AUT ORIA NEG RA - revistaparenteses.com.br · que tudo invade A história do êxtase____parte...

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revista parênteses | edição especial #04 distribuição on-line gratuita AUT ORIA NEG RA

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revista parênteses | edição especial #04distribuição on-line gratuita

A U T ORIA N E G

RA

Lívia Natália

4tatiana

nascimento

13Marcelo

Ariel

8

Ray Cruz

23Elisa

Lucinda

18

Jarid Arraes

31

Elizandra Souza

28Editorial 3

Créditos e contato 35

Se prestarmos atenção, conseguiremos

ouvir a respiração pesada e os batimentos lentos da

literatura brasileira que sobrevive entre abismos: gê-

neros, raças, classes sociais, ideologias...

Existe uma ordem em que ainda prevalecem au-

tores homens, brancos, heterossexuais, classe média,

nascidos no Sul e Sudeste do país.

Precisamos urgentemente romper com isso. Assim,

a Parênteses propõe espaço para a produção poética de

autoria negra nesta edição especial e espera que, além

de conhecermos estes autores e saborearmos seus es-

critos, possamos pensar, como leitores, em ações para

romper essa ordem excludente de minorias da litera-

tura brasileira

os editores

Lívia Natália

5

FreudianaNo mais fundo dos homens que amo

há meu pai, com sua carne de maresias.

Ele se desenha na pele dos meus homens

como o mar inscreve, no peixe, as escamas.

(Todo corpo em que derivo absorta

tem algo de sua voz pedregosa.)

Nas peles negras em que me banho

flutua sua existência de maré:

prenhe de naufrágios.

Aos pés destes timoneiros delicados

que pensam singrar minhas águas

sou a kianda-sereia,

um coral espelhado,

sou a ostra que se desmora em silêncio.

Sou a água eternamente translúcida.

Precipício denso de onde estes peixes bebem

- apenas -

um silêncio delicado.

6

As mãos de minha mãe As mãos de minha mãe são imensas

e seguram seu corpo minúsculo

como as chagas de cristo lhes se sustentam a santidade.

Nos dedos vincados de veias grossas,

na curva que se enruga no mais preto das dobras

as mãos de minha mãe perfazem os caminhos de meu mundo.

Se os búzios cantam nas palmas singradas de rotas negras

é para predizer maresias e ondas dolentes em meu caminho.

As mãos de minha mãe, cada vez mais idosas,

guardam, em suas linhas, o segredo de nosso destino,

elas se cruzam no ventre da espera,

e nasce sempre feliz, sempre feminino

7

SinaTodo mês eu sangro.

Diversa de mim,

atravesso águas brutas,

oceanos que me povoam bravios.

Expulso o que em mim excede

e, do que sobra,

algo se move lívido

pulsando nas sendas de meu ventre.

Quando sangro,

o animal onde moro troca de pele

por dentro,

expurgando entranhas.

Todo mês eu sangro.

Todo mês eu singro este mar,

em que me banho.

Lívia Natália é baiana de Salvador, poeta e professora da Universidade Federal da Bahia, onde ensina

Teoria da Literatura no curso de Letras. É doutora em Literatura e Cultura e dedica-se ao estudo de

Literatura Negra Contemporânea. É autora dos livros de poesia Água negra (Prêmio Banco Capital de

Poesia/2011), Correntezas e outros estudos marinhos (2015) e Água negra e outras águas (2016).

