

E os outros símbolos, aqueles que foram introduzidos diretamente em nossas regras? (Sevocê quer um nome chique para eles, chame-os de elementos sincategoremáticos.) Alguns delescorrespondem a categorias das línguas naturais, especi�camente, a das conjunções como e e ou.Outros, os parênteses, não; mas eles correspondem aos mecanismos que usamos nas descriçõesgramaticais das línguas naturais (diagramas em árvore, parentetização etiquetada). Os outrosdois � os símbolos do quanti�cador existencial e do universal ∀ e ∃ � não correspondemdiretamente a nenhum item das línguas naturais. Vamos lidar com esta discrepância maisdetalhadamente hoje. Mas ressalte-se que todos estes símbolos apresentam no CP mais oumenos o mesmo papel que muitos dos outros elementos de línguas naturais que consideramoscomo parte da estrutura gramatical da língua: a�xos, partículas e assim por diante. Entendoque a tradição linguística chinesa faz uma distinção entre palavras completas e palavras vazias,e este mesmo tipo de distinção é feita em muitas tradições linguísticas entre léxico e gramátca.Em termos práticos, é mais ou menos assim: se eu quero aprender alguma coisa sobre uma novalíngua, eu vou pegar um dicionário e uma gramática e espero aprender coisas de tipos diferentesdestas duas fontes.

Há uma diferença muito óbvia entre as línguas naturais e o CP que eu ainda não mencioneiexplicitamente. No CP, todas as expressões com conteúdo (as expressões �completas�) são sím-bolos primitivos simples: predicados, constantes individuais (que são como os nomes própriosdas línguas naturais) e variáveis (que são como pronomes). Nas línguas naturais, por outro lado,podemos fazê-las tão longas ou complexas quanto quisermos. Eis alguns exemplos de expressõessimples e complexas que funcionam logicamente como se fossem simples:

3. Maria: a mulher alta que está falando

4. caminha: caminha devagarinho no parque

5. todos: quem quer que ache linguística interessante

Hoje vamos querer ver como nós podemos tratar as línguas naturais que apresentam estesrepresentantes complexos das categorias básicas. Vamos nos concentrar nos nomes complexos enos sintagmas nominais.

Antes de entrarmos nos detalhes, há uma coisinha que vai ser útil discutir. Eu vou introduzi-la primeiro como um adendo ao CP. É uma maneira de juntar fórmulas de um modo análogo aoque temos em línguas naturais para juntar sentenças, com palavras como acarreta ou locuçõescomo se. . . então. . . :

6. Se chove, então esfria.

7. Se Socrates é humano e todos os humanos são mortais, então Socrates é mortal.

No CP, nós podemos introduzir um novo símbolo e uma regra de signi�cado correspondente:

R7. Se F e G são fórmulas, então (F → G) também é.

S7. (F → G) é verdadeiro sse F é falso ou G é verdadeiro.

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(Pela regra S7, pode-se ver que nós podemos deeterminar as condições de verdade das fór-mulas construídas com → em termos de negação e disjunção, ou seja, não e ou.3 Essa relaçãoé, às vezes, chamada de implicação material para enfatizar que é um conceito técnico e que nãocorresponde exatamente ao modo como usamos se. . . então. . . ou acarreta, nas línguas naturais.)Nós vamos precisar desta relação para lidar com as denotações de alguns dos sintagmas nominaiscomo todo peixe. (Para ser exaustivo, acrescento o símbolo para a implicação bidirecional ou �see somente se�: ↔.)

Vamos agora retomar um dos problemas que eu mencionei há pouco: como lidar com nomescomplexos como peixe que vive no mar. De agora em diante, eu vou usar o termo técnico(sintagma de) nome comum, ou (S)NC, para estes itens e suas contrapartes simples, porque naslínguas comuns, assim como em muito da literatura técnica em linguística, a palavra nome serefere a dois tipos de expressões que logicamente são bastante distintas. O mecanismo que éusado em lógica e que nós vamos pegar emprestado para nossa análise das línguas naturais recorreessencialmente às chamadas fórmulas abertas. Uma fórmula aberta é uma fórmula que, em algumlugar, inclui uma variável que não está no escopo de um operador lógico como ∀ e ∃. Entãoum exemplo simples seria Correr(x). Outro, um pouco mais complicado, seria Amar(x, c).Até agora, estas fórmulas tinham sido de�nidas como falsas ou verdadeiras, dependendo daatribuição de valores às variáveis. O que nós queremos é uma maneira de transformá-las empredicados, ligando qualquer variável livre, ou não-ligada. Uma vez mais, podemos introduzireste novo tipo de expressão através de uma nova regra para o CP e acrescentar uma regrasemântica correspondente dizendo o que ele signi�ca. Deixe-me primeiro dizer em prosa o quese espera deste novo signi�cado: suponha que x é a variável que deve ser ligada pelo nosso novooperador, então a expressão inteira deve se tornar um predicado que se aplica a um indivíduo sóse a fórmula for verdadeira quando consideradas as atribuições nas quais se atribui a x aqueleindivíduo como valor (tudo o mais �cando igual). Eis a nova regra:

R8. Se F é uma fórmula e x é uma variável, então λx[F ] é um predicado.4

S8. λx[F ](a) é verdadeira numa atribuição g sse, para todas as atribuições g′ que diferem deg na atribuição de um valor para x e tal que g′(x) é o indivíduo denotado por a, F forverdadeira.

Lamento ter que dizer isso deste jeito tão complicado. Mas deixa eu dar alguns exemplospara esclarecer o que eu disse:

8. λx[Correr(x)](a) é verdadeira sse o indivíduo denotado por a, digamos que seja a Ana,estiver correndo.

9. λx[Amar(x, b)] denota o conjunto de indivíduos que amam o indivíduo denotado por b.

Como se pode ver, o signi�cado da expressão-λ no exemplo 8 é exatamente o mesmo que odo próprio predicado Correr, assim, aqui o nosso novo operador ainda não está servindo paramuita coisa. O exemplo 9 mostra como podemos usar o novo operador para formar expressõescom signi�cados que não conseguíamos expressar antes. O exemplo seguinte vai fazer isso �carainda mais evidente. Já que F pode ser qualquer fórmula, mesmo uma muito complexa, nóspodemos formar predicados arbitrariamente complexos:

10. λx[(Peixe(x) & Amar(x, b))]: o conjunto de indivíduos que são peixes e amam o indivíduodenotado por b.

3N.T.: Esta mesma regra de interpretação poderia ser escrita em termos de negação e conjunção:(F → G) é verdadeira sse não ocorre de F ser verdadeiro e G não ser verdadeiro.

4N.T.: No texto original, ao invés da letra grega �λ�, usava-se a palavra �LAMBDA�, devido alimitações tipográ�cas; aqui preferimos a gra�a mais típica com a letra grega.

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32 AULA 3. NOMES E SINTAGMAS NOMINAIS

Como mostra este exemplo, nosso novo operador é muito útil para modelar o signi�cado desintagmas nominais comuns em línguas naturais que usam orações adjetivas e outros tipos demodi�cadores de sintagmas nominais comuns; assim, a denotação da expressão no exemplo 10chega bem perto de nos dar o signifcado de uma expressão da língua portuguesa como 11:

11. peixe que ama Beatriz. . .

(Devo ressaltar que o operador λ está sendo usado aqui em somente uma de suas váriaspossibilidades: para formar expressões que denotam conjuntos a partir de fórmulas abertas quecontêm a variável livre apropriada. Mais genericamente, o operador λ é usado para construirnomes de funções, funções que tomam como argumento qualquer expressão do mesmo tipo davariável e resultam em expressões do mesmo tipo da expressão que está entre colchetes. Assim,nós podemos usar a mesma notação para nomear a função de números para números, tal comoa função de dar o quadrado ou a função que soma 2 ao número para chegar a um novo número:λx[x + 2]. Por enquanto, nós vamos usar o operador só para formar expressões que designamconjuntos. Perceba que, como de costume, estou identi�cando aqui um conjunto com uma funçãoque toma indivíduos que podem estar nesse conjunto e resulta em valores de verdade; isto é, oque é tecnicamente chamado de função característica do conjunto.)

Outro exemplo exatamente do mesmo tipo poderia ser usado para modelar o predicadocomposto destacado no seguinte exemplo:

12. Marina caminha e fala: λx[(Caminhar(x) & Falar(x))](m).

Então algo como esse operador de ligação é um bom recurso para simbolizar a forma lógicade muitas expressões complexas das línguas naturais como o português e foi de fato usado porMontague para lidar com os dois tipos de exemplos que eu dei acima: sintagmas nominaiscomplexos com orações relativas, e conjunções de predicados com e e ou. Vamos agora passarpara o segundo tipo de expressão mencionada no título desta aula: sintagmas nominais.

O desenvolvimento do cálculo de predicados e de sua teoria da quanti�cação foi um dostriunfos da tradição lógica moderna na Europa. Os nomes mais intimamente associados a estedesenvolvimento são os de Frege, Whitehead e Russell, e Tarski. Esse desenvolvimento foiparte da lógica formal moderna, no qual importantes partes da lógica receberam uma formaprecisa. Ainda que as línguas naturais sempre tenham sido uma fonte de inspiração ao longo dahistória da lógica, o objetivo dela geralmente não era a análise das línguas naturais, mas sim aanálise da dedução presente, em especial (atualmente) o tipo de dedução comum nas disciplinasmatemáticas.

Muitos dos �lósofos e dos lógicos que tomaram parte nesse desenvolvimento, como eu jádisse, aceitavam o ponto de vista segundo o qual as línguas naturais eram por demais obscuras,ambíguas e mal estruturadas para que elas pudessem receber o tipo de tratamento que elesestavam propondo para a lógica. E alguns deles achavam que estavam fornecendo alguma coisacomo um instrumento para demonstrar como deveria ser a verdadeira forma lógica das línguas, seelas fossem absolutamente bem comportadas. Assim, de certa forma, a atitude deles em relaçãoà língua era revisionista. A estrutura das línguas naturais, na concepção deles, era responsávelmais por obscurer do que esclarecer a forma lógica necessária para pensar cuidadosamente sobreo raciocínio e a argumentação. Em lugar nenhum esta atitude �cou mais evidente do que nafamosa análise das descrições de�nidas de Bertrand Russell. Deixa-me dedicar uns minutos auma resenha desta análise.

A questão em jogo aqui é a análise de sentenças como as do exemplo 13:

13. O rei da França é careca.

Não vou me preocupar com o problema de saber se esta sentença deve ser considerada falsa ouindeterminada caso a França não tenha rei, um assunto muito importante na interpretação das

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descrições de�nidas; mas esta é uma outra questão. Russell achava que ela devia ser consideradafalsa (eu voltarei a falar disso na próxima aula). Ao invés disso, eu estou preocupado com aanálise da forma lógica do sintagma nominal o rei da França. De acordo com Russell, a sentença(13) faz três alegações: primeiro, que há um rei da França; segundo, que há somente um rei daFrança; terceiro, que ele é careca. Vamos combinar de usar RF para simbolizar o predicado quevale para um indivíduo se, e somente se, este indivíduo for rei da França. Assim, a forma lógicada sentença proposta por Russell pode ser escrita na língua do CP como no exemplo 13':

13'. ∃x(RF (x) & ∀y(RF (y)→ x = y) & Careca(x)).

Em prosa: há um indivíduo x que é rei da França, e se qualquer indivíduo é rei da França,então ele é idêntico a x, e x é careca. (Aqueles que se preocupam com os detalhes técnicos vãoperceber que esta fórmula não está bem formada segundo as regras que temos para o CP: parasimpli�car, eu usei o sinal de igualdade �=� da maneira habitual ao invés de usar um predicadode dois lugares como Igual, e eu usei & para juntar três fórmulas, ao invés de apenas duas. Oprimeiro desvio pode ser considerado simplesmente uma abreviação; o outro é aceitável porquenós podemos mostrar que a maneira que agrupamos uma série de fórmulas em pares, contantoque elas tenham os mesmos conectivos (& ou ∨), não importa.)

Agora como você pode ver comparando os exemplos 13 e 13', a forma lógica proposta porRussell tem muito pouca semelhança com a forma da sentença em português. A diferença maisrelevante é que o sintagma nominal o rei da França foi dividido em diversas partes ao longo dafórmula. A mesma coisa vale, de uma maneira um pouco menos evidente, em uma sentença quenós vimos anteriormente e à qual, agora, podemos dar uma simbolização mais completa:

2. Toda criança estava perturbando um tigre.

Se nós ignorarmos, por enquanto, os problemas do tempo e do aspecto, nós podemos apre-sentar uma das leituras (relativa ao exemplo 2) da seguinte maneira:

14. ∀x(Criança(x))→ ∃y(Tigre(y) & Perturbar(x, y)).

Ou seja, para toda e qualquer coisa era verdade que, se esta coisa era uma criança, entãohavia uma outra coisa, que era um tigre que ela estava perturbando. Mais uma vez, não háunidades ou constituintes da fórmula lógica que correspondam aos sintagmas nominais todacriança e um tigre do português.

Mas se há uma coisa na qual eu acredito sobre universais na sintaxe, é que todas as línguas,não importa quão diferentes sejam suas estruturas, têm um tipo de constituinte ou categoria quechamamos de sintagma nominal; e, além disso, eu creio que em todas as línguas esta categoriainclui não só coisas como nomes e pronomes (como no CP), mas também expressões como trêspeixes, toda criança e algum tigre. (Eu não quero dizer que a estrutura interna destes sintagmasnominais seja constante de língua para língua. Isto claramente não acontece.) Se as línguados lógicos, como o CP, estivessem chegando ao cerne da estrutura lógica das línguas, não seriaestranho que as línguas naturais apresentassem maneiras tão diferentes de expressar as coisascomo nos exemplos de 2 e 13?

Na próxima parte desta aula, eu gostaria de mostrar a maneira pela qual Montague resolveueste problema de modo a fazer jus à real estrutura das línguas naturais e às inquestionáveisdiferenças lógicas que existem entre sintagmas nominais simples, como Murilo, por um lado, eoutros mais complexos, como todo peixe ou um tigre, por outro. Mas primeiro, vou recolocaro problema do ponto de vista dos linguistas. Eu disse que, em português (e poderíamos dizer,em todas as línguas), tanto os sintagmas nominais simples quanto os complexos aparecem nosmesmos tipos de posições: eles podem ser sujeitos ou objetos de verbos, objetos de preposições,e assim por diante. Se nós esperarmos algum tipo de relação lógica entre as categorias sintáticas

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34 AULA 3. NOMES E SINTAGMAS NOMINAIS

e os tipos de signi�cados ou denotações que eles têm e se nós considerarmos o tipo de estruturaque os lógicos atribuem a uma língua como o CP se aproxima da estrutura lógica básica daslínguas naturais, então a generalização sintática que eu acabei de fazer a respeito dos sintagmasnominais é intrigante, se não for um problema. De fato, a teoria geral de Montague sobre aslínguas o levou mesmo a esperar tal relação regular entre sintaxe e semântica. Há esta relaçãoregular entre o CP e a interpretação que nós demos a ela. Lembre-se de que a tese de Montaguedefendia que as línguas naturais poderiam ser tratadas como sistemas formais interpretados, damesma forma que os cálculos lógicos. Encontra-se uma a�rmação deste tipo em seu primeirotexto sobre as línguas naturais, �English as a formal language� (1970: 6º capítulo em [11]):

15. �Eu refuto a alegação de que exista uma diferença teórica importante entre as línguasnaturais e as línguas formais.�

(Para entender exatamente a importância desta refutação, deve-se compreender que Montagueestá falando como lógico e �lósofo e que a palavra teórica deve ser entendida deste ponto devista, e não do ponto de vista do linguista empírico, para quem há indubitavelmente muitas�diferenças teóricas importantes� entre as línguas naturais, como o português e o chinês, e aslínguas como o CP. Eu descon�o que o que Montague queria dizer era mais ou menos o que eucitei na primeira aula como a tese de Montague.)

A idéia que Montague usou para resolver o problema que estamos vendo já podia ser reco-nhecida no �lósofo Leibniz. Nós podemos parafraseá-la assim:

16. Duas coisas são idênticas sse todas as suas propriedades são as mesmas.

(Alguns professores que eu conheço gostam de usar um exemplo tirado de histórias de detetivepara explicar isso: o detetive acha que existem duas pessoas diferentes A e B, e ele acredita queA é o assassino. No decorrer da história, o detetive vai descobrindo que A e B têm cada vez maispropriedades em comum, e �nalmente formula a hipótese de que eles têm todas as propriedadeem comum, sendo portanto, a mesma pessoa.)

A maneira como Montague adaptou esta idéia foi interpretando os sintagmas nominais unifor-memente como conjuntos de propriedades. Para tomar primeiro um exemplo simples, podemosperceber que os dois modos de falar a seguir são equivalentes:

17. Murilo pertence ao conjunto dos que caminham.

18. A propriedade de ser algo que caminha pertence ao conjunto de propriedades que Murilotem.

Estou desconsiderando aqui alguns detalhes técnicos, relativos às diferenças entre propriedadese conjuntos na teoria de Montague. Eles não são importantes no presente contexto (mais tarde,porém, serão), então deixe-me recolocar o que eu disse de uma forma que se adeque mais às es-tipulações anteriores. Digamos (temporariamente) que os sintagmas nominais são interpretadoscomo conjuntos de conjuntos, o que nos obriga a reformular a sentença 18 como a sentença 19(no entanto, hoje vou continuar a usar as duas maneiras de falar sobre conjuntos de conjuntose sobre conjuntos de propriedades, uma pela outrta):

19. O conjunto daqueles que caminham é membro do conjunto de conjuntos ao qual Murilopertence.

Esta é uma idéia muito poderosa e muito profícua. Eu vou me concentrar nela pelo resto daaula de hoje e durante a maior parte da próxima aula também. Por enquanto, vamos ver comoMontague usou esta idéia para lidar com os sintagmas nominais complexos, como toda criançae um tigre.

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Primeiro, procure imaginar que tipo de conjunto de conjuntos poderíamos atribuir comodenotação ao sintagma nominal toda criança. Consideremos duas crianças, Ana e Beatriz, cadauma delas com seu único conjunto de propriedades. Eles devem ser únicos, se a idéia de Leibniz(exemplo 16) estiver certa, e se Ana e Beatriz forem crianças diferentes; nós podemos ter certezade que eles vão ser diferentes em pelo menos duas propriedades: a de ser idêntico a Ana e a de seridêntico a Beatriz. Quais de suas propriedades nós queremos por no conjunto de propriedadesque atribuímos a toda criança? Parece claro que nós queremos deixar neste conjunto somenteaquelas propriedades que elas têm em comum, e deixar de fora aquelas em que elas diferem. Istoé, em termos técnicos, nós queremos manter as propriedades que estão na intersecção dos doisconjuntos de propriedades. Suponha agora que nós fôssemos acrescentando mais crianças, umaa uma, mantendo no conjunto que estamos construindo somente a intersecção do novo conjuntocom o que nós já temos, e deixando de fora as propriedades que são diferentes. Se passarmosagora para todas as crianças, nós veremos que a resposta para a nossa pergunta é: o conjunto depropriedades que nós queremos associar com o sintagma nominal toda criança é a intersecçãodos conjuntos de propriedades de todas as crianças. Ou, em outras palavras:

19. A denotação de toda criança é o conjunto de propriedades que todas as crianças têm emcomum.

O que há neste conjunto? Bem, nós podemos ter certeza de que a propriedade de ser umacriança, pelo menos, deve fazer parte dele. O que mais? A resposta a esta pergunta, repito, nãodeve ser procurada na linguística. Se todas as crianças gostam de brincar, então a propriedadecorrespondente vai fazer parte deste conjunto. Assim como a propriedade de ser uma pessoa,e assim por diante. Mas tudo o que precisamos para construir uma semântica explícita para oportuguês é a idéia deste conjunto para que possamos fazer jus à estrutura lógica do portuguêse à sua estrutura sintática.

Estamos prontos agora para mostrar como a análise da semântica do sintagma nominal feitapor Montague nos permite tratar exemplos simples e complexos de maneira uniforme. Considereessas duas sentenças:

21. Murilo fala.

22. Toda criança fala.

A sentença 21 é interpretada como a sentença 21' e a sentença 22 como 22':

21'. A propriedade de falar é membro do conjunto de propriedades que Murilo tem.

22'. A propriedade de falar é membro do conjunto de propriedades que toda criança tem.

Vejamos agora a interpretação de um tigre. Talvez você já possa advinhar a resposta. Dadonosso objetivo de fornecer uma denotação de tipo uniforme a todos os sintagmas nominais, nóssabemos que a resposta é um conjunto de propriedades. Qual conjunto? Mais uma vez, vamospartir de um universo muito pequeno onde só há dois tigres, A e B. Considere esta sentença:

23. Um tigre está rugindo.

Para que isso seja verdade, deve ser verdade que algum tigre tem a propriedade de rugir. Entãonós podemos tomar os dois conjuntos de propriedades de A e de B, e formar sua soma ou união;isto é, o conjunto de propriedades que está em um dos conjuntos, no outro ou em ambos, é istoque precisamos considerar. E mais uma vez, à medida que expandimos nosso universo de formaa incluir mais tigres, nós repetimos essa operação para formar uniões. Assim, a denotação dosintagma nominal um tigre é a união dos conjuntos de propriedades de todos os tigres existentes.Então, se todos os tigres são listrados este conjunto vai conter a propriedade de ser listrado,

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36 AULA 3. NOMES E SINTAGMAS NOMINAIS

mas também vai incluir a propriedade de ser um tigre macho e ser um tigre fêmea e também apropriedade de ser idêntico a A e de ser idêntico a B. Nós podemos dizer a mesma coisa de umamaneira que é um pouco mais literal com relação ao que Montague disse no PTQ :

24. A denotação de um tigre é o conjunto de propriedades P tal que há algum tigre que tema propriedade P .

Agora nós podemos mostrar novamente como esta interpretação permite dar uma interpre-tação completamente paralela aos nossos sintagmas nominais (compare 21 e 22' acima):

25. Um tigre fala.

25'. A propriedade de falar é membro do conjunto de propriedades que algum tigre tem.

Vamos agora retornar à língua formal que estamos construindo com base no CP. Nós que-remos saber se podemos lidar com os novos tipos de interpretação que Montague atribuiu aossintagmas nominais nesta língua formal. A resposta é �não�. O motivo está na sentença 24, ondeeu tentei dizer claramente em português o que o sintagma nominal um tigre denota. Você deveter percebido que eu lancei mão de um jeito pouco natural de falar, para tentar ser mais simples eclaro. Estou me referindo especi�camente à variável P . Se você voltar à minha descrição formalpara a língua do cálculo de predicados CP, você vai lembrar que nós tínhamos variáveis, mas elasse referiam estritamente a indivíduos, como eu, você ou esta mesa. Para ter uma língua formalque nos dê uma maneira de representar o tipo de interpretação que Montague queria dar aossintagmas nominais, nós precisamos poder usar variáveis para conjuntos ou propriedades. Estaé uma diferença crucial entre línguas como o CP (conhecidas como línguas de primeira ordem)e a língua usada por Montague para traduzir e �nalmente interpretar o português (que é umalíngua de ordem superior). Se esta é a maneira correta de proceder, então nós aprendemos umacoisa importante sobre a semântica das línguas naturais, e sua discussão suscita uma questãogeral importante que nós não podemos esquecer:

26. Qual é o poder expressivo das línguas naturais?

Minha inclinação como linguista, e como alguém continuamente admirado pela beleza e pelopoder das línguas naturais, é esperar que a resposta a essa pergunta seja alguma coisa como:

27. As línguas naturais são tão expressivas quanto nós, seus usuários, quisermos que elassejam.

Mas a discussão acima dá uma pista de como nós podemos chegar com razoável precisão aperguntas e respostas interessantes para este tipo de questão usando as ferramentas da lógicamoderna e da semântica formal.

Montague empregou livremente estas variáveis de ordem superior para propriedades (e atéalgumas de ordem ainda mais superior). Além dos dois tipos de sintagmas nominais complexosque eu ilustrei (com todo e com um), ele também forneceu uma análise exatamente deste mesmotipo para sintagmas nominais como o tigre, que reproduzia a análise de Russell, em termosde conjunto de propriedades. Assim, o exemplo 13, sobre o rei da França, recebe a seguinteinterpretação:

13�. A propriedade de ser careca é membro do conjunto de propriedades que (o único indivíduoque é) o rei da França tem.

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Se eu estivesse oferecendo um curso sobre Gramática de Montague, agora eu provavelmenteiria reservar um tempo para mostrar como estender o CP para que seja possível exprimir a�r-mações sobre conjuntos de conjuntos ou propriedades. Mas eu quero evitar formalizações com-plicadas tanto quanto possível, para que possamos nos concentrar nas idéias importantes semnos distraírmos com detalhes. (Para compreender aquilo de que tratamos hoje, tudo o que vocêrealmente precisa é de um conjunto de variáveis para conjuntos ou propriedades � Montagueusou P s e Qs (continuando a tratar os dois termos conjunto e propriedade como sinônimos, aocontrário de Montague) � e uma extensão na qual se usa o operador λ para ligar estas novasvariáveis. Então, o conjunto das propriedades de Murilo, isto é, a denotação de Murilo, seriasimbolizada da seguinte forma (usando m como constante denotando Murilo): λP [P (m)].)

Para os quanti�cadores clássicos (universal e existencial) do cálculo de predicados, o trata-mento de Montague acaba sendo totalmente equivalente, em termos de condições de verdade,às formulações típicas (e portanto, ao adotar a análise de Russell, também para as descriçõesde�nidas como o rei da França), bem como para a análise de sintagmas nominais simples comoMurilo. Vamos nos conceder um momento para nos convencermos desse fato. Lembre-se queuma sentença como �Um tigre caminha� é verdadeirda em um mundo e em um tempo só no casode haver algum indivíduo tanto no conjunto denotado por tigre quanto no conjunto denotado porcaminha naquele mundo e naquele tempo. A nova maneira alternativa de expressar isso diz quea mesma sentença é verdadeira (em um mundo e em um tempo) só se a propriedade de caminharestiver na união dos conjuntos de propriedades de todos os indivíduos que são tigres (naquelemundo e naquele tempo). Acho que você já deve ter percebido que as duas interpretações vãoser verdadeiras exatamente nas mesmas circustâncias, isto é, nos mesmos mundos e nos mesmostempos. Consequentemente, as duas interpretações serão logicamente equivalentes. (Agora vourecordar o que eu disse na primeira aula. Dizer que duas fórmulas ou sentenças são logicamenteequivalentes, em termos de teoria dos modelos, é dizer que elas são verdadeiras exatamente paraos mesmos modelos, e falsas também exatamente nos mesmos modelos.)

Nós acabamos de passar pelo que é essencial da teoria de Montague sobre a interpretação desintagmas nominais. Eu gostaria agora de dispensar algum tempo para mostrar como Montaguedesenvolveu um tratamento do português que dá conta dos tipos de ambiguidades de escopoenvolvendo os quanti�cadores que vimos anteriormente (os exemplos sobre crianças e tigres).

Como pano de fundo para esta exposição, vou relembrar a discussão da composicionalidadeda parte inicial desta aula. Vamos aprimorar um pouco esta idéia, formulando-a como uma tese:

28. Composicionalidade: a interpretação de uma expressão complexa é uma função da inter-pretação das partes das quais ela é composta e da maneira como são combinadas.

Vou também relembrar nossa discussão sobre como abordar o problema da ambiguidadenas línguas naturais. Eu disse que a maior parte das teorias linguísticas, inclusive as teoriasassociadas ou derivadas da teoria transformacional de Noam Chomsky e de seus colaboradores,presumem que certos tipos de ambiguidade, incluindo as ambiguidades de escopo que queremosinvestigar agora, são atribuídas, em algum nível de representação, a estruturas diferentes. Mashá outra maneira de satisfazer a exigência da composicionalidade que não segue esse métodomais comum. A idéia central, como tantas outras nas teorias atuais sobre lógica e semântica, éatribuída a Frege. Em tempos mais recentes, porém, foi o �lósofo Peter Geach [6] quem indicouum modo de pensar sobre esse problema que foi adotado e aprimorado por Montague no PTQ.Primeiro, eu vou retomar um pouco da discussão de Geach e depois mostrar como Montague aaprimorou.

A idéia central de Geach (baseando-se tanto na tradição clássica dos gregos antigos quantono trabalho dos �lósofos europeus medievais) era a seguinte. Considere a sentença 29.

29. Murilo ama Marina.

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38 AULA 3. NOMES E SINTAGMAS NOMINAIS

Podemos imaginar que haja duas maneiras possíveis para compor esta sentença em sua últimaetapa de derivação construtiva. Nós podemos representar cada uma destas duas formas conformeos exemplos 29' e 29�.

29'. Murilo + ama Marina.

29�. Murilo ama + Marina.

Aqui, as lacunas mostram onde as partes remanecentes das sentenças devem ser inseridas. Emambos os casos, temos um sintagma nominal mais alguma outra coisa (uma sentença na qualfalta um sintagma nominal, só que em posições diferentes). Efetivamente, esta segunda parteé uma sentença aberta, que deve ser interpretada de algum modo. Devemos agora ser capazesdizer exatamente como é preciso interpretar estas sentenças abertas de modo a combiná-las coma denotação de um sintagma nominal (um conjunto de conjuntos, ou propriedades) de formaa obter uma denotação adequada para a sentença resultante. Evidentemente, o que queremosfazer é interpretar a sentença com uma lacuna como uma propriedade ou conjunto, e isso éexatamente o que o operador λ nos permite fazer. Então, para cada uma das duas maneiras deeleborar a sentença 29, teremos estas duas interpretações:

30. A propriedade de amar Marina é membro do conjunto de propriedades de Murilo (para29').

31. A propriedade de ser amada por Murilo é membro do conjunto de propriedades de Marina(para 29�).

Geach enfatizou que estas duas maneiras de eleborar as sentenças não presssupõe de formaalguma a existência de qualquer diferença sintática entre elas. (A idéia de que podemos associardois signi�cados a duas formas diferentes para a construção do mesmo objeto é que está sendoatribuída aqui por mim a Frege.) Perceba que o que nós acabamos de fazer está de acordocom as exigências da tese da composicionalidade apresentada na sentença 28. Em cada caso,nós podemos dizer precisamente qual será a denotação do todo com base na denotação de suaspartes e na maneira pela qual elas são combinadas. Podemos chamar este ponto de vista deteoria derivacional da interpretação, porque ele está baseado na maneira pela qual derivamosum estrutura, e não nas propriedades da estrutura em si. A segunda maneira, que demandaestruturas diferentes para intepretações diferentes, pode ser chamada de teoria con�guracionalda interpretação. O ponto de vista derivacional é às vezes chamado de hipótese regra-a-regra,porque está explicitamente estipulado na exigência de Montague de que toda regra sintática sejaassociada a uma única regra semântica.

Bom, no exemplo simples que acabamos de ver, a maneira pela qual derivamos um sentençanão é importante. Se você re�etir um pouco acho que você vai concordar que as sentenças 30 e31 vão valer ou não nos mesmos mundos. Mas se nos voltarmos para sintagmas nominais maiscomplexos, então poderemos ver imediatamente como a ordem da derivação vai, de fato, fazerdiferença e qual é precisamente o tipo de diferença com a qual estamos nos preocupando emnossa discussão com crianças e tigres. Eis duas representações esquemáticas dos passos �naisdas duas derivações do exemplo 2 do dee acordo com o PTQ de Montague:

2. Toda criança estava perturbando um tigre.

2'. Toda criança + estava perturbando um tigre.

2�. Toda criança estava perturbando + um tigre.

Podemos parafrasear estas duas intepretações em português da seguinte forma:

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32. (2'.) A propriedade de perturbar um tigre estava no conjunto de propriedades de todacriança.

33. (2�.) A propriedade de ser perturbado por toda criança estava no conjunto de propriedadesde algum tigre.

