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Wittgenstein e os Jogos de Linguagem Auroux afirma que, Wittgenstein visa ao fato de que toda filosofia se realiza menos como um sistema mais ou menos lógico de proposições do que ela se encarna, de fato, em uma linguagem que é de inicio a linguagem comum (...). Wittgenstein parte ao contrário da hipótese de que o problema reside justamente naquilo que recobre o modo científico do pensamento. A virada entre as duas filosofias de Wittgeinstein funcionou em torno da constatação de que a capacidade da linguagem comum de lograr o filósofo que acredita construir uma linguagem técnica e formalizada procede da contaminação da linguagem comum pelo espírito científico, característico da época contemporânea. 1 Wittgenstein mostra que quanto mais o exame da linguagem real é preciso, mais a ideia de uma linguagem ideal é contraditória. Ele defende que a ideia de uma linguagem ideal é o exemplo mesmo do falso problema criado por uma má utilização da própria linguagem. Um jogo de linguagem é então um (ou vários) elemento(s) lingüístico(s) saído(s) das condições empíricas de sua utilização (deles). Nenhum jogo de linguagem representa a essência da linguagem, ele é apenas uma das múltiplas práticas possíveis da linguagem; ademais, ele 1 Ibid., p. 272 Auroux apresenta também a relação entre Lacan e Heidegger: “Lacan não foi procurar em Heidegger uma filosofia da linguagem qualquer, mas um pensamento da verdade que permita compreender por que e como esta só pode manifestar-se sob as formas da inaparência, conforme a expressão do filósofo quando ele fala da fenomenologia da inaparência (...). Se a significação articula o sentido que o engendrou, ela é também o que permite entendê-lo; tanto é que existe a disposição de escutá-lo, disposição de que Lacan define o empenho como vocação do discurso analítico.” AUROUX, Sylvain. A Filosofia da Linguagem. Campinas: Editora Unicamp, 1998.

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Witt e os jogos de linguagem

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Wittgenstein e os Jogos de Linguagem

Auroux afirma que,

Wittgenstein visa ao fato de que toda filosofia se realiza menos como um sistema mais ou menos lógico de proposições do que ela se encarna, de fato, em uma linguagem que é de inicio a linguagem comum (...). Wittgenstein parte ao contrário da hipótese de que o problema reside justamente naquilo que recobre o modo científico do pensamento. A virada entre as duas filosofias de Wittgeinstein funcionou em torno da constatação de que a capacidade da linguagem comum de lograr o filósofo que acredita construir uma linguagem técnica e formalizada procede da contaminação da linguagem comum pelo espírito científico, característico da época contemporânea.1

Wittgenstein mostra que quanto mais o exame da linguagem real é preciso, mais a

ideia de uma linguagem ideal é contraditória. Ele defende que a ideia de uma linguagem

ideal é o exemplo mesmo do falso problema criado por uma má utilização da própria

linguagem.

Um jogo de linguagem é então um (ou vários) elemento(s) lingüístico(s) saído(s) das condições empíricas de sua utilização (deles). Nenhum jogo de linguagem representa a essência da linguagem, ele é apenas uma das múltiplas práticas possíveis da linguagem; ademais, ele só pode significar por ostensão, quer dizer, se o contexto extralingüístico é dado (...). Wittgenstein não apenas destruiu o conceito de língua ideal, construído pelos filósofos lógicos, mas sua análise faz pairar uma dúvida sobre a consistência do conceito de língua, realidade autônoma e unitária, tal como a construíram os lingüistas, particularmente desde a gramática comparada do século XIX.2

No que tange ao tema de linguagem privada e a luta contra a linguagem, ressalta-

se:

O reconhecimento da multiplicidade dos usos possíveis da linguagem exclui então toda redução a um modelo único, e supõe reconsiderar a problemática clássica para a qual um ato de linguagem compreende ao mesmo tempo a manipulação (o uso) de signos e sua interpretação (pensar, dar um sentido). Wittgenstein observa que o erro, e todas as dificuldades filosóficas que resultam dele, consiste justamente no fato de que o uso dos signos é buscado como se ele coexistisse com o