Marcelo Ariel

9

Uma vibração

símile

da onda

que retira

da gravidade

vida da morte

até que se manifeste

o cansaço

que resvala

no sublime

por estranhamento

e arte

como se o próprio tempo

nos amantes

fosse também um

duplo

do pensamento

que está atrás

do pensamento

assim a vibração

diminui ou cessa

para que não se torne

insuportável

como um

arco-íris

que preenchesse

o céu

por meses

evocando a geral

indiferença

necessário é

que a intensidade

pouco dure

como o arco-íris

que por sua brevidade

provoca

espanto e admiração

círculo

do qual vemos

apenas metade

sonho

da luz

na transparência

da tarde

estilhaço

delicado

da poderosa

vontade

que arde

no centro

de uma paixão

que tudo invade

A história do êxtase____parte 1_____Flutuação

10

Crescente

não como a lua

mas como sua filha

a onda

ou a hera

a não-palavra

dentro do corpo

flutua em nosso alento

desenhando

o êxtase

esculpindo raios

que sobem

até o alto

da cabeça e depois

descem até o Sol

dentro da terra

como o que há

no fundo

do coração

magma do inominável

que pulsa em você

como uma estrela de névoa

assim, este êxtase

passa por nós

como quem erra

para depois

voltar a ser

o menor

ponto de luz

em nossa treva

A história do êxtase_____________parte 2_____Pólen

11

No Congresso Oceânico das Mulheres do Povo O Silêncio ensurdecedor de cinquenta e quatro mil mortes negras

me trouxe de volta

Patricia Galvão: Mas o ar é irrespirável, cheiro de massacres e fascismos, por isso tentei meter aquela

bala na cabeça.

As ruas e canais

evocam a morte de uma democracia-karaokê

Os pássaros voam de propósito

contra os vidros dos arranha-céus

maquetes em tamanho real

da ausência de espírito

vidros da morte

trincados por gritos

Pagu: Mas ser mulher é algo sempre inaugural , uma insurreição mais do que uma reação, nós

não criamos o macho, ele se desfez em totalitarismos vários, crianças da noite tentarão em vão

cancelar o dia.

12

Marcelo Ariel____1968___Santos-SP____. Poeta, performer e drama-

turgo. Vive em Cubatão e é autor dos livros Tratado dos anjos afoga-

dos (LetraSelvagem, 2008), Diário Ontológico I e II (Pharmakon, 2013),

Retornaremos das cinzas para sonhar com o silêncio (Editora Patuá, 2014,

semifinalista do Prêmio Oceanos), O rei das vozes enterradas (Editora

Córrego-2015), entre outros. Coordena oficinas de criação literária em

Santos-SP .

A Deusa Artémis quando perguntada sobre qual oferenda a agradaria mais

respondeu ‘ Correr livre pelas matas vestida apenas com meus arcos e minhas flechas’

Patrícia Galvão: Quando não houver mais pretos e pretas dormindo nas calçadas, haverá um Brasil.

Pagu: Meu fantasma vaga sem paz, pelas ruas das favelas de Santos , Cubatão e São Vicente

como uma baleia feita de nuvens transparentes, como uma onça feita de brisa do mar, uma

secundarista chorando deitada na calçada, escreve meu nome com orvalho e sangue.

Solange Sohl: Ontem atravessamos vários corpos no meio da manifestação.

Marcelo Ariel, Dez de 2016, Ano do Golpe.

tatiana nascimento

Foto

: L

éo

Hae

do

14

cuíer paradisopra mim,

o paraíso cuíer podia ser um lugar muito simples:

encostar a cabeça no meio das suas teta, ou

te receber no meio das minhas coxa

e depois ir ali na padaria contigo, tomar um suco

(laranja com banana y açaí),

passar a mão no seu cabelo (te reconheci

pelo seu “corte preciso”)

sem ter que usar armadura,

sem ter que antecipar resposta,

sem ter que aprender como dá murro e nem

mapear o espaço antes de entrar

pra ver quem tá lá

imaginar

que ameaças eles fariam

quantos são

se viram a gente, se nos seguiriam

pra mim o paraíso cuíer podia ser menos burocrático que

casamento igualitário regulado pelo estado

(porque é o mesmo estado que paga

a polícia, lembra?)