E novamente, estas duas interpretações diferem da maneira correta, de forma a corresponder àambiguidade discutida anteriormente. Além do mais, mostramos como é possível desenvolveruma teoria derivacional e composicional para dar conta da ambiguidade que faz a mesma coisaque tem o mesmo efeito que o estabelecimento de estruturas diferentes em teorias con�guracionaisde interpretação, do tipo adotado tanto no meu texto de 1968 [1] (no nível da estrutura profunda)quanto nas teorias atuais de Chomsky e seus associados (onde este tipo de diferença é expressonum nível de representação chamado FL, de forma lógica).

Mais uma vez, apresentamos aqui muita coisa numa exposição relativamente breve. Tenteienfatizar as idéias mais importantes de Montague, sem me perder nos detalhes técnicos formais.Na verdade, agora nós já falamos sobre tudo o que é essencial na teoria de Montague para ainterpretação do português através da teoria de modelos, com exceção de uma grande questão.Nós vamos deixar esta exceção para uma próxima aula, mas deixa eu apresentar uma préviadela. Dizendo rapidamente, até agora nós nos preocupamos apenas com a parte da teoria que éadequada para situações onde estamos lidando com crianças de verdade e tigres reais (quandoelas existem realmente). Eu expus a teoria de Montague para a interpretação de sintagmasnominais, mas só mostrei como eles funcionam nos chamados contextos extensionais. Para sermais concreto, temos ao nosso dispor apenas o su�ciente para lidar com sentenças como 34,quando há algum unicórnio especí�co que Marina esteja procurando.

34. Marina está procurando um unicórnio.

Mas esta sentença claramente aceita uma interpretação bastante diferente, na qual não hánenhum unicórnio, e na qual nem nunca houve nem nunca vai haver nenhum unicórnio, mas naqual Marina ainda pode estar procurando verdadeiramente um unicórnio. Esta interpretaçãosuscita a questão sobre objetos e contextos intensionais, e eu vou voltar a isso na quinta aula.Na próxima aula, vamos rever as interpretações que Montague para os sintagmas nominais,enquanto conjuntos de propriedades, mas de uma forma mais geral. Veremos que esta teoriateve implicações surpreendentes e produtivas para o estudo da semântica das línguas naturais.

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40 AULA 3. NOMES E SINTAGMAS NOMINAIS

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Aula 4

Quanti�cadores generalizados

Na aula anterior, eu apresentei a teoria de Montague sobre a interpretação dos sintagmas no-minais. Sintagmas nominais são interpretados como conjuntos de conjuntos ou conjuntos depropriedades: Murilo é interpretado como o conjunto de conjuntos ao qual Murilo pertence oucomo o conjunto de propriedades que Murilo tem. Eu usei estas duas maneiras de falar alterna-damente uma pela outra. Hoje eu quero colocar esta teoria dentro de um contexto maior. Seriamais claro e mais conveniente para nós se escolhermos o primeiro forma de falar e nos ativer-mos a ela, então hoje eu vou falar apenas sobre conjuntos de conjuntos. (Às vezes, os autorespreferem falar de famílias de conjuntos para deixar claro que eles estão pressupondo um sistemaque evita paradoxos que surgem quando falamos de modo demasiado livre sobre conjuntos deconjuntos, mas eu vou continuar dizendo mesmo �conjuntos de conjuntos� por simplicidade euniformidade).

Antes de entrarmos no assunto principal de hoje, eu gostaria de revisar algumas idéias geraissobre conjuntos, relações entre conjuntos e conceitos semelhantes. Eu evitei de falar sobreconjuntos e funções em vários momentos das aulas anteriores. Acho que seria bom retrocederum pouco e rever estas idéias com um pouco mais de detalhe.

A noção de conjunto e a teoria matemática de conjuntos são ambas básicas para uma grandeparte da lógica e da matemática moderna. Na verdade, há um importante programa de pesquisaque busca fundamentar toda a matemática na teoria dos conjuntos. A noção básica da teoriade conjuntos é a de pertencer a um conjunto. A partir desta noção primitiva, podemos de�nirrelações importantes entre conjuntos. Um conjunto A é um subconjunto de outro conjunto B see somente se todo membro de A também for membro de B. O conjunto vazio ∅ é o conjuntoque não possui nenhum membro; o conjunto universal U é o conjunto ao qual todas as coisaspertencem. (Em nossa estrutura de modelo, nós estivemos chamando este conjunto universalde E.) A intersecção de dois conjuntos é o conjunto de coisas que são membros de ambosos conjuntos; sua união é o conjunto de coisas que são membros de ambos os conjuntos. Ocomplemento de um conjunto é o conjunto de coisas (de U) que não estão no conjunto, e assimpor diante.

Na primeira aula, nós usamos este tipo de jargão quando sugerimos uma interpretação aospredicados do CP, e na última aula nós também usamos estas idéias para falar sobre as interpre-tações que Montague atribuiu para os nomes comuns (conjuntos de coisas) e para os sintagmasnominais (conjuntos de conjuntos de coisas). Na primeira aula, quando eu falei da interpretaçãode verbos transitivos como amar e ver, eu também falei a respeito de conjuntos, mas desta vezde conjuntos de pares ordenados; eu poderia ter continuado e falado de triplas ordenadas paraverbos como dar. Destas observações, podemos constatar que há uma relação muito próximaentre o tipo de estrutura resultante quando falamos sobre uma língua formal como o cálculo depredicados e o tipo de estrutura que nós temos na teoria dos conjuntos. Por exemplo, somentea partir das nossas explicações dos conectivos lógicos & e ∨ (e e ou), e do que eu acabei dedizer sobre interseções e uniões de conjuntos, é que se pode ver a relação: a intersecção de dois

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42 AULA 4. QUANTIFICADORES GENERALIZADOS

conjuntos é o conjunto de coisas que está no primeiro conjunto e no outro também; a união é oconjunto de coisas que está no primeiro conjunto ou no segundo. (Pense também no não e nacomplementação, e sobre a relação entre o se . . . então (→) e a inclusão de conjuntos.)

Eu também falei liberalmente sobre as funções. Espero ter usado esta palavra consistente-mente no sentido preciso que ela tem em matemática e em lógica, pelo menos nos contextos emque este sentido era importante. Mais uma vez, trata-se de uma idéia fundamental na mate-mática e, em minha opinião, na teoria lingüística também. Então vou dedicar alguns minutospara esclarecer de seu signi�cado. Uma função (de um argumento) é uma relação entre doisconjuntos tal que para cada elemento do primeiro conjunto há (no máximo) um único elementodo segundo conjunto com o qual ele mantém esta relação. Em outras palavras, uma função é ummapeamento de um conjunto (seu domínio) que chega a um único membro de um segundo con-junto (este conjunto é chamado de imagem ou contra-domínio). Dizemos que as funções tomamargumentos para resultar em valores. Conseqüentemente, dada uma função e um argumento queestá no seu domínio, nós obtemos um único valor quando aplicamos a função ou o mapeamentopara aquele argumento. Matemáticos e lógicos adoram os conjuntos e as funções, e Montaguenão fugia a essa generalização. Suas estruturas de modelo para interpretar as línguas, tanto asnaturais quanto as arti�ciais, são construídas a partir de conjuntos e de funções. Juntando tudoo que eu acabei de dizer sobre conjuntos e relações, mais o que eu disse sobre funções, concluímosque uma relação binária (de dois lugares) é um conjunto de pares ordenados, e uma função é umtipo especial de relação ou de conjunto de pares ordenados: especi�camente, aqulela na qual sevocê olhar para dois elementos que tenham o mesmo primeiro membro do par, então o segundosempre vai ser o mesmo. Em geral, uma função pode ter muitos nomes diferentes e pode serde�nida de muitas maneiras diferentes. Mas se você acaba com os mesmos pares ordenados,neste nosso sentido matemático, será sempre a mesma função. Esta característica das funçõesmatemáticas vai ser muito importante para nossa próxima aula, e eu vou relembrar então isto avocês. Este é o ponto de vista que Montague seguiu. Há nele uma clareza e uma beleza inerente,mas é também uma possível fonte de problemas.

Estas idéias se estendem a relações entre mais de dois conjuntos. Em geral, uma função den lugares é uma relação de n + 1 lugares, onde para qualquer n-upla ordenada de elementosque formam os primeiros n lugares, nós sempre obtivermos o mesmo (n + 1)-ésimo elemento.Então, junto com funções de um lugar como a função de camisas para tamanhos de camisas,nós podemos ter funções de dois lugares de pares de sapatos para seus tamanhos, ou de gêmeospara mães, e assim por diante. Eis um fato importante sobre as funções com muitos lugares,que Montague usou em sua análise do inglês:

1. Dado qualquer função de n lugares onde n é igual ou maior a dois, pode-se achar umasérie equivalente de funções (que tomam funções) que obtêm o mesmo resultado passo apasso (i.e., com uma função de cada vez).

Um exemplo disso é dado pelas análises que Montague fez dos verbos do inglês (aqui tra-duzidas para o PB) que correspondem aos predicados de dois lugares de nossa líingua formal,o CP. De acordo com 1, podemos pensar na denotação de ver não só como uma relação dedois lugares entre indivíduos (uma função de pares ordenados para valores de verdade), masequivalentemente como uma função de um lugar de indivíduos para conjuntos. Esta maneira deabordar corresponde à análise sintática lingüisticamente motivada da língua natural que diz queo exemplo 2 tem a análise do exemplo 3:

2. Maria vê João; e

3. Maria + vê João;

e que a segunda parte da sentença 3 tem uma análise a mais como no sintagma 4:

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4. vê + João.

Aqui nós podemos dizer que vê denota uma função de um lugar, de indivíduos para conjuntos,e que vê João denota um conjunto, especi�camente, o conjunto de coisas que vêem João. (Algunsde vocês podem estar se perguntando como esta explicação pode se harmonizar com a teoria deinterpretação dos sintagmas nominais sobre a qual falamos na última aula. Esta é uma perguntamuito interessante, e eu vou voltar a ela em uma das próximas aulas.)

Depois deste desvio no qual vimos alguns detalhes sobre conjuntos e funções, vamos voltarao assunto principal de hoje; ou seja, mais sobre a interpretação dos sintagmas nominais.

A motivação principal que eu dei na última aula para a interpretação dos sintagmas nominaiscomo conjuntos de conjuntos, apresentada por Montague, foi a seguinte: esta interpretação nospermite dar um tratamento uniforme para a sintaxe e para a semântica de exemplos tantosimples quanto complexos, como Marina e todo tigre que Marina viu. Aliás, para fortalecer esseponto de vista, poderíamos apresentar até argumentos mais fortes.

Nós vimos que, para os quanti�cadores clássicos todo e alguns, bem como para a análise deRussell das descrições de�nidas com o (que é construída com a ajuda destes quanti�cadores), nósobtivemos uma interpretação que era logicamente equivalente à análise clássica em uma línguade primeira ordem como o CP. Mas há muitos outros quanti�cadores nas diferentes línguas �tanto nas línguas de uso cotidiano, quanto nas línguas das ciências e da matemática � para osquais não há esta equivalência com a primeira ordem.

Para entender esse fato, vai ser útil dar mais uma olhada em uma a�rmativa em línguanatural e o seu equivalente mais próximo que pode ser obtido no CP.

5. Algum tigre anda.

6. ∃x(Tigre(x) & Anda(x)).

Perceba que o exemplo 6 não é uma paráfrase literal da sentença 5. O que o exemplo 6realmente diz é:

7. Alguma coisa é um tigre e anda.

Eu pus coisa em itálico para enfatizar que a amplitude da variável x� as coisas que podemser atribuídas a x como seu valor � é exatamente o conjunto E de indivíduos. Para dizer isso deuma outra maneira: em línguas de primeira ordem, como o CP, nós sempre quanti�camos sobretodo o domínio de indivíduos. No entanto, isso não funciona para todos os sintagmas nominaisdas línguas naturais, como eu vou mostrar agora.

Eis uma sentença que nos exige uma capacidade maior do que a da quanti�cação de primeiraordem:

8. A maioria dos peixes nada.

Não é que seja tão somente difícil de representar a interpretação correta de uma sentençacomo 8 em uma língua de primeira ordem como o CP; é literalmente impossível. E o problemaestá exatamente no fato sobre o CP que acabamos de ressaltar: no CP, como em todas as línguasde primeira ordem, nós sempre quanti�camos sobre todo o domínio dos indivíduos. Acho que dápara ver as di�culdades nas quais incorremos ao tentar parafrasear o exemplo 8 de forma similarà maneira que parafraseamos as sentenças estritamente de primeira ordem:

7. Alguma coisa é um tigre e anda.

Como poderíamos continuar o exemplo 9?

9. A maioria das coisas são. . .

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44 AULA 4. QUANTIFICADORES GENERALIZADOS

Ou, assumindo a perspectiva do CP, como poderíamos substituir a interrogação no exemplo10?

10. MAIORIA x (Peixe(x) ? Nada(x))

Nenhum dos conectivos do CP � e agora nós temos todos os conectivos do CP � serviria.Nós não podemos trocar ? por &. O signi�cado seria: a maior parte das coisas são peixes quenadam. Também não podemos substituí-lo pelo sinal de implicação que usamos para intepretartodo. O sini�cado resultadnte seria: a maior parte das coisas são tal que, se elas são peixes, entãoelas nadam. Poderíamos construir um mundinho onde isso fosse verdade, mas nossa intuiçãosobre esta sentença ainda diria que ela é falsa. Vamos agora estabelecer que a maioria designealguma coisa como �pelo menos de dois terços�. Agora consideremos um mundo onde vivam 100peixes, dos quais só 25 nadam. Minha intuição me diz que o exemplo 8 seria falso neste mundo.Como deveríamos interpretar MAIORIA x F? Suponha que esta fórmula seja verdadeira se esomente se, para pelo menos dois terços das atribuições relevantes de valores para as variáveis,F seja verdadeira, analogamente às nossas regras semânticas para os outros quanti�cadores. Em25 atribuições de valores que atribuem a x uma coisa que é um peixe, (Peixe(x) → Nada(x))vai ser verdadeira; nas outras 75 atribuições de peixes, a fórmula vai ser falsa. Mas basta quetenhamos um número su�ciente de outras coisas que não sejam peixes, para atribuí-las comodenotação de x, de formaa ultrapassar o número de peixes que não nadam, que a supostainterpretação da �fórmula� passa a ser verdadeira (perceba que se g(x) não é um peixe, pelas leisda lógica, a implicação vai ser verdadeira). E assim por diante para os outros conectivos. Entãoqual é o verdadeiro signi�cado da sentença 8? Uma maneira natural de especi�car as condiçõesde verdade para o exemplo 8 seria alguma coisa como:

11. A sentença 8 é verdadeira (em t e m) se e somente se a maior parte da coisas que sãopeixes nadam (em t e m).

O ponto aqui é que para julgar a verdade do exemplo 8, nós não podemos olhar para atotalidade do domínio, mas apenas e tão somente para a subparte do domínio composta pelospeixes do domínio. A sentença 8 diz algo a respeito não da maior parte das coisas, mas da maiorparte dos peixes. (Fatos como estes nos dão uma pista importante sobre por que as línguasnaturais apresentam a categoria sintática dos substantivos comuns. Substantivos comuns sãoexpressões que oferecem uma base natural para selecionarmos os subconjuntos do domínio sobreos quais queremos quanti�car em sentenças como 8.)

Em sua análise do inglês no PTQ, Montague se restringiu aos sintagmas nominais com de-notações que podem ser reconstruídas através do uso dos quanti�cadores clássicos da lógica deprimeira ordem; no entanto, seu método geral de intepretar os sintagmas nominais como con-juntos de conjuntos funciona perfeitamente para a análise de sintagmas nominais tais como amaioria dos peixes e muitos outros tipos de sintagmas nominais que as línguas naturais em-pregam. Se olharmos para toda a gama de expressões deste tipo nas línguas naturais � porexemplo, sintagmas nominais que usam palavras e expressões como muitos, poucos, mais do quea metade � nós rapidamente veremos que os quanti�cadores clássicos são muito especiais e quea maior parte (!) dos sintagmas nominais complexos, nas línguas naturais, são como a maioriados peixes e não como todo tigre. Nos últimos anos, muito trabalho produtivo tem sido feito apartir desta perspectiva geral como ponto de partida. Eu gostaria de falar agora sobre este tipode trabalho.

Como freqüentemente acontece, este trabalho sobre as línguas naturais acabou se relacio-nando com trabalhos de matemática e de lógica que foram desenvolvido por motivos completa-mente diferentes. O ramo da matemática a que estou me referindo foi escolhido por mim comotítulo da aula de hoje: a teoria dos quanti�cadores generalizados. Preciso chamar a atençãopara uma fonte de confusão no uso da palavra quanti�cador. Na lógica clássica, um quanti�ca-dor é algo como ∀ ou ∃; isto é, algo que se junta com uma variável para ligar variáveis livres

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da maneira que vimos na discussão sobre o CP. Na teoria dos quanti�cadores generalizados, umquanti�cador é algo que corresponde a todo o signi�cado de um sintagma nominal, exatamentecomo o que Montague usou e que nós vimos da última vez. Aqui, vou usar este termo com esteúltimo sentido. Portanto, a denotação de expressões como Murilo, todo peixe, a maioria dostigres, e assim por diante, serão chamados de quanti�cadores e não o signi�cado de coisas comotodo ou algum.

O que é um quanti�cador nesse novo sentido? É tudo aquilo o que eu tinha dito a respeito dossigni�cados dos sintagmas nominais na teoria de Montague sobre o inglês. Deixa-me apresentarisso explícita e cuidadosamente:

12. Um quanti�cador (generalizado) é um conjunto de conjuntos (incluído no domínio E).

(Daqui por diante, vou sempre presumir que temos em mente um domínio especí�co E econseqüentemente suprimir a referência ao domínio.) Vamos nos familiarizar com esta idéia,repetindo alguns exemplos conhecidos usando este novo estilo:

13. Marina denota o conjunto de conjuntos do qual Marina é membro.

14. um tigre denota o conjunto de conjuntos cujas intersecções com o conjunto de tigres nãoé vazia (não é = ∅).

15. toda criança denota o conjunto de conjuntos do qual o conjunto de crianças faz parte.

Como você talvez possa ver a partir destes exemplos, é útil ter alguma notação para de�niçõesdeste tipo, pois de�nições escritas em português podem �car um tanto quanto complicadas.Seguindo a linha do nosso intuito geral, que é entender as idéias principais e não �carmosatolados na notação, não vou introduzir aqui nenhum tipo de notação.

(Abrindo um parênteses, vale notar que às vezes as pessoas falam de quanti�cadores nãocomo signi�cados, mas como expressões que apresentam estes signi�cados. Por clareza, vou usaro termo expressão quanti�cadora quando me referir a algo que denota um quanti�cador.)

Acho que dá para ver que estas de�nições são, na verdade, equivalentes àquelas que nós jávimos. Veri�quemos isto re�etindo sobre o exemplo 15, comparando-o ao que eu tinha dito sobrea denotação de toda criança. Na aula anterior, eu apresentei a seguinte de�nição:

16. (= exemplo 20 da Aula III) A denotação de toda criança é o conjunto de propriedadesque todas as crianças têm em comum.

Apresentei também outra formulação equivalente: toda criança denota a intersecção do con-junto de propriedades de todas as crianças. (Lembre, o termo conjunto é usado consistentementena aula de hoje ao invés de propriedade.) Podemos reformular esta última a�rmação em termosda intersecção do conjunto de conjuntos ao qual cada criança pertence. O exemplo 15 diz queum conjunto em particular é membro da denotação de toda criança apenas quando o conjuntode crianças for subconjunto daquele conjunto. Mas ao dizer isto é o mesmo que dizer que umconjunto em partticular é membro de um quanti�cador apenas quando todos os membros doconjunto de criança forem membros do conjunto em questão. Assim, o conjunto dos que andamvai estar no conjunto apenas quando todos os membros do conjunto de crianças também formembro do conjunto dos que andam. Portanto, podemos apresentar as três paráfrases a seguircomo signi�cado da sentença 17:

17. Toda criança anda.

i. Se alguma coisa é uma criança, então ela anda.

ii. O conjunto dos que andam é membro da intersecção dos conjuntos de conjuntos aoqual toda criança pertence.

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46 AULA 4. QUANTIFICADORES GENERALIZADOS

iii. O conjunto de crianças está incluído no conjunto dos que andam.

Todas estas sentenças são equivalentes entre si.O que podemos dizer sobre a interpretação de palavras como um, algum, o e todo? Nós

chamamos estas expresões de determinantes. Dada a teoria dos quanti�cadores generalizados,podemos de�nir semanticamente esta classe de expressões. Elas são expressões que junto comsubstantivos comuns (simples ou complexos) formam expressões quanti�cadoras. Lembrandoque os substantivos comuns denotam conjuntos, podemos dizer o seguinte:

18. Um determinante é uma expressão que denota uma função de conjuntos para quanti�ca-dores (conjuntos de conjuntos).

Tentar escrever em português a denotação de uma palavra como todo é bastante complicado.Mas você pode ter uma idéia de como seria, colocando uma variável para conjuntos (digamos,M) no lugar de criança e crianças no exemplo 15:

19. todo M denota o conjunto de conjuntos ao qual o conjunto de Ms pertence.

Se dermos mais um passo atrás, então poderemos ver o que todo signi�ca:

20. todo denota uma função f de conjuntos para conjuntos de conjuntos, tal que para todosos conjuntos M , f(M) = o conjunto de conjuntos ao qual o conjunto de Ms pertence.

Você pode ver como continuaríamos se fossemos dar a de�nição das denotações de um (algum)a partir do exemplo 14.

Neste ponto, é razoável perguntar para que serve todo este complicado aparato. (E ele écomplicado.) Eu vou responder esta pergunta dando exemplos.

Muitos lingüistas �zeram esta mesma pergunta sobre todo o programa da semântica deMontague e outras abordagens semânticas fundadas na teoria de modelos. Eu acho que a únicaresposta convincente a perguntas desse tipo é demonstrar como podemos explicar e compreendercoisas que não conseguiríamos nem explicar nem compreender sem tal teoria. O estudo dosquanti�cadores generalizados das línguas naturais tem sido uma das muitas áreas onde temosconseguido nos aproximar de explicações para enigmas que têm resistido a soluções desenvolvidaspela pesquisa lingüística realizada sem recorrer explicitamente à semântica de teoria de modelos.Estas novas explicações estão completamente fundamentadas em propriedades das entidades dateoria de modelos que nós usamos para dar conta da semântica das línguas naturais. Há oseguinte dito popular: �Por seus frutos conhecê-los-á.� Apenas ao produzir resultados e suscitarquestões novas e interessantes é que as novas teorias e abordagens podem justi�car o direitode serem estudadas. Eu quero passar por alguns poucos exemplos de problemas antigos nalingüística que os lingüistas conseguiram vir a compreender um pouco melhor mediante o usode ferramentas da semântica da teoria de modelos.

O primeiro problema ocorre com sentenças em inglês com a palavra there:

21. There is a pig in the garden.

22. There were three sailors standing on the corner.

23. There are many solutions to this problem.

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(A palavra there é átona e é diferente do advérbio locativo there; ela corresponde em chinêsa y�ou.)1

As sentenças 21, 22 e 23 parecem boas, mas há muitas sentenças que nós poderíamos inventarque não pareceriam assim tão boas:2

24. ?There's every tiger in the garden.

25. ?There were most men in the room.

26. ?There are all solutions to this problem.

Isto é, parece haver algum tipo de restrição sobre que tipo de sintagmas nominais sucedernaturalmente a expressão there + be nas sentenças do inglês. Muitos lingüistas tentaram acharuma boa caracterização das propriedades dos sintagmas nominais que resultassem neste efeito,mas não tiveram muito sucesso até bem pouco tempo. A maioria das �soluções� não iam alémda marcação dos sintagmas com um traço arbitrário (de�nido/inde�nido ou alguma coisa dessetipo). Isso é apenas a rotulação de um problema, e não sua solução. Não há nenhuma soluçãonotadamente sintática para os julgamentos que temos a respeito destas sentenças.

Os trabalhos sobre os quanti�cadores generalizados das línguas naturais e os determinantesque dão a eles seus valores semânticos forneceram uma solução verdadeiramente semântica paraeste problema, recorrendo apenas a uma propriedade da teoria de modelos que os determinantesapresentam e que eu vou explicar agora.

Lembre-se, os determinantes são interpretados como funções que tomam conjuntos e formamconjuntos de conjuntos. Outro jeito de pensar sobre o signi�cado dos predicados é como umafunção de objetos de algum tipo para valores de verdade (como eu já observei anteriormente):dado um argumento, eles resultam num valor Verdadeiro, se o argumento está no conjunto, ouFalso se o argumento não está. Eles são perguntas, por assim dizer, que respondem Sim ouNão em relação a um elemento pertencer ao conjunto que os predicados estão caracterizando(daí, como eu já tinha dito, os predicados serem chamados de funções características). Olhandodesta maneira, os quanti�cadores são funções de conjuntos para valores de verdade. Para algunsdeterminantes, no entanto, não importa que conjuntos lhe são dados e não importa em quemundo ou modelo eles estejam sendo avaliados, o conjunto dado como argumento vai sempreser membro do conjunto de conjuntos que a expressão quanti�cadora denota. E para outros, oconjunto de argumentos nunca vai ser membro do quanti�cador, independentemente do modeloou do mundo. Em termos de perguntas, os quanti�cadores associados com tais determinantesvão sempre dizer Sim para qualquer conjunto ou modelo, ou vai sempre dizer Não, contanto quetenham um conjunto para o qual estejam de�nidos. Estes tipos de determinantes são chamadosde determinantes fortes (positivos ou negativos de acordo com a resposta constante Sim ou

1(NT) Como em português não parece haver correspondente a esta expressão, preferimos manter oexemplo em inglês mesmo. Suas traduções literais seriam:

21'. Tem um porco no jardim.

22'. Tem três marinheiros parados na esquina.

23'. Tem muitas soluções para este problema.

2(NT) Em português, apesar de não apresentarem uma palavra correspondente a there, estas sentençasexistenciais apresentam o mesmo tipo de restrição:

24'. ?Tem todos os tigres no jardim.

25'. ?Tem a maioria dos homens na sala.

26'. ?Tem todas as soluções para este problema.

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48 AULA 4. QUANTIFICADORES GENERALIZADOS

Não). Todos os outros determinantes são chamados de determinantes fracos: são aqueles paraos quais a resposta dada depende do modelo. Em alguns modelos, a resposta vai ser Sim, emoutros Não. Deixa eu formular esta propriedade da seguinte maneira:

27. Considere um determinante D e expressões N que denotam conjuntos (um sintagma no-minal comum) e a a�rmativa:

D N é/são N .

Se a verdade desta a�rmativa depender do modelo, então D é fraco. Se não, então D éforte (positivo ou negativo).

Eis alguns exemplos. Os determinantes são fortes ou fracos?

28. Todo tigre é um tigre.

29. Todos os tigres são tigres.

30. Nenhum tigre é tigre.

31. Muitos tigres são tigres.

32. Nenhum dos tigres são tigres.

33. O tigre é um tigre. (Considere aqui que o tigre se refere a um único tigre especí�co, e nãoà espécie �tigre�.)

34. Ambos os tigres são tigres.

35. Nenhum dos dois tigres é um tigre.

Não seja apressado nos seus julgamentos! É preciso pensar com muito cuidado sobre asde�nições de fraco e forte que acabaram de ser dadas quando usamos perguntas sobre exemploscomo estes para testar as características de determinantes em particular. Para ajudar você aentender melhor as de�nições e para reforçar algumas das idéias sobre os modelos que eu descrevium tanto rapidamente, eu vou revisar alguns dos exemplos em detalhe:

28. todo é um determinante forte (positivo) porque a frase 28 é necessariamente verdadeiraem todos os modelos. Para veri�car isso, precisamos pensar em vários modelos. Suponhaque há alguns tigres no modelo. Então a frase 28 tem de ser verdade porque todos elesserão tigres. Suponha que não há nenhum tigre no modelo. Então, nesse modelo, D(tigre)é o conjunto vazio. Mas, então, a frase 28 tem de ser verdade porque o conjunto vazioé um subconjunto de todos os conjuntos. Na verdade, qualquer coisa que disséssemossobre os tigres seria verdade neste último modelo. Nele, todo tigre anda, todo tigre falainglês, todo tigre é um leão, todo tigre é um porco, cisne, poste telefônico, etc. (Àsvezes nós dizemos que estas sentenças são �trivialmente� verdadeiras em tais situações.)Considerações semelhantes nos levam a dizer que todos os (sentença 29) é um determinantepositivo forte.

30. nenhum é um determinante fraco, e é necessário um pouco de re�exão para ver isso.Novamente, pense nos mesmos dois modelos, um com tigres e outro sem. No primeiro(com tigres), a sentença 30 é falsa, porque dizer que ela é verdadeira seria dizer quenenhuma das coisas que são tigres são tigres. Poderíamos também nos perguntar sobre adenotação da expressão quanti�cadora nenhum tigre. Que conjunto de conjuntos queremosque corresponda a esta expressão? (Deixo isso como exercício.) Vejamos agora o segundomodelo (sem tigres). Desta vez, a sentença é verdadeira, então a verdade da sentença 30depende do modelo especí�co que escolhemos. Logo, nenhum é um determinante fraco.

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33. Para entender como a de�nição 27 se aplica à sentença 33, precisamos ver alguma coisasobre a análise de o que está sendo pressuposta para que nossa explicação funcione. Re-cordemos a análise das descrições de�nidas de Russell. De acordo com esta análise, asentença 33 seria verdadeira somente no caso de haver um único tigre no modelo e eleser um tigre. Isto é, em modelos com mais de um tigre ou absolutamente sem nenhumtigre, a sentença 33 seria falsa. Então, de acordo com a análise de Russell, a verdade daresposta seria certamente dependente do modelo e o seria um determinante fraco. Esta éuma situação na qual a condição que eu aceitei para de�nir o quanti�cador cumpre umpapel essencial.

Uma das inovações importantes na análise das descrições de�nidas depois de Russell foia seguinte: Muitos �lósofos � Strawson1971 foi o primeiro, eu creio � disseram que a parteda análise das descrições de�nidas que requer unicidade deveria ser concebida não como umaparte direta das condições de verdade para sentenças com descrições de�nidas, mas sim comouma precondição para o uso apropriado de tais sentenças. Um dos motivos para esta decisãoé que, de acordo com a de�nição de Russell, no caso onde há mais que um Rei da França (ou,no caso, tigre), a negação da frase teria de ser verdade, e isso é contrário às nossas intuições.Podemos reconstruir esta idéia dizendo que uma sentença como aquela a respeito do Rei daFrança (sentença 33) é simplesmente inde�nida quanto a sua condição de verdade quando apressuposição de unicidade e existência falha. Isso pode ser feito pela de�nição da denotaçãodo determinante o de tal modo que ele não tenha nenhum valor ou seja considerado inde�nidoquando sua pressuposição de unicidade e existência não for satisfeita, a sentença 33 ou umasentença como 36 serão necessariamente verdadeiras:

36. O Rei da França é um rei da França.

Logo, no �m das contas, o é um determinante forte (positivo). Os fatos que vamos discutiragora podem ser tomados como evidência para as idéias de Strawson sobre descrições de�nidasem oposição às de Russell. (Seria interessante você passar os outros exemplos; ambos e nenhumdos dois são como o: são de�nidos tão somente quando certas pressuposições são satisfeitas.)

Volto agora ao problema das frases com tem. Se nós olharmos para um número grande defrases com tem existencial, vamos ver que há uma correlação exata: frases nas quais o determi-nante do sintagma nominal depois de tem é forte soam mal; aquelas em que o determinante éfraco soam bem. Por que é assim?

Para achar uma explicação temos de pensar na interpretação de frases com tem existencial.Eis a interpretação sugerida por BarwiseCooper1981 sugerem:

Uma frase da forma terexistencial SN é interpretada como sigini�cando que o conjuntode indivíduos no modelo E é um membro do quanti�cador denotado pelo SN.