1 Ibid., p. 272Auroux apresenta também a relação entre Lacan e Heidegger: “Lacan não foi procurar em Heidegger uma filosofia da linguagem qualquer, mas um pensamento da verdade que permita compreender por que e como esta só pode manifestar-se sob as formas da inaparência, conforme a expressão do filósofo quando ele fala da fenomenologia da inaparência (...). Se a significação articula o sentido que o engendrou, ela é também o que permite entendê-lo; tanto é que existe a disposição de escutá-lo, disposição de que Lacan define o empenho como vocação do discurso analítico.” AUROUX, Sylvain. A Filosofia da Linguagem. Campinas: Editora Unicamp, 1998.2 AUROUX, Sylvain. A Filosofia da Linguagem. Campinas: Editora Unicamp, 1998, p. 275.

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próprio signo em uma mesma substância linguageira (...). Sua argumentação contra a possibilidade de uma linguagem privada visa precisamente mostrar o caráter fundamental do jogo de linguagem público que permite a representação dos estados mentais (...). Os processos internos privados supõem um uso justificado pelo fato de que só o indivíduo poderia ter acesso à presença imediata de um objeto ou de um estado internos.3

A dogmática penal está repleta de jogos de linguagem como ficará demonstrado

no decorrer da pesquisa. AUROUX salienta:

Nesse sentido, a descrição da dor não é um negocio privado, porque, do ponto de vista de uma teoria da significação, a expressão verbal de uma experiência interna não é nunca elementar, mas está ligada a expressões de sensações naturais que têm uma significação derivada de proposições intersubjetivas que se relacionam com o mundo exterior (...). Diz Wittgenstein que minha linguagem não é uma linguagem privada porque ela supõe a referencia a critérios públicos do uso lingüístico (...). As regras públicas que determinam o uso lingüístico na linguagem das sensações e das percepções.4

Percebe-se, neste ponto, que as regras de linguagem pública influenciam a

dogmática penal, e notadamente, a linguagem utilizada na prática penal em relação à

atuação policial, ao poder da mídia e às sensações e percepções sobre segurança

pública. Esta linguagem pública utilizada na prática penal influencia diretamente nas

escolhas e aplicações das políticas criminais. Luta-se, no âmbito criminológico crítico,

contra esta linguagem seletiva e falsa espalhada pelo sistema penal.

Auroux coloca uma relação entre Wittgenstein e Heidegger:

Wittgenstein une-se a Heidegger nesta afirmação da diferença intrínseca entre os métodos e os objetivos da filosofia e aqueles em funcionamento nas ciências. Mas a analogia para por aí, pois sua concepção da linguagem não tem nada a ver com aquela esboçada em Etre et Temps, e menos ainda com a que é desenvolvida em Acheminement vers La parole. Wittgenstein define a tarefa da filosofia como crítica das ilusões que provêm da origem lingüística dos problemas filosóficos.5

Conclui Auroux que as teses de Heidegger, Lacan e Wittgenstein tem em comum

a recusa da metalinguagem.

Reencontramos em Heidegger com a poesia e em Wittgenstein com os jogos de linguagem. O que é visado não é essencialmente a

3 Ibid., p. 276.4 Ibid., p. 176. 5 AUROUX, Sylvain. A Filosofia da Linguagem. Campinas: Editora Unicamp, 1998, p. 277.

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existência da gramática e de sua metalinguagem, mas antes a ideia de que recorrendo a um empilhamento de metalinguagens se pudesse atingir por aí o funcionamento último da linguagem cotidiana: esta não poderia ser o objeto sem resto daquelas (...). Tal é o sentido profundo da crítica heideggeriana das filosofias da linguagem. Esse tipo de posição (ataque contra o racionalismo) coloca um dilema de base: ou antes se pretende explicar apesar de tudo o funcionamento da incontornável primariedade simbólica; ou antes designa-se simplesmente este incontornável, este pedestal da atividade simbólica.6

6 Ibid., p.279.