podia ser menos desesperado que a paixão inteira num dia só

(calma,

amanhã eu

posso vir aqui, y

depois de amanhã a gente vê, mas quando você vier

eu vou gostar de te ver)

podia ser menos agoniado que vinte reuniões na mesma

semana

(com palavra de ordem / questão de ordem / contra todas

as ordens mas organizando tudo tão igual...)

podia ser menos vigiado que todomundo perguntando se é

aberto ou fechado,

reafirmando no “mas quem come quem” os binarismo

heterocentrado,

alfinetando com “ah, mas c num sabia que ela tinha namorado?”

podia ser menos tudo que dá esse cansaço, essa desesperança,

essa diz-

confiança... pra mim um paraíso cuíer podia ser mais

tranquilo,

15

mais respirado. podia ser eu y você num dia ensolarado (mesmo que daqui

a pouco fosse cada uma pra um lado; eu ia gostar. ah, e a parte do

pecado, essa parte eu ia gostar também)

eu tô tão cansada de ter que corrigir o mundo inteiro na minha cabeça y

continuar errado... de tentar resistir, responder (sem esquecer de

dançar, de sorrir) e ver que eu vou morrer sem nada tá mudado,

mudado mesmo. pra mim o paraíso cuíer ia ser deitar um pouco do seu lado,

ver seu rosto dançando na fumaça, a cortina respirando sua janela,

pulmão a céu aberto: exposto, delicado,

(por isso mesmo) forte.

sentir seu coração conversar com a pele do meu ouvido enquanto a noit

e vira dia y a rua esvazia o silêncio com aqueles barulho de manhã le

vantando, pássaros celebrando, vizinho cantando cedo, transporte púb

lico começando tarde (afinal, é o DF)... pra mim

um paraíso cuíer é um pouco de qualquer coisa que me traga

a calma da sua

coragem.

16

a reinvenção da saudade, em trêstempo:pra bruna

1. (ainda)

na aeronave, um susto:

em suas vaga,

aérea,

nado

2. vudu:

no aeroplano, um surto:

de saudade

do teus

beijo

área, plano…

âncoras há(gulha): a

gora boa

gouro

y fu(tu)ra (te) de

sejo.

3. (pra ela tb)

a lu

a boc

a mar

é

cheia

17

o banzo é da saudade que demora solidãobanzo é a saudade que não mora nesse chão banzo ésaudade que derrama escuridão

banzo, é?

benza

fé:

na unçãotransatlânticada funçãodesoceânica jun-são:

pedaços de cacos de vidro com banzo de areia sis-palhando aos bandos (de coração sís-tole

áspera

ou) partidos na diás-pora

[pra tu, uma música que não fizemos juntas]

tatiana nascimento - poeta, tradutora, slam-

mer (slam das minas y slam a coisa tá preta, no

DF), editora na padê editorial (livros artesanais

de autoras negras/lgbtqi), zineira, video-maker,

experimentadora em curas, diver-sãs, prazeres.

adora sol, chuva, mar, planta, bicho. estrelas!

aquariana com muita coisa em peixes (aérea,

mergulhando). canta, compõe, recita no projeto

de música + poesia “água”, de bossa velha y poe-

mas afrofuturistas

contato: [email protected]

diástole:

Elisa Lucinda

19

Vozes guardadasTodo poema é um bilhete, uma carta, uma seta.

Todo poema é uma visão, um aviso, um pedido, uma conversa.

Todo poema é um sinal de perigo, socorro, promessa.

Todo poema pode ser um convite, um alfinete, um beijo, um

[estilete.

Todo poema é fome, banquete, destino e meta.

Eu, pra todo lado que miro, vejo a bagunça, a farra dos inéditos,

a festa.

Está tudo em mim pelas bordas,

e só Deus sabe do disse me disse no interior das gavetas!

Multidões de vozes me habitam com desenvoltura,

invadiram estradas, linhas, cadernos, partituras.