O que isso signi�ca? Veja os exemplos simples como da sentença 21:

(21) Tem um porco no jardim

Dizer que o conjunto de indivíduos no modelo é membro do conjunto de conjuntos denotadopor um porco no jardim é o mesmo que dizer que o conjunto de conjuntos em que algum porcono jardim está contém o conjunto das coisas; ou seja, que a intersecção do conjunto de porcosno jardim com o conjunto de coisas no modelo não é vazio. O exemplo 21 vai ser falso somenteno caso do modelo não ter nenhum porco no jardim. Sentenças como estas são efetivamenteinformativas sobre o modelo apenas quando não forem nem necessariamente verdadeiras nemnecessariamente falsas. Mas sentenças desse tipo, com determinantes positivos fortes, são ne-cessariamente verdadeiras; e aquelas com determinantes negativos fortes são necessariamente

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falsas, independentemente do modelo. Então elas nunca vão dizer nada de interessante, daí quesoem estranhas.

(Você deve ter percebido que essa análise presume, um tanto quanto controversamente, queem uma sentença como 21 todo o resto da sentença depois de ter é um único constituinte, no caso,um sintagma nominal. Não é claro para mim que essa suposição esteja correta. É uma questãointeressante saber se esta análise ou aquela que diz que um porco e no jardim são constituintesdiferentes é a correta. Se esta última análise for a correta, a tarefa de fornecer uma semânticaapropriada que suporte uma explicação semântica convincente para os fatos discutidos é umdesa�o para a pesquisa futura.)

Para um segundo exemplo de um problema já bastante duradouro para o qual a pesquisasemântica na abordagem da teoria dos modelos oferece novas perspectivas, gostaria de lembrar ofenômeno das assim chamadas expressões de polaridade negativas. Esses são os itens em itálicosnos seguintes exemplos:

37. Eu não vi nenhum leão.

38. *Eu vi nenhum leão.

39. Eu não estive nunca na China.

40. *Eu estive nunca na China.

41. Nenhum aluno que sabe alguma coisa de fonologia jamais diria isso.

42. Todo aluno que sabe alguma coisa de fonologia (*jamais) diria isso.

Estes itens já foram muito discutidos na literatura linguística desde o início da gramáticagerativa. Estes primeiros poucos exemplos ilustram porque essas expressões foram batizadascomo itens de polaridade negativa. Mas já desde o início Klima1964, era claro que não são sóos elementos negativos que oferecem o contexto adequado para o uso destes itens, como mostraa primeira parte da sentença 42. Novamente, ao tentar caracterizar o contexto que licencia ouso destes itens de polaridade de uma maneira exclusivamente sintática, �caríamos restritos auma marcação arbitrária dos itens como mais, menos, NEG ou coisas assim. Estes exemplosfornecem uma segunda evidência onde a abordagem da teoria dos modelos parece oferecer umanova perspectiva. Mais uma vez, vou ter de fazer uma digressão para esclarecer alguns detalhestécnicos.

As propriedades semânticas das expressões determinantes e quanti�cadoras que são cruciaispara a caracterização do uso apropriado dos itens de polaridade estão relacionadas aos possíveisacarretamentos das sentenças e das relações entre os conjuntos involvidos na interpretação dassentenças que contêm as diferentes expressões quanti�cadoras. Vamos adotar um esquema típicode uma sentença que exibe a estrutura lógica relevante para discussão a seguir. Esta estruturareplica quase exatamente a forma sintática das sentenças involvidas:

43. Todo peixe nada: D(A)(B).

Aqui, D representa o signi�cado do determinante (todo); A, o conjunto que é o argumento dosigni�cado do determinante (que corresponde a peixe); e B, o conjunto (que corresponde a nada)que é o argumento para o quanti�cador. Estamos interessados nos acarretamentos decorrentesda variação de A e B quanto à relação de inclusão de conjuntos. Suponha que tomemos oconjunto B que contém B como subconjunto � neste exemplo, pode ser o conjunto denotadopela expressão se desloca. Agora nos perguntamos se a verdade da sentença 44 decorre, pormotivos exclusivamente lógicos, da verdade da sentença 43:

44. Todo peixe se desloca.

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A sentença 44, de fato, é uma decorrência necessária. Neste caso, dizemos que o quanti�cadordenotado por todo peixe apresenta um acarretamento crescente (em inglês, upward-entailing), eentão a expressão quanti�cadora, por extensão, também funciona assim (pense em algo que vá�subindo� na relação de inclusão). O fato de que nem todo quanti�cador apresenta acarretamentocrescente pode ser veri�cado pelo próximo exemplo:

45. Nenhum peixe anda.

46. Nenhum peixe se desloca.

A sentença 45 pode ser verdadeira e a sentença 46 falsa, tal que � aceitando-se que oconjunto das coisas que andam é um subconjunto das coisas que se deslocam � a expressãoquanti�cadora nenhum peixe certamente não apresenta acarretamento crescente. Na verdade, elaapresenta a propriedade oposta de acarretamento decrescente (em inglês, downward-entailing).Se considerarmos um conjunto que está incluído num conjunto B adequado, então teremos oacarretamento. Logo, da sentença 46, assumindo que ela seja verdadeira, poderíamos concluirque a sentença 45 seria verdadeira, como também seria a sentença 47:

47. Nenhum peixe nada.

Podemos caracterizar os diferentes tipos de determinantes da mesma forma, procurando ossubconjuntos e superconjuntos do conjunto A (como no esquema típico da sentença 43). Assumaque os animais são um superconjunto dos peixes e que as carpas são um subconjunto dos peixes.Agora observe estas sentenças:

(43.) Todo peixe nada.

48. Toda carpa nada.

49. Todo animal nada.

(45.) Nenhum peixe anda.

50. Nenhuma carpa anda.

51. Nenhum animal anda.

A sentença 43 acarreta a 48, mas não a 49. A sentença 45 acarreta a 50, mas não a 51. Assim,tanto todo quanto nenhum são acarretadores decrescentes. (Pense em alguns determinantes quesejam acarretadores crescentes.)

Agora podemos dizer coisas precisas sobre a caracterização dos elementos que permitem ouso de itens de polaridade do tipo que estávamos discutindo.

52. As expressões que licenciam o uso dos itens de polaridade negativa denotam funções deacarretamento decrescente. O item de polaridade deve estar contido em uma expressãointerpretada como o argumento desta função.

Se olharmos agora para nossos primeiros exemplos de 37 a 42, veremos que essa caracterizaçãofunciona perfeitamente. Tome a sentença 37, por exemplo: se eu não vi nenhum leão, então eunão vi nenhum leão macho, nenhum leão �lhote, nenhum leão velho e assim por diante. Se eununca fui a China, então eu nunca fui a Tianjin. Alunos que sabem fonologia inclui alunos quesabem fonologia auto-segmental e assim por diante.3

3NT: Aqui a re�exão é sobre o grupo dos que sabem fonologia e o grupo dos que sabem fonologia auto-segmental: este é subconjunto daquele; isso não deve ser confundido com o fato de que nem todos quesabem alguma coisa de fonologia precisam saber necessariamente fonologia auto-segmental: se alguémconhece apenas fonologia articulatória, essa pessoa sabe fonologia; mas não é porque sabe fonologia quesabe necessariamente fonologia auto-segmental.

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52 AULA 4. QUANTIFICADORES GENERALIZADOS

Mais uma vez, há questões interessantes sobre os detalhes dessa explicação (inspiradas em[9]). Por exemplo, quanto a ser argumento de uma função, como foi feito em 52, não há consensosobre precisarmos prestar atenção às relações exclusivamente sintáticas ao invés das propriedadespuramente semânticas ou se elas precisam ser consideradas conjuntamente. É também bastantepertinente observar aqui que, apesar de termos apresentado uma perspectiva promissora da teoriade modelos para as condições de licenciamento para itens de polaridade, ainda não apresentamosefetivamente uma explicação que recorra à interpretação dos próprios itens de polaridade. Essatarefa ainda está por ser feita.

Apresentei dois exemplos de áreas nas quais a perspectiva da teoria de modelos parece darresultados promissores para ajudar a entender certos fenômenos encontrados nas línguas natu-rais. Em ambos os casos, parece que podemos atribuir a explicação ao componente semânticode nossas teorias. Dessa forma, podemos oferecer uma explicação bastante simples da sintaxeda construção com a qual estamos lidando: sentenças com ter existencial e sentenças com itenssensíveis à polaridade como qualquer e jamais. Ambas as explicações empregaram fundamen-talmente a teoria da interpretação do sintagma nominal como quanti�cador generalizado, umateoria para a qual encontramos argumentos independentes de dois tipos: primeiro, sintagmasnominais do português e do inglês exigem esse tipo de intepretação, se quisermos dar uma se-mântica uniforme para os vários tipos de sintagmas nominais, tanto os simples como Muriloe Marina, quanto os complexos como todo tigre que ruge; segundo, muitos determinantes daslínguas naturais (talvez a maioria deles) formam sintagmas nominais que simplesmente não po-dem ser parafraseados na teoria quanti�cacional clássica das linguagens de primeira ordem comoCP. Poderíamos também considerar esses dois pontos partindo de uma outra perspectiva. Umateoria do tipo que estamos assumindo faz duas suposições, ou duas hipóteses:

I. A semântica das línguas naturais está relacionada composicionalmente à sintaxe.

II. A forma lógica para as línguas naturais é muito próxima (se não idêntica) à sintaxesuper�cial da língua.

Logo, a evidência que encontramos, incluindo os exemplos dos quais já nos ocupamos, podemser tomados como evidência do poder explanatório das teorias que incorporam as hipóteses I eII.

Gostaria agora de dar uma olhada numa outra maneira de abordar a forma lógica das sen-tenças do português; isto é, vamos ver a família de teorias associadas especialmente ao trabalhorecente de Noam Chomsky e de seus colaboradores, o que inclui as abordagens que vieram a serconhecidas como teoria da regência e ligação (em inglês, government and binding � GB). Vouprimeiramente falar sobre algumas diferenças no que se refere a objetivos e suposições dessasteorias quando comparadas à teoria que estávamos vendo. Em seguida, vou defender que os doistipos de teoria não são tão incompatíveis quanto às vezes se acredita, pelo menos no que dizrespeito às questões que estão sendo tratados nessas aulas.

A maior diferença de objetivos entre os dois tipos de teorias está no papel e na importânciada semântica, como a estamos compreendendo aqui. Na teoria GB, assim como em abordagenssemelhantes, não é necessário dar uma interpretação semântica explícita das estruturas geradas,descritas ou licenciadas pela teoria. Assim em GB, nós temos vários níveis de representação� estrutura-S, estrutura-D, FL (Forma Lógica), FF (Forma Fonológica) � e, apesar dos jul-gamentos semânticos terem um papel importante no processo de decisão contra ou a favor deuma das diferentes propostas, por exemplo, sobre o escopo dos quanti�cadores, não se oferece,através de um conjunto de regras explicítas, nenhuma intepretação para as estruturas. Assim,do nosso ponto de vista, todos os níveis são puramente sintáticos, ligados por vários tipos deregras e condições. Será interessante uma comparação entre a situação da sintaxe e a situaçãoda semântica. Nos últimos anos, problemas da interpretação fonética têm tido um papel cadavez mais importante na fonologia. Considero a falta de interesse na interpretação semântica um

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defeito relativamente grave. Isso não só di�culta uma comparação geral entre as abordagens combase na teoria de modelos e as com base na GB, mas também di�culta que identi�cação do valorevidencial de diversos julgamentos de questões essencialmente semânticas, como a co-referênciae o escopo.

A pergunta mais importante aqui é: Essa diferença vem de um princípio ou de uma escolha?Acredito que seja de uma escolha. Uma passagem de Chomsky em Lectures on Government andBinding (1981/1982) parece sugerir que, querendo, é possível oferecer uma interpretação atravésda teoria de modelos para estruturas da FL da GB, ou possivelmente para algum outro nívelde �representação semântica� (Chomsky chama essa intepretação de �semântica real� [página324 da edição americana, as aspas são dele]). Não vejo motivo algum pelo qual isso não podeser feito, e, na verdade, algumas pessoas já tentaram produzir interpretações nesta direção. Noentanto, há aí uma questão teórica importante no que se refere à exata natureza da relação entrea sintaxe e a semântica. A GB, assim como outras teorias relacionadas a ela na tradição gerativo-transformacional, supunham sem qualquer argumento que a relação devia ser caracterizada apartir de um mapeamento de�nido para algum tipo de objeto sintático (estrutura-D, estrutura-S, estrutura-FL). Na gramática de Montague, e em muitas abordagens semelhantes, como jámencionei rapidamente, a relação entre a sintaxe e a semântica não se dá desta maneira. Aocontrário, a relação ocorre entre as regras sintáticas e as regras semânticas. Estabelece-se assimuma hipótese diferente e interessante, a chamada hipótese regra-a-regra. Não vou abordar essaquestão aqui, pois estou me concentrando na própria interpretação semântica e não na relaçãoentre sintaxe e semântica (no entanto, vou aborda-lá na Aula VIII).

Agora eu gostaria de voltar a um assunto mais especí�co, a relação entre o tratamento dossintagmas nominais na GB e suas interpretações como quanti�cadores generalizados conforme adiscussão de hoje. Vou mostrar que, nesse ponto, as duas teorias são compatíveis. Na verdade, aabordagem dos quanti�cadores generalizados oferece uma semântica elegante para o tratamentodos sintagmas nominais na GB, e se considerarmos um detalhe da análise de Montague para ver-bos intensionais como procurar (em inglês, seek), acabaremos resolvendo o que era um problemapara a abordagem da GB.

Primeiro, preciso me reportar rapidamente à análise da GB para a quanti�cação. Como vocêdeve saber, relações de escopo entre sintagmas nominais quanti�cados são caracterizadas pelouso da regra de alçamento-de-quanti�cador (AdQ; em inglês, quanti�er raising), que move umsintagma nominal da base onde ele é gerado e o adjunge a um nó sentencial (podemos ignorar aquias outras possibilidades) deixando para trás um vestígio, ou categoria vazia. Então, ignorandoalguns detalhes, podemos derivar duas estruturas-FL diferentes a partir da estrutura-S para umafrase como 53:

53. Toda criança estava provocando um tigre.

Essas duas estruturas-FL correspondem aos dois tipos de interpretações que estivemos co-mentando na aula passada:

S

S

v3 provocar um tigre

SN3

toda criança

S

S

toda criança provocar v2

SN2

um tigreComo é que podemos interpretar essas estruturas? Parece que podemos recorrer direta-

mente às interpretações que Montague deu em 1973, tanto para o sintagma nominal quantopara o restante da sentença. O sintagma nominal pode ser interpretado como um quanti�cadorgeneralizado, isto é, como um conjunto de conjuntos, em cada caso, e o restante da sentença,com o vestígio funcionando como uma variável, pode ser visto como a denotação de um con-junto. Nós podemos usar o operador lambda se quisermos oferecer uma representação clara

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54 AULA 4. QUANTIFICADORES GENERALIZADOS

dessa interpretação. Na verdade, a notação informal usual dada por Chomsky e outros para ossintagmas nominais quanti�cados sugerem que os sintagmas nominais devem ser interpretadoscomo quanti�cadores restritos: para todo x: x uma criança. Mas esses quanti�cadores restritossão exatamente os mesmos que quanti�cadores generalizados.

Deixa eu explicar rapidamente como a teoria de Montague, combinada com os pressupostosda GB, pode constituir a base para uma teoria mais robusta. Quase no �nal da última aula,observei que ainda não tínhamos discutido o problema de como interpretar uma sentença comoa do exemplo 54, no caso de não aceitarmos a existência de unicórnios.

54. Marina está procurando um unicórnio.

Ainda não estamos completamente aptos para falar sobre a interpretação real para esta lei-tura da sentença, mas podemos sugerir como ela pode ser derivada no PTQ. As interpretaçõesque discutimos até agora têm sido aquelas em que Montague usou uma regra especial de �intro-dução da quanti�cação� (em inglês, quantifying in), um tipo de transformação que substitui umsintagma nominal por uma variável e ao mesmo tempo muda as outras ocorrências da variávelpara pronomes. (Esta descrição é um pouco desleixada: em sentenças sem negação, algumasde nossas interpretações poderiam também ser derivadas para o sintagma nominal na posiçãode sujeito.) Uma outra maneira pela qual os sintagmas nominais podem ocorrer nas sentenças,conforme a análise de Montague, é através de sua geração já no próprio lugar em que ele apa-rece. Com um verbo intensional como procurar, essa geração direta dos sintagmas nominais naposição de objeto dá uma intepretação que não exige, de modo algum, a existência de unicórniospara uma sentença como 54. No entanto, nas teorias da GB, a aparente obrigatoriedade de AdQpara os sintagmas nominais quanti�cados sempre foi um problema. Faz parte da natureza destasteorias manter estas regras como opcionais. Assim, numa análise da GB, a opção natural seriamanter o AdQ não só opcional, mas também sem a restrição de quaisquer condições especiaisou �ltros. A interpretação de uma sentença na qual não se aplicou o AdQ pode ser importadadiretamente da teoria de Montague.

Nesta aula, dei uma olhada rápida em algumas consequências interessantes da adoção dateoria de Montague sobre a interpretação dos sintagmas nominais. Mas vimos que esse pontode vista oferece soluções elegantes para alguns problemas já antigos que resistiram a análisesproduzidas em outras abordagens. Claro, expus aqui apenas algumas possibilidades. Nos últimosanos, têm-se realizado um trabalho extensivo tem na aplicação da teoria dos quanti�cadoresgeneralizados aplicados às línguas naturais.

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Aula 5

Tipos de coisas

Antes de começarmos hoje, vou tomar alguns minutos para apresentar um pouco da geogra�adessas aulas. Se você está indo de ônibus a algum lugar, normalmente você quer saber o quantovocê já andou e o quanto ainda falta para chegar. Portanto, eu queria mapear nosso curso.Nas três primeiras aulas, estávamos nos familiarizando com as noções básicas da semântica deteoria de modelos, em particular, com a Gramática de Montague, ou melhor, com a Semânticade Montague. Falei bem pouco da Gramática de Montague enquanto teoria sintática e semân-tica. (A propósito, ao contrário de muitos linguistas (veja, por exemplo, [5]) acredito que aGramática de Montague nesse último sentido é uma teoria muito interessante, e que vale serexplorada como um alternativa a muitas outras teorias, por exemplo, a teoria chomskyana deRegência e Ligação (RL), ou a Gramática Léxico-Funcional, de Bresnan (GLF, veja [3]); e eue vários outros linguistas produzimos, nos últimos anos, uma boa quantidade de trabalhos ex-plorando esse aspecto, especialmente o da Gramática Categorial, que é uma parte elementar dateoria apresentada no PTQ de Montague (para algumas referências, veja as notas no �nal dessaaula).) Durante uma semana, portanto, tivemos uma breve introdução às noções fundamentaisda semântica de mundos possíveis de Montague e da semântica de teoria de modelos. Estassão algumas das coisas básicas que descobrimos: a ideia de uma língua formal; a interpretaçãode uma língua através de um modelo formal; uma função de interpretação; e um conjunto deatribuição de valores a variáveis formando a base da teoria padrão da quanti�cação. Tudo issopermitiu chegarmos à questão fundamental do curso: Que tipos de estruturas de modelo sãonecessários para se interpretar uma língua natural? Olhamos primeiro para aquela que deve ser aestrutura de modelo mais simples para uma língua natural. (A estrutura de modelo mais simplesé a usada para interpretar o chamado cálculo proposicional, no qual os elementos primitivos sãofórmulas não-analisadas (ou sentenças), e a estrutura é apenas o conjunto de valores de verdade{0, 1}.) Foi isto que chamamos de M1: E, o domínio dos indivíduos, e {0, 1}, o par de valoresde verdade. Então olhamos para uma estrutura de modelo mais complexa, M2, que acrescentaà estrutura M2, W , e J , os conjuntos de mundos e de tempos. Então olhamos para o modocomo Montague usou esse aparato para resolver o problema de capturar as interpretações desintagmas nominais comuns complexos e para sintagmas nominais completos, ou termos, comosão frequentemente chamados. Na nossa última aula já começamos a ir �além de Montague�,observando como sua teoria da interpretação dos sintagmas nominais como conjuntos de pro-priedades (ou conjuntos de conjuntos) era só um caso especial de uma visão necessariamenteempírica e mais geral de sintagmas nominais como quanti�cadores generalizados, e estudamosalguns dos resultados interessantes que decorrem desta visão que oferece novas soluções paraquebra-cabeças notáveis da análise linguística. Deixem-me tornar a enfatizar que esses exemplossão particularmente importantes como respostas para o seguinte desa�o, de suma importânciapara a semântica de teoria de modelos enquanto teoria apropriada para a linguística empírica:O que se consegue fazer ou explicar com esses métodos que não se consegue fazer ou explicarsem eles?

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56 AULA 5. TIPOS DE COISAS

Excetuando-se a questão dos quanti�cadores generalizados, o que �zemos antes representaum tipo de recapitulação esquemática do primeiro estágio do trabalho em semântica formal daslínguas naturais. Durante este período, linguistas e �lósofos estavam se familirizando com ostrabalhandos uns dos outros, com os problemas sobre os quais se re�etiam, com os diferentescritérios de adequação aos quais estavam acostumados, e assim por diante. Mas a maioriados detalhes da semântica de Montague foram tomados sem modi�cação. Na última aula, enas aulas seguintes, vamos observar alguns exemplos da segunda fase, que está atualmente emcurso. Nesta fase, já dispomos de um substrato comum su�ciente e da familiaridade com osaspectos técnicos da teoria, o que permite que as pessoas seguam adiante, propondo extensões,restrições, e mudanças fundamentais na teoria, sempre na tentativa de responder à questãofundamental: Que estrutura de modelos são adequadas para as línguas naturais? (Uma segundaquestão fundamental ainda se mantém muito viva durante todo este tempo: Qual é a melhorforma de relacionar as estruturas sintáticas e semânticas?)

Antes de continuar, gostaria de esclarecer duas coisas. Em primeiro lugar, nosso panoramanão passa de um esboço, que tomou a semântica de Montague como o principal exemplo a serexplorado. Reparem que existem outros paradigmas, mais ou menos independentes, e mais oumenos similares à teoria de Montague. (Vejam as notas �nais para esta aula.) Provavelmente,seria mais justo dizer que a teoria de Montague foi a mais in�uente. Em segundo lugar, encon-tramos muitos detalhes interessantes no trabalho de Montague e em trabalhos feitos direta ouindiretamente sob sua in�uência, que nem sequer foram citados. Vou mencionar alguns delescomo embasamento a partir do qual vamos começar a observar alguns desenvolvimentos atuaise recentes na teoria semântica.

O principal tópico de hoje está relacionado aos tipos de coisas. Notem que, em todos as nossasestruturas de modelo que vimos até aqui, tínhamos apenas um grande domínio, E, constituídopor todas as entidades (ou indivíduos, ou coisas) que usamos para interpretar nossa língua. Nãodisse nada sobre o que essas coisas são: eles poderiam ser objetos concretos, como você e eu, ouessa mesa; eles poderiam ser objetos abstratos, como números, ou a ideia de virtude ou de honra,qualquer coisa. Bom, quando introduzem interpretações deste tipo, os lógicos costumam dizero seguinte: não damos a mínima para o que estas coisas são, não é parte da lógica decidir estaquestão, vocês apenas nos repassam estas coisas e diremos a você o que você pode fazer com elas.Acho que esta é uma atitude apropriada para os lógicos. Se estamos interessados em questõesempíricas sobre as línguas ou a respeito da �loso�a da linguagem, contudo, já não é mais tão claroque esta seja uma posição adequada. A propósito, alguns �lósofos �cam preocupados quandoprecisam falar sobre propriedades, proposições ou mundos possíveis, e coisas como estas, porqueeles acham que são �entidades misteriosas�; mas eles não parecem sentir nenhum desconfortoquando falam sobre um domínio de indivíduos �xo e determinado. A noção de `coisa', noentanto, parece bastante misteriosa também, exatamente como a noção de `propriedade' ou de`mundo possível' ou de `proposição'.

Podemos mudar esse cenário simplista de duas maneiras: a primeira seria introduzindo maisestrutura no domínio E. A outra seria introduzindo conjuntos totalmente novos de coisas naestrutura de modelo, assim como introduzimos mundos e tempos como elementos primitivosnovos. Hoje iremos nos concentrar no primeiro tipo de abordagem; na próxima aula no segundo.Em cada caso, acrescentarei mais detalhes à teoria de Montague para formar uma base comume tentarei mostrar como os problemas que nos levaram às mudanças sugeridas não parecem teruma solução adequada dentro do sistema de Montague.

Deixem-me primeiro revisar e expandir um pouco a estrutura de M2, o modelo formalbásico do PTQ de Montague. Como vimos, os elementos primitivos que são usados em M2 sãodistribuídos nos conjuntos {0, 1}, E, W e J . A partir destes conjuntos, Montague construiu umsistema hierárquico de denotações possíveis de forma que as denotações são funções de quasetodos os tipos que possamos construir, tendo estes conjuntos como base. Por exemplo, podemoster funções dos seguintes tipos:

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1. E → {0, 1}.

2. E → (E → {0, 1}).

3. {0, 1} → {0, 1}.

4. E → E.

5. {0, 1} → E.

O exemplo 1 representa o conjunto de funções de indivíduos para valores de verdade, e osoutros também seguem este mesmo caminho. Alguns destes conjuntos de funções possuemcontrapartes (ou quase) na interpretação do PTQ (exemplos 1, 2, e 3), mas alguns não (exemplos4 e 5). Além disso, Montague incluiu como denotações possíveis, para cada tipo de entidadeou função uma função adicional especial de pares de mundos e tempos para aquelas entidadese funções. Este último tipo de função é o que Montague chamou de intensões (com s!). Éisso que torna sua lógica �intensional�. Elas também são chamadas de sentidos, e a teoria deMontague é um exemplo especí�co de uma tentativa de explicar uma distinção importante quefoi introduzida na �loso�a da linguagem pelo �lósofo e lógico alemão Gottlob Frege, a distinçãoentre sentido e referência. Muitas páginas foram escritas sobre o que Frege queria dizer, oucomo podemos reconstruir esta diferença. Grosseiramente, podemos dizer que a referência éa coisa de fato (ou algo em algum mundo) que corresponde à expressão em questão, o queela identi�ca; enquanto que o sentido é aquilo que nos permite saber como identi�cá-la � ou,em uma linguagem mais fregeana: um modo de se referir a alguma coisa. (A contraparte dotermo intensão é extensão, de forma que a seguinte proporção se mantém para estes pares determos: sentido:referência::intensão:extensão.)1 Esta distinção será de grande importância nanossa próxima aula, quando falarmos sobre as propriedades; mas, só para começarmos a nosacostumar com essa ideia, vamos considerar dois exemplos de funções intencionais do PTQ.

(A razão pela qual eu tive que dizer �quase� acima é a seguinte: embora todos os exemplosde funções possíveis, acima, existam na estrutura de modelos geral do PTQ como denotaçõespossíveis, nem todas são de fato usadas diretamente na interpretação do fragmento do inglês,nem nas interpretações derivadas que são usadas nas estipulações que Montague oferece paraas restrições às intepretações possíveis (os chamados postulados de signi�cado, que logo serãoestudados, na próxima aula). Isso se deve em parte ao caráter intencional de suas interpretações,como acabamos de ver. Por exemplo, as contrapartes mais próximas para as funções do tipoexempli�cado em (3) � de valor-de-verdade para valor-de-verdade � é o tipo para advérbioscomo necessariamente que tomam intensões de valores-de-verdade, isto é, proposições (〈s, t〉),para valores-de-verdade. O tipo do exemplo (3) seria apropriado para operadores estritamenteverifuncionais como a negação, mas a negação no PTQ é introduzida sincategorematicamente(isto é, por regra) e não existe nenhuma categoria sintática para palavras como não. Em geral,as regras semânticas do PTQ que correspondem às regras sintáticas que reúnem categoriasfuncionais e suas categorias argumentais (ou objetos) aplicam a denotação da expressão funcional� verbo, advérbio, preposição � à intensão da denotação da expressão que é argumento.)

Suponha que queiramos saber o que corresponde melhor aos signi�cados dos nomes do PTQ.Bem, partindo de nossa interpretação do CP, podemos esperar que os nomes correspondama indivíduos, isto é, membros de E; isso parece correto, mas só parcialmente. Mesmo quedesconsideremos a complicação introduzida pela interpretação dos nomes, nas línguas naturais,como quanti�cadores generalizados, de modo que D(j) designe o conjunto dos conjuntos aosquais João pertence, ainda que j seja uma constante na nossa língua, alguns outros tipos deexpressões nominais parecem exigir um tratamento diferente. Considere a expressãoMiss Brasil.Todo ano, no Brasil, ocorre um concurso no qual mulheres jovens e solteiras participam de uma

1NT: o sentido está para a referência, assim como a intensão está para a extensão.

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58 AULA 5. TIPOS DE COISAS

disputa baseada na beleza, no charme e no talento delas. A vencedora desse concurso é chamadade Miss Brasil durante um ano de �reinado�. Suponha que a Vera Fischer seja a Miss Brasil esteano. Em alguns contextos, podemos substituir o seu nome de batismo e o seu pseudônimo MissBrasil, sem que isso cause qualquer diferença:

6. Vera Fischer é bonita.

7. A Miss Brasil é bonita.

Parece claro que o exemplo (6) seria verdadeiro se e somente se o exemplo (7) fosse verdadeiro,em qualquer mundo e em qualquer tempo. Bem, não exatamente em qualquer mundo e emqualquer tempo, porque em um tempo diferente (digamos que qualquer tempo excetuando-seeste ano) as duas expressões não irão se referir ao mesmo indivíduo. Por outro lado, considereos exemplos (8) e (9):

8. Vera Fischer deve ser bonita.

9. A Miss Brasil deve ser bonita.

Aqui, pode-se argumentar que a sentença (9) será verdadeira em qualquer mundo e em qualquertempo, enquanto que (8) pode ser verdadeira neste mundo, embora certamente não é precisoque ela seja verdadeira em outros mundos. Para lidar com essa diferença, Montague introduziuduas coisas na sua interpretação. A primeira delas é o indivíduo, que é exatamente aquilo quedissemos que ele era, ou seja, algum membro de E. A segunda é o conceito individual, queé uma função de pares de tempo e mundo para indivíduos. Assim, podemos distinguir duasformas de entender a expressão Miss Brasil : a primeira, como a pessoa de fato apontada comoaquele indivíduo naquele mundo e naquele tempo; a outra, como a função intencional que nospermite encontrar o indivíduo que é a Miss Brasil em qualquer mundo e em qualquer tempo.Essa distinção nos permite compreender uma ambiguidade em uma sentença como a do exemplo(10):

10. A cada ano, a Miss Brasil vem �cando mais alta.

De volta à Vera Fischer, a sentença (10) seria completamente falsa, caso interpretássemosMiss Brasil extensionalmente; mas seria verdadeira se pensássemos intencionalmente. Em suainterpretação do português no PTQ,2 Montague tomou como base apenas os conceitos indivi-duais, mas incluiu um modo especial de �descer� aos indivíduos. Alguns pesquisadores depoisdele, discordando de sua solução para o problema especí�co que motivou o seu uso dos conceitosindividuais, desconsideraram esta distinção e apresentaram fragmentos que se baseiam exclusi-vamente em indivíduos (mantendo os elementos intensionais para outros níveis de funções), masalguns argumentos que ainda persitem (tal como aquele sobre a Miss Brasil) me fazem acharque continua sendo uma boa ideia manter os conceitos individuais como interpretação possível(veja-se [7] para uma defesa dos conceitos individuais de Montague).

O outro exemplo de entidade intensional que irei mencionar muito brevemente hoje é aproposição, como Montague a interpretou no PTQ e em outros lugares. Mais uma vez seguindoFrege, Montague assumiu que a denotação de uma fórmula ou sentença é um valor de verdade,que é o que eu também tenho feito por aqui. Eu disse que esta teoria nos permitiu ter denotaçõesque eram funções de mundos e tempos para todos os tipos de denotações que possamos construir apartir de valores de verdade e entidades. Isto também é assim com a proposição. Uma proposição,para Montague, é uma função de um par mundo-tempo para um valor de verdade. Desta forma,a denotação de uma sentença como Está chovendo em Tianjin, num certo mundo e num certo

2NT: Claro, Montague tratou apenas do inglês no PTQ. Mas aqui o argumento também funciona comos dados do português.

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tempo, só pode ser 1 ou 0, dependendo de estar ou não chovendo em Tianjin naquele mundo enaquele tempo. A proposição correspondente àquela sentença, porém, é um tipo de coisa muitomais poderosa. Ela é uma função que nos dirá para todos os pares mundo-tempo, se a sentença éverdadeira ou falsa. Montague usou esta ideia ao dizer como deveríamos entender palavras comoacreditar, que ele considerou relações entre indivíduos e proposições, não sentenças ou valoresde verdade.

Como se pode ver a partir dos exemplos e das discussões precedentes, encontramos na teoriasemântica de Montague uma quantidade in�nita de denotações. Elas são organizadas em umahierarquia chamada de tipos. Deixem-me mostrar a vocês como isso funciona. Fazemos issoatravés do que se chama de�nição recursiva. Um exemplo de uma de�nição recursiva da teoriados números é a seguinte de�nição do conjunto dos inteiros não-negativos (isto é, os números 0,1, 2, . . . ). Chamemos este conjunto de N . Temos que ter um conceito primitivo ou não-de�nido:a ideia de sucessor, ou próximo número. Aqui vai a de�nição:

i. 0 é membro de N ;

ii. Se qualquer número x é membro de N , então o sucessor de x também é membro de N ; e

iii. Nada mais é um membro de N .

A cláusula (iii), a chamada cláusula de exclusão, é necessária para garantir que tenhamos criadoum conjunto de�nido que não inclui nada além dos números inteiros não-negativos.

Agora vou ser um pouco mais tecnicista e vou introduzir uma notação que Montague usouao falar da hierarquia dos tipos. Aqui está a de�nição recursiva do conjunto tipo:

i. e e t são membros de tipo;

ii. Se a e b são membros de tipo, então 〈b, a〉 também é;

iii. Se a é membro de tipo, 〈s, a〉 também é; e

iv. Nada mais é um membro de tipo.

Bom, o que isso tudo quer dizer? Podemos usar estes símbolos para de�nir a hierarquia de tiposdos elementos que constituem a denotação atribuída às expressões:

a. Denotações do tipo e são elementos de E.

b. Denotações do tipo t são elementos de {0, 1}.

c. Denotações do tipo 〈b, a〉, nas quais b é diferente de s, são funções totais de elementos dotipo b para elementos do tipo a.

d. Denotações do tipo 〈s, a〉 são funções totais de pares de mundo-tempo para elementos dotipo a.

Deixem-me explicar algumas expressões que usei aqui. Primeiramente, de�nições como as queacabei de apresentar são chamadas de de�nições recursivas, porque em todas as cláusulas, menosnas primeiras (a �base�) e a última (a cláusula de exclusão), encontramos as mesmas coisasaparecendo tanto na parte do �se� quanto na parte do �então�. Em segundo lugar, já sabemos oque é uma função. Mas o que é uma função total? É uma função em que sempre há um valorpara cada elemento do conjunto no qual ele é de�nido. Esse é um aspecto importante da formacomo Montague faz semântica, e retornarei a isso posteriormente, porque esse aspecto tem sidocontestado em vários trabalhos recentes, nos quais se alega que seria preciso dispor de funçõesparciais, funções para as quais nem sempre há um valor.

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Agora podemos usar essa notação para codi�car o que dissemos um pouco antes sobre osconceitos individuais (tais como Miss Brasil) e sobre as proposições. Um conceito individual éum objeto do tipo 〈s, e〉; uma proposição é um objeto de tipo 〈s, t〉. Aqui temos mais algunsexemplos para treinar:

〈e, t〉

Esse é o tipo das funções de conceitos individuais para valores de verdade. Qualquer funçãoque leve de algo a valores de verdade é equivalente a um conjunto, pois ela nos responde, paracada objeto no seu domínio (isto é, o conjunto a partir do qual ele é de�nido), Sim (1) ou Não(0). Este tipo corresponde a várias espécies de predicados, na interpretação de Montague parao inglês, adaptados aqui para o português: verbos intransitivos como caminhar, nomes comunscomo peixe ou unicórnio. Aqui está o tipo que a teoria de Montague atribui para quanti�cadoresgeneralizados:

〈〈s, 〈〈s, e〉, t〉〉, t〉

Como podemos ver um t lá no �nal, sabemos que estamos lidando com um conjunto de coisas.Estas coisas são propriedades, coisas intencionais de tipo 〈s, 〈〈s, e〉, t〉〉. O que elas são? Emrazão do s no começo, sabemos que são funções de pares mundo-tempo para coisas do tipo〈〈s, e〉, t〉. Este é um conjunto de coisas de tipo 〈s, e〉; isto é, conceitos individuais.

(Se você escarafunchar o PTQ, ou ler alguns dos trabalhos introdutórios que listei ao �mda aula 1, você vai constatar que estamos pulando um passo na interpretação de Montaguepara um fragmento do inglês. O que Montague fez no PTQ não foi interpretar diretamente o�inglês desambiguizado�; ao invés disso, ele de�niu uma outra língua com a lógica intencional, LI,ofereceu regras para traduzir o inglês para esta língua e então apresentou uma interpretação paraLI. A hierarquia dos tipos é construída diretamente na estrutura da LI. O ponto importante aquié que esta hierarquia impõe uma certa estrutura sobre as denotações atribuídas � indiretamente� para as expressões do inglês propostas em sua gramática. Montague partiu dos trabalhosanteriores sobre as hierarquia de tipos de Russell, Church e outros.)

As primeiras extensões ao trabalho de Montague frequentemente recorreram a este tipo deuniverso hierárquico para lidar com mais tipos de expressões do que aquelas que Montagueincluiu no seu fragmento. Por exemplo, suponham que queiramos entender sentenças comoestas:

11. Aquela proposição é falsa.

12. O fato de que está chovendo não me perturba.

Aparentemente, algumas expressões do português se referem a coisas como proposições, e énatural pensar que um sintagma nominal como o fato de estar chovendo deveria ter o mesmotipo de interpretação que uma oração como que está chovendo. Este último tipo de oraçãofoi incluído no PTQ e foi interpretado como uma proposição. Frequentemente descobrimosque verbos que aceitam objetos diretos iniciados com que também aceitam sintagmas nominais�proposicionais� como objetos diretos:

13. Eu não acredito que a terra seja plana.

14. Eu não acredito naquela proposição.

Assim, algo natural a se fazer (e foi feito em [4]) é permitir que nomes como proposição denotemconjuntos de proposições. Desta forma, tem-se um tipo totalmente diferente de denotação. Demodo similar, se nos perguntarmos sobre como tratar nomes comuns plurais como cães, parece

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natural achar que eles denotam conjuntos de entidades. A hierarquia dos tipos de MontagueTemos já nos oferece essa possibilidade. E é exatamente o que Michael Bennett [2] fez no primeiroestudo criterioso sobre o plural em inglês dentro da Gramática de Montague.

Mas essa abordagem tem um problema. Para explicar este problema, tenho que falar umpouco mais da teoria de Montague sobre a relação entre categorias sintáticas e os tipos de deno-tações que elas determinam. Nesta teoria, parte da interpretação de uma língua formal é umafunção que mapeia as categorias sintáticas em tipos de denotações. Isto signi�ca que, se duaspalavras na língua formal pertencem à mesma categoria sintática, então elas não podem terdenotações de tipos diferentes. Assim, na interpretação da língua portuguesa, do modo como aapresentamos, os nomes comuns cão, cães, e proposição teriam que pertencer a categorias sin-táticas diferentes. Para um linguista, isto é desconfortável, porque faz da sintaxe dos sintagmasnominais para esses tipos de nomes comuns, por exemplo, um completo acidente, quando elestêm claramente muitas coisas em comum.

Deixem-me interromper aqui, apenas com esta indicação sobre o motivo do aparecimentode di�culdades quando usamos a teoria de tipos de Montague para chegarmos a diferentestipos de denotações para palavras que aparentemente pertencem à mesma categoria sintática.Durante o resto desta aula, explorarei outra espécie de abordagem para as indubitáveis diferençasde signi�cado que palavras da mesma classe sintática parecem exibir. Este segundo tipo deabordagem assume uma posição que nos permite pensar em E � o domínio dos indivíduos �como algo estruturado. Começarei com um exemplo simples e a partir disso ocuparei o restanteda aula para detalhar dois tópicos: plurais e termos para espécies (`kinds').

Considere as seguintes sentenças:

15. César é um número primo.

16. A teoria da relatividade é cintilante.

Certamente elas são sentenças incomuns. A maioria das pessoas diria que elas não fazemsentido. O que temos a dizer sobre elas? Podemos dizer que elas são simplesmente falsas.Mas considerando nosso modo de olhar para os signi�cados, preferiríamos nos perguntar se háum mundo possível no qual elas seriam verdadeiras. Minha reação seria dizer �não�. E se euconsultar minhas intuições, provavelmente diria algo como: a razão para estas sentenças seremincomuns é que César (um homem) não é a espécie de coisa que pode ser um número primo ea teoria da relatividade não é o tipo de coisa que pode ser cintilante (ou não).

Vou agora falar de abordagens que, quase literalmente, incorporaram estas ideias, isto é,teorias nas quais o domínio E se divide em diferentes tipos de coisas, e consideramos estasdiferenças quando construímos expressões complexas envolvendo palavras que correspondem atipos diferentes. Deste modo, a estrutura básica de nosso modelo (M2) permanece a mesma,mas atribui-se a E uma determinada estrutura interna. Para os exemplos que acabamos deapresentar, poderíamos dizer que E resulta da união de dois subdomínios E1 e E2, digamos,correspondendo aos objetos físicos como as pessoas e os carros (que podem ser cintilantes) eobjetos abstratos como teorias e números (que jamais podem ser cintilantes).3

Vamos re�etir, agora, sobre o signi�cado dos plurais. Como vocês sabem, o português fazuma distinção obrigatória entre nomes comuns singulares (cavalo) e plurais (cavalos). Quaissão as diferenças de signi�cado, se é que haja alguma, entre esses dois tipos de expressões?Quero me concentrar especialmente em uma teoria particular de plurais proposta poucos anosatrás pelo linguista alemão Godehard Link. Mas queria colocar esta questão num contexto umpouco maior: exatamente naquele que questiona as relações entre signi�cados em uma língua esigni�cados em outra língua, particularmente em relação à natureza das distinções obrigatóriase sua semântica. Esta questão mais ampla precisa ser colocada, mas não tem abordada com

3NT: Da forma como foram apresentados, E1 e E2 são disjuntos: não compartilham nenhum elementoem comum � se uma entidade é concreta, não pode ser abstrata; e vice-versa.

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muita frequência na semântica de orientação formal com a qual estamos lidando nestas aulas. Ofenômeno que demanda uma distinção entre singular e plural (ou entre singular, dual e plural)certamente não é universal. Assim, a questão é esta: qual é a relação entre os signi�cados daspalavras tais como cavalo e cavalos e o signi�cado de uma palavra como m�a em chinês, que nãopossui essa distinção obrigatória.

Este tipo de questão é extremamente importante quando estamos interessados em desvendarproblemas da teoria linguística geral no domínio da semântica. Nesta linha geral de pensamento,estamos tentando responder uma questão bem importante: O que é Língua? Estamos tambémtentando achar respostas para questões igualmente importantes: Como as línguas se diferen-ciam e como elas poderiam se diferenciar? Estas duas questões são, num certo sentido, apenasa�rmações sobre o que a linguística é.

Alguns linguistas e outros pensadores que re�etem sobre as línguas parecem assumir a posiçãode que a semântica deveria ser ou é �mais universal� do que outras partes da teoria linguística.Pode-se querer sustentar esta a�rmação por duas razões: uma seria porque signi�cados sãodeterminados pelo pensamento, as categorias do pensamento que todos compartilhamos comoseres humanos; a outra seria porque os signi�cados são determinados pelo modo como o mundoé, e todos habitamos o mesmo mundo. Há motivos para sermos céticos em relação a ambas asrazões, e muitos estudiosos assumiram posições completamente contrárias; uma, em particular,diz (apresentada bem cruamente) que uma língua é um tipo de tela pela qual vemos o mundo eatravés da qual pensamos. As línguas diferem de maneiras óbvias. Portanto, era de se esperarque os signi�cados das palavras e de outras expressões em línguas diferentes apresentassemdiferenças bem claras. Enquanto não for possível apresentar argumentos a priori sobre estasquestões, podemos apenas propor e testar hipóteses universais sobre o signi�cado, da mesmaforma que se faz na fonologia ou na sintaxe.

Para introduzir a teoria de Link para os plurais, deixem-me reiterar que a análise de Monta-gue para o inglês lida somente com o singular: sintagmas nominais singulares, nomes singulares,verbos que os acompanham (caminha e não formas �exionadas para plurais como caminham,são, e assim por diante). A denotação que Montague atribuiu a um nome comum singular comocavalo era exatamente aquilo que apresentamos na nossa interpretação do CP: D(cavalo) = oconjunto dos cavalos (basicamente, há uma diferença em relação ao que foi indicado anterior-mente nesta aula, devido ao uso dos conceitos individuais).

Presumo que todos saibam o que é um cavalo. Qual é a denotação de cavalos usado comoum nome comum nesta sentença:

17. Estes cavalos são brancos.

Michael Bennett ofereceu a primeira resposta para essa questão no estilo da semântica deMontague. Bennet disse: D(cavalos) é o conjunto dos conjuntos de cavalos, de modo que todavez que usamos a palavra cavalos estamos nos referindo a conjuntos de cavalos. Suponha quetemos um cavalo individual, vamos chamá-lo de Abraão; então ele estaria dentro da denotaçãode cavalo. Mas se você tem dois cavalos, Abraão e Berenice, o conjunto constituído pelos doiscavalos estaria dentro da denotação do plural cavalos.

Não vou listar um monte de argumentos contra a ideia de Bennett; vou apenas apresentar ateoria de Link da maneira como ela é � um modo diferente de olhar para os plurais � porqueé uma boa forma de ilustrar como se pode �fornecer mais estrutura para o domínio�. (Eis umproblema com a teoria de Bennett: como a denotação de singulares e plurais é distinta teóricae tipologicamente daquela que apresentei anteriormente, todas as categorias sintáticas precisamser duplicadas, e o predicado corre para um sujeito singular tem que ser diferente do predicadocorrem com um sujeito plural; assim, seria difícil compreender como poderíamos dizer coisascomo Abraão corre, bem como estes outros cavalos. Retornarei a este problema de �in�açãosintática� na próxima aula.)

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Link disse que todo nome comum como cavalo está associado a um certo tipo de estruturaà qual chegamos quando admitimos uma operação que forma o que ele chamou de indivíduosplurais. Assim, podemos considerar Abraão e Berenice, e formar um indivíduo plural (Abraão +Berenice), que pode ser o signi�cado de Abraão e Berenice ou de aqueles dois cavalos. Podemostambém de�nir uma certa relação entre parte e todo de forma que Abraão seria parte do indivíduoplural (Abraão + Berenice). Como isto difere da teoria de Bennett? A diferença crucial é queestes indivíduos plurais são, estritamente falando, elementos de E � o domínio dos indivíduos.A seguinte ilustração nos diz como esta estrutura se parece: se tivermos três cavalos no domínio,Abraão (A), Berenice (B), e Clara (C), então a subestrutura de cavalos em E seria parecida como seguinte:

A+B A+C B+C

A+B+C

A B C

As linhas indicam a relação parte-todo que mencionei e o �+� (como já havia usado antes)indica a operação de formar um indivíduo plural � ou �fusão� � a partir de dois indivíduos.Observem, contudo, que a operação é estipulada como se fosse associativa � isto é, (A + B) +C = A + (B + C) � que é o que justi�ca deixarmos de lado os parênteses e escrever apenas A+ B + C na linha de cima. Os itens na parte mais baixa são chamados de átomos; eles são ascoisas que estritamente não possuem partes individuais menores.

Repetindo, Link diz que a denotação de cavalos é apenas o conjunto de indivíduos pluraisque são cavalos. De fato, Link não diz bem isso. Para construirmos uma estrutura algébricacorreta, precisamos dos átomos na parte de baixo, como parte da subestrutura do domínio;para apresebtar o signi�cado exato de nomes comuns do português como cavalos, contudo, Linkprecisou excluir os átomos, assim o signi�cado real de cavalos é o conjunto de indivíduos pluraisque são cavalos menos os átomos. E isto é algo especí�co do português que precisa ser dito: adenotação de cavalo se constitui unicamente dos átomos, e a de cavalos é composta pelos não-átomos. Todo nome comum, ou melhor, todo nome comum contável em português está associadoa uma estrutura algébrica desse tipo. E, em português, como vimos, temos que excluir os átomosda denotação de um nome comum plural.

Agora o que se pode dizer de uma palavra como m�a, em chinês? Suponha que assumamosque o chinês tem basicamente o mesmo tipo de estrutura associada com cada nome comumcontável como m . Logo, poderíamos dizer que a única diferença entre o chinês e o português,nesse aspecto, é que, para o chinês, não é preciso fazer essa distinção particular entre átomos enão-átomos na estrutura. Se estamos certos, a denotação de m�a é apenas a união das denotaçõesde cavalo e cavalos.

D(m�a) = D(cavalo) ∪D(cavalos)

Esta me parece uma maneira bem apropriada de olhar para a diferença entre o chinês e oportuguês, no que diz respeito a este caso em particular. E me parece que uma boa parte dasdiferenças entre as línguas em relação a distinções necessárias em uma língua, mas não em outra,podem vir a ser algo desse tipo. Notem que em nenhum momento a�rmamos que m�a é ambíguo.

A partir daqui, vou fazer algumas especulações para comentar outra diferença impressio-nante entre o português (e muitas outras línguas), de um lado, e o chinês (e muitas outraslínguas), por outro lado: o modo como contamos. Uma das primeiras coisas que um falante

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64 AULA 5. TIPOS DE COISAS

do português precisa aprender sobre o chinês (japonês, tailandês, e assim por diante) é que nãose pode meramente pegar um número e um nome comum e colocá-los juntos, como fazemosem português (três cavalos, cinco mesas, seis porcos). É preciso aprender todo um sistema declassi�cadores ou contadores para parear o tipo certo de contador e o numeral para obtermosas expressões equivalentes. Dessa forma, por exemplo, o classi�cador para cavalo em chinês ép�i. Esta é a especulação: talvez a falta de uma distinção obrigatória entre singular e plurale o uso de classi�cadores deste tipo estejam associados, e possam ser explicados da seguinteforma. Retomando nosso diagrama da estrutura algébrica associada a m�a ou a cavalo e cavalos,podemos perguntar: quantos m�a existem? Depende de como você conta! Se permitimos que osindivíduos plurais que se sobreponham sejam contados como cavalos diferentes, então há sete;se excluímos esta possibilidade, então temos mais de uma resposta possível: um (A + B + C),ou três (só os átomos), ou dois ( de três formas diferentes: A e B + C; ou B e A + C; ou C eA + B). Tudo isto acaba sendo bem confuso! Mas suponham que o signi�cado do classi�cadorseja uma forma de introduzir explicitamente a diferença entre as denotações do singular e doplural do português; isto é, ele restringiria a denotação do nome comum apenas aos átomos:então temos uma resposta clara e não ambígua. Se isto estiver correto, então uma distinçãoconstruída dentro da distinção obrigatória em português, é construída dentro do chinês, quandoisto for relevante.

O artigo de Link trata de outro tópico extremamente interessante: a semântica dos nomesde massa como lama, sangue, e assim por diante. Resumidamente, seu método consiste emintroduzir mais estrutura no domínio. Há um subconjunto especial de átomos no domínio, quechamarei de S (S de �substância�; Link o chama de D); os elementos deste subdomínio devem serentendidos como �quantidades de matéria�, e eles participam de sua própria estrutura algébrica,com suas relações parte-todo próprias. Diferentemente da álgebra dos nomes contáveis, contudo,a álgebra da substância não é atômica; isto é, não há necessariamente nenhuma parte menorde pedaços de matéria. (Obviamente, isto causa alguma confusão, pois eu disse que eles eramátomos, mas isto só vale integralmente para a outra estrutura algébrica geral para E). Alémdisso, este domínio da substância está relacionado ao grande domínio E de modo especial: háum mapeamento de E para S que preserva a relação parte-todo, de forma que a substânciacorrespondente às partes individuais de uma fusão de indivíduos em E deve conter partes dasubstância correspondente à fusão como um todo. Em português, nomes de massa agem maisou menos como todos os nomes em chinês: não se pode contá-los diretamente. Novamente, issoproduz questões semânticas translinguísticas interessantes.

Para o restante desta aula, vou considerar outro uso ou signi�cado para palavras do portuguêscomo cavalos, quando usadas como sintagmas nominais completos, como na sentença 18.

18. Cavalos são mamíferos.

Vou me referir especialmente a Greg Carlson, cujo trabalho sobre os plurais genéricos, comopodemos chamá-los, foi uma dos primeiros estudos dentro da tradição montagoveana a sugeriruma mudança fundamental na estrutura de modelo; de novo, um modelo no qual se atribui aodomínio E mais estrutura.

À primeira vista, uma expressão como cavalos parece ser ambígua. Vejamos as seguintessentenças:

19. Cavalos têm rabos.

20. Cavalos estavam galopando pela planície.

Nas sentenças 18 e 19, parece que estamos pensando em todos os cavalos:

21. Todos os cavalos são mamíferos.

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22. Todos os cavalos têm rabos.

Mas no exemplo 20 parece que estamos falando só sobre alguns cavalos:

23. Alguns cavalos estavam galopando pela planície.

Por esta razão, muitas pessoas assumem que haja, em um sintagma nominal como cavalos, algumtipo de determinante escondido ou �0�. Mas, se re�etirmos um pouco, percebemos um problema.Primeiramente, há o que se costuma chamar de o quebra-cabeça de Port-Royal (porque ele foidiscutido no famoso trabalho do século XVII, Lógica ou a Arte de Pensar, de Antoine Arnauld,da Escola de Port-Royal). Arnauld se perguntou o que signi�caria dizer algo como o exemplo19 ou o seguinte:

24. Holandeses são bons marinheiros.

Holandeses, aqui, são signi�ca o mesmo que todos os holandeses, pois não consideraríamos asentença falsa se encontrássemos algum holandês que fosse um péssimo marinheiro. Carlson dáexemplos interessantes como este:

25. Galinhas botam ovos.

É obviamente falso que todas as galinhas botam ovos; somente as fêmeas adultas fazem isso.O argumento mais decisivo contra a ideia de que devemos encontrar algum determinante emum sintagma plural nu reside na observação de que estes sintagmas jamais apresentam qualquerambiguidade de escopo do tipo que notamos na aula II, com respeito a algum e a todos. Compareestas duas sentenças:

26. Algum cavalo come todo tipo de feno.

27. Cavalos comem todo tipo de feno.

A sentença 26 é ambígua em relação ao escopo dos quanti�cadores; a sentença 27 não. Nessesentido, plurais nus são como nomes, que também não apresentam ambiguidades de escopo.Resumidamente, a teoria de Carlson trata a denotação dos plurais nus exatamente como a dosnomes próprios. Mas os plurais nus são nomes de quê? Novamente, gostaríamos de pensar emdiferentes tipos de coisas. De acordo com a teoria de Carlson, o domínio E contém três tiposdiferentes de indivíduos: espécies (kinds), objetos (objects) e etapas (stages). Algumas sentençascom o sintagma cavalos estão falando algo sobre etapas da espécie. Outras estão falando algosobre etapas de indivíduos da espécie. Como explicar a aparente ambiguidade nos exemplos queacabamos de ver? De acordo com a teoria de Carlson, a ambiguidade reside em outras partesda sentença. Um argumento para a conclusão de que não há nenhuma ambiguidade no pluralnu em si mesmo vem de sentenças como esta:

28. Márcia odeia coelhos, porque eles destruíram o seu jardim na última primavera.

Aqui, na primeira sentença, coelhos é compreendido genericamente, mas o eles anafórico é usadoem uma sentença que diz algo sobre etapas de indivúiduos.

O que é uma etapa? Admite-se que uma etapa seja uma �manifestação� de um objeto ou deuma espécie, limitada espacial e temporalmente. Deixem-me parafrasear duas sentenças parailustrar a diferença:

29. João fuma.

30. João está fumando.

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66 AULA 5. TIPOS DE COISAS

Ambas as sentenças dizem algo sobre o tipo de objeto individual que é o João. Mas a segundadiz mais algo como: João é tal que há uma etapa dele que está fumando.

Resumindo de forma bastante sucinta, a revisão de Carlson postula este tipo de domíniodiversi�cado:

E = O (objetos (objects)) ∪K (espécies (kinds)) ∪ S (etapas (stages))

Além disso, duas relações de �realização� se estabelecem entre estes domínios: R1 relacionaas Espécies e os Objetos com as Etapas, R2 relaciona as Espécies aos Objetos.

O trabalho de Carlson contém dados muito interessantes, e ele construiu um ponto de par-tida para vários trabalhos (alguns dos quais irei mencionar na próxima aula). Para encerrar adiscussão, quero compartilhar com vocês um problema interessante da �loso�a chinesa antiga.(Devo esse exemplo a Bao Zhi Ming.) Ele tem a ver com a seguinte sentença:

31. Cavalos brancos não são cavalos.

Ela é necessariamente falsa? Se estivermos pensando simplesmente em termos de conjuntosde coisas � cavalos brancos são coisas que são tanto cavalos e quanto brancas � então a respostaparece ser sim. Mas considerando a teoria na qual cavalos brancos envolve (como um quanti-�cador generalizado) uma certa Espécie, uma pergunta genuinamente �losó�ca (ou cientí�ca)precisa ser feita: qual é a relação entre duas Espécies com nomes diferentes mas relacionados: ca-valos brancos e cavalos. Observem que, em geral, não podemos assumir que sintagmas da formaNome + Adjetivo denotem conjuntos de coisas que resultam da intersecção das denotações deduas palavras (livros falsos não são livros).

Consideramos aqui, muito sucintamente, duas evoluções que postulavam algo em relação àestrutura de modelo, introduzindo diferentes espécies de coisas � ou classes (sorts), como sãofrequentemente chamadas no jargão técnico. Gostaria de encerrar apontando a consequênciade se usar domínios diversi�cados. O que vamos dizer sobre sentenças nas quais um predicadoque é apropriado para um tipo de coisa é aplicado a um termo do tipo errado? Uma estratégiacomum é modi�car os valores de verdade da estrutura de modelos; por exemplo, postulando trêsvalores de verdade. Outra, não necessariamente distinta da anterior, é não usar funções totais,mas funções parciais. Mas essa é uma longa história. Espero que possamos voltar a isso nanossa aula �nal.

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Aula 6

Propriedades e Questões Parecidas

Na aula anterior, falei sobre espécies e plurais, e vimos como vários linguistas começaram amodi�car a estrutura de modelo herdada do PTQ de Montague. Hoje, vou continuar observandoalgumas modi�cações que foram propostas nestes últimos anos. Também tinha falado sobredois tipos de objetos intencionais na interpretação que Montague ofereceu para um fragmentodo inglês: conceitos individuais e proposições. Começarei hoje observando um terceiro tipo deelemento intensional em M2: as propriedades.

Vocês devem se recordar que, em geral, os objetos intensionais são todas as funções deum certo tipo � funções do par tempo-mundo para alguma coisa: indivíduos, no caso dosconceitos individuais; valores de verdade, no caso de proposições. Na teoria de Montague, aspropriedades são funções do par tempo-mundo para conjuntos. (Como isso não é particularmenterelevante hoje, vou ignorar a distinção entre tempo e mundo, falando apenas sobre mundos).Consequentemente, a propriedade de ser humano é muito mais do que apenas o conjunto doshumanos; ela é uma ideia muito mais poderosa, já que, quando eu a possuo, posso viajar paraqualquer mundo que eu quiser e encontrar os humanos nele, se existirem.

Esta noção nos fornece um bom início em relação à compreensão de alguns problemas queencontramos quando pensamos apenas em termos de conjuntos como a única denotação possívelpara os predicados, como na interpretação padrão do CP (nosso M1). Eis um exemplo: vamossupor que os humanos são os únicos animais racionais com duas pernas. (Digo supor, paragaratir o argumento; porque tenho algumas dúvidas sobre esta racionalidade). Consideremosum certo mundo contendo A, B e C, admitindo que eles são humanos (não cavalos, como antes),que possuem duas pernas e que são racionais; além disso, nenhum outro indivíduo no domínioE satisfaz estas descrições. Como, por hipótese, os dois sintagmas nominais comuns humanoe animal racional com duas pernas denotam o conjunto {A,B,C}, deveríamos ser capazes desubstituir uma expressão pela outra preservando as condições de verdade. Isto funciona paraalgumas sentenças:

1. A é um humano.

2. A é um animal racional com bípede.

Mas para outras não:

3. Necessariamente, A é um humano.

4. Necessariamente, A é um animal racional com bípede.

Lembrando o que necessariamente signi�ca, as sentenças 3 e 4 parecem nos comprometer coma a�rmação de que, em todo mundo possível, todos os humanos, e apenas eles, são animaisracionais bípedes, o que não parece correto. Ou, tomemos o notório caso dos contextos decrença. Como atribuímos sentido a uma sentença como esta:

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68 AULA 6. PROPRIEDADES E QUESTÕES PARECIDAS

5. Henrique acredita que A é um humano, mas ele não acredita que A é um animal racionalbípede.

Com a teoria de Montague, temos um início para chegarmos à compreensão destes problemas.É fácil imaginar mundos em que os conjuntos de humanos e animais racionais bípedes sejamdiferentes, assim estas propriedades podem ser diferentes.

Esta abordagem é su�cientemente adequada? Vou apresentar alguns argumentos para mos-trar que não é.

A di�culdade que iremos discutir é um caso especial de um problema muito mais geralque surge em estruturas de modelo do tipo usado por Montague, e torna essencial o uso deuma compreensão estritamente matemática das funções. Nesta concepção, uma função (de umlugar) é exclusivamente o conjunto dos pares ordenados (ou, mais genericamente para funçõesde n-lugares, um conjunto de n + 1-uplas ordenadas). Agora, consideremos quaisquer objetosintensionais necessariamente equivalentes; isto é, que nos dê o mesmo objeto em todos os mundospossíveis. Nesta maneira de conceber as coisas, aquilo que acharíamos que devem ser objetosou sentidos intensionais diferentes são, no �nal das contas, idênticos. Vamos ver três tipos deintensões que consideramos até agora.

Primeiro, as proposições. Nesta perspectiva, todas as verdades necessárias expressam amesma proposição, assim como todas as proposições necessariamente falsas. Deparamo-noscom o mesmo quebra-cabeças sobre as crenças, que vimos quando consideramos um perspectivaextensional dos predicados, como se denotassem apenas conjuntos. Parece que conseguimos darsentido a sentenças como esta:

6. Henrique acredita que 2 + 2 = 4, mas ele não acredita que 7 + 7 = 14.

Mas, na presente teoria, passar para o nível das proposições não nos ajuda, pois 2 + 2 = 4 e7 + 7 = 14 expressam exatamente a mesma proposição. Nesta abordagem, dispomos apenasde uma única proposição necessariamente verdadeira e uma única proposição necessariamentefalsa, e isso não parece ser o su�ciente.