São tribos que vêm com seus alforjes,

são sonhos de literatura,

são palavras que aproveitam e fogem,

são verbos do norte que vieram da loucura,

são letras cotidianas que traduzem a experiência do viver,

são rebanhos de incertezas que migram para as rimas para

vencer

são lágrimas de dor e beleza,

que se fizeram guerreiras antes de escorrer.

Fantasmas flagrados em pleno delito,

organização do não dito, manobra do subjetivo.

Escrever é um modo novo e antigo de ver,

de perceber a elaboração do pensamento sobre um sentido,

enquanto testemunha-se o imponderável do acontecimento dos

fatos.

A palavra fotografa mas não é um retrato.

Nada tem de estática, nunca mais.

Uma vez escrita está esperta e à espreita.

Muito mais à espreita do que quando pensada.

Basta um olhar alfabetizado sobre a escrita palavra,

e pou! Volatiza-se sua potencialidade, abrem-se as travas,

e o mar de significados começa e não cessa de bater e de voar.

Pois de tudo isso, deste acervo contido,

é que meu espírito está hoje repleto,

e é por estar muito cheio que este meu ser está incompleto.

...

A cena interna é alarmante:

há palavras crianças trabalhando em mim, para mim,

perdidas

[nas agendas!

São verbosinhos menores de idade,

aos quais prometi livro, abrigo, um lugar no mundo onde

morar.

Há palavras inocentes fazendo trabalho escravo,

sem que de tal exploração eu não me imaginasse capaz.

20

Outras, velhas demais, são palavras que passaram do ponto da

publicação,

viraram tardias explicações do que já não interessa mais.

Creia-me, trago vozes antigas, vozes ancestrais,

que dominam minhas páginas, as de papéis e as virtuais.

Quando quero dormir, roncam as mais inquietas,

ronronam as mais descansadas, gemem as mais caladas,

gritam as que querem ser libertas, forçando a porta da casa.

Todo poema é uma notícia, um pedaço de diário, um desabafo,

uma fala emocionada ou triste

no calendário do nosso ambíguo caderno de chorar.

Choro por guardá-las,

chorei ao escrever algumas,

e choro agora na hora de oferecê-las ao público redentor.

Estavam dentro do tempo esperando essa hora, este clamor.

Todo poema é um comunicado, uma batida de tambor.

Todo poema é um chamado, uma missiva que a gente ainda

não mandou.

Todo poema pode ser um romance, uma nova chance,

um caso mesmo de amor.

Uma prova factual, uma epístola de fervor com a vida,

um emplastro, um pacto, um fino haicai sobre a ferida,

ainda que não seja premeditadamente a última, a do suicida,

todo poema, de alguma forma é,

daquele beiral do instante,

daquela varanda da lida,

todo poema é

uma carta de despedida!

(Quase verão, Goiânia, 2012)

21

A ilhaNa solidão da existência,

nado firme na batida das águas,

corpo revolto à mercê da decisão das ondas,

vou destilando coragem no desespero das braçadas.

É noite.

Ainda bem que os versos são claros,

me ancoram, me falam, me salvam,

me beijam na boca o beijo longo da salvação,

me devolvem o ar, a vida, a trilha.

O poema é para mim terra firme,

como é, para o náufrago, a ilha.

(Luar crescente, 13 de julho de 2008)

22

O serChegou pela primeira vez

no inverno,

como se fosse um pedido meu.

Trouxe o melhor vinho.

Safra e uva, ele mesmo escolheu.

Me beijou como se me sonhasse,

me comeu como se voltasse,

me aconchegou na cama

como se me amasse.

Digno. Bonito. Lógico. Inexato

Conversador. Silencioso

Firme e terno.

Dorme tranquilo ao meu lado.

Como se fôssemos eternos.