Consideremos agora os conceitos individuais. Encontramos problemas similares no uso denomes em contextos de crença. Suponhamos que a Estrela da Manhã e a Estrela da Tardedesignem ambas o mesmo planeta (Vênus); consideremos as duas sentenças:

7. Sandra acredita que a Estrela da Manhã é a Estrela da Tarde.

8. Sandra acredita que a Estrela da Manhã é a Estrela da Manhã.

Parece que a sentença 7 pode vir a ser falsa, mas a sentença 8 não. Aqui, podemos apelar paraa diferença entre sentido e referência (como Frege fez) para entender o problema, mas o quefazemos com coisas necessariamente idênticas, como 5 + 7 e 12?

9. Sandra acredita que 5 + 7 = 12.

10. Sandra acredita que 12 = 12.

(Muito foi escrito sobre esse tipo de problema, que não posso começar a tratar aqui. Algumassugestões para leituras adicionais podem ser encontradas nas notas �nais desta aula.)

Em terceiro lugar, as propriedades. Existem propriedades, neste sentido montagoveano, quedesignam em todos os mundos possíveis os mesmos conjuntos? Um par plausível é compostopelas propriedades de `ser vendido' e `ser comprado' (devo a Gennaro Chierchia este exemploe sua respectiva argumentação). Parece fazer sentido dizer que, em todos os mundo possívelnos quais ocorrem compras e vendas, o conjunto de coisas que são compradas e o conjuntode coisas que são vendidas devem ser idênticos. Mas agora nos deparamos com um problema.Suponhamos que queremos dar uma semântica composicional para sintagmas verbais passivoscom termos agentivos tais como este:

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11. . . . ser beijada(o) por Bruno.

Parece haver alguma motivação linguística que justi�ca dizer que estes sintagmas são construídosadicionando o termo agentivo ao sintagma verbal passivo:

12. ser beijada(o) + por Bruno.

Mas agora temos um problema genuíno em relação à explicação que Montague oferece para aspropriedades, pois as duas sentenças seguintes teriam que ter o mesmo valor de verdade emtodos os mundos possíveis:

13. Este livro foi comprado por Maria.

14. Este livro foi vendido por Maria.

Só que isso é obviamente um absurdo.Por este, e por um monte de outros motivos, Chierchia se viu obrigado a postular uma

estrutura de modelo no qual as propriedades são entidades primitivas junto com os indivíduos;além disso, propriedades genuinamente diferentes também podem ser extensionalmente idênticasem todos os mundos possíveis. Antes de discutir a nova estrutura de modelo explorada porChierchia, quero discutir um tipo de problema completamente diferente, com o qual ele estavalidando. Este problema tem a ver com algumas das coisas de que eu falei na aula passada. E irános ajudar a ver que tipo de criaturas as propriedades são, de modo que vamos querer colocá-lasna nossa nova estrutura de modelo.

Considerem estas sentenças:

15. João é louco.

16. Ser louco é louco.

Aqui estamos aparentemente dizendo a mesma coisa sobre João e sobre a propriedade de serlouco. Mas, para a teoria das propriedades de Montague, não seria assim, pois as propriedadese os conceitos individuais são coisas de tipos diferentes; portanto, os predicados que aplicamosa eles precisariam ser diferentes. Além disso, notem que a sentença 16 parece estar atribuindouma certa propriedade para a mesma propriedade, e isso é uma das coisas que a teoria de tiposaltamente hierárquica que Montague usou foi especialmente formulada para evitar, de forma abloquear os paradoxos que surgem numa teoria irrestrita de conjuntos.

Permitam-me gastar alguns minutos para explicar qual é o problema que surge quandotentamos aplicar propriedades a elas mesmas. O problema é uma variante do paradoxo queRussell descobriu em versões irrestritas da teoria de conjuntos, nas quais achamos que podemosfalar de forma coerente sobre coisas como o conjunto de todos os conjuntos que não se contêmcomo membro. Este conjunto se contém como membro? Se sim, então ele não se contém; ese não se contém, então se contém! A versão desse paradoxo envolvendo propriedades funcionaassim: propriedades possuem propriedades, assim podemos imaginar a propriedade (a não-autoatribuição, por exemplo) que uma propriedade tem quando ela não pode ser predicada desi mesma: ser um unicórnio não tem a propriedade de ser um unicórnio, por exemplo. Agora, apropriedade de não-autoatribuição tem a não-autoatribuição como uma de suas propriedades?Mesma confusão: se sim, não; e se não, então sim!

Como a�rmamos antes, a espécie de universo de tipos da estrutura de modelo de Montague(e a língua intensional correspondente LI) foi desenvolvida por �lósofos e lógicos precisamentepara garantir que seja impossível se confundir com estes paradoxos. Mas o uso de sistemas detipos rígidos para a semântica das línguas naturais carrega consigo um preço muito alto. Umaparte deste alto preço é a proliferação das categorias sintáticas, como vimos resumidamente naaula passada. Outro preço é que seria impossível modelar a semântica de muitas sentenças daslínguas naturais. Por exemplo, pensem no que a sentença seguinte signi�ca:

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70 AULA 6. PROPRIEDADES E QUESTÕES PARECIDAS

17. Sandra gosta de todas as coisas.

O que todas as coisas designa nessa sentença? Nossas intuições nos dizem que, se o exemplo17 é verdadeiro, devemos ser capazes de concluir que Sandra gosta não somente de repolhos, reis,porcos voadores, Renato Russo, e outras coisas �corriqueiras�, mas também gosta da propriedadede ser inteligente, do fato de que a terra é redonda, do menor número primo, do conjunto dosnúmeros perfeitos, e assim por diante. Bem, usando a semântica de Montague, não se pode usar17 com um signi�cado que nos permita chegar a tais conclusões. O que fazer?

Na aula passa, vimos como foi possível superar um problema similar com os plurais aoadmitir uma nova espécie ou tipo de entidade dentro do domínio E de indivíduos. Podemosfazer o mesmo aqui, simplesmente dizendo que os indivíduos em E podem incluir um tipoespecial chamado propriedade: a propriedade de ser louco, a propriedade de ser engraçado, apropriedade de ser um cão, e assim por diante. Esses novos tipos de indivíduos diferem de modocrucial dos tipos de indivíduos dos quais falei até agora: eles possuem uma relação íntima compredicados que não é diretamente compartilhada por outros tipos de indivíduos. Assim umaexpressão da língua natural como caminhar ou amar leva como que uma vida dupla. De umlado, pode aparecer em predicações diretas em sentenças como João caminha ou Eduardo amacães; de outro, pode ser usada em expressões que designam diretamente propriedades comocaminhar é divertido ou amar é edi�cante.

Nos deparamos com diversos problemas técnicos complicados quando lidamos com sistemasque nos permitem resolver todas estas questões; por exemplo, a possibilidade de paradoxos aindanos espreita ao fundo, e precisa ser encarada de alguma forma. Não vou me envolver com estesproblemas aqui (vejam as notas �nais para algumas referências). Vou apenas dizer que estesproblemas podem ser resolvidos, mostrando a vocês como as estruturas de modelo de Chierchiase parecem. (Digo estruturas de modelo porque várias opções podem ser escolhidas e elas aindaestão sendo estudadas neste exato momento. Vou agrupá-las todas sob o título de M3). EmM3, encontramos três tipos (além de mundos): indivíduos (E), predicados (de vários números delugares), e tudo mais.1 Além disso, E é dividido em dois tipos básicos de coisas: coisas comunse os correlatos individuais dos predicados (as propriedades que lhes correspondem). Além disso,devemos assumir algum tipo de função que irá nos dar correlatos individuais para cada predicadoque possamos construir. (Estou ignorando o tipo de estrutura adicional que poderíamos ter seincorporássemos algo similar à teoria de plurais de Link no presente modelo).

Uma característica interessante do tipo de sistema que Chierchia usa é que ele pode serconstruído de forma a deixar completamente aberta a questão de se identi�car as propriedadesque correspondem a predicados necessariamente equivalentes. Sem essa identi�cação, chegamosa uma solução simples para o problema da passiva (e de outros semelhantes), ilustrado nosexemplos 11 a 14. Outra característica interessante é que o problema da in�ação sintática éevitado, e somos capazes de atribuir o signi�cado que queremos ao dizer que Sandra gosta detodas as coisas.

Como os exemplos que estamos considerando sugerem, o tema das propriedades está intima-mente ligado ao problema de oferecer uma semântica apropriada a vários tipos de nominalizações.Chierchia também mostrou como sua teoria de propriedades pode ser estendida facil e elegante-mente às nominalizações de adjetivos, e para um tratamento mais aprimorado para a semânticados sintagmas nominais plurais nus, o tipo de termo que discutimos nas aulas anteriores, tantoquanto aos nomes de massa, como nestes exemplos:

18. Esse livro é vermelho.

19. Vermelho é uma cor popular.

20. Aqueles cavalos são malhados.

1NT: não dá para deixar esse �tudo o mais�.

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21. Cavalos são mamíferos.

22. Essa peça de metal é ouro.

23. Ouro é caro.

Em cada par dessas sentenças, vemos primeiro o uso de uma palavra em um sentido predicativoe então em um uso da palavra como um sintagma nominal completo. Chierchia argumenta que ouso de palavras como sintagmas nominais completos essencialmente envolve seu correlato comopropriedade de indivíduos, de modo que os exemplos são paralelos a sentenças com verbos:

24. João corre.

25. Correr é divertido.

O que é diferente são os detalhes de como as nominalizações funcionam em português para osvários tipos de palavras: adjetivos, nomes contáveis, nomes de massa, e verbos. Acredito quepodemos começar a ver aqui os primeiros indícios de uma teoria substancial sobre a sintaxe e asemântica das categorias gramaticais que se aplica translinguisticamente.

Gostaria agora de me voltar para outro conjunto de tópicos, que, à primeira vista, nãoparecem ter nada a ver com o que venho falando. De fato, veremos depois que eles têm algo aver com a questão das propriedades e como as modelar na nossa teoria semântica. O tópico é oaspecto verbal ou Aktionsarten como às vezes o chamamos, emprestando um termo técnico doalemão.

Como vocês devem saber, uma das coisas mais difíceis de aprender sobre o inglês2 é o usocorreto da forma progressiva do verbo (BE + ing, `SER + gerúndio'). Vejamos as seguintessentenças:

26. Mary was running.Maria estava correndo.

27 John was buildin a cabin.João estava construindo um barraco.

28. Sally was �nding a unicorn.Sandra estava encontrando um unicórnio.

Nessas sentenças, todas as três envolvem verbos não estativos, o progressivo soa bem, emboraàs vezes ocorram alguns problemas na interpretação, como no exemplo (28), que é um poucoesquisito. Mas quando tentamos usar o progressivo com um verbo estativo, os resultados sãomuito incomuns ou exigem algum tipo de interpretação especial:

29. ?Bill is knowing the answer.Bernanrdo está sabendo a resposta.

30. ?Jennifer is believing that the earth is �at.Janaína está acreditando que a terra é plana.

31 .*I am being in Tianjin.Eu estou estando em Tiajin.

2N.T. optei por deixar os exemplos em inglês aqui, embora os exemplos traduzidos também possuamos mesmos efeitos que na língua inglesa, o que pode ser atestado pelas glosas.

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72 AULA 6. PROPRIEDADES E QUESTÕES PARECIDAS

O último parece praticamente impossível, portanto eu o marquei com um asterisco. Os outrosdois não parecem tão ruins, e podemos imaginar circunstâncias especiais em que podemos atéusá-las ou sentenças que lhes são muito próximas.

Por outro lado, se colocamos todas as sentenças no presente simples, as coisas parecemfuncionar ao contrário.

26'. Mary runs.Maria corre.

27'. John builds a cabin.João constrói um barraco.

28'. Sally �nds a unicorn.Sandra encontra um unicórnio.

29'. Bill knows the answer.Bernardo sabe a resposta.

30'. Jennifer believes that the earth is �at.Janaína acredita que a terra é plana.

31. I am in Tianjin.Eu estou em Tianjin.

Agora são as últimas três que parecem perfeitamente comuns, e temos que fazer algo especialcom as três primeiras. A sentença (26'), por exemplo, poderia ser usada para dizer algo sobre oshábitos de Mary, ou todas as três poderiam ser usadas como títulos de capítulos em um livro,ou como descrições animadas no �estilo de transmissões esportivas�.

Este contraste é parte do que nos leva a distinguir entre dois tipos de sentenças (e outrostipos de expressões), usualmente descritas em termos dos verbos envolvidos, embora veremosque as coisas são mais complicadas que isso: os exemplos de (26) a (28) envolvem não-estativos;os exemplos de (29) a (31) envolve estativos.

Se olharmos novamente para as sentenças de (26) a (28) e nos perguntarmos sobre as con-dições em que elas poderiam ser consideradas verdadeiras, podemos motivar uma distinçãoadicional entre os não-estativos. Suponham que Mary está correndo por uma hora. Então po-demos dizer que durante aquela hora (ou durante muitos intervalos numa quantidade su�cientedentro daquela hora) a sentença Mary runs (`Maria corre') é verdadeira. Mas se olharmos paraos exemplos (27) e (28), notamos duas coisas. Primeiro, é estranho colocar essas locuções juntascom advérbios se referindo à duração temporal:

32 ?John built a cabin for an hour/year.João construiu um barraco por uma hora/ano.

33. ?Sally found a unicorn for an hour.Sandra encontrou um unicórnio por uma hora.

No primeiro caso, nós podemos colocar as sentenças no progressivo, mas no segundo não:

34. John was building a cabin for a year.João estava construindo um barraco por um ano.

35. ?Sally was �nding a unicorn for an hour.Sandra estava encontrando um unicórnio por uma hora.

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Além disso, mesmo que consigamos interpretar esses enunciados, certamente não �caríamostentados � como estávamos com o exemplo (26) � a dizer que a forma simples da sentençaseria verdadeira dentro do intervalo em questão. Se John estava construindo um barraco porum ano, então seria falso a�rmar que ele tenha construído um barraco depois daquele ano, pelomenos não AQUELE barraco!

Esses e muitos outros fatores nos levam a distinguir, dentro das sentenças não-estativas,sentenças sobre eventos tais como `construção de barracos' e `encontro de unicórnios' e sentençassobre processos tais como `correr'. Para resumir, temos três tipos de estados de coisas ouacontecimentos:

ESTADOS PROCESSOS EVENTOS

Podemos, se quesermos, fazer uma divisão adicional dos eventos entre aqueles que parecem serinstantâneos ou momentâneos e aqueles que tomam tempo ou são prolongados. (Esta classi�ca-ção possui uma longa história, que remonta a Aristóteles, e foi discutida recentemente por Ryle,Kenny, Vendler, Verkuyl e Dowty, dentre muitos outros; vejam as notas �nais desta aula paraas referências). Chamarei todos essas coisas de eventualidades.

Comecei falando de estativos e não-estativos, o que soa como se estivéssemos falando sobrecaracterísticas das expressões linguísticas e passamos agora a falar sobre processos, eventos, eestados, que soam mais como palavras sobre coisas ou acontecimentos no mundo. E de fato, umadas primeiras coisas a se perguntar sobre as distinções que acabei de ilustrar é essa: estamoslidando com distinções sintáticas (ou gramaticais) ou semânticas? As distinções soam comodistinções no signi�cado, e embora elas tenham claramente alguns re�exos na gramática dessa oudaquela língua, irei discutir aqui primariamente os signi�cados dessas várias formas de falar sobreo mundo. Esta escolha está, então, re�etida na escolha dos termos como �evento�, �processo� e�estado�.

Considere rapidamente algumas outras diferenças entre eventos, processos, e estados. Veja-mos os exemplos:

36. It took Sally an hour to �nd a unicorn.`Sally demorou uma hora para encontrar um unicórnio.'

37. Sally found a unicorn in an hour.`Sally encontrou um unicórnio em uma hora.'

38. John built a cabin in a year.`John construiu um barraco em um ano.'

39. It took John a year to build a cabin.`John demorou um ano para construir uma choupana.'

Sentenças eventivas são ótimas com estruturas como it took x long to . . . `demorou x para. . . ', ou . . . in an hour/in a year `em uma hora/em um ano'. Comparemos os seguintes exemplosde processos:

40. It took Mary an hour to run.`Maria demorou uma hora para correr.'

41. Mary ran in an hour.`Maria correu em uma hora.'

Aqui, precisamos de uma interpretação especial, por exemplo, temos que pensar sobre run`correr' como signi�cando correr por algum tempo ou começar a correr. De modo similar, temosque criar signi�cados especiais quando colocamos sentenças estativas dentro dessas estruturas:

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74 AULA 6. PROPRIEDADES E QUESTÕES PARECIDAS

42. It took Sam a year to be in New York (meaning, come to be in New York).`Sam demorou um ano para estar em New York' (querendo dizer, vir a estar em NY).

43. Mary knew the answer in a minute (meaning, got to know the answer).`Maria sabia a resposta em um minuto' (querendo dizer, veio a saber a resposta).

Estas observações ajudam a motivar a distinção entre eventos de um lado e estados e pro-cessos de outro.

Outra diferença aparece quando tentamos usar advérbios que designam frequência ou númerode vezes:

44. Sally found a unicorn three times.`Sally encontrou um unicórnio três vezes.'

45. John frequently built a cabin.`John frequentemente construiu um barraco.'

Comparemos:

46. Mary ran three times.`Mary correu três vezes.'

47. Harry frequently believed that the world was �at.`Harry frequentemente acreditou que o mundo era plano.'

Aqui, não há nada errado com os últimos exemplos, mas temos que adicionar ou entenderalgo mais (interpretar o exemplo (46) como sendo sobre eventos de correr, e o exemplo (47)sobre diferentes ocasiões ou períodos durante os quais Harry tinha crenças peculiares).

Deixem-me mencionar uma diferença �nal que � juntamente com os fatos do progressivocom que começamos � mostra uma diferença entre eventos e processos de um lado e estadosde outro. Temos problemas para interpretar sentenças do inglês em que locuções estativas estãoencaixadas como complementos de verbos como try `tentar' ou persuade `persuadir':

48. I persuaded Mary to build a cabin.`Eu persuadi Mary a construir um barraco.'

49. ?I persuaded Mary to know the answer.`Eu persuadi Mary a saber a resposta.'

50. John tried to run.`John tentou correr.'

51. ?John tried to believe that the earth was �at.`John tentou acreditar que a terra era plana.'

Consequentemente, encontramos evidências substanciais � e apenas mencionei algumas de-las � de que precisamos fazer essas distinções nas nossas teorias sobre o inglês (e outras línguas).A questão é: como?

Antes de sugerir uma possível resposta, gostaria de me deter na teoria de Greg Carlson sobreos tipos de signi�cados dos plurais nus em inglês de que começamos a tomar conhecimento naaula anterior e conectá-la com a teoria de propriedades de Chierchia.

Lembrem que Carlson postulou três tipos de entidades no seu domínio E: Espécies, Objetose Instâncias. Além disso, ele postulou duas relações de realização � R1, conectando Espécies aObjetos, e R2 conectando tanto Espécies quanto Objetos a Instâncias. Assim temos o seguintequadro:

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tipos instâncias

R1

objetos

R2

R2

Pensemos em alguns exemplos para tornar o conteúdo intuitivo desse sistema um pouco maisconcreto:

52. Totó está correndo no jardim.

53. Totó odeia gatos.

54. Cães estão correndo no jardim.

55. Cães odeiam gatos.

Ambas as interpretações de Carlson para os exemplos (52) e (54) envolvem a realização darelação R2 de modo essencial. A sentença (52) diz que instâncias de Totó correndo no jardimsão encontradas, a sentença (54) diz que há instâncias da Espécie cães que fazem a mesma coisa.Os exemplos (53) e (55), por outro lado, são predicações diretas sobre o Objeto Totó e a Espéciecão. Qual é o papel da outra relação de realização R1? Ela é usada para garantir que quandoa sentença (54) é verdadeira, há Objetos que são instâncias da Espécie dos cães envolvidas nacorrida (relacionados com a Espécie através de R1). Como garantir que eles são cães? Outraparte do seu sistema requer que qualquer indivíduo que instancia (isto é, realiza de acordo comR1) a Espécie dos cães é de fato um cão.

O trabalho inicial de Carlson foi feito dentro de uma semântica montagoveana mais oumenos padrão, a única diferença sendo a introdução de mais estrutura no domínio E, comoexpliquei na aula passada. Dentro das restrições dessa estrutura de modelos, encontramos bonsargumentos para rejeitar várias possibilidades para equiparar espécies com quaisquer outrostipos de entidades de�níveis pelo sistema de tipos teóricos, em particular, as propriedades. Naestrutura de modelos de Chierchia, contudo, as objeções levantadas por Carlson desaparecem e ocaminho está limpo para equiparar as espécies de Carlson com as propriedades no novo sentido.Dessa forma, um sintagma nominal como �cães� pode ser interpretado como um quanti�cadorgeneralizado baseado na propriedade individual correlata associada com a denotação do nomecomum �cão�, como eu já indiquei, e temos um modo similar interessante para tratar as váriasformas de nominalização (cf. exemplos (18) a (25) e sua discussão acima).

E as relações de realização de Carlson nessa nova abordagem? Tomemos primeiramente R1,a relação que se estabelece entre Espécies e Objetos que as instanciam. Em termos bem gerais,precisamos de algo parecido com essa relação na nossa estrutura de modelos para garantir oconteúdo intuitivo correto para a função que mapeia predicados aos seus correlatos individuais.Isto é, queremos estar seguros de que uma sentença como a seguinte é verdadeira:

56. Totó tem a propriedade de ser um cão se e somente se Totó é um cão.

Podemos pensar que a primeira oração na sentença (56) tem a denotação que literalmentemodela a forma da expressão em português: o verbo ter em português em uma sentença comoessa denota uma relação entre um indivíduo e uma propriedade. Que relação? Bem, o que querque ela seja, parece que gostaríamos que se seguisse que sentenças como o exemplo em (56) sejamverdadeiras. Assim queremos dizer que uma entidade tem ou instancia uma propriedade apenasno caso em que ela está dentro da extensão do predicado correspondente àquela propriedade.

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76 AULA 6. PROPRIEDADES E QUESTÕES PARECIDAS

Note que isso não nos compromete com a extensionalidade. Pode haver dois predicados queserão coextensivos em todos os mundos possíveis, e então decorrerá do que acabei de dizer quesempre que uma entidade estiver na extensão de um dos predicados, ela irá instanciar tantoa propriedade correspondente a ele quanto a propriedade correspondente ao outro; mas, aindaassim, as duas propriedades não precisam ser idênticas. De fato, esse sistema nos oferece aprimeira relação R1 de Carlson como uma parte básica da teoria.

Agora, e a relação R2, a relação entre Objetos e Espécies e suas instâncias? Novamenteseguindo Chierchia, podemos identi�car essa relação com a relação entre coisas e a substância queas constitui no sistema de Link que estudamos na aula passada. Portanto, instâncias são apenasas quantidades de matéria que correspondem aos indivíduos em tempos e mundos particulares.Essa parte do sistema completo requer mais discussão, mas irei postergá-la para a próxima aula.Por ora, gostaria de, a partir deste esboço, voltar à discussão das propriedades. Considerandoessa adaptação da teoria de Carlson e da estrutura de modelos de Chierchia somos levados acertas expectativas, indicadas no seguinte quadro:

Carlson: Espécies Objetos InstânciasLink : Coisas Substância

Chierchia: Propriedades Coisas Substância

Exemplos: Cachorros Totó (digamos) Instâncias de cachorroLama ? (um pouco de) lama

Vermelho ? ?Correr ? ?

? Totó Instâncias de Totó

Os pontos de interrogação servem para indicar lugares em que podemos nos perguntar que tiposde entidades, se houver alguma, podemos esperar para completar o esquema. (Link não discutea questão sobre o que podem signi�car usos não predicativos de nomes de massa e plurais, porisso a lacuna naquela linha).

Agora acredito que estamos prontos para voltar à nossa discussão sobre eventualidades:eventos, processos, e estados. A coisa mais simples e objetiva a fazer ao acomodar essas entidadesnas nossas estruturas de modelos é apenas �incluí-las� como elementos do domínio, assim faremosprovisoriamente. Mas o sistema que estamos explorando nos permite um pouco mais do que isso,para de fato dizer algo sobre elas, e ao fazer isso seremos capazes de preencher alguns dos pontosde interrogação no quadro acima. Eu gostaria de adiar uma discussão mais detalhada destepasso também até a nossa próxima aula, pois precisamos de mais uma peça do quebra-cabeçasantes que comecemos a localizá-la num panorama geral. Mas, por ora, apenas repare o que temosem nossa estrutura de modelos: predicados de vários lugares (�aridades�); um grande domínio Ecom muitas classes de coisas diferentes nele; propriedades de indivíduos correlacionados com umnúmero de diferentes tipos correspondendo a vários tipos de predicados (nomes comuns contáveis,nomes de massa, adjetivos, verbos); coisas �comuns�, tanto singulares como plurais, tais comocavalos, cães, bules, e números; quantidades de �substância� correspondendo a algumas das coisaspreviamente mencionadas; e agora algumas coisas que corresponderão às nossas �eventualidades�.

Antes de �nalizar esta aula, quero dizer algo sobre uma característica de teorias como asde Montague que eu ainda não mencionei explicitamente, mas que �cou implícito em algumasdas discussões pelas quais passamos: os chamados postulados de signi�cado (Montague os usoumas não use esse nome para eles). Um postulado de signi�cado é uma forma de colocar algumarestrição explícita nos modelos ou mundos que queremos admitir como possíveis interpretaçõesde alguma língua, uma restrição muito além daquilo que foi construído diretamente dentro daestrutura de modelos básica que estamos usando. Estávamos implicitamente apelando para talmecanismo poucos minutos atrás quando estávamos considerando o que queríamos dizer sobrea relação entre propriedades ou espécies e as coisas que os instanciam.

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Deixem-me primeiramente ilustrar isto através de um postulado de signi�cado que Montagueusa efetivamente no PTQ. A discussão também servirá para introduzir um tópico que é de grandeimportância linguística e �losó�ca: a interpretação dos nomes próprios, um tópico que tambémserá muito relevante na nossa próxima seção.

Basicamente, encontgramos duas teorias importantes sobre o que os nomes próprios signi�-cam, nomes como Tianjin, João Silva, ou Touro Doido. Uma é que eles são algo como descriçõesde�nidas disfarçadas ou abreviadas �o x tal que...�. A outra teoria nega isso, a�rmando quenomes não tem nenhum signi�cado a não ser enquanto forma de designar diretamente as coisas.Houve muitas tentativas de tornar esta ideia precisa. Uma das mais famosas foi trabalhada porSaul Kripke, e é aquela que Montague assumiu no PTQ e incorporou através de um postuladode signi�cado. Na abordagem dos mundos possíveis, nomes próprios reais indicarão o mesmoindivíduo em todos os mundos possíveis, por isso são chamados designadores rígidos (suponhoque um designador ��exível� seja algo que indica diferentes coisas em mundos possíveis diferen-tes). O primeiro postulado de signi�cado de Montague (ou restrição sobre modelos aceitáveis)diz a mesma coisa sobre os quatro nomes do fragmento: João, Maria, Bruno, e noventa (naverdade diz algo sobre as constantes da sua lógica intensional que correspondem a esses nomes):há um indivíduo que é necessariamente (quer dizer, em todo mundo possível) idêntico a João,e o mesmo para os outros. (Note que essa a�rmação pressupõe que o mesmo indivíduo podeaparecer em muitos mundos possíveis diferentes, de novo um ponto de debate �loso�camenteinteressante. Como mencionei na aula II, outros, principalmente David Lewis, negam isso eusam teorias em que cada um dos mundos diferentes possui seu próprio conjunto de cidadãos eé necessário falar sobre �contrapartes� desses indivíduos quando você se move de um mundo aoutro).

Outros postulados de signi�cado no PTQ lidam com muitos outros assuntos. Requisitosextensionais tem o efeito de dizer que se uma certa relação intensional de ordem mais altaacontece, então uma relação extensional correspondente é encontrada para certas palavras doinglês. Por exemplo, se você está vendo um unicórnio, então há necessariamente um unicórnioque você vê (mas se você procura um unicórnio tal inferência não pode ser feita). A posiçãode sujeito é garantidamente extensional nesse sentido para todos os verbos do fragmento (umponto interessante e questionável se estendermos o fragmento para todo o inglês). Outro lidacom relações entre os signi�cados das expressões inglesas: seek `procurar' e try to �nd `tentarencontrar'. O ponto interessante sobre esse último exemplo é que ele mostra como uma teoriacom uma semântica explícita pode capturar na semântica relações entre sentenças que podemser entendidas como sintáticas em outras abordagens.

O ponto importante para nós aqui é que os postulados de signi�cado oferecem uma segundaforma de explorar a questão: quais são as estruturas de modelos mais apropriadas para aslínguas naturais? Elas nos permitem dizer coisas sobre modelos de maneira mais re�nada doque as coisas �grandiosas� que dizemos quando estabelecemos as estruturas de modelos gerais.Na nossa próxima aula, veremos que tais restrições nos dão uma pista importante sobre ossigni�cados de certos tipos de sentenças do português e essa pista é importante para a nossadiscussão que estamos fazendo sobre os tipos de eventualidades. Por ora, vamos apenas observarque os postulados de signi�cado podem ser usados para garantir requisitos que desejaríamoscolocar nos signi�cados de várias expressões que denotam propriedades, espécies, e outros termosdo tipo discutidos hoje.

A discussão de hoje destacou uma questão muito séria (novamente mencionada rapidamentena aula II): O que exatamente estamos dizendo quando postulamos teorias sobre estruturas demodelos para as línguas naturais? O empreendimento se parece muito com a metafísica ou aontologia, descrevendo o que alguns �lósofos gostam de chamar de �a mobília mais elementar domundo�. Coisas como propriedades, espécies, quantidades de matéria pura, instâncias e assimpor diante realmente existem? Eu a�rmaria que essas são questões �losó�cas ou cientí�cas, nãolinguísticas. Como linguista, eu me sinto perfeitamente justi�cado em deixar de lado tais ques-

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78 AULA 6. PROPRIEDADES E QUESTÕES PARECIDAS

tões. Consequentemente, eu gostaria de dizer que o que eu estou fazendo aqui não é metafísicaper se mas metafísica das línguas naturais. Alguns �lósofos a�rmam que todo empreendimentometafísico está encerrado na análise da linguagem (essa era uma parte proeminente do programade lógicos positivistas como Rudolf Carnap). Mas aqui, também como um linguista, eu posso ser� de fato, acho que tenho que ser � perfeitamente neutro. O que estamos fazendo é simples-mente buscando evidências linguísticas para a natureza das estruturas semânticas que parecemser necessárias para dar uma boa explicação para os signi�cados das expressões das línguas na-turais. Naturalmente, essas evidências são relevantes para questões não linguísticas dentro decontextos cientí�cos ou �losó�cos mais amplos. Um contexto desse tipo é a psicologia: comorespostas especulativas que encontramos no domínio da linguística se relacionam com questõese respostas em outros domínios tais como a cognição não linguística, a percepção e assim pordiante? O contexto mais amplo é �losó�co: como o mundo realmente é? Como nos encaixamosnele? Como as categorias linguísticas se relacionam com a realidade? Parece-me que a melhorcontribuição que o linguista pode dar a essas questões decisivas parece ser formular teorias pre-cisas para sistemas linguísticos como esses. Acredito que as nossas subdivisões do mundo e osnossos esforços para compreendê-lo resultam em última instância do fato que não se pode dizerou compreender todas as coisas de uma vez só. No �m das contas, suponho, isso signi�ca queé preciso lembrar que nossas teorias serão sempre necessariamente parciais em algum sentido,pois tudo afeta tudo, e sempre haverá uma tensão entre se dar conta dessa limitação decisivae prosseguir e encarar a di�culdade com nossas próprias ferramentas pequenas e especializadas.Ideias como essas são familiares nas grandes �loso�as e religiões orientais. Elas estão se tornandocada vez mais parte da nossa consciência ocidental também.