Elisa Lucinda, poeta, atriz, jornalista, professora e cantora, Elisa Lucinda

nasceu ao meio dia, de um domingo de Carnaval, na cidade de Vitória do

Espírito Santo, em dia de Yemanjá. É uma das autoras que mais vendem no

Brasil. Seus livros, em sucessivas edições, percorrem o país sendo lidos, in-

terpretados, encenados, enquanto seu nome figura dando títulos a biblio-

tecas e outros espaços de leitura. A carismática Elisa, que, nas palavras de

Nélida Piñon, “tem a linguagem em chamas”, possui dezessete livros pu-

blicados, dentre os quais a Coleção amigo oculto, de livros infanto juvenis,

que lhe rendeu, em 2002, o premio Altamente Recomendável (FNLIJ) por

A menina transparente. A multiartista encena e circula muito de sua obra

pelos palcos brasileiros e estrangeiros, e comemora o reconhecimento de

ser uma das escritoras que mais popularizam a poesia em nosso tempo.

Versos de Liberdade, que ensina a palavra poética aos jovens que cumprem

medidas, é um dos projetos que a sua instituição Casa Poema desenvolve,

entre cursos de Poesia Falada para todos. Seu primeiro romance Fernando

Pessoa, o cavaleiro de nada, uma autobiografia do poeta, foi finalista no

Prêmio São Paulo de Literatura 2015. Vozes guardadas reúne dois livros iné-

ditos de poesia, escritos entre 2005 a 2016.

Facebook: facebook.com/elisalucinda

Email: [email protected]

Ray Cruz

24

minha consciência é negranão me lembro

quando percebi que sou negro

deve ter sido no colo da minha mãe

quando percebi que sou

alguma coisa com fome

mas acho que percebi

o que ser negro significa

nos primeiros anos da escola

todos os dias

as pessoas me lembram que sou negro

será que elas acham que eu me esqueço?

todos os dias alguém

comenta minha cor

fala algo sobre o meu cabelo

na maioria das vezes

dizem que é feio

me aconselham a evitar

o preconceito

raspa esse cabelo duro

para de tomar sol

bebe menos café

eu sei que querem me embranquecer

também tem aqueles que dizem

“eu amo a sua cor”

“queria ser preto”

todos os dias

alguém julga minha pele

como se eu me importasse

com minha embalagem

ou vivesse o tempo todo

esperando ser discriminado

ou ser ovacionado

por simplesmente

ser o que sou

eu to acostumado

com o medo me olhando

dentro dos carros

e nos becos sujos

eu to acostumado

com a desconfiança

me examinando

abaixo das sirenes

25

eu to acostumado

com os pronomes escuros

e ai neguin, e ae negão

eu demorei um pouco

pra parar de querer

ser branco igual o Superman

o Neo, o Goku e tantos outros

heróis da infância

eu demorei um pouco

pra não me importar

com o que as pessoas

falavam e continuam a falar

conhecendo a história

descobri minha herança

passei a apreciar

o que me ensinaram

que era feio

comecei a sentir os tambores

tocando meu sangue

dia 20 de novembro

é só um dia pra relembrar que

o preconceito é um vizinho psicopata

e que apesar da carne negra

ser a mais barata do mercado

é ela que continua

alimentando essa nação

porque pra mim

o dia da consciência negra

é todo santo dia

que enxergam minha cor

primeiro que meu interior

26

odeio meu trabalhoMeu suor

Tem cheiro de

Concreto fresco

Minhas lágrimas com

Sabor de argamassa

Meu sangue da cor

Daquelas telhas

De cerâmica

O trabalho braçal

Irrefletido e irracional

Me torna mais um animal

Cada pá de areia

Uma agulhada

Em cada músculo

A endorfina

Nem parece mais

Um agradecimento

Pelo meu corpo ainda

Estar inteiro

Treze longos anos

Na escola para

Aprender a ser

Um burro

De carga

Alguém me vende

Um emprego

Pago com

O resto

Da minha

Vida.