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Aula 7

Situações e Outros Mundos Menores

Um mundo é uma coisa bem grande, na verdade, como normalmente se entende na semânticade mundos possíveis, ele é tudo. Relembre a nossa caracterização original: um mundo possível éuma forma em que as coisas � todas as coisas � poderiam ser ou poderiam ter sido. Hoje ex-ploraremos alguns tipos de coisas que funcionam como mundos em alguma medida (dependendodas teorias particulares consideradas). Todas compartilham a propriedade de serem menoresque os mundos, como geralmente os entendemos.

Deixem-me introduzir esse tópico geral re�etindo sobre o signi�cado das sentenças seguintes:

1. O tigre está dormindo.

2. Todo lugar tem um prato e um par de pauzinhos.

Nós já consideramos algumas das teorias sobre o signi�cado de o. Uma era a de Russell,na qual a unicidade e a existência fazem parte do signi�cado do artigo de�nido, e constituemefetivamente parte das condições de verdade das sentenças em que ele ocorre. Vimos em umaaula posterior que talvez fosse melhor separar aquele aspecto do signi�cado como um tipo depressuposição ou pré-condição para o uso apropriado de tais sentenças. De uma forma ou deoutra, em uma sentença como o exemplo (1), é preciso haver somente um tigre no mundo paraa sentença ser verdadeira. Agora, todos sabemos que não usamos a língua desse jeito. Se minhaesposa e eu tivéssemos tido recentemente um bebê, ou mesmo se tivéssemos várias crianças euma delas é um bebê, e eu chego do trabalho ou ela chega do trabalho, e um de nós diz: �Obebê está dormindo?�, nenhum de nós acredita que há somente um bebê no mundo. Trata-sedo bebê que é relevante não para o mundo todo, mas que importa para a nossa situação emparticular. Consequentemente, retornando ao exemplo (1), em situações normais nós usaríamosuma sentença como esta quando o falante e o ouvinte sabem ambos que é sobre um único tigrerelevante contextualmente que estamos falando. O mesmo acontece com a sentença (2). Suponhaque estejamos oferecendo um jantar e estou servindo comida chinesa. Se eu peço a um dos meus�lhos para veri�car a mesa de jantar e ele volta e diz que todo lugar tem um prato e um par depauzinhos, então o que isso signi�ca? Lembrem, na nossa interpretação, isso signi�ca cada lugarno mundo. Mesmo que compreendamos lugar como tendo um signi�cado restritivo particular,não o que lugar signi�ca em geral, mas, digamos, um lugar na mesa que tem uma cadeira nafrente dele, meu �lho claramente não está dizendo que todo lugar como esse no mundo tem umprato e um par de pauzinhos nele. Ele está falando somente sobre uma situação restrita relevantepara a nossa conversa particular naquele momento. O que estou apontando aqui é simplesmenteque a noção de mundo como usualmente considerada na semântica de mundos possíveis é algomuito grande; de fato, ela abarca tudo. Ela se refere a todas as coisas que existem e a todas asrelações em que elas se encontram, sejam elas aqui ou nos Estados Unidos ou em algum outroplaneta ou onde quer que seja. Ela se refere a tudo no mundo, ao universo; tudo que existirnum momento particular. Considerar isto literalmente como um modelo e falar o tempo todo

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80 AULA 7. SITUAÇÕES E OUTROS MUNDOS MENORES

sobre o mundo inteiro, de todas as formas que as coisas poderiam ser, é, no mínimo, cansativo!E nossa discussão sobre as maneiras como normalmente usamos as sentenças como os exemplos(1) e (2) mostra que seria melhor poder restringir nossa atenção a �mundos� ou modelos muitomenores, talvez a algo como submundos1 das coisas gigantescas que nós chamamos de mundos.

Por muitos anos, linguistas e outros pesquisadores têm falado sobre situações discursivas,contexto de uso, e coisas deste tipo. Isto tem se constituído num trabalho muito importante.Contudo, somente nos últimos anos noções como estas têm sido empregadas em abordagensformais na linha da teoria de modelos, e algumas pessoas diferentes vêm pensando sobre coisasque são como mundos, mas menores.

Usarei o termo situação para estas coisas menores. Gostaríamos de ser capazes de falar sobreuma certa situação dentro de uma situação maior dentro de uma situação maior e assim pordiante, e é somente quando chegamos na maior situação possível é que estamos falando sobre omundo todo no sentido da semântica de mundos possíveis. Uma advertência: o termo situaçãotem sido incorporado em uma teoria especí�ca � a chamada semântica de situações � como umtermo técnico. Nesta teoria, como o nome indica, a noção de uma situação é muito importante etotalmente básica. Em geral, irei usar a palavra situação em um sentido não técnico, similar aonosso uso cotidiano. (Falaremos rapidamente sobre a semântica de situações daqui há pouco).

Vou me concentrar hoje em dois tipos de teorias. O primeiro tipo retém a estrutura geralda semântica de modelos para a qual estamos olhando: temos uma língua e uma estrutura demodelos e uma função de interpretação ou uma relação entre um e outro. O que é diferente éa estrutura do modelo, em particular, a introdução de situações e relações entre elas, onde assituações são tanto mundos ou algo como mundos. No segundo tipo de teoria, há um novo nívelde interpretação que se interpõe entre a língua e o modelo; assim, interpretamos as sentençasatravés deste objeto de tipo intermediário. Pelo caminho, na medida em que considero as teorias,irei resumir a discussão do problema que deixamos suspenso na última aula: a explicação das�eventualidades� � eventos, processos, e estados.

Sugeri que recorrer a �mundos menores� é uma característica do trabalho recente na teoria demodelos. A primeira teoria para a qual olharemos é, de fato, bastantge antiga, datando de umaépoca imediatamente após Montague apresentar seu trabalho sobre as línguas naturais para opúblico da linguística em geral pela primeira vez. Trata-se da teoria de Max Cresswell lançadano seu livro Logics and Languages, de 1973. Neste trabalho, Cresswell demonstra não estarcontente de apenas se apropriar da noção de mundo possível como um primitivo não analisável,e oferece uma �metafísica� dos mundos possíveis, de forma a construí-los a partir de entidadesmais básicas. Estas entidades mais básicas são chamadas de situações básicas particulares, eele as chama de B. As situações básicas particulares não são elas mesmas analisáveis, emboraCresswell ofereça uma forma de pensar sobre elas: você poderia considerá-las como conjuntos depontos (ocupados) no tempo-espaço. Este é um modo bem �sicalista de olhar para o mundo, enós não estamos de forma alguma comprometidos com esta interpretação (nem Cresswell está).Ao contrário, ela é uma forma de manter as coisas concretas apenas para nos ajudar a pensarclaramente sobre nossa estrutura de modelos.

Agora, o que é um mundo na teoria de Cresswell? Um mundo é apenas um conjunto desituações básicas particulares em B. Assim o conjunto de mundos é apenas o conjunto desubconjuntos de B, o que chamamos de o conjunto potência de B (que podemos escrever comoP(B)). Esta teoria oferece uma estrutura de�nida relacionando vários mundos, essencialmentea estrutura do conjunto potência de um conjunto. Este tipo de estrutura é um exemplo clássicodo que se chama uma álgebra booleana. Como é esta estrutura? Temos um conjunto básico,bem como o conjunto universal e o conjunto vazio, mais a relação de inclusão de conjuntos,e as operações formando uniões, intersecções, e complementos. Em uma álgebra booleana,

1NT: A expressão �submundo� em português apresenta uma contação pejorativa, como em �submundodo crime�; aqui, ela está sendo empregada como termo técnico, e deve ser esvaziada desta conotaçãonegativa: um submundo, tecnicamente, é apenas uma parte de algum mundo.

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abstraímos as noções particulares relacionadas a conjuntos e apenas pensamos na estrutura geraldos elementos, relações entre eles, e as operações sobre eles. Consequentemente, quando vocêse deparar com referências a álgebras booleanas, imagine uma estrutura do conjunto potência, evocê não estará equivocado. (O modo algébrico de pensar tem se difundido muito recentemente.De fato, já nos deparamos com ele na nossa discussão da teoria de Godehard Link sobre osplurais e os nomes de massa. Link trabalha com estruturas que não são álgebras booleanas, emgeral, mas compartilham uma grande parte de sua estrutura com as álgebras booleanas).

Observem que alguns destes mundos podem ser muito pequenos. Logo, eles nos oferecemum modo de pensar sobre �situações� (no sentido não-técnico) como algo parecido com mundosparciais. Tomem esta situação em que estou falando para vocês nesta sala. Este é um mundopossível (na teoria de Cresswell). Mas obviamente situações maiores e menores, com as quaisesta situação está relacionada, também existem. Uma situação maior é a de Tianjin durante umcerto tempo. Uma situação menor é a que compreende a área incluindo eu e minha mesa e aprimeira �la de cadeiras (durante um certo período de tempo) mas não a sala toda (um conjuntode pontos ocupados no espaço-tempo, digamos). Podemos até pensar sobre �mundos� que cor-respondem aos indivíduos tais como Renato Russo: digamos o �mundo espaço-temporal� que eleocupa durante sua vida ou alguma parte limitada dela. Esta noção de mundo na metafísica deCresswell é muito �exível. O último exemplo sugere fortemente a noção de instância de Carlsone a noção de Link de quantidades de matéria ou �substância�. Rapidamente, tentarei exploraressas semelhanças. Na verdade, Cresswell discute exemplos deste tipo; isto é, �mundos� quecorrespondem a vários indivíduos. Ele os chama de manifestações dos indivíduos envolvidos, edevemos nos perguntar o que ele entende por indivíduo nessa estrutura de modelos. Indivíduoscresswellianos são funções de mundos para submundos dos mundos dos quais eles são seus argu-mentos. Eles assim parecem ser algo como conceitos individuais na teoria de Montague (funçõesde índices � isto é, pares de tempo-mundo � para indivíduos). Cresswell também dispõe deconceitos individuais, que estão um nível acima na hierarquia das funções: elas são funções demundos a indivíduos (neste seu sentido).

Agora eu gostaria de falar um pouco sobre contextos, porque eles serão importantes emvários pontos da discussão de hoje. Até agora eu falei como se interpretássemos as expressõeslinguísticas simplesmente com referência a um mundo (e um tempo, no PTQ) e uma atribuiçãode valores a variáveis. Anteriormente, contudo, notamos que isso não é su�ciente para todos oscasos. Muitas expressões das línguas naturais precisam de conhecimento sobre as circunstânciasnas quais elas são pronunciadas ou produzidas para que possamos lhes atribuir sentido. Exemplossão eu, você, aqui, agora, bem como os tempos verbais, palavras como ontem, e assim por diante.Podemos aprimorar nossa avaliação deste fato examinando a seguinte sentença:

3. Eu estou aqui agora.

Se tentarmos avaliar essa sentença em relação a somente um mundo e um tempo, entãoteríamos que dizer que a sentença será sempre verdadeira, o que é errado, o que podemos verobservando sentenças envolvendo modalidade:

4. Se eu não estivesse aqui agora, eu provavelmente estaria em Porto Alegre.

Pra interpretar (4), que certamente parece razoável e pode mesmo ser verdadeira, temos queadmitir que a sentença (3) poderia não ser verdadeira. Este suposto problema �ca imediatamenteresolvido se incluirmos estas observações na nossa teoria. O que temos que fazer é considerarprimeiro as circunstâncias em que o exemplo (3) é avaliado. Isso nos dará valores para as partesda sentença que são dependentes de contexto: eu tem que se referir ao falante, aqui ao lugaronde a sentença é usada, e assim por diante. Então, uma vez que estes valores dependentesdo contexto sejam supridos, podemos fazer a sentença passar pelo procedimento de avaliaçãocom que já nos familiarizamos. Chamamos estes itens dependentes de contexto, como eu, você

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82 AULA 7. SITUAÇÕES E OUTROS MUNDOS MENORES

e assim por diante, de indiciais.2 Chamamos as teorias ou parte das teorias que têm a ver comas circunstâncias de uso de teorias pragmáticas (infelizmente, o termo �pragmática� é usado deinúmeras formas diferentes, esse é somente um deles, embora seja um uso básico e importante).Seguindo Montague, chamarei as circunstâncias sob as quais uma sentença é pronunciada, usada,avaliada, etc. de contexto de uso (algumas vezes por brevidade direi apenas contexto). (Reparemque precisamos ser cuidadosos aqui, por isso as várias ocrrências de �etc.� Em geral, pensamossobre o proferimento de expressões, mas devemos permitir outros tipos de �performances�. Porexemplo, se eu leio uma nota escrita para mim pelo meu bisavô há cem anos atrás, para seraberta no meu aniversário de cinquenta anos, qual é o contexto de uso?). Em geral, temos quepensar que a avaliação das expressões linguísticas passa pelo seguinte processo:

Proferimento, etc. Pragmática Avaliação SemânticaExpressão � Contexto de uso � Mundo, Tempo, etc.

Continuando, como devemos modelar contextos em nossas teorias formais do signi�cado?A primeira ideia, proposta por Montague, David Lewis e outros, é pensar em contextos comosimplesmente n-uplas de especi�cações ou parâmetros: um para o falante, um para o destinatário,um para o tempo, um para o mundo, e assim por diante. Notem que nesta perspectiva, mundos,tempos e outras coisas deste tipo entram em cena de duas formas diferentes: uma vez como partedo contexto, e uma vez como parte da avaliação semântica. (Vocês podem pensar na atribuiçãode valores a variáveis como um contexto no sistema do PTQ). Agora o problema aqui é com o�e outras coisas deste tipo�. Esta perspectiva sugere que possamos estabelecer alguma lista deparâmetros pré-�xados para o contexto. Novamente, foi Cresswell (1973, mais uma vez!) que nosmostrou que esta é uma expectativa sem fundamento: normalmente, não sabemos de antemãoque elementos do contexto serão necessários para que prossigamos com a avaliação semântica dasentença. Cresswell dá um exemplo interessante para ilustrar este ponto. Considere esse pedido:

5. Por favor, me traga outra caneca.

Precisamos ter um �parâmetro de bebida anterior� para interpretar esta sentença?!Agora, uma coisa que temos que notar é o seguinte: mesmo que não saibamos previamente

que elementos do contexto são necessários para começar a avaliação de uma sentença, uma sen-tença qualquer (ou outra expressão) vai sempre fornecer apenas as perguntas adequadas queprecisam ser respondidas pelo contexto de uso. E esta é exatamente a mesma situação queencaramos ao fazer a avaliação semântica para uma expressão qualquer. Neste último caso, nósapenas assumimos uma coisa sem limites, como um mundo (sem limites até onde isso nos con-cerne), que nos dará a informação que precisamos para a avaliação semântica. Assim, podemosadotar a mesma estratégia aqui. Podemos tratar o contexto de uso como uma situação, umasituação especi�camente con�gurada, que se mantém ali com todas as informações necessáriaspara iniciar a avaliação semântica da expressão em questão. E, na teoria de Cresswell, estasituação será exatamente um mundo. (Devo enfatizar que esta não é a teoria de Cresswell decontexto tal como estabelecida em seu livro de 1973).

Em relação à teoria de Chierchia, o que acontece quando a combinamos com a estruturade modelos de Cresswell? Lembrem que a estrutura de modelos de Chierchia é bem simples:há apenas indivíduos e predicados de n-lugares (funções proposicionais), e todo o resto. (Eunão disse nada sobre o que envolve a última parte � ela consiste de funções de ordens maisaltas que são deixadas de lado, por assim dizer; elas possuem um estatuto muito diferentena teoria). Além disso, os indivíduos são divididos em dois grupos grandes: aqueles que sãocorrelatos individuais dos predicados, e os que são indivíduos �comuns�. Os primeiros podem ser

2Mais recentemente, alguns autores têm preferido em português o cognato mais próximo ao original eminglês: indexical ; aqui, vamos preferir manter a opção feita na tradução do texto do Bar-Hillel publicadano livro organizado pelo Dascal.

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subdivididos ainda (como começamos a fazer na aula passada) em signi�cados que correspondema vários tipos de nominalizações: expressões verbais e sentenciais; nomes de espécies, nomes demassa, e adjetivos. Tudo isso é completamente compatível com a abordagem de Cresswell, já queele diz que os elementos do domínio podem ser o que bem quisermos, oferecendo explicitamente apossibilidade de recolocarmos os elementos de ordens superiores de volta no domínio. (É possívelconsiderar o trabalho de Chierchia como uma forma de fazer exatamente isso).

Se adotarmos a caracterização de Cresswell para indivíduos como funções de mundos asubconjuntos daqueles mundos, então estaremos nos dando a possibilidade de considerar oscorrelatos das propriedades de Chierchia como sendo o mesmo tipo de coisa: da mesma formacomo João da Silva resula, para cada mundo, na manifestação de João da Silva naquele mundo,assim também a propriedade de Beijar resulta em todos os eventos de beijar naquele mundo. Ese identi�carmos as propriedades com a perspectiva cresswelliana de indivíduos como funções,voltamos ao mesmo problema. O que fazer?

Aqui, eu acho que poderíamos emprestar algo de Link. Lembrem-se de que as estruturasde modelos de Link incluíam uma função de objetos para a matéria da qual eles são feitos.Isso não é o mesmo que dizer que as coisas são funções. Na verdade, Link foi muito cuidadosoao estabelecer as coisas de tal forma que pudesse separar coisas diferentes que eventualmentefossem �materialmente idênticas�, com o intuito de lidar com questões como aquela ilustradapela seguinte sentença:

6. O anel de Terry é novo, mas o ouro do qual é feito é muito velho.

O ponto aqui é que duas coisas � o anel e o ouro que o constitui � são mapeados (podemosdizer) nas mesmas quantidades de matéria, mas ainda assim possuem propriedades contraditó-rias. Dessa forma, ao invés de dizer que indivíduos são funções, vamos dizer que há uma função� vamos chamá-la de EXT � que nos permite encontrar manifestações de indivíduos em mun-dos que lhes damos como argumentos. Portanto, dado um mundo w e um indivíduo i temosEXT (i)(w) como o submundo de w que é a manifestação de i em w. E vou querer identi�carestas manifestações tanto com os estados da teoria de Greg Carlson quanto com as quantidadesde substância (ou matéria) na teoria de Link. (É importante não confundir nossa função EXTcom algo encontrado em Chierchia: uma função que leva de uma propriedade de indivíduos paraa sua função proposicional correspondente.)

Agora, com respeito aos indivíduos (não diferenciados) temos a seguinte sistematização:

INDIVÍDUOS EXT(INDIVÍDUOS) MANIFESTAÇÕES

Indivíduos são apenas elementos do domínio E, a função EXT nos dá, para cada um deles,uma função de mundos para manifestações (subconjunto de mundos). Vamos agora consideraros tipos de indivíduos, de forma a oferecer alguns exemplos.

JOÃO DA SILVA é um exemplo do que a maioria das pessoas (e teóricos) concebem comoum indivíduo comum. Suas manifestações constituem subconjuntos do conjunto de mundos aosquais aplicamos a função EXT (João da Silva). Nós consideramos estas manifestações como cor-respondentes às instâncias de Carlson (fatias de mundo-tempo de João da Silva) e às quantidadesde matéria ou substância de Link. Podemos explorar esta diferença entre um indivíduo e suasmanifestações para distinguir tipos diferentes de predicados que podem ser aplicados aos indiví-duos. Alguns predicados parecem estar relacionados aos indivíduos da seguinte forma: João daSilva pode ser inteligente, linguista ou falante de chinês, e assim por diante. Outros parecem serelacionar mais diretamente com suas manifestações em um mundo mais ou menos limitado: elepode estar bêbado, falando português ou bravo, e assim por diante. (Estas distinções parecemcapturar o que algumas pessoas chamam de atributos essenciais e acidentais, ou permanentese temporários). Ao contrário do próximo exemplo, podemos querer tratar esse nome como umdesignador rígido de alguma maneira. (Como, nessa teoria?).

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84 AULA 7. SITUAÇÕES E OUTROS MUNDOS MENORES

SR. BRASIL, outro indivíduo comum, mas com propriedades muito diferentes das de Joãoda Silva, como podemos dizer por olhar para suas manifestações. As manifestações de João daSilva em vários mundos (não de �cção cientí�ca) tem uma continuidade confortável. O Sr. Brasilaparece em vários lugares. Além disso, eles são organizados de tal forma que podemos correla-cionar cada pedaço das manifestações descontínuas que encontramos em qualquer mundo dadocom manifestações de indivíduos como João da Silva, Paul Newman, e outros. De�nitivamentenão é um designador rígido em qualquer sentido.

CAVALOS. Aqui temos um correlato individual de uma função proposicional (um lugar).Como Carlson argumentou extensivamente, em inglês, sintagmas nominais plurais nus tais comohorses `cavalos' compartilham um monte de propriedades com nomes próprios. De novo (comocom João da Silva acima), temos um contraste entre predicados que aparecem com a espéciecomo um indivíduo e aqueles que aparecem com manifestações particulares da espécie.

7. Horses are mammals, like to run, eat oats, etc.`Cavalos são mamíferos, gostam de correr, comer aveia, etc.'

8. Horses are running in the meadow.`Cavalos estão correndo no prado.'

Uma relação especial é encontrada entre a propriedade correspondendo aos usos de pluraisnus da palavra inglesa horses `cavalos' e os indivíduos (comuns) que se encontram na extensãoda denotação do nome comum horse. Essa relação é aquela que Carlson incluiu como umade suas relações de realização: a relação entre uma Espécie (agora Propriedade) e instânciasindividuais da Espécie. Agora, esse é o tipo de realização que é capturada ao dizermos quehorses é a nominalização de horse em inglês, e uma semântica mínima para a nominalizaçãogarantirá que essa relação de realização ou instanciação funcione, como vimos na aula passada.Além disso, cada um dos indivíduos que é um cavalo será identi�cado com o tipo de coisaque pode ter um nome, isto é, algum tipo de indivíduo comum. Naturalmente, com a últimaobservação começamos a entrar no reino da antropologia. Que tipos de coisas irão ter nomes irávariar bastante de cultura para cultura: nós damos nomes para furações e tufões individuais,por exemplo. (aspecto interessante: nós também temos nomes comuns como tufão e furação �muitos outros nomes para condições particulares do tempo em português e outras línguas � queestão enraizadas em partes individuais e particulares do mundo � isto é, o Planeta Terra. Notemque isso não é o mesmo que usar um nome próprio para um tipo de coisa, como em �Ele é umverdadeiro Napoleão.�).

Considerando o que temos até agora, um conjunto típico de interrelações poderia criar o se-guinte tipo de história: há um cavalo Abraão. Se seguimos a teoria dos nomes como designadoresrígidos para indivíduos como Abraão, ele é um indivíduo que independe de mundos. As mani-festações de Abraão em qualquer mundo (isto é, o valor de EXT(Abraão) naquele mundo) serãoum submundo daquele mundo. Essas manifestações serão instâncias de Abraão (de acordo comCarlson) ou quantidades de matéria correspondendo a Abraão (de acordo com Link). Abraãoé um cavalo naqueles mundos onde ele é um cavalo. Esse cavalo é uma instanciação da Pro-priedade nominada pela nominalização portuguesa cavalos. Como um indivíduo, Abraão possuivários atributos: ele é inteligente, pode correr rápido, etc. Além disso, a propriedade de ser umcavalo (quer dizer, a Espécie) tem vários atributos: eles podem correr rápido, são inteligentes,são mamíferos, geram �lhotes, normalmente um por vez, etc. Nós temos certas expectativassobre Abraão porque ele é uma instância de um cavalo: que ele será inteligente, capaz de correrrápido, etc. (Não que ele irá gerar seus �lhos, etc.) Uma relação ainda mais frouxa é encontradaentre os atributos de Abraão como um indivíduo e os atributos que esperamos encontrar paraqualquer manifestação dele em algum mundo maior ou menor. Por exemplo, em qualquer situa-ção em que ele está mancando, não esperamos que ele venha a correr rapidamente. Na verdade,em algumas dessas instâncias (algumas �tardias� em que ele é velho e tenha sido posto para

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pastar) não esperamos mesmo que ele vá correr rapidamente se ele está mancando. Suponham,por exemplo, um concurso para Mr. Cavalo aconteça todo ano e determine outro indivíduo. Umano Abraão é o Mr. Cavalo. Durante esse ano, as manifestações do Mr. Cavalo coincidem comas do Abraão. E assim por diante. Isso ilustra que uma grande parte da nossa atual compreensãodas coisas depende do nosso conhecimento (sobre cavalos, evidências para atributos de espécie eindivíduos). Queremos que nossas teorias semânticas nos deem estruturas gerais de signi�cado,não conteúdo especí�co.

LAMA. A propriedade Lama é outro indivíduo em nossa estrutura de modelos. Como cavalosela é correlacionada com um predicado, dessa vez um predicado de um nome de massa. Nossosistema nos permite encontrar manifestações de lama em qualquer mundo: isto é, os �indivíduosespalhados� que constituem todas as quantidades de lama em várias situações ou mundos. Algunsestudiosos (Quine, por exemplo) identi�caram esses �indivíduos espalhados� como os signi�cadosprimários de palavras como lama usadas como sintagmas nominais em sentenças como essa:

9. Lama é enlameada.

(Sem dúvida uma sentença verdadeira). Essa visão carrega com ela todos os problemas dasinterpretações puramente extensionais dos predicados que nos levaram a abandonar o CP e suaestrutura de modelos M1 como uma teoria plausível para a semântica das línguas naturais. Naestrutura de modelos que estamos explorando aqui, lama nomeia um indivíduo, embora um tipodiferente de exemplos como João da Silva ou cavalos. Como ele é diferente? Ele é diferentede cavalo de forma crucial. A estrutura algébrica que associamos com palavras como cavaloe cavalos (como um nome comum) é atômica. Isso signi�ca que se consideramos os cavalosem qualquer mundo encontraremos na base da estrutura elementos que são elementos menoresque ainda se quali�cam como cavalos. Não é assim com lama. Aqui precisamos ser cuidadososnaquilo que dizemos: NÃO estamos dizendo que não há elementos de lama menores � podeou não haver � o que estamos dizendo é que esta questão está aberta. Nós simplesmente nãoprecisamos, da mesma forma que precisamos com cavalos, que existam tais elementos ou átomosmenores. Em geral, isso parece ser a melhor estratégia: queremos deixar as coisas abertas ondelínguas as deixam abertas. A questão sobre a natureza atômica ou não-atômica da lama � oudo ouro ou do hidrogênio � é um problema da física, não da linguística. Com nomes contáveiscomo cavalo, por outro lado, não parece que as línguas naturais forcem uma resposta.

CORRER E BEIJAR. Aqui estão dois ou mais indivíduos no nosso zoológico ontológico, aspropriedades de correr e beijar. Esses indivíduos, como Cavalos, mas não como John Smith,são correlatos individuais de predicados ou funções proposicionais. Como outros indivíduos,podemos aplicar nossa função extensional EXT a eles e ter funções de mundos para submundos.Os valores para cada mundo serão todas as instâncias particulares de correr e beijar naquelemundo, consideradas como a �matéria� de correr e beijar. Podemos notar uma diferença im-portante entre esses dois exemplos, que parecem ser paralelos quase exatos da diferença entrenomes de massa como lama e nomes contáveis como cavalo. Os paralelos e diferenças podem sertrazidos nesses exemplos:

10. Havia um monte de lama no estábulo.

11. ? Havia montes de lamas no estábulo.

12. Houve um monte de corrida durante a parada.

13. ? Houve montes de corridas durante a parada.

14. ? Havia um monte de cavalo no estábulo.3

3N.T.: Em português essa sentença é aceitável, pois nomes contáveis singulares são diferentes doscontáveis singulares no inglês. De qualquer forma, não dá pra interpretar esse nome como se referindo a

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86 AULA 7. SITUAÇÕES E OUTROS MUNDOS MENORES

15. Havia um monte de cavalos no estábulo.

16. Havia um monte de beijo durante a parada.

17. Havia montes de beijos durante a parada.

Uso os pontos de interrogação aqui para indicar o fato de que as sentenças marcadas reque-rem que nós estreitemos os signi�cados normais ou não-marcados dos nomes principais nelas.Na sentença (11), por exemplo, temos que dar algum tipo de signi�cado contável para lamas �talvez tipos de lama ou punhados de lama; na sentença (14), temos que interpretar cavalo comoum nome de massa; enquanto que na sentença (13) temos que pensar em instâncias individuaisou atos de correr. Em geral, em áreas do signi�cado como essa, falantes de uma língua pos-suem fontes especiais para reinterpretar palavras de forma a dar sentido para aqueles usos nãocorriqueiros. Algumas línguas, por outro lado, possuem formas especí�cas para expressar essasdiferenças usando meios gramaticais. (As duas formas de se mover entre signi�cados massivosou contáveis para nomes tem sido chamadas de Triturador Universal (`Universal Grinder') eEmpacotador Universal (`Universal Packager'). Note que correr e beijar são exemplos típicosda distinção estudada na aula passada entre expressões verbais de processos e de eventos e suas�eventualidades� correlatas. (Não marquei a sentença (16) com um ponto de interrogação por-que o Triturador Universal parece trabalhar muito mais suavemente e não excepcionalmente emportuguês para expressões verbais do que para as nominais). Podemos capturar esses paralelosde forma elegante adaptando a análise de Link para os nomes de massa, contáveis e plurais paraas expressões verbais. Beijar é atômico, correr não é, e podemos identi�car manifestações detais propriedades na nossa versão cresswelliana da teoria do Chierchia como �quantidades deprocessos�, a substância dos acontecimentos no mundo.

Parece-me que esta é uma abordagem útil para pensar sobre alguns dos diferentes tipos designi�cados que as expressões das línguas naturais possuem. Muitas questões permanecem, claro,às quais eu não tenho nem espaço nem tempo para me dedicar aqui. Uns poucos exemplos: e osigni�cado de palavras mais ou menos abstratas? Consideramos coisas concretas como cavalos,lama, corrida, beijar, e outros. Todas elas parecem relativamente fáceis de entender em termosfísicos, como pontos que ocupam tempo e espaço se preferir. Mas que tal coisas como número90, ou a qualidade do perdão, ou a cor verde? Tomos foram escritos sobre o que os númerosrealmente são: classes de objetos reais, coisas que construímos na teoria de conjuntos, residentesde algum reino platônico ideal? Similarmente para qualidades ou virtudes como o perdão, oamor, a honra. E as cores? Elas parecem não ter nenhuma existência independente da nossapercepção delas � não quero dizer que não conseguimos explicar sua base física, somente que aidenti�cação de um espectro em ondas de luz com limites que se confundem como instanciando apropriedade verde não parece fazer muito sentido longe dos seres com sentidos que a identi�cam.Todas essas são questões interessantes a perseguir. Eu me dedicarei a algumas delas na próximaaula, quando nos voltaremos a pensar sobre algumas outras visões da semântica e suas possíveisconexões com a nossa forma de falar sobre o signi�cado dentro da teoria de modelos. Agora,contudo, quero me direcionar a outro tema que tem a ver mais diretamente com o que eu venhofalando hoje.

Aqui estamos, então, com indivíduos como João da Silva e Abraão, o cavalo e outros taiscomo Lama e Cavalos e Correr e Beijar. Notamos alguns tipos de interconexões entre eles,mas muitas outras podem ser encontradas. Em particular, não parece que �zemos um trabalhoadequado até de alguma forma conseguir estabelecer conexões entre coisas como João da Silvaou Abraão e coisas como Correr e Beijar. Precisamos de alguns �ganchos�. Os ganchos queexploraremos um pouco são dados a nós por um aspecto do signi�cado linguístico que tem uma

um indivíduo especí�co. O debate é entre considerar esse tipo de exemplo como um predicado de espécieou como um nome de massa. Ver sobre isso o artigo de Pires de Oliveira e Rothstein, `Bare singular

nouns are mass in Brazilian Portuguese', Lingua, 121, 2011.

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história respeitável em abordagens informais do signi�cado linguístico, mas até recentementeteve poucos re�exos em abordagens da semântica de modelos.

O aspecto do signi�cado linguístico ao qual estou me referindo tem sido discutido comvariações sob rubricas como papéis/relações temáticas, teoria do caso (não caso morfológicoou CASO abstrato das teorias de Regência e Ligação, mas ao contrário os casos semânticosde Fillmore e outros), teoria temática (teoria-θ), e assim por diante. Eu uso o termo papéistemáticos. Alguns exemplos típicos são Agente, Paciente ou Tema, Instrumento, Objetivo,Fonte, e outros, ilustrados nestas sentenças:

18. Sandra deu o livro para Bruno.

19. João abriu a porta com um pé-de-cabra.

20. A porta abriu.

21. Eu comprei o livro do Josoel.

Na sentença (18), Sandra é o Agente; o livro é o Tema naquela sentença bem como no exemplo(21); Bruno é o Objetivo. Na sentença (19), João é o Agente; a porta é o Tema; o Instrumentoé um pé-de-cabra. Na sentença (20), não há Agente, mas a porta ainda é o Tema. Na sentença(21), eu sou o Agente, Josoel é a fonte. Semanticamente, papéis temáticos parecem representargeneralizações que fazemos, perpassando diferentes tipos de acontecimentos no mundo, sobrea participação dos indivíduos nas eventualidades que as sentenças descrevem. (Na teoria deRegência e Ligação, papéis-θ servem um propósito sintático; seu conteúdo especí�co parece nãoter papel algum).

Pode-se observar duas coisas importantes sobre os papéis temáticos. Primeiro, eles nãopodem ser confundidos com relações puramente gramaticais com aquelas entre Sujeito, Objeto,Objeto Indireto, e assim por diante, embora exista obviamente alguma conexão entre essas duasformas de olhar para o que os sintagmas nominais estão fazendo nas sentenças. No exemplo (19),João é o Sujeito como é a porta no exemplo (21), mas eu disse que a porta é o Tema nas duassentenças. Notem o que é pressuposto na forma como eu coloco essa última sentença: relaçõesgramaticais têm a ver com expressões em uma sentença; papéis temáticos têm a ver com coisasque eles denotam (essa não é uma assunção sem controvérsias). Generalizações importantespodem ser feitas (como aqueles de Fillmore, 1968) sobre a forma em que os papéis temáticos sãoexpressos via relações gramaticais, como ilustrado nessas sentenças:

19. John abriu a porta com um pé de cabra.

20. A porta abriu.

21. Um pé-de-cabra abriu a porta.

22. ?? A porta abriu com um pé-de-cabra.

Em segundo lugar, os conteúdos semânticos associados com papéis temáticos se aproximamde questões essencialmente �losó�cas sobre a natureza da ação humana, responsabilidade, voli-ção, causação, e assim por diante. A priori, poderíamos esperar uma grande variação culturalnessas áreas. Na medida em que as teorias das relações temáticas parecem ter alguma validadeque independe da língua, parece que estamos chegando em universais semânticos importantessobre como os humanos compreendem o mundo e classi�cam ações, eventos, e a participaçãodos indivíduos neles. Em outras palavras, novamente parece que estamos entrando no reino dametafísica das línguas naturais. Além disso, assim como com a teoria das eventualidades, paraperseguir essas questões devemos estudar os signi�cados dos elementos lexicais individuais.

Mais uma vez, não tenho nem o tempo nem o espaço aqui para ir atrás dessas questõesem detalhe, que (como indiquei previamente) estão apenas começando a serem tomadas com

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seriedade em abordagens formais do signi�cado. Deixem-me esboçar uma forma de incorporarpapéis temáticos em uma teoria semântica para as línguas naturais, que parece estar bem prontae vai nos ajudar a destacar as conexões entre os tipos diferentes de coisas no nosso modelo.

Podemos esperar duas contribuições importantes da incorporação de papéis temáticos emnossas interpretações. Primeiro, ela nos dá uma ajuda adicional para notar e caracterizar dife-renças entre diferentes tipos de coisas nos nossos modelos. Uma das principais diferenças entreobjetos �comuns� e indivíduos-como-propriedades reside na falta dos papéis temáticos esperadospara o tipo anterior e a regularidade da sua presença para o último. João da Silva não requerAgente ou Tema. Beijar precisa de ambos. Esse fato está correlacionado com outro de umaforma completamente regular. A função proposicional ou predicado do qual Beijar é o correlatoindividual é uma relação de dois lugares, assim uma relação sistemática existe entre o númerode espaços ou �lugares� que um predicado tem e o número de papéis temáticos regularmenteassociados com ele. (Esse fato está re�etido no �Critério-θ� das teorias de Regência e Ligação.Esse critério garante uma relação unívoca entre posições �argumentais� e papéis- theta, em quedevemos ter em mente que �argumento� é usado de uma forma técnica especial dentro daquelateoria.).

Como podemos incorporar relações temáticas dentro da semântica de modelos? A formamais natural, ou assim me parece, é explorar a relação entre argumentos de predicados e papéistemáticos que a pouco notamos e prover postulados de signi�cado que especi�cam os papéistemáticos que estão associados com cada predicado. Uma visão sintática seria pensar que cadapapel é uma função de predicados a posições ou expressões que �cam nessas posições. Umaabordagem semântica, por outro lado, nos diria algo sobre as entidades envolvidas na relação.Portanto, para um predicado como beijar, um postulado de signi�cado nos dirá que se a seencontra em uma relação de beijar com b, então a tem o papel de Agente e b o papel de Pacientena situação (o que se iguala ao mundo) em que o beijo acontece. Porque esses papéis são (ou sãodados por) funções, uma metade do critério-θ é automática. A outra metade � que diz (falandosintaticamente) que cada posição argumental pode ser associada com no máximo um papeltemático � parece estar errada (semanticamente, pelo menos), como evidenciado pela relaçãoentre os pares de sentenças:

24. João beijou Sandra.

25. João se beijou.

A introdução de eventos (e outros tipos de eventualidades) como elementos no modelo,se primitivos ou construídos, é em grande medida devida ao trabalho de Donald Davidson,que argumentou persuasivamente por esse movimento em uma série de artigos publicados pelaprimeira vez nos anos sessenta. Entre as questões importantes que ele levantou estava umasobre a identi�cação de eventos. Suponha que estou dirigindo um carro e levanto meu braçoesquerdo para sentir se uma carga no teto do carro ainda está �rme. Alguém atrás de mimvê esse evento e o interpreta como um sinal de dobrar à direita. Eu dei o sinal de dobrar àdireita, mesmo que inadvertidamente? Questões desse tipo surgem frequentemente nas cortesjudiciais. Ou suponha que eu dispare uma arma em um cartão-alvo, sem saber que alguémestá atrás do alvo, e como resultado a pessoa atrás do alvo morre. Há algum sentido em queo meu disparo da arma no alvo e eu ter acidentalmente matado a pessoa são o mesmo evento?Como eu descrevi isso, claramente temos que dizer que embora o disparo tenha sido bastanteintencional da minha parte o assassinato foi sem intenção. Eu posso muito bem ser acusado denegligência, mas di�cilmente de assassinato. Esses exemplos relembram fortemente o problemasobre o anel e o ouro (exemplo 6), e podemos usar o mesmo tipo de solução aqui: o assassinatoe o disparo podem ser �materialmente idênticos� no sentido que eles são mapeados exatamentena mesma manifestação ou �substância�, mas ainda distintos. Assim, o sistema que estamosexplorando aqui provê a possibilidade de analisar o que queremos dizer quando estamos falandosobre �evento sob uma descrição�.

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Eu lidei extensivamente com a análise de mundos de Creswell porque acredito que ela ofereceuma forma frutífera de olhar para alguns dos problemas que estamos considerando e tambémporque acredito que a análise tem sido negligenciada desmerecidamente. Ela incorpora umaforma de falar sobre �pequenos mundos�, que tem sido uma característica de outra teoria, que émuito mais recente, e para a qual me volto agora para uma breve discussão.

Como o nome sugere, semântica de situações como desenvolvida por Barwise e Perry nosúltimos anos, toma a noção de situação como básica. Intuitivamente podemos pensar em umasituação da mesma forma que estávamos falando na última discussão. De um lado, diferente-mente de todas as teorias às quais me dediquei até agora, a semântica de situações não usa anoção de mundo possível de nenhuma forma. Outro aspecto em que a semântica de situaçõesdifere das muitas teorias semânticas na tradição da semântica de modelos é que as sentenças nãodenotam valores-de-verdade, ao invés disso �descrevem� situações em algum sentido a ser tor-nado preciso. A ideia de que sentenças denotam valores-de-verdade tem uma história venerávelna lógica moderna e na �loso�a da linguagem; novamente, Frege é talvez o nome mais impor-tante nessa tradição. Naturalmente, Frege associou outro tipo de objeto com sentenças (comoseus �sentidos�), mais exatamente, a proposição. Nós exploramos um pouco a reconstrução deMontague de proposição como uma função de mundos (e tempos) para valores-de-verdade (demodo equivalente, como um conjunto de mundo), e nós também discutimos brevemente algunsdos problemas dessa noção: a identidade de todas as proposições necessariamente verdadeiras eassim por diante. Como uma primeira aproximação, podemos dizer que na semântica de situ-ações, sentenças declarativas comuns podem ser tidas como denotando conjuntos de situações,as situações em que elas são verdadeiras.

Uma exposição extensa do aparato técnico que foi desenvolvido (e ainda está sendo desen-volvido) pelos proponentes da semântica de situações não é factível aqui, mas há uns poucosdestaques.

Situações como � o que poderíamos chamar de situações reais � não aparecem na teoriaem nenhum momento. Ao invés disso, certos tipos de coisas � indivíduos, relações, locações(espaço-temporais) � são abstraídas das situações reais e dispostas juntas com objetos abstratosde vários tipos, que podem ser pensados como formas de classi�car e modelar situações reais.Entre esses objetos abstratos, talvez o mais importante seja a situação-tipo. Uma situação-tipoé: uma função parcial de relações e indivíduos para valores-de-verdade; de modo equivalente:uma sequência ordenada consistindo de uma relação de n-lugares, n indivíduos, e um valor-de-verdade. Relações como as propriedades de Chierchia são pensadas não como n-tuplas deindivíduos ordenadas, mas como coisas reais independentes no modelo. A parcialidade da funçãoé importante: para uma dada situação (ou locação) uma situação-tipo pode representar o fatoque os indivíduos se encontram em uma relação nomeada ou não. Outra situação-tipo para amesma situação pode simplesmente não dizer nada sobre a situação. Consequentemente, parci-alidade entra na semântica de duas formas: primeiro, a noção mesma de situação correspondeintuitivamente a algo que poderíamos pensar como sendo uma subparte restrita de um mundo(como os �pequenos� mundos de Cresswell); segundo, situações-tipo (entre outras coisas na teo-ria) como funções parciais nos permitem reconstruir a circunstância em que nós temos somenteinformação incompleta sobre uma coisa ou outra � isto é, a circunstância com que normalmenteou sempre nos deparamos. (Em minha última aula eu olhei brevemente para outro tipo de teoriade modelos, que é desenvolvida para lidar com parcialidade de um modo radicalmente diferente).

Parcialidade é corretamente tida como uma das formas essenciais em que a semântica desituações difere na semântica de mundos possíveis de Montague. Deixem-me ilustrar um pontosobre parcialidade, que irá também servir para nos levar ao último tópico dessa aula. Muitofrequentemente parece que queremos ser capazes de falar sobre indivíduos que estão envolvidosem alguma situação limitada; isto é, aqueles indivíduos constituindo algum subdomínio parcialdo grande domínio de todos os indivíduos possíveis que tomamos como previamente dados naestrutura de modelos padrão. Por que não podemos literalmente pegar esses indivíduos que

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estão �em� alguma situação limitada e restringir nossa atenção a eles? Bem, o problema é queessa forma de pensar as situações, situações são ainda ��nas� ou �densas�; ainda tem muitaacontecendo nelas, se as consideramos bem literalmente. Considere a sala em que estamosagora durante um pequeno período de tempo: quais são os indivíduos que estão nela, TODOSeles? Há todas as pessoas, todas as roupas que elas estão vestindo, todas as mesas e cadeiras,todos os pregos e parafusos que estão nelas, todos os cabelos na minha cabeça, as moléculasque os constituem, os elétrons e nêutrons, ... Mas isso é só o começo: e todos os indivíduosplurais que Link nos legou: minha orelha esquerda mais um dos cabelos na minha cabeça,aquele cabelo mais outro cabelo, ... e assim por diante. Para os propósitos da semântica,queremos ignorar a maioria dessas possibilidades e focar somente no subconjunto relevante dessapletora de indivíduos. Coisas como situações-tipo nos permitem isolar um pequeno conjunto deindivíduos que queremos ter disponível para propósitos linguísticos: podemos trabalhar com umconjunto de�nido de indivíduos em uma situação apelando para situações-tipo que representamou modelam a situação real de um modo bem parcial.

Antes de me voltar para o último tópico de hoje, quero me direcionar para as di�culdadesreais que surgem quando se tenta destrinchar os detalhes dos tipos de teorias para as quais temosolhado. Muitas pessoas parecem concordar que queremos ser capazes de lidar com situações,coisas como mundos mas �menores� do que mundos como comumente entendidos e entrandoem algum tipo de ordenação ou relação parte-todo. Vários problemas difíceis precisam serencarados, e não lidei com eles. Um problema é a negação. Na semântica de mundos possíveisclássica, a negação é simples; nos modelos como aqueles que estivemos vendo é muito difícil(Barwise e Perry (1983), por exemplo, simplesmente não tratam da negação sentencial). Outroproblema é a assim chamada persistência. Se uma a�rmação é verdadeira relativamente a umacerta situação restrita, o que acontece quando nós estendemos a situação para outras maioresque a �contêm�? Podemos chamar uma sentença (ou o signi�cado da sentença) persistente emuma situação se ela é verdadeira em todas as extensões4 da situação. Nós certamente queremosque todas as a�rmações logicamente verdadeiras sejam persistentes nesse sentido. Mas e assentenças contingentes, isto é, aquelas que dependem dos fatos? Novamente um problema difícil(ver Kratzer, 1989).

As teorias em que venho focando hoje ainda se conformam mais ou menos à estrutura geraldas teorias da semântica de modelos: temos uma linguagem, uma estrutura de modelos, e umafunção ou relação de um para outro. As últimas teorias de que falarei hoje � e não podereifazer mais que mencioná-las � alteram essa con�guração fundamentalmente. São as teoriasde Irene Heim e Hans Kamp que tornam a interpretação de uma língua um processo de doisestágios. A teoria da Heim é chamada semântica de mudança de arquivos; a do Kamp é a teoriade representação do discurso. Elas foram desenvolvidas independentemente mais ou menos aomesmo tempo e diferem de modos importantes e interessantes, mas elas compartilham essacaracterística. Falarei principalmente da teoria da Heim.

As teorias foram desenvolvidas originalmente para lidar com um número de problemas sobrequanti�cação e anáfora que permaneciam sem solução na teoria padrão. Podemos ver um dessesproblemas na famosa �sentença-do-burro� discutida originalmente no período medieval e trazidaà atenção dos pensadores modernos por Peter Geach (1962):

26. Todo fazendeiro que tem um burro bate nele.

O problema tem a ver com o modo como relacionamos o pronome ele ao seu antecedente umburro5. Podemos notar o problema observando que na teoria de Montague sobre o inglês no PTQ,a única forma de conseguir essa relação anafórica era derivar a sentença quanti�cando um burro1.Dois problemas surgem com essa derivação: primeiro, ela dá à sentença o signi�cado errado;

4N.T.: Aqui no sentido de `ampliação', não no sentido de referência.5N.T.: Repare que o sintagma nominal um burro está dentro de uma oração relativa.

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segundo, há restrições fortes aos contextos sintáticos em que podemos estabelecer operaçõesde quanti�cação-ligação que seriam violadas mesmo para capturar a interpretação errada que oPTQ torna disponível. Podemos ver a operação dessas restrições em uma sentença que é paralelaa (26):

27. ? Um burro que ama todo fazendeiro o chuta.

(Aqui o supostamente tem que estar ligado a emphtodo fazendeiro.) E o signi�cado erradoque essa derivação ilegítima produziria é parafraseado como a sentença (28):

28. Há um burro que todo fazendeiro que o tem bate.

De alguma forma, a sentença (26) não parece ser sobre um burro particular que todo fazen-deiro possui, mas ao contrário sobre todos os pares de dono-burro. O que fazer?

Um exame desse e de problemas similares levou tanto a Heim quanto o Kamp a uma longarevisão da estrutura de uma teoria semântica para as línguas naturais. Ambas a teorias procedempor interpor uma teoria de discurso entre as expressões da língua e o modelo ou mundo quedecisivamente determina a verdade ou a falsidade (e assim por diante) das expressões. Considereesse exemplo simples de um discurso com dois participantes e como ele é tratado na teoria daHeim:

29. A: Tem um burro no jardim.B: Ele pertence a uma mulher que vive aqui ao lado.A: Ela sabe que ele está no nosso jardim?

Esse minidiscurso ilustra como uma conversa pode ser usada para construir e formular ques-tões sobre um fundo informacional que é o tópico discursivo. Imaginamos que os dois falantesestão engajados em uma empreitada comum que podemos considerar como sendo a criação deum arquivo de informação. Alguns dos aspectos desse arquivo derivam de uma base comum queos falantes compartilham como um estado inicial na conversa. Outros são criados na medidaem que a conversa progride. Na primeira sentença, A introduz uma certa entidade no discursoe dá duas peças de informação sobre ela: que ele é um burro e que ele está no jardim. O usodo artigo inde�nido um assinala o fato de que o burro em questão está sendo introduzido comouma entidade nova. Podemos imaginar que os participantes pegam um cartão de arquivo novo,escrevem um número ainda não usado nele, adicionam a informação dada na primeira sentençanele e colocam o cartão em uma caixa. Que informação? Uma peça não é problemática: a novaentidade é um burro. A outra peça � que o burro está no jardim � requer um pouco mais de tra-balho. O uso do artigo de�nido o indica que deveria já haver um �cartão� relacionado ao jardim� tanto de um fundo comum de informação ou do discurso prévio. Aqui os participantes checamo arquivo para encontrar um cartão e adicionar nele a informação que a entidade associada como novo cartão (o cartão do burro) está na entidade associada com o cartão do jardim. (Se talcartão não é encontrado, então por um processo conhecido como acomodação os participantesfornecem um cartão �como se ele já estivesse lá�). Nas sentenças subsequentes o mesmo processose repete: um novo cartão para a mulher que vive ao lado, atualizando o cartão do burro paraadicionar a informação sobre a informação de posse, e assim por diante. Finalmente, a últimaquestão explicitamente convida para uma ação que irá continuar esse processo de uma forma ououtra de acordo com uma resposta verdadeira para a questão.

Não quero entrar nos detalhes do aparato técnico necessário para apresentar esse procedi-mento formalmente (vejam os detalhes no trabalho da Heim), mas dois pontos são de especialinteresse para nós aqui. Primeiro, dada essa con�guração, podemos prosseguir e falar sobreverdade ou falsidade de um discurso com base em uma correspondência entre um arquivo e ummundo. Um arquivo de discurso é verdadeiro se ele pode ser relacionado a um mundo de forma

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92 AULA 7. SITUAÇÕES E OUTROS MUNDOS MENORES

verdadeira: um burro realmente está no jardim, etc. segundo, descrições inde�nidas e de�nidassão compreendidas não em termos quanti�cacionais, mas em termos das direções para atualizarum arquivo, adicionando novos cartões, e assim por diante.

Podemos retornar agora para as sentenças-do-burro problemáticas (como a sentença 26)e explicá-las em termos de extensões dos cartões que preservam a verdade: para cada parfazendeiro-burro que satisfaça as condições da primeira parte da sentença, uma extensão satisfa-zendo a segunda parte da sentença existe. Consequentemente, aqui, também, a força quanti�ca-cional de todo é removida da sentença e reconstruída em termos de crescimento dos arquivos dodiscurso. (No nível de generalidade em que estamos discutindo essa teoria, muito pouco precisaser modi�cado para dar uma explicação da teoria de representação do discurso do Kamp).

Nessa aula, olhamos para um número de direções diferentes na pesquisa atual, todas com-partilhando um mesmo tema: a busca por um modelo que contenha de uma forma ou de outraestruturas como mundos que são mais �exíveis e potencialmente �menores� que os mundos má-ximos das teorias clássicas. Também tentei relacionar umas com as outras algumas dessas novasabordagens e tópicos com os quais lidamos em aulas anteriores. Preciso enfatizar que minhadiscussão tem sido completamente super�cial e que qualquer dos tópicos da aula poderiam serfacilmente a base para várias outras aulas. Se eu agucei o apetite de vocês, de modo que tenhama intenção de encontrar mais sobre esses tópicos, então considerarei a aula bem sucedida.

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Aula 8

Estranhezas e �nalizações

Os tópicos aos quais me dedicarei hoje entram em duas grandes classes: um tem a ver com anatureza dos objetos semânticos com os quais viemos lidando e como eles se relacionam comcoisas sobre as quais as pessoas poderiam falar sob diferentes concepções de semântica como umempreendimento; o outro tem a ver com a relação entre semântica e sintaxe, e também outrostipos de reinos (pragmática, conhecimento de mundo, crenças, e assim por diante). Eu ireiconsiderar esses assuntos de modo a dar respostas para questões que foram trazidas por algunsde vocês a mim e para questões que poderiam ter sido formuladas por vocês e não foram.

P: Na primeira aula você mencionou que há outras abordagens semânticas que não são teoriasde modelos. Você poderia, por favor, dizer algo sobre elas e como elas se relacionam com o quevocê vem falando?

R: Essa questão toca em um dos problemas mais difíceis sobre o empreendimento da semântica,e ela nos leva algumas questões adicionais interessantes.

Desde os primórdios da in�uência de Chomsky na área, muitos linguistas (não todos!) têmaceito a ideia de que a teoria linguística é melhor pensada como uma rami�cação da psicologiacognitiva, o campo geral preocupado com a compreensão das habilidades mentais das pessoas.Nas nossas ruminações sobre a semântica até agora, não pensamos nem um pouco sobre a mente.Falamos sobre línguas e coisas que as expressões denotam: valores-de-verdade, indivíduos, pro-priedades, e assim por diante, e nos ajudamos com coisas como mundos e tempos e todos ostipos de funções matemáticas e relações para tentar chegar a uma resposta satisfatória para asquestões com as quais iniciamos. O que é o signi�cado?

Suponham agora que queremos pensar sobre uma teoria psicológica sobre a semântica � oque poderíamos chamar de psicossemântica. Poderíamos sensivelmente considerar esses objetossemânticos dos quais viemos alegremente falando como algum tipo de objeto mental? (Não sedeixem distrair por um problema lateral importante e difícil: faz algum sentido falar de objetos�mentais�? Eu �carei perfeitamente feliz se vocês acreditarem que todo esse papo de objetosmentais, pensamentos, conceitos, e assim por diante, é só uma forma disfarçada de falar sobrecoisas que são de fato compostas de coisas físicas e suas relações. Nesse caso, podemos defendero discurso sobre a mente como uma reorganização necessária das unidades de discussão quandonós atingirmos um certo nível de complexidade).

Uma resposta rápida seria: Não, eles não podem literalmente ser objetos mentais porque hámuitos deles e eles são muito grandes. Não podemos ter mundos em nossas cabeças, sem falardos indivíduos como João e de todas as funções, funções de funções, e assim por diante, com osquais mesmo modelos relativamente modestos vêm equipados. Por conseguinte, gostaríamos dere�nar a questão um pouco: temos em nossas mentes objetos mentais de algum tipo que corres-pondem a ou representam algumas ou todas as coisas das quais estamos falando? Por exemplo,poderia fazer sentido pensar que temos um conceito (psicológico) de cavalo que corresponde em

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alguma maneira com a propriedade Cavalo na nossa semântica, contudo isso se compreende.Então poderíamos perguntar qual é a relação entre essas duas coisas: o conceito de cavalo e apropriedade Cavalo.

Há uma importante linha de argumentação (devida primariamente a Hilary Putnam) quepropôs que qualquer que seja essa relação, ela não está nem próxima da identidade. Peguem anoção de propriedade de Montague como uma função de pares mundo-tempo a conjuntos: nessecaso, conjuntos de cavalos. Na semântica de modelos padrão, tal teoria é considerada como umacoisa que nos dá respostas de�nitivas para questões como: �Abraão é um cavalo?� Tal visãoparece carregar com ela a ideia de que a propriedade deveria nos disponibilizar algum critérionecessário e su�ciente para determinar se algo é um cavalo. E as pessoas não possuem esse tipode critério para a maioria das coisas das quais elas falam. Muita discussão �losó�ca aconteceusobre esse assunto e outras questões que surgem são: E os mundos onde há algo que tem todasas propriedades da água no nosso mundo, mas é quimicamente distinto dela (e é chamado águanesse outro mundo)? Ou, e se descobríssemos que o que chamamos de gato (e acreditamos quesão animais naturais) são robôs inteligentemente criados e controlados por seres invisíveis deoutro planeta? Eles ainda seriam gatos? Ou suponham que houvesse uma árvore de lápis, cujasfrutas ou nozes fossem indistinguíveis dos lápis como os conhecemos e os amamos, essas coisasseriam realmente lápis? É divertido e instrutivo pensar nessas questões. Pessoalmente, tendo aconcordar com pessoas que dizem que usamos a linguagem em um tipo de modo �e se�: usamos oconceito de cavalo com a compreensão tácita que as coisas que chamamos de cavalos são cavalosde acordo com qualquer que deva ser a �correta� compreensão desse conceito. Há um aspectomodal ou intensional na nossa compreensão de tais conceitos. (Notem que o mesmo problemarealmente ocorre com indivíduos comuns: o verdadeiro João Souza poderia fazer o favor de selevantar!) Putnam destacou a importância dos aspectos cooperativos sociais do signi�cado: nósdelegamos para os experts que sabem mais sobre cavalos, ouro, água, etc., do que nós sabemos.

Não posso dar aqui uma resposta melhor para a questão do que essa. Deixem-me apenas rei-terar: acredito que a melhor forma de pensar sobre essa questão é entendê-la como uma questãosobre representações mentais ou conceitos e sua relação com os tipos de coisas (não-mentais) deque falamos em nossas teorias semânticas. Incidentalmente, as teorias de Heim e Kamp paraas quais olhamos brevemente na última aula são muito relevantes aqui: representação do dis-curso e arquivos parece que se prestam muito bem à tarefa de pensar sobre as representaçõesnecessariamente parciais que possamos ter em nossas cabeças.

P: Uma coisa que incomoda sobre as teorias semânticas de que viemos falando: elas parecemassumir limites precisos para tipos de coisas. Algo ou está ou não está em um conjunto. Emmuitas partes da nossa fala � talvez na maioria dela � operamos com conceitos ou outra coisaque simplesmente não são assim: O Sr. Fulano é alto? Esse objeto é vermelho? Essa coisa é umpedaço de mobília? Quando uma poltrona �ca grande o su�ciente para ser chamada de sofá? Eassim por diante.

R: Sua pergunta traz o problema muito importante da vagueza ou indeterminação no signi�cadodas palavras. Obviamente está correto o que você disse.

Primeiramente, deixem-me dizer que não se pode dar uma resposta em termos das estraté-gias de pesquisa. Não podemos fazer tudo de uma vez e sempre operamos sob condições quefazem algum tipo de idealização. Assim, defenderíamos o que estamos fazendo dizendo que po-demos �ngir uma precisão que temos que admitir que realmente não temos e ver aonde podemoschegar na compreensão da estrutura dos signi�cados das línguas naturais através dessa assunçãosimpli�cadora. Acho que essa estratégia é racional, mas de alguma forma está apenas adiandoo problema.

Assumindo que queiramos encarar o problema, provavelmente desejaríamos separar os ca-sos. Como frequentemente acontece, muitos problemas diferentes são agrupados sob um mesmo

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rótulo, e faz sentido tratá-los de formas diferentes. Deixem-me ilustrar.

1. Alguns animais têm rins.

Essa sentença é verdadeira. Suponha que TODOS os animais tem rins (acredito que issoseja falso), a sentença (1) seria falsa? A lógica diz que não (contanto que haja alguns animais).Mas o uso cotidiano é tal que poderíamos nos perguntar se nas línguas (ao contrário da lógica)queremos dizer que a sentença (1) deveria ser verdadeira ou falsa (nessa situação hipotética ondetodos os animais possuem rins). Acredito que seja apropriado dizer que a semântica deve seguira lógica aqui e a dar conta do modo como normalmente usamos e compreendemos sentençascomo o exemplo (1) por uma teoria diferente, por exemplo uma teoria da �lógica� da conversação,implicaturas convencionais e conversacionais e semelhantes, como aqueles apresentadas por PaulGrice. Apontamentos similares poderiam ser feitos sobre o modo como usamos ou, se e outros.Este é um caso assim:

2. O Sr. Fulano de Tal é alto.

Suponhamos que o Sr. Fulano de Tal é um jogador pro�ssional de basquete. Assim, se eletem dois metros de altura, poderíamos nos inclinar a dizer que a sentença (2) não é verdadeira.Mas suponham que ele é uma CRIANÇA que é um jogador pro�ssional de basquete (assumindoque tais coisas existam), então poderíamos mudar de opinião. Aqui, acho que queremos dizer quepalavras como alto implicitamente carregam com elas um padrão de comparação, que pode serexplicitado em português adicionando para um jogador de basquete ou algo do tipo. Esse é outrotipo de caso, onde podemos re�nar nossa compreensão um pouco detalhando mais exatamenteo que essa palavra signi�ca.

Mesmo assim, vocês poderiam dizer que, se pudéssemos detalhar o signi�cado de alto dessaforma, um elemento inescapável de vagueza não permanece no signi�cado da palavra? Acho quea resposta é positiva. Há um problema famoso (chamado Sorites) baseado nesse tipo de vagueza.Suponham que concordemos que um homem é baixo se ele tem um metro de altura. Suponhamque além disso concordamos que se um homem é baixo e se você adicionar um milímetro a suaaltura ele ainda seria baixo. Se você aceita essas assunções, então se consegue �provar� que umhomem com três metros de altura é baixo.

Pensar sobre esses problemas e questões similares tem levado pessoas a desenvolverem �teoriasde vagueza�, que são formas precisas de construir vagueza em uma teoria do signi�cado. Porexemplo, Hans Kamp dedicou uma quantidade razoável de re�exão a tais problemas e propôsuma teoria em que se relativiza a compreensão de algumas palavras ao contexto e diz algo similara isso: relativamente a algum grau de precisão nós separamos a denotação de alguma palavra Xem três casos: de�nitivamente X, de�nitivamente não-X, e indeterminado (isto é, algo no meiodisso). Como vocês poderiam adivinhar, esse tipo de teoria leva a pensar sobre sistemas com�lacunas de valor-de-verdade� ou lógicas trivalentes (Verdadeiro, Falso, Inde�nido � relembremnossa discussão do erro de tipo na aula V).

Outro conjunto interessante de considerações que mencionarei brevemente surge, acho, dasre�exões sobre o signi�cado do �lósofo Ludwig Wittgenstein. Wittgenstein argumentou que ossigni�cados da maioria ou de muitas palavras deveriam ser realmente pensados como bastanteindeterminados. Se vocês perguntaram a alguém o que um jogo é (exemplo dele), a pessoa podelistar alguns jogos típicos, e dizer �jogos são coisas como�. Se vocês pressionarem essa pessoapor um critério para o que conta como um jogo, ele ou ela poderiam �car perdidos. Jogosprecisam ter um ganhador e um perdedor? Bem, um monte sim, mas então o que dizemos depular corda e outros parecidos? Várias pesquisas psicológicas têm sido feitas sobre essas noções,normalmente sob o nome de protótipos, e Putnam também utilizou essa ideia nos seus esforçospara pensar sobre o signi�cado de uma forma que se distancie de ideias como funções de�nidas.Há atualmente esforços para tentar ver como se poderia incorporar tais ideias dentro de umaabordagem semântica formal.