27

outro calo na palma do meu olhominha mão sangra

no cabo do próximo verso

que caleja a labuta maldita

dando cabo de si

entulho obscuro

resto duro indigesto

soterrado no peito nu

escombro escavado

no suor sangrado

por falta de ter o que escolher

por força de vontade de comer

outro dia entornado

em si destroçado

no cabo de saber

na boca o gosto amargo

do “ter ou não ser?”

minha mão chora

flores vermelhas

ao cabo do inacabado

que soa como um

calo sangralienado.

Ray Cruz sobrevive na periferia da periferia

de Brasília: Cidade Ocidental. Em 2017 partici-

pou da antologia Seres da noite (editora INDE).

Filho adotivo da Iluzine, posta seus poemas em

sua page Deus cadela no Facebook e em seu blog

pessoal Exu do Absurdo. Amante de amendoim

japonês, dias nublados e Paratudo ou café com

qualquer coisa.

Elizandra Souza

Foto

: E

llen

Far

ia

29

MenstruaçãoSangre mais uma vez!

Expele do teu corpo

o embrião não fecundado

Junte todo o amargor

e sangre outra vez!

É dolorido,

mas sinta com intensidade essa cólica

esse mal estar,

mas sangre mais uma vez!

Sangre nessa hipócrita sociedade,

junte todas as dores expelidas,

retire da calcinha

esse absorvente encharquecido

E jogue fora todos esses sangrados.

Mas Mestrue e Ação!

RioHoje amanheci rio,

Não fico no mesmo lugar

Minhas margens não me comprimem

Minhas águas estão a navegar

Hoje amanheci rio,

Vou beber e me banhar

Não quero barco!

Hoje sou redemoinho, pode deixar

Não vou me afogar

Hoje amanheci rio,

Quero anoitecer me encontrando com o mar

Pescar estrelas

E adormecer na brisa do ar

30

Nas curvas do cajueiroCarregava na faceAlma que latejavaConfissões da secaDo árido nordeste

Da montaria do cavaloDa pisada na estradaDa aroeira ao bocapioO carro do boi que cantava

A plantação que o sol destruiu,A prece destinada à chuvaSão Pedro dono das águas do céu:“Manda uma trovoada de mansinho”

Em São Paulo com a almaPlantada e enraizadaNas curvas do cajueiroNo gosto da castanhas e na beira do rio

Que falta faz sair sem destinoContando as estrelas, seguindo o luarNos seus olhos o verde da colheitaO coração um toque de zabumba

Seus sonhos eram um sítio florido de frutos ácidosFilho de África e SertãoSorriso de quem esperava

Fogueiras, foguetes e forró....

Elizandra Souza, poeta, jornalista, editora da

Agenda Cultural da Periferia na Ação Educativa,

locutora da Rádio Comunitária Heliópolis

FM, integrante do Sarau das Pretas - SP. Co-

organizadora do livro de poesias Terra fértil, de

Jenyffer Nascimento, e da Antologia Pretextos

de mulheres negras, com Carmen Faustino. É au-

tora do livro de poesias Águas da cabaça, lança-

do em outubro de 2012 e co-autora do livro de

poesias Punga, com Akins Kintê (Edições Toró,

2007). Tem participação em antologias literárias

como Cadernos negros, Negrafias, entre outras. É

também idealizadora do evento Mjiba em Ação

– Comemoração ao Dia da Mulher Negra (25 de

julho) e editora do Fanzine Mjiba (2001-2005).

Jarid Arraes

32

OrigemNão conheço minha história

Tão bem quanto eu gostaria

Eu não sei do meu passado

Nem minha genealogia

Mas carrego algumas pistas

Que por mim são muito quistas

Fortes são filosofias.

Sei que vim dum povo belo

Dumas terras deslumbrantes

Com mil cores aguerridas

Imponentes seus semblantes

E na pele a cor bem preta

Girando uma carrapeta

De histórias instigantes.

Eu não sei de onde veio

Meu cabelo enrolado

Minha cor escurecida

Ou nariz nesse formato

Mas a força ancestral

Se mostrou a maioral

E de mim fez um contrato.