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96 AULA 8. ESTRANHEZAS E FINALIZAÇÕES

Finalmente, deixem-me só mencionar uma linha de pensamento atual que envolve uma totalreformulação ou re�namento da semântica de modelos padrão. Nas abordagens tradicionais,questões sobre conhecimento nunca surgem. As pessoas que estão começando a estudar semân-tica de modelos frequentemente sentem dúvidas sobre este fato: como você sabe que isso e aquilosão verdadeiros? Nós aprendemos rapidamente a separar algumas questões como questões epis-temológicas. Assumimos que sabemos e então vemos o que acontece. Assim, de certo modo,abordagens tradicionais disponibilizam um tipo de �semântica de Deus�, um ser onisciente. Mas,de fato, nós sempre operamos com ideias parciais e possivelmente bem erradas sobre o que é ocaso. Não seria instrutivo encarar essa situação mais tradicionalmente e desenvolver uma teoriasemântica baseada não em conhecimento total (presumido), mas ao contrário na noção de co-nhecimento parcial e pensar formalmente sobre o processo de aumento de conhecimento? Entãopoderíamos pensar que uma semântica tradicional provê um tipo de caso limitado. Dada umateoria sobre informação parcial e crescimento de informação, então, pular para a situação ondea informação se torna completa (o que provavelmente não servirá para nós), daria a �semânticade Deus�. Essa direção é exatamente uma que está sendo perseguida sob o nome de semânticade dados (Landman, 1986; Veltman, 1985). A teoria é especialmente relevante para entenderalguns dos problemas persistentes sobre modalidade e a semântica das sentenças condicionais.

Novamente, não posso fazer muito mais além de convidar vocês a visitar essa teoria nova.Como com algumas das abordagens mencionadas na aula passada, a teoria depende crucialmentedo uso de funções parciais. Funções parciais são funções de algum domínio que produzem valoressomente para um subconjunto dos objetos no domínio. Se a função não gera um valor para algumargumento no domínio, dizemos que o valor é �inde�nido�. Mas o que �inde�nido� signi�ca? Asemântica de dados parte do ponto de vista de que isso poderia muito bem signi�car o seguinte:indeterminando até o ponto em que está relacionado ao atual estado de conhecimento, maspossivelmente a ser determinado na medida em que o conhecimento aumenta. Então, temosuma ordenação natural das funções baseadas na parcialidade da informação e estudamos formasem que funções �se acomodam� em um estado onde nenhuma informação pode mudá-las.

P: Você prometeu que diria algo sobre a relação entre a semântica e outras partes de uma teoriamaior da linguagem: sintaxe, pragmática, e, talvez, outras áreas também.

R: Obrigado por me lembrar. Deixem-me concentrar primeiro na sintaxe, entendida no sentidomais amplo para incluir não somente teorias sobre a estrutura das sentenças e outros tiposde sintagmas, mas descendo a questões sobre a estrutura da palavra, o que tradicionalmente sechama de morfologia. Então voltarei a algumas das áreas que estão mais diretamente conectadascom o que nós convencionalmente acreditamos que o signi�cado seja.

Acho que �cou evidente em vários momentos nessas aulas que a teoria geral de Montague nosdeu uma relação bem próxima entre sintaxe e semântica. Primeiramente, há nessa teoria umarelação funcional entre as categorias sintáticas e os tipos semânticos de sua lógica intensionale logo os tipos de objetos na estrutura de modelos. Na aula V, tomamos nota de alguns dosproblemas a que aquela visão leva e notamos lá e depois que uma forma de lidar com essesproblemas é fazer algumas mudanças fundamentais na estrutura de modelos, tanto dividindo odomínio, ou o enriquecendo e o simpli�cando como nas abordagens das teorias de propriedadesde Chierchia e outros. Segundo, uma relação muito próxima supostamente existe entre as regrasda sintaxe e as regras da semântica, e contrastamos essa visão � a hipótese de regra-a-regra �com as teorias con�guracionais da teoria de Regência e Ligação, por exemplo.

Acho que tem bastante coisa a ser dita para explorar esse tipo relação restrita rigidamentecomo uma hipótese de pesquisa. Podemos compará-la com uma teoria de �palha�, que não colocanenhuma restrição na relação entre sintaxe e semântica. Nesse tipo de abordagem, nada sobreas formas em que os vários signi�cados nas línguas naturais são expressos seria surpreendente.Queremos teorias que tenham um monte de �valor surpresa�, isto é, que façam muitas predições

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especí�cas sobre o domínio de pesquisa. Dessa forma é mais provável que descubramos que elasestão erradas, e o conhecimento avança ao descobrir o erro. A propósito, acredito que temosque tratar esse aspecto de nossa teoria como qualquer outro: hipóteses que estamos explorandoe testando e não algum tipo de restrição a priori sobre análises possíveis.

Teorias rigidamente restritas sobre a relação entre sintaxe e semântica são severamente afe-tadas em vários lugares. Um desses lugares é na ideia de correspondência funcional entre ca-tegorias sintáticas e tipos semânticos. Considerem, por exemplo, sintagmas nominais. Tradi-cionalmente, os linguistas têm feito muitas vezes uma distinção entre sintagmas predicativos enão-predicativos, como nesses contrastes:

3. Um antropólogo apareceu na porta.

4. O Seu João é um antropólogo.

5. Eu acho que o Seu João é um antropólogo.

Nas sentenças (4) e (5), um antropólogo está sendo usado como um predicado nominal. Emcontraste com a sentença (3). Semanticamente, gostaríamos de dizer que o uso predicativodos sintagmas nominais é não um quanti�cador generalizado, mas ao invés disso algum tipode predicado (por exemplo, portanto, a sentença (4) seria representada no CP apenas comoantropólogo(sj), onde sj representa o Seu João. Mas se isso estiver certo e se quisermos dizerque predicados nominais são sintagmas nominais � e tais sintagmas geralmente exibem todas ascaracterísticas de sintagmas nominais � então o princípio da correspondência funcional pareceestar ameaçado. Uma disputa muito frutífera sobre esse ponto ocorreu entre Edwin Williamse Barbara Partee. O resultado foi um sugestivo relaxamento do princípio da correspondência,mas não um abandono dele: parece que há variações sistemáticas e previsíveis dos signi�cadosdos sintagmas nominais. A modi�cação sugerida do princípio da correspondência nesse casotambém leva a algumas predições interessantes sobre que sintagmas nominais particulares podemfuncionar predicativamente e em que circunstâncias, como ilustrado por estes exemplos adicionaisdo debate Willians-Partee:

6. ? O Seu João é todo antropólogo.

7. Esta casa tem sido de toda cor.

(É válido pensar sobre a possibilidade de a sentença (6) ser estranha porque ela é provavel-mente falsa. Mas mesmo que exista somente um antropólogo ainda parece estranha). A soluçãoproposta para os problemas dos predicados nominais é também relevante para outro conjuntode problemas com os sintagmas nominais que surge quando consideramos conjunções de váriostipos de expressões verbais:

8. Maria abraçou e beijou um transeunte.

9. Maria queria e comprou um chapéu.

Queremos ser capazes de dizer que se a sentença (8) é verdadeira então havia um transeunteque Maria abraçou e beijou, mas para a sentença (9) não queremos dizer que havia necessaria-mente um chapéu particular que Maria queria e comprou. Partee sugere que sintagmas nominaispossuem um espectro particular de interpretações possíveis que estão sistematicamente relaciona-das: como indivíduos, como propriedades ou predicados, ou como quanti�cadores generalizados.O ponto que quero fazer aqui é que somente se começamos com uma teoria razoavelmente restritaem relação ao mapeamento da sintaxe para a semântica é que tais problemas são problemas.Procurar por soluções, então, leva a modi�cações interessantes e sistemáticas na teoria, não aum completo abandono dela.

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98 AULA 8. ESTRANHEZAS E FINALIZAÇÕES

Incidentalmente, esse seria um ponto apropriado para introduzir um comentário sobre asestratégias de pesquisa em semântica. Eu destaquei nas últimas aulas novas direções que estãotomando a tarefa de modi�car ou estender o tipo �clássico� de semântica de mundos possíveisusado por Montague. É importante se dar conta de que a semântica de mundos possíveisestá viva e bem e que alguns pesquisadores estão fazendo um bom trabalho ao tentar levara abordagem até as suas últimas consequências e ao pensar sobre os problemas difíceis quetêm sido apontados (atitudes proposicionais, por exemplo) e formas de lidar com elas que nãonecessariamente envolvem abandonar a virtudes reais da abordagem clássica (Cresswell (1985)e Stalnaker (1984) são dois bons exemplos). Não é sempre que se quer jogar fora coisas que setem quando algo novo aparece.

Chamei a teoria que eu estava contrastando com a do Montague aqui de teoria de �palha�,ou um tipo de abordagem �espantalho�. Duvido que alguém advogue seriamente essa teoria.Desacordos reais existem sobre a natureza da semântica e o modo em que as pessoas devemtentar apresentar a relação entre semântica e sintaxe. A diversidade tem que ser benvinda, naminha opinião, e deveria ser discutida e explorada em um espírito cooperativo.

Não posso deixar esse tópico sem colocar um pequeno �plug� para uma família de teoriasde sintaxe que focam diretamente na relação sintaxe-semântica: as chamadas teorias catego-riais. Montague usou teorias categorias de sintaxe em parte no PTQ. Elas estão por aí já fazalgum tempo, mas com exceções esporádicas não tem sido muito perseguidas por linguistas. Nosúltimos anos tem acontecido um renascimento no interesse por estas teorias. Uma das suas ca-racterísticas centrais tem sido uma insistência teimosa na centralidade das funções e argumentosna linguagem, tanto na sintaxe quando na semântica.

Isso é tudo em relação à sintaxe. Deixem-me acrescentar uns poucos comentários sobre ou-tras partes de uma grande teoria sobre a linguagem. Primeiro, com relação aos aspectos dosigni�cado no sentido amplo que temos negligenciado, uma parte importante do signi�cado tema ver com a forma como a informação é repassada. Estou pensando nas coisas que são tradicio-nalmente tratadas sob o título de foco e fundo comum, informação velha versus nova, e assim pordiante. Em várias línguas, tais aspectos são muitas vezes transmitidos pelo uso de construçõesou marcadores especiais, ordem das palavras, e por entonação ou acento enfático. Embora asteorias da Heim e do Kamp para as quais olhamos na aula passada são potencialmente muitorelevantes para tais questões, muito mais precisa ser levado em consideração. Provisoriamente,podemos pensar isso como outra forma de organizar o signi�cado das expressões, e uma tarefa deuma teoria quase completa do signi�cado seria investigar como esse tipo de estrutura se relaci-ona com o tipo de signi�cado do qual estivemos falando em termos de estruturas denotacionais.Uma segunda área que eu mal mencionei é a das pressuposições ou implicaturas. Essas duasáreas do signi�cado estão intimamente relacionadas. Muito frequentemente, dois enunciados quenão poderiam ser verifuncionalmente distintos podem variar nas pressuposições que carregam,dependendo da entonação, por exemplo. Finalmente � não ��nalmente� no sentido absoluto,claro, mas somente no sentido em que essa é a última coisa da qual tratarei sobre o signi�cadopropriamente � há todos os tipos de �signi�cado� que têm a ver com a con�guração do uso dalíngua: informação contextual sobre o falante e o ouvinte, as atitudes de um para com o outro,e aspectos sociais, sem mencionar as atitudes para com o assunto dos discursos. Por exemplo,em algumas línguas diferenças obrigatórias são encontradas entre palavras usadas para homense para mulheres.

A maioria das aulas foi dedicada ao nível da competência da linguagem; isto é, tentando darconta do que os usuários da língua sabem de modo implícito (com as quali�cações importantes,consideramos hoje o lado psicológico da semântica). Quando usamos e compreendemos a lingua-gem, temos que suportar nessas tarefas um monte de conhecimento geral, em adição a muitashabilidades cognitivas que estão provavelmente envolvidas em muitas habilidades não linguísti-cas também. Na semântica, há sempre a questão sobre a linha que separa o conhecimento geralsobre o mundo e a semântica propriamente. Pesquisadores em inteligência arti�cial apreciam

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mais do que o restante de nós, eu acho, o enorme papel que o conhecimento de mundo exercena linguagem e em outros domínios cognitivos.

P: Você nos falou um bocado sobre teorias muito abstratas da semântica das línguas naturais.Essas teorias possuem qualquer aplicação prática?

R: Outra pergunta ótima e difícil. Eu não sinto a necessidade de justi�car a busca de conhe-cimento de qualquer tipo que você possa mencionar pelas possíveis aplicações práticas que issopossa ter, e não irei assumir que você pressupõe a necessidade dessa justi�cação quando per-guntou a questão. Pra mim, é su�ciente dizer isso: aqui está o fenômeno (como uma montanhapara o escalador), e quero compreender isso (escalador: escalá-la). A história mostra melhoro progresso da ciência por tomar essa atitude como uma razão primária. Mas, naturalmente,as sociedades precisam perguntar sobre os efeitos práticos, bons ou maus, que possam resultarda atividade cientí�ca. Além disso, a história também nos mostra, acredito, que a compreen-são cientí�ca algumas vezes vem do ataque aos problemas práticos. Por �m, mais de uma vezaconteceu de alguma área do conhecimento possuir aplicações práticas ou efeitos que jamaisforam sonhados pelas pessoas que o desenvolveram. Um exemplo famoso é o desenvolvimentodas geometrias não-euclidianas, que foram pensadas inicialmente como estruturas puramenteabstratas que se tornaram concebíveis depois que se deram conta de que um dos axiomas deEuclides era independente dos outros e que se poderia deixá-lo de lado ou trocá-lo e ver o queaconteceria. Essas geometrias se tornaram cruciais para a teoria da relatividade, e a maioria denós sabe algo sobre algumas das consequências sérias e práticas daquela teoria. Outro exemploé a teoria dos números primos e a matemática dos números muito grandes, que são agora deimensa importância para a criptogra�a.

Dito isso, e as aplicações práticas da semântica de modelos em particular? Bem, não sereimuito otimista. Alguém poderia perguntar a mesma coisa sobre a teoria linguística em geral.Aplicações práticas potenciais poderiam ser encontradas, mas as fáceis de pensar estão repletasde di�culdades. Por exemplo, muitos de vocês são professores de línguas. A linguística os ajudanas suas tarefas? Provavelmente de uma forma geral, se ela os ajuda compreender a estruturadas línguas, lhes dá alguma luz sobre como as línguas diferem, e assim por diante. Mas nãose pode derivar nada diretamente da teoria linguística para o ensino de línguas. Isso requercolocar DUAS teorias juntas, pelo menos, uma sobre a linguagem e outra sobre aprendizagem.A semântica formal tem algum impacto na ciência da computação: tentar dizer algo precisosobre a semântica de programas se tornou muito difícil e alguns pesquisadores tem se baseadoem ideias da semântica de modelos, mas essa é uma área em que não tenho competência parame direcionar.

P: Você diria algo sobre as direções atuais na semântica e o que podemos esperar como linhasimportantes de pesquisa nos próximos anos?

R: Essa é uma boa pergunta para �nalizar. Primeiro, eu já falei um bocado sobre as direçõesatuais de pesquisa. O ponto principal dessas aulas pra mim tem sido introduzir vocês su�ci-entemente ao aparato técnico da semântica de modelos e dizer algo sobre o trabalho excitanteque está sendo conduzido no campo hoje. As áreas em que toquei que estão correntementesendo perseguidas incluem o estudo dos quanti�cadores generalizados, vários experimentos comestruturas de modelos modi�cadas como a teoria das propriedades do Chierchia e outros, e ouso de níveis intermediários de interpretação como nas teorias da Heim e do Kamp, e outrasremodi�cações mais radicais de toda base da semântica como a semântica de dados e a semânticade situações.

E o futuro? Bem, eu espero que todas as coisas que acabei de mencionar continuem a serperseguidas em modi�cadas nos próximos anos. Talvez a melhor coisa que eu poderia fazer aqui

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seria falar sobre alguns problemas que precisam ser olhados ou resolvidos bem como algumasáreas em que parece haver alguma convergência de opinião entre pesquisadores de diferentesabordagens.

Psicossemântica. Que tipo de representação semântica as pessoas de fato possuem em suascabeças? Eu já mencionei alguns dos problemas que surgem quando fazemos perguntas comoessa. Abordagens sérias a essas questões obviamente tem que envolver psicólogos e psicolinguistasbem como semanticistas. Suspeito que os próximos anos verão algum progresso nesses tópicos,e a julgar pelo passado podemos esperar muitos debates vigorosos. Espero que mais interaçãoaconteça entre o tipo de abordagens de modelos exempli�cadas nos trabalhos que estudamosaqui e outros tipos de abordagens. Deixem-me apenas citar um exemplo de tópico de interesseatual.

Um problema ao fazer pesquisa em semântica é que grandes di�culdades surgem ao deter-minar qual é dado que você está tentando explicar. Em geral, lidamos em linguística com osjulgamentos dos falantes nativos: essa sentença é aceitável, agramatical? Qual é o plural de umapalavra especí�ca? Os dados podem �car bem bagunçados. Os tipos de julgamentos que temosque perguntar sobre a semântica muitas vezes parecem muito confusos: De quantas formas umasentença com vários sintagmas nominais quanti�cados é ambígua? Essa sentença acarreta ou-tra sentença? Muitas pessoas parecem bem incertas nos seus julgamentos sobre esses aspectos.Frequentemente parece que as pessoas tem que atravessar algum tipo de processo separado parachegar a algum tipo de conclusão (se chegarem) sobre as propriedades lógicas das sentenças. Umtipo de questão típico seria posto por uma sentença como esta aqui:

10. Muitas �echas não atingiram o alvo.

Essa sentença pode ser usada para descrever uma situação em que todas as �echas em questãoatingiram algum alvo ou outro, mas havia um alvo que muitas �echas erraram?

Algumas pessoas gostariam de dizer que quando compreendemos uma sentença como o exem-plo (10) nós apenas computamos a representação semântica que é �neutra� ou �não-especi�cada�até onde o escopo das expressões quanti�cadas e da negação estão relacionados, e esse é somenteum tipo de processamento posterior pelo qual temos que passar (algumas vezes!) para descobriras possibilidades de escopo. Por ora, contudo, ninguém conseguiu chegar a um bom sistema re-presentacional para essa representação neutra ou não-especi�cada que não seja computar todasas possibilidades de escopo e então sumarizá-las. Aqui, eu espero que estudos adicionais tentemse conectar com a pesquisa muito interessante que Philip Johnson-Laird tem feito sobre como aspessoas raciocinam. (Johnson-Laird acredita que as pessoas fazem pequenos �modelos mentais�que são usados para raciocinar, vejam o livro com esse título nas referências).

Provavelmente, a pesquisa em �psicossemântica� que eu espero que aconteça se coordenarácom a pesquisa em inteligência arti�cial, quando as pessoas tentam construir modelos compu-tadorizados de vários tipos dos processos cognitivos (embora eu não esteja muito otimista sobreos resultados, ainda). Mas esse trabalho tem que estar genuinamente comprometido com o de-senvolvimento de teorias reais. É muito sedutor quando você escreve um programa que simulaalgum tipo de comportamento humano pensar que o que você tem constitui uma teoria, apenaspelo mérito do fato que funciona (se é que funciona!). Computadores são computadores e pessoassão pessoas. A metáfora do computador tem sido muito frutífera na psicologia cognitiva, mas elaé apenas uma metáfora a menos que você seja capaz de construir algumas ligações razoavelmentepróximas entre o que o computador faz e o que você acha que as pessoas fazem.

Eventos etc. Tem sido provavelmente bem aparente que eu mesmo sou muito interessado emtodos os tópicos que foram discutidos nas últimas aulas sob os títulos �aspecto verbal�, situações,e assim por diante. Aqui tem havido um casamento muito interessante entre o trabalho feito poruma variedade de linguistas diferentes, trabalhando dentro de abordagens tão diversas como ateoria de Regência e Ligação, semântica de situações, e a gramática de Montague, e o trabalhodos �lósofos. Eu espero que estejamos apenas no início do trabalho desse tipo agora. Eu poderia

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também ter mencionado essa área sob o mesmo título, porque acho óbvio que aqui estamosindo além do reino da linguística propriamente e temos que trazer trabalhos de outros domíniosconceituais. Ray Jackendo� escreveu muito explicitamente sobre esse ponto em um livro recente(1983) e também tem pavimentado o caminho para a vinda de evidências de teorias da visãoa questões sobre semântica e outras estruturas conceituais. Na minha opinião, uma ligaçãoimportante pode ser feita aqui com trabalhos prévios sobre percepção de causalidade com outrascoisas feitos pelo psicólogo Michotte e seus colegas. (Muito relacionado a esse trabalho será, euacho, uma continuação do pensamento sobre as relações temáticas como partes signi�cativas dasteorias semânticas).

Em vários momentos nessas aulas nós terminamos com questões que parecem nos levar aproblemas que chamei de metafísica das línguas naturais. Novamente (como vocês poderiamadivinhar) esse tópico é caro ao meu coração. Ele se relaciona muito diretamente a algumasdas maiores e mais difíceis questões com que nos deparamos. A maioria das pessoas normaisnão está muito interessada em muito do trabalho técnico que os linguistas fazem. Mas muitasdelas ouviram uma vez ou outra a chamada Hipótese Sapir-Whorf (a ideia que nossas línguasdeterminam os mais básicos padrões do nosso pensamento), ou elas mesmas surgiram com ideiassimilares como fruto de re�exão sobre a sua experiência linguística. Como professores de linguís-tica, nós muitas vezes temos um problema com isso. Os estudantes vêm para os nossos cursosqueimando de curiosidade sobre essa e outras questões básicas da linguagem. Tais estudantesfrequentemente �cam desapontados quando aprendem que um bocado da linguística tem a vercom sistemas abstratos e obscuros que parecem estar muito longe dessas questões GRANDES einteressantes. �A linguagem é uma janela para o pensamento!� dizemos nos anúncios dos nossoscursos. �O que vemos através dessa janela?� eles prontamente perguntam. O sintaticista diz:�Muitos princípios incomuns que não tem relevância alguma fora da linguagem.� O Semanti-cista diz: �funções de mundos possíveis a funções de conceitos individuais a valores-de-verdade.�(Coisa pra burro!) Ainda assim, sinto que estamos hoje em uma posição muito melhor do queaquela em que estávamos poucas décadas atrás para considerar essas velhas Questões Grandesnovamente. E certamente nós deveríamos.

Deixem-me fechar convidando vocês a tomar parte nessa busca por novas respostas paravelhas questões e o descobrimento de novas questões para velhas respostas. É uma busca exci-tante e não pode ser feita sem a ajuda de muitas pessoas em muitos lugares. Agradeço-lhes pelointeresse e pela oportunidade de falar com vocês.

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Notas

Aula 1

Um apelo clássico e bem geral a favor da abordagem de modelos na semântica é Lewis1972,republicado em Partee1976. Dowty, Wall & Peters (Dowty1981) é uma introdução detalhada àsemântica de Montague. As teorias de Montague sobre linguagem e línguas naturais foram lan-çadas em vários artigos compilados em Montague1974, que possui uma introdução ao trabalhode Montague pelo organizador Richmond Thomason. A teoria geral da linguagem de Montagueé apresentada no artigo �Universal Grammar� (artigo 7 em Montague1974); seu artigo mais co-nhecido, que forma a base para a maior parte do material das próximas aulas é o �The propertreatment of quanti�cation in ordinary English� `o tratamento adequado da quanti�cação noinglês coloquial' (PTQ: artigo 8 no mesmo livro). Fodor1977 é uma introdução às várias abor-dagens da semântica dentro do programa gerativo. O melhor livro sobre o campo da semânticaformal das línguas naturais como um todo é Gamut1982. Uma introdução concisa ao trabalhode Montague em semântica, que é incomum pela sua con�ança excessiva e pelas explicações dateoria geral de Montague, é Link1979.

Aula 2

As principais referências para o material desta aula são as mesmas para a primeira aula.Linsky1971 é uma coleção útil de artigos antigos sobre modalidade incluindo o artigo clássico deKripke de Kripke1963. A análise de mundos possíveis da modalidade foi desenvolvida indepen-dentemente por Kripke, Jaakko Hintikka, Stig Kanger, e outros. Uma investigação recente douso das estruturas de modelos para interpretar tempos verbais é van vanBenthem1983. Sobreas interpretações contextuais da modalidade mencionadas ao �nal da aula, ver especialmenteKratzer1977.

Aula 3

O artigo referenciado no início da aula é Bach1968. Para aqueles que querem ter alguma ideiade como eram as primeiras interações entre linguistas e �lósofos no �nal dos anos 60, David-sonHarman1972 é uma boa fonte. O material de exposição sobre sintagmas nominais comunscomplexos e sintagmas nominais é de novo retirado do PTQ e as referências para a aula Iainda são pertinentes. A interpretação de Russell dos de�nidos singulares como o atual rei daFrança foi desenvolvida no seu artigo �On Denoting� (Russell1905) [tradução brasileira na sérieos Pensadores: `Da denotação' (Russell1989)].

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Aula 4

BarwiseCooper1981 foi o artigo que direcionou muitos semanticistas para a perspectiva dosquanti�cadores generalizados na interpretação das línguas naturais de forma geral, e provavel-mente é ainda o melhor lugar para começar a traçar esse desenvolvimento. Desde aquele tempomuitos estudos sobre quanti�cadores generalizados nas línguas naturais foram conduzidos (umapublicação recente com inúmeros artigos, extremamente técnicos, é Gardenfors1987). Sobre assentenças existenciais: Milsark1974 é uma referência tradicional principalmente na sintaxe, mascom observações semânticas importantes. A proposta dos itens de polaridade negativa é baseadaprimariamente em Ladusaw1979. Linebarger1981 argumenta por uma proposta sintática alter-nativa. Um estudo recente importante é Zwarts (Zwarts1986, em Holandês; uma versão inglesaexpandida está em preparação).

Aula 5

Recentemente, um forte interesse em abordagens categorias na sintaxe e na semântica surgiu;ver, por exemplo, Oerhle, Bach, e Wheeler (Oehrleetal1987). A gramática categorial foi iniciadapor Ajdukiewicz1937 e continuada por Lambek1961 e BarHillel1953.

Entre os estudiosos que iniciaram as abordagens de modelos para a semântica das línguasnaturais ao mesmo tempo em que Montague e desenvolveram seu trabalho desde então deveriamser mencionados: Keenan (KeenanFaltz1985), Cresswell1973, e Terence Parsons (trabalho inicialque nunca foi publicado).

A discussão sobre os problemas de �erro de tipo� na semântica de Montague podem ser encon-trados em Waldo1979, que parte de Thomason1972. Partee1976 contém um grupo de artigos queilustram as primeiras extensões do trabalho de Montague. Sobre espécies, ver Carlson1977; so-bre plurais, Bennett1974, Link1983, Landman (1987); sobre expressões proposicionais em inglês,Delacruz1976; sobre a semântica dos nomes e dos classi�cadores em uma língua sem distinçãosingular/plural obrigatória (Tailandês), Stein1981. Parsons1979 é uma tentativa de lidar com oproblema da in�ação sintática na gramática de Montague tradicional de uma forma interessanteusando esquemas para os tipos que correspondem às várias categorias sintáticas.

Aula 6

Dois livros recentes que dedicam atenção principalmente aos problemas de crença e outras atitu-des proposicionais dentro da abordagem de mundos possíveis são Cresswell1985 e Stalnaker1984.Para iniciantes no programa da semântica de situações (mencionada brevemente na próximaaula), ver BarwisePerry1983. Sobre eventos, processos, estados, Dowty1979 apresenta uma boainvestigação de trabalhos prévios e contém referências; ver também Mourelatos1978. Referênciasadicionais aos tópicos discutidos aqui são dadas na nota da Aula VII. Sobre propriedades, minhafonte básica é Chierchia1984, que se baseia no trabalho de Cocchiarella; ver também Turner1983e aguardem o trabalho conjunto de Chierchia e Turner. Sobre nomes como designadores rígidos,Kripke1972.

Aula 7

Nessa aula, eu me baseio novamente em G. Carlson1977, Chierchia (Chierchia1982, Chier-chia1984), e Link1983. A teoria de Cresswell está lançada no seu trabalho de Cresswell1973.As relações temáticas foram discutidas extensivamente pela primeira vez em Gruber (1965).A teoria dos casos de Fillmore1968 é um desenvolvimento similar mas parcialmente indepen-dente. Para uma incorporação inicial dessas noções na corrente da gramática transformacional

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�padrão�, ver Jackendo�1972; van [cap. 15]RiemsdijkWilliams1986, serviria como uma introdu-ção conveniente ao lugar da teoria-θ nas abordagens transformacionais mais recentes. Algumasdas propostas mencionadas na primeira parte dessa aula são discutidas em Bach (Bach1986a,Bach1986b). Para um tratamento cuidadoso dos eventos e suas manifestações como localiza-ções espaço-temporais, ver Hinrichs1985; localizações espaço-temporais exercem papel principalna semântica de situações também. As poucas abordagens de modelos para os problemas dasrelações temáticas são: Chierchia1984, Carlson1984, Dowty1989. Os ensaios importantes deDavidson sobre eventos, ações e problemas relacionados estão convenientemente reimpressos(com alguns comentários adicionais) em Davidson1980. Terry Parsons escreveu uma série deartigos (Parsons1980, Parsons1985, Parsons1989) em que fragmentos no estilo montagueano sãopropostos ou apresentados para uma análise do inglês que torna explícito o uso sintático dospapéis temáticos em uma perspectiva davidsoniana. Para a semântica de situações ver Barwi-sePerry1983 e a literatura lá citada; um número de críticas a essa teoria aparece em Linguisticsand Philosophy 8.1 (Fevereiro de 1985). Heim1982 e Kamp1981 são as referências básicas parasuas teorias. Pelletier1979 é uma coleção útil de artigos sobre os problemas �losó�cos dos nomesde massa.

Aula 8

Sobre o problema da �realidade psicológica� em semântica, ver Partee (1979)1. Os ensaiosde Putnam sobre �loso�a da linguagem estão convenientemente disponíveis em Putnam1975.Os pensamentos do �último� Wittgenstein sobre linguagem e �jogos de linguagem� podem serencontrados em (Wittgenstein1958 [edição brasileira na coleção Os Pensadores, 1999]). JerryFodor recentemente publicou um livro chamado Psychosemantics (Fodor1987). Sobre �modelosmentais�: Johnson-Laird1983. Gil1982 é um estudo importante da variação (translinguística)e dos problemas da interpretação dos quanti�cadores. Sobre a questão da interpretação dossintagmas nominais, ver Williams1983 e Partee1987.

A pesquisa atual na semântica do tipo em que eu me concentrei aqui está sendo condu-zida por todo o mundo agora. Muito da pesquisa, como em outros campos, é divulgada em�semi-publicações� que variam de fotocópias e correspondência eletrônica a publicações mais oumenos regulares de �working papers� de vários grupos de pesquisa. Artigos sobre semânticaagora aparecem com razoável regularidade na maioria dos periódicos que incluem trabalhos emlinguística teórica. Alguns dos mais importantes periódicos que estão focados principalmenteem semântica em �loso�a da linguagem de um ponto de vista linguístico são: Linguistics andPhilosophy, Journal of Semantics, Journal of Philosophical Logic. Conferências regulares que sededicam primariamente aos problemas semânticos acontecem em todo o mundo (por exemplo,em universidades localizadas em Amsterdam e Konstanz).2

1Esse texto não está nas referências nem do arquivo do Luisandro, nem do próprio livro do Bach.2N.T.: uma boa fonte online de artigos e teses é o portal semanticsarchive.net, Heim1982 e Carl-

son1977, por exemplo, estão disponíveis para download em formato pdf.

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