É que meus antepassados

Precisavam de juntar

Uma gente descendente

Para se fazer lutar

Relembrando nossa história

Conquistando essa memória

Que tentaram se apagar.

Dessa África distante

O meu corpo se formou

Entre mil desaventuras

O meu povo batalhou

Hoje sou sobrevivente

Sou herança dessa gente

Que por mim só guerreou.

Sobre mim foi derramada

Essa importante missão

De crescer a identidade

Do meu povo na nação

E com fala flamejante

Com coragem incessante

Feito um bruto furacão.

Não conheço minha história

Tão bem quanto gostaria

Mas no peito bate forte

Minha genealogia

Pois a garra visceral

Vinda do meu ancestral

É certeza que me guia.

33

BruxaSou feroz e perigosa

Três espinho em cada mão

Minha garra é amolada

Minha boca é confusão

Só golpeio de certeira

Que é pra ver a bagaceira

Pra causar rebelião.

Me criei pra perturbar

Rebuliço é meu cartão

Onde vou me acompanha

Ventania e furacão

No meu útero eu cresci

Esse vento pra bulir

E arrombar todo portão.

Piso forte, braba toda

E a poeira vai subindo

No turbante dou meu nó

E veloz eu vou agindo

Se alumeia meu olhar

Pronto pra hipnotizar

De leoa eu vou rugindo.

Eu num deixo nem o pó

Nem o caldo, nem restim

A história é conto meu

Que só presta sendo assim

Eu que falo com vontade

Como louca divindade

Girando um redemoim.

O meu casco é feito pedra

Minha língua é esquentada

Quando pega no espinhaço

Sai pior que chicotada

E o meu verbo a estralar

Vai mermo na jugular

Vira música cantada.

Tudo o que você disser

Eu enfrento a responder

A palavra brota viva

Erva daninha a crescer

Enveneno na cuspida

Só pra piorar a lida

De quem vem me aborrecer.

Se tiver inteligência

Não me venha provocar

Eu mastigo sua carne

No meus dente a triturar

Té seu osso vai chupado

É lambido e descartado

Pro meu chão se adubar.

Sou a fera que desperta

Que se atiça revoltada

Viro pedra e correnteza

Pela noite e madrugada

Eu vomito larva pura

E a chaga não tem cura

Se por mim for provocada.

Sou um corvo carniceiro

Sou uma besta indomada

Tempestade corre solta

Com força descontrolada

Só começo pra acabar

Se vier me afrontar

Se prepare pra dentada.

34

Reflexopreta,

essa tua pele

cinco tons

mais marrom

que a minha

atiça o toque

das minhas mãos

e dos meus beijos

a saliva

te olho derramada

escorrendo

em contraste

no lençol

absorvida

e quero cada poro

induzindo melanina

desmedida

Jarid Arraes: escritora, cordelista e autora do li-

vro As Lendas de Dandara. Criadora da Terapia

Escrita, mediadora do Clube da Escrita Para

Mulheres e do Clube Leitura Independente. Até

o momento, tem mais de 60 títulos publicados

em Literatura de Cordel, incluindo a coleção

Heroínas negras na história do Brasil e publica-

ções em parceria com a Artigo 19 e o Think Olga.

preta,

você tem a textura

qua arrepia

meus pelos

tem o toque

que desperta

meus peitos

‘e meus olhos

transbordam

um tesão

que é espelho.

A Parênteses tem distribuição livre e gratuita, sinta-se à vontade para compartilhar.

Não encorajamos, porém, nenhum tipo de adaptação e/ou de uso comercial dos materiais. Nesses casos, os autores devem ser consultados.

Todos os textos aqui reunidos são, e sempre serão, de propriedade de suas autoras, cuja gentileza agradecemos.

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Edição Bruno Palma e Silva

Lubi Prates

Projeto gráfico Bruno Palma e Silva